Criar desumanidades! O Palácio da Ventura Não acompanhar ninguém. — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Sonho que sou um cavaleiro andante. Com que rasguei o ventre à minha mãe Por desertos, por sóis, por noite escura, Paladino do amor, busco anelante O palácio encantado da Ventura! Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos... Mas já desmaio, exausto e vacilante, Quebrada a espada já, rota a armadura... E eis que súbito o avisto, fulgurante Se ao que busco saber nenhum de vós responde Na sua pompa e aérea formosura! Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Com grandes golpes bato à porta e brado:
Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Eu sou o Vagabundo, o Deserdado... Redemoinhar aos ventos, Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais! Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí... Abrem-se as portas d'ouro com fragor... Mas dentro encontro só, cheio de dor, Silêncio e escuridão - e nada mais! Antero de Quental Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, Há um medonho abismo, onde baqueia E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! A impulsos das paixões a humanidade; O mais que faço não vale nada. Impera ali terrível divindade, Que de torvos ministros se rodeia: Como, pois, sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem Rubro facho a discórdia ali meneia, Para eu derrubar os meus obstáculos? Que a mil cenas de horror dá claridade; Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, Com seus sócios, Traição, Mordacidade, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Range os dentes a Inveja escura e feia: Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Vê-se a Morte cruel no punho alçado
Ide! Tendes estradas, O ferro sanguento, ervado gume, Tendes jardins, tendes canteiros, E a toda natureza ameaçando: Tendes pátria, tendes tetos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Vê-se arder, fumegar, sulfúreo lume… Eu tenho a minha Loucura! Que estrondo! Que pavor! Que abismo infando! … Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, Mortais, não é o inferno, é o ciúme! Bocage E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Este inferno de amar – como eu amo!
Quem mo pôs aqui n’alma… quem foi? Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém! Esta chama que alenta e consome, Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; Que é vida – e que a vida destrói. Mas eu, que nunca principio nem acabo, Como é que se veio atear, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. Quando – ai se há-de ela apagar? Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, Eu não sei, não me lembra: o passado, Ninguém me peça definições! A outra vida que dantes vivi Ninguém me diga: "vem por aqui"! Era um sonho talvez… foi um sonho. A minha vida é um vendaval que se soltou, Em que a paz tão serena a dormi! Oh! Que doce era aquele olhar… É uma onda que se alevantou, Quem me veio, ai de mim! Despertar? É um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, Não sei para onde vou Só me lembra que um dia formoso Eu passei… Dava o Sol tanta luz! Sei que não vou por aí! José Régio E os meus olhos que vagos giravam, Em seus olhos ardentes os pus. LISBON REVISITED Que fez ela? Eu que fiz? Não no sei; Mas nessa hora a viver comecei… Almeida Garrett Não: Não quero nada. Já disse que não quero nada. Cântico Negro Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer. Não me tragam estéticas! "Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces Não me falem em moral! Estendendo-me os braços, e seguros Tirem-me daqui a metafísica! De que seria bom que eu os ouvisse Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem Quando me dizem: "vem por aqui!" conquistas Eu olho-os com olhos lassos, Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) - (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) Das ciências, das artes, da civilização moderna! E cruzo os braços, Que mal fiz eu aos meus deuses todos? E nunca vou por ali... Se têm a verdade, guardem-na! Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. Com todo o direito a sê-lo, ouviram? Não me macem, por amor de Deus! como outra coisa qualquer, Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? como esta pedra cinzenta Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. em que me sento e descanso, Assim, como sou, tenham paciência! Vão para o diabo sem mim, como este ribeiro manso, Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! em serenos sobressaltos Para que havemos de ir juntos? Não me peguem no braço! como estes pinheiros altos Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho. Já disse que sou sozinho! Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia! que em verde e ouro se agitam Ó céu azul - o mesmo da minha infância - Eterna verdade vazia e perfeita! como estas aves que gritam Ó macio Tejo ancestral e mudo, Pequena verdade onde o céu se reflecte! em bebedeiras de azul. Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje! Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta. Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo… Eles não sabem que o sonho E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar é vinho, é espuma. é fermento, sozinho! Álvaro de Campos bichinho álacre e sedento. Livro de Horas de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
Aqui, diante de mim, Eu, pecador, me confesso num perpétuo movimento. De ser assim como sou. Me confesso o bom e o mau Eles não sabem que o sonho Que vão em leme da nau Nesta deriva em que vou. é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel. Me confesso arco em ogiva, vitral, Possesso pináculo de catedral, Das virtudes teologais, contraponto, sinfonia, Que são três, máscara grega, magia, E dos pecados mortais que é retorta de alquimista, Que são sete, mapa do mundo distante, Quando a terra não repete Que são mais. rosa dos ventos, Infante, caravela quinhentista, Me confesso que é Cabo da Boa Esperança, O dono das minhas horas. ouro, canela, marfim, O das facadas cegas e raivosas florete de espadachim, E das ternuras lúcidas e mansas. bastidor, passo de dança, E de ser de qualquer modo Colombina e Arlequim, Andanças Do mesmo todo. passarola voadora, pára-raios, locomotiva, Me confesso de ser charco barco de proa festiva, E luar de charco, à mistura. alto-forno, geradora, De ser a corda do arco cisão do átomo, radar, Que atira setas acima ultra-som, televisão E abaixo da minha altura. desembarque em foguetão na superfície lunar. Me confesso de ser tudo Que possa nascer em mim. De ter raízes no chão Eles não sabem, nem sonham, Desta minha condição. que o sonho comanda a vida. Me confesso de Abel e de Caim. Que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança Me confesso de ser Homem. como bola colorida De ser o anjo caído Do tal céu que Deus governa; entre as mãos de uma criança. António Gedeão De ser o monstro saído Do buraco mais fundo da caverna. Trova do vento que passa Me confesso de ser eu. Pergunto ao vento que passa Eu, tal e qual como vim notícias do meu país Para dizer que sou eu e o vento cala a desgraça Aqui, diante de mim! Miguel Torga o vento nada me diz.
Pergunto aos rios que levam
Pedra Filosofal tanto sonho à flor das águas e os rios não me sossegam levam sonhos deixam mágoas. Eles não sabem que o sonho Levam sonhos deixam mágoas é uma constante da vida ai rios do meu país tão concreta e definida minha pátria à flor das águas para onde vais? Ninguém diz. Se o verde trevo desfolhas pede notícias e diz ao trevo de quatro folhas que morro por meu país.
Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão. Silêncio -- é tudo o que tem quem vive na servidão.
Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados. E a quem gosta de ter amos vi sempre os ombros curvados.
E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo. Vi minha pátria pregada nos braços em cruz do povo.
Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar como quem ama a viagem mas tem sempre de ficar.
Vi navios a partir (minha pátria à flor das águas) vi minha pátria florir (verdes folhas verdes mágoas).
Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome. Eu vi-te crucificada nos braços negros da fome.
E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste. Vi minha pátria parada à beira de um rio triste.
Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo nas mãos vazias do povo vi minha pátria florindo.
E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país. Peço notícias ao vento e o vento nada me diz.
Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas. Não sabem ler é verdade aqueles pra quem eu escrevo.
Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça há sempre alguém que semeia canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão há sempre alguém que resiste há sempre alguém que diz não. Manuel Alegre