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SOCIOLOGIA
A contribuição pós-colonial
Sérgio Costa
Os estudos pós-coloniais não constituem dos trabalhos de autores como Homi Bhabha,
propriamente uma matriz teórica única. Trata-se Edward Said, Gayatri Chakravorty Spivak ou
de uma variedade de contribuições com orienta- Stuart Hall e Paul Gilroy referências recorrentes
ções distintas, mas que apresentam como caracte- em outros países dentro e fora da Europa.
rística comum o esforço de esboçar, pelo método A abordagem pós-colonial constrói, sobre a
da desconstrução dos essencialismos, uma refe- evidência – diga-se, trivializada pelos debates
rência epistemológica crítica às concepções domi- entre estruturalistas e pós-estruturalistas – de
nantes de modernidade. Iniciada por aqueles que toda enunciação vem de algum lugar, sua
autores qualificados como intelectuais da diáspo- crítica ao processo de produção do conhecimen-
ra negra ou migratória – fundamentalmente imi- to científico que, ao privilegiar modelos e con-
teúdos próprios ao que se definiu como a cultu-
grantes oriundos de países pobres que vivem na
ra nacional nos países europeus, reproduziria,
Europa Ocidental e na América do Norte –, a
em outros termos, a lógica da relação colonial.
perspectiva pós-colonial teve, primeiro na crítica
Tanto as experiências de minorias sociais como
literária, sobretudo na Inglaterra e nos Estados
os processos de transformação ocorridos nas
Unidos, a partir dos anos de 1980, suas áreas pio-
sociedades “não ocidentais” continuariam sendo
neiras de difusão. Depois disso, expande-se geo- tratados a partir de suas relações de funcionali-
graficamente e para outras disciplinas, fazendo dade, semelhança ou divergência com o que se
denominou centro. Assim, o prefixo “pós” na
Artigo recebido em abril/2005 expressão pós-colonial não indica simplesmente
Aprovado em Agosto/2005 um “depois” no sentido cronológico linear; trata-
se de uma operação de reconfiguração do cam- O objetivo deste ensaio não é traçar uma
po discursivo, no qual as relações hierárquicas genealogia dos estudos pós-coloniais, mas discu-
ganham significado (Hall, 1997a). Colonial, por tir a importância de sua contribuição para as ciên-
sua vez, vai além do colonialismo e alude a si- cias sociais e para a sociologia, em particular.
tuações de opressão diversas, definidas a partir Trata-se de discutir, em primeiro lugar, o caráter
de fronteiras de gênero, étnicas ou raciais. da crítica que os estudos pós-coloniais endereçam
Delimitar o campo teórico preciso no qual às ciências sociais. Em seguida, discute-se as alter-
se inserem os estudos pós-coloniais não é tarefa nativas epistemológicas que apresentam, conside-
fácil. Talvez não seja nem mesmo uma tarefa con- rando-se três blocos interrelacionados de ques-
cretizável, uma vez que os estudos pós-coloniais tões, a saber: a crítica ao modernismo como
buscam precisamente explorar as fronteiras, pro- teleologia da história, a busca de um lugar de
duzir, conforme quer Bhabha (1994), uma refle- enunciação “híbrido” pós-colonial e a crítica à
xão para além da teoria. Não obstante, não é difí- concepção de sujeito das ciências sociais. A con-
cil reconhecer a relação próxima entre os estudos clusão a que se chega é de que, a despeito de sua
pós-coloniais e pelo menos três correntes ou contundência e da suspeita de autores como
escolas contemporâneas. A primeira é o pós- McLennan (2003) de que a teoria pós-colonial
estruturalismo e, sobretudo, os trabalhos de Der- implode a base epistemológica das ciências
rida e Foucault, com quem os estudos pós-colo- sociais, boa parte da crítica pós-colonial tem
niais aprenderam a reconhecer o caráter como destinatário não o conjunto da teoria social,
discursivo do social. A recepção do pós-estrutura- mas uma escola teórica particular, qual seja, a teo-
lismo, contudo, não é a mesma que fazem auto- ria da modernização, e se assemelha a objeções
res como Lyotard e outros expoentes da corrente levantadas por cientistas sociais que nada têm a
pós-moderna, segunda referência importante para ver com o pós-colonialismo. Outros problemas
os estudos pós-coloniais que se quer destacar levantados pelos estudos pós-coloniais não deses-
aqui. A rigor, a abertura para o pós-modernismo tabilizam, necessariamente, as ciências sociais,
varia muito, conforme a abordagem que se tome. podendo mesmo enriquecê-las.
De forma geral, aceita-se falar da pós-modernida-
de, como condição, isto é, como categoria empí-
rica que descreve o descentramento das narrativas As ciências sociais e seus binarismos
e dos sujeitos contemporâneos. Recusa-se, contu-
do, o pós-modernismo como programa teórico e Não é sem razão que o livro clássico
político, visto que, para o pós-colonialismo, a Orientalism do crítico literário palestino Edward
transformação social e o combate à opressão Said (1978) é considerado o “manifesto de funda-
devem ocupar lugar central na agenda de investi- ção” do pós-colonialismo (Conrad e Randeria,
gação (Appiah, 1992; Gilroy, 1993, p. 107). Por 2002, p. 22). No livro, Said dá contornos a uma
último, cabe a alusão aos estudos culturais, sobre- perspectiva que começara a ser delineada nos
tudo em sua versão britânica desenvolvida princi- esforços pioneiros desenvolvidos pelo psiquiatra
palmente no Birmingham University’s Centre for de Martinica Frantz Fanon (1965 [1952]), quando
Contemporary Studies. Talvez seja razoável dizer buscou descrever o mundo moderno visto pela
que a distinção entre estudos culturais, na versão perspectiva do negro e do colonizado.
britânica, e estudos pós-coloniais seja apenas cro- O orientalismo de que fala Said caracteriza
nológica. Afinal, desde que Stuart Hall, figura cen- uma maneira particular de percepção da história
tral dos estudos culturais britânicos, desloca sua moderna e tem como ponto de partida o estabe-
atenção, a partir de meados dos anos de 1980, de lecimento a priori de uma distinção binária entre
questões ligadas à classe e ao marxismo para Ocidente e Oriente, segundo a qual cabe àquela
temas como racismo, etnicidades, gênero e iden- parte que se auto-representa como Ocidente a
tidades culturais, verifica-se uma convergência tarefa de definir o que se entende por Oriente. O
plena entre estudos pós-coloniais e estudos cultu- orientalismo constitui, assim, uma maneira de
rais (Morley e Chen, 1996). apreender o mundo, ao mesmo tempo que se
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Parekh (1995, p. 12), de uma descolonização da deiro sujeito moderno, do qual mesmo os socia-
imaginação o que implica uma crítica que não seja listas e os nacionalistas mais combativos buscam
simplesmente anticolonialista,6 uma vez que, histo- construir, pela imitação, um similar nacional (para
ricamente, o combate ao colonialismo teria se uma crítica, ver Santos, 2004).
dado ainda no marco epistemológico colonial, por A tentativa de dar plausibilidade à idéia de
meio da reificação e do congelamento da suposta histórias que, a despeito de serem narradas como
diferença do colonizado em construções nativistas histórias nacionais, apresentam interpenetrações e
e nacionalistas. O pós-colonialismo deve promover se determinam mutuamente, toma corpo nos con-
precisamente a desconstrução desses essencialis- ceitos de “histórias partilhadas” e “modernidade
mos, diluindo as fronteiras culturais legadas tanto entrelaçada”, cunhados por Randeria (2000),
pelo colonialismo como pelas lutas anticoloniais. socióloga indiana da Universidade de Zurique.
Com os conceitos, a autora busca, de um lado,
expressar a interdependência e a simultaneidade
Histórias entrelaçadas dos processos de constituição das sociedades con-
temporâneas e, de outro, destacar a representação
A desconstrução da dicotomia Rest/West dicotômica, cingida, das intersecções históricas
passa, primeiramente, pela reinterpretação da his- nas representações modernas. O termo “partilha-
tória moderna. Com efeito, a releitura pós-colo- do” carrega duplamente o sentido das expressões
nial da história moderna busca reinserir, reinscre- shared e divided, isto é, trata-se de histórias com-
ver o colonizado na modernidade, não como o partilhadas em seu desenrolar, mas divididas em
sua apresentação e representação. É importante
outro do Ocidente, sinônimo do atraso, do tradi-
destacar que, ao enfatizar as interpenetrações das
cional, da falta, mas como parte constitutiva
histórias modernas, a autora não busca ofuscar as
essencial daquilo que foi construído, discursiva-
assimetrias de poder que marcam tal relação, tam-
mente, como moderno. Isso implica descontruir a
pouco significa afirmar que tudo está entrelaçado
história hegemônica da modernidade, evidencian-
na mesma medida e na mesma proporção. Trata-
do as relações materiais e simbólicas entre o
se de contextualizar as transformações observadas
“Ocidente” e o “resto” do mundo, de sorte a mos-
num feixe de relações interdependentes entre as
trar que tais termos correspondem a construções
diferentes regiões do mundo, de forma a dar sen-
mentais sem correspondência empírica imediata.
tido às assimetrias e às desigualdades construídas
Esse é o projeto perseguido pelo historiador no interior da história moderna comum.
indiano da Universidade de Chicago, Dipesh A insistência na idéia de uma constituição
Chakrabarty (2000). Sob a divisa “provincializar a entrelaçada da modernidade carrega uma intenção
Europa”, o autor busca radicalizar e transcender o dupla. Inicialmente, busca-se mostrar a cegueira
universalismo liberal, mostrando que o racionalis- epistemológica que o binarismo West/Rest lega às
mo e a ciência, antes de serem marcas culturais diferentes disciplinas. Ou seja, ao tratar esse “outro”
européias, são parte de uma história global, no do Ocidente, de forma evolucionista e hierárquica,
interior da qual o monopólio “ocidental” na defi- como um vácuo de sociabilidade, “pré-estágio do
nição do moderno foi construído tanto com o si mesmo europeu”, disciplinas como a sociologia
auxílio do imperialismo europeu, como com a acabam tomando por novos e decorrentes da glo-
participação direta do mundo “não ocidental”. balização contemporânea processos como “a debi-
Isto é, as histórias nacionais de países não euro- litação da soberania nacional, informalização e fle-
peus se apresentam como narrativas de constru- xibilizaçao do trabalho, dependência de
ção de instituições – cidadania, sociedade civil acontecimentos remotos, hibridicidade cultural”
etc. –, que só encerram sentido se projetadas no (Idem, p. 45) – todos eles, na verdade, velhos
espelho de uma “Europa hiperreal”, na medida conhecidos das sociedades (pós-)coloniais.
em que ignoram as experiências efetivas das Ao mesmo tempo, a ênfase na constituição
populações de tais países. Nessas histórias nacio- entrecruzada da modernidade busca lançar luz
nais, a Europa imaginada é a morada do verda- sobre o papel das colônias como campo de expe-
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rimentação da modernidade. Se, pelo menos construída, no processo mesmo de sua manifesta-
desde a publicação d’O capital de Karl Marx, a ção, ela não é uma entidade ou expressão de um
importância da expansão colonial na formação do estoque cultural acumulado, é um fluxo de repre-
capitalismo é conhecida, a ênfase pós-colonial na sentações, articuladas ad hoc, nas entrelinhas das
história partilhada busca chamar a atenção para identidades externas totalizantes e essencialistas –
outras dimensões dessa interdependência. Conrad a nação, a classe operária, os negros, os migrantes
e Randeria (2002, p. 26) nomeiam estudos diver- etc. Nesses termos, mesmo a remissão a uma
sos que, dentro desta perspectiva, mostram como suposta legitimidade legada por uma tradição
a idéia (moderna) de reformar a ordem social por “autêntica” e “original” deve ser tratada como
meio da “intervenção orientada estrategicamente” parte da performatização da diferença – no senti-
é gestada na segunda metade do século XIX, pri- do lingüístico do ato enunciativo e no sentido dra-
meiro nas colônias e só depois é importada, como matúrgico da encenação. Assim, tal reivindicação
possibilidade de “modernização”, da Europa. de legitimidade precisa ser entendida a partir da
Exemplos de tal processo são os projetos de rees- contextualidade discursiva em que se insere:
truturação urbana experimentados primeiro no
norte da África e depois aplicados na França, bem Termos do engajamento cultural, sejam eles anta-
como a técnica de verificação da identidade pela gonistas sejam de filiação, são produzidos perfor-
impressão digital, inicialmente posta em prática mativamente. A representação da diferença não
tem de ser interpretada apressadamente como um
em Bengala.
conjunto pré-fornecido de caracteres étnicos ou
culturais no âmbito de um corpo fixo da tradição.
Da perspectiva da minoria, a articulação social da
O lugar de enunciação pós-colonial: diferença representa uma complexa negociação
elogio do híbrido em curso que busca autorizar os hibridismos que
aparecem nos momentos de transformação histó-
Em vez de buscar os fatos e as conexões que rica. O “direito” de significar a partir da periferia
possam reposicionar o (pós-) colonizado na his- do poder autorizado e privilegiado não depende
tória moderna, outros autores, mais convictos das da persistência da tradição; tal direito está funda-
possibilidades do pós-estruturalismo, concentram do no poder da tradição de ser reinscrita por
seu esforço (pós-colonial) na relação entre dis- meio das condições de contingência e contradi-
ção que respondem às vidas daqueles que “estão
curso e poder, buscando encontrar um lugar de
em minoria”. O reconhecimento que a tradição
enunciação que possa escapar às adscrições
louva é uma forma parcial de identificação.
essencialistas e transgredir as fronteiras culturais Retomando o passado, tal reconhecimento intro-
traçadas pelo pensamento colonial. O crítico lite- duz outras temporalidades culturais na invenção
rário indiano Homi Bhabha (1994) é quem perse- da tradição. Esse processo torna estranho qual-
gue essa estratégia com mais pertinácia. Seu inte- quer acesso imediato a uma identidade original
resse está voltado para os espaços de enunciação ou tradição “recebida” (Bhabha, 1994, p. 2)
que não sejam definidos pela polaridade den-
tro/fora, mas se situem entre as divisões, no A afirmação da diferença, conforme descrita
entremeio das fronteiras que definem qualquer por Bhabha, não pode ser entendida como ação
identidade coletiva. social, nos termos utilizados normalmente pelas
Em contraposição às construções identitárias teorias sociológicas da ação, uma vez que a ação
homogeneizadoras que buscam aprisionar e loca- não pode ser inscrita numa narrativa teórica. Isto
lizar a cultura, apresenta-se a idéia da diferença, é, não se verifica em Bhabha uma relação deci-
articulada contextualmente, nas lacunas de sentido frável entre ação e estrutura, nem um alinhamen-
entre as fronteiras culturais. Diferença aqui não to entre self e sociedade que pudesse ser decodi-
tem o sentido de herança biológica ou cultural, ficado num modelo sociológico generalizante:
nem de reprodução de uma pertença simbólica “não pode haver qualquer fechamento discursivo
conferida pelo local de nascimento, de moradia ou da teoria” (Idem, p. 30; ver também McLennan,
pela inserção social, cultural etc. A diferença é 2000, p. 77). Mesmo a idéia de sujeito precisa ser
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compreendida fora dos cânones das ciências caracteriza o momento de “hibridação” do signo
sociais. A rigor, Bhabha evita a remissão à idéia e, embora operado com a participação do sujeito
de um sujeito que seja definido pelo vínculo a um é, como mencionado, fortuito, aleatório, é uma
lugar na estrutura social ou que seja caracterizado interação contingente (Bhabha, 1994, pp. 185ss.).
pela defesa de um conjunto determinado de A idéia de hibridismo adotada por Bhabha
idéias. O sujeito é sempre um sujeito provisório, tem sua origem na análise do lingüista e teórico
circunstancial e cingido entre um sujeito falante e da cultura Mikhail Bakhtin, o qual distingue uma
um sujeito “falado”, reflexivo. O segundo nunca involuntária “mistura de duas linguagens sociais
alcança o primeiro, só pode sucedê-lo. Isso, con- dentro de uma mesma afirmação” e a “confronta-
tudo, não implica a impossibilidade da resistência çao dialógica” de duas linguagens na forma de
à dominação. um “hibridismo intencional” (Grimm, 1997, p. 53).
A subversão possível está relacionada com o Bhabha nega o traço intencional, mostrando que
deslizamento do sentido dos signos. A idéia, como o fenômeno da hibridação independe da vontade
se mostra adiante, tomada emprestada do pós- do sujeito. Além disso, a hibridação se presta, na
estruturalismo, é de que os signos possuem possi- relação colonial, não apenas à reação à domina-
bilidades inesgotáveis de significação e só podem ção, mas também à afirmação do próprio poder
ganhar um sentido particular, ainda assim provisó- do colonizador. Conforme o autor, diferentemen-
rio e incompleto, num contexto significativo deter- te do que postularam os “pós-estruturalistas oci-
minado. Nenhum contexto discursivo particular dentais”, “puristas da diferença”, o poder não se
esgota plenamente o repertório de significações produz unicamente por meio da transparência –
atribuíveis a um signo; a ação criativa é aquela das regras de classificação, de inclusão e exclu-
que subverte, redefine o signo, a partir de um são, da identidade do colonial e do colonizado
lugar enunciatório deslocado dos sistemas de etc. Na relação colonial, fundem-se cadeias de
representação fechados. Não se trata, portanto, significações que hibridizam a reivindicada iden-
conforme Bhabha, de uma intervenção informada tidade pura do colonizador, ao mesmo tempo em
por um sistema de representação concorrente, que o colonizado se, de um lado, apenas imita o
mas de um lugar fronteiriço, de alguma maneira colonizador, também desloca, hibridiza signos da
fora dos sistemas de significações totalizantes e dominação colonial, esvaziando-os da simbologia
que é capaz, por isso, de introduzir inquietação e da dominação (Bhabha, 1995 [1985], p. 34).
revelar o caráter fragmentário e ambivalente de A partir do uso cunhado por Bhabha, os
qualquer sistema de representação. A eficácia da conceitos “hibridismo” (e “hibridação”) generali-
intervenção é também sempre contingente, aberta, zam-se nos estudos pós-coloniais, ainda que
indefinida, trata-se de uma ação dentro da área de ganhem em cada autor matizes distintos (para
influência do sujeito, mas fora de seu controle. uma comparação, ver Papastergiadis, 1997).7 A
O lugar de enunciação entre os sistemas de despeito dos diferentes usos, o conceito permite
representação é definido por Bhabha como um operar dois movimentos fundamentais. O primei-
“terceiro espaço” e corresponde ao contexto “no ro é descontrutivista: ao revelar o traço híbrido de
qual a contingência espacial das fronteiras nacio- toda construção cultural, busca-se desmontar a
nais e raciais é combinada com o que ele descre- possibilidade de um lugar de enunciação homo-
ve como a contingência temporal do indecifrável” gêneo. Qualquer lugar da enunciação é, de saída,
(Philips, 1999, p. 68). Isto é, o terceiro espaço não um lugar heterogêneo, de modo que a pretensão
se refere a um locus fixo na tessitura social, mas de homogeneidade é sempre arbitrariamente hie-
sim ao instante no qual o caráter construído e rarquizadora. O segundo movimento é, se assim
arbitrário das fronteiras culturais fica evidenciado. se pode dizer, normativo: o hibridismo define
Tal acontece quando signos são deslocados de uma condição global cosmopolita. Trata-se da
seu referenciamento espacial e temporal e ainda referência a uma cultura e a um mundo híbrido
se encontram, por assim dizer, em movimento, ou como alusão a uma ecumene mundial acima das
seja, não foram inscritos num outro sistema de barreiras raciais, nacionais, étnicas etc.: “uma cul-
representação totalizante. Esse deslocamento tura internacional, baseada não no exotismo do
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Pieterse, o conceito hibridação vai acumulando ções encontra-se, contudo, assente na própria lin-
tantas funções e definições que acaba se tornando guagem, visto que significantes e significados
o sinônimo do que deveria explicar, como mostra nunca se correspondem inteiramente. A différan-
o próprio título do ensaio do autor: “Globalization ce remete ao excedente de sentido que não foi,
as hybridation”. Ao final, o autor descentra tanto o nem pode ser significado e representado nas dife-
conceito de modernidade como o de cultura, mas renciações binárias.
não descentra, ao contrário unifica, a lógica de Tal não deve sugerir um novo binarismo
produção e reprodução da modernidade e da cul- entre, de um lado, uma realidade completa ante-
tura: trata-se de um lógica híbrida. Ainda que rior, como o ser anterior pré-lingüístico e, de
entenda o sentido crítico que o apelo à idéia de outro, sua representação lingüística, parcial, redu-
hibridação possa ter para autores como Bhabha ou zida. Não há uma realidade anterior ao discurso;
Pieterse, seu uso como categoria analítica é, a meu a realidade social é construída pela linguagem e,
juízo, um equívoco. O conceito multi-uso funciona nesse sentido, a différance só pode se constituir
como um moinho que primeiro quebra para na órbita do discurso. A noção de différance
depois fundir as nuanças e as diferenciações que rompe, precisamente, com a idéia da diferença
devem precisamente despontar na análise. Quando pré-existente, ontológica, essencial, que pode ser
parte da idéia de hibridação, o analista é levado ao apresentada e representada discursivamente. A
raciocínio circular: parte da premissa de que a(s) différance constitui-se no ato de sua manifesta-
modernidade(s), as culturas, as pessoas, a globali- ção, no âmbito da trama mesma de representa-
zação, ele próprio são híbridos, para concluir, ções, diferenças e diferenciações. Também o
triunfalmente, depois de um enorme esforço de sujeito se descentra. Ele se forma nas cadeias
desconstrução e metonimização, que a(s) moder- móveis de significação, a rigor é parte delas: não
nidade(s), as culturas, as pessoas, a globalização, é anterior à linguagem, nem constitui uma enti-
ele próprio são, Eureka!… híbridos. dade e uma identidade independente, tampouco
é aquele que, como se poderia pensar, age sobre
a différance, buscando preencher as “sobras” de
Da diferença ao sujeito sentido que ela expressa, (re)constituindo as tota-
lidades. Não se trata de sujeitos inseridos numa
A concepção de diferença formulada, tanto estrutura, mas de cadeias de significações nas
por Bhabha como por Stuart Hall e Paul Gilroy, quais sujeitos e estruturas tem o status similar de
decorre do pós-estruturalismo e, mais particular- sinais flutuantes que ganham e perdem sua signi-
mente, da noção de différance, conforme a acep- ficação – sempre incompleta – no jogo semântico
ção de Derrida. Sem poder me estender aqui num da diferenciação (ver Dietrich, 2000).
debate ainda muito vivo e com desdobramentos Em seu debate com Lévi-Strauss, Derrida
para campos tão diversos quanto a teoria feminis- (1972) mostra que o fato de atribuir um caráter
ta, o direito internacional e a teoria cultural, regis- aberto, arbitrário, indefinido, aos jogos lingüísti-
tra-se que, ao cunhar o neologismo différance, cos caracteriza sua ruptura com o estruturalismo.
como corruptela do vocábulo francês différence, Para o autor, a idéia de jogo em Lévi-Strauss é
Derrida indica a existência de uma diferença que perpassada por certa “ética da presença”, como se
não é traduzível no processo de significação dos houvesse uma origem última, uma essência por
signos, nem organizável nas polaridades identitá- trás do signo que, em algum momento, pudesse
rias – eu/outro, nós/eles, sujeito/objeto, ser atualizada, feita presente na linguagem. Aqui
mulher/homem, preto/branco, significante/signifi- definem-se, para Derrida, duas formas de conce-
cado. Tais distinções e classificações binárias cons- ber as ciências humanas: a primeira busca a ori-
tituem o modo ocidental, logocêntrico de apreen- gem última, a verdade por trás das ilusões da
der o mundo e constituem a base das estruturas de representação, a segunda aceita a participação no
dominação modernas. Criam, ainda, a ilusão de jogo incerto, a partir de uma posição flutuante.
representações completas, totalizantes, que não Esta segunda, a qual ele se filia, é desconstruti-
deixam resíduos. A incompletude das representa- vista, busca sempre o resíduo metafísico presente
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nos discursos generalizantes, sejam eles diferen- não pode ser um ato volitivo do sujeito; tal se dá
cialistas ou universalistas. nas interações. Na passagem a seguir, essa posi-
A radicalidade contida na idéia de différance ção é, uma vez mais, enfatizada:
e na diluição da oposição entre sujeito e estrutura
operada por Derrida é, conforme entendo, inter- O processo de reinscrição e negociação – a inser-
pretada, ou melhor talvez, operada, de maneira ção ou intervenção de algo que assume novo
distinta por Bhabha, de um lado, e por Hall e sentido – acontece no intervalo de tempo entre o
Gilroy, de outro. Ambos os usos se apóiam no signo, privado de subjetividade e no escopo da
pós-estruturalismo para escapar à idéia da diferen- intersubjetividade. Neste intervalo – a quebra
temporal na representação – emerge o processo
ça fixa, essencial, seja ela impingida, seja auto-atri-
da agência (Bhabha, 1994, p. 191).
buída. A diferença é aqui uma “categoria enuncia-
tória”. Com efeito, o pós-estruturalismo tem, nos
Papastergiadis (1997, p. 279) tem razão ao
dois casos, uma importância central na descons-
afirmar que a preocupação de Bhabha não é a sal-
trução de discursos polares que opõem um “eu” a
um “outro”, um “nós” a um “eles”. Isto vale tanto vação, a remissão, trata-se mais propriamente de
para o discurso colonial-imperialista, como para o uma crônica dos processos, “por meio da qual as
nacionalista, ou ainda para o discurso multicultu- táticas de sobrevivência e continuidade são articu-
ralista, malgrado suas boas intenções. Em todos os ladas”. Bhabha aposta, sim, na multiplicação das
casos, a diferença é celebrada como identidade diferenças, entendidas como processos de hibrida-
homogênea, semelhança (sameness) irredutível, ção que se articulam entre as fronteiras culturais,
posto que se estabelece aqui uma correspondên- e vê nelas a possibilidade de subverter os discur-
cia entre inserção sociocultural numa estrutura sos totalizantes, sejam eles hegemônicos ou não.
pré-discursiva e um lugar enunciatório determina- Isto é, a disseminação das situações híbridas – que
do no jogo lingüístico ou político. Com isso, a acompanham as migrações de pessoas e signos –
diferença é domesticada, homogeneizada, aprisio- tem um sentido positivo na medida em que cria
nada em uma nova fronteira, perdendo precisa- condições de possibilidade para a articulação de
mente seu caráter imprevisível, incerto, contingen- novas diferenças. Isso explica a atenção conferida
te, do qual decorre, para Bhabha, Hall e Gilroy, pelo autor aos imigrantes, às minorias nacionais
suas possibilidades subversivas. No lugar de iden- etc. A importância desses não é, contudo, a do
tidade, os autores preferem falar de identificação, ator reflexivo que confronta os discursos domi-
como posição circunstancial nas redes de signifi- nantes. Seu efeito transformador está relacionado
cação (Hall, 1996b, pp. 2ss.). com a abertura de possibilidades de construção de
Bhabha, contudo, parece levar até as últimas novos sentidos, proporcionadas pela presença do
conseqüências a contingência dos jogos lingüísti- imigrante. Ou seja, o deslocamento espacial e tem-
cos nos quais as diferenças são constituídas e poral dos signos hibridiza, potencialmente, os
negociadas. Não me parece autorizada a recepção contextos de significação, introduzindo a incerte-
que dele fazem intelectuais ligados aos movimen- za, a ambivalência, o ruído e a dúvida naquilo que
tos sociais (imigrantes, feministas), procurando parecia coerente, “puro”, preciso, ordenado. Tal
depreender do autor uma teoria da transformação aposta não implica, contudo, “re-centralizar” o
social, na qual se destaca um sujeito “negociador” sujeito, dando-lhe um papel de protagonista
de diferenças com o fim da resistência política e social, como fomentador da hibridação. Esse pro-
da subversão das relações de dominação. O con- cesso, reiterando, escapa ao controle do ator. Não
gelamento de um lugar enunciatório como sub- há uma teleologia do hibridismo, nem a reificação
versivo ignora o caráter contingente da agência, da consciência de um ator que pudesse concreti-
peça fundamental da argumentação de Bhabha. zá-la. O que o autor afirma é que as migrações de
Como já destaquei, a ressignificação das relações signos aumentam os contextos de produção de
de dominação, a possibilidade de resistência polí- cadeias de significação híbridas – apenas como
tica, para Bhabha, está subordinada, irremediavel- possibilidade! A presença de “signos estrangeiros”
mente, ao princípio da casualidade: a resistência também pode levar – e efetivamente leva – à petri-
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O princípio da articulação possível, mas não quando aplicados ao estudo de contextos concre-
necessária, pode ser observado tanto no processo tos, permitem não apenas descrever fenômenos,
de constituição dos sujeitos individuais que se mas também contextualizá-los política e normati-
reposicionam, permanentemente, em face da for- vamente. Por isso, para avaliar se a identificação
mação discursiva, como na produção dos sujeitos buscada reproduz as categorizações hegemônicas
coletivos. A tarefa teórica, que ainda não foi rea- ou se articula novas diferenças, Hall recorre a cate-
lizada, é precisamente mostrar sob quais circuns- gorias auxiliares que permitem, em alguma medi-
tâncias discursos e sujeitos se formam, isto é, se da, valorações no sentido político e normativo.
articulam. Nesse escopo, uma teoria da articula- Destaca-se aqui conceitos como política de repre-
ção representa sentação, transcodificação (trans-coding) e novas
etnicidades (new ethnicities), construídos, sobretu-
[...] tanto uma maneira de entender como os ele- do, à luz da experiência das lutas anti-racistas na
mentos ideológicos chegam, sob certas condi- Inglaterra nas últimas quatro décadas.
ções, a se condensar num discurso, quanto uma A rigor, Hall distingue dois momentos na
maneira de questionar como estes se articulam ou resistência cultural contra o racismo. O primeiro
não, em certas conjunturas, como determinados coincide com a fase em que o termo black foi
sujeitos políticos. Em outras palavras: a teoria da
cunhado como referência comum à experiência
articulação questiona como uma ideologia desco-
de marginalização e das práticas racistas domi-
bre seu sujeito e não como o sujeito encontra os
pensamentos que lhe pertencem necessária e ine-
nantes na Grã-Bretanha. A estratégia da resistên-
vitavelmente. Tal teoria permite pensar como cia combina, nesse período, a luta pelo acesso ao
uma ideologia confere poder às pessoas, possibi- direito de construção das próprias representações
litando-lhes dar sentido ou inteligibilidade à sua e a contestação “da marginalidade, a qualidade
situação histórica sem reduzir as formas de inteli- estereotipificada e a natureza fetichizada das ima-
gibilidade à situação social ou à posição de clas- gens dos negros, mediante a contraposição de um
ses das pessoas (Hall, 1996b, p. 141). conjunto ‘positivo’ de imagens do negro” (Hall,
1996c, p. 442; ver também 1996d). O foco da
A referência a sujeitos coletivos não deve resistência ao racismo, nessa primeira fase, é defi-
sugerir a idéia de grupos constituídos pré-discur- nido por Hall como o campo das relações de
sivamente, a partir de condições objetivas, mate- representação em oposição ao que predomina na
riais e que, por assim dizer, estejam à espera de segunda fase e que ele chama de políticas de
um discurso que decifre sua condição comum e representação. Essa idéia remete à constituição
os constitua como sujeitos. Sujeitos e discursos discursiva do social e implica entender represen-
formam-se de modo simultâneo, ou, em outras tação não como uma expressão e apresentação
palavras, sujeitos só podem se articular a partir de pública de realidades e relações pré-constituídas,
discursos. Articulação permanece, contudo, para mas como momento constitutivo das relações
Hall, um conceito estritamente analítico-descritivo sociais. A política de representações remete, por
e que se aplica a qualquer forma de relação entre isso, a uma intervenção voltada para influenciar
sujeito e formação discursiva, isto é, não qualifica os termos mesmos em que o social se constitui
a priori se determinada posição assumida pelo (Hall, 1997b, 1997c).
sujeito reproduz as relações de dominação ou se Essa segunda fase caracteriza o momento
tem o sentido de resignificar as relações sociais. em que a resistência anti-racista interage com os
Não há, no trabalho de Stuart Hall, um lugar discursos do pós-estruturalismo, do pós-moder-
normativo fora do discurso ou anterior ao jogo nismo, da psicanálise e do feminismo, observan-
político, a partir do qual se possa valorar as posi- do-se o que Hall define como “o fim da inocên-
ções assumidas pelo sujeito. Tampouco há cons- cia”, ou seja, o reconhecimento de que a
tantes normativas que funcionem como medidas categoria black é uma construção política e cultu-
de aferição daquilo que passa a ser “desejável”. ral, “a qual não pode ser fundada num conjunto
Ainda assim, ou talvez precisamente por isso, os de categorias raciais fixadas transcultural ou trans-
instrumentos analíticos desenvolvidos pelo autor, cendentalmente e que, por isso, não encontra
DESPROVINCIALIZANDO A SOCIOLOGIA 129
anos de 1950 e 1960, remonta pelo menos ao final acima e além das fronteiras culturais, ainda que
da década de 1960, quando atacava-se, precisa- possa ser construída como um instante no texto
mente, o caráter etnocêntrico, endogenista de tal literário (Bhabha oferece exemplos diversos nessa
corrente e a suposição de que da “modernização” direção), parece-me desprovida de qualquer rele-
da economia decorreria, automaticamente, trans- vância sociológica. Ou seja, não há, na topografia
formações em outras esferas, como a democrati- social, terceiros lugares; todos os lugares enun-
zação da política e a secularização cultural ciatórios definem imediatamente fronteiras. Nesse
(Knöbl, 2001). sentido, o elogio do híbrido é, como o naciona-
Projetada sobre a discussão em torno da teo- lismo, o vanguardismo ou o nativismo, um dis-
ria da modernização, a crítica pós-colonial genéri- curso que, ao ser enunciado, funda novas frontei-
ca à teleologia modernizante das ciências humanas ras identitárias. Esse discurso pode ter, em
e da sociologia, em particular, pode ser mais bem determinadas circunstâncias políticas e históricas,
focalizada e perde parte de sua contundência. um efeito de mostrar o caráter contingente das
Percebe-se que ela, ainda que permaneça justifica- unidades culturais construídas – a nação, a etnia,
da e importante, trata de problemas que dizem res- o movimento social. Isso, contudo, não é ineren-
peito mais diretamente a uma corrente teórica par- te à natureza mesma do discurso sobre o hibri-
ticular e refere-se a insuficiências que, dentro da dismo, mas às articulações que tal discurso per-
própria sociologia, já foram há muito identificadas mite ou fomenta sob condições específicas: o
e contornadas de alguma maneira. Nesse sentido, mesmo elogio do híbrido, que permite a uma elite
concepções como entangled modernity não ilumi- de imigrantes cultivados na Inglaterra construir
nam uma zona de sombra da sociologia, nem são, sua tribuna para criticar a arrogância da
por assim dizer, formuladas a partir de uma posi- Englishness ou para desconstruir a pretensão de
ção externa e imune ao “regime de verdade” da unidade e pureza do “povo alemão” (Ha, 1999),
sociologia. A despeito da radicalidade retórica, pode servir, como foi o caso no Brasil dos anos
concorrem, dentro da própria sociologia, com cate- de 1940, de cimento da ideologia da mestiçagem,
gorias macrossociológicas voltadas para uma des- nacionalista, homogeneizadora e heterofóbica.
crição não evolucionista da modernização e estão Como categoria analítica e, mais especifica-
submetidas aos critérios de validação próprios à mente, como categoria macrossociológica de
disciplina. Ou seja, na medida em que pleiteiam estudo da globalização, o conceito de hibridismo
alguma forma de ressonância acadêmica, os estu- é igualmente inadequado, uma vez que sempre é
dos pós-coloniais não têm como se furtar ao apro- reposto, num movimento circular, como sinônimo
fundamento da interlocução com marcos que dis- dos processos que pretendia explicar.
putam o mesmo terreno teórico, abandonando, Pode-se concluir que o termo hibridismo
assim, a postura anti-establishment. não apresenta qualquer interesse para a sociolo-
Essa tarefa permanece ainda irrealizada. gia. Esta pode investigar o hibridismo como dis-
Com efeito, até o momento, o interesse pós-colo- curso dos atores, na medida em que tal discurso,
nial pelas contribuições que, no campo da pró- sob determinadas circunstâncias, introduz a dúvi-
pria sociologia, buscam superar o marco macros- da onde pairam certezas essencialistas e empo-
sociológico da teoria da modernização, como é o wers minorias culturais. Como categoria normati-
caso de autores como S. Amin (1989), I. va ou analítica, contudo, a inépcia do conceito
Wallerstein (1997) ou G. Therborn (1995, 2000), salta aos olhos.
não passou de descarte sumário, numa ou noutra Cabe, por fim, retomar a importância da con-
referência marginal (Pieterse, 1995; Conrad e tribuição pós-colonial para a discussão entre sujei-
Randeria, 2002; para uma crítica um pouco mais to e diferença ou, mais precisamente, para funda-
circunstanciada, ver McLennan, 2000). mentar uma microssociologia das articulações
O segundo momento da crítica pós-colonial culturais. Como procurei mostrar, os estudos pós-
descrito acima trata da busca de um lugar de coloniais têm aqui uma importância teórica que
enunciação híbrido, vale dizer, no entremeio das vai além de áreas de pesquisa particulares, como
fronteiras culturais. A idéia de um terceiro espaço, os estudos de minorias nacionais, as relações étni-
DESPROVINCIALIZANDO A SOCIOLOGIA 131
cas ou o racismo. Com efeito, naquele fraseamen- COSTA, Sérgio. (2002), As cores de Ercília. Belo
to, despido do “excesso retórico do pós-estrutura- Horizonte, Editora da UFMG.
lismo literário” (Gilroy, 1993, p. 110) e impulsio-
CONRAD, S. & RANDERIA, R. (orgs.). (2002),
nado pelo imperativo do posicionamento político,9
“Einleitung”, in _________, Jenseits des
como buscam autores como Hall e Gilroy, a dis-
Eurozentrismus, Frankfurt/M, Campus.
cussão sobre o sujeito descentrado leva a uma teo-
rização inovadora da relação entre diferença, DIETRICH, Anette. (2000), Differenz und Identität
sujeito e política. Os autores traçam um caminho im Kontext Postkolonialer Theorien – Eine
que evita tanto os equívocos das correntes pós- feministische Betrachtung. Berlim, Logos.
modernas que decretam a completa fragmentação DUSSEL, Enrique. (1998), La ética de la liberación
do sujeito, como o elogio reificador do “Sujeito ante el desafio de Apel, Taylor y Vattimo.
ocidental”, desenvolvido, por exemplo, por Alain México, Universidad Autónoma.
Touraine (1992) ou Habermas (2001).
Constróem, assim, um marco analítico que _________. (2000), “Europa, modernidad y euro-
permite ao mesmo estudar a relação entre sujeito centrismo”, in E. Lander (org.), La colo-
e discurso e identificar o espaço de criatividade do nialidad del saber: eurocentrismo y
sujeito. Essa contribuição dos estudos pós-colo- ciencias sociales, Caracas, Unesco/UCV.
niais permanece ímpar e, seguramente, ajuda as FANON, Frantz. (1965 [1952]), Peau noire, mas-
ciências sociais a, finalmente, reencontrar seu ques blancs. Paris, Éditions du Seuil.
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132 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 60
inevitáveis aos povos “atrasados” (Dussel, 2000, p. no interior de uma teoria da cultura, às vezes mais,
70). O vigor da crítica ao eurocentrismo feita por às vezes menos coerente, em Canclini, híbrido é
Dussel pode ser avaliado no âmbito das polêmicas uma expressão de uso genérico e desprovida de
entre o teólogo e a ética discursiva de Habermas e ambição e consistência teóricas.
Apel, o pós-modernismo de Vattimo e o comunita-
8 Construída, inicialmente, a partir da luta anti-racis-
rismo de Taylor (Dussel, 1998).
ta na Inglaterra, a idéia de novas etnicidades passa
5 Quando se trata do pós-colonial como cronologia, a ser utilizada por Hall para tratar de novas formas
como perspectiva que acompanha genericamente a de articulação cultural que acompanham os movi-
descolonização, um dos problemas é a condição mentos migratórios recentes e o deslocamento –
imperial da pós-colônia Estados Unidos. Mignolo pelo menos potencial – das fronteiras culturais cen-
(1996) procura sintetizar as discussões a respeito, tradas nos Estados nacionais. Isso não significa,
estabelecendo uma relação entre a produção teóri- naturalmente, que todas as novas identidades rei-
ca e as diferentes “condições” pós-coloniais. vindicadas tenham o caráter da nova etnicidade,
Entende que a pós-modernidade foi a forma parti- definida pelo reconhecimento da própria transito-
cular de crítica da modernidade que melhor pôde riedade, contingência e heterogeneidade. A vulne-
florescer nos Estados Unidos: “[...] se a modernida- rabilização das fronteiras culturais produz, igual-
de consiste tanto na consolidação da história euro- mente, movimentos de reivindicação de
péia, como na história silenciosa de colônias da identidades puras, estabilizadas pela definição de
periferia, a pós-modernidade e a pós-coloniadade uma fronteira simbólica “nós/eles” e pelo ofusca-
(como operação de construção literária) são lados mento de todos os demais eixos diferenciadores
distintos de um processo para se contrapor à (Hall, 1992, pp. 309ss.; 1997d).
modernidade desde diferentes heranças coloniais:
9 Tratando dos estudos culturais em conferência de
1. heranças a partir/no centro de impérios coloniais
1990, Hall (2000, p. 42) evidencia que sua postura
(ex.: Lyotard); 2. heranças coloniais em colônias de
não é, naturalmente, de desapreço pela teoria.
assentamento (ex.: Jameson nos Estados Unidos); e
Trata-se, segundo ele, de buscar conviver com a
3. heranças coloniais em colônias de assentamento
tensão irredutível entre teoria e política: “Não se
profundo (ex.: Said, Spivak, Glissant)” (p. 14).
trata de uma antiteoria, mas das condições e dos
6` Em ensaio pioneiro e influente, Shohat (1992) mostra problemas para o desenvolvimento de um trabalho
que o pós-colonial, se assume a forma de um “anti- teórico como projeto político”.
colonialismo terceiro-mundista”, corre o risco de rea-
firmar o binarismo centro/periferia, fortalecendo
aquilo que supostamente deveria combater, isto é, a
representação eurocêntrica da modernidade.
7 Simultaneamente aos autores pós-coloniais, Garcia
Canclini (1990) passa a utilizar o termo “culturas
híbridas” para referir-se à América Latina. Diferen-
temente da importância política atribuída pelos
pós-coloniais ao hibrdismo, para Garcia Canclini o
hibridismo contemporâneo na América Latina é
caracterizado pela ausência de sentido político: se
historicamente a combinação cultural foi utilizada
para a legitimação da dominação ou com fins
emancipatórios, hoje o hibridismo é apenas uma
mistura alegorizada e desordenada, expressão
antes estética que política. Outra distinção impor-
tante entre os estudos pós-coloniais e a contribui-
ção de Canclini encontra-se no grau de elaboração:
enquanto nos estudos pós-coloniais, hibridismo, a
despeito de seus problemas, é um conceito-chave
RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 183
Este ensaio discute as contribui- This essay discusses the contri- Cet article aborde les contribu-
ções dos estudos pós-coloniais butions of post-colonial studies tions des études postcoloniales à
para a renovação da teoria social for renewing the contemporary la rénovation de la théorie socia-
contemporânea. Considera-se, social theory. At first it considers le contemporaine. Nous abor-
em primeiro lugar, o caráter da the character of the critique dons, tout d’abord, le caractère
crítica que os estudos pós-colo- addressed by post-colonial stud- critique des études postcolo-
niais endereçam às ciências ies to social sciences. After that, niales par rapport aux sciences
sociais. Em seguida, discutem-se it analyses the post-colonial sociales. Nous analysons, ensui-
as alternativas epistemológicas epistemological alternatives, te, les alternatives épistémolo-
que apresentam, considerando- considering three interrelated giques présentées, suivant trois
se três concepções-chave – concepts: entangled modernity, concepts-clés : la modernité
modernidade entrelaçada, lugar “hybrid” site of enunciation, and entrelacée, le lieu d’énonciation
de enunciação “híbrido”, sujeito decentralized subject. The con- hybride et le sujet décentralisé.
descentrado. A conclusão é que, clusion is that, in spite of its Nous concluons que, malgré son
a despeito de sua contundência severity and suspicion among caractère contondant et la
e da suspeita de alguns autores some authors that post-colonial défiance de certains auteurs,
de que a teoria pós-colonial theory can destroy epistemolog- pour qui la théorie postcoloniale
implode a base epistemológica ical foundations of social sci- détruit la base épistémologique
das ciências sociais, boa parte da ences, an important part of post- des sciences sociales, une bonne
crítica pós-colonial tem como colonial critique is rather partie de la critique postcolonia-
destinatário a teoria da moderni- addressed to the theory of mod- le a, pour destinataire, la théorie
zação. Neste ponto, apresenta ernization. Here, post-colonial de la modernisation. En ce qui
afinidades com objeções trazidas positions present affinities with concerne cette question, nous
por cientistas sociais que nada objections, which have already présentons les affinités existantes
têm a ver com o pós-colonialis- been presented by “convention- face objections soulevées par les
mo. Outros aspectos levantados al” social scientists. Other scientistes sociaux, qui n’ont rien
pelos estudos pós-coloniais não aspects raised by post-colonial à voir avec le post colonialisme.
desestabilizam, necessariamente, authors do not destabilize, nec- D’autres aspects abordés par les
as ciências sociais, podendo essarily, social sciences; they can études postcoloniales ne déstabi-
mesmo enriquecê-las. even enrich them. lisent pas nécessairement les
sciences sociales. Ils peuvent, au
contraire, l’enrichir.