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Fernando Correia Pina

Auto de entrega do corpo de D. Sebastião


um documento da Bibloteca Pública de Évora
Aos quatro de Agosto de 1578, após uma jornada marcada por desavenças pessoais e
pela desorganização militar, a derradeira incursão portuguesa pelo norte de África
culminava, da forma mais trágica, no desastre de Alcácer Quibir.

A aventura expedicionária cujo fracasso vinha sendo prognosticado, desde o início,


por alguns poucos cortesãos e homens de armas mais avisados, perante a visão dos
soldados mais ocupados em vestidos e jóias que em armas, chegava ao fim sem lucro
nem glória, enterrados que foram no mesmo areal alvoroços afervorados dos
mancebos e gemidos melancolizados dos velhos que, em campos opostos, assistiram
ao desenrolar de uma jornada que começara por sangrar os recursos do reino e
acabara por se consumir num banho de sangue.

Com a morte ou cativeiro de grande parte da nobreza que, na escala espanhola para
África, fizera no aparato das jóias, vestidos e ornatos demonstração da mais luzida
gente do mundo, viu-se o reino privado do estamento que poderia garantir a sua
governação independente.

Com a delapidação dos patrimónios senhoriais motivada pelos preparativos para a


guerra a que viria a juntar-se o peso dos regates, consumindo bens de raiz e
hipotecando direitos e rendas futuras, abria-se o inevitável caminho da sobrevivência
negociada das elites que a bolsa funda de um rei estrangeiro juntaria à conquista e à
herança do reino por nele não haver quem comprasse antes todos andarem vendendo.

Porém, mais grave que a perda dos seus membros foi, para o corpo de Portugal, a sua
decapitação: morto o rei, ficara o reino órfão e, quando tudo parecia terminado, algo
havia que, apenas começado, iria marcar mais que a epopeia dos descobrimentos ou a
construção de um poder transcontinental o caracter de um povo.

À incredulidade perante a extensão do desastre sucederia a negação de um episódio


entre os muitos sucedidos e assim, logo ao tempo da chegada das infaustas novas de
Marrocos, por muitos tempos se naõ pôde o vulgo despersuadirque elrei era vivo, e que
andava pelo reino e outras partes escondido: á cerca do qual huns contavam visoens
da sua pessoa, a que alguns davam credito, outros formavaõ consideraçoens medidas
pelo desejo que tinhaõ, o que deo assás confusaõ a muitos.i
A mesma negação seria cultivada até ao dia 24 pelos governadores, movidos por
razões diversas das que alimentavam o imaginário da gente comum, acautelando
eventuais episódios de instabilidade social cuja eclosão o vazio do poder favorecia.
Para o povo o rei não morrera nem morreria. Adormecera.

Juntava-se, deste modo, D. Sebastião à hoste dos míticos soberanos europeus que
dans um sommeil prodigieux, continuaient de veiller sur leur peuples offraient une
consolstion toujours renouvelée au malheurs collectifs ; ils constituaient une espérance
cachée, un ultime recours, un gage d´ eternité qui rachetait les incertitudes et les
difficultés du jour.ii

Na esteira de Artur, de Venceslau II da Boémia, de Frederico II Hohenstaufen ou de


Marko, rei da Sérvia, o soberano português desaparecia misteriosamente do convívio
dos mortais, ocultando-se na dimensão do mito de onde, ciclicamente, virá a ser
convocado por políticos, músicos, dramaturgos, romancistas e poetas ou pela massa
anónima dos desencantados.iii Paradoxalmente, uma das figuras mais marcantes da
nossa história, D. Sebastião acabou por aí encontrar o seu lugar na negação das
limitações humanas da existência histórica. Mas, da memória do homem entre os
homens o que ficou?

É sabido que, consumada a batalha, a notícia do desastre depressa chegou a Ceuta e


que daí passou a Gibraltar, de onde um feitor do rei mandou notícias aos governadores
que, pelas razões já antes apontadas, as ocultaram se bem que corresse já um surdo
rumor por Lisboa que elrei era perdido. Com pouca diferença, chegou ao reino,
Salvador de Medeiros, criado do cardeal D. Henrique, sobrevivente da batalha que
confirmou o desastre continuando, porém, a pairar a dúvida sobre a morte do rei que
continuaria a persistir apesar da confirmação do desfecho do confronto trazida por D.
Diogo de Sousa, capitão-mor da armada entretanto regressado a Lisboa.

Só mais tarde, com a recepção das cartas expedidas por Belchior do Amaral,
testemunha presencial do enterro de D. Sebastião, se confirmou oficialmente o óbito,
encetando-se os preparativos para o levantamento do cardeal D. Henrique por rei de
Portugal.

Ficaram, então, aparentemente, esclarecidas as dúvidas que persistiam sobre a morte


do rei: o cadáver, apresentando ferimentos vários na cabeça e tronco, fora
identificado, na tarde do dia seguinte à batalha, por Sebastião de Resende, seu moço
de guarda-roupa que indicou a sua localização ao sultão que, fazendo-o recolher à sua
tenda, o lançou sobre uma esteira, sendo a sua identidade confirmada por alguns dos
fidalgos portugueses seus cativos, de cujos nomes ficou memória, correndo
igualmente notícia que três dias mais tarde, se terá procedido a nova identificação.

Do campo de batalha, o corpo foi transportado em caixão selado, envolvido em cal


viva, para Alcácer Quibir, sob uma escolta mista de tropas marroquinas e de cativos
portugueses. Chegado à cidade e após celebração de missa, procedeu-se à sua
inumação, sempre com a assistência de prisioneiros portugueses, na fortaleza da
cidade.

Aí se conservaria por quatro meses, até à conclusão das negociações do seu resgate
que culminaram na sua trasladação para Ceuta onde, na capela-mor do convento da
Trindade, haveria de permancer até ao seu regresso a Portugal.
É este momento da chegada do fértero a Ceuta que o auto de entrega do corpo, a
seguir apresentado, fixou com alguns pormenores que escaparam à crónica que temos
vindo a seguir.

O documento em questão pode, actualmente, ser consultado na secção dos Cimélios


da Biblioteca Pública de Évora, sob a cota CIII/2-17, a ff. 163 vº. Nele não se contém
qualquer informação quer sobre o produtor da cópia quer sobre o autor da notícia,
que ocuparia, muito provavelmente, qualquer escrivania em Ceuta. Tão-pouco
esclarece sobre a finalidade do registo que poderá, eventualmente, ter funcionado
como quitação da entrega. Poucas dúvidas haverá, porém, de estarmos em presença
de reprodução de um original manuscrito, mais antigo, já que são evidentes alguns
erros de leitura e de transcrição que dificultam a sua compreensão, pelo que se optou
pela sua reprodução literal.

O texto reproduz, supostamente, as palavras proferidas por um André Gaspar, às


portas de Ceuta, no acto da entrega dos restos de D. Sebastião. Não menciona frei
Bernardo da Cruz, entre os portugueses que acompanharam o préstito desde Alcácer
Quibir a Ceuta, este nome. É, contudo, quase certo tratar-se do André Corso a quem
Abdelmalek havia prometido o corpo do soberano cuja entrega aos portugueses fora
negociada por frei Roque, um dos subscritores do auto.

Na mesma data de 10 de Dezembro de 1578, omissa na crónica real, e nas mesmas


circunstâncias, proferiu o capitão de Ceuta, ao confiar o corpo à guarda dos monges
trinitários, uma declaração solene publicada em Agosto de 1989 pelo jornal
marroquino Le Matin du Sahara.

Os dois documentos, cremos, fariam parte do mesmo protocolo de entrega e recepção


dos restos mortais do Desejado, si vera est fama.
Emtregua do corPo delrei don seBastião morto en caise

Nos dom lionel Pereira CaPitão E senñor desta Cidade de Sseita frei Roque E
dom Rodrigo de Meneses que abaixo afirmamos nossos estados digo nomes
damos fe E verdadeiro testo que andre gasPar cometeo o corPo delRei dom
sebastião nosso snñor que deos aJaa – 4 fa x de dezẽbro de 578 - a Porta
desta Cidade as io oras da menhaã dizendo as Palauras seguintes

Eu Andre gaspar Correo Emtrego ho corpo da magestade del rei dom


sebastião Rei que foi de Purtugal que deos aJaa ao muito Rodrigo Padre frei
Roque e aos señores dom algomes Pra caPitão e gor desta fortaleza de seita e
dom Rodrigo de meneses Por mandado delRei mulamat o coal me auia
cõsedido o dito Real corPo Pera que o leuasse ẽ Presente a sua catholica ill.
Com tanta liberalidade cõ coanta Me afirmou Por Juramto a sua lei que fizera o
mesmo se o tiuese viuo Em Prisão da chegada hũa carta da Catholica
magestade E outra da magestade delrei de purtugal Em que lhe Pedião o
quisse Resgatar Pera o leuarẽ a Purtugal me mãodou o não leuase a Castella
como Pro me auia mandado senão o troxesse a esta fortaleza E em cleose
Emtregasse solenemente Como ao Prezente Emtrego tomãodo por testo que o
dito mereleMet cõsedia E apresentaua liure E graciosamente E sem nenhũ
Enterese Este Real CanPo da sil delRei de Purtugal a Emtreceção E petição da
sil delrei Pheliphe o coal dePois de Entregado se trouxe E mta solenidade ao
Mostro da trindade da mesma Cidade aonde ora esta feita em Seita a x - de
dezẽbro de 578 – dom lionis Pra frei Roque dom Roque de meneses
i
CRUZ, Frei Bernardo da. Chronica DelRei D. Sebastião : publicada por A. Herculano e o Dr. A.C. Payva.
Lisboa : Na Impressão Galhardo e Irmãos, 1837
ii
BADINAND, Rodolph. Le retour du roi, un mythe européen. Disponível em « http : esprit-

europeen.fr/etudes_metapo_badinand.html

iii o
Jean-Marie D’Heur « Un avatar moderne de D. Sébastien de Portugal », Revue de littérature comparée 3/2001 (n
299), p. 455-461. Disponível em : www.cairn.info/revue-de-litterature-comparee-2001-3-page-455.htm.

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