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O Navegante

por Carlos Carvalho

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Capítulos

1. O Sonho 4

2. Os preparativos da Viagem 8

3. A partida rumo a Goa 16

4. Primeiros tempos a bordo e chegada a Santiago 19

5. Reparações, reabastecimento em Santiago e partida 24

6. Viagem em direcção ao Atlântico Sul 28

7. A travessia do Cabo e chegada à Ilha de Moçambique 37

8. A Ilha de Moçambique 43

9. Partida e subida da costa Oriental até Ormuz 48

10. Chegada a Ormuz 58

11. Partida rumo a Goa 64

12. A ilha de Goa 73

13. Partida rumo a Cochim e combate naval com as forças turcas 80

14. Estadia em Cochim e partida para Ceilão 84

15. O contra golpe das forças de Calecute e o cativeiro 86

16. A libertação 94

17. Regresso a Cochim e início dos trabalhos com Giovanni Umani 99

18. Ida até à feitoria em Malaca 101

19. Percalços por terras de Galle 108


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20. Regresso a Cochim 120

21. Visita à feitoria de Macau e resgate da filha de um mandarim da China 121

22. Visita a terras de Nagasáqui 132

23. Regresso a Cochim 136

24. Resgate dos companheiros em Calecute 138

25. Viagem até à China e resgate de Nia Zhing 146

26. Perseguição das autoridades portuguesas 151

27. Fuga até Calecute e reencontro com Abd al-Ramaan 154

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1. O Sonho

Lisboa, ano de 1565. Portugal encontra-se no apogeu do seu império marítimo.


Domina possessões no Oriente longínquo marcando a sua presença em terras
como Goa, Malaca, Damão, Diu, Cochim, Macau. Nessas terras é o interlocutor
privilegiado entre a China e Japão fazendo comércio triangular com esses
impérios via Macau.

Do Oriente afluem à capital portuguesa especiarias, usadas para a conservação


e apuramento do sabor dos alimentos, porcelanas, que encantam pela sua
fragilidade e suavidade, pedras preciosas, que irradiam beleza como a lua a
espelhar-se sobre as águas do Tejo enfeitando Lisboa enquanto não seguem
caminho em direcção à Flandres.

Com 16 anos de idade, Martim da Nóbrega, filho de um comerciante de Lisboa,


sonha partir numa nau rumo ao Oriente.

Vive fascinado pelas estórias de navegadores intrépidos conhecedores dos


oceanos e terras longínquas. Estórias de cidades fantásticas, cheias de
riquezas, paisagens impregnadas de um cheiro a gengibre, sabor a canela e
com o calor da pimenta. Estórias de povos com culturas milenares e
construções magníficas. Estórias de impérios longínquos nunca antes
alcançados.

Nos dias de chegada dos navios acorre ao cais da Pedra em Alfama para ver
as naus a chegar, de longe, carregadas de especiarias, e mais importante que
tudo de estórias de encontros com outras culturas.

Nos momentos de partida das naus em direcção a Oriente, Martim fica a


vislumbrar a partida de marinheiros e militares cheios de vontade de visitar
novas terras, conquistar cidades e expandir o reino.

Fica a pensar como será partir dentro de uma nau e atravessar a costa de
África, passar o equador, observar um céu diferente daquele que vislumbra
todas as noites. Ao Sul passaria a como guia o Cruzeiro do Sul, a mais
pequena das constelações do céu em forma da cruz de Cristo, símbolo dos
descobrimentos ao invés da sua conhecida Estrela Polar.

Apesar de Martim pretender viajar e ter dito isso mesmo a seu pai, “Pai, quero
viajar rumo ao Oriente para conhecer as cidades onde os nossos marinheiros
foram, as gentes que lá habitam, as culturas que lá efervescem. Quero respirar
a terra com o odor do gengibre e da canela”, o mesmo não partilha de seus
sentimentos. “Não digas disparates”, retorque seu pai, “quem viaja para esses
lados do mundo vai porque ou não tem vintém, ou vai em busca de títulos de
nobreza. O teu futuro é continuares com o negócio da família, no comércio de
especiarias mas com os pés assentes em Lisboa. Deixa as aventuras para
quem não pensa”.

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Afonso pretende que seu filho continue o seu trabalho como mercador,
comprando as mercearias vindas do longínquo Oriente e vendendo as mesmas
com uma boa margem de lucro para os portos da Flandres.

Apesar de os Nóbrega não pertencerem à nobreza, fazem parte da emergente


classe burguesa, possuindo uma fortuna considerável, resultante dos lucros
provenientes do comércio, vivendo numa luxuosa casa perto de Belém, com
enormes jardins com plantas provenientes do Oriente longínquo como as
nespereiras, bambus e outras plantas provenientes das terras de Brasil.

A casa dos Nóbrega, possuía a ladeá-la varandas esculpidas em pedra calcária


ao estilo Manuelino e com janelas cheias de vitrais que no momento em que os
raios solares as tocavam inundavam o interior da casa em tons de verde,
vermelho, azul e amarelo.
A decorá-la no seu interior estavam as mais finas porcelanas provenientes de
terras de Cantão e Nagasáqui que abraçadas pelos raios de luz que
atravessavam os vitrais se tornavam o foco das atenções. Peças da mais fina
porcelana, delicadas como o botão de uma rosa embalada pela brisa matinal.

Além da casa de comércio, Afonso da Nóbrega possuía em sua casa cerca de


quinze escravos que tratavam das lides da casa e cerca de vinte escravos na
sua loja de comércio que tinham como principais tarefas ajudar à descarga nos
porões dos navios vindos do Oriente carregados de especiarias, porcelanas,
sedas e pedras preciosas.

No futuro, estava a pensar constituir sociedade com outros mercadores para o


estabelecimento de uma roça em terras de Brasil para cultivar cana de açúcar e
posteriormente trazê-lo para Portugal e resto da Europa, pois apesar de na
Madeira e nas ilhas de Cabo Verde já se ter procedido à plantação da cana, a
procura era muita e corriam notícias que em terras de Brasil havia potencial
para o seu cultivo.

Enquanto isso, Martim sonha, sonha em viajar, embarcar numa nau rumo ao
Oriente e ver pelos seus próprios olhos tudo o que conhece apenas das
estórias contadas pelos marinheiros.

Olha para as águas do Tejo, que embelezam a Torre de Belém, indo em


direcção de Cascais e ao encontro do chamamento do mar imenso.
“Tejo, quem me dera ser como tu que te entregas viajas e partilhas os
segredos com o mar”.

Sonha em ser um rio, seguindo em direcção ao mar, abarcando o infinito que


liga Portugal a terras do Oriente, onde o Sol todos os dias nasce e a terra
cheira a canela e sabe a gengibre.

Ao vislumbrar o nascer do Sol pergunta ao mesmo como serão essas terras


onde ele todos os dias nasce e onde respira pimenta, gengibre e canela.

Na chegada das naus Lisboa, Martim desloca-se ao porto e pergunta aos


marinheiros pelas suas aventuras, que lhe contem como são as cidades de
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Goa, Damão, Diu, Cochim, Coulão, Bassaim, Malaca, Nagasáqui, Sanchoão,


Macau, Cantão que ele conhece apenas de nome.

Que gentes são essas do Oriente longínquo com culturas diferentes e raças
díspares. Que terras são essas banhadas pelo Sol nascente onde brotam as
especiarias. Que terras são essas onde existem povos de cores mil, indianos de
tom de pele cor da canela, chineses e japoneses da cor do gengibre.

Nas tabernas na zona de Alfama onde se concentram os marinheiros vindos do


Oriente, Martim começa a descobrir as artes da navegação. Ouve dos pilotos
as técnicas utilizadas na navegação e localização dos navios, como é
determinada a latitude e longitude em mar alto com auxílio das estrelas, sol e
lua.

No hemisfério sul, o método disponível para a determinação da latitude era a


constelação do Cruzeiro do Sul e a medição da altura do Sol aquando quando
do zénite. Como instrumento de medição era utilizado astrolábio.

Para a determinação da longitude era utilizada a posição da lua relativamente


às estrelas. Conjugada a latitude com a longitude era possível determinar a
localização do barco e estabelecer a rota face ao destino

Além da determinação da latitude e longitude era necessário aos marinheiros


conhecer o segredo dos ventos e correntes, pois nem sempre o caminho mais
curto era o aparentemente mais directo.

Com recurso às economias que possuía, compra numa taberna um astrolábio a


um piloto que precisava do dinheiro para pagar as dívidas que tinha ao jogo.
Desde esse momento, começa a praticar as medições da latitude e aos estudos
da matemática começando a estudar a obra de Pedro Nunes.

Por forma a colocar em prática tudo o que sabe, pretende adquirir uma
pequena barca por forma a verificar empiricamente o conhecimento que vai
adquirindo.

Pede auxílio a seu pai mas este volta a negar-lhe o pedido por achar que ele
tem é que dedicar-se ao negócio da família e esquecer essas futilidades.

Martim vira-se então para sua mãe, Inês da Nóbrega, mulher na casa dos seus
37 anos que apesar de viver a maior parte do tempo no recluso da casa por
imposição do marido, procura sempre ouvir o seu filho.

Inês, apesar de não gostar das ideias de seu filho acha que seu pai é
demasiado severo. “Filho, o teu pai quer o melhor para ti, tens que aprender a
ouvi-lo e respeitá-lo. Ele quer que continues com o seu negócio, Procura seguir
os seus conselhos”. “Mas mãe, o que eu quero é viajar, conhecer o Oriente
longínquo, verificar que o céu no hemisfério Sul é diferente daquele que nós
todas as noites vemos. Quero conhecer as terras da pimenta, do cravo,
gengibre e canela, quero ver as terras onde o sol nasce e brota todos os dias.
Quero dar vida ao meu sonho”.
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Sua mãe, ao ver que independentemente da sua opinião, Martim um dia


seguiria o seu rumo, resolve ajudá-lo.

“Ele está no vigor da sua juventude não sendo mais que uma fase. Assim que
arranjar esposa assentará a vida e dedicar-se-á aos negócios da família. Se o
ajudar agora, provavelmente ele verá que não é isso que quer e voltará a seguir
o rumo devido”, confidenciava ela para consigo própria.

Para ajudar seu filho, empenha um belo colar de pérolas provenientes de


Nagasáqui que seu marido adquirira em troca de 15 onças de flor de açafrão.
Como resultado do negócio consegue dar dinheiro suficiente para este adquirir
uma barca.

A barca, de seu nome S. Miguel, tinha cerca de 12 metros de comprimento,3


de boca e 17 tonéis. Possuía um mastro que podia utilizar dois tipos de vela: a
tradicional vela quadrangular utilizada quando existia vento a favor ou a vela
latina em forma triangular que podia ser utilizada mesmo quando o vento se
deslocava de lado. A mesma permitia o transporte de cerca de 8 pessoas.

Com a sua barca, Martim aproveita para colocar em prática o que ouvira dos
marinheiros e lera dos compêndios de astronomia e matemática.
Todas as semanas inventa uma desculpa a seu pai, dizendo que vai até
Setúbal em busca de contactos comerciais e oportunidades de negócio. Com a
ajuda destas viagens começa a aprender a arte da navegação.

Com o auxílio de miúdos que encontra pelas ruas e bairros de Lisboa, e


marinheiros reformados começa a efectuar viagens sobre o Tejo e a costa em
redor.

Nos seus passeios ao avistar a torre de Belém e o mosteiro dos Jerónimos


pensa quando viajará mais para Sul, quando procederá à travessia da costa
Vicentina, Sagres, Norte de África, Bojador, Equador, cabo da Boa Esperança,
Ilha de Moçambique, Índia, China, Japão, .....

Sonha visitar terras de Oriente, mas para já como não tem idade contenta-se
em passear perto de Lisboa.

Nas Berlengas, fica fascinado pelas suas múltiplas cores. Apesar de ser uma
ilha não habitada pelo homem, a multiplicidade de vegetação na Primavera faz
com que um tapete seja estendido sobre a mesma. Todas as manhãs desenha-
se um arco-íris, com o seu contraste de cores, e confluência de todos os
oceanos de flores num único local.

Os cactos floridos com as suas cores roxas, espraiando-se sobre um mar de


veludo, os malmequeres com as suas cores do mar da China, as papoilas do
mar Vermelho, os anagallis do Atlântico.

Horas a fio fica Martim a vislumbrar a paisagem, a ver as gaivotas a mergulhar


na profundeza dos mares em busca de um peixe menos afoito que apanham
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com seus bicos amarelados, isto enquanto os seus amigos se dedicavam à


pesca.

Sonha em atravessar os mares conhecidos e desconhecidos, em tornar-se um


grande piloto e marinheiro. “Ai quem me dera ser uma gaivota para voar ao
sabor do vento e partir em busca do desconhecido”, murmurava ele ao vento
passante como que à espera que o seu desejo fosse atendido.

“Martim, vamos embora que se põe noite e depois apanhamos a baixa-mar e


não nos é possível sair daqui”, dizem-lhe os seus amigos.

Ao viajar para sul em direcção a Setúbal, fica sempre fascinado ao passar o


cabo Espichel e observar a imensidão da Arrábida que abraça o imenso
oceano. O Espichel é o Adamastor que ele procura atravessar com respeito e
mestria.

Ao chegar ao estuário do Sado, fascina-se ao observar os golfinhos que


procuram acompanhar o barco na travessia do oceano. Observar o modo suave
com que eles conseguem fazer as mais variadas acrobacias. Como flechas
sobre a água eles conseguem aproximar-se do navio sem tocarem no mesmo
com uma precisão milimétrica o que deixa Martim completamente encantado.

Junto a Tróia, Martim aproveita para mergulhar e vislumbrar os segredos


subaquáticos. Ao nadar debaixo de água fica fascinado observando os
cardumes de sardinhas que ao verem a presença humana se concentram numa
imensa bola azul passando a coordenar-se como se de um único ser se
tratassem.

Nas profundezas do mar observa a variedade de plantas aquáticas que o


habitam e algumas tartarugas marinhas que por lá se aventuram. Apesar de
serem bastante lentas quando se encontram em terra, dentro de água
movimentam-se como sereias, tal a suavidade dos seus movimentos.

Ao viajar na sua barca, Martim pergunta-se o que terão os primeiros


navegantes a atravessar as águas em direcção a Sul e que atingiram terras de
Oriente.

Ele sabia que um dia iria sentir o mesmo que eles sentiram, o seu destino
estava ligado a essas terras longínquas. Apesar da distância das mesmas
sentia o seu chamamento sempre que avistava o nascer do Sol vindo dessas
paragens.

2. Os preparativos da Viagem

Dois anos se passaram desde que Martim tivera o impulso de entrar numa nau
e viajar rumo a Oriente. Com os seus 18 anos já tinha conhecimento prático da
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vida de marinheiro. Os períodos que passara a navegar na sua barca deram-lhe


o conhecimento da arte da navegação e pilotagem pelo que se sentia
preparado e confiante para realizar o seu sonho.

Graças à barca adquirida por sua mãe, à leitura da obra de Pedro Nunes, às
conversas tidas com marinheiros, sabia manejar com facilidade o astrolábio,
permitindo-lhe orientar-se no mar. Sabia que a sua hora para a caminhada
rumo a Oriente se encontrava cada vez mais próxima.

Estamos no princípio do mês de Fevereiro de 1567. Martim ouve numa das


tascas situadas junto ao cais da Pedra uma conversa entre marinheiros que
discutem devido a uma aposta de jogo.

“Ganhei-te por isso vais ter que me pagar o que deves e é agora”. “Calma
homem, eu bem sei que me ganhaste mas por ora não tenho com que te pagar.
Mas está descansado que andam a recrutar marinheiros para a carreira da
Índia que parte este ano em Abril. Como eles pagam adiantado o dinheiro pelos
trabalhos da viagem eu aí vou poder pagar-te o que devo”. “Está bem, aceito”,
responde o outro, “mas já que não pagas agora vais ter que me pagar mais por
causa disso”. “Está descansado que te pagarei o que te é de direito. Anda lá
que agora pago-te um copo”.

Martim começa a sentir um formigueiro a subir-lhe da planta dos pés até à sua
cabeça. “A carreira da Índia, a carreira da Índia ...” põe-se ele a falar para os
seus botões. Era mesmo isso que ele queria ouvir. Sem demora, pergunta a um
deles se lhe sabe dizer quem é o capitão-mor do navio. “Pelo que ouvi dizer o
capitão-mor é D. Afonso de Menezes, nomeado pelo regente do Reino.”

“Sabem dizer-me onde é que o consigo encontrar?”- pergunta Martim. “Bem,


ele normalmente costuma parar na taberna do Chico que fica perto da casa da
Índia”. “Muito obrigado pela informação”, responde Martim.

O coração de Martim começa de repente a palpitar. A carreira da Índia, o sonho


da sua vida encontra-se à sua mercê. Só tinha que tentar falar com o capitão-
mor da carreira da Índia e mostrar-lhe que possuía valor suficiente para fazer
parte da viagem. Estava decidido. Na manhã seguinte iria ao encontro de D.
Afonso de Menezes.

Manhã de 4 de Fevereiro de 1567. Martim acorda com o chilrear de um rouxinol


pendurado junto a uma laranjeira perto da janela do seu quarto. Encanta-se a
ouvir o animal e acorda com boa disposição. Estava determinado a encontrar-
se com o capitão-mor. O canto do rouxinol só poderia ser um bom presságio.

Levanta-se e apressa-se a vestir as suas calças. Dirige-se para a cozinha


agarrando num pedaço de pão, um copo de vinho e um pedaço de chouriço.
Enquanto vai trincando o chouriço começa a pensar como conseguiria
convencer o capitão-mor a recrutá-lo.

Teria que lhe fazer ver que já estaria experimentado nas artes do mar. As
viagens efectuadas entre Setúbal e as Berlengas certamente que lhe teriam
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dado a experiência e traquejo necessários para tal viagem e além disso já era
experimentado no uso do astrolábio para a determinação da latitude. Os
estudos da obra de Pedro Nunes não teriam sido efectuados em vão.

As conversas que tivera ao longo dos anos com antigos marinheiros que se
juntavam nas tabernas já lhe tinham moldado o espírito de aventura e
encontrava-se preparado para todo o tipo de males que pudesse vir a sofrer,
nomeadamente a solidão, o facto de comer várias vezes comida sem sabor e já
estragada e o perigo do escorbuto, esse mal dos marinheiros que tantas vezes
atacava pela calada.

Mal esse que muitos padeciam fazendo com que lhes caíssem os dentes,
inchassem as gengivas morrendo muitas vezes em virtude das infecções. Mas
o facto de poder conhecer o Oriente valia todos esses sacrifícios.

Onze da manhã. Martim dirige-se para a tasca indicada pelos marinheiros com
vista a encontrar-se com D. Afonso de Menezes. Pergunta a um vendedor
ambulante o caminho para a taberna do Chico e lá segue alegremente a
assobiar pelo caminho.

Chegado à taberna encontra um grupo de homens que se encontram a jogar


aos dados. Dirige-se ao dono da taberna e pergunta-lhe se anda por ali D.
Afonso de Menezes. Este responde-lhe que sim, que está sentado numa das
mesas apontando-lhe na direcção do mesmo.

D. Afonso de Menezes, era membro da nobreza tendo-lhe sido atribuído por


desígnio real o cargo de capitão-mor da carreira da Índia daquele ano.
Era um homem baixo, atarracado, na casa dos 40 com longas barbas que lhe
chegavam até ao fim do pescoço e com uma voz grossa como um trovão. Na
sua face, junto ao olho direito apresentava uma cicatriz resultado de um
combate travado contra os muçulmanos em Diu.

Era veterano nestas andanças e um defensor obstinado dos interesses da


coroa. Os homens respeitavam-no e seguiam imediatamente as suas ordens
visto ser um homem cheio de experiência e com espírito de combatente. Seus
homens sentiam-se a seu lado como se irmãos mais novos deixados ao
cuidado de alguém que defenderia com unhas e dentes as suas vidas.

A probabilidade de saírem vitoriosos numa batalha junto a D. Afonso de


Menezes era grande devido às suas excelentes qualidades militares e
humanas.

D. Afonso de Menezes era um homem experimentado na carreira das Índias. A


sua experiência militar incluía a defesa das praças de África ( Ceuta, Alcácer
Ceguer) e da Índia ( Goa, Damão, Diu, Cochim). Além de grande combatente
era exigente perante os seus subordinados, tendo fama de ter mão de ferro
sobre quem comandava procurando impor sempre a sua posição.

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Martim, pede um copo de vinho ao taberneiro por forma a ganhar coragem para
se dirigir a D. Afonso de Menezes. Pega no copo de vinha e toma-o de um só
golo sentindo um ardor a descer pela sua garganta em direcção ao estômago.
À medida que o vinho começa a entranhar-se no seu sangue começa a ganhar
coragem para se aproximar junto de D. Afonso de Menezes.

Levanta-se e dirige-se em direcção a ele. “Muito bom dia pela Graça de Deus.
Chamo-me Martim da Nóbrega e ouvi dizer que Vós sois o capitão mor da
carreira da Índia deste ano”. “Isso que vós dizeis é verdade, mas não vedes que
estou a jogar com os meus amigos? Quem sois vós para incomodar o meu
jogo?”.

“Peço desculpa a Vossa Senhoria se vos estou a importunar, espero então pelo
fim do jogo por forma a que possa falar com vossa senhoria”. Martim começou
a constatar que D. Afonso de Menezes não era pessoa de fácil trato pelo que
teria que ter paciência e ser bastante convincente por forma a que conseguisse
fazer parte da carreira deste ano. Mas Martim não era homem para se deixar ir
abaixo.

Não lhe restava outra forma que não esperar pelo fim do jogo e dizer o que o
trazia ali. Pede outro copo de vinho por forma a ludibriar a passagem do tempo
ficando a observar o capitão-mor a jogar com os seus amigos.

No fim do jogo, dirige-se de novo a D. Afonso de Menezes. “Vossa Senhoria, tal


como prometido aguardei pelo fim do jogo para vos dizer ao que vim”. “Diz
então lá rapaz aquilo que te traz pois sou um homem sempre ocupado”. Ao
ouvir o capitão mor a tratá-lo por rapaz, Martim ficou furioso embora não tenha
exteriorizado os seus sentimentos.

Rapaz, como ousava ele tratá-lo por um rapaz se ele já tinha os seus 18 anos
de idade e experiência de navegação? Engole a seco, sentindo um nó na
garganta que parece que lhe tolhe a respiração dirigindo-se então de novo ao
capitão-mor. “Como sei que é Vossa Senhoria quem está a tratar do processo
de recruta para a carreira da Índia, venho aqui apresentar-me a Vossa Exa.
Possuo experiência de pilotagem e sei ler as cartas náuticas e posicionar-me de
acordo com a leitura dos astros. Posso parecer um rapaz a Vossa Senhoria
mas posso-vos garantir que sou um homem de coragem e com vontade de
servir o Reino de Portugal pela Graça de Deus”.

“Estou a ver que sois alguém cheio de coragem” – responde D. Afonso de


Menezes, “isso agrada-me, mas como eu não tenho grande experiência de
navegação, pois possuo conhecimentos militares, não posso determinar se tens
conhecimentos naquilo que dizes. Mas sim, a carreira da Índia precisa sempre
de braços que ajudem a espalhar a Fé de Deus pelo Mundo fora e servir os
interesses do Reino. Passa de novo por cá amanhã, pois estará cá um dos
pilotos da carreira e ele avaliará se podes ingressar na carreira ou não. O seu
nome é Francisco de Arriaga. Dizei-lhe que vindes da minha parte. Enquanto
isso, tenha o resto de um bom dia, pela graça de Deus”.

Acabado de falar D. Afonso de Menezes apressa-se a sair da taberna.


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Martim, apesar de ainda não ter conseguido o que pretende está contente pois
fora dado mais um passo em relação à concretização do seu sonho.

Olha para o Sol. Eram umas 2 da tarde. Martim pensa para ele “bolas, nunca
mais acaba o dia por forma a que venha um novo nascer do Sol por forma a
que me possa encontrar com o piloto da carreira da Índia”. Martim desce pelas
ruas de Lisboa em direcção a Belém. Sobe para o seu cavalo e todo contente
vai para casa.

O seu sonho pode tornar-se realidade. O momento por que espera, a


oportunidade de embarcar rumo a Oriente está ao seu alcance. Finalmente
Martim via os seus sonhos a concretizar-se. Era como se a névoa que encobria
o seu futuro começasse a tornar-se menos opaca.

Tal como as nuvens que no céu se formam e por obra do acaso se mutam nas
mais variadas formas, bastando uma rajada de vento para que se dispersem e
desapareçam o mesmo se passa com os sonhos. Martim consciente disso,
verifica que tem que ter calma e esperar que Francisco de Arriaga o avalie.
Mas sente-se confiante. Os tempos que passara a navegar na sua barca, a S.
Miguel, juntamente com a leitura de compêndios e conversas com marinheiros
experimentados proporcionaram-lhe a experiência suficiente para estar à altura
do desafio.

5 de Fevereiro de 1567. Mal o Sol começa a aparecer no horizonte, inundando


com os seus raios calorosos a cidade de Lisboa, Martim acorda e veste-se de
imediato. Come o que encontra à mão na cozinha, subindo em seguida para o
seu cavalo em direcção à Sé de Lisboa. Chegado à Sé, amarra o cavalo junto à
entrada e entra na igreja. Rapidamente sente uma sensação de paz a inundar-
lhe o corpo.

Coloca-se de joelhos junto ao altar e reza. Reza a Deus para que o ajude e lhe
dê forças para convencer Francisco de Arriaga do seu valor. Enquanto reza, o
seu espírito viaja. Viaja em direcção a Oriente, vendo o Sol a nascer na terra da
canela, gengibre e pimenta. De repente sente uma mão sobre o seu ombro. Era
um padre que lhe estava a colocar a mão sobre o ombro. “Meu filho, acorda.
Estás na casa do Senhor, isto não é local para dormir”. “Perdoe-me padre, mas
eu não estava a dormir. Estava a rezar e devo ter-me distraído com o tempo”.
Levanta-se. Quase nem sente os seus joelhos de tanto tempo ter estado
dobrado. Mas sente uma sensação de paz no seu corpo e confiança nas suas
capacidades.

Sem saber como , sente que tinha acabado de estar em terras de Oriente. Sai
da igreja, monta o seu cavalo e segue em direcção à taberna por forma a
encontrar-se com Francisco de Arriaga.

Chegado à taberna, pede um copo de vinho e pergunta ao taberneiro se está


por ali Francisco de Arriaga, piloto da carreira da Índia. O taberneiro alude à
pergunta dizendo que se encontrava numa mesa ao fundo da taberna.
Devido à falta de luminosidade no fundo da taberna, Martim apenas consegue
avistar um vulto sentado ao fundo.
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Dirige-se ao piloto. “Bons dias pela Graça do Senhor. Sois Vós Francisco de
Arriaga?”, “Sim, sou eu. E quem me pergunta?”- responde Francisco de
Arriaga. “Sou Martim da Nóbrega, filho de Afonso da Nóbrega mercador. Venho
aqui por indicação de D. Afonso de Menezes que me pediu para falar convosco.
Tenho experiência de navegação e quero voluntariar-me para servir o Reino na
carreira da Índia”.
“ Se D. Afonso de Menezes vos enviou ter comigo é porque deve querer que eu
avalie as tuas capacidades.

Pois bem, se souberes responder a três perguntas que eu te vou colocar farás
parte da carreira da Índia. Aviso-te que o trabalho é bastante penoso e a
viagem perigosa, demorada tendo que se suportar inúmeros sacrifícios,
atribulações e até mesmo fome. Existe uma vaga para co-piloto, portanto se
fores recrutado será para essa posição.

Eu já conto com três viagens na carreira da Índia como piloto. Depois desta
reformar-me-ei desta vida de piloto das Índias e vou passar a viver aqui por
Portugal uma vida de paz sem grandes atribulações.

Mas vamos então às perguntas. Podes pensar bem antes de dar uma resposta,
mas basta falhar uma para não seres escolhido. Primeira pergunta: Como
consegue um piloto orientar-se no mar alto sem conseguir ver a costa?
Segunda pergunta: O céu é igual em toda a parte? Terceira pergunta: Como
consegue um barco navegar quando o vento está a menos de 8 quartas da
proa?”

Martim ao escutar cada uma das perguntas começa a pensar. Pensa saber as
respostas às perguntas do piloto mas sente o peso da responsabilidade ao
responder. Basta errar uma para não ser escolhido, pelo que tem que ter calma
e pensar antes de responder. Respira fundo e responde à primeira pergunta
colocada. “Um bom marinheiro não precisa de ver a costa para se orientar.
Para determinar a posição de um barco basta determinar a latitude e longitude
do mesmo. Para determinar a latitude podemos recorrer à altura da estrela
Polar em relação à linha do horizonte. O que é válido apenas para o hemisfério
norte pois no hemisfério sul a estrela Polar não é visível. Com isto respondo à
segunda pergunta. Voltando de novo à primeira. Para medir a latitude
recorremos ao astrolábio que mede a altura do sol aquando do seu zénite.
Como o Sol não é uma esfera fixa, recorre-se ao auxílio dos almanaques
solares para determinar com precisão a latitude. Na determinação da longitude
recorremos à medição da posição da lua face às estrelas. Para a determinação
exacta da mesma recorre-se também ao auxílio de almanaques mas lunares.
Quanto à última pergunta, a resposta é navegar à bolina. Para isso, temos que
colocar a vela a navegar contra o vento a cerca de 5 quartas a contar da proa.”

“Muito bem, estou a ver que sabes alguns dos segredos do mar. Podes
considerar-te a partir deste momento o meu sota-piloto. Passa amanhã pela
capitania para tratarmos da inscrição na carreira da Índia. Em Abril partiremos
rumo a Oriente, rumo a Goa”.

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por Carlos Carvalho

Martim não podia conter a sua emoção. Sota-piloto da carreira da Índia.


Finalmente seu sonho podia vir a concretizar-se. Sente o coração a bater com
intensidade. Já se imagina a subir para o convés do navio no dia da partida.
Sim, o Oriente estava cada vez mais perto dele.

No dia seguinte, Martim dirige-se à capitania e vai ter com Francisco de Arriaga.
Este dá-lhe uns papéis para assinar, tornando-se oficialmente seu sota-piloto.
Mais um passo tinha sido dado a caminho do Oriente.
Chegado a casa, Martim conta o passado a sua mãe, Inês da Nóbrega. Diz-lhe
que é sota-piloto da carreira da Índia. Em Abril parte rumo a Goa.

Inês da Nóbrega ao ouvir as palavras de seu filho entra em choque. “Meu filho,
meu filho…. O que me dizes agora parte o meu coração. Não vás, não me
abandones a mim e ao teu pai. O que ele dirá quando souber disto?”.

“Mãe, a minha decisão já está tomada. Tenho um sonho e quero cumpri-lo. Não
posso virar as costas ao meu destino.”

Afonso da Nóbrega ao ouvir de sua esposa Inês a decisão de Martim, entra


furioso pelo dentro do seu quarto e pergunta-lhe: “Mas será que tu não tens
juízo? Não ouves aquilo que eu tenho para te dizer? Queres deixar a tua mãe
sem o seu único filho? A chorar por todos os cantos da casa sem saber para
onde andas? Não vês que estás a deitar fora o teu futuro?”.

“Pai, sou um homem. Sei o que quero para a minha vida. Eu é que decido o
que devo ou não fazer. Eu é que sei o que é ou não melhor para mim e para a
minha vida. Nasci para viajar, para conhecer o mundo. Estou apenas a seguir
os meus sonhos.”

“Deixa-te dessas coisas. Se tu dizes que és um homem prova-o e toma uma


atitude responsável pelo menos uma vez na vida” - responde seu pai.

“Pai, a minha decisão é irreversível. Já não há nada a fazer. Já assinei os


papéis na capitania e em Abril serei sota-piloto da carreira da Índia”.

“Pois bem, se achas que és tu quem manda na tua vida sem querer ouvir o que
o seu pai e mãe têm para dizer fica a saber que a partir deste momento não
tenho filho. Nunca fui pai na vida e a tua mãe nunca foi mãe. Ela está proibida a
partir deste momento de falar contigo e em pronunciar o teu nome nesta casa.
Deserdo-te. Não te quero ver mais à minha frente. Sai da minha vista! Não
tenho filho!”.

“Pois bem pai, se é assim que queres assim será. Não me resta outra
alternativa que não sair. Vou seguir o meu caminho. Só tenho pena de minha
mãe que tanto gosto.”

Afonso, apesar de ter dito estas palavras dura para com Martim, sente o seu
coração a arder em ferida aberta como se o mesmo estivesse envolvido em
silvas.

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Não podia dar parte de fraco. Sim, Afonso da Nóbrega, não podia deixar que
seu filho fizesse o que quisesse sem ele ser tido nem achado. Tinha o seu
orgulho a manter e o seu orgulho é que fazia com que se conseguisse levantar
todos os dias e seguir a vida.

Nisto, Martim, pega nas suas coisas e abandona sua casa. Quando se
aproxima de sua mãe para a abraçar, vê seu pai pegar nos braços dela e
arrastá-la para os seus aposentos.

Apenas consegue ouvir os gritos e choro de sua mãe que grita pelo seu nome.
Sente uma cólera a invadir o seu corpo, mas não podia voltar atrás. Tinha o seu
destino para cumprir, tinha que seguir o seu sonho.

Ao sair de casa não consegue esconder as lágrimas que começam a cobrir o


seu rosto. Apesar de ser homem, sente a dor da separação de sua mãe que ele
tanto amava. Mas agora não havia forma de voltar atrás. Tinha tomado uma
decisão, tinha que seguir o caminho em direcção ao seu sonho .

Sem sítio para pernoitar, Martim passa a viver na sua barca a S. Miguel. O facto
de também viver numa embarcação era vista por ele como mais uma
preparação para os tempos futuros, tinha que se habituar a viver num barco por
forma a preparar-se devidamente para a carreira de sota-piloto da Índia.

Como meio de manter o seu sustento, nos meses anteriores à partida rumo à
Índia, Martim passa a usar a sua velha barca S. Miguel como meio de
transporte de mercadorias entre os portos.

Transportava mercadorias entre Lisboa, Setúbal chegando uma vez a fazer um


frete até ao Porto. Ficou bastante contente quando lá foi, pois assim pode
conhecer a costa norte, tendo achado a cidade bastante bonita e cheia de
azáfama. Era uma cidade muito mais pequena, húmida e escura que Lisboa,
mas ficou enamorado pela sua paisagem junto à foz do Douro, com as suas
altas escarpas e casas coladas junto a elas.

Ao efectuar o transporte de mercadorias, os seus conhecimentos náuticos


foram colocados em prática. Desse modo pode aperfeiçoar técnicas de
navegação e localização. Cada vez mais sentia-se preparado para seguir rumo
à Índia, ao Oriente que por ora se apresentava tão distante. Mas com cada
nascer do Sol, ao sentir os primeiros raios de sol tocar na sua cara, sentia-se
como que abraçado por aquelas terras e ouvia suavemente o seu chamamento.

Nesses momentos de libertação do espírito era mais fácil suportar a dor que
sentia pela falta de sua mãe Inês da Nóbrega de quem ele tanto gostava e que
seu pai, devido ao seu forte orgulho, lhe proibia de ver. “Mãe, minha querida
mãe, compreendei que a decisão que tomei foi por forma a cumprir o meu
sonho” – confidenciava Martim ao vento. “Se eu permanecesse no Reino e
seguisse as indicações de meu pai estaria a cortar as asas ao pássaro que é o
meu sonho. Desde menino me ensinaste que devemos ser nós a construir o
nosso próprio caminho, a percorrer o nosso rumo. Por isso mãe, obrigado por
me teres ajudado a cumprir o meu sonho”.
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Nisto uma lágrima começa a correr na face direita de Martim. Ele apressa-se a
limpá-la com um lenço que retira cuidadosamente do bolso e que lhe tinha sido
dado por sua mãe. Sente o perfume dela a invadir-lhe o nariz, acalmando desse
modo a sua alma. Sabe que apesar de não a puder ver ela está consigo a
ajudá-lo no cumprimento do seu sonho. Agora havia que seguir em frente e
chegar a Goa.

3. A partida rumo a Goa

Abril de 1567, mês da partida da carreira da Índia. Este ano a carreira da Índia
seria constituída no total por 5 barcos. A S. João, uma nau com cerca de 250
toneis, três mastros e que levava cerca de 45 marinheiros, a S. Rafael outra
nau com cerca de 240 toneis, três mastros e 42 marinheiros, a S. Bernardo com
270 toneis, três mastros e 40 marinheiros e 2 caravelas a Santa Maria com 80
toneis e três mastros e 28 marinheiros e a Bugio com 70 toneis e três mastros
sendo tripulada por 20 marinheiros. As caravelas eram usadas como forma de
abastecimento das naus e meio de patrulha no mar alto, pois a sua capacidade
de manobra era maior.

Além dos marinheiros viaja um contingente de cerca de 750 soldados que iam
servir nas praças de Goa, Damão, Diu, Panjim, Malaca, Macau, sendo
colocados às ordens do vice-rei da Índia na altura D. Antão de Noronha.
Juntamente com os soldados viajavam ainda 25 cavalos que iriam servir o
império no Oriente, tal como um conjunto de missionários da companhia de
Jesus que vão propagar o catolicismo pelo Oriente.

A viagem de Lisboa a Goa levava entre 6 a 10 meses, dependendo das


condições atmosféricas, sendo por isso necessário levar uma quantidade
considerável de víveres por forma a poder sobreviver em mar alto. De entre o
conjunto de víveres a levar para a viagem ia o biscoito, uma espécie de pão
bastante seco por forma a que não apodrecesse, o vinho por forma a que a
tripulação trabalhasse a bom ritmo, toucinho salgado e fumado, bacalhau seco,
azeite, vinagre, arroz e água.

Dois dias antes da partida, Martim dirige-se à capitania por forma a se


encontrar com Francisco da Arriaga e se inteirar das funções que vai exercer a
bordo. Dirige-se a um soldado que se encontra a guardar a entrada da
capitania. “Bom dia, pela graça de Deus, sou Martim da Nóbrega e venho aqui
para me encontrar com Francisco de Arriaga piloto da carreira da Índia” – diz
Martim.

“Espero um momento que o vou chamar”, responde o soldado.

Enquanto Francisco de Arriaga não chega, Martim fica a observar a opulência


das naus que cortam a paisagem, observando a azáfama em volta delas.
Estava a proceder-se ao carregamento das naus, encontrando-se inúmeros
homens a carregarem as naus com de água e víveres por forma a que se
conseguisse sobreviver durante a viagem em mar alto.
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“Martim bons olhos o vejam. Estava mesmo à sua espera”, diz Francisco de
Arriaga. “Estava a contar com a sua vinda porque quero mostrar-lhe o navio em
que vamos navegar. Siga-me que vamos subir a bordo da S. Bernardo. Ela vai
ser a nau principal da carreira, a nau almirante. Vai ser nela que nós vamos
com D. Afonso de Menezes. Esta nau já fez comigo duas vezes o percurso. É
uma bela nau, companheira de muitas viagens e léguas. É como se fosse a
minha mulher, tal é o modo que eu a conheço como ela a mim”.

Martim sobe então a bordo da S. Bernardo. Repara imediatamente na altura do


mastro principal que era de cerca 22 metros de altura e no comprimento das
velas do mastro grande com cerca de 14 metros de largura e 12 de altura. O
facto de os navios serem de grande tonelagem levava a que necessitavam de
grandes velas por forma a que se pudessem movimentar.

Francisco de Arriaga pega na carta marítima e estende-a sobre a mesa dentro


da cabine de pilotagem. Começa a explicar a Martim a rota que irão seguir.
“Como pode ver na carta, vamos navegar primeiro em direcção à Madeira,
Canárias, passando em seguida entre o Cabo Verde e o seu arquipélago. A
partir daí começamos a navegar à bolina por forma a apanharmos os ventos
que vêm de África pelo que temos que navegar mais para Oeste em direcção a
terras do Brasil. Durante este percurso vamos descer o Equador. Passado o
Equador ao fim de umas 600 milhas voltamos a navegar em direcção de novo a
África onde temos que contornar o cabo da Boa Esperança e entrar então no
Índico. Aí começamos a subir a costa de Moçambique, passando por Sofala,
Mombaça, seguindo de novo em direcção a mar alto até chegarmos a Goa
queira Deus”.

“Para percorrer esta rota vamos levar entre 6 a 9 meses e pelo meio encontrar
muitas contrariedades. Mas não te preocupes que eu já sou um homem
experimentado, já fiz esta viagem bastantes vezes, o segredo para sobreviver
está em ser-se perseverante, se bem que em cada viagem que faço estão
sempre a aparecer novos perigos e aventuras novas. Mas estou certo que
chegaremos a bom porto, daqui a uns meses estaremos a pousar os nossos
pés em Goa”

Martim, fica concentrado a ouvir as suas palavras. Entra em êxtase quando


ouve a palavra Goa. Essa palavra mágica que significava para ele o começo
das suas aventuras e o princípio da concretização do sonho.

É chegado o dia da partida. A população de Lisboa e aldeias vizinhas


concentra-se junto de Belém. Era sempre um espectáculo muito concorrido pois
era uma quebra da monotonia diária. Ver a azáfama dos marinheiros a subirem
para os navios, a começarem a desfraldar as velas, os padres a abençoarem a
partida era algo que ninguém queria perder. As mulheres dos marinheiros
acumulavam-se junto às naus muitas delas com os seus filhos ao colo chorando
a partida dos seus maridos, enquanto as crianças abriam um sorriso ao verem
a confusão gerada por tanta gente, as cores das bandeiras desfraldadas, os
ritmos alternados do arrear das velas. Outras ainda noivas e comprometidas
esperavam pelo momento de regresso de seus amados, procurando aguentar a
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distância e tempo que as separava dos seus amados. Caso o seu amor
aguentasse o tempo e a distância era sinal de que se mereciam. Dentro de ano
e meio tornariam a ver-se e caso tudo corresse bem com um bom pé de meia
para auxiliar o início de vida. Viúvas havia que tinham perdido seus maridos na
carreira da Índia e viam partir agora seus filhos na incerteza do seu regresso.

Martim segue em direcção à sua nau. Ao aproximar-se da mesma e quando


começa a subir a rampa de acesso sente uma mão a bater-lhe nas costas. Ao
virar-se vê a cara de um miúdo que lhe era desconhecida. Este ao ver que
Martim se tinha virado em sua direcção dirige-se a ele. “Bom dia, tu chamas-te
Martim, não chamas?” “Sim, chamo-me Martim e quem és tu? “

“Uma senhora deu-me uma moeda de ouro tendo em troca que te entregar
este lenço.”. “Martim reconhece de imediato aquele lenço feito com a mais pura
das sedas. Ao tocar-lhe sente um frio invadir o seu corpo subindo da espinha
até à sua cabeça. Era o lenço que sua mãe Inês costumava usar sobre a sua
cabeça quando se deslocava para rezar à igreja. Aperta-o junto ao coração e
guarda-o. Sua mãe não podia assistir à sua partida, proibida por seu pai, mas
tinha conseguido uma maneira de o acompanhar durante toda a viagem.
Agradece ao miúdo por lhe ter entregue o lenço e continua a subir a rampa de
acesso à nau, começando a subir até ao seu convés.

Chegado ao convés encontra-se com Francisco de Arriaga e D. Afonso de


Menezes. Depois de os ter cumprimentado assiste à missa de benção
juntamente com todos os homens a bordo.

Terminada a cerimónia de benção das naus, os padres que tinham subido às


naus descem de volta a terra e é então dado o sinal da partida dos navios.
D. Afonso de Menezes levanta a sua mão direita baixando-a em seguida.
Estava dado o sinal de partida. Havia que aproveitar a preia-mar que inundava
o Tejo e rumar em direcção ao Atlântico Sul e em seguida ao Índico.

Os membros da tripulação começam a acorrer em direcção às amarras, que


seguravam os navios, levantando as mesmas. Estava quebrada a ligação das
naus a terra e agora havia que deixar as naus percorrer o oceano em direcção
a Goa.

A voz do mestre ecoa ao longo do navio: “levantar amarras, levantar âncora,


baixar as velas”. Era a partida. O navio sofre um abanão vindo desde a parte de
baixo até ao topo do mastro. As naus começam a deslocar-se calmamente
sobre o Tejo em direcção à barra.

Belém começa a ficar para trás, os Jerónimos vêem-se cada vez mais ao fundo.
Martim olha em direcção a Este conseguindo vislumbrar a cidade de Lisboa.
Nunca se sentira tão feliz e triste ao ver a torre de Belém e os Jerónimos. Feliz
por estar a caminhar em direcção ao seu sonho, triste por se afastar de sua
mãe, embora saiba que ela o apoia e que estará sempre do seu lado.

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Ao dobrarem o cabo Espichel, Martim recorda-se das viagens que fazia a bordo
de sua barcaça a S. Miguel. Belos tempos esses em que viajava com os seus
amigos de Alfama que o acompanhavam nessas viagens. Nisto, observa a
serra da Arrábida a erguer-se em direcção ao Atlântico. Pergunta-se a si
mesmo quando e se algum dia a tornaria a ver.

4. Primeiros tempos a bordo e chegada a Santiago

Primeira noite a bordo. A carreira da Índia encontra-se neste momento próxima


de Sagres. Martim encontra-se junto à porta de entrada da cabina de pilotagem
estando a observar as estrelas e as lua. Lá ao fundo no horizonte sobre a
pálida luz da lua que embate nas ondas consegue vislumbrar um vulto erguer-
se em direcção ao mar. Era o cabo de S. Vicente. Isto significava a visita de
Portugal e o rumo à aventura e desconhecido.

Enquanto Martim observa o céu, a lua e o cabo de S. Vicente, Francisco de


Arriaga, vira uma vez mais a ampulheta situada na cabine e pede a Martim para
efectuar medições da latitude e longitude por forma a determinar a rota em
direcção à Madeira. “Martim, depois obteres as coordenadas necessitamos de
navegar em direcção a sudoeste. Indica então ao homem do leme para onde
tem que virar que eu por ora vou descansar. Quando eu acordar é então a tua
vez de dormir”.

Martim sente sobre si o peso da responsabilidade, e procura obter com a maior


exactidão a latitude e longitude do barco. Mede a posição da lua face aos
outros astros e verifica no almanaque de bordo qual a longitude. Em seguida
procura no céu a constelação da Ursa Maior e faz uma projecção da mesma,
contando cinco vezes a distância das Guardas da Ursa Maior por forma a
determinar a posição da Estrela Polar. Ali está ela brilhando no céu, e com as
outras estrelas a girar em seu redor numa espiral infinita indicando o caminho.
Depois de ter medido a altura da estrela face ao horizonte consegue
determinar com exactidão a latitude.

Com as coordenadas corre em direcção à cabine de pilotagem e abre a carta


portulano espraiando-a sobre a mesa e traça a rota em direcção à Madeira
dando em seguida indicações ao homem que se encontra ao leme. O resto da
frota imita a S. Bernardo, navegando em direcção à Madeira como um
sincronizado cardume de peixes.

Seis horas se passaram e os primeiros raios de sol começam a espalhar-se


sobre as ondas. Martim olha para o Sol que começa a subir sobre o horizonte e
pensa para consigo: “Sol, meu irmão, meu amigo, vou a caminho do teu berço”.
Francisco de Arriaga, acabado de acordar aparece junto de Martim dirigindo-se
a ele. “Bom dia Martim, estou a ver que fizeste um bom trabalho. A nau está a
seguir a bom ritmo, 5 nós de acordo com as últimas medições. Podes ir
descansar que deves estar esgotado”.

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Martim agradece a Francisco de Arriaga e desce da cabine de pilotagem em


direcção ao convés da S. Bernardo. Uma vez aí chegado segue em direcção
às cabinas tornando a descer até chegar à sua.

Tal como todas as cabinas das naus, não primava pelo conforto e higiene, mas
Martim não era um homem arreigado ao material pelo que não se importa das
agruras que tinha que sofrer. Esperava-o em troca uma enorme recompensa,
chegar ao Oriente.

A cama era uma esteira em madeira cheia com uns fardos de palha e por cima
tinha a cobri-la uma manta. Procura espalhar a palha por forma a que a cama
fique mais uniforme e finalmente deixa-se mergulhar no oceano de palha.
Ao dormitar o chamamento do Oriente não consegue invadir o seu pensamento,
tal como sua mãe Inês. Aperta o lenço uma vez mais junto ao seu coração e
começa então a dormir profundamente, embalado pelo ondular das ondas que
batiam sobre o casco da nau.

Durante o sono tem um sonho. Ouve o chamamento do Sol Nascente e sente


os seus raios acariciarem-no intensamente. Ao fundo ouve uma voz feminina
chamar por si : “ Martim, vem ao meu encontro, ao meu berço, à terra onde se
respira canela, bebe-se o gengibre e come-se a pimenta. Junta-te a mim e
partilha comigo os teus segredos”.

Nas noites seguintes, Martim fica constantemente a pensar nesse sonho, qual
seria o significado do mesmo e que voz era aquela que o chamava. Nunca a
tinha ouvido antes, mas ao ouvi-la tinha a sensação de calma, paz, serenidade.
Estava cada vez mais determinado em chegar a terras de Oriente.

Martim, ao longo dos dias ia conhecendo as artes de navegação com o auxílio e


aprendizagem de Francisco de Arriaga. Ouvia-o vezes sem conta dizer que
para se ser um bom piloto não bastava saber ler uma carta náutica, também era
necessário ter intuição por forma a efectuar a correcta leitura das coordenadas
e transposição das mesmas para as cartas.

A viagem rumo a Goa já vai com alguns dias. Sobre o imenso céu azul um
marinheiro avista um albatroz navegando sobre o céu infinito pairando no ar
com as suas grandes asas abertas. Depois de ter alertado o resto da tripulação
do avistamento um dos marinheiros diz: “Este pássaro é bom presságio. Deve
significar que deve haver terra por perto. Devemos estar perto de terra,
provavelmente próximos da Madeira. O contramestre ordena a um dos
contramestres para subir ao mastro principal por forma a se certificarem se
estão próximos ou não de terra firme.

O marinheiro sobe ao mastro e sobre o mesmo avista o imenso azul do céu e


do mar. Bem lá ao fundo em direcção a Sul consegue então avistar o que lhe
parece ser uma elevação sobre o azul infinito. Enche os seus pulmões de ar,
sentindo durante o processo o sabor do mar a invadir os seus brônquios e grita
com alegria “Terra à vista! Terra à vista em direcção a Sul!”.

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Francisco de Arriaga, dirige-se então ao mapa portulano e verifica de acordo


com as últimas coordenadas o sítio onde se deveriam estar a localizar. Não
havia dúvidas, estavam próximos da ilha da Madeira, mais propriamente das
ilhas selvagens, inabitadas pelo homem devido à inexistência de água potável
mas um autêntico paraíso para as aves marinhas. Havia que continuar em
direcção a Sul passando em seguida próximo das Canárias e em direcção às
ilhas de Cabo Verde.

Primeiro domingo passado a bordo. Logo pela manhã, ainda o sol se começa a
espraiar sobre o horizonte começa a tocar o sino. É hora de rezar a missa pelo
que todos os homens param as actividades que estavam a realizar. Junto à
popa é improvisado um altar, indo os grumetes buscar ao porão as arcas onde
se guardavam os santos castiçais, crucifixo, bandeiras.

Uma vez reunidos o capelão começava a rezar. Todos em uníssono oram a


Deus para que a viagem corra sem atribulações e cheguem com saúde a Goa.
Devido a ser efectuada em alto mar, a missa era considerada uma missa seca,
pelo que não havia direito à comunhão. Se havia local na terra onde os homens
se sentiam mais próximos do criador esse sítio era no mar alto no meio do
oceano. Abandonados e à mercê da natureza não lhes restava outra coisa que
não rezarem por forma a terem forças para continuar e sobreviver a todas as
agruras que viessem a encontrar durante a viagem. Era a Fé que os alimentava
e dava forças para continuar em direcção a Goa.
No fim da missa, os homens corriam o navio de lés a lés portando consigo
bandeiras coloridas e com bordados de imagens de santos e Cristo, dançando
e rezando ao som de flautas e trombetas cantando em uníssono glória ao
Senhor.

Mais três dias de viagem se passaram. As naus deslocavam-se sobre o


Atlântico próximo do meio dia solar. Martim pega no seu astrolábio e começa a
medir a altura do Sol face à linha do horizonte. Com as coordenadas obtidas
dirige-se à cabine e abre a carta marítima começando a verificar onde é que as
naus se encontravam naquele momento. Não havia dúvidas, estavam próximos
das Canárias. Apressa-se a dar a boa nova a Francisco de Arriaga. “Boa tarde
Francisco, tenho boas novas para dar. Estive a medir a altura do Sol e de
acordo com a carta estamos próximos das Canárias.” “Boas novas sem dúvida”,
responde Francisco. “Isso quer dizer que nos estamos a deslocar de acordo
com o esperado. Daqui a uma semana devemos estar a atravessar o cabo
Verde. Atracaremos na ilha de Santiago para reabastecer de água e víveres
frescos para a tripulação e animais, em seguida iremos rumar em direcção a
Sul e até atravessarmos o Cabo inúmeros perigos e privações iremos ter.

Mais dez dias se passaram. A viagem prossegue em mar alto. À medida que as
naus sulcavam as ondas do Atlântico ao ritmo dos ventos de norte, um imenso
azul os abraçava vindo das profundezas.

Martim, do alto da cabine repara numa mancha escura que se começa a juntar
no céu vinda de oriente e com forma de esfera. Chama Francisco de Arriaga
para lhe perguntar que fenómeno era aquele que nunca antes tinha avistado.

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“Santo Deus! Também nunca vi nada igual ao longo da minha vida de piloto”.
Um dos marinheiros mais experimentados, já na casa dos céus 40 começa
então a gritar “Deus nos acuda a todos! Jesus salvai-nos desta desgraça! Isto é
um enxame de gafanhotos que se prepara para nos atacar”.

De acordo com o marinheiro estes insectos eram perigosos devido ao seu


comportamento imprevisível, elevado número e por possuírem um apetite voraz
comendo tudo o que apanhassem. Havia relatos de navios que viram as suas
velas serem devoradas que nem pedaços da mais tenra couve por esses
insectos e de homens completamente devorados ao serem enxameados pelos
mesmos.

Ao ouvir todas estes relatos o mestre do navio informa D. Afonso de Menezes


do perigo que começa a circundar os navios. Este ordena que avisem os outros
navios do perigo que se aproxima e manda recolher todas as velas. Teriam que
arrumar as velas antes que o exército devorador chegasse e começasse a
demonstrar o seu voraz apetite.

Enquanto os homens tentavam a todo o custo recolher as velas o exército alado


descrevia espirais no ar como se um único ser fosse. Cada vez que passavam
junto ao Sol, o dia tornava-se noite, tal era o seu número. Um ruído metálico
começava a aproximar-se dos navios com intensidade cada vez mais elevada.

Passada meia hora do primeiro avistamento o exército de insectos voadores


aproxima-se dos barcos. Ao aproximarem-se começam a turvar os céus com os
seus corpos, diminuindo a luz de intensidade até que uma escuridão se começa
a levantar sobre os navios.

Todos os homens que se encontravam sobre o convés começam a gritar em


desespero : “Deus nos valha e acuda. Jesus Cristo salvai-nos desta desgraça.
Estamos condenados, estes filhos do demónio vão-nos devorar a todos.
Peguem em mantas e começam a sacudir os animais daqui para fora”.

O exército alado começa a descer sobre as naus e com os seus apetites


vorazes começam a trincar tudo o que suas mandíbulas conseguem cortar.
Começam a ouvir-se gritos de homens que começam a sofrer dentadas dos
insectos. Ouve-se um monocórdico tchc tchc tchc como que se fosse uma
serra a serrar em madeira verde.

Com muito custo e dificuldade os marinheiros pegam no que lhes vem à mão e
começam com pás, tábuas e mantas a matar os insectos que podem. O chão
começa a ser invadido por uma substância viscosa e fedorenta como resultado
dos animais esventrados. Apesar do afinco dos marinheiros a luta revela-se
inglória tal era o número de soldados do exército inimigo. Por cada gafanhoto
que conseguiam matar mais uma dúzia aparecia a substituir o gafanhoto
tombado.
Marinheiros em desespero e por força das picadas e mordidas dos insectos
acorriam até à popa do navio e atiravam-se ao mar esperando a sua salvação.
Esqueciam-se é que as águas sobre aquelas latitudes era infestada de tubarões
que sempre que sentiam a água agitar-se acorriam em cardume em direcção
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ao festim proteico. A água azul safira começa a tornar-se então em vermelha


ocre.
Numa questão de segundos perde-se o rasto dos marinheiros que em busca da
salvação de um mal tinham acorrido de braços abertos à sua perdição.

Por todo os navios começa a apoderar-se um cheiro nauseabundo resultado do


elevado número de insectos mortos e esmagados. Ao andar-se sobre o navio
ouvia-se um constante crepitar, resultado do elevado número de corpos jazidos
que cobriam como um manto o convés do navio.

Francisco de Arriaga vira-se para Martim, “o mar é feito de muitos perigos e


tribulações. Nunca se sabe qual o próximo perigo que nos pode surgir. Não
chegam as tempestades que encontramos pelo caminho como ainda nos calha
sermos atacados por estes animais.” Ao fundo ouve-se a voz de D. Afonso de
Menezes a incentivar os homens para a luta. Ele mesmo com uma pá tenta
matar o maior número possível de animais e mostra a todos os que estão em
seu redor como o fazer.

O ataque dos insectos perdura por mais cinco horas. Os homens ofegantes, já
sem forças para respirar começam então a ver a luz do sol abraçar o convés.
Tal como tinham chegado assim partiram. Sem aparente razão, os insectos
abandonam os navios, abrindo as asas e viajando rumo a outros alvos.

Como resultado do ataque algumas das cordas dos mastros estavam em mau
estado e outras tinham sido completamente devoradas não sendo desse modo
possível desfraldar todas as velas. Sobre o convés encontrava-se o resultado
do encontro. Uma pasta amarelo-esverdeada e um cheiro fétido que invadia
todos os navios. Além dos estragos materiais, algumas vidas também se tinham
perdido pois alguns marinheiros menos precavidos resolveram saltar do convés
esperando encontrar a salvação nas águas, tendo no entanto caminhado ao
encontro do cardume de tubarões que povoavam aquelas águas tendo
encontrado desse modo a sua morte.

O mestre da S. Rafael apressa-se a gritar para os grumetes : “Vamos rapazes,


mão à obra. Toca a colher água do mar para os baldes e a levar esta porcaria
que invade e infesta de cheiro nauseabundo o convés do navio”. Com o auxílio
de cordas, os grumetes apressam-se a atirar os baldes ao mar e uma vez
cheios a espalhar os mesmos sobre o convés. Com a ajuda de vassouras os
marinheiros começam a varrer os despojos da invasão em direcção ao mar.
Milhares de gafanhotos são então arrastados pela água em direcção ao
oceano. Junto às águas começam a avistar-se cardumes de peixes a
encaminharem-se em direcção aos despojos gratuitos.
Depois de concluídas as tarefas de limpeza, o capelão resolve efectuar uma
missa de acção de graças em agradecimento por o perigo se ter afastado e
terem conseguido sobreviver a este ataque cruel e sem aviso.
Durante a cerimónia são lembradas as vidas daqueles que as perderam como
resultado indirecto do ataque.

Os homens começam a cantar em uníssono. Era a forma encontrada de se

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O Navegante
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abstraírem de todos os perigos passados e que ainda estavam para vir. Mais
uma etapa da viagem estava concluída.

D. Afonso de Menezes, resolve efectuar um levantamento de todos os estragos,


procurando verificar qual o estado da frota. Ao saber que parte das velas se
encontravam danificadas sendo necessário aportar para proceder à reparação e
substituição das mesmas, dirige-se a Francisco de Arriaga e pergunta-lhe quão
distantes se encontram do arquipélago de Cabo Verde.

“De acordo com a carta marítima devemos estar a cerca de umas 90 milhas de
distância de Santiago. Dentro de uns 3 dias devemos lá chegar e aí poderemos
efectuar reparações e reabastecimento”. “Ao menos temos essas boas novas.
Obrigado pela informação. Nem tudo está perdido. Rumo então a Santiago.”

Martim, deitado sobre a sua cama pergunta-se a si mesmo que mais aventuras
e atribulações lhe estarão reservadas durante a viagem. Nunca tinha visto nada
semelhante àquele exército de gafanhotos que procurava atacar tudo o que
visse em frente. Realmente a viagem em direcção a Goa era tudo menos
monótona. Quem diria que uns insectos que isoladamente parecem frágeis e
inofensivos em aglomerado se comportam como um gigante, quase invencível.

Passados uns dias, um dos marinheiros que se encontrava no topo do mastro


avista terra ao fundo do horizonte. “Terra à vista! Terra à vista!”. Começam a
tocar os sinos do navio em rebate. O convés enche-se de homens cheios de
alegria. Um deles pega na flauta e começa a tocar enquanto outros começam a
dançar e pular de alegria embalados pelo som da música. Era dia de
comemoração pois estavam perto de Santiago onde poderiam efectuar as
reparações e reabastecimentos podendo desse modo continuar a viagem rumo
a Goa. Além disso, a paragem significava uns dias em terra pelo que havia
sempre oportunidade de desanuviar da vida a bordo.

5. Reparações, reabastecimento em Santiago e partida

A ilha de Santiago é a maior das ilhas do arquipélago de Cabo Verde,


possuindo cerca de 900 km de área, sendo morfologicamente de estrutura
montanhosa sendo coberta de um verde paradisíaco no topo, resultado da
humidade e passagem das nuvens sobre a ilha. O seu clima era meio árido
resultado da pouca chuva que por aquelas águas parava. Não eram poucas as
alturas em que chovia sobre o mar e na ilha nem uma gota caía. Já no topo das
montanhas o clima era diferente do resto da ilha. Devido à altitude, as nuvens
ao passar deixavam rastos de humidade, sendo desse modo possível às
plantas e árvores expor o seu verde colorindo desse modo a ilha.

A cidade da Ribeira Grande era a diocese de Cabo Verde e Guiné Bissau . Os


barcos da Carreira atracam na enseada em frente à cidade.

Atracados no porto, D. Afonso de Menezes dirige-se a seus homens. “Homens,


acabamos de atracar na Ribeira Grande por forma a reabastecer e efectuar
reparações dos navios. Vamos estar aqui cerca de uma semana mas não
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pensem que por se encontrarem em terra podem fazer o que quiserem. Só têm
licença de abandonar o barco quando sol nasce e têm que voltar antes que o
sol se ponha. Quem não cumprir as minhas ordens será severamente
castigado”.

Martim, depois de ouvidas as palavras do capitão mor decide descer do barco,


tal como o resto dos homens e passear pela cidade.
Apesar de ser uma cidade recente, criada há menos de um século, Ribeira
Grande era uma terra que começava a ter um crescimento razoável. O facto de
estar entre as rotas do Brasil e da Carreira da Índia faziam com que fosse um
comum local de atracagem de navios prosperando o comércio por aquelas
zonas.

A tasca situada junto ao porto começa então a ser invadida pelos marinheiros
recém-chegados. O dono da mesma era Manuel da Silva, um português
originário de Beja que tinha abandonado a sua terra em direcção a terras de
Brasil, mas como tinha adoecido a bordo durante a viagem, viu-se obrigado a
ficar retido na Ribeira Grande. Quando voltou a ter a oportunidade de rumar em
direcção ao Brasil preferiu permanecer por aquelas paragens pois tinha aberto
o seu próprio negócio e a vida não lhe estava a correr mal.

Isto passara-se há 15 anos atrás. Actualmente vivia com uma negra originária
da Guiné Bissau que ele tomara por companheira e tinha já tido quatro
mestiços. Martim dirige-se ao taberneiro. “Ora viva, pode dizer-me qual é a
especialidade aqui na sua taberna? Já há três semanas que eu e os meus
companheiros andamos pelo mar e queremos ver se conseguimos recuperar o
paladar e o apetite”.

“Pois bem, tenho aqui uma especialidade para vós que julgo que nunca devem
ter provado. Moreia frita. Com um pouco de piri-piri e acompanhada de grogue
feito aqui em Santiago resultado da destilação da melhor cana de açúcar penso
que vocês vão passar uma tarde bem alegre”.
“Assim seja. Venha daí essa moreia e o grogue”.

Passado algum tempo o taberneiro coloca na mesa um pequeno pipo cheio de


grogue. Martim nunca antes tinha provado tal bebida. Tinha uma cor
acastanhada, e um cheiro a álcool. Quando entrava na garganta sentiam-se as
amígdalas a ferver e uma sensação de calor a invadir o organismo em direcção
ao estômago.

“Cá este grogue é mesmo poderoso”. Diz Martim para Francisco de Arriaga.
“Sim, isto é bom, e além disso impa o corpo. Deve matar todos os males que
temos por aqui dentro. Até um morto alevanta. Vamos lá ver que tal é a
moreia”.

Uns minutos depois, e depois de já terem bebido alguns copos de grogue chega
finalmente a moreia frita. Vinha numas travessas de barro e tinha uma
consistência mole ao trincar-se.
Ao trincar-se a sua carne, a mesma procurava escapar-se dos dentes, mas o
seu sabor era agradável, especialmente com o piri-piri que a acompanhava.
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Com a ajuda do grogue os homens começam então a entoar cantilenas


falando da vida e perigos do mar, e cantando o seu tema favorito – as
mulheres.

Acabado o grogue e a moreia lá foram todos a cantarolar pelas ruas em


direcção aos barcos que se encontravam atracados junto à enseada.
D. Afonso de Menezes ao vê-los a chegar nesse estado embriagado dirige-se
aos mestres da S. Rafael, S. Bernardo, Santa Maria e Bugio. “Eu disse que
estavam livres de abandonar o navio enquanto houvesse sol, mas pensei que
não fossem entrar no caminho da devassidão”. “D. Afonso de Menezes”,
retorque o mestre da S. Rafael, “bem sei que Vossa Exa. é o nosso Capitão
Mor a quem devemos todo o respeito, mas tendes que ver que os homens
estão há três semanas no mar e ainda temos muita milha que correr até chegar
a Goa. Temos que lhes proporcionar momentos de alegria, união e divertimento
pois muitos deles não chegarão com vida a Goa.”
“Pois bem, que assim seja, mas não quero que as autoridades da Ribeira
Grande me venham pedir contas por actos cometidos pelos homens. Isso não
tolerarei e punirei com as minhas próprias mãos aquele que cometer uma
ofensa nesta ilha”.

Primeira manhã passada na Ribeira Grande. Mal o sol se levanta Martim


resolve ir passear pela ilha. Ouvira no dia de ontem a Manuel da Silva que na
ilha existia um monte, o mais alto de todos, o Pico da Antónia de onde se podia
avistar toda a ilha e o mar a abraçá-la. Caminha em direcção à sua taberna e
aluga um jumento por forma a conseguir aceder ao topo do Pico da Antónia. A
viagem não se afigura fácil, visto a maioria dos caminhos serem caminhos em
terra batida cheia de sulcos causados pelas chuvas fortes que caíam sobre a
ilha normalmente nos meses de Junho a Agosto. Com sofreguidão, Martim e o
seu jumento vão escalando em direcção ao mesmo.

Ao longo da subida, Martim repara que existe uma gradual transição de cores.
O castanho e o ocre deixam de predominar na paisagem em troca com o verde.
Pequenas maçarocas de milho, cheias de um profundo verde, figueiras
verdejante, amendoeiras carregadas de amêndoas ainda em desenvolvimento,
mangueiras, começam a invadir a paisagem.

Ao olhar para baixo, para o fundo da ilha repara que só mesmo ao fundo é que
se consegue avistar a Ribeira Grande com a sua ribeira e enseada a abraçarem
o mar. Junto à mesma consegue observar os barcos acostados que os tinham
trazido até àquela ilha e os levariam rumo a Goa, rumo a terras do Oriente.

A paisagem da ilha era deveras contrastante. Nunca vira contraste tão


carregado na vida. O azul safira e turquesa junto à ilha, o branco e vermelho da
cidade da Ribeira Grande com suas casas caiadas e telhados, o castanho ocre
da terra junto à costa e o verde em direcção ao topo que não era visível porque
estava densamente coberto de nuvens.

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Já com sede dirige-se a um poço onde encontra um negro a tirar água para
regar os campos. “Bons dias com a graça do Senhor. Posso servir-me da
água? Vou em direcção do Pico da Antónia e está a dar-me a sede”.

“Se vossa senhoria tem sede sirva-se à vontade. A água é um daqueles bens
que não se podem negar a ninguém. Vossa senhoria diz que vai até ao Pico da
Antónia. Pois bem, prepare-se porque é capaz de apanhar chuva lá por cima.
Além disso vá bem agasalhado por lá faz muito frio. Sabe, é que como a
montanha toca nas nuvens, há muita humidade e vento”.
“Muito obrigado pela água e pelo conselho. Está mesmo fresquinha e era o que
me estava a fazer falta para encher o corpo de força e energia.”

Quase a chegar ao topo do Pico da Antónia, Martim sente a humidade das


nuvens a bater nos seus lábios e a água a começar a condensar-se em sua
boca. O vento que sopra de Oeste bate na sua face e Martim sente os seus
cabelos a deslocar-se rumo a Oriente. Uma enorme sensação de paz e alegria
invade o seu corpo e só é perturbada ao lembrar-se de Inês, sua mãe, que
estava em Lisboa. Continua a caminhar ofegadamente sobre o caminho
agreste, sentindo também dificuldades em respirar.

Estava finalmente no topo da ilha. Martim sai de cima do burro e apressa-se a


correr como uma criança. Finalmente tinha atingido o topo da ilha e por baixo
consegue vislumbrar um oceano de nuvens. O único ponto existente no mundo
para além do oceano de nuvens que o rodeava era o Pico da Antónia e ele o
seu único habitante.

Em seu redor acerca-o a vegetação luxuriante que por ali cresce. Vê com
atenção as dedaleiras em flor que com o seu odor adocicado chamam as
abelhas que por ali se encontram .
Naquele instante, Martim sente-se um privilegiado por ter a oportunidade de
partilhar aquele momento com as plantas e abelhas. Aquele local era mesmo
especial. O verde, as flores, as abelhas, o vento, as nuvens tudo o fascinava.
Senta-se no mar verde e começa a petiscar do farnel que trazia consigo. Uns
figos secos e um pedaço de pão acompanhados com grogue era o que trazia
consigo. Tinha comprado o farnel a Manuel da Silva o dono da tasca na Ribeira
Grande que também lhe tinha emprestado o jumento para aceder até ao topo.

Depois de ter dormido durante algum tempo, Martim volta a levantar-se. Eram
cerca de umas duas horas da tarde, pelo que tinha que começar a descer em
direcção à Ribeira Grande por forma a chegar antes do pôr do sol.

Antes de ter chegado à ilha de Santiago, Martim nunca pensara que Cabo
Verde fosse uma terra tão fascinante como aquela que estava a ver, respirar e
sentir. Ao ver que o momento da partida estava próxima começa já a sentir
saudades da Ribeira Grande, do grogue, do Pico da Antónia, mas sente-se feliz
por ir a caminho de cumprir o seu sonho: chegar a Oriente e viajar por terras de
Sol nascente, onde se respirava canela, bebia-se o gengibre e sentia-se a
pimenta.

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As reparações dos navios estavam praticamente efectuadas. As velas e cordas


atacadas pelos gafanhotos tinham sido reparadas e ou substituídas e as naus
tinham sido reabastecidas com água fresca e mantimentos, tendo os porões
dos navios voltado a encher-se de víveres, pois iriam passar em mar alto os
próximos três a quatro meses descendo o Atlântico em encontro do Índico.
Carne seca, barricas de atum salgado, figos secos, queijos de cabra, barricas
de grogue e bananas frescas e secas faziam parte dos víveres aprovisionados
na Ribeira Grande.

No dia da partida em direcção a Goa, reúnem-se todos em frente da igreja


sendo realizada uma missa de benção e Acção de Graças por forma a que tudo
corra bem durante o caminho até Goa.
Terminada a cerimónia regressam todos a bordo sendo então efectuada a
contagem dos homens por forma a que nenhum fique esquecido pela ilha. É
então dada ordem de levantar as amarras, içar âncoras e partir rumo ao
Atlântico Sul.

Martim, dentro da cabine de pilotagem encontra-se junto de Francisco de


Arriaga vislumbrando com ele cada vez mais à distância a cidade da Ribeira
Grande, o Pico da Antónia, Santiago, até que se tornam num pequeno ponto
infinito do oceano. A viagem continuava rumo a Sudoeste por forma a apanhar
os ventos alísios antes de virar para Sudeste em direcção ao Cabo e Índico.

6. Viagem em direcção ao Atlântico Sul

Saídos de Santiago, as naus seguem caminho a sul até encontrarem a Serra


Leoa. Uma vez aí chegados rumam a Sudoeste navegando à bolina.

Martim, junto à carta piloto volta uma vez mais a verificar as coordenadas que
tinha tirado ao medir a altitude do Sol no zénite.

À medida que se iam deslocando em direcção a Sul, o Sol estava cada vez
mais alto face à linha do horizonte. Isto era porque se estavam a aproximar
cada vez mais do Equador, linha imaginária que separa a Terra em duas
metades iguais. Uma vez verificadas as medições na carta marinha, Martim
apressa-se a dar indicações ao homem que se encontra no leme.

Este era o momento mais prolongado da viagem. Iriam ter que viajar durante
cerca de quatro meses sem pisar terra contando apenas com os víveres a
bordo.

Uma semana se passou desde que os homens saíram da Ribeira Grande em


direcção a Goa. Estamos na hora do almoço. Os despenseiros entregam a
cada um dos homens uma porção de biscoito, carne seca, água e vinho. Para
cozinhar cada um dos homens desloca-se em direcção aos fogões existentes
no convés de cada navio. De madeira e cobertos de areia, serviam para
aquecer as refeições.

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Como era comum existia uma fila bem grande para os fogões, pois tentavam
todos cozinhar na mesma altura. Com a impaciência da espera um dos
marinheiros desentendeu-se com um dos grumetes que estava à sua frente,
pois queria passar-lhe à frente. “Desde quando a canalha tem prioridade sobre
os mais velhos? Sai mas é da minha frente e troca de lugar comigo.”

“Lá porque você é mais velho do que eu não quer dizer que me pode passar à
frente Não é mais do que eu. Tem que esperar tal como os outros. Eu também
estou aqui à espera há bastante tempo”, responde o grumete. O marinheiro
toma a resposta como uma afronta, pega na navalha que tem em seu bolso e
espeta-a na barriga do grumete.

Suas órbitas começam a ficar vermelhas. Ao retirar a navalha, o grumete


começa a esvair-se em sangue, tombando sobre o chão em dor. Pouco antes
de morrer dá um grito de agonia. Junta-se logo um reboliço a bordo da S.
Rafael. Todos vão até junto do corpo que jaz no convés. Uns por curiosidade,
outros para tentarem apanhar o marinheiro responsável, querendo fazer logo
justiça com as próprias mãos e atirá-lo borda fora.

O mestre da S. Rafael, Jorge de Sá, ao ouvir o grito do grumete e o reboliço


que se criou a seguir à sua morte manda inquirir junto da tripulação o que é que
se passava.

Ao aproximar-se junto da aglomeração de homens vê então uma poça de


sangue e um grumete estendido no chão. Era um rapaz com cerca de 12 anos
de idade, órfão de pai e tinha sido colocado na Carreira por sua mãe por forma
a receber algum dinheiro.

Junto ao corpo encontrava-se o responsável pelo assassinato preso sobre os


ombros pelos outros marinheiros. “Mas o que é que se passa por aqui? Quem é
que matou o grumete e porque razão? Porque é que esse homem está preso?”,
pergunta Jorge de Sá.

Nisto o marinheiro que o tinha morto falou. “Fui eu quem o matou. Ele insultou-
me e tive que defender a minha honra”. “Mas que afronta é que fez o grumete
para ser esfaqueado? Certamente teve que ser algo bem forte para o sucedido.
Conte-me o que se passou e diz a verdade pois tenho aqui o resto da tripulação
que viu tudo o que se passou. Eu sou a tua única defesa”.

“Ele estava à minha frente e não quis trocar de lugar comigo na fila para o
fogão. Quando lhe fiz o pedido respondeu-me de forma deseducada, logo tive
que defender a minha honra.”

“Mas você não vê que era um miúdo? Um miúdo indefeso que estava a fazer a
sua primeira viagem? O que é que eu direi à sua mãe? Já pensou nisso? Vou
contar o sucedido ao capitão mor D. Afonso de Menezes e ele decidirá o que
fazer, ele é que aplicará a justiça”.

D. Afonso de Menezes ao ouvir o relatado levanta-se da mesa onde estava a


almoçar. “Não há autoridade a bordo. Mas o que vem a ser isto? Jorge de Sá,
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você tem que ter mão nos seus homens. Isto não pode acontecer no meu
navio. Precisamos de uma tripulação coesa por forma a podermos vencer todas
as contrariedades da viagem.
Para o assassino do grumete, já que ele confessou já tenho a pena a decretar.
Irá levar 200 vergastadas, será colocado a ferros até chegarmos a Goa e viverá
com meia ração. Assim que chegar a Goa entregá-lo-ei para ser julgado.”

O mestre, Jorge de Sá concorda com D. Afonso de Menezes. “Vossa Senhoria


fique sabendo que o homem será imediatamente punido com as 200
vergastadas e será em seguida colocado a ferros”.

Chegado ao convés, Jorge de Sá decreta a sentença. “Nossa senhoria, o


capitão mor, D. Afonso de Menezes já tomou a decisão. Depois de ter ouvido o
relatado decidiu que o marinheiro receberá 200 vergastadas sendo em seguida
colocado a ferros e viverá com metade da ração até chegar a Goa. Aí será
entregue às autoridades e julgado. Peguem nele, levem-no até ao mastro
principal e atem-no. Preciso de um voluntário para lhe dar as vergastadas. Caso
ninguém se voluntarie eu o farei pessoalmente” .

Com o marinheiro agarrado ao mastro principal, as vergastadas começaram a


ser infligidas. Como instrumento de flagelação ia utilizar-se uma corda do
mastro, pois não havia nenhum chicote a bordo. Apesar de ser uma solução de
recurso, o peso da corda e os nós que foram dados à mesma faziam com que o
tratamento que o culpado ia sofrer fosse ainda pior que as vergastadas de
infligidas por um chicote.

Cada vez que as mesmas tocavam nas costas do condenado, a sua cara dava
espasmos de dor. Tal era o sofrimento que o marinheiro ao fim de umas 20
vergastadas perdeu a voz não conseguindo mais gritar.

Os marinheiros que observavam o castigo comentavam entre si a justiça do


castigo. Quase todos estavam de acordo com a decisão de D. Afonso de
Menezes. Chegados a metade do castigo o marinheiro acaba por desmaiar.

O capataz que se encontra a infligir o castigo pergunta ao mestre Jorge de Sá


se devem continuar com o castigo visto o homem estar inanimado havendo o
risco de não conseguir sobreviver ao castigo. “D. Afonso de Menezes disse
explicitamente que seriam ministradas 200 vergastadas. Desse modo com ele
desmaiado ou não temos que prosseguir com o castigo, aconteça o que
acontecer.” E assim foi, as 200 vergastadas foram ministradas ao marinheiro já
inanimado. No fim do castigo mal lhe foram desprendidas as cordas que o
amarravam ao mastro ele cai ao chão que nem uma pedra. Uma poça de
sangue começa a formar-se, não parando de sair sangue de sua boca. Todos
ficam a olhar em silêncio para o corpo jazido no convés. Ao fim de algum tempo
o marinheiro acaba por morrer, juntando-se ao grumete.
O capelão da S. Rafael decide rezar uma missa pelas almas dos dois falecidos,
juntando-se o resto dos homens à cerimónia. Lembra a cada um deles que
andamos cá temporariamente e que devemos fazer o melhor de nós próprios
para contribuir para o melhor de todos.

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No fim da cerimónia, os dois corpos são envoltos nuns cobertores velhos e


atados a uns pesos por forma a que fossem atirados borda fora. Isto era feito
por forma a que os corpos ao serem atirados para a água não ficassem a boiar
e se deslocassem para a profundeza dos oceanos, sendo esse o seu túmulo.
Assassino e assassinado partilhariam por todo o sempre o local de repouso.

Dois marinheiros pegam no corpo do grumete e outros dois no corpo do


marinheiro assassino. Uns seguravam a cabeça e os outros as pernas de cada
um dos corpos. O capelão faz o sinal da cruz a cada um dos corpos inertes e
no fim dá o consentimento para que o mesmos sejam atirados borda fora.
Martim vê o corpos caírem ao mar e serem abraçados pelo mesmo a caminho
das profundezas do oceano. Ao início conseguem vislumbrar-se os corpos a
descer mas à medida que a profundidade aumenta torna-se cada vez mais
difícil ver os mesmos até que desaparecem na escuridão dos oceanos.

“Duas mortes estúpidas que não tinham razão para o ser”, diz Francisco de
Arriaga a Martim. “Os homens ao fim de algum tempo no mar cometem
loucuras que não cometeriam em Terra. Os nervos começam a aparecer e sem
explicação dão-se estas coisas”. Martim ouve as suas palavras mas escuta-as
sem lhes prestar atenção. Nunca tinha visto um assassinato diante dos seus
olhos e sentia-se horrorizado ao ver o que o homem era capaz de fazer em
momentos de loucura. Sentia-se extremamente enjoado depois de ter visto o
que acabara de ver. Acorre para o convés, debruça-se sobre o navio e começa
a vomitar.

Não consegui aguentar ver tanta maldade. A morte do grumete, a tortura do


marinheiro. Como era tão fácil acabar-se com a vida de um homem, pensava
ele. Enquanto vomita, sente uma mão sobre o seu ombro. Era de novo
Francisco de Arriaga. “Martim, isto custa ao princípio, a primeira vez que vi a
morte diante dos meus olhos também me senti angustiado, é normal. Mas vais
ter que te habituar a vê-la, pois infelizmente a morte faz parte do dia a dia de
um marinheiro”.

Mais uma semana de viagem se passara. Martim, a pedido de Francisco de


Arriaga procede à medição da latitude recorrendo uma vez mais ao astrolábio.
Tiradas as coordenadas e depois de ter examinado a carta portulano verifica
que se encontram perto da Serra Leoa.

“Francisco de Arriaga, acabei de efectuar medições e segundo as mesmas


estamos próximos da Serra Leoa”.
“Boas notícias. Dá ordens ao homem no leme para começar a virar em
direcção a sudoeste. Agora é que vai começar a parte mais longa e perigosa da
viagem. Vamos ter que ir em direcção a terras de Brasil por causa dos fortes
ventos de Sudeste”.

“Vou dar-lhes imediatamente as instruções”. Martim dirige-se ao homem que


estava naquele momento ao leme. “Bom dia, de acordo com as últimas
medições estamos próximos da Serra Leoa. É chegado o momento de virar
para Sudoeste, em direcção a terras de Brasil por forma a conseguir navegar à
bolina”. “Se assim o diz cá vamos nós. Para sudoeste então”, responde o
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marinheiro. Os navios começam então a descrever uma curva para a direita em


direcção a Sudoeste.

Mais duas semanas se passaram. Sem vento que auxilie a locomoção dos
navios encontram-se os mesmos parados no meio do oceano.
“Porque estamos parados há tanto tempo Jorge de Sá?”, pergunta Martim ao
mestre.

“Não há vento. Sem ele não nos podemos deslocar. Não se sabe o tempo que
poderemos por aqui ficar. Serão horas, semanas, meses, quem sabe? O certo
é que se ficarmos muito tempo estaremos condenados à morte pois faltar-nos-
ão os víveres e água para sobrevivermos”. Martim escuta as palavras do velho
mestre apreensivo. Naquele momento tem consciência das dificuldades da
viagem. Quase tudo dependia de factores sobre os quais não tinha poder de
influência ou decisão.

Mais dois dias e nem sinal da mais leve brisa. Os navios continuam parados
sem se movimentar como rochas com as raízes numa montanha. O capelão da
S. Rafael decide celebrar uma missa ao Senhor. Sem soluções para o problema
que enfrentavam havia que recorrer ao divino. Todos os homens juntam-se a
ele e começam a rezar ajoelhados em direcção para a cruz.
Com toda a força e fé que lhes inunda a alma pedem piedosamente a presença
da mais leve brisa de vento.

Para passar o tempo os homens juntam-se no convés. Com uns barris


improvisados de mesa e bancos começam a jogar às cartas. Como meio de
pagamento das apostas jogam as porções de ração ou parte do dinheiro que
receberiam ao chegar a Goa, se é que lá chegariam com vida.

Os membros do clero começam a olhar com desdém a estes jogos e


comportamentos dos homens, argumentando que esses eram jogos do
demónio que apenas trariam infelicidade a todos os que o jogassem.
Apesar da reprovação da igreja D. Afonso tolerava este comportamento por
parte dos homens, pois enquanto jogavam tinham como se entreter e passar o
tempo.

Além dos jogos de azar havia os que tocavam para se entreterem a si e aos
outros. Uns tocavam flauta, pandeireta, tambor e em conjunto dançavam,
procurando desse modo esquecer-se das agruras e preocupações da viagem
nem que fosse unicamente por uns curtos instantes.

Uma semana se passou e nem vestígios de vento. Como forma de entreter os


homens, D. Afonso de Menezes manda proceder à reparação e manutenção
dos navios. Assim procedeu-se à manutenção das velas, cordas, lavagem dos
convés, reparações de pequenas fugas no porão.

Com o passar dos dias as reservas de mantimentos começam a baixar. Para


evitar que se esgotem, D. Afonso de Menezes ordena que se enviem batéis
para o mar e se tente pescar. São então lançados batéis à água descendo os

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marinheiros em direcção aos mesmos, começando a lançar em seguida redes


ao mar na esperança de encontrar algo para comer.
Lançadas as redes ao mar havia que aguardar algumas horas por forma a que
o maior número de peixes ficasse aprisionado. Passado o momento de espera
havia que puxar as redes e colocar o resultado da safra nos navios.
Da captura conseguiram apanhar algumas lulas, sardinhas e atuns. Apressam-
se a recolher o peixe e enviar o mesmo de volta para as naus. Pelo menos
assim teriam oportunidade de variar a dieta e esquecer momentaneamente o
sabor enjoativo da carne seca, sardinha salgada e biscoito.

Nova manhã começa a romper ao fundo do oceano. De repente os navios


começam a ranger. Entusiasmados os marinheiros juntam-se no meio do
convés e começam a pular e cantarolar de alegria. Tinha acabado de levantar-
se uma brisa pelo que os barcos começam de novo a navegar. O capelão
decide rezar uma missa de graças como agradecimento pelo vento que
finalmente os levaria dali em direcção a terras de Oriente.

Os navios encontravam-se próximos do equador. À medida que se vão


aproximando cada vez mais a temperatura a bordo começa a ser insuportável.
Quando o sol se aproximava do meio dia era bastante penoso trabalhar
especialmente quando a brisa não era suficiente para atenuar os efeitos do sol
abrasivo. Com o calor a qualidade da água começa também a deteriorar-se e
um tom cada vez mais acastanhado começa a ganhar cor junto com um travo a
podre. Quase dá vómitos ao engolir a mesma mas não existe outra opção
senão morrer à sede. Comentavam os homens entre si em tom de brincadeira
que se não morriam do mal ainda morria à conta da cura.

A perda da qualidade da água leva a que os despenseiros decidam informar o


mestre, Jorge de Sá. “Homens, a água não a podemos deitar fora, pois seria o
caminho mais curto para irmos ter com os nossos antepassados. Juntai-lhe
perfume por forma a que se sinta menos o seu cheiro e rezem, rezem para que
chova e possamos aproveitar a água da chuva. Não temos outro caminho que
não aguentar”.

À falta de água começa a juntar-se a falta de comida. Com o calor começam a


desenvolver-se larvas sobre os biscoitos e carne seca conferindo um sabor
bastante ácido à mesma. Acompanhado do sabor começavam também a surgir
doenças em resultado das fracas condições de nutrição e higiene.

Com o calor cada vez mais intenso começa a derreter-se em banha o toucinho,
os figos secos em melaço e a serem invadidos por colónias de larvas.
Acompanhados destes problemas a população de baratas começava a
aumentar. O número chega a atingir tais dimensões que mesmo de dia elas
começam a passear-se sobre o convés sem medo dos homens de tão elevado
que era o seu número.
Enquanto Martim se encontrava a ler a carta náutica, Martim observa umas
patas a passear pela mesma. Observa com maior atenção e visualiza uma
barata a caminhar na maior das despreocupações.
Sem demora pega na barata e esmaga-a com as suas mãos. Fica com as mãos
cheias de suas entranhas amareladas. Um cheiro fétido começa a invadir a
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cabine resultante do acto por si cometido. “Que cheiro horrível esse bicho
liberta”, diz Francisco de Arriaga. “Não chega comer das nossas rações e ainda
libertar esses odores”. “Realmente este bicho só pode ser obra do diabo. Come
tudo o que encontra e possui um odor bastante forte”, responde Martim. “Vou
apanhar um balde e colher água do mar para me lavar, pois já não aguento
este cheiro”.

De repente ouve-se um murmúrio sobre o navio. “Ai da nossa vida! Estamos


desgraçados! A ira divina abate-se sobre nós”, diz um dos despenseiros a
correr do porão em direcção ao convés. “Homem, diz o que se passa”, diz
Jorge de Sá o mestre da S. Rafael. “São as baratas, senhor. Além de terem
invadido todo o navio, com o seu apetite voraz furaram um dos pipos que
tínhamos cheios de água e o mesmo desfez-se. Temos o porão alagado e
agora andamos com falta de água. Como nos vamos aguentar sem ela? “ .

Jorge de Sá ao ver da gravidade da situação, diz-lhe “Tu ouve lá. Não contes
isto a mais ninguém porque não quero que o pânico se comece a espalhar pelo
navio. Temos que começar a racionar a água e esperar que chova. Só um
milagre nos salvará”.

Com o calor que se começa a sentir nos trópicos e associado às péssimas


condições de higiene o universo de percevejos, baratas e outros insectos
começa a causar problemas de saúde aos tripulantes. Alguns dos homens
começam a padecer de borbulhas que começam a enxamear-lhes o corpo . Ao
rebentarem libertavam um fétido cheiro a podre causando em seguida altas
febres e infecções. Em seguida surgia o delírio seguido da morte.

“Isto é a ira de Deus que por nós se abate”, dizia o capelão. “Pelo facto de
sermos pecadores, Deus dá-nos estas tribulações. Temos que rezar, rezar e
pedir para que nos salve”.

O físico a bordo ter acesso aos meios necessários para procurar curar os
homens recorre à única solução que tinha. Com uma navalha afiada golpeava
os homens nos braços deixando o sangue escorrer para uma bacia, sendo
depois atirado ao mar. Pensava-se que o mal que padeciam estava no sangue
e este ao sair levaria com ele todos os males apesar de fazer com que os
homens ficassem ainda mais debilitados.

Outro tratamento utilizado era colocar umas ventosas no corpo. Eram feitas de
vidro e aquecidas sobre o corpo o que causava um efeito de vácuo. Ao fim de
alguns minutos o sangue ficava junto à pele que adquiria uma tonalidade cada
vez mais avermelhada, fazendo com que as bolhas rebentassem e libertassem
o pus. Em seguida as feridas eram lavadas com água do mar por forma a que o
sal queimasse as feridas.

Estava dobrado o Equador, mas mesmo assim a temperatura era bastante


elevada e a falta de brisa durante a noite fazia com que as noites fossem
insuportáveis. Em compensação o céu era de uma limpidez extraordinária.
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O Navegante
por Carlos Carvalho

Martim aproveitava as noites para olhar para o céu. Já não tinha a Estrela Polar
como companheira das noites, mas tinha a possibilidade de vislumbrar a
constelações e estrelas que nunca antes tinha visto, apenas lido sobre as
mesmas. Martim ao vislumbrar a abóbada celeste depara-se quão ínfima é a
importância do homem tal o número de estrelas que habitam o universo. Fica
por momentos a observar a constelação do Cruzeiro do Sul.

Ao contrário da Estrela Polar, esta não se situava sobre o pólo geográfico. Para
determinar com ela o Sul, era necessário traçar uma linha imaginária entre a
Grã-cruz e a Acruz. Contava-se cerca de 5 vezes essa distância. Uma vez
chegados a esse ponto, traçava-se uma perpendicular em relação ao
firmamento do horizonte, encontrando-se então a direcção a Sul.

Numa das noites de viagem, Martim tem o privilégio de vislumbrar um eclipse


lunar. A noite começa a ficar envolta no escuro até que por fim apenas as
estrelas iluminam o mar. Era estranha a sensação de ver a lua desaparecer no
céu diante dos seus olhos. A seu lado a explicar-lhe o acontecimento encontra-
se um padre da Companhia de Jesus. Explica-lhe que o eclipse é o resultado
de a Terra se encontrar à frente do Sol naquele instante impedindo a luz do Sol
de chegar até à Lua. Deste modo consegue visualizar durante os seus olhos
todas as fases da Lua na mesma noite. Sente-se um privilegiado por poder
aceder a este espectáculo.

Durante a viagem ao longo do Atlântico Sul, os marinheiros reparam num


conjunto de peixes que pareciam ter asas e voar. Alguns menos afoitos
saltavam para dentro dos barcos. Martim pega num deles. Começa a observar
o mesmo e verifica que o peixe tem umas barbatanas em forma de asas que
não para de agitar. Com uma tonalidade azulada da cor do céu, o peixe observa
Martim e Martim observa o peixe. “Que privilegiado és tu”, diz Martim. “Como
tens asas consegues conhecer o mundo aquático e o nosso, enquanto eu
apenas posso observar o mundo das profundezas momentaneamente quando
mergulho e sustenho a respiração.” Ao verificar que o seu amigo peixe estava a
ficar cada vez mais aflito pega nele e atira-o de novo ao mar.” Este mal atinge a
água mergulha por uns instantes voltando a saltar de novo para fora na
companhia dos seus amigos peixes. Martim diz-lhe adeus e fica a pensar para
consigo como os oceanos estão cheios de animais diferentes do que aquilo a
que estava habituado. Realmente esta viagem tinha tudo menos monotonia.

Caso contasse em Lisboa aquilo a que tinha acabado de presenciar certamente


muita gente não acreditaria nas suas palavras. Peixes voadores, quem diria que
existiam esses animais que habitavam em dois mundos distintos. O mundo que
se deparava à sua frente era bastante diferente daquele a que Martim estava
habituado.

Enquanto Martim estava a pensar nisto alguns homens que se encontravam no


convés apanhavam com alegria peixes que vinham em sua direcção, enchendo
cestos com os mesmos. Ao menos podiam variar a dieta a que tinham direito.
Sempre era melhor um peixe grelhado que uma porção de biscoito
acompanhado de larvas e carne seca mais dura que nem a sola de uma bota e
meio comido pelas baratas.
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O Navegante
por Carlos Carvalho

Mais a sul, Martim teve a possibilidade de visualizar um grupo de baleias. Ao


longe apenas avistavam os seus repuxos de água mas ao aproximarem-se
podiam constatar o seu tamanho gigantesco. Eram umas autênticas montanhas
andantes tal as suas dimensões.

Martim nunca tinha visto animais tão grandes na vida. Já tinha ouvido falar em
baleias mas agora que podia ver com os seus próprios olhos fica extasiado ao
observar o tamanho das mesmas. Como era possível haver animais tão
gigantescos do tamanho de navios. Estas ao observarem que os barcos se
aproximam começam a brincar, passando ao lado dos mesmos e libertando os
repuxos que de repente inundavam os barcos de partículas de água. Era como
se uma pequena nuvem se levantasse e libertasse as suas águas sobre os
barcos.

“O mar é realmente um mundo de diversidade”, diz Martim para si mesmo.


Como é possível existirem seres tão variados nas suas águas. Montanhas
vivas, peixes que voam.

Enquanto a viagem vai prosseguindo em direcção a sul, a qualidade da água


vai-se deteriorando. Nem mesmo com a adição de perfumes o cheiro fétido da
mesma desaparece. Era necessário ferver a água por forma a que a mesma
pudesse ser bebida, mas cada vez que era necessário beber a mesma era
necessário tapar o nariz, tal era o seu cheiro e sabor.

Alguns como solução de recurso passam a beber vinho fervido por forma a que
saia o álcool pois o capitão mor não autorizava beberem nas horas de serviço,
caso contrário andariam todos bêbados e o navio tornar-se-ia ingovernável.

Ao fundo do horizonte avistam-se umas nuvens. Francisco de Arriaga diz a


Martim. “Pode parecer louco aquilo que eu digo, mas temos que nos dirigir em
direcção àquelas nuvens. Normalmente, recomendaria o contrário por forma a
que se possa fugir de uma tempestade, mas não nos resta outra alternativa que
não ir atrás dela por forma a que seja possível recolher água fresca e limpa.”

Os navios dirigem-se em direcção às nuvens no meio do oceano. O céu


começa a ficar escuro. O mestre dá ordem para recolher as velas, tal era a
velocidade do vento que ameaçava rasgar as mesmas. Durante os trabalhos de
arrumação das velas começam a cair as primeiras gotas de água. Martim ao
sentir cair as primeiras gotas sobre a sua cabeça olha em direcção ao céu e
abre a sua boca. Sente as gotas caírem em direcção à sua boca, enquanto
outras batem na sua face. Como era tão boa a sensação de sentir a água bater
no seu corpo e sentir o seu sabor. Começa então a dançar com os outros
homens tal é a alegria que invade o navio. Como era tão bom beber água que
não tinha sabor, que sabia unicamente a água.

Barricas de água são colocadas ao longo do convés e com o recurso a lençóis


espalhados sobre o mesmo começam a encaminhar a água em direcção às
barricas. Ao fim de dois dias de intensa chuva já tinham reservas para pelo
menos mais três meses de viagem pelo mar pelo que se encontravam a salvo.
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Já não teriam que beber água impregnada de sabores fétidos que os tornava
mais doentes a cada trago que bebiam.

O segredo da sobrevivência no mar estava não só no engenho e arte do


marinheiro mas também e muitas das vezes aliado à sorte e ao acaso que tanto
podia bafejar com a sorte como levá-los à perdição. Martim começa a entender
finalmente as palavras que um marinheiro lhe tinha dito em tempos idos. O local
em que um homem se sente mais próximo de Deus é no mar, tal a sensação de
impotência que o mesmo tem para contrariar todas as contrariedades e
dificuldades que encontra durante o caminho.

Mais três semanas de viagem se passaram. Os navios encontravam-se


bastante a Sul. A cada dia que passava as temperaturas baixavam e começava
a sentir-se frio. As noites acompanhadas dos ventos gélidos eram difíceis de
suportar. Os que tinham que ficar de vigia e sobre o convés procuravam
abrigar-se da melhor maneira que podiam tal era o frio que sentiam e gelava as
suas faces.

Francisco de Arriaga, ao ver a latitude a que se encontravam diz para Martim,


“Estamos a caminhar muito para Sul. É necessário alterar a rota por forma a
que nos desloquemos em direcção a nordeste, senão ainda morremos de frio
ou congelados.

Dois dias depois de terem começado a rumar em direcção a nordeste, as


temperaturas voltam a subir de novo. Agora o clima encontrava-se mais ameno.
É tomada então a decisão de navegar em direcção a Este por forma a irem ao
encontro do cabo da Boa Esperança caminhando em direcção ao Índico. Mas
para tal ainda tinham quase mais um mês de viagem.

Ao fim de umas três semanas de viagem em alto mar começa a avistar-se terra.
Francisco de Arriaga procede à medição da latitude, consulta as cartas náuticas
e constata que se encontravam mesmo próximos do Cabo.

Chama Martim e mostra-lhe a carta náutica. “Estamos a cerca de 15 milhas do


Cabo da Boa Esperança. É lá que termina o Atlântico e começa o Índico. Esta é
uma parte crítica da nossa viagem. Temos que lutar contra a força das ondas,
especialmente umas em forma triangular, perigosas e muito traiçoeiras.
Formam-se porque as duas águas não se misturam e se embatermos contra
uma podem esmagar os navios.
Outro dos perigos é a existência de grandes rochedos. Os ventos e correntes
podem levar-nos em sua direcção e se tal acontecer estaremos perdidos.
Muitas vezes encontramos nevoeiro pelo caminho pelo que andamos meio
perdidos. À mínima desorientação podemos acabar na profundeza das águas
ou esmagados contra os rochedos.”

7. A travessia do Cabo e chegada à Ilha de Moçambique

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por Carlos Carvalho

Os barcos encontravam-se próximos do Cabo da Boa Esperança. O famoso


cabo que Bartolomeu Dias dobrara pela primeira vez em 1487 e onde viria a
perder a sua vida na viagem efectuada com Cabral.

No interior dos navios imperava o silêncio. Os homens olhavam lá ao fundo


para o cabo em sinal de respeito. A sua imensidão que invadia os oceanos e a
névoa em seu redor faziam com que todos olhassem para ele como o desafio
de suas vidas.

Com visibilidade quase nua, Francisco de Arriaga dá ordens ao homem ao leme


para rumar durante umas 2 horas em direcção a sudeste por forma a que fosse
possível contornar o cabo e entrar no Índico.

Era o abandono de suas mães e a entrega às suas amadas. O instinto levava-


os a seguir em frente rumo aos seus destinos.

Durante duas horas rumam em direcção a Sudeste. O vento começa a


intensificar-se e as vagas tornam-se cada vez maiores vindas de bombordo. As
correntes tentam impeli-los em direcção ao cabo.

“Homens, recolham a vela principal, subam aos mastros sem medo que não há
tempo para pensar. Se não agirmos com prontidão acabaremos as nossas
vidas nestas águas malditas”, grita o mestre Jorge de Sá para os marinheiros.

Recolhidas as velas, o vento não pára de aumentar de velocidade. A força das


ondas intensifica-se, começando a aparecer vagas com 13 metros e mais de
altura. Cada vez que o navio subia uma onda e se encontrava no seu topo,
voltava a cair em direcção ao mar com toda a violência, abanando toda a sua
estrutura.

Sobre o porão, correm pipas acabadas de soltar com a violência dos embates.
Água e vinho começam a jorrar sobre o porão.

O capelão juntamente com os padres da Companhia de Jesus começam a


rezar rogando a Deus que lhes valha neste momento de aflição.

Os homens finalizadas as tarefas de recolher as velas começam a atar-se aos


mastros e a dirigirem-se em direcção ao porão de modo a não serem
arrastados borda fora.

Um dos mastros laterais parte-se e cinco marinheiros que ainda se


encontravam a recolher as velas caem ao mar. “Homem ao mar! Homem ao
mar! gritam alguns dos marinheiros”. Mas o que podiam fazer? Se nem o navio
conseguiam controlar o que é que podiam fazer para tentar salvar os pobres
desgraçados que tinham caído ao mar? Apenas podiam ver os marinheiros
desaparecer no meio das vagas que os iam afastavam cada vez mais, ouvindo-
se os seus murmúrios com menor intensidade à medida que se afastavam.

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O Navegante
por Carlos Carvalho

Martim desata a chorar ao ver o que se passa diante dos seus olhos. Que mal
tinham feito estes homens para merecerem triste fim? Porque é que isso
aconteceu a eles e não a ele? O que é que ele era mais que os outros?

Angustiado, continua a olhar para o mar. Francisco de Arriaga aperceber-se do


estado de choque do seu sota-piloto. Abana-o pegando-o pelos ombros e
começa a falar com ele vigorosamente. “Martim, Martim, acorda rapaz. Não há
nada que possamos fazer por eles que não rezar. Temos que nos concentrar
neste momento em salvar a S. Rafael e a nós mesmos. Por eles nada mais
podemos fazer que não rezar. Eles são homens do mar e sabem que as suas
vidas estão em constante perigo. São as circunstâncias da vida. Chorá-los não
nos vai salvar”.

Martim ao ouvir as palavras de Francisco de Arriaga começa a entrar de novo


na realidade. Realiza que por muito que custe perder amigos e companheiros
não há mais nada a fazer que não lutar, pois as suas vidas e dos navios
continuam em jogo e a roleta continua a girar. Havia que lutar para manter o
barco estável e conseguir passar o cabo. Depois de o atravessarem é que havia
tempo para pensar e rezar em todos os que não o conseguiram atravessar.

“Agarrem o leme, agarrem o leme!”, grita Francisco de Arriaga, “não deixem o


barco virar. Atem-lhe cordas para o manter direito, senão as ondas encaminhar-
nos-ão em direcção ao cabo e seremos esmagados que nem uma noz a bater
numa pedra.”

Homens batem com a cabeça no tecto, nas portas, nas paredes cada vez que o
navio desce uma onda. Cada qual tenta agarrar-se com todas as forças para se
manter equilibrado mas a tarefa era quase impossível tal era a violência de
cada embate.

Martim, auxilia Francisco de Arriaga a atar cordas ao leme. “Temos que o atar
para o manter direito, senão é o nosso fim. Força, agarra bem a corda do teu
lado”, grita Francisco.

Uma onda gigante com cerca de vinte metros vem em direcção à S. Rafael, o
navio começa a subir a mesma com toda a velocidade. Ao descer em direcção
ao oceano embate com violência. Uma das pipas no porão que se encontrava
solta embate contra o casco e abre uma fissura no mesmo. Começa a jorrar
água para dentro do navio.

Os marinheiros entram em pânico. “ Que Nossa Senhora da Agonia nos valha


que vamos ser todos mortos. O barco se continuar a meter água leva-nos com
ele lá para o fundo”. Muitos pressentem que é chegada a sua hora.

Jorge de Sá com a ajuda da experiência e dos seus nervos de ferro grita para
os seus homens. “Calma que nada está perdido. Só temos uma pequena fuga
de água, se a conseguirmos tapar salvamos o navio, por isso não fiquem
parados. Comecem a pegar numas tábuas, pregos e panos de calafetagem que
com a ajuda de Deus vamos conseguir tapar a fuga”.

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O Navegante
por Carlos Carvalho

A água continua a entrar pelo barco, começando a dar pelo joelho dos
marinheiros. Jorge de Sá não se cansa de gritar para os mesmos. “Vá
depressa, quero isso tapado, peguem em baldes e comecem a mandar a água
lá para fora. Vamos depressa que se não se mexerem morrem é pela minha
espada”.

Na cabina de pilotagem, Martim, Francisco de Arriaga e dois marinheiros fazem


o que podem para segurar o leme. “Força e coragem. Se vencermos esta
tribulação seremos capazes de qualquer coisa”, diz Francisco de Arriaga.

Com a ajuda das tábuas, pregos e panos a água no porão começa a deixar de
entrar ficando o navio de novo estanque. Jorge de Sá suspira de alívio e vê na
cara de seus homens um sinal de agradecimento. Não fossem os seus nervos
de ferro e estariam certamente neste momento a caminho de outro mundo que
não Goa.

Jorge de Sá procura esconder a sua alegria. Havia que manter os seus homens
em linha e não podia dar confiança. Começa a gritar para os homens: “Agora
que a fuga está vencida não é tempo de festas e descanso. Temos que tirar
esta água toda daqui para fora, não há tempo a perder. Vá continuem a levar os
baldes lá para cima”.

Ao fim de duas horas o tempo começa a compor. A neblina desaparece


gradualmente e os raios de Sol voltam a aparecer. Martim apressa-se a olhar
para a janela da cabine de pilotagem. Encontra ao fundo terra do seu lado
esquerdo, a estibordo do navio. Tinham dobrado finalmente o cabo e
encontravam-se em águas do Índico.

Os homens correm em direcção ao convés e começam instantaneamente a


dançar. Tinham acabado de passar o cabo.

Com o tempo começam a avistar-se os outros barcos, faltando apenas sinal de


um deles, a Santa Maria. Fazem sinais com bandeiras aos outros barcos para
saberem notícias. Perguntam pela Santa Maria mas ninguém consegue dar
uma resposta.

D. Afonso de Menezes dá-a como perdida. “Era um barco mais maneiro e


menos resistente. Não deve ter aguentado as marés e foi em direcção ao
promontório. Paz à Santa Maria e a todos os seus homens.” Os homens
começam a consciencializar-se que esse era o cenário mais provável. A força
das ondas, das marés e dos ventos devem tê-la arrastado em direcção às
rochas.
Consternados olham uma vez mais para noroeste, oeste a ver se a conseguem
avistar, mas não há sinal dela.
O capelão começa a rezar pela alma de todos os mortos e desaparecidos.
Cabisbaixos, os homens escutam com tristeza e sentimento de humildade as
palavras do capelão. O mar é uma criança. Gostava de brincar e que brinquem
com ele, mas por vezes tem inveja de quem nele navega e reclama para si as
suas vidas para se sentir para sempre acompanhado.

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O Navegante
por Carlos Carvalho

Era um momento de tristeza para todos os que tinham sobrevivido. Tinham


conseguido aguentar as mais variadas atribulações até agora. O ataque dos
gafanhotos, os calores dos trópicos, a má qualidade da água e falta da mesma,
comida podre, doenças, mas havia algo ainda mais difícil de controlar: o mar
que tanto os atraía mas que por vezes reclamava companhia para todo o
sempre.

Martim, sente uma enorme dor no seu coração. Quão fútil e frágil era a vida.
Nada mais era que uma vela que podia perdurar até ao fim da cera, ou vir uma
aragem que apagasse a sua chama.

Ao mesmo tempo que pensava na metáfora da vela, lembra-se de todos os


sacrifícios que teve que fazer para realizar a sua viagem. A zanga com o seu
pai, ter deixado sua mãe, Inês em Lisboa. Será que tudo isto vale mesmo a
pena?

A história das velas invade de novo o seu pensamento. Nem todas as velas são
iguais. Há-as perfumadas, há-as de várias cores e as que têm diferentes fins e
utilizações. Umas criadas para iluminar as casas, outras para servirem de
elemento de decoração, outras para representarem o espírito.

O seu destino era viajar e conhecer o mundo, não seria feliz vivendo em Lisboa
junto de seus pais e a fazer o que não gosta. Ele era uma vela viajante e como
tal tinha que cumprir a sua função e caminho.

Três dias se passaram e os navios, agora quatro, já que a caravela Santa Maria
se tinha perdido, resolvem parar para pescar. Os homens lançam os batéis à
água e começam a lançar as redes. Martim estava eufórico pelo facto de ser a
primeira vez que presenciava uma pescaria no Índico. Seriam os peixes
semelhantes ao do Atlântico? Caso existissem espécies comuns nos dois
oceanos será que o seu sabor era semelhante ou o facto de habitarem águas
diferentes conferia-lhes outro sabor?

Os homens ao lançarem as redes tinham apenas um pensamento na cabeça,


fazerem uma boa pescaria para variarem a dieta. Estavam dispostos a correr
todos os riscos que pudessem e pagar a peso de ouro por comida fresca
diferente daquela a que eram submetidos todos os dias: carne seca, peixe
salgado, biscoito infestado, comida ratada. O facto de poderem comer algo
fresco valia mais que tudo.

Levantam-se as redes. Uma grande expectativa se gera entre os homens. Com


dificuldades começam a arrastar as redes em direcção ao barco. De tão
pesadas que as mesmas se encontravam era sinal que a faina devia ser farta e
teriam peixe fresco para os próximos dias. O que sobrasse seria lavado com
água salgada e colocado em barricas para se conservar.

Ao caírem os primeiros peixes no convés depressa se gera uma grande


azáfama e alegria no barco. Os grumetes apressam-se a ir buscar caixas de
madeira onde colocavam sardinhas a saltarem cheias de vida, lulas que

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enchiam o convés de tinta escura tentando ocultar-se das mãos que iam em
seu encontro, pargos, garoupas de cor avermelhada e com pintas azuladas.

Martim fica entusiasmado ao ver a quantidade e variedade de espécies que


habitavam o Índico. Existiam espécies em comum com o Atlântico, mas
também existiam peixes que ele e alguns dos marinheiros nunca antes tinham
visto. As suas veias fervilhavam de emoção. Estar a viver este momento, esta
partilha de descoberta com o resto da tripulação, uma comunhão de
sentimentos e emoções.

Estamos perto do meio dia solar, momento em que o sol se aproxima do seu
zénite. Martim volta a ler no astrolábio as coordenadas que lhe permitem
calcular a latitude. Com recurso à carta piloto calcula o ponto onde se
encontram e dá conta do mesmo a Francisco de Arriaga. “Encontramo-nos a
cerca de 260 milhas da ilha de Moçambique de acordo com as últimas leituras
no astrolábio”, informa Martim.

“Obrigado pela informação, Martim. Vou avisar D. Afonso de Menezes do facto.


Ele tomará então a decisão de aportarmos ou não no porto da ilha de
Moçambique”. Apesar de Francisco de Arriaga julgar que deviam aportar no
porto de Moçambique por forma a reabastecer as naus de víveres frescos e
água, a última decisão de aportar ou não cabia sempre a D. Afonso de
Menezes que era o capitão-mor da frota. Ele tinha sempre a última palavra.

“Vossa Senhoria, tenho uma informação para vos dar. De acordo com as
últimas leituras na carta piloto, encontramo-nos a cerca de 260 milhas da ilha
de Moçambique.” “Obrigado pela informação Francisco de Arriaga. Acabei de
ser informado há pouco do estado dos navios. Temos alguns mastros partido,
uns ligeiros rombos nos cascos, e outros danos. Desse modo acho que temos
que atracar no porto da ilha de Moçambique para proceder aí ao
reabastecimento e todas as reparações necessárias.”

“Com a licença de D. Afonso irei então dar indicações para rumarmos em


direcção à Ilha. Dentro de uma semana e meia chegaremos lá se se mantiver a
velocidade actual do vento.”

A S. Rafael navegando à conserva com o resto da frota caminha em direcção à


Ilha de Moçambique. Os navios a cada milha que sulcavam navegavam em
direcção à Ilha. Os homens exprimiam a sua felicidade ao saberem que iriam
parar por uns dias. Isso permitia algum tempo de diversão e podiam esquecer
por uns momentos as agruras da viagem.

Martim olha para o mar em direcção a Nordeste. Sente o chamamento de Goa,


trazido pelo vento. A sua voz era cada vez mais intensa à medida que iam
subindo a costa africana. Era uma voz feminina, suave e doce que o deixava
sereno e cheio de paz cada vez que a ouvia chamar pelo seu nome “Martim,
Martim, … “.

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por Carlos Carvalho

8. A Ilha de Moçambique

Subindo a província do Natal e rumando a norte, eis que os barcos chegam à


ilha de Moçambique.

Francisco de Arriaga procede às indicações para aportarem no porto.


A ilha de Moçambique era um ponto estratégico para a carreira da Índia. Servia
de ponto de reabastecimento para as naus permitindo a carga de mantimentos
frescos, água e manutenção dos navios. Militarmente possibilitava o controlo
das acções dos mercadores árabes que não viam com agrado a presença de
portugueses nestas águas, pois os portugueses com a rota do Cabo tinham
tirado o monopólio das especiarias e sedas com a Europa, colocando os
produtos nos mercados da Flandres a preços inferiores praticados por estes e
Veneza.

A ilha tinha sido inicialmente aproveitada pelos mercadores árabes que a


usavam com fins semelhantes aos dos portugueses, mas nos últimos anos com
o apoio de alguns patriarcas locais que viam em Portugal um aliado contra o
poderio árabe e turco, tornara-se possível para a Coroa Portuguesa passar a
dominar esta área.

Aportados na ilha, D. Afonso de Menezes dá ordens imediatas para que se


comece a proceder à reparação dos navios. Aos homens é dado o direito de
permanecer em terra durante o dia estando obrigados a recolher-se antes do
por do sol por forma a evitar problemas e conflitos com a população da ilha.

Uma vez chegados a terra, o capelão mais os elementos da Companhia de


Jesus, juntamente com o pároco local celebram uma missa de acção de
Graças. A tripulação escuta com grande fé as palavras dos sacerdotes.

Apesar de a ilha ser agora dominada pelos portugueses a maioria da sua


população professa a fé islâmica, sendo os católicos uma pequena minoria,
mas as duas comunidades viviam em estabilidade existindo mútuo respeito
entre os cristãos e muçulmanos que habitavam a ilha, pois estes apesar de
muçulmanos não viam com bons olhos o poderio do império Turco que
procurava aglomerar as rotas comerciais, e o facto de os portugueses usarem a
rota do Cabo conferia à ilha uma importância que a mesma nunca tivera
anteriormente. Antes era periférica ao nível das rotas do comércio e agora tinha
passado a ter uma posição central.

Martim fica maravilhado ao ver a arquitectura da ilha. Era bastante diferente


daquela a que estava habituado, predominando no seu estilo a influência árabe
com as suas portas, janelas e mesquitas.

Martim fica espantado com a forma como as casas se encontram alinhadas, as


mesquitas, o porto, o forte em construção, as igrejas ao lado das mesquitas. A
confluência das culturas, a fusão das mesmas mostra-lhe que a convivência
entre os povos é possível, bastando para tal que haja tolerância e compreensão
de parte a parte.

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A ilha possui pouca vegetação, sendo a maioria rasteira e alguns arbustos de


média dimensão. Isto explicava-se pelo forte calor aí suportado, pelos ventos
vindos da monção que afastavam as nuvens, sendo a chuva uma raridade por
aquelas paragens. Para aceder à água era necessário construir poços bastante
profundos.

A baixa altitude permitia vislumbrar a grandes distâncias excepto quando o


vento se levantava, arrastando consigo a terra e tornando desse modo a
visibilidade reduzida.

Como a maioria da população pertencia à doutrina do Islão, não existiam as


típicas tabernas a que os marinheiros e soldados estavam habituados a
presenciar. Em alternativa existiam casas que serviam umas bebidas feitas de
chá e hortelã, sendo a mesma servida aos clientes ainda quente. O sabor da
bebida era bastante agradável, existindo no fim um sabor bastante adocicado a
hortelã que garantia uma sensação de frescura e bem estar.

Os homens locais encontravam-se nesses pontos e por aí permaneciam


sentados durante longas horas do dia contando histórias uns aos outros.
Histórias fascinantes em que se contava a vida de homens místicos, sufis,
conquistadores, animais míticos.

Martim sente uma frustração pelo facto de não saber falar árabe, não podendo
por isso entender o que os homens por aí falavam. O pouco que conseguia
perceber das conversas devia-o a um dos membros da tripulação que falava
árabe e por vezes servia de tradutor contando a Martim e ao resto dos seus
companheiros aquilo que os outros estavam a falar.

“Como gostaria de poder trocar ideias, histórias com aquelas gentes, mas
infelizmente não nos entendemos na mesma língua”, pensava Martim para
consigo.

Tinha de se contentar em beber a bebida feita de chá e hortelã que nunca antes
tinha bebido. Adorava passar as tardes à sombra a bebericar o chá e ouvir os
anciãos contarem as estórias se bem que não entendia muito daquilo que
diziam, mas os seus gestos, expressões mantinham-no completamente
hipnotizado. Ao contrário do vinho, aguardente ou grogue que tinha bebido na
Ribeira Grande em Santiago, Cabo Verde, o chá não alterava o estado de alma
de quem o bebia mas apesar de não se ficar eufórico com a sua bebida ficava-
se mais relaxado e ao mesmo tempo desperto. As ideias desenrolavam-se a um
ritmo diferente daquele a que Martim estava habituado. Sentia-se mais desperto
e atento sobre o que se passava em seu redor.

Quando não se encontrava a beber o chá, Martim deleitava-se em ficar junto à


praia por baixo de umas palmeiras, ouvindo o som das ondas a bater na areia.
Era uma enorme sensação de paz que inundava o seu corpo. O vento a bater-
lhe na sua cara, o som das ondas, o canto dos pássaros. Martim sentia-se por
vezes o único habitante do mundo, de seu mundo, fazendo jogos mentais em

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que entrava num estado diferente de consciência e meditava para consigo


como era bom a convivência entre diferentes povos e culturas.

De noite, já no barco, Martim delicia-se a olhar para o céu iluminado pela


profusão de estrelas que o habitam e pela lua sua companheira de viagem.
Escuta ao fundo o som das cigarras que não param incessantemente de tocar
durante toda a noite.

Ao contrário do dia, durante a noite o tempo era mais fresco e agradável. Uma
brisa corria sobre a S. Rafael, batendo a mesma sobre a face de Martim
enquanto este observa os céus. Deitado sobre o convés e abstraído de tudo o
que o rodeia nem dá conta de Francisco de Arriaga que se aproxima e o
chama. “Martim, Martim da Nóbrega!”, nada, Martim de tão concentrado se
encontrar nem se apercebe que o chamam.

Francisco de Arriaga resolve então puxar-lhe um dos braços. Aí nesse instante


é que Martim se apercebe que o estavam a chamar. “Peço perdão a vossa
senhoria, mas nem me apercebi que me estava a chamar. Estava tão distraído
a olhar para o céu e para a profusão de estrelas que o habitam que nem dei
conta da sua chegada”.

“Não faz mal”, responde Francisco de Arriaga. “Eu também gosto muito de ficar
deitado a olhar para o céu e as estrelas. Se soubermos ouvi-las com atenção
conseguimos ouvir aquilo que elas nos dizem. Sabes, as estrelas são como
flores que habitam os jardins dando uma profusão de cores ao nosso céu. Os
conjuntos das mesmas formam os canteiros, ou as constelações, existindo uma
relação de vizinhança entre as mesmas. Ao conjunto dos canteiros temos o
céu, que é o jardim mais belo que eu já vi na minha vida. Aqui ao fundo no
horizonte à minha direita, estás a ver? Está o canteiro mais bonito do hemisfério
Sul, o cruzeiro do Sul, que nos indica o caminho para Sul. Como vês tudo na
vida tem um sentido. No hemisfério Norte temos a flor mais bela de todas as
flores sobre a qual as outras se curvam e rodam, a estrela Polar. Aqui a Sul,
não temos a companhia dela, mas temos um canteiro muito especial formado
por quatro estrelas que todas as noites nos indicam a direcção a Sul. Como sua
guardiã temos o canteiro de Centauro que todas as noites zela pela sua
segurança ”.

Martim nunca tinha ouvido na vida a comparação entre o céu e um jardim,


constelações e canteiros, estrelas e flores, mas de facto o céu era povoado por
uma profusão de estrelas que eram a companhia de um marinheiro durante as
noites, as suas confidentes, guardiãs e anjos da guarda que não os deixavam
perder-se no meio das águas, indicando-lhes o caminho.

De facto Martim já nem se podia imaginar sem a companhia das estrelas. Elas
eram o seu guia durante a noite permitindo-lhe determinar com exactidão o
ponto geográfico onde se situava e as suas confidentes, pois era a elas a quem
Martim confiava as suas saudades, sonhos e anseios.

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No dia a seguir Martim volta à loja onde os homens se reuniam para conversar.
Com o apoio do membro da tripulação que falava árabe Martim volta à casa
onde se reuniam os homens da ilha para passarem o tempo a beber chá e
conversar. Um dos velhos que ali estava sentado a beber o chá, pergunta ao
tripulante da embarcação se estavam interessados em ouvir alguns ditados e
contos. O marinheiro pergunta a Martim, e este diz que sim, pois estavam ali
para aprender mais de suas estórias e cultura.

O velho todo contente começa então a contar alguns ditados árabes. “Existem
no mundo dois tipos de inveja”, refere o velho ancião, “um deles é bom e o
outro é mau. O bom é quando vemos alguém superior a nós e queremos ser
como ele, o mau é quando desejamos a sua queda”. Martim fica entusiasmado
ao ouvir essas palavras sábias. De facto, nunca tinha pensado que existissem
duas visões para a inveja. A mesma podia ser algo de positivo, levando-nos a
procurar o melhor de nós mesmos, a superar-nos ou destrutivo, a procurar o
mal dos outros apenas porque nós não somos capazes de nos encontrar no
mesmo nível.

Continuando com suas histórias, o ancião continua contando outra “Um rico
joalheiro certo dia decidiu viajar necessitando para isso de atravessar o deserto.
Infelizmente durante a travessia foi atacado por um bando de ladrões que lhe
retiraram toda a comida, água e jóias. Desesperado, o joalheiro vagueou,
vagueou pelo deserto sem comida nem bebida. Quase a desmaiar vislumbra no
horizonte um saco. Decide acorrer em direcção ao mesmo e fica com a ideia de
que o saco é um saco cheio de grãos de trigo. Respira de alívio pois assim
podia salvar-se. Ao abrir o saco volta a ficar em desespero. Em vez de o saco
conter trigo encontrava-se cheio de pérolas. Como podem ver a riqueza de um
homem é dependente do que o mesmo pode adquirir com o que tem. Neste
caso as pérolas não lhe valiam de nada pois não o alimentavam.”

Martim, enquanto vai bebendo mais um trago da sua bebida à base de chá e
hortelã delicia-se a ouvir as histórias do velho ancião. Nunca tinha pensado que
a cultura islâmica fosse tão rica e cheia de sabedoria. A ideia errada que
possuía mas dominante era de que o Islão era uma religião cheia de heresias
que existia apenas com o objectivo de destruir o cristianismo. Afinal, começava
a vislumbrar que era uma cultura cheia de riquezas e sabedoria e que havia
homens bons e maus tal como no cristianismo ou em outras religiões ou povos.

“Existia numa aldeia um homem sábio já com bastante idade a quem todos
procuravam aconselhar-se. Mas existia um grupo de homens que com inveja da
sabedoria do sábio resolvem colocar a sua sabedoria em cheque. Um deles
virou-se para o outro e disse: “Já sei o que fazer para desacreditar o sábio.
Vou apanhar num pássaro, segurá-lo no meio das mãos e perguntar ao sábio
se o mesmo está vivo ou morto. Se ele responder vivo, esmago-o e todos verão
que o sábio se enganou, se disser morto, soltarei o mesmo e todos verão que
ele mentiu.” . Resolvem apanhar um pássaro e dirigir-se ao sábio. “Boa tarde, o
pássaro que tenho nas mãos está vivo ou morto?”, pergunta um dos homens.
Nisto o sábio responde-lhe : “A resposta à sua pergunta encontra-se nas suas
mãos.” Querem ouvir mais alguns contos?“, Martim acena que sim, que conte

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mais histórias pois estava admirado com a sua beleza, simplicidade e


sabedoria.

“Um certo dia numa aldeia, um grupo de homens decidiu partir em busca de um
tesouro. Ao fim de algum tempo e depois de terem aberto alguns buracos
encontraram-no. Ao abrirem a caixa enterrada verificaram que estava cheia de
moedas de ouro, estando todos ricos. Estando com fome, pediram a um deles
para ir à aldeia buscar comida. Este pensou para si “Vou buscar a comida mas
aproveito e coloco veneno para os matar. Se eles morrerem fica tudo só para
mim”. Ao regressar da aldeia com a comida envenenada, os outros decidem
matá-lo pois assim era menos um por quem dividir as riquezas. No fim decidem
festejar comendo a comida que o outro trouxera. Como resultado morreram
envenenados ficando o tesouro sem dono, voltando de novo a perder-se nos
tempos”.

“Um fazendeiro tinha um empregado que por ser vesgo via tudo a dobrar. Certo
dia o patrão pediu-lhe para trazer uma garrafa de azeite que estava numa
prateleira. O empregado ao ver duas, voltou ao pé do patrão e disse-lhe : “Há lá
duas garrafas. Qual delas é que trago?”, o fazendeiro ao saber que ele era
vesgo e querendo brincar com a situação diz-lhe: “Parte uma e traz a outra.” O
empregado lá foi e na volta vem de mãos vazias. O patrão pergunta-lhe : “Mas
então não trazes a garrafa contigo?”, “Fiz como me mandou. Parti uma delas,
só que ao partir uma a outra desapareceu e não pude trazer nenhuma” “.

Como se estava a aproximar o fim do dia e tinham que se apresentar junto dos
navios, Martim e o marinheiro despedem-se do ancião e agradecem-lhe pela
tarde muito bem passada e pelas histórias que o mesmo lhes contara.

Martim, especialmente fica fascinado com o modo hábil com que o velho
contava as histórias e com a mensagem subjacente a cada uma delas. Afinal
existia uma universalidade ao nível do pensamento humano, pensava Martim
para consigo. Pois duas culturas diferentes tinham meios de pensar afinal
comuns e ditados com mensagens semelhantes. O Homem era um ser com
pensamentos similares independentemente do sítio onde nascera, fora criado,
credo adoptado, vivência tida, cultura adquirida.

Uma semana e meia já se passara desde que os barcos da Carreira da Índia


atracaram no porto da ilha de Moçambique. Os barcos que necessitavam de
reparações já as tinham tido, especialmente a S. Rafael que tinha uma pequena
ruptura no casco aquando da travessia do Cabo da Boa Esperança e um dos
mastros laterais necessitara de ser reparado. Os outros navios apesar de
também possuírem algumas mazelas resultantes da travessia dos oceanos
tinham menos danos pelo que as reparações foram efectuadas mais depressa.

Os barcos voltaram a encher-se de mantimentos para o resto da viagem. As


pipas com as reservas de água foram cuidadosamente despejadas, limpas por
forma a remover o lodo que se desenvolvera no seu interior, lavadas com sal,
pedras e de novo em água doce por forma a que os vestígios do sal
desaparecessem. Em seguida voltavam a encher as mesmas de água limpa e
cristalina que serviria para lhes matar a sede no meio do imenso Índico. Carnes
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secas foram também para os navios tal como peixe seco ao sol, especialmente
sardinhas que a população local pescava nos meses de desova da mesma
quando se aproximava da costa sendo posteriormente seca ao sol.

Ainda faltavam cerca de dois meses de viagem até que chegassem ao seu
destino final, Goa.

Iriam subir a costa Oriental de África passando pelo estreito entre África e
Madagáscar, Mombaça, Quiloa, passar junto ao mar Vermelho e em seguida
rumar em direcção a Goa.

9. Partida e subida da costa Oriental até Ormuz

Dia da partida rumo a Goa. O capelão da S. Rafael juntamente com os


elementos da Companhia de Jesus resolvem celebrar uma missa junto às naus
por forma a que sejam abençoados pela graça divina durante o percurso
restante da viagem. Os habitantes locais, apesar de na sua maioria não serem
católicos juntam-se junto ao porto vendo a tripulação concentrada ao ouvir as
palavras dos sacerdotes.

Terminada a cerimónia, D. Afonso de Menezes, o capitão-mor da carreira da


Índia dá ordens para que a tripulação suba a bordo. É feita uma contagem dos
homens a bordo e é informado o capitão de que há 3 homens a faltar de acordo
com as contagens. D. Afonso de Menezes, para não atrasar mais a partida dá
informações às autoridades locais dos homens que faltam que seriam punidos
por deserção se fossem encontrados dando finalmente ordem de partida.

Estava-se perto do meio dia. Com as velas desfraldadas, os barcos começam a


deslocar-se. Segue em frente a S. Rafael e as outras no seu encalço subindo-
se a costa de África Oriental em direcção a Goa.

Martim junto à cabine de pilotagem, volta-se para trás vendo cada vez mais
distante dos seus olhos a ilha de Moçambique, terra onde pudera constatar que
afinal os homens pensam de maneira semelhante uns dos outros. Não existiam
pelo que constatara culturas fortes e culturas fracas, mas tão apenas diferentes
modos de olhar para a mesma realidade. Ao contrário do que lhe faziam ver, o
homem era semelhante no modo de pensar em todos os lados, não existindo
superioridade de uns face aos outros.

Uma semana já se tinha passado desde que tinham partido de Moçambique.


Os homens nos tempos livres aproveitam para jogar jogos de azar, apesar de
os mesmos serem mal vistos pelos elementos da igreja.

Homens havia que com o vício do jogo apostavam a porção de vinho que
tinham, o que permitia aos que ganhavam as apostas beber um pouco mais
durante o resto da viagem e vender o excedente que tinham a bom preço
muitas das vezes aos próprios jogadores que perdiam.

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Apesar de os elementos da Companhia de Jesus se terem ido queixar ao


capitão-mor do comportamento de alguns membros da tripulação que jogavam
jogos de azar, alegando que esses jogos distraíam os homens e os corrompiam
afastando-os da virtude, D. Afonso de Menezes encolhia os ombros. “Irmãos,
eu bem sei que os jogos de azar corrompem as almas dos nossos homens,
mas não me peçam para proibir os mesmos. Os homens necessitam de um
incentivo por forma a que estejam contentes durante o resto da viagem. Desse
modo tenho que fechar um pouco os olhos e deixá-los jogar”.

Martim aproveita os tempos livres que tem para se deitar sobre o convés e
sentir a brisa marítima bater na sua face. Sentia cada vez mais Goa perto de si,
a voz que o chamava encontrava-se cada vez mais forte devido à distância ser
cada vez menor.

A subida da costa Oriental de África estava a afigurar-se lenta. As marés


contrárias à subida dos barcos levavam a que fosse necessário muitas vezes
navegar por rotas menos indicadas por forma a aproveitar ao máximo o sabor
dos ventos.

Duas semanas se tinham passado desde a partida da ilha de Moçambique. A


moral a bordo estava elevada pois estavam cada vez mais próximos de atingir o
seu destino. Apesar de já terem sofrido grandes privações, especialmente a
perda da Santa Maria e da sua tripulação que não conseguira vencer o desafio
do Cabo, tendo provavelmente sido esmagada pelas rochas do mesmo,
sentiam que estavam próximos do seu objectivo.

Alguns iriam ficar por terras de Oriente, o caso dos militares que engrossavam
nos navios indo servir às ordens do Vice Rei da Índia, enquanto outros,
especialmente os membros da tripulação, aportariam em Goa ficando aí até ao
fim das monções mas assim que estas passassem voltariam a partir em
direcção a Portugal carregados de especiarias, sedas, porcelanas e pérolas
resultantes do comércio.

Certo dia, um dos homens que estava no topo do mastro principal a puxar as
cordas das velas avista o que lhe parecem ser umas embarcações ao fundo do
horizonte. Grita logo para o convés : “Embarcações à vista, embarcações à
vista em direcção a bombordo”.

D. Afonso de Menezes ao ouvir esta indicação pede logo a Jorge de Sá, o


mestre da S. Rafael que lhe dê o óculo para avistar ao longe. Com o auxílio do
instrumento consegue verificar que são três embarcações. No topo do mastro
vislumbra algo que lhe faz sentir um calafrio na espinha, o sinal do crescente,
símbolo do Islão. Estavam ali diante dos seus olhos os inimigos da Coroa que
lutavam pelo domínio do Índico e que procuravam manter o monopólio do
comércio das especiarias com Veneza.

Apressa-se a dirigir-se para o mestre. “Jorge de Sá, aviste lá pelo óculo e


confirme aquilo que eu vi, três navios inimigos com as bandeiras do crescente “.
“Vossa senhoria”, responde Jorge de Sá, “de facto são três embarcações
inimigas que atravessam as mesmas águas que nós. Se derem da nossa
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presença certamente que nos tentarão afundar. O que é que vossa senhoria
recomenda? Não nos podemos esquecer que eles são o inimigo e que nos
encontramos em guerra com eles.”

“Nós somos quatro, e eles são três. Penso que eles ainda não nos avistaram
pois o sol está a nosso favor encandeando-os. Temos que aproveitar a
vantagem que temos face a ele e procurar afundar esses miseráveis que sujam
as águas que os nossos barcos percorrem. Dê ordem ao piloto para entrarmos
em perseguição e coloque a tripulação em estado de alerta. Quero ter os
canhões prontos a disparar e enxamear o céu de bombardas por forma a
conseguir livrar o oceano desses pérfidos infiéis.”

Jorge de Sá manda sinalizar com bandeiras os outros barcos que navegam em


conserva das embarcações inimigas que se encontram a bombordo e dá o
alerta à tripulação. “Homens aos postos, içar as velas para posição de combate,
preparar os canhões, desloquem-se em grupos em direcção aos mesmos e
comecem a armá-los. Colocam-se todos em estado de prontidão, correndo
muitos em direcção dos canhões.

Por toda a S. Rafael existe uma agitação e frenesim geral. Martim, junto com
Francisco de Arriaga dirigem o barco por forma a que se aproximem face ao
inimigo aproveitando o facto de terem o sol nas suas costas o que lhes permite
aparecerem invisíveis.

Os militares a bordo começam a colocar-se em estado de alerta indo buscar as


espadas e mosquetes, colocando os mesmos em estado de prontidão.
Os capelão mor começa a discursar para os elementos da tripulação. “Irmãos,
esta é uma oportunidade única que se nos alevanta. Deus dá-nos esta
oportunidade de matarmos os infiéis e mostrarmos o poder de Cristo sobre
estas águas. Cada inimigo que matarmos será visto como uma graça para o
Senhor”.

Martim ao escutar estas palavras fica confuso. Como era possível o capelão
estar a dizer que esta luta era um desígnio divino e que a morte do inimigo era
uma graça ao Senhor? Pensa ele para consigo. As palavras que escutara em
Moçambique do velho ancião árabe fizeram-lhe ver que as coisas não eram
assim tão simples. Não era uma espécie de combate religioso contra a mentira
como os elementos da igreja faziam ver. Combatia-se sim não pela religião mas
pelo direito a comerciar nestas terras. A religião era uma desculpa que se
utilizava para inflamar o espírito de quem combatia e fazer com que não
houvesse arrependimento pelas mortes infligidas e sacrifícios tomados. O cerne
de tudo resumia-se a duas únicas coisas: poder e dinheiro. Sim, neste
momento Martim começa a ver as coisas de outra perspectiva.

Mas como estava do lado de Portugal, a servir o Reino tinha que lutar, apesar
de sentir que esta não era a melhor solução, mas que sozinho não podia rumar
contra a corrente, decide lutar para se defender, pois se o inimigo lhe colocasse
as mãos em cima também seria impiedoso não se preocupando como Martim
pensava ou não. Neste momento tinha que lutar, mesmo que contra a sua
natureza.
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Passadas umas duas horas, os navios encontram-se a uma distância de tiro. D.


Afonso de Menezes dá então ordem ao mestre Jorge de Sá para disparar os
canhões. “Fogo, quero ver o chão enxameado de balas. Quero ver os mastros
do inimigo desfazerem-se nos meus olhos”.

Jorge de Sá grita então para os homens que se encontram ao pé dos canhões:


”Fogo, disparem em nome de El Rei de Portugal e de nosso Senhor Jesus
Cristo.”

Os primeiros tiros são disparados. O convés começa a encher-se de fumo


resultante do disparo dos canhões. O disparo dos mesmos faz com que por
acção do disparo o navio estremeça e balanceie um pouco. O céu começa a
ficar negro como resultado das balas disparadas.

Depois de terem percorrido algumas dezenas de metros começam a descer. A


maioria delas cai sobre a água não atingindo os navios inimigos. Estes ao
verem as balas a cair sobre si começam também a entrar em manobras de
guerra, respondendo prontamente com uma salva de tiros, embora o sol lhes
dificulte a pontaria.

Jorge de Sá começa a gritar para a cabine de pilotagem. Comecem a dispersar


do resto das embarcações. Se estivermos afastados é mais difícil atingirem-
nos.

Nisto a salva de tiros das embarcações turcas começam a cair junto da S.


Rafael. Por sorte nenhum dos tiros atinge o barco. Jorge de Sá, furioso, dá
ordem aos homens nos canhões para que melhorem a pontaria. “Vamos, temos
que acertar é nos barcos e não na água. Se continuarmos assim quem é
afundado somos nós e não eles. Força homens, lutem com toda a força”

Uma segunda salva de tiros é disparada dos canhões, voltando a S. Rafael a


estremecer. O capelão, agarra-se ao terço junto com os elementos da
Companhia de Jesus que começam a apelar a Deus para que vençam a
batalha.

As balas começam a descer em direcção às embarcações inimigas. Os mastros


de alguns dos barcos turcos são atingidos o que faz com que a tripulação
comece a rejubilar de alegria.

D. Afonso de Menezes incentiva a tripulação “Vamos homens, mostrem a esses


infiéis como é que se luta. Por El Rei, por S. Jorge, mostremos a esses cães
como é que se combate nos mares”.

As embarcações turcas devido a terem o sol a bater a estibordo, de onde


vinham os barcos portugueses não conseguem ver com exactidão o sítio onde
se encontram. Por isso procuram afastar-se por forma a que não sejam
destruídos.

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D. Afonso de Menezes ao aperceber-se de que as embarcações inimigas se


começam a afastar começa a gritar com Jorge de Sá. “Eles estão a afastar-se,
temos que lhes dar luta e ir no seu encalço”.

“Bem sei que vossa senhoria quer destrui-los tanto como e cada um de nós, o
problema é que eles parecem ser mais rápidos do que nós, temos que
concentrar o nosso fogo sobre uma das embarcações e deixar as outras duas
fugir, senão de outro modo corremos o risco de a sorte nos abandonar. De noite
podemos vir a ser atacados sem nos apercebermos”.

D. Afonso de Menezes cheio de orgulho escuta as palavras do mestre embora


lhe custe aceitar aquilo que ouve. Mas sim, Jorge de Sá tem razão. Têm é que
procurar concentrar o fogo sobre uma das embarcações procurando destruí-la e
deixar as outras fugir. Pelo menos ficaram mais fracos e caso se encontrem
noutra altura iria destruí-los.

“O que eu vou dizer é difícil de engolir, Jorge de Sá”, diz D. Afonso de


Menezes, “mas você tem razão”. Se tentarmos ir ao encalce de todos os barcos
inimigos corremos o perigo de nos dispersarmos e durante a noite vir a ser
atacados de surpresa. Temos que manter a nossa vantagem relativa agora e
procurar concentrar o fogo sobre um dos barcos”.

Jorge de Sá, dá ordens aos homens para dispararem sobre o navio que já tinha
sido atingido anteriormente. Uma nova rajada de balas é cuspida dos canhões
que começam a enxamear de novo os céus de balas. Um cheiro a pólvora
inunda a S. Rafael. As balas começam a descer em direcção do barco inimigo.

Desta vez é o mastro principal que é atingido, ouvindo-se um grande estrondo.


Lascas de madeira começam a ser cuspidas da embarcação e vêem-se
homens a cair para o mar arrastados pela violência do embate. Outros com os
estilhaços das balas dos canhões e da madeira são feridos ou mortos.

Na S. Rafael e no resto das embarcações os homens começam a pular de


alegria. Uma nova salva de tiros é disparado em direcção ao navio turco. Este
ainda dispara dos seus canhões, mas com o sol a ocultar a vista é difícil fazer
pontaria sobre as embarcações.

As balas voltam a cair sobre a embarcação inimiga destruindo desta vez parte
da parte superior da proa. Enquanto isso as outras duas embarcações inimigas
afastam-se, procurando fugir enquanto podem do destino traçado para a outra
embarcação.

D. Afonso de Menezes dá ordens para que se comece a rodear o navio inimigo


e para que continuem a disparar sobre o mesmo. A cada rajada dos canhões o
barco inimigo vai sendo destruído, sendo de cada vez arrancados pedaços de
madeira do mesmo, levando consigo marinheiros.

Com o navio inimigo praticamente indefeso é dada ordem para abordar a


embarcação inimiga e começar a saltar em direcção à mesma. Tábuas de
madeira são então colocadas por forma a que sirvam de ponte entre os navios
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e os soldados portugueses começam a correr com os mosquetes em direcção à


embarcação inimiga, disparando sobre os coitados que ainda se encontravam
vivos.

D. Afonso de Menezes, possuído pela vontade de se encontrar com o inimigo


salta também para a embarcação inimiga e com a sua espada começa a matar
todos os que lhe aparecem à sua frente. A sua face mostra uma expressão de
raiva, gritando cada vez que trespassa um elemento da tripulação inimiga. As
órbitas dos seus olhos encontram-se vermelhos como resultado da sua raiva.

Finalmente os sobreviventes da embarcação inimiga pedem a rendição. Entre


eles encontra-se o comandante do navio turco, Abd al-Ramaan que entrega a
sua espada a D. Afonso de Menezes, pedindo-lhe para que olhe pelos
sobreviventes e que lhe acabe com a vida.

D. Afonso de Menezes pede aos tradutores para que comecem a interrogar os


elementos da tripulação. Ao fim de algum tempo ficam a saber que as
embarcações se encontravam ali por ordem do Vizir para destruírem as
embarcações portuguesas que por ali passassem pois estavam a roubar-lhes o
comércio e a reduzir os lucros no comércio das especiarias. Ficam também a
saber que Abd al-Ramaan era um elemento da frota turca com bastante poder e
prestígio sendo até um primo do Vizir.

D. Afonso de Menezes começa a pensar duas vezes antes de matar o turco.


Afinal se ele era uma figura importante da marinha inimiga talvez fosse boa
ideia entregá-lo ao capitão da fortaleza mais próxima e negociar o seu resgate.
Dá ordem aos elementos da tripulação que saqueiam o navio, levando para a
S. Rafael mantimentos e algumas moedas de ouro. Em seguida dá ordem para
que matem todos os tripulantes da embarcação capturada com excepção do
seu capitão Abd al-Ramaan.

Martim fica bastante chocado ao ver o destino que estava reservado aos ainda
sobreviventes da embarcação. Porquê tanta crueldade pergunta para consigo.
Se eles se tinham rendido deviam ser feitos prisioneiros e entregues nalgum
forte durante o caminho e não tratados como mera mercadoria.

Francisco de Arriaga ao ver a sua cara de apreensão dirige-se a ele “Martim, tu


ainda és muito novo. A vida é assim, dura. Pode custar-te aceitar a decisão de
D. Afonso de Menezes, mas ele não a deve ter tomado de ânimo leve. Se
trouxéssemos os capturados connosco iriam ser mais bocas para alimentar e
podiam instigar alguma revolta a bordo”.

“Mas ao menos não lhes podíamos dar um pequeno bote e deixá-los ir? Ao
menos podiam vir a conseguir escapar com vida.”, responde Martim. “As coisas
não são assim tão simples. Se eles fugissem podiam contar que tínhamos
capturado Abd al-Ramaan e teríamos a frota inimiga atrás de nós. Infelizmente
a vida é como é e temos que a aceitar assim. São as agruras da guerra”.

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Mas a Martim custava-lhe entender a decisão impiedosa de D. Afonso de


Menezes de matar toda a tripulação inimiga. Como era possível ser-se tão cruel
para com outros homens.

Os tripulantes capturados são postos em fila e os soldados com os seus


mosquetes começam a disparar sobre eles. Ainda se ouvem gritos de
desespero por parte de alguns dos tripulantes, certamente a rogarem para que
as suas vidas fossem poupadas, mas os seus apelos são feitos em vão.

A cada disparo os seus corpos começam a tombar para o lado. Estando o


convés da embarcação inimiga cheio de corpos inertes sem acção como
resultado das ordens de D. Afonso de Menezes, este dá então ordens a seus
homens. “Hoje o nosso dia já está ganho. Mostrámos quem é que manda
nestes mares. Quero que peguem em tochas e peguem fogo ao barco.

Homens começam então a pegar em tochas e a atear fogo ao inimigo. A S.


Rafael juntamente com os outros barcos afastam-se do navio inimigo por forma
a evitar que o fogo se espalhe também sobre eles.

Ao longe vêem-se as labaredas a subir em direcção ao céu. Ao fim de uma


meia hora o navio começa a afundar-se sobre as águas do Índico até que
acaba por desaparecer. Como resultado do ataque tinham conseguido capturar
Abd al-Ramaan que era agora prisioneiro da S. Rafael tendo sido posto a ferros
sendo levado até Ormuz por forma a que o capitão da fortaleza negociasse o
seu resgate com os árabes.

Encontrando-se Abd al-Ramaan capturado, D. Afonso de Menezes decide


interrogá-lo por forma a que se obtenham informações sobre a frota turca e os
últimos planos do Vizir.

D. Afonso de Menezes decide chamar Jorge de Sá aos seus aposentos,


pedindo-lhe para trazer o prisioneiro pois quer interrogá-lo. Aparece então Jorge
de Sá acompanhado de Abd al-Ramaan mais três guardas e um tradutor.

“Como você sabe, encontra-se numa posição complicada. Capturado não tem
qualquer tipo de autonomia ou liberdade, estando à minha mercê. Se quer um
conselho meu, colabore e responda a todas as perguntas que eu lhe efectuar
pois desse modo passará a ter o tratamento digno de um capitão”, diz-lhe D.
Afonso de Menezes.

“Eu não tenho nada a dizer. Vocês já sabem o que querem e se me quiserem
fazer a vontade acabem com a minha vida, pois já não estou cá neste mundo a
fazer nada e Alá será generoso para comigo”.

“Se não tem nada a dizer é o que nós vamos ver agora. Eu acho que você tem,
por isso não esconda nada do que lhe for perguntado. O que é que vocês
andavam a fazer por estas águas? Quais são os planos do Vizir e onde é que
anda o resto da frota?”

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“Já lhe disse que não tenho nada a dizer. Da minha boca não sairá nenhuma
informação adicional. A minha vida já não tem valor pois perdi o meu barco e a
minha tripulação foi massacrada selvaticamente por vós”, responde Abd al-
Ramaan.

“Pois bem, se não quer responder às minhas perguntas vai ficar preso ao
mastro do navio a apanhar o sol durante todo o dia não lhe sendo dado de
comer ou beber. Se gritar por ajuda nós daremos água e comida em troco das
respostas”.

D. Afonso de Menezes estava determinado a tirar tudo o que pudesse da boca


de Abd al-Ramaan. Ele podia ter informação comprometedora para os
interesses de Portugal, logo estava disposto a jogar com todos os trunfos que
tinha na manga. Dificilmente alguém aguentaria o calor do sol sem água e
comida. Estava disposto a correr o risco de perder a vida do turco em troco da
informação que pretendia.

Jorge de Sá, pega no prisioneiro e dá ordens a seus homens que lhe tirem as
roupas por cima da cintura e que o amarrem ao topo do mastro principal por
forma a que o sol lhe bata com toda a força. Dificilmente alguém suportaria
tamanha tortura sem desistir.

Abd al-Ramaan no momento em que é preso ao mastro grita e pede a Alá que
lhe tire a vida pois não quer trair os seus homens. À medida que o sol começa a
subir, Abd al-Ramaan começa a sentir a sua cabeça a aumentar de pressão. O
sangue começa a fazer pressão sobre os seus olhos, a sua boca começa a
secar e a pedir por água. A sua língua começa a ficar colada ao céu da boca
devido à sede e começa a sentir tonturas. Mas decide aguentar o sofrimento ao
máximo pois está determinado a que a morte dos seus homens não tenha sido
em vão. Nisto, um dos marinheiros apercebe-se que Abd al-Ramaan acabara
de desmaiar.

Jorge de Sá dá então ordens para que o soltem e lhe deitem água salgada em
cima do seu corpo. Com a reacção da água fria certamente acordaria.
Abd al-Ramaan ao sentir a água a bater-lhe acorda de repente e começa a
expelir a água que lhe entrara para dentro da boca. A pouca água salgada que
engolira ainda aumentara mais a sua sede.

Tenta colocar-se de pé mas começa a sentir falta de força nas suas pernas e a
ter tonturas. Cai de imediato sobre o convés. Jorge de Sá apercebendo-se que
certamente o prisioneiro não aguentaria muito mais tempo vivo se não o
ajudassem dirige-se a D. Afonso de Menezes. “O prisioneiro está praticamente
moribundo. Resistiu às privações do sol sem ter falado uma única palavra. Se
não o ajudarmos não creio que sobreviva. O que é que vossa senhoria pensa
fazer?”

“Eu quero a informação dele custe o que custar e se ele morrer aí é que não a
obtenho. Deiam-lhe água e comida por forma a que consiga sobreviver. Mas
mal recupere voltaremos a interrogá-lo”.

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O Navegante
por Carlos Carvalho

Um dos marinheiros aproxima-se de Abd al-Ramaan e dá-lhe água por um


caneco. Este quase nem consegue engolir a mesma tal é o seu estado de
desidratação. Tem os lábios todos gretados e a face e tronco queimados pelo
sol abrasador. Ao fim de algumas tentativas lá conseguem com que ele beba a
água e dão-lhe em seguida umas papas feitas com trigo e peixe seco.

Em seguida, entregam o prisioneiro aos cuidados dos membros da Companhia


de Jesus por forma a que recupere rapidamente para que volte a ser
interrogado.

Dois dias se passaram desde que Abd al-Ramaan fora torturado. Já se


encontrava praticamente recuperado com excepção das queimaduras no seu
corpo resultantes da exposição ao sol.

D. Afonso de Menezes decide aplicar outro método de inquirição. Manda parar


o navio e pede a alguns marinheiros para colocarem uns pesos no corpo de
Abd al-Ramaan. Em seguida prendem-no a uma corda. D. Afonso de Menezes
diz a Abd al-Ramaan o que lhe vai acontecer : “Agora tens a oportunidade de
falar, senão vamos atirar-te borda fora e vais mergulhar em direcção às
profundezas do oceano. Ao fim de um minuto voltamos a içar-te e deixamos-te
fora de água uns 20 segundos voltando a mergulhar-te de novo até que fales.
Pensa bem, esta é a tua oportunidade, não vale a pena estares a sofrer”.

Abd al-Ramaan volta a dizer que não tem nada a falar. D. Afonso de Menezes
dá ordem aos marinheiros para que o atirem borda fora. Com os pesos atados
ao seu corpo o corpo de Abd al-Ramaan começa a entrar nas profundezas do
Índico. Ao fim de cerca de um minuto voltam a içá-lo. Este ao vir à superfície
começa a respirar de modo compulsivo e ofegante.

D. Afonso de Menezes diz-lhe “Não tens nada a dizer?”, este responde que
não. “Pois bem voltem a mergulhá-lo de novo e desta vez deixem-no mais
tempo lá em baixo. Ao fim de uns dois minutos voltam a içá-lo. Abd al-Ramaan
começa a cuspir água de sua boca e a respirar ofegadamente. D. Afonso de
Menezes volta a repetir a questão e a levar com a mesma resposta negativa.

O corpo de Abd al-Ramaan volta a ser lançado às águas do Índico. Quando


volta à superfície este levanta metade do seu braço e dá sinal de que quer falar.
Apesar de ter aguentado bastante tempo a tortura já não conseguia aguentar as
dores no seu peito como resultado da falta de ar e a sua cabeça parecia que
estava a explodir. Tinha que parar as dores que sentia pois não aguentava
mais.

D. Afonso de Menezes regozija-se de alegria no seu rosto. Abd al-Ramaan


começa a chorar. D. Afonso de Menezes pergunta-lhe a razão. “Estou a chorar
porque estou a trair os meus companheiros. Sou um traidor, nada mais mereço
que a morte”. D. Afonso de Menezes responde-lhe “mas tu és um homem de
coragem. Ninguém aguenta assim tanto tempo sem falar. Se te serve de
consolo pois digo-te que nunca vi ninguém aguentar durante tanto tempo, e
considero-te um homem digno de palavra. Não fosses meu inimigo e vir-te-ia
como um irmão”.
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O Navegante
por Carlos Carvalho

Abd al-Ramaan conta então a D. Afonso de Menezes que o Vizir tinha enviado
vários barcos em patrulha destas águas por forma a capturar e afundar todos
os barcos portugueses que encontrassem pelo caminho. Além disso, existiam
planos para enviar uma força para capturar Ormuz.

D. Afonso de Menezes sente-se realizado. Afinal o que aquele homem tinha


para dizer era informação bastante importante. Tinham que se dirigir para
Ormuz o mais depressa possível para avisar as forças dos planos dos turcos.

D. Afonso de Menezes pergunta a Francisco de Menezes quanto tempo


levariam a chegar a Ormuz. “De acordo com os últimos dados que tenho
estamos a cerca de mil e quinhentas milhas de Ormuz pelo que devemos levar
umas três semanas se tudo correr bem e não tivermos problemas com o tempo
e as marés.”

De noite, Martim passava o tempo a vislumbrar o céu e as estrelas. Como os


navios estavam a deslocar-se em direcção a norte, aproximando-se cada vez
mais do Equador, a constelação do Cruzeiro do Sul era visível cada vez mais
no fundo da abóbada celeste, tornando a sua visualização cada vez mais
complicada. Apesar de se estar a despedir do Cruzeiro do Sul, Martim também
já sentia saudades das duas ursas e da estrela Polar que lhe lembrava a casa
em Lisboa e Inês, sua mãe, que abandonara em busca do seu sonho. Sim,
estava ansioso por que passassem o Equador por forma a que conseguisse
vislumbrar de novo a estrela Polar a iluminar o oceano e a ver as outras
estrelas bailar em seu redor durante o baile nocturno.

Mais uma semana se passara ao longo da costa do Índico. Martim encontra-se


a medir a altura do Sol com recurso ao astrolábio. Tira as coordenadas e
consulta o almanaque. A sua face enche-se de alegria e apressa-se a subir as
escadas do navio em direcção à cabine de pilotagem. Eufórico e ofegante
devido à corrida que tinha dado dirige-se a Francisco de Arriaga: “ Francisco de
Arriaga, tenho uma boa nova para dar. De acordo com as últimas leituras do
astrolábio encontramo-nos já a norte do Equador.”

“Isso que me estás a dizer é de facto uma boa notícia. Isso significa que nos
encontramos a deslocar a uma boa velocidade. Espero que continuemos a
manter este ritmo até Ormuz.”

Para passarem o tempo durante a viagem, os homens encontravam-se mais


uma vez a jogar jogos de azar. Jorge de Sá como não via com bons olhos o
jogo, pois levava a que muitas vezes os homens discutissem entre si alegando
batota ou falta de pagamento chegando por vezes a via da agressão, decide
dar-lhes uma reprimenda.

“Ora muito bom dia. Se vocês se encontram a jogar é porque não têm nada
para fazer, certo?”, pergunta-lhes Jorge de Sá. “Pois bem, o navio tem o convés
um pouco sujo, pelo que está a precisar de ser lavado. Peguem nuns baldes e
comecem a tirar água do mar e a esfregar o convés, senão qualquer dia isto
parece mais uma pocilga do que o convés de um navio.”
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O Navegante
por Carlos Carvalho

Os homens olham para Jorge de Sá com cara de indignados, pois esta era a
sua hora de repouso, mas como ele era o mestre não tinham nada a fazer que
não obedecer, pois de outro modo corriam o risco de ele se queixar a D. Afonso
de Menezes e serem desse modo severamente castigados.

Com algum custo lá puxavam os baldes cheios de água a bordo e atiravam a


mesma sobre o convés. Outros havia que com a ajuda dos grumetes a bordo
pegavam numa vassoura e começam a varrer a água, esfregando ao mesmo
tempo a madeira do convés o que fazia com que o mesmo fosse sendo limpo.

Jorge de Sá ficava a controlar a operação. Apesar de ele saber que estava a


ser duro para com os seus homens, tinha que o ser, pois não tolerava
indisciplina a bordo e já houvera problemas de indisciplina durante a viagem e
não estava disposto a que os mesmos se voltassem a repetir.

Passaram-se mais duas semanas, Martim depois de ter efectuado a medição


da latitude e longitude vai verificar o ponto onde se situavam de acordo com a
carta piloto. Estavam a cerca de 20 milhas de Ormuz. Resolve contar a notícia
a Francisco de Arriaga.

Este apressa-se a descer a cabine dos pilotos em direcção à sala onde D.


Afonso de Menezes costumava passar os tempos a ler livros de contos
medievais sobre a vida de cavaleiros. “Vossa Exa. permite-me que lhe fale?”,
pergunta Francisco de Arriaga. “Mas claro que sim homem, diga o que o traz
por cá.” “De acordo com as últimas leituras estamos a um dia de Ormuz.”
“Ora mas isso são mesmo muito boas notícias, não podia ouvir melhor coisa,
isso quer dizer que amanhã aportaremos em Ormuz onde deixaremos por lá
Abd al-Ramaan.”

10. Chegada a Ormuz

Por volta das 11 horas da manhã, estando o sol a levantar-se de oriente em


direcção a África e à Ásia Menor, os quatro navios chegam ao porto de Ormuz.
Levavam desfraldadas nos mastros a bandeira do reino de Portugal e faziam
sinais com bandeiras por forma a que os militares que se encontravam na
fortaleza os reconhecessem com facilidade, senão de outro modo seriam
atacados pelos defensores do porto pois não saberiam de outro modo se
vinham em paz ou em guerra.

Ao atracarem em Ormuz, (fortaleza conquistada em 1515 por Afonso de


Albuquerque, que permitia o controlo do Mar Vermelho evitando desse modo
incursões turcas e persas sobre os barcos portugueses), D. Afonso de Menezes
faz-se escoltar por alguns militares que iam na Carreira da Índia para falar com
o capitão da fortaleza.

É recebido nos aposentos do capitão, que se situavam no interior da fortaleza,


que o recebe com todas as honras. “Seja bem-vindo, então o que o traz cá por
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por Carlos Carvalho

Ormuz? Não é frequente os barcos da Carreira pararem por aqui.”, diz o capitão
da fortaleza.

“O que me traz por cá é a captura de um turco que capturámos aquando da


subida da costa Oriental de África. Não sei se já ouviu falar nele, Abd al-
Ramaan e que de acordo com as indicações que tenho é primo de um Vizir
turco. Venho aqui para o entregar à vossa guarda, podendo desse modo pedir-
se um resgate pela sua vida ou trocá-lo por prisioneiros ou outras
contrapartidas. Além disso tenho algumas informações a dar-lhe e que consegui
extrair do prisioneiro. Parece que os turcos não estão contentes com a situação
actual e planeiam atacar Ormuz. Por isso convém manter-se alerta e avisar o
vice-rei em Goa por forma a que obtenha mais reforços.”

“Essas notícias que me está a dar são de facto preocupantes. É verdade que
ultimamente temos notado alguma actividade por parte dos barcos persas e
turcos, sendo preciso andar constantemente alerta e a bombardeá-los, mas não
tinha ideia de que eles planeavam um ataque em grande escala. Quando à
captura de Abd al-Ramaan você nem imagina o quanto lhe fico grato. Esse
capitão turco é bastante conhecido por estas paragens. Já conseguiu atacar e
afundar com sucesso bastantes barcos nossos, existindo até uma recompensa
pela sua captura, recompensa essa que será dada a vossa Exa. A captura
desse homem vai abalar o moral das forças turcas pelo que é motivo para
comemorar.”

Em seguida, é recebido pelo rei de Ormuz que faz toda a honra em os receber
depois de saber que traziam consigo Abd al-Ramaan que tinha sido
responsável pelo afundamento de inúmeros barcos por aquelas águas o que
fazia com que o comércio por aquelas paragens tivesse recrudescido o que
fazia com que os rendimentos do rei fossem mais baixos e se tornasse mais
complicado para o mesmo efectuar o pagamento da tença anual devida ao
reinado de Portugal.

O rei de Ormuz, recebe D. Afonso de Menezes numa sala ampla decorada com
as mais finas sedas, existindo um enorme contraste entre o vermelho e azul
das sedas e a cor branca das colunas e paredes do palácio. O rei encontrava-
se sentado numa cadeira de madeira tendo a decorar a mesma dois leões, um
de cada lado. D. Afonso de Menezes ajoelha-se em sinal de respeito dando-lhe
o rei sinal para se levantar.

“Seja bem recebido em Ormuz, D. Afonso de Menezes, o povo de Ormuz


recebe os irmãos de Portugal de braços abertos.”, diz-lhe o rei. “Ouvi dizer que
trazem convosco Abd al-Ramaan, responsável por muitos ataques nestas
águas e que muito têm afectado o comércio por esta zona. A captura dele vai
levantar a moral das tropas em Ormuz e permitir o regresso do comércio a
estas águas. Realmente o reino de Portugal preza muito pelo bem de Ormuz.
Quero que vossa Exa. e o resto da tripulação jantem comigo. Organizarei um
banquete para comemorar a captura de Abd al-Ramaan.”

“Vossa Senhoria nem sabe quão grande é a honra de ser vosso convidado. Irei
avisar o resto da tripulação e entregar-lhe-ei pessoalmente Abd al-Ramaan.”
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O Navegante
por Carlos Carvalho

D. Afonso de Menezes sai da fortaleza e dirige-se em direcção ao porto. Uma


vez aí chegado fala com os membros da S. Rafael e os capitães dos outros três
barcos dando-lhes conta do convite do rei de Ormuz e da honra a que estavam
a ter direito.

Efectuados todos os preparativos para ir ao banquete real, a tripulação dirige-se


em direcção ao palácio, sendo Abd al-Ramaan levado algemado e escoltado
por 5 soldados.

De acordo com indicações do ajudante do rei de Ormuz os marinheiros e


soldados ficariam no exterior do palácio onde lhes era fornecido vinho, cerveja
de tâmaras e carnes assadas que os mesmos se apressaram a comer. Já há
alguns dias que não tinham direito a comer carne fresca pelo que aquele jantar
estava a saber-lhes melhor do que aquilo que já tinham comido há bastante
tempo.

D. Afonso de Menezes com o os outros capitães, pilotos, sota-pilotos e


membros da igreja são convidados a jantar pessoalmente com o rei. Ao
entrarem na sala do banquete ficam todos maravilhados ao vislumbrar a sala
esplendorosamente decorada, com castiçais de ouro e cortinas de seda que
brilhavam intensamente com a luz das velas. D. Afonso de Menezes aproxima-
se junto do rei saudando-o, elogiando a decoração da sala e agradecendo o
convite que lhes fora efectuado.

Em seguida dá ordem aos seus soldados para que entreguem Abd al-Ramaan.
O mesmo, é entregue algemado ao rei de Ormuz. Este ao ver Abd al-Ramaan
diante de si volta a elogiar uma vez mais a coragem de D. Afonso de Menezes
e agradece ao reino de Portugal pela captura do corsário.

Coloca a mão nos ombros de Abd al-Ramaan e diz-lhe “Abd al-Ramaan já


andávamos em teu encalço há bastante tempo. Aterrorizaste as nossas águas
capturando os navios que vinham comerciar por estas águas, fazendo com que
a nossa economia enfraquecesse. Mas pelo facto de também eu ser filho do
Islão, crente em Maomé, e tu pertenceres à família do Vizir considera-te
também convidado para o jantar. Já enviámos emissários ao Vizir com notícias
da tua captura.”

D. Afonso de Menezes ao saber que o turco também fazia parte dos


convidados do jantar, levanta-se e pede para falar com o rei. “Vossa Exa. não
acha que é uma afronta estar a convidar o turco para o jantar? Afinal de contas
ele é um prisioneiro e fomos nós quem o capturámos e entregamos à vossa
guarda. Penso que merecemos o respeito de Ormuz. Se o turco jantar nós
abandonaremos a sala”.

O rei preocupado com as afirmações de D. Afonso de Menezes procura


acalmá-lo. “D. Afonso de Menezes, tenha calma. Eu só convidei Abd al-Ramaan
por uma questão de boa educação e esse ser um dos ensinamentos de Alá. Eu
desejava a sua captura tanto como o senhor e tenho a agradecer-lhe pelo facto
de nos ter confiado a sua guarda. Eu também sou um súbdito de Portugal e
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por Carlos Carvalho

desejo apenas o que for melhor para os interesses do reino de Portugal e de


Ormuz. O jantar é apenas uma forma de ser cordial para com o Vizir e uma
tradição islâmica de receber bem mesmo os nossos inimigos. Afinal de contas
podemos usar a captura de Abd al-Ramaan como forma de obtermos um
acordo com o Vizir, e se ele souber que o seu primo se encontra bem tratado
será mais fácil de levar as coisas a bom porto.”

D. Afonso de Menezes depois de ter ouvido as palavras do rei fica mais calmo.
Apesar de não compreender a atitude do rei, vê-se obrigado a aceitá-la, pois
agora a guarda de Abd al-Ramaan estava a cargo de Ormuz. Além disso vem-
lhe à memória um ditado que ouvira do seu pai quando jovem – a guerra faz-se
com guerreiros, os tratados com diplomatas. Havia que dar uma oportunidade
ao rei de Ormuz de obter um acordo que satisfizesse os interesses da coroa
Portuguesa.

O rei dá então ordem para que se sentem na mesa preparada para o jantar.
Junto ao rei de Ormuz senta-se D. Afonso de Menezes como convidado de
honra, estando a ladeá-lo os outros capitães das naus, tal como os ministros do
Vizir, o capitão Português da fortaleza de Ormuz, os pilotos e alguns membros
portugueses e locais do exército de Ormuz.

O rei de Ormuz decide no início do jantar agradecer à coroa de Portugal pelo


facto de ser aliada de Ormuz. Apesar de terem sido inimigos no passado, agora
eram irmãos e os destinos de Portugal e Ormuz encontravam-se ligados, de
acordo com as palavras do rei. Em seguida pediu a D. Afonso de Menezes que
aquando da chegada a Goa transmitisse ao vice-rei a mensagem de que Ormuz
era irmã da coroa de Portugal, sua súbdita e aliada.

D. Afonso de Menezes agradece as palavras calorosas do rei de Ormuz e


elogia o rei agradecendo a sua hospitalidade e união com a coroa Portuguesa.

O rei de Ormuz dá então ordem aos criados para que comecem a servir o
jantar. De entrada presenteou os convivas com sumos feitos de frutas tropicais.
Aproveita para falar com D. Afonso de Menezes e com Abd al-Ramaan. Este
responde às suas perguntas e entra em diálogo com D. Afonso de Menezes.

“D. Afonso de Menezes, queira saber que todos os meus actos efectuados
foram feitos tendo em vista a defesa dos interesses do Vizir. Nada tenho contra
a sua pessoa, mas estamos de lados opostos nesta luta pelo controlo do
comércio com a Índia. Não veja isto como um confronto pessoal, mas como o
cumprimento do dever da minha pessoa face ao meu reino a quem jurei
fidelidade. Para vocês posso ser um bandido, um pirata, um assassino mas
apenas procuro defender aquilo para que vivo, a minha terra, o meu país.”

D. Afonso de Menezes, responde a Abd al-Ramaan, “Eu também nada tenho


pessoalmente contra si. Eu também defendo os interesses da coroa de
Portugal. Aqui entre nós, esta guerra que existe entre turcos, persas e
portugueses nada tem a ver com religião. Nada disso. Apesar de vocês serem
adeptos do Islão e nós em Cristo e a Igreja de Roma, estando aí também em
lados opostos, o que nos leva a combater-vos é o facto de vocês quererem o
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O Navegante
por Carlos Carvalho

monopólio do comércio do Oriente junto com Veneza. A maior prova de que


esta guerra não é Santa é o facto de Veneza também ser crente em Cristo e na
Igreja e estar do vosso lado. Nós só pedimos o direito de podermos comerciar
nestas terras e levar os produtos para os portos da Europa.”

“Concordo com aquilo que você diz”, retorque Abd al-Ramaan. “Esta guerra de
santa não tem nada. Que guerra é esta que apelidam de santa que tantas vidas
já colheu a cada uma das partes. É uma guerra de interesses, de dinheiro. Mas
vocês portugueses têm que ver que o Vizir quer apenas garantir os direitos de
monopólio que já detém há séculos. Nós não vemos com bom agrado a vossa
chegada a estas paragens porque as nossas margens comerciais baixaram
desde a vossa vinda e o império tem sofrido muito à custa disso. Mas
compreendo também o vosso lado. Vocês descobriram uma nova rota de
comércio em direcção à Europa e querem ter o direito de usufruir da mesma.
Só que quando existe um conflito de interesses e as partes não se entendem,
surge o conflito e a guerra.”

“Como eu partilho das vossas palavras. Estou a ver que afinal pensamos de
forma idêntica”, responde D. Afonso de Menezes. “Só tenho pena de nos
encontrarmos no lado oposto da barricada. Ficai sabendo que se nos voltarmos
a encontrar no futuro no mar ou em terra terei que lutar contra você. Não será
de bom grado que o farei mas o facto de servir a coroa de Portugal leva-me a
defender os interesses do Reino. Bem sei que você fará o mesmo, o que me
enche de honra ter um opositor como Abd al-Ramaan”.

Depois de terem trocado este diálogo, (a que Martim assistiu entusiasmado por
ver que afinal quer Abd al-Ramaan, quer D. Afonso de Menezes eram homens
com coração e pensamento ), os dois homens trocam um abraço entre si,
estando o rei de Ormuz a observá-los. D. Afonso de Menezes volta uma vez
mais a elogiar o carácter de Abd al-Ramaan que conseguira aguentar a tortura
mais do que qualquer homem que alguma vez tinha visto e o facto de
partilharem pensamentos similares.

Abd al-Ramaan agradece a D. Afonso de Menezes e elogia a sua tenacidade.


Diz que fora a primeira vez que perdera uma batalha, embora o facto de terem
a guarda em baixo e de estarem a navegar contra o sol tenha pesado no
resultado final. Diz a D. Afonso de Menezes que lhe perdoa o facto de ter morto
a sua tripulação, pois ele também faria o mesmo se estivesse na mesma
situação. Além de serem mais bocas para alimentar, seriam uma fonte de
instabilidade nos navios correndo-se o risco de se criar um motim a bordo.

O rei de Ormuz observa o modo como afinal estes dois homens de lados
opostos se cumprimentam e falam. Quem diria que dois homens que se preciso
se matavam um ao outro caso tivessem oportunidade afinal partilhavam ideias,
pensamentos e atitudes. Pensa para consigo que caso se privilegiasse o
diálogo em vez de partir directamente para a agressão muitas das guerras e
atrocidades cometidas ao longo dos tempos seriam evitadas.

Enquanto vão bebendo e comendo, os convivas vão soltando vivas ao rei de


Ormuz e à coroa de Portugal. Martim sente-se fascinado ao ver que afinal D.
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por Carlos Carvalho

Afonso de Menezes apesar de mostrar que é um durão, tentando ocultar os


seus sentimentos, é um homem com coração que sabe valorizar a amizade e o
diálogo e reconhecer que mesmo naqueles que consideramos nossos inimigos
existem pessoas com qualidades humanas idênticas ou superiores às dos
homens que co-habitam do nosso lado.

Terminado o jantar, o rei de Ormuz agradece a D. Afonso de Menezes a sua


companhia e segreda a D. Afonso de Menezes que a opinião inicial que tinha
era completamente errada e via quão grande homem ele era. Dá ordens aos
soldados para levarem Abd al-Ramaan para uma cela preparada para ele.
Antes de Abd al-Ramaan se ir embora, D. Afonso de Menezes pede ao rei de
Ormuz para ficar uns momentos a sós com Abd al-Ramaan.

D. Afonso de Menezes perde o pudor e abraça-o como se fosse um irmão que


iria ver partir sem saber se o tornaria a ver. Abd al-Ramaan, diz-lhe que o vê
como um irmão, mas espera não o tornar a encontrar enquanto as duas coroas
estiverem em guerra, pois o primeiro que tivesse a oportunidade tentaria matar
o outro. Era um sentimento contraditório.

Saber que se gostava de outro como a um irmão e ao mesmo tempo desejar a


sua morte. A natureza de soldados que vivia dentro de cada um deles levava-os
a ter que seguir os seus instintos. Era como se fossem um escorpião que
navegava em cima das costas de um sapo a atravessar um lago. O instinto de
predador levava-o a espetar o ferrão com veneno no sapo mesmo que isso
levasse à morte de ambos. Um nas mãos do que desferia o golpe e o outro dos
remorsos de ter morto um irmão.

Ambos os homens com lágrimas nos olhos, ocultas por um passar dos mesmos
sobre as mangas, despedem-se e desejam que a guerra entre as duas coroas
acabe e desejam o melhor destino para cada um deles.

D. Afonso de Menezes diz a Abd al-Ramaan que espera que o mesmo seja
libertado e este retorque dizendo que espera que ele chegue a Goa sem
problemas de maior. Apesar da amizade que brotara entre estes dois
combatentes, existia acima de tudo o dever de servir os interesses das suas
coroas mesmo que tais interesses fossem meramente económicos e sem base
em valores racionais que não o mero lucro.

Afinal eram soldados e o primeiro dever de um soldado é obedecer às ordens


dos superiores e defender a pátria mesmo que existam interesses conflituosos,
assim queriam pensar eles, pois não podiam colocar em causa todos os valores
por que lutaram toda uma vida.

Sentiam-se como um pássaro que viveu toda a vida numa gaiola. Quando se
ecncontravam lá dentro sempre pensaram como seria a vida fora da gaiola,
mas quando viram a portinhola aberta decidem permanecer dentro da gaiola,
pois é um mundo que conhecem. Poderá haver quem chame falta de coragem
a esta atitude, mas os moldes da educação de ambos e o sentido de
cumprimento do dever levavam-nos a pensar desse modo, tolhendo os seus
impulsos.
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De volta às naus, D. Afonso de Menezes medita e relembra as palavras


trocadas com Abd al-Ramaan. Ali estava um homem corajoso, pensa ele para
consigo. Um homem que conseguiu aguentar a tortura mais do que algum outro
que ele tinha visto antes e que pensava de um modo similar ao seu. Que pena
estarem nos campos opostos. Mas antes que mais havia que defender os
interesses da coroa, pensa ele para consigo.

Manhã em Ormuz. O sol começa a levantar-se a Oriente, começando a inundar


as águas do porto de Ormuz com os seus raios. Martim fica a vislumbrar o sol e
a pensar para consigo como afinal D. Afonso de Menezes era um homem sábio
e com coração, passando-se o mesmo com Abd al-Ramaan. Apenas desejava
o melhor a cada um deles.

D. Afonso de Menezes manda chamar o mestre e diz-lhe para aprontar as naus


para partirem. Agora que tinham deixado Abd al-Ramaan em Ormuz à guarda
do rei de Ormuz e do capitão da fortaleza havia que partir em direcção a Goa o
objectivo da viagem.

Jorge de Sá começa a gritar para os marinheiros : “Levantar âncora, arribar as


velas, depressa para não perdermos a maré. Mexam-se, vocês são marinheiros
ou apenas dizem que o são?” Martim, senta-se na cabine de pilotos junto com
Francisco de Arriaga procurando ver qual a rota a traçarem para navegarem em
direcção a Goa. Por forma a aproveitarem os ventos e correntes marinhas
teriam que navegar em direcção a Nordeste durante uma semana e meia e em
seguida começar uma rota descendente em direcção a Goa.

11. Partida rumo a Goa

Os navios sobreviventes que compunham a carreira da Índia, a S. Rafael, a S.


João, a S. Bernardo e a caravela Bugio, seguiam lentamente em direcção a
Goa. Com as velas desfraldadas a dançar ao sabor do vento que os levava
cada vez mais próximos do seu destino.

Martim concentrava-se na medição do tempo com recurso à ampulheta por


forma a determinar o tempo de navegação e os momentos em que se devia
efectuar nova medição da latitude e longitude por forma a poder saber-se em
que local se estava e qual a rota a traçar face a Goa.

D. Afonso de Menezes ao ver que a viagem se aproximava do fim, começa a


querer saber do estado das tropas que compunham a carreira. Procura indagar
junto de Jorge de Sá o verdadeiro grau de aptidão das forças. Havia que ter em
conta que as tropas que acompanhavam os marinheiros iam reforçar as tropas
já existentes em Goa seguindo muitos dos homens para outros destinos de
acordo com indicações dadas pelo vice-rei por forma a defenderem as praças
portuguesas no Oriente.

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O Navegante
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Jorge de Sá diz que com a duração da viagem que já ia longa havia homens
que se tinham deixado acomodar e que não estavam no melhor da forma física.
Propõe pois a D. Afonso de Menezes um treino diário que iriam efectuar
diariamente até que chegassem a Goa. Desse modo, os homens conseguiam
voltar a apurar a sua forma física e tornava-se também mais simples a
passagem do tempo a bordo dos navios.

D. Afonso de Menezes aceita a proposta. Não queria chegar a Goa com


homens em má forma física e fazer uma desfeita ao vice-rei. Queria que eles
chegassem no seu pleno de força e frescura por forma a que enaltecessem o
reino em terras tão distantes.

Os elementos da Companhia de Jesus que também seguiam viagem


começavam também a planear a chegada a Goa. Haveria alguns que iriam
permanecer por essa zona enquanto que outros iriam para Malaca, China e
Japão. Eles eram os elementos propagadores da língua portuguesa em
Oriente, pois procuravam ensinar às populações evangelizadas a língua
portuguesa. Devido ao seu esforço podia-se dar a entender em português em
inúmeros locais da Ásia. O português era muitas vezes a língua franca por
essas paragens.

Já umas duas semanas se tinham passado desde que os homens tinham


partido de Ormuz em direcção a Goa. Um dos marinheiros que se encontrava
num dos mastros grita por forma a que seja ouvido em todo o navio “ Terra à
vista ! Terra à vista a estibordo!”

Martim ao ouvir estas palavras, numa altura em que se encontrava no convés


do navio, começa a correr e sobe as escadas em direcção à cabine de
pilotagem, saltando até alguns dos degraus da escada tal era a pressa com que
se dirigia para a cabine. Apressa-se a contar a novidade a Francisco de Arriaga.
Este satisfeito pelas notícias responde-lhe “De acordo com as indicações no
mapa e de acordo com as últimas leituras da latitude e longitude encontramo-
nos na parte norte da Índia. Agora temos que começar a descer em direcção a
Sul por forma a que consigamos chegar a Goa dentro de aproximadamente
uma a duas semanas dependendo das marés e dos ventos.

Martim não se conseguia conter de alegria. Dirige-se para a varanda situada


junto à cabine de pilotagem e procura encher os pulmões de ar. Finalmente
estava a inalar ar do Oriente. Sentia o cheiro da pimenta e da canela a invadir o
seu corpo. Estava prestes a chegar aonde sonhara chegar há tanto tempo
atrás. Lembra-se das contrariedades que tivera que ter por forma a conseguir
cumprir o seu sonho. Tivera que estar longe de sua mãe Inês que tanto amava,
tinha-se zangado com seu pai por forma a ver realizado o seu sonho, tinha
abandonado a cidade que tanto gostava, Lisboa, mas sentia que se o destino o
trouxe até estas paragens é porque o seu sonho necessitava de ser cumprido.

Martim via o destino como uma corrente de um rio. Por muito que se tentasse
remar contra a corrente esta acabava sempre por vencer e a arrastar-nos em
direcção à foz. Se havia coisas que não se podia contrariar uma delas era o

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O Navegante
por Carlos Carvalho

destino e Martim conseguia inalar pela primeira vez o ar das terras que tanto
sonhara.

Diariamente os militares continuam a efectuar exercícios sobre indicações de


Jorge de Sá. Correm em redor do convés, efectuam flexões e exercícios de
resistência física. Apesar de haver aqueles que se queixavam da dureza dos
exercícios ninguém ousava falar directamente com Jorge de Sá com medo de
sofrer represálias. Apesar de ser um homem que procurava defender os seus
não aceitava críticas às suas decisões tomadas.

Manhã a bordo da S. Rafael. Jorge de Sá volta uma vez mais a chamar os


soldados para os exercícios de preparação. Estes não ficam nada satisfeitos,
pois preferiam estar a jogar a dinheiro ou a falar entre eles. De acordo com os
seus pensamentos a vida de guerra encontrava-se apenas quando chegassem
a Goa. Ate que lá chegassem havia era que gozar a vida, pois não sabiam do
futuro.

Mais valia aproveitar enquanto se podia, diziam eles sussurrando entre si por
forma a que Jorge de Sá ou D. Afonso de Menezes não soubessem do que eles
falavam entre si. De outro modo arriscavam serem castigados por
desobediência, postos a ferros enquanto não chegassem a Goa e ai seriam
provavelmente julgados, condenados e executados na forca, tendo que sofrer
uma morte lenta por asfixia em que a circulação de sangue e respiração seriam
interrompidas e a pressão na cabeça aumentaria gradualmente, as órbitas dos
olhos efectuariam pressão para sair ate que finalmente viria o alivio final com a
morte.

Não, nenhum dos homens queria ter esse fim, por isso havia que aguentar os
exercícios infligidos por Jorge de Sá. Antes ser trespassado por uma espada ou
atingido por um tiro ou estilhaço de uma bala de canhão morrendo em honra do
que sofrer tremenda humilhação. Mas melhor que morrer em batalha sempre é
melhor morrer de velhice em suas casas junto dos seus, pensa cada um dos
homens. Ao mesmo tempo que pensam isto cada um deles sabe que nem
todos morrerão de velhice.

Muitos morrerão pelo Oriente, pois anteriores militares que serviram o reino por
ai ficaram no descanso final. Uns por doenças provocadas pelo clima quente e
húmido que se sentia por essas paragens, outros por manuseamento indevido
das armas, por morte causada por naufrágios, combates,... . Cada um olhava
para os companheiros a seu lado e perguntavam-se a si mesmos se os seus
companheiros sobreviveriam, se eles todos sobreviveriam ... . Era como se
tivessem acabado de abrir os olhos e começassem a ver as coisas de uma
forma mais realista. Será que o dinheiro que iam ganhar compensava o risco
que corriam? De que lhes valia o dinheiro ganho se não o podiam usufruir
depois da morte? Nisto os homens colectivamente como se um só corpo
fossem começam a ficar em pânico. Será este o nosso triste fim, a nossa paga
por termos aceite alistarmo-nos em troca de uns reis?

Jorge de Sá apercebe-se do que se desenrola nas mentes dos soldados,


consegue sentir o medo e pânico que invadiu as suas mentes.
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O Navegante
por Carlos Carvalho

Vê-se obrigado a agir imediatamente antes que o pânico e medo se comecem a


alastrar por todo o navio e tripulação. O pior que pode acontecer a um pelotão e
o pânico e o medo. Nesse momento os homens deixam de agir e pensar como
normalmente o fazem e deixam de cumprir ordens. E como se perdessem a
consciência e ficassem imobilizados sem conseguirem respirar, com os
membros imobilizados.

Jorge de Sá já vira anteriormente isso acontecer. Homens corajosos, soldados


acima da media que se deixaram tomar pelo pânico e medo. Ficavam como
que petrificados sem se conseguirem mexer. O pior de tudo e que se conseguia
ver pela expressão de suas caras que eles tinham consciência daquilo que se
estava a passar diante deles, esforçando-se para se mexerem mas os
membros do corpo não obedeciam ao que a mente lhes transmitia.

Por forma a que os homens voltem a sentir-se capacitados e confiantes começa


a contar-lhes uma historia:
"Homens tenho uma historia para vos contar. Certo dia um rei estava prestes a
morrer. Como descendentes deixava cinco filhos. De acordo com a lei o filho
mais velho era o que devia suceder-lhe caso o rei não indicasse sucessor.
Neste caso o velho rei indicara um. O seu filho mais novo. Tomou essa decisão
não por gostar menos dos outros filhos mas tão apenas porque o considerava o
mais inteligente, sábio e capaz de gerir o reino. No entanto fez ver ao filho mais
novo após lhe comunicar a sua decisão que este deveria buscar conselho e
apoio nos restantes irmãos. Os outros irmãos ao saberem da decisão de seu
pai não ficaram nada contentes. A lidera-los encontrava-se o mais velho de
todos que tinha uma grande experiência militar mas tinha contra si o facto de
ser muito impulsivo. Planeara com os restantes irmãos assassinar o mais novo
tornando-se desse modo o legitimo sucessor de seu pai.

Seu pai, ao pressentir na hora da morte que a sua vontade não seria respeitada
mandou chamar os seus cinco filhos junto ao seu leito. Pegou num feixo de
lenha e pediu a cada um deles que o tentasse partir. Todos tentaram mas
nenhum foi capaz de conseguir quebrar o feixe. Nisto o rei pede a seus filhos -
"Tentem agora todos juntos a ver se o conseguem quebrar." Eles tentaram e
em conjunto conseguiram quebra-lo. Nisto o velho rei dirige-se para os seus
filhos: "Meus filhos, tal como sozinhos nenhum conseguiu quebrar o feixe de
lenha, também isoladamente nenhum conseguia governar o reino. Em conjunto
conseguem-no. Apesar de só um poder ser rei, espero que se entre ajudem uns
aos outros. Sozinhos não conseguem fazer nada, mas em conjunto são
invencíveis."

Como vêem homens, o segredo para sobrevivermos e vivermos em grupo,


pensarmos em grupo, agirmos em grupo. Sozinhos não conseguimos partir o
feixe mas em conjunto somos capazes. Bem sei que vão ter que se esforçar,
fazer sacrifícios mas juntos somos capazes de sobreviver. Se cairmos na
tentação de olharmos só para nos mesmos teremos morte certa, mas se
lutarmos em equipa seremos capazes de sobreviver. Alguns de vocês podem
pensar e sentir que mereciam ganhar mais ou estarem numa posição de chefia,
mas tal como os outros 4 irmãos tem que ver que a vossa ajuda e contributo

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O Navegante
por Carlos Carvalho

são necessários para o sucesso de todos e consequente prossecução dos


objectivos de defender os interesses do reino."

Martim tal como os soldados escutaram maravilhados as palavras de Jorge de


Sá. Ele tinha sido capaz de infundir confiança onde antes havia incerteza,
inseminar coragem onde residia o medo. Existem pessoas com o dom de
conseguirem influenciar os outros e Jorge de Sá era uma dessas pessoas,
pensa Martim para consigo.

Os soldados a partir daquele instante passaram a ver-se a si próprios como


parte de algo mais, como fazendo parte de um ser holistico resultante do
contributo de cada um mas com mais poder que a soma do contributo individual
de cada um. Todos eles se sentiam orgulhosos por poderem estar ao lado de
Jorge de Sá.

Mais duas semanas de viagem se passaram. Martim e o resto da tripulação


seguem nos barcos em direcção ao seu destino, Goa. Francisco de Arriaga
encontra-se junto de Martim junto à carta piloto. Estão a efectuar as leituras na
carta de acordo com os últimos dados da latitude e longitude obtidos a partir da
leitura da altitude do sol e da lua.

Martim vira-se para Francisco de Sá : “Os dados que acabamos de ler na carta
estarão correctos? Será que estamos mesmo a cerca de 40 milhas de Goa?”,
“Sim”, responde Francisco de Sá, “a carta e os dados não mentem,
encontramo-nos mesmo próximos do nosso destino tão desejado e que tantos
sacrifícios e vidas colheu para o atingirmos. Como estás a fazer um bom
trabalho auxiliando-me nas tarefas de pilotagem, dou-te a honra de dares a boa
nova ao capitão-mor D. Afonso de Menezes. Encontramo-nos
aproximadamente a um dia do nosso destino. Amanhã ou depois de amanhã
aportaremos em Goa”

Martim sente o seu coração a palpitar. Sente o sangue a percorrer o seu corpo
com uma velocidade vertiginosa. Sente os pêlos dos seus braços a eriçar-se
numa apoteose de alegria. Tem dificuldade em respirar, tais são os sentimentos
que o invadem neste momento. Mas tem que ganhar forcas para dar a boa
nova ao capitão. Apressa-se a descer as escadas da cabine de pilotagem,
tendo cuidado para não escorregar nas mesmas e dirige-se em direcção à
cabine do capitão-mor. Bate à porta. “Quem é que entre e que diga o que o
traz”, diz D. Afonso de Menezes que era um homem de poucas cerimónias.

Martim ainda ofegado dirige-se ao capitão-mor. “Diz logo o que te traz aqui ao
pé de mim, Martim. Quem te vir parece que estás a deitar os bofes de fora,
rapaz, o que é que se passou para vires aqui tão apressado? Passou-se algo
de grave ou importante que eu não tenha tido conhecimento até agora?”

Martim ainda ofegante dirige-se a D. Afonso de Menezes, “Vossa Senhoria,


tenho uma boa nova a dar-vos. De acordo com as últimas leituras da carta
portulano encontramo-nos a cerca de 40 milhas de Goa, pelo que amanhã
devemos chegar à cidade de Goa.”

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O Navegante
por Carlos Carvalho

“Rapaz, com uma notícia dessas tu mereces uma moeda de ouro.” Nisto D.
Afonso de Menezes mete a mão no bolso e atira uma moeda de ouro em
direcção a Martim que este apanha ainda no ar. “Já há muito tempo que não
tinha notícias tão boas. Isso realmente são boas novas. Vou dirigir-me à
tripulação mas antes disso quero falar com Jorge de Sá que é o meu braco-
direito e merece saber a notícia de antemão antes que o resto da tripulação.
Podes fazer-me o favor de o chamar?”

Martim não cabe em si de contente. Está a ver o seu sonho a chamá-lo, a


aproximar-se. Consegue-o vislumbrar ao longe, sente a sua voz, o seu
perfume, faltando apenas tocar-lhe para se tornar realidade aquilo que está a
viver. Além disso tinha acabado de ganhar uma moeda de ouro dada por D.
Afonso de Menezes. Nisto lembra-se que tem uma tarefa para cumprir e dirige-
se então ao convés do navio para se dirigir junto de Jorge de Sá, o mestre da
S. Rafael.

“Jorge de Sá, D. Afonso de Menezes pediu para que fosse ter com ele.” “Por
acaso o Martim sabe o que vossa senhoria pretende?”, pergunta Jorge de Sá a
Martim enquanto se encontra a dirigir exercícios com os militares a bordo. “Não
faço ideia daquilo que vossa senhoria lhe pretende falar ou pedir,” diz Martim
por forma a que D. Afonso de Menezes tenha a honra de ser o primeiro a dar-
lhe a boa nova, “mas sei que é algo de importante e urgente pois quando me
pediu para o chamar disse que era algo de urgente.”

“Pois bem, se D. Afonso de Menezes pretende falar comigo vou então ver o que
é que pretende. Provavelmente quer saber o estado de preparação das tropas,
deve ser isso. Homens, vou ter com D. Afonso de Menezes que me pretende
ver, mas peco-vos para que continuem a fazer os exercícios que estavam a
fazer, pois vocês têm que estar em forma para quando chegarem a Goa. Vocês
têm que ser o orgulho de todo o reino. Têm que mostrar ao vice-rei de que fibra
são feitos.”

Nisto, Jorge de Sá, dirige-se em direcção à cabine de D. Afonso de Menezes.


Enquanto ia dando os passos em seu encontro ia pensando para com os seus
botões o que é que D. Afonso de Menezes lhe pretendia falar. Será que estava
descontente com o modo como as tropas estavam a ser treinadas e pretendia
repreendê-lo?

Esperava que não fosse isso, pois estava a dar o seu melhor por forma a
manter as tropas com uma moral elevada e com um estado de prontidão
imediato para o combate caso fosse necessário. Além disso, tinha conseguido
ganhar o apoio dos homens quando pressentiu que os mesmos estavam
psicologicamente abatidos e cheios de pânico e medo de morrer ao serviço do
reino em terras longínquas. Bem, como não fazia mesmo ideia daquilo que D.
Afonso de Menezes pretendia decide acelerar o passo por forma a que chegue
a seu encontro o mais depressa possível.

Bate então na porta do gabinete de D. Afonso de Menezes. “Quem é que


entre.”, responde D. Afonso de Menezes aos batidos na porta. Jorge de Sá

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O Navegante
por Carlos Carvalho

dirige-se em seu encontro. D. Afonso de Menezes encontrava-se a ler um livro


que se apressa a fechar, levantando-se e dirigindo-se ao seu encontro.

“Jorge de Sá, mandei chamá-lo porque tenho algo a dizer-lhe”, diz D. Afonso de
Menezes. “Sim vossa senhoria, diga o que me tem a dizer que eu estou aqui
para seguir as vossas ordens”. “Homem, calma que desta vez não lhe vou pedir
para cumprir uma ordem. Estou aqui porque quero dar-lhe uma notícia em
primeira mão. Acabei de saber mesmo há uns minutos atrás que estamos a
cerca de um dia de chegar a Goa. É verdade, finalmente a nossa viagem está
quase a terminar, e queria dar-lhe essa boa nova em primeira mão porque o
Jorge de Sá é o meu braço direito aqui a bordo, a minha pessoa de confiança.
Agora em seguida quero ir consigo ter junto de toda a tripulação para dar a boa
nova.”

Jorge de Sá enche-se de orgulho ao ouvir estas notícias de D. Afonso de


Menezes. Estavam prestes a chegar a Goa e D. Sancho tinha-o em boa estima.
Afinal os seus receios não passavam mais do que castelos no ar que se
dissiparam com uma brisa de vento. Mas se estavam quase a chegar a Goa
teria que reforçar ainda mais os treinos que estava a ministrar aos homens. O
tempo já era escasso e não queria que o vice-rei recebesse tropas do reino que
não estivessem preparadas para defender os interesses de Portugal.

Os dois homens saem então da cabine de D. Afonso de Menezes. Ao


chegarem ao convés, Jorge de Sá dirige-se a um dos grumetes e diz-lhe para ir
tocar no sino que se encontra no convés. O grumete começa então a tocar ao
sino. Todos os elementos que se encontram a bordo ao ouvirem o som do sino
param as tarefas que se encontravam a fazer e dirigem-se em direcção ao
convés que começa a ficar povoado de gente.

Quando se encontram todos juntos no convés, D. Afonso de Menezes sobe


para junto das escadas que dão em direcção à cabine de pilotagem e começa a
falar junto de seus homens tendo Jorge de Sá a seu lado.

“Homens, pedi para todos se reunirem porque tenho um comunicado a efectuar.


De acordo com os últimos dados, tudo indica que nos encontramos próximos de
chegar a Goa. Caso os ventos estejam de feição aportaremos em Goa
amanhã.” Nisto começa a ouvir-se um burburinho em todo o navio. Os homens
começam a comentar uns com os outros a notícia que acabavam de ouvir.
Nisto D. Afonso de Menezes volta a falar de novo, calando-se todos de imediato
para ouvirem o que o capitão-mor tinha a dizer-lhes.

“A notícia que eu acabei de vos dar penso que é uma boa nova para todos.
Ninguém mais do que eu esperava por este dia. Sei que todos fizeram inúmeros
sacrifícios durante a viagem e quero relembrar a perda da Santa Maria que foi
apanhada pelo cabo das tormentas. O momento que estamos a viver neste
momento é um momento de alegria e de reflexão. Alegria por nos encontrarmos
próximos de chegar a Goa o nosso objectivo e de reflexão por forma a que não
nos esqueçamos de todos os nossos companheiros que não conseguiram
chegar aonde chegámos. Temos que os trazer na nossa memória e não nos
podemos esquecer de agradecer todos os sacrifícios efectuados ao longo da
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O Navegante
por Carlos Carvalho

viagem. Peco-vos também para que continuem a fazer as tarefas que estavam
a fazer com o mesmo afinco e determinação e que não se esqueçam de se
prepararem para a chegada a Goa.”

Martim ao ouvir as palavras de D. Afonso de Menezes vê surgir na sua retina a


imagem do grumete que tinha sido assassinado durante a viagem. Pobre moco,
que nem tempo teve para viver a vida nem para chegar a Goa. Pensa na sorte
que teve ao longo da viagem, pois tinha sobrevivido até agora e tivera sorte em
fazer parte da equipa de pilotagem, pois as refeições a que tinha direito eram
substancialmente melhores que as que a maioria da tripulação não tendo por
isso sofrido os males do escorbuto ou outras enfermidades ao longo da viagem.

Sente-se por isso um privilegiado ao longo da viagem, tendo que agradecer a si


e a sua mãe Inês o facto de ter tido a oportunidade de praticar a arte da
navegação o que lhe tinha concedido o direito a um bilhete com destino a Goa.
Inês sua mãe, pensa Martim para consigo, o que sentiria ela se soubesse que o
seu filho estava prestes a tocar no seu sonho de atingir terras do Oriente, poder
sentir os cheiros e sabores que insistentemente o chamavam junto de si? Tinha
que lhe agradecer todo o apoio que ela lhe tida dado e amor que lhe tinha
concedido. Sim, Martim neste momento sentia-se um privilegiado por poder
estar próximo do seu sonho, podendo quase tocar no mesmo.

O capelão mor, pede autorização a D. Afonso de Menezes para que se proceda


à realização de uma missa naquele momento por forma a que se possa
agradecer a Deus o facto de terem chegado ao seu porto de destino e que se
pudesse relembrar todos aqueles que não foram capazes de chegar ao destino,
tenha sido pelo facto de terem sido mortos, morrido de doença, castigo ou
acidente.

Os homens juntam-se todos para ouvir o discurso do capelão que apela à fé de


cada um dos homens por forma a que as suas preces sejam ouvidas. Os
elementos da tripulação ajoelham-se por forma a que possam ser ouvidas as
suas preces. Muitos deles pedem para que consigam voltar a Lisboa em saúde
após terem cumprido os seus deveres por terras de Oriente ao serviço do reino.

Durante a noite, Martim encontra-se junto de Francisco de Arriaga na cabine de


pilotagem. Francisco dirige-se a Martim e diz-lhe para se ir deitar. Não havia
razão para que os dois estivessem acordados e assim Martim poderia
descansar por uns momentos, trocando posteriormente de lugar os dois. Martim
ao fim de algumas insistências da parte de Francisco de Arriaga decide aceitar
a sua oferta. Dirige-se para os seus aposentos deitando-se na cama feita com
palha. Apesar de se sentir um pouco cansado não consegue dormir. A
ansiedade de pisar terra em Goa, sentir o seu perfume faz com que permaneça
acordado. Pensa para consigo como será quando pisar os pés em terra pela
primeira vez em terras de Oriente, enquanto pensa ao mesmo tempo em sua
mãe Inês que ele já não via nem tinha notícias há quase um ano. O que seria
feito dela? Estaria bem, saberia que o seu filho se encontrava vivo e de boa
saúde e prestes a tocar no seu sonho?

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O Navegante
por Carlos Carvalho

Manhã a bordo na S. Rafael. Francisco de Arriaga dirige-se aos aposentos


onde se encontra Martim e diz-lhe para trocarem. Agora Martim iria para os
comandos da S. Rafael enquanto Francisco descansaria um pouco. Antes de se
deitar diz a Martim que se chegarem a terra antes de este ter acordado que o
mande acordar por forma a que leve o navio em direcção ao porto em Goa.

Martim dirige-se em direcção à cabine de pilotagem. Pensa consigo se seria


hoje que conseguiria finalmente acordar para o seu sonho, sentir o perfume e
sabores do Oriente.

Por volta do meio dia, um dos marinheiros que se encontrava a puxar uma das
velas nos mastros grita “Terra à vista! Terra à vista!” . Todo o barco pára
instantaneamente ao ouvir estas palavras ecoarem ao longo do casco do navio.
Martim procura verificar se é verdade aquilo que o marinheiro acabara de dizer
junto de D. Afonso de Menezes e de Jorge de Sá. Era verdade, lá ao fundo
conseguia avistar-se terra, terras de Goa ao fundo do horizonte.

Apressa-se a acordar Francisco de Arriaga. Este ao pressentir a presença de


Martim nos aposentos levanta-se e sorri para Martim. “Não me digas nada que
sou capaz de adivinhar”, diz Francisco de Arriaga. “Estamos próximos de Goa,
não é verdade? Obrigado por me teres vindo avisar, Martim.” Nisto, Francisco
de Arriaga apressa-se a levantar-se e a dirigir-se em direcção à cabine de
pilotagem junto com Martim. Havia que tratar das manobras de aproximação e
atracagem junto a Goa.

D. Afonso de Menezes dá ordens a Jorge de Sá para que desfraldem a


bandeira do reino de Portugal no topo do mastro principal por forma a que as
forcas em Goa possam verificar que são barcos portugueses que se aproximam
do porto. Passado uma hora vêem ao longe uma fusta dirigir-se ao seu
encontro vinda de Goa. Vinha certificar-se que eram mesmo barcos
portugueses que se dirigiam a Goa, caso contrário seriam bombardeados pelo
porto, pois o seguro morrera de velho e nunca se sabia se não seriam forcas
turcas ou de algum rei indiano que se fazia passar por forcas portuguesas para
atacar o porto.

A fusta ao chegar próximo da S. Rafael começa a gritar “Quem vem a bordo


desta nau que se identifique em nome do vice-rei das Índias.” D. Afonso de
Menezes aparece junto da popa da S. Rafael e diz aos homens que se
encontravam na caravela : “Aqui fala D. Afonso de Menezes, capitão mor da
carreira das Índias pela graça de Deus e do reino que vem com ordens para
aportar em Goa. Trazemos reforços para o vice-rei, membros da companhia de
Jesus para espalhar a fé por terra de Oriente e buscamos também especiarias
para levar para o reino.”

“Pois sejam bem vindos a Goa em nome do vice-rei da Índia. Contávamos com
a vossa chegada mais dia menos dia. Podem seguir-nos em direcção ao porto
de Goa onde poderão aportar os vossos barcos.”

D. Afonso de Menezes dá então ordens para que sigam a caravela em direcção


ao porto de Goa. Ao fundo do horizonte a cidade de Goa começava a ficar cada
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O Navegante
por Carlos Carvalho

vez mais próxima. Além disso com o bater dos raios de sol que inundavam a
cidade, a vista era de facto maravilhosa. Martim sente-se enubriado com a
beleza da cidade que começa a avistar cada vez melhor diante dos seus olhos.
Finalmente conseguia visualizar diante dos seus olhos terras do Oriente, sentia
que se esticasse um pouco mais conseguia tocar na cidade de Goa que era
invadida pelos raios de sol que batiam sobre a mesma e se espelhavam ao
longo das águas.

Estavam cada vez mais próximos da ilha de Goa, podendo vislumbrar a grande
baía que abarcava a mesma. Ao longo do caminho viam o conjunto de barcos
que vinham de Goa e em direcção à mesma, levando consigo especiarias e
pedras preciosas.

Já próximos do porto, Francisco de Arriaga começa a efectuar as manobras de


atracagem. Ao fim de uma hora de manobras exaustivas para encostar o navio
finalmente o mesmo encontra as suas amarras atadas ao porto de Goa e a
âncora fundeada sobre o mesmo. Os restantes navios que compunham a
carreira da Índia (a S. João, a S. Bernardo e a Bugio) apressam-se também a
atracar no porto de Goa que ficava situado sobre a baía do rio Mandovi.

12. A ilha de Goa

Atracados os navios ao cais, o mesmo começa a encher-se de curiosos que se


aproximam para ver as naus acabadas de chegar de Lisboa. Martim consegue
vislumbrar o colorido das pessoas que usam vestimentas de cores variadas. As
mulheres usavam vestidos compridos coloridos e muitas delas véus na mais
pura das sedas o que lhes conferia ainda maior beleza e enigmatismo.

Um regimento de Goa que se encontra no porto dirige-se em direcção à S.


Rafael. O capitão do regimento dá então autorização a D. Afonso de Menezes
para desembarcar. Este agradece e desembarca juntamente com os pilotos,
Jorge de Sá, os elementos da Companhia de Jesus e alguns soldados. Dá
ordens aos outros homens nos navios para que comecem a efectuar o
desembarque das mercadorias que traziam de Lisboa, tais como peças de
artilharia, cavalos.

Os homens são então guiados pelo capitão do regimento em direcção a um


quartel que existia dentro da fortaleza. São mostrados os aposentos deles.

D. Afonso de Menezes diz ao capitão que gostaria de falar pessoalmente com o


vice-rei para lhe entregar pessoalmente os reforços vindos de Lisboa. O
capitão alude que sim, que mais tarde terá oportunidade para falar com o vice-
rei.

Enquanto isso, Martim encontra-se maravilhado com aquilo que vê. Finalmente
estava em Goa, capital do império no Oriente. Podia tocar, respirar e sentir o
Oriente. Sentia-se leve como uma pena que podia levantar voo à mais pequena
brisa que por ali passasse, tal era a sensação de paz e tranquilidade que sentia
neste momento. Conseguia finalmente visualizar a cara daquela que o chamava
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O Navegante
por Carlos Carvalho

quando ele se encontrava em Lisboa. Finalmente o seu sonho estava a falar


consigo e podia tocar no mesmo.

De facto aquilo por que tanto lutara finalmente tinha o privilégio de ver atingido.
Goa, cidade dos mil encantos, a Lisboa do Oriente, como era conhecida na
altura estava diante de si. Goa, cidade velha com a sua larga baía que
abarcava o Índico e que era banhada pelo sol poente estava finalmente a
abraçá-lo. Tão absorvido estava pelo fascínio de ter chegado que nem repara
que Francisco de Arriaga estava a falar consigo. “Martim, estás a ouvir-me? O
que se passa rapaz? Parece que não estás aqui.”

Nisto Martim, como que se tivesse acabado de acordar, dá um salto e


apercebe-se que Francisco estava a tentar falar com ele. “Francisco, peço
desculpa. Estava tão concentrado em ver a cidade que nem dei conta que
estava a falar comigo. É que como nunca estive em Goa e no Oriente tudo isto
para mim é algo de fascinante e novo.”

“Sim rapaz, eu percebo-te. Tu sempre sentiste o chamamento do Oriente e nem


consegues acreditar que finalmente estás em Goa. O que eu te queria dizer é
que com a chegada da S. Rafael a carreira da Índia acaba por uns tempos. Eu
dentro de uns quatro meses regresso a Portugal com o resto dos barcos desta
vez carregado de especiarias, jóias, pérolas e porcelanas. Tu és livre de
escolher o que pretendes.

Penso que já tens experiência para seres piloto ao invés de co-piloto. Já és um


homem capaz de dirigir um barco no mar alto e de te orientares sem problemas
de maior. Amanhã cada homem receberá o seu quinhão resultante da viagem
de Lisboa. Não sei se pretendes regressar para Lisboa connosco ou se tens
outros planos.”

“Francisco, fico bastante honrado por aquilo que me estás a dizer. Para mim é
mesmo uma honra ouvir das palavras de um piloto com a experiência e mestria
do Francisco que eu sou capaz de sozinho pilotar um navio. Pois eu ainda não
sei bem o que vai ser da minha vida. Ainda estou na fase de vislumbramento
com tudo aquilo que vejo diante dos meus olhos. Ainda não sei bem o que farei.
Mas até quando é que tenho que me alistar ou não na carreira de regresso?”

“Agora que perguntas isso penso que tens que te alistar para o regresso dentro
de um mês que é quando começam a efectuar os preparativos de regresso. Até
lá pensa o que é que pretendes fazer. Mas olha por ora aproveita para
descansares por hoje que é o que eu vou fazer que estou cansado.”

Martim segue o conselho de Francisco de Arriaga e também se desloca para


os seus aposentos. Os seus aposentos ficavam numa camarata onde dormiam
os homens do regimento de Goa. Eram uns aposentos bastante simples em
que cada homem tinha direito a uma cama e uns lençóis. Martim ao deitar-se
na cama sentiu-se como que abraçado pelos lençóis. Há já muitos meses que
não se deitava numa cama tão macia como aquela. Os tempos no mar eram
tempos árduos em que era necessário sofrer muitos sacrifícios e privações.
Mas ao fim de tudo esses sacrifícios nada eram, pensa ele para consigo. Todos
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por Carlos Carvalho

os sacrifícios valem a pena quando se luta por um sonho. Neste caso ele
estava a viver o seu.

Apesar de se encontrar cansado da viagem, tenta dormir, fechando para isso os


olhos mas não consegue dormir. Sente-se demasiado excitado pelo facto de
estar em Goa que nem consegue dormir. Como era possível estar neste
momento em Goa a descansar numa cama macia. Quem lhe contasse isto há
uns dois anos atrás, Martim chamaria essa pessoa de louca, pois não
acreditaria que algum dia estaria a pisar terras de Oriente. Apesar de só ter
chegado há pouco tempo já sente no ar o perfume diferente que existe nestas
terras e o misticismo que as rodeia. Realmente as sensações que sente são
bem diferentes do que as que tinha quando se deitava em Lisboa. Apesar de
cada vez que dormia em Lisboa sonhava como é que seria estar no Oriente,
desta vez era mesmo verdade. Podia abrir os olhos e picar-se porque não
estava a sonhar, era mesmo verdade.

De manhã mal o sol se começou a levantar, Martim ao ouvir o canto do galo,


que também se levantava pelo nascer do sol naquelas terras, apressa-se a
correr para fora do edifício. O edifício dava para uma rua que no fundo tinha
uma fortaleza que se encontrava junto a uma elevação em direcção a Oriente.
Sobe a elevação da fortaleza e fica a observar maravilhado o nascer do sol. Já
tinha presenciado inúmeras vezes o nascer do sol, mas nunca tinha visto um
tão bonito como este.

O céu começou a desenhar uns tons avermelhados, seguido de alaranjados e a


grande esfera a aparecer ao fundo do horizonte sobre o rio. Era como se o sol
abençoasse Goa e todos aqueles que lá habitavam. Sobre o azul do céu,
bandos de aves que Martim nunca tinha antes visto povoavam os céus em
redor do sol, como se o estivessem a abraçar.

Martim pensa para consigo como bonito era o nascer do sol, especialmente
nesta terra mística cheia de encantos e segredos. Na fortaleza encontra dois
soldados que se encontravam de vigia. Um deles era português e o outro
goense cristão e que também falava português. “Bom dia”, dizem-lhe os
soldados, “estamos a ver que você deve ter chegado há pouco tempo a estas
paragens para estar tão fascinado com o nascer do sol. Eu também a primeira
vez que o vi em Goa fiquei fascinado com a sua magia. É de facto um
espectáculo digno de se ver”.

“Bom dia, eu chamo-me Martim da Nóbrega. Cheguei ontem vindo de Lisboa.


Vim na carreira da Índia como co-piloto da S. Rafael. De momento estou a
residir ali ao fundo no quartel. De facto nunca vi um nascer do sol tão bonito
como este. Esta terra tem de facto algo de místico a rodeá-la”. Em seguida
despede-se dos dois soldados e volta em direcção ao quartel.

No quartel encontra Francisco de Arriaga, Jorge de Sá e D. Afonso de Menezes


que se encontravam na messe a comer. Pergunta se se pode juntar a eles. Eles
aludem que sim que se sente. D. Afonso de Menezes dirige-se então a todos os
homens que se encontram na mesa “acabei de ser informado pelo capitão da
fortaleza que o vice-rei vai dar um jantar esta noite e convidou-nos a todos para
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O Navegante
por Carlos Carvalho

irmos a esse mesmo jantar. Vão lá estar as pessoas mais importantes de Goa.
Membros da nobreza, militares, o bispo de Goa e alguns membros da
companhia de Jesus.”

Todos os homens dizem que é uma grande honra irem a esse jantar oferecido
pelo vice-rei e confirmam que irão estar nesse jantar.

Ao fim da tarde, encontrava-se Martim junto de Francisco de Arriaga. Acabados


de se comporem para o jantar, tendo trajado as melhores vestes que possuíam,
seguem caminho em direcção ao palácio do vice-rei, que ficava no meio da ilha
de Goa. Era um palácio imponente, que tinha sido mandado construir pelo
sultão de Bijapur antes de Goa ter sido tomada por Afonso de Albuquerque. Em
seu redor possuía grandiosos jardins, cheios de plantas exóticas que Martim
nunca antes tinha vislumbrado e uns pássaros que emitiam uns sons bastante
agudos e que tinham umas penas em forma de leque que abanavam contra a
luz do sol, reproduzindo um leque de mil cores e olhos que Martim ficou a saber
que se chamavam pavões. Nunca tinha visto um pássaro tão bonito na sua
vida.

A riqueza das suas cores era de facto incrível e para quem nunca tinha visto um
era capaz de estar horas seguidas a olhar para os múltiplos padrões de cores
que emergiam das suas penas.

Os homens sobem as escadarias do palácio. Dois guardas que se encontram à


porta perguntam o que os traz ao palácio ao que os dois homens respondem
que são convidados do vice-rei para o jantar. Os dois soldados depois de se
certificarem quem são deixam-nos entrar. A acompanhá-los em direcção a uma
sala vai um mordomo goense.

Sobem umas escadarias feitas no mais puro dos mármores e ricamente


decorada com ouro e estátuas em marfim. Finalmente entram numa sala com
um tecto decorado em tons de ouro e cortinas da mais pura seda em tons de
azul. Martim sente-se maravilhado com a imponência de riqueza oferecida pelo
palácio.

Na sala encontra-se já D. Afonso de Menezes com Jorge de Sá, alguns


elementos da companhia de Jesus, militares portugueses situados em Goa e
alguns membros da nobreza acompanhados pelas suas esposas. Martim repara
que alguns dos membros estavam casados com mulheres goesas também elas
cristãs e possuidoras de inegável beleza. Martim nunca tinha visto mulheres tão
belas na sua vida como algumas das que estava a ver naquela noite. Existia
uma política por parte dos vice-reis de promover casamentos entre membros da
nobreza local e portuguesa por forma a aumentar os laços de união entre os
dois povos.

Depois de falarem entre si, e de se terem dado a conhecer, eis que aparece um
mordomo a indicar-lhes outra sala onde decorreria o jantar e onde o vice-rei
apareceria para o jantar. Depois de se dirigirem para a sala onde se iria
desenrolar o banquete, sala essa ricamente decorada com as mais finas pecas

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de marfim e decorada com rubis e ouro, vislumbram então o vice-rei D. Luís de


Ataíde que tinha acabado de ser nomeado vice-rei há poucos meses atrás.

Cada um dos convidados aproxima-se do vice-rei beijando a sua mão em sinal


de respeito. Em seguida, o mesmo dá sinal para que se comece a servir o
jantar. Martim tem então oportunidade para provar novas iguarias que nunca
antes tinha comido e para saborear o sabor da canela, do açafrão e do caril.

Durante o jantar, Martim com os restantes convidados ouvem do vice-rei dizer


que existem planos para criar uma frota que procederá à patrulha nas
imediações de Cochim, existindo planos da parte do vice-rei em aproveitar parte
dos soldados vindos de Lisboa para essas imediações. D. Afonso de Menezes
pede licença para falar que o vice-rei acede. Diz ao vice-rei que os soldados
vindos da carreira da Índia são homens de boa fibra e que certamente
conseguirão cumprir exemplarmente o seu dever.

Martim em conversa com Francisco de Arriaga diz-lhe que gostava mesmo de


participar nessa expedição a Cochim. Será que precisavam de um piloto ou co-
piloto para uma das naus, pergunta Martim a Francisco. Este diz-lhe que não
faz ideia, mas ali ao lado estava um dos capitães que ia participar na força de
envio para Cochim. O seu nome era D. António de Noronha.

Martim dirige-se a D. António de Noronha e pergunta-lhe se ainda procuravam


pilotos para a força que ia em direcção a Cochim. Este responde que sim, que
há sempre falta de bons pilotos. Francisco de Arriaga mete-se no meio da
conversa e faz ver a D. António de Noronha que Martim apesar de jovem era
um piloto já com provas dadas. Apesar de ainda não ter sido piloto diz que ele
tem bastante experiência e que nunca vira ninguém com a idade de Martim ter
a experiência que ele tem.

D. António de Noronha diz a Martim para no dia seguinte aparecer junto da


capitania para se alistar como piloto.

Martim não cabe de contente. Iria partir em direcção a Cochim, uma outra
possessão portuguesa na Índia, estando esta situada mais a sul da Índia.
Cochim tinha sido uma das primeiras cidades a aliar-se ao reino de Portugal já
em 1500, tendo sido tornada portuguesa por volta de 1503 com o auxílio de
Duarte Pacheco Pereira. Era a segunda cidade mais importante do império da
Índia.

O jantar continua num clima de festa e animação. D. Luís de Ataíde louva o


carácter de D. Afonso de Menezes e felicita-o ao saber que tinham capturado
uma embarcação inimiga quando se encontravam a subir a costa Oriental
africana. O relato desse episódio volta a lembrar a D. Afonso de Menezes o
amigo, irmão, que encontrou no decorrer desse encontro, Abd al-Ramaan. O
que seria feito dele? Será que já tinha sido entregue pelo rei de Ormuz ao Vizir?
Tudo o que D. Afonso de Menezes desejava era que tudo corresse de feição ao
seu amigo e irmão e que nunca tivessem que se encontrar de novo numa
situação de conflito pois aí um deles morreria.

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Terminado o jantar Martim dirige-se para o quartel na companhia de Francisco


de Arriaga e Jorge de Sá. D. Afonso de Menezes iria mais tarde porque iria falar
mais um pouco com o vice-rei em privado. Durante o caminho Martim não cabia
em si de contente pelo facto de poder vir a viver uma nova aventura. Caso
conseguisse alistar-se como piloto para a missão de patrulha a Cochim teria
oportunidade de conhecer mais do Oriente, conhecer novas cidades, perfumes,
sabores, culturas.

Logo pela manhã, Martim mal acorda e depois de se ter vestido e comido
qualquer coisa na messe dirige-se em direcção à capitania de Goa. Ia
determinado a inscrever-se como piloto.

Ao passear pelas ruas de Goa volta uma vez mais a apreciar a beleza da
cidade. Era uma cidade bastante grande, com cerca de duzentos mil habitantes
rivalizando em números com as mais importantes cidades do mundo. Tinha
ruas alinhadas, um sistema de esgotos e casas bastante belas que
resplandeciam com os raios do sol. Era também uma cidade que fervilhava de
comércio vendo-se em cada canto vendedores a venderem os mais variados
produtos, desde especiarias a frutas e animais.

Pela cidade circulavam livremente cristãos, hindus e alguns mercadores judeus.


Apenas aos muçulmanos era barrada a entrada pois eles eram a forca de
oposição à presença portuguesa no Oriente porque rivalizavam com as suas
rotas do mar Vermelho e Veneza no comércio de especiarias com a Europa.

Goa era uma cidade cosmopolita onde se viam pessoas das mais diversas
origens e vestidas de mil cores. Martim admirava-se ao ver gente proveniente
de tantos lugares díspares. Chamou-lhe a atenção enquanto se deslocava em
direcção ao porto a presença de dois mercadores chineses. Nunca tinha visto
nenhum chinês anteriormente e ficou maravilhado ao reparar nas suas feições e
olhos em forma de amêndoa. Já tinha ouvido relatos de marinheiros que lhe
contaram como os chineses eram, mas era totalmente diferente ver com os
seus próprios olhos. Realmente Martim não parava de se surpreender com o
Oriente. Realmente era um lugar mágico, místico e cheio de mil cores.

Chegado à capitania, Martim dirige-se a um dos soldados que lá se encontram.


“Bom dia, o meu nome é Francisco da Nóbrega, sou piloto e venho aqui para
me inscrever como piloto para a armada que parte para Cochim. Ontem falei
com D. António de Noronha e ele disse para me dirigir à capitania para me
inscrever.” “Se D. António de Noronha lhe disse isso, pois bem, faca o favor de
entrar, realmente é aqui que se necessita de inscrever.”

Martim entra então na capitania, um edifício situado junto à foz do rio em


direcção ao mar e procede à inscrição como piloto da armada para Cochim. De
acordo com as indicações da capitania a armada partiria dentro de uma semana
e meia. Martim estava ansioso para voltar ao mar, conhecer novas paragens e
desta vez ser ele próprio piloto de um barco. Não cabia em si de contente. Volta
de novo em direcção ao quartel onde encontra Francisco de Arriaga.

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“Bom dia Francisco, já me dirigi à capitania e inscrevi-me como piloto da


armada. De acordo com as indicações que lá me foram dadas partirei dentro de
uma semana e meia em direcção a Cochim.” “Bom dia Martim”, responde
Francisco de Arriaga, “isso são mesmo boas notícias. Vais ver que vais
desempenhar exemplarmente o cargo de piloto. Isso quer dizer que dentro de
pouco tempo vou deixar de te ver. Mas enquanto isso não acontece temos que
aproveitar para confraternizar. Olha, amanhã combinei com o Jorge de Sá
darmos uma volta pela Terra Firme. Queres vir também connosco?” “Sim, claro,
quero aproveitar os dias que ainda aqui estou para conhecer esta cidade”.

Na manhã seguinte os três homens na companhia de um goense dirigem-se em


direcção à Terra Firme. Este local ficava no continente Indiano ao contrário de
Goa que ficava numa ilha do estuário do rio Mondavi. Por forma a chegarem à
zona da Terra Firme, embarcam numa fusta indo a remar até que chegam ao
seu destino. Enquanto remam, Martim repara na beleza da paisagem que se
lhe afigura diante de si. Repara no encanto das praias e coqueiros e na beleza
das aves que povoam os céus.

Chegados à Terra Firme, que era uma extensa zona de arvoredo e com alguns
campos de cultivo especialmente de arroz, os homens apressam-se a arrastar a
fusta para terra firme por forma a que não seja levada pelas marés. Uma vez
em terra firme Martim repara na beleza e contraste da paisagem. Junto ao rio a
beleza dos areais brancos com as palmeiras e um pouco mais adiante o verde
do arvoredo e ao lado os campos dos arrozais. Com o vento a bater levemente
neles os arrozais assemelhavam-se a pequenas ondas que ondulavam ao
sabor do vento.

Ao fundo conseguiam ver os trabalhadores a trabalhar nos arrozais. Alguns


estavam a proceder ao transporte da água dos canais para os campos dos
arrozais enquanto as mulheres e crianças com as suas vestimentas de cor
vermelha e laranja procediam à monda dos arrozais. Decidem aventurar-se pelo
meio do arvoredo. Todos ficam maravilhados ao verem a variedade de
vegetação que por ali habita. Como se aproximava a hora do almoço decidem
regressar até à fusta para almoçarem o farnel que tinham trazido consigo.
Martim diz para irem que ele não tinha fome, preferia ficar por ali a vislumbrar a
paisagem. Eles dizem que assim que terminassem o almoço voltariam ali.

Enquanto os homens foram almoçar, Martim fica a observar tudo o que o


rodeia. A floresta, a praia, os arrozais. Esta era uma paisagem deslumbrante.
Martim pensa para consigo que se existe o paraíso este será certamente na
Ásia tal a profusão de cores e sabores que a habita.

Como o sol se estava a colocar alto decide dirigir-se para a sombra de umas
árvores e deita-se. Sem se aperceber cai no mais profundo dos sonhos
embalado pelo vento que vai batendo na sua face e embalando os arrozais.
Cada vez que inala ar para dentro dos seus pulmões sente novos perfumes e
sensações desta terra mágica e maravilhosa.

Enquanto estava no seu profundo sono, Martim ouve o som de um tiro.


Sobressaltado levanta-se e repara então que Jorge de Sá tem uma arma na
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sua mão ainda a fumegar do disparo .”Jorge de Sá o que é que se passou?


Para que foi esse disparo? Eu estava a dormir e acordei sobressaltado com o
som do disparo.” “Martim,”, responde Jorge de Sá, “o disparo que ouviste e te
acordou fui eu quem o disparou. Como sabes fomos almoçar junto da fusta que
era onde tínhamos o farnel. Acabados de almoçar viemos de novo nesta
direcção ao teu encontro. Como não te estávamos a encontrar, chamamos por
ti mas não respondeste. Provavelmente estavas a dormir num sono tão
profundo que nem nos ouviste. Depois de te procurarmos ao fim de uma meia
hora encontramos-te aqui finalmente. Podes agradecer-me a mim por teres
acordado com vida.

Tinhas a menos de meio metro de ti uma naja. Se te virasses durante o sono ou


mal acordasses e ela se encontrasse aqui provavelmente morrerias com o seu
veneno. Mal nos apercebemos que ela se encontrava ao pé de ti e visto o
perigo que corrias decidi puxar da minha arma e disparar na cabeça dela. A
sorte é que acertei, senão já não estavas aqui a ouvir esta história.”

No fim de contar a Martim o que se tinha passado, os homens riem-se da


situação. Martim acabara de aprender mais uma lição, nunca devia baixar a
guarda em sítios que não conhece, muito menos numa terra que tinha algumas
das serpentes mais venenosas. A serpente caso o atacasse não era com o
intuito de o atacar mas antes de se defender, mas como elas não conseguem
saber das nossas intenções e têm o instinto de se defender o melhor era evitar
os encontros com elas.

No dia seguinte Martim aproveita para passear pela cidade. Visita as igrejas de
Goa construídas numa mescla da cultura indiana e portuguesa e visita pela
primeira vez os templos hindus. Apesar de Martim ser católico ao visitar os
templos hindus cheios de mil cores e embutidos no perfume do incenso sente-
se tão ou mais próximo de Deus do que numa igreja católica. Os templos eram
ricamente decorados em ouro e tinham murais pintados com cenas da criação
do mundo aparecendo em muitos deles representações de Shiva o deus da
criação e destruição.

Observa os peregrinos que vêem de longe para oferecer prendas aos templos e
as suas vestimentas em tons de azul, verde e vermelho.
As mulheres usavam véus da mais pura das sedas e jóias nos seus belos pés,
ornamentados com anéis e as mais belas pulseiras que se possa imaginar.

13. Partida rumo a Cochim e combate naval com as forças turcas

Uma semana e meia se passara desde que Martim se inscrevera na capitania


como piloto da armada que ia partir em direcção a Cochim. A armada era
comandada por D. António de Noronha. No total iriam partir em direcção a
Cochim cerca de 25 barcos. O intuito desta armada era o de dissuadir as forças
apoiadas pelos turcos em Calecute de atacarem uma vez mais as forcas
portuguesas em Cochim, pois havia rumores de que os turcos estavam a

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preparar uma grande armada para a tomarem de assalto, logo havia que agir e
antecipar os seus movimentos.

Martim ao chegar à capitania fica a saber que iria pilotar a Santa Bárbara,
protectora das trovoadas, uma nau com cerca de 220 tonéis e três mastros. A
comandá-la ia um capitão de seu nome Joaquim de Morais, homem já
experimentado nas artes da guerra. O total de elementos da tripulação era de
cerca de 200 homens entre marinheiros e soldados.

Antes de ser dada a ordem de partida da armada, o vice-rei, D. Luís de Ataíde,


resolve discursar para as tropas dizendo-lhes que estão ali para defender o
nome de Portugal e proteger a praça portuguesa de Cochim das mãos inimigas.
O bispo de Goa procede também à celebração de uma missa antes da partida
da armada, dizendo a todos os homens que o espírito de S. Francisco de
Xavier estaria com todos eles e que os protegeria de todos os perigos que
viessem a encontrar pelo caminho.

No fim da missa, é dada ordem por D. António de Noronha para que todos
subam a bordo para os seus barcos e para que seja dada ordem de partida.
São dadas ordens para que sejam levantadas as âncoras e soltas as amarras.
Os navios começam então a navegar em comboio em direcção a Cochim com o
intuito de mostrarem o poderio naval às forcas de Calecute.

Martim sente o peso da responsabilidade nos seus ombros. Pela primeira vez
estava a cumprir oficialmente o cargo de piloto numa nau. Apesar de se sentir
capacitado para cumprir os deveres de pilotar a Santa Bárbara sentia que tinha
crescido bastante como homem desde que abandonara Lisboa em direcção ao
Oriente. Consulta as cartas marítimas que lhe tinham sido facultadas antes de
embarcar e começa a delinear a rota que terão que tomar em direcção a
Cochim. De acordo com as medições do mapa, estavam a cerca de 600 milhas
de distância de Cochim pelo que demorariam cerca de duas semanas a chegar
até lá.

A bordo da Santa Bárbara, tal como no resto dos outros navios que
compunham a armada em direcção a Cochim, todos os dias os militares
praticavam fazendo exercícios de forma exaustiva por forma a que se
encontrassem em estado de prontidão imediata caso fosse necessário, pois as
forcas muçulmanas eram compostas por homens destemidos e bem
preparados.

Passou-se a primeira semana de viagem sem grandes percalços. Martim sente-


se à vontade com as suas tarefas e sente-se cada vez mais confiante no
desempenho das suas tarefas como piloto. A bordo da Santa Bárbara a moral
entre os homens era bastante elevada. O contigente era composto na sua
maioria por portugueses embora também se encontrassem no contigente
homens nativos de Goa, Damão, Cochim e Colombo que tinham nascido sobre
a égide da coroa portuguesa e que se sentiam parte do império. Alguns deles
eram filhos oriundos de casamentos mistos entre portugueses e indianas que
alguns dos vice-reis tinham procurado promover como forma de reforçar os
laços de união entre os dois povos.
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De repente ao fundo do horizonte um dos marinheiros apercebe-se de navios


que se encontravam mais para sul. Dá estas informações ao mestre da Santa
Bárbara que comunica a informação logo de seguida a Joaquim de Morais. Este
verifica que se tratam de navios turcos que possivelmente farão parte da
esquadra que tanto falavam e que se dirigia para Cochim. Faz sinais aos outros
navios que navegavam em conserva. D. António de Noronha decide atacar as
embarcações. Aposta no factor surpresa e no facto de os navios portugueses
serem mais fáceis de manejar do que os navios turcos aliados do sultão de
Calecute.

Martim volta assim a envolver-se num combate marítimo. Da outra vez tinha
sido quando se encontravam a subir a costa oriental africana tendo então
capturado Abd al-Ramaan e dizimado o resto da tripulação. Desta vez era
próximo de Cochim onde encontravam as forcas de Calecute e seus aliados. Ao
todo os navios turcos e indianos eram cerca de 30 navegando também em
conserva.

D. António de Noronha faz sinal aos navios para se separarem em dois grupos,
tentando cada um deles apanhar os navios inimigos de cada um dos lados. A
armada vinda de Goa separa-se então em dois grupos. Um dirige-se em
direcção a sudoeste e outro a sudeste procurando desse modo atacar pelos
flancos as embarcações inimigas. A Santa Bárbara faz parte do grupo que se
desloca em direcção a sudoeste. Os homens no barco apressam-se a erguer as
velas por forma a que o navio ganhe a maior velocidade possível e os canhões
começam a ser carregados. A azáfama dentro do navio é grande com homens
a correr de um lado para o outro.

Martim procura manter o navio na rota mais rápida em direcção a sudoeste de


modo a manter-se próximo dos restantes navios que compõem o grupo,
embora exista a precaução de todos para manterem alguma distância entre si
pois desse modo é mais difícil para os barcos inimigos de acertarem neles.

As embarcações inimigas são tomadas de surpresa ao verem que as forcas


portuguesas atacam dos dois lados, pelo que também têm que se separar em
dois grupos por forma a que se possam defender. Tiros de canhão começam a
ecoar de cada um dos lados. Ao serem disparadas as balas, tal era o impulso
que as mesmas faziam nos barcos que os mesmos estremeciam como se
tivessem sido atingidos por um trovão e adornavam um pouco na direcção
contrária. As balas dos canhões passam a sibilar sobre as embarcações
havendo algumas que atingem os seus alvos.

Ao fim de algumas rajadas as velas dos navios turcos encontram-se rompidas


pelo que a capacidade de impulsão dos navios é limitada. Além disso, o facto
de os canhões dos navios turcos serem de maior tonelagem do que os dos
navios portugueses, fazia com que o número de disparos fosse mais reduzido
que no caso dos portugueses. D. António de Noronha ao aperceber-se disso dá
ordens para que os navios se comecem a deslocar com maior velocidade e
comecem a atacar a partir de maior distância, pois os navios turcos não se
conseguiam mover com tanta facilidade e eram um alvo mais fácil de atingir.
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Martim procura manter a Santa Bárbara a navegar de forma veloz por forma a
que consigam atingir os navios inimigos sem sofrerem ataques dos mesmos. O
mestre da Santa Bárbara grita para com os seus homens para que continuem a
colocar balas e pólvora nos canhões e façam fogo. Os canhões estavam
divididos em grupos pares e ímpares, disparando primeiro os ímpares e
passado alguns minutos quando o navio voltava a estabilizar os pares e assim
sucessivamente.

Ao fim de umas duas horas de combate tinham-se perdido quatro navios da


armada portuguesa e quinze navios do lado das forcas turcas. Estes ao
aperceberem-se que dificilmente conseguiam ganhar procuram escapar,
deixando uns dois ou três navios mais lentos para trás por forma a que as
forcas portuguesas os atacassem e os restantes conseguissem escapar. As
forcas portuguesas ao virem que alguns navios se encontravam parados
procuraram concentrar o poder de fogo nos mesmos. Um dos tiros dos canhões
cai de repente sobre o paiol de um dos navios fazendo com que se dê uma
grande explosão e o navio atingido acabe por se afundar. D. António de
Noronha dá ordens para que comecem a disparar flechas flamejantes sobre os
restantes navios por forma a que estes comecem a arder o que vem a
acontecer.

Mal os navios turcos que ficaram para trás começam a incendiar-se são dadas
ordens para os navios portugueses se manterem afastados pois havia sempre o
perigo de um navio se incendiar em contacto com o outro. Ao fim de alguns
minutos dão-se novas explosões nos navios incendiados acabando estes
também por se afundar.

A bordo da Santa Bárbara e da restante frota Portuguesa a alegria invade as


faces de todos os homens. Tinham acabado de derrotar a frota inimiga pelo que
o momento era de festa. São disparadas rajadas de tiros para o ar em sinal de
comemoração pelo feito alcançado. Martim sente-se orgulhoso pelo facto de ter
aceite o desafio de se tornar piloto e ter partido nesta expedição rumo a
Cochim. As forças de Calecute estavam derrotadas pelo que o poder do vice-rei
sobre as águas do Índico voltava a estar uma vez mais assegurado. Agora
havia que continuar a rumar em direcção a Cochim por forma a deixar por lá
alguns reforços e proceder a reparações dos navios danificados.

Martim segura o leme nas suas mãos. Estavam aproximadamente a meio do


caminho em direcção a Cochim. O vento soprava vindo de nordeste pelo que
havia que manter o barco virado para sudeste por forma a navegar em direcção
a sul. Martim procurava sempre medir a velocidade dos ventos por forma a
determinar com a maior exactidão possível o rumo a inflectir à Santa Bárbara.
Como esta era a sua primeira viagem como piloto sentia o peso da
responsabilidade sobre si pelo que tentava cumprir com a maior perícia e
exactidão as suas tarefas.

Podia haver quem achasse que isto era excesso de zelo da sua parte, ao tentar
fazer com que tudo corresse de acordo com o planeado, mas Martim não queria
facilitar e queria mostrar a todos que era um bom piloto. A sua idade podia ao
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princípio deixar de pé atrás quem não conhecesse as suas habilidades, mas


assim que se apercebessem das suas capacidades passavam a confiar nele
como noutros pilotos mais velhos e experimentados.

Mais uma semana se passa a bordo. Um dos outros barcos que navegava em
conserva com o resto da forca de expedição começa a agitar uma bandeira no
topo do mastro principal. Era sinal de que tinham avistado terra, encontravam-
se próximos de Cochim. Martim ouve do mestre da Santa Bárbara dizer que de
acordo com as outras embarcações encontravam-se próximos de Cochim.
Havia então que começar a preparar a chegada ao porto.

Cochim era uma cidade de menor dimensão que Goa. Encontrava-se próxima
do extremo sul da parte ocidental do continente indiano sendo por isso um sítio
estratégico pois permitia controlar o tráfego marítimo.

14. Estadia em Cochim e partida para Ceilão

A frota portuguesa comandada por D. António de Noronha acabava de atracar


no porto de Cochim. A aguardar a sua chegada tinham o governador de
Cochim, D. António de Magalhães. D. António tinha sido nomeado governador
de Cochim há cerca de uns dois anos atrás, embora já habitasse por aquelas
terras há uns 10 anos, pelo que já tinha experiência na governação por aquelas
paragens e era bem visto pela população. Tinha tomado por sua esposa uma
indiana pertencente a uma família católica pelo que ele próprio já se sentia
pertencente a Cochim.

“D. António de Noronha, seja bem vindo a Cochim. Queira desde já aceitar os
meus agradecimentos a si e ao vice-rei por ter vindo acorrer de modo tão
espevito em nosso auxílio. Soube que no meio do caminho encontraram forcas
vindas de Calecute nesta direcção e que conseguiram repelir as mesmas. Se
eles tivessem chegado aqui primeiro não faço ideia do que e que aconteceria.
Nós estamos com falta de homens por aqui. Por isso é que eu escrevi ao vice-
rei a pedir reforços. As forcas de Calecute aperceberam-se da nossa fraqueza e
por isso é que tentaram atacar-nos. Com os reforços que nos trás vai ser
possível patrulharmos esta zona como deve ser. Conto consigo e com os
restantes oficiais para um jantar que irei oferecer.”

“Quero desde já agradecer as suas palavras amigáveis e dizer-lhe que lá


estarei no jantar com o resto dos oficiais. Preciso é que nos providencie
materiais e carpinteiros para procedermos a reparações dos navios. Em
seguida iremos até Ceilão fazer uma patrulha de rotina e regressaremos em
seguida em direcção a Goa.” “Não há problema. Vou procurar arranjar já os
materiais para a reparação dos navios.”

De noite, Martim com o resto dos pilotos, mestres, capitães e D. António de


Noronha dirigem-se em direcção à residência do governador de Cochim.
Apesar de não ter os mesmos luxos que o magnífico palácio do vice-rei em Goa
era um edifício imponente, situado no meio de uma praça e ladeado por uma
igreja e um templo hindu. Apesar de a igreja procurar evangelizar toda a
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população tal era de todo impossível pois a influência hindu era enorme e como
os hindus eram inimigos das forcas do crescente os mesmos eram tolerados e
vistos como aliados da coroa.

No jantar oferecido pelo governador encontravam-se também militares com as


suas esposas, algumas delas de ascendência indiana tal como a esposa do
governador e alguns comerciantes, alguns deles de nacionalidade italiana mas
que se encontravam do lado de Portugal pois desse modo tinham acesso às
especiarias a preços mais vantajosos.

Durante o jantar Martim começa a falar com um desses comerciantes, de nome


Giovanni Umani, originário de Génova e que partira para estas terras a bordo
de um navio português. O que lhe despertou curiosidade em falar com ele foi o
facto de ele também ser de uma família de comerciantes.

Martim conta a história da sua vida e o facto de também ser descendente de


uma família de comerciantes em Lisboa que importava produtos do Oriente
para reenviar os mesmos para a Flandres. Giovanni fica contente ao saber que
Martim também tem ligações ao comércio. Pergunta-lhe o que é que o levou a
deixar Lisboa e vir para o Oriente trabalhar como piloto ao invés de se dedicar
ao comércio.

Martim lá lhe conta a sua história, o fascínio que sempre tivera pelo Oriente e o
sonho de ali chegar um dia. Neste momento encontrava-se a vivê-lo e sentia-se
feliz como tal. Giovanni decide convidar Martim para trabalhar consigo. Diz-lhe
que assim Martim teria oportunidade de viajar por terras de Oriente, visitar
feitorias e comerciar por aquelas terras. Martim agradece, mas diz que por
enquanto quer permanecer como piloto pois é algo que gosta de fazer, mas no
futuro quem sabe poderia trabalhar com ele.

Giovanni diz que compreende mas se algum dia Martim quiser trabalhar com
ele bastava aparecer por Cochim que teria trabalho certo.
Na manhã seguinte começam os trabalhos de reparação nos navios. Alguns
tinham uns mastros partidos, outros umas velas rasgadas como resultado do
confronto com as forcas de Calecute, mas nada que uns dias de trabalho por
parte da tripulação e os carpinteiros disponibilizados pelo governador não
conseguissem reparar.

D. António de Noronha procura supervisionar os trabalhos de reparação.


Pergunta aos carpinteiros quanto tempo é que acham que as reparações irão
demorar. De acordo com eles dentro de uns dois dias a frota estaria como nova
e poderiam então partir. Ao saber que os trabalhos iam bem encaminhados, D.
António de Noronha dá então ordens para que comecem a proceder ao
reabastecimento dos navios com víveres por forma a que possam partir em
direcção a Ceilão em missão de patrulha antes de regressarem a Goa.

Com os navios prontos e os reabastecimentos efectuados, as tripulações


encontram-se preparadas para partir. Martim aproveita para se despedir de
Giovanni Umani e este diz-lhe para um dia o visitar que ele tem trabalho para
ele se quiser. Martim agradece e dirige-se para a Santa Bárbara. Agora teriam
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O Navegante
por Carlos Carvalho

que navegar em direcção a sul, contornar o continente indiano e aportar na ilha


de Ceilão. Em seguida voltariam a navegar em direcção a norte até voltarem a
Goa.

Com os navios aparelhados, D. António de Noronha dá então ordem de partida.


Tinham deixado parte das forcas em Cochim por forma a reforçar as defesas e
rumariam agora em direcção a Ceilão onde deixariam o restante das forcas.
Ceilão era uma ilha com uma elevada importância económica, pois era de lá
que vinha grande parte da canela e possuía nas suas entranhas os mais belos
rubis que se possam imaginar.

15. O contra golpe das forças de Calecute e o cativeiro

Levantada a âncora, o mestre da Santa Bárbara dá ordem aos marinheiros para


que desfraldem as velas. O navio começa a deslocar-se sobre o oceano em
direcção a Ceilão.
Martim, com as suas mãos sobre o leme sente o navio a atravessar as ondas
em direcção ao seu destino como se atraído por um magneto.

A viagem de Cochim a Ceilão levaria cerca de uma semana e meia. O objectivo


da mesma era deixar o restante do contingente sobre as ordens do governador
e regressar por fim a Goa. Martim estava satisfeito por se ter alistado. Assim
teve a oportunidade de mostrar o seu valor como piloto, ao comando da Santa
Bárbara e pudera também conhecer novas terras e gentes por sítios onde os
seus sonhos nasciam e habitavam.

Ao fim de uma semana de viagem, um dos navios que compunham a frota


apercebe-se da presença de navios pelas redondezas. Depois de verificarem a
sua origem constatam que se tratam de navios inimigos pertencentes às forcas
de Calecute, sendo o número de embarcações inimigas idêntico ao das forcas
portuguesas. D. António de Noronha resolve atacar as embarcações inimigas,
pois não estava nada contente em ver que o anterior ataque não tinha sido
suficientemente dissuasor.

É dada ordem aos navios para se colocarem em posição de ataque. Os


canhões começam a ser reabastecidos de balas, as velas colocadas em
posição de ataque. Martim volta uma vez mais a dirigir a Santa Bárbara em
direcção à batalha. Espera que uma vez mais consiga sair incólume desta
batalha e que não haja grandes baixas.

Os canhões começam de novo a ribombar saindo as balas em direcção aos


navios inimigos. Ao mesmo tempo que perfuram os céus volta a ouvir-se um
assobio das mesmas que ecoa pelo ar, sendo apenas sufocadas de quando em
quando pelo bater das ondas nos cascos dos navios.

Uma das balas atravessa o céu sibilando em direcção da Santa Bárbara. De


repente ouve-se o mastro principal partir e cair sobre o convés fazendo com
que o barco estremeça e alguns dos homens sejam atingidos e feridos

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por Carlos Carvalho

mortalmente. Tal como esta bala que atinge a Santa Bárbara, outras começam
a atingir outros dos navios portugueses.

D. António de Noronha não esperava que as forcas inimigas estivessem


preparadas para o encontro. Tinham sabido do ataque das forcas portuguesas
ao outro contingente e desta vez encontravam-se preparados para o encontro e
procuravam vingar-se da derrota suportada anteriormente.

Após algumas rajadas estava decidido qual o lado vencedor do dia. Os navios
portugueses que tinham menos danos decidem procurar escapar abandonando
os restantes ao seu destino. A esquadra inimiga ao aperceber-se da fuga das
forcas portuguesas decide atacar os restantes navios portugueses e dar o golpe
de misericórdia sobre os navios impossibilitados de fugir.

Martim começa a ver a vida escapar-se pelas suas mãos. Pelos vistos o seu
destino estava traçado, morrer em águas de Oriente em combate com forcas de
Calecute. Sentia que era chegada a sua hora. Apesar de morrer ainda jovem
sente que pelo menos cumprira o seu sonho de conhecer o Oriente, mesmo
que tenha pago com isso a sua vida.

De repente ouve-se o som do embate de uma embarcação inimiga que se


estaciona a bombordo da Santa Bárbara. Soldados inimigos começam a invadir
o convés do navio degolando todos aqueles que lhes fazem frente. Numa
questão de minutos apoderam-se da Santa Bárbara e aprisionam a tripulação
sobrevivente. Martim imagina qual será o seu fim próximo. Será morto pelos
soldados de Calecute pois esse era o destino normal reservado a todos os
aprisionados.

D. António de Noronha com o auxílio de um mosquete põe-se a disparar sobre


todos os soldados que encontra pela frente. Depois de gastas as balas que
tinha desembainha a espada e começa a lutar como um leão ferido de morte.
Sabia que a sua morte era certa, mas já que assim era tentaria levar com ele o
maior número de inimigos possível. De repente ouve-se um estrondo e D.
António de Noronha cai imóvel. Um dos soldados inimigos disparou sobre as
suas costas tendo conseguido matar D. António de Noronha. Morto o capitão, o
resto das tropas da Santa Bárbara dão-se por vencidas.

Um grupo de soldados dá um pontapé na cabine de pilotagem e invade a


mesma apontando as suas espadas ao pescoço de Martim. Este imobiliza-se e
coloca os seus braços no ar. Sente o frio da lâmina tocar o seu pescoço. As
suas pulsações começam a aumentar de frequência. “Chegou a minha hora.” ,
pensa ele para consigo. Um dos soldados pega nos seus braços e ata-os atrás
de suas costas imobilizando-o. Dizem-lhe para se dirigir para o convés.

Martim depara-se então com o cenário de destruição à sua frente. A Santa


Bárbara, o navio que tinha sido o primeiro a tê-lo como piloto completamente
destruída e com o resto da tripulação sobrevivente aprisionada. O mestre da
Santa Bárbara num acto de desespero e loucura pega numa navalha e tenta
atirar a mesma sobre um dos soldados inimigos. Estes ao aperceberem-se do
gesto efectuado por ele disparam sobre si. O corpo do mestre cai então sobre o
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por Carlos Carvalho

convés do navio. O resto da tripulação aprisionada fica a olhar impotente para o


que se passa. Teriam que permanecer o mais calmos possível se quisessem
pensar em sobreviver.

Martim ouve uma voz familiar. “Não pode ser”, pensa ele para consigo. “Já ouvi
esta voz.” De repente lembra-se quem é que estava a falar. Era Abd al-
Ramaan. Ao menos o facto de saber que Abd al-Ramaan se encontrava por ali
dava-lhe uma sensação de alívio. Abd al-Ramaan podia ser inimigo mas era um
homem de carácter e princípios. Martim resolve gritar pelo seu nome : “Abd al-
Ramaan, Abd al-Ramaan!!!”.

Este ao ouvir o seu nome, volta-se para ver quem o chama. Reconhece
imediatamente Martim. Dirige-se para ele “Martim, o que foste fazer rapaz,
porque é que vieste precisamente neste navio? Por Alá, porque é que isto nos
aconteceu? Bem sabes que vais ter que ser feito prisioneiro. Nada tenho contra
ti Martim, mas estás no sítio errado à hora errada. Bem me lembro da última
vez que te vi a ti e a D. Afonso de Menezes falei que esperava não vos ver mais
enquanto estivéssemos em guerra. Mas olha, vou fazer tudo o que estiver ao
meu alcance para te manter vivo. És e sou teu amigo”.

“Obrigado Abd al-Ramaan. Só te peço que olhes também pela vida destes
homens. Eles também não têm culpa do que se passa. São homens com
família e que também se encontram apanhados no meio deste conflito sem
terem escolhido as suas sortes.”

“Está bem rapaz, prometo-te que dentro do que estiver ao meu alcance,
procurarei mantê-los vivos. Agora vamos ter que vos levar a todos connosco
até Calecute. Aí pediremos um resgate ao vice-rei por forma a conseguir a
vossa liberdade.”

Martim sente-se conformado com a sua nova situação. Não havia nada que
pudesse fazer que não esperar que a sua situação se resolvesse. Acontecesse
o que acontecesse tinha que ver que por ora encontrava-se vivo e tinha que
fazer os possíveis para se manter nessa situação.

Martim de repente sente o frio das algemas a rodear os seus pulsos. Pela
primeira vez sentia-se numa situação de total impotência e submissão. A sua
vida e destino não estavam sobre si mas dependiam e muito da boa vontade de
Abd al-Ramaan. Martim pensa consigo que para cúmulo dos cúmulos tinha que
ser aprisionado por Abd al-Ramaan. O que não devia custar a ele ter que
aprisionar um amigo seu. O destino de facto estava a ser injusto para os dois.

Os homens são então transportados para os porões dos navios. Quando


Martim se prepara para descer as escadas em direcção ao porão sente uma
mão a segurar os seus ombros. Vira-se para trás e vê Abd al-Ramaan.

“Martim, tu ficas nos meus aposentos. Não permito que vás para baixo para o
porão. Nem sabes o que me custa ver-te aprisionado. O melhor que posso
fazer é ter-te o mais confortável possível”.

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“Abd al-Ramaan, nem sabes o quanto me agrada ouvir essas palavras tuas.
Mas prefiro ir para o porão com o resto dos meus companheiros. Faço parte de
um grupo e se eles sofrem quero também sofrer junto deles, pois eu sou
apenas mais um do grupo. Peço-te que compreendas esta minha decisão e não
leves a mal. Tu no teu lugar farias o mesmo.”

“Martim, tu de facto és um grande homem. Já não és rapaz mas sim um homem


de coragem. Por muito que me custe sim, aceito e compreendo a tua decisão
de ires com o resto dos teus companheiros. Mas vê lá se precisares de alguma
coisa diz, no que estiver ao meu alcance tudo farei para te ajudar.”

Uma vez no porão, os homens foram conduzidos para uma cela gigante que
tinha um grande portão a separar a divisão do acesso ao convés. Os homens
começaram a entrar dentro da mesma começando a amontoar-se, tal era a falta
de espaço.

Martim procura acalmar os homens que se encontram encarcerados junto com


ele. “Meus amigos, é verdade que nos encontramos capturados pelas forças
inimigas e estamos impotentes, tendo as nossas vidas à sua mercê. Mas a
verdade é que ainda nos encontramos vivos e o segredo para conseguirmos
minorar as privações é tentar manter a calma. Temos que confiar nas forças
inimigas. Eles podem ser nossos oponentes mas não são animais.

São homens como nós que também têm momentos de alegria e tristeza com
famílias. Conheço um dos chefes, Abd al-Ramaan. Na minha viagem até Goa
vindo de Lisboa ele fora capturado e posto a ferros. A sua tripulação ao
contrário de nós foi chacinada à sua frente. Vi o que ele aguentou sobre tortura
e o modo como passou a dar-se com o capitão mor D. Afonso de Menezes.
Posso dizer-vos que é um homem de carácter. De tudo o que depender dele
podemos estar seguros que se não levantarmos problemas conseguiremos
chegar a Calecute com vida.”

Apesar de haver alguns homens que começaram a ripostar dizendo que Martim
era um vendido às forças inimigas, as suas vozes foram logo silenciadas pelos
restantes prisioneiros que concordaram com Martim. Havia que tentar manter a
calma e fazer o possível para chegar a Calecute e ser libertado.

De noite, apesar de ser difícil distinguir a noite do dia dentro do porão pois a
pouca luz que havia era dada por uma candeia, os homens ouvem uns passos
a acorrer em direcção dos mesmos. Os passos tornam-se cada vez mais
perceptíveis até que conseguem ver a cara de um dos soldados. Vinha trazer-
lhes água e comida. De acordo com o mesmo Abd al-Ramaan tinha dado
ordens para os alimentar.

Martim sorri para si mesmo. Abd al-Ramaan era mesmo um homem às direitas.
Estava a procurar providenciar o melhor tratamento dentro do possível a todos
os homens. Afinal de contas pouco melhor podia fazer visto serem prisioneiros.

Os dias dentro do barco iam passando ao sabor do batimento das ondas. Os


homens estavam cada vez mais ansiosos por chegar a Calecute e conhecer os
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seus destinos. Já estavam fartos de se encontrarem enjaulados naquele barco


em que nem conseguiam ver a luz do dia, movimentar-se sem que batessem no
colega do lado, respirar ar sem que fosse um ar cheio de odores a mofo e
podre causado pelas fracas condições vividas a bordo. Mas havia que aguentar,
pois o segredo era procurar resistir e viver. Se continuassem vivos era grande a
probabilidade de um dia conseguirem vislumbrar a liberdade.

Uma semana se passara a bordo da embarcação onde se encontravam retidos


e capturados. De repente ouvem sinais vindos do convés. Martim consegue
aperceber-se que são manobras de aproximação. Era isso, deviam estar a
chegar a Calecute. Vira-se para os seus companheiros e diz-lhes: “Homens,
tudo indica que o nosso martírio a bordo deste barco deve estar a terminar.
Tudo indica que se encontram a fazer manobras de aproximação a um porto.
Devemos estar a chegar a Calecute. Agora temos que manter a calma e
quando nos pedirem para sair do barco teremos que o efectuar de forma
ordeira para evitar represálias desnecessárias por parte deles. Temos que nos
relembrar da nossa condição actual – prisioneiros, pelo que temos que ver que
as nossas vidas não dependem apenas das nossas acções mas também das
acções de terceiros. Temos que fazer o possível para nos mantermos vivos. Se
vivermos haverá um dia em que conseguiremos sair em liberdade. Temos que
manter a fé.”

Os homens escutam as palavras de Martim. Encontravam-se sem dúvida


perante um líder. Apesar de ter cara de menino viam nele um homem cheio de
carácter e firmeza que estava a fazer os possíveis para manter todos vivos. Sim
havia que lutar para se manterem vivos e um dia alcançarem a liberdade
almejada.

Passadas umas duas horas um grupo de soldados vem ter com eles. Começam
por abrir a porta da prisão onde se encontravam presos e pedem para que
saiam em fila. Os homens ao levantarem-se começam a cambalear. Tal tinha
sido o número de dias em que se tinham encontrado imobilizados que quase
nem se conseguiam mexer.

Sentiam um formigueiro a invadir as suas pernas e cada vez que davam um


passo não sentiam os seus pés tocarem no chão. Os soldados ao verem que
eles não começavam a andar começam a açoitá-los por forma a que se
mexam. Martim procura falar com os soldados por forma a que esperem e
mantenham a calma.

Estes ao verem que ele se dirige para eles dão-lhe um pontapé e Martim cai ao
chão. Os homens começam a virar-se contra os soldados mas Martim procura
manter a calma. Se houvesse agora uma revolta seria o fim deles, havia que
manter a calma. Martim levanta-se e é o primeiro a sair. Cambaleando, como
resultado do pontapé sofrido e de estar parado lá vai seguindo pelo seu pé. Os
outros homens seguem-no.

Já no convés Martim encontra Abd al-Ramaan. Este ao vê-lo vem logo abraçá-
lo. “Martim, estamos em Calecute. Agora vocês irão para a prisão existente aqui
no forte. Procurarei fazer com que vocês sejam tratados bem dentro das
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condições possíveis e vou assegurar-me de que as autoridades portuguesas


serão informadas o mais depressa possível da vossa situação por forma a que
seja possível tratar da vossa libertação o mais perto possível.”

“Abd al-Ramaan, quero desde já agradecer-te pelo facto de termos sido bem
tratados dentro do navio. Não nos faltou comida e água, pelo que tenho que te
agradecer o facto de teres feito o possível para que a nossa estadia aqui tenha
corrido bem dentro do possível.

Os homens acorrentados foram levados então para o cárcere existente junto ao


forte do porto de Calecute. À entrada tinham a recebê-los o capitão responsável
pelo mesmo. “Homens, é com grande honra que vos recebo aqui na prisão de
Calecute. É sempre um prazer receber forças portuguesas. Temos espaço
sempre para mais um português no calabouço. Ahahahhahahahah....”

Martim procura acalmar os homens. O que o capitão estava a fazer era tentar
humilhá-los e fazer com que alguns respondessem à afronta, mas havia que
manter a calma, pois as suas vidas estavam na mão de homens como este.

Os homens lá fora escoltados pelos soldados da prisão até às suas celas.


Apesar de terem umas pequenas janelas onde conseguiam vislumbrar o sol as
condições não eram muito melhores que as que tinham no navio. A única coisa
melhor é que tinham um pouco mais de espaço para se poderem deslocar.

Depois de todos se encontrarem dentro das celas, Martim vira-se para os


homens “Homens, agora que estamos em Calecute, as autoridades
portuguesas devem estar a ser informadas da nossa situação. Temos que
aguardar para que a nossa situação seja resolvida. Enquanto não estivermos
livres temos que nos ir exercitando aqui dentro e ir mantendo a forma, de outro
modo não sobreviveremos o cativeiro. Lembrem-se para alcançarmos a
liberdade temos que nos manter vivos. Temos que sobreviver. Para tal temos
que procurar manter boas relações com as autoridades e procurar fazer
exercícios pois de outro modo adoeceremos”.

Ao fim de umas duas semanas de cativeiro, Martim tem uma visita. Os soldados
chamam Martim, abrem a porta da cela e levam-no para uma sala. Lá tinha à
sua espera Abd al-Ramaan. Este ao ver Martim a chegar, apressa-se a dirigir-
se ao seu encontro e abraça-o. “Martim como é bom ver-te. Vocês estão a ser
bem tratados? Eu falei com o capitão da prisão para ver se vocês são bem
tratados dentro do possível, mas não há muito mais que eu possa fazer.”

“Sim, Abd al-Ramaan, dentro do possível estamos a ser bem tratados. Ao início
houve umas fricções com o capitão mas agora penso estar tudo resolvido. É
normal que ele não goste de portugueses, tal como a maioria dos portugueses
não gosta dele. Há que não esquecer que somos inimigos e muitas vezes isso
faz com que haja um véu que encubra as faces das pessoas e faça com que
não nos vejamos como homens iguais aos outros.”

“As autoridades portuguesas já foram informadas da vossa captura. Em troca


da vossa libertação como é normal foi pedido um resgate, só que as
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autoridades portuguesas recusam-se a pagar o resgate pela vossa libertação.


Temo que vocês vão ficar por aqui encarcerados por algum tempo. Por isso vim
avisar-te da situação. Vou ver o que posso fazer, talvez voltar a contactá-los
para ver se consigo desbloquear a situação mas isto não está fácil. As
autoridades portuguesas não estão a colaborar.”

“Abd al-Ramaan agradeço-te por tudo o que tens andado a fazer por mim e
pelos homens que aqui se encontram aprisionados. Pelo que me dizes não nos
resta nada que não esperar.”

Martim depois de se ter encontrado com Abd al-Ramaan fica indeciso sobre o
que fazer. Devia contar ao resto dos homens que afinal as coisas estavam
complicadas e a libertação demoraria mais tempo do que o esperado? Ou ao
invés devia actuar como se não soubesse de nada? A sua cabeça estava
inundada de incertezas. O que é que deveria fazer? Se lhes contasse podia
fazer com que alguns desanimassem e desistissem de lutar, se permanecesse
calado à medida que o tempo passava a ansiedade dos mesmos aumentaria
levando ao desespero. Após ter pensado e reflectido durante algumas horas
chega à conclusão que lhes deve contar a verdade.

“Homens, hoje estive reunido com Abd al-Ramaan. Ele comunicou-me que as
forças portuguesas já estão cientes da nossa captura e foi-lhes exigido um
resgate pela nossa libertação. De acordo com ele as forças portuguesas até
agora ainda não responderam. Logo temos que aguardar pelo momento em
que as boas novas cheguem. Temos que nos manter vivos enquanto isso não
ocorre.”

Os homens começam a olhar apreensivos uns para os outros. Será que iriam
sair daquele cativeiro com vida? Será que poderiam ver as faces das suas
mulheres, pais, irmãos, amigos uma vez mais na vida? Mas tal como Martim
lhes tinha dito só lhes restava esperar. Não havia nada que eles pudessem
fazer para influenciar um bom desfecho da situação.

Mais dois meses se passaram sem haver notícias do resgate. Os homens


continuavam a exercitar-se matinalmente por forma a que mantivessem a forma
e conseguissem sobreviver ao cativeiro. Martim torna a receber uma nova
visita. Ao ser acompanhado pelos soldados pergunta-se a si mesmo quem será
e qual o motivo da mesma. Será que afinal havia boas novas da parte das
autoridades portuguesas relativamente à libertação? É conduzido a uma sala. À
sua espera tem Abd al-Ramaan e o mercador italiano de quem se lembra de ter
conhecido em Cochim - Giovanni Umani . Apressa-se a cumprimentar os dois
homens e pergunta a Giovanni o que o trazia ali por Calecute e qual a razão da
visita.

“Martim, em Cochim vieram aos meus ouvidos notícias da vossa captura por
parte das forças de Calecute. Procurei indagar junto das autoridades
portuguesas se estava prevista a vossa libertação e ninguém me conseguia
responder. Ou diziam que não tinham conhecimento do vosso cativeiro ou
então que não sabiam como as negociações se estavam a desenrolar. Decidi
então agir por minha iniciativa e contactei uns amigos mercadores aqui de
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Cochim. Eles disseram-me que tinhas um amigo por aqui Abd al-Ramaan que
era o capitão mor da força que vos capturou. Entrei em contacto com ele e
decidi pagar o teu resgate. Quero que venhas trabalhar comigo. Preciso de um
homem com experiência de navegação e determinação junto de mim. Abd al-
Ramaan só tem falado coisas boas da tua pessoa e quero que aceites o meu
convite. Vem trabalhar comigo.”

Martim começa a ouvir as palavras de Giovanni. A sua libertação podia estar


próxima mas lembra-se dos outros homens aprisionados. “Giovanni, é uma
grande honra ter-te aqui e quero agradecer-lhe o facto de me ter visitado e
pretender libertar-me mas não posso aceitar o convite. Não sou só eu quem se
encontra preso. Também estão presos companheiros meus e não considero
aceitável eu ser solto e eles permanecerem presos.”

Abd al-Ramaan ao ouvir as palavras de Martim responde “Martim, tu és um


homem de carácter, mas tens que pensar também em ti. Já te encontras
aprisionado há tempo demais e não há resposta por parte das autoridades
portuguesas. Além disso, caso sejas libertado podes também exercer pressão
junto das autoridades por forma a que os teus restantes companheiros sejam
libertados. És mais útil para eles livre do que aqui preso com eles. Pensa bem
nisto que te digo.”

“Abd al-Ramaan está certo, Martim.”, responde Giovanni Umani, “se tu fores
comigo podes fazer pressão junto das autoridades por forma a que o resto dos
prisioneiros sejam soltos. És mais incómodo para as forças portuguesas solto
do que permanecendo em cativeiro com o resto dos teus companheiros. Podes
lutar pela libertação deles lá fora. Pensa bem no que Abd al-Ramaan te disse
Martim. Aceita por ti e pelos outros homens.”

Martim fica a pensar nas palavras de Abd al-Ramaan e Giovanni. De facto se


fosse solto podia agir e pressionar as autoridades por forma a que os restantes
homens fossem soltos. Se ficasse ali com eles provavelmente as autoridades
esquecer-se-iam do problema ou fariam por tal. Após pensar alguns momentos
decide então falar com os dois homens. Levanta-se e dirige-se para junto de
Giovanni e Abd al-Ramaan.

“Escutei os vossos conselhos e aceito ser libertado. Preferia sê-lo junto com os
restantes homens, mas penso que vocês têm razão em dizer que posso ser
mais útil para a libertação dos mesmos se me encontrar livre do que
permanecendo aqui em cativeiro junto deles. Infelizmente terei que os
abandonar mas tal será por forma a que possa lutar pela libertação dos
mesmos. Aceito o resgate, mas juro que não descansarei enquanto não
conseguir a libertação dos restantes homens.”

Abd al-Ramaan e Giovanni começam a respirar de alívio. Felizmente Martim


tinha aceite a proposta de libertação. Abd al-Ramaan sentia que se Martim não
a aceitasse dificilmente seria solto pois não via interesse da parte das
autoridades portuguesas em tratar da libertação dos homens. Ao menos assim
o seu amigo sairia em liberdade o que lhe tirava um peso da consciência, pois
sentia-se responsável pela sua captura. Maldito o dia em que se cruzaram nos
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oceanos e tiveram que combater acabando por o capturar, pensa Abd al-
Ramaan para consigo. Mas agora havia que festejar a libertação de Martim.

Giovanni sente-se contente pois vê em Martim alguém com força e


determinação para o auxiliar nos negócios por terras de Oriente. Possuía
muitos postos comerciais por terras de Oriente mas o facto de os ter entregues
a homens que apenas olhavam para os seus próprios interesses fazia com que
os negócios não estivessem tão bons como poderiam estar. Com Martim teria
alguém que poderia visitar os vários entrepostos e alguém que o ajudasse a
controlar os negócios.

16. A libertação

Depois de ter falado com Abd al-Ramaan e Giovanni Umani, Martim volta para
a cela. Ia determinado em tratar da libertação dos homens, essa seria a sua
missão agora que se encontrava solto. Não conseguia respirar sem se lembrar
cada vez que inalava o ar nas suas narinas que era um privilegiado e que tinha
companheiros seus em sofrimento. Havia que lutar por forma a que os mesmos
conseguissem sair em liberdade.

Ao chegar junto dos restantes prisioneiros, Martim diz que quer falar com todos.
Estes juntam-se e procuram escutar as suas palavras. “Acabei de ser visitado
por Abd al-Ramaan e por Giovanni Umani um mercador genovês que conheci
em Cochim. Queriam encontrar-se comigo porque Giovanni pagou o resgate da
minha libertação. Ao princípio recusei a mesma porque disse-lhes que não
queria ser o único libertado neste momento. Só sairia quando vocês saíssem
junto comigo. Mas escutei os argumentos deles. De acordo com eles sou mais
útil à vossa libertação lá fora do que aqui junto de vocês. Sou obrigado a
concordar. Não julguem que vos abandonarei. Não pensem que isto são
palavras de circunstância, não são, são palavras que vêem do fundo do meu
coração”, neste momento Martim começa a soltar lágrimas que começam a
percorrer a sua face, “não descansarei enquanto não conseguir que todos
vocês sejam libertados. Assim que for libertado procurarei falar com as forças
portuguesas e tratar da vossa libertação. Não descansarei enquanto vocês não
forem livres. Enquanto isso não acontecer não se esqueçam que têm que se
manter vivos. Procurem resistir todos os dias e continuem a exercitar-se por
forma a que se mantenham em forma.”

Nisto os homens aproximam-se de Martim e cada um deles abraça-o. Viam-no


como um líder no meio do grupo e ao escutarem as suas palavras sentiam que
não estavam a ser traídos ou abandonados. Confiavam nele e sentiam que um
dia ele seria capaz de conseguir tratar das suas libertações. Lágrimas começam
também a correr pelas faces de todos os homens. Os soldados aproximam-se e
pegam na mão de Martim, levando-o. Os homens ao verem-no a afastar-se
dizem apenas “Obrigado, obrigado Martim pela coragem que nos deste. Nós
sabemos que não te esquecerás de nós, capitão Martim”, respondem os
homens em uníssono.

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Martim olha para trás para ver os seus companheiros que permanecem em
cativeiro. Não descansaria enquanto não conseguisse tratar da libertação dos
mesmos. Era uma promessa que fazia a ele próprio. Ao subir as escadas que o
levavam em direcção à liberdade Martim começa a vislumbrar Abd al-Ramaan e
Giovanni. Encontravam-se à sua espera.

Abd al-Ramaan convida Giovanni e Martim para irem jantar com ele antes de
partirem na madrugada seguinte para Cochim. Agora que Martim era um
homem livre podia caminhar pelas ruas se bem que acompanhado por Abd al-
Ramaan não fosse um habitante local atacá-lo ao saber que ele era português
pois as relações entre os portugueses e os habitantes de Calecute não eram as
melhores.

Chegada a noite Martim junto com Giovanni e Abd al-Ramaan dirigem-se para
uma tasca onde se sentam e começam a conversar. Abd al-Ramaan pede a um
dos miúdos que se encontrava a servir para que traga chá.

Os homens começam então a conversar. “Martim, nem sabes a felicidade que


me dá saber que finalmente te encontras livre, apesar de ainda deixares os teus
amigos presos. Procurarei fazer os possíveis para que eles sejam bem tratados
enquanto não se tiver tratado da sua libertação.”

“Obrigado Abd al-Ramaan. É uma grande tristeza para mim saber que hoje me
encontro deste lado mas os meus companheiros têm que continuar presos. Mas
não descansarei enquanto não os vir libertados. Se não fosse o Giovanni a
tratar da minha libertação bem sei que continuaria nos calabouços por bastante
tempo. Por isso Giovanni quero agradecer-te do fundo do meu coração por
teres tratado da minha libertação e desse modo possibilitar-me de tratar da
libertação dos meus companheiros ainda aprisionados. Aceito de bom grado o
convite de trabalhar para ti e voltar à vida de comerciante. Já me encontro farto
de guerras e intrigas. O que eu quero mesmo é viajar e conhecer o mundo sem
que para isso tenha que entrar em guerras e disputas.”

“Martim, eu é que me considero um homem bafejado pela sorte. Acho que tu és


o homem ideal para supervisionar os meus negócios aqui pela Ásia. Quero que
tu sejas o meu braço direito e acredita que também vou tentar ajudar-te na
libertação dos teus companheiros”.

Uma vez chegado o chá os três homens começam a beber. Martim sente um
misto de sentimentos. Contente por estar livre junto de Abd al-Ramaan e
Giovanni o homem que o libertou e ao mesmo tempo com sentimentos de culpa
por se encontrar livre enquanto os seus companheiros se mantêm aprisionados
no cárcere. Mas o melhor a fazer era procurar expiar esses sentimentos de
culpa pois os mesmos não o ajudavam na sua tarefa que era fazer com que a
libertação dos seus companheiros fosse o mais breve possível.

“Abd al-Ramaan, agora que Martim está solto e vai começar a trabalhar comigo
nos negócios de comércio não quer abandonar a sua vida de militar e juntar-se
a nós? Dava-me jeito mais um braço a meu lado”, diz Giovanni Umani.

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O Navegante
por Carlos Carvalho

“Obrigado pelo convite, mas não posso aceitar. Fiz um juramento de obediência
ao sultão em servi-lo até à morte e tenciono cumprir a promessa. Apesar de
gostar de poder trabalhar consigo e especialmente com o Martim a quem vejo
como um irmão. O facto de eu ser muçulmano também penso que não iria
ajudar, pois certamente que iriam sofrer represálias por parte das autoridades
portuguesas. Além disso possuo a minha cabeça a prémio e não duvido que o
vice-rei da Índia gostaria de ver a minha cabeça pendurada numa estaca, mas
nunca lhe hei-de dar esse prazer.”

“Abd al-Ramaan tens razão ao referir que a tua cabeça se encontra a prémio.
Infelizmente as autoridades portuguesas vêem-te como um corsário ao serviço
das forças turcas e teriam o maior prazer em capturar-te. Infelizmente neste
mundo não há lugar para um homem fazer o que quer e estar junto daqueles
com quem pretende estar. Os nossos destinos não dependem apenas da nossa
vontade. Além da sorte e fortuna temos também os nossos governantes a
separar-nos. Muitas vezes questiono-me a mim próprio se os governantes
defendem mesmo os interesses do país ou os seus, especialmente depois
deste infeliz episódio da captura e todos os entraves para liberar os meus
companheiros.”

Giovanni depois de ouvir os argumentos dos dois homens acaba por concordar.
De facto seria uma atitude praticamente suicida da parte de Abd al-Ramaan se
decidisse trabalhar com ele. Mais cedo ou mais tarde as autoridades
portuguesas saberiam quem de facto era aquele homem tão temido e
procurado e não pensariam duas vezes em capturá-lo mesmo que ele já tivesse
deixado a vida de guerreiro.

Parecia que existia uma espécie de estigma da parte de quem passara pela
vida de guerreiro. Uma vez guerreiro, guerreiro seria toda a vida para aqueles
com quem se tinha lutado. De facto nem Abd al-Ramaan poderia pairar por
terras sobre domínio ou influência portuguesa ou Martim sobre terras de
influência árabe. Para toda a vida portariam esse estigma que era uma espécie
de lepra para aqueles que se encontravam do outro lado. Não era possível
distinguir o homem do guerreiro, era como se fosse uma tatuagem entranhada
na pele visível para os que ainda os viam como um inimigo.

Durante o restante tempo que permaneceram a falar os três homens ficaram


com a impressão que dificilmente se voltariam a encontrar juntos, mas também
Giovanni ficou a ver que de facto Abd al-Ramaan era um homem culto sensato
e com um grande sentido de respeito pelo próximo. Sem se aperceberem
continuaram a falar até que os raios de sol começaram a raiar. Estava na hora
de se despedirem. Martim e Giovanni iriam até Cochim onde o italiano detinha
os seus negócios e Abd al-Ramaan permaneceria uns tempos por Calecute e
posteriormente voltaria a embarcar numa força de expedição com o intuito de
defender os interesses do comércio árabe por aquelas paragens.

Abd al-Ramaan acompanha os dois homens até ao porto. Enquanto vão


caminhando pelas ruas em direcção ao porto um silêncio começa a invadir os
três homens. Era uma sensação de um adeus sem saberem se algum dia se
voltariam a encontrar. Quer Abd al-Ramaan quer Martim sabiam que o melhor
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O Navegante
por Carlos Carvalho

era até nunca mais se encontrarem, pois caso se voltassem a ver o mais
provável era encontrarem-se num cenário de confronto em que os dois teriam
provavelmente que lutar um contra o outro por algo a que eles eram alheios
mas em que seriam arrastados come um barco de noz ao ser arrastado num
ribeiro .

Chegados ao porto Abd al-Ramaan abraça Martim e diz-lhe “desejo-te o melhor


da vida, Martim, és um homem às direitas. Espero que tenhas uma vida cheia
de alegria e felicidade e que consigas obter rapidamente a libertação dos teus
companheiros. Eu vou fazer o que for possível para que eles sejam bem
tratados embora como saibas eu não tenha grande influência sobre o capitão
da prisão. Quero que saibas que me senti privilegiado por te ter conhecido
embora nunca tenha sido nas melhores ocasiões. Se encontrares D. Afonso de
Menezes dá-lhe um grande abraço da minha parte. Agora vai antes que a maré
começa a baixar e vocês não consigam sair.”

“Abd al-Ramaan nem sei o que te dizer. Se não fosses tu eu já não estaria
neste mundo e grande parte dos meus companheiros. Quero que saibas que és
um homem de carácter e que nunca conheci ninguém tão recto e amigo do seu
amigo como tu. Obrigado não chega, nem sei o que te dizer, contigo aprendi a
ser mais homem a respeitar os outros e a cumprir as minhas tarefas. Quero que
saibas que não vou desistir da libertação dos meus companheiros, não os
posso desiludir. Muito obrigado por me teres feito crescer como homem.”

Nisto Martim começa a subir em direcção ao convés com Giovanni. Ao ver Abd
al-Ramaan afastar-se não consegue evitar que algumas lágrimas comecem a
descer sobre o seu rosto. Sabia que tinha ali um amigo que infelizmente por
força das vicissitudes da vida e dos interesses económicos provavelmente não
iria voltar a ver. Mas Abd al-Ramaan tinha-lhe dado um dos maiores presentes
da vida: a amizade pura e verdadeira e além disso ajudara-o na construção do
seu eu. Desde que abandonara Lisboa, Martim já não era um menino mas sim
um homem que iria lutar pela libertação dos seus companheiros e que
procuraria conhecer o Oriente. Já não se dedicaria à arte da guerra pois ficou
chocado ao ver as atrocidades que eram feitas de parte a parte em nome dos
interesses da coroa, coroa essa que depois voltava as costas àqueles que a
tinham servido com a própria vida. Agora iria trabalhar para Giovanni, fazer o
possível e impossível por obter a libertação dos seus companheiros e viajar por
terras de Oriente em busca de comércio.

O capitão do navio onde Martim se encontrava com Giovanni dá então ordem


para levantarem a âncora e içar as velas. O navio começa então calmamente a
afastar-se de Calecute. Martim dirige-se para a popa do navio e fica a ver
Calecute a afastar-se da sua visão. Deixava para trás ao abandono os seus
companheiros e Abd al-Ramaan que tanto o ajudara e um verdadeiro amigo
que provavelmente não voltaria a encontrar.

Dentro de uma semana e meia estariam em Cochim caso não encontrassem


contrariedades pelo caminho. Martim pergunta então ao capitão do navio se ele
vê algum inconveniente em auxiliar o piloto da embarcação visto possuir
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O Navegante
por Carlos Carvalho

experiência de pilotagem. Além disso, enquanto estivesse ocupado sempre


seria mais fácil suportar a dor de ver ainda os seus companheiros e permitiria
manter a sua mente mais liberta.

O capitão do navio diz que não vê nenhum inconveniente e até pelo contrário, é
sempre bom ter mais uma pessoa com experiência de navegação a bordo. Diz
então a Martim para o seguir. Iria apresentá-lo ao piloto da embarcação e ver
no que é que Martim poderia auxiliar.

Uma vez chegados à cabine de pilotagem, o capitão apresentou Martim ao


piloto da embarcação. Este ao saber que Martim também era piloto ficou
contente pois assim teria alguém a auxiliá-lo e poderiam revezar-se por turnos.
Desse modo a viagem não seria tão extenuante para si e Martim ficou contente
ao saber que podia ser útil nesta viagem.

Os dois pilotos decidiram então pilotar por turnos. Enquanto um estivesse a


pilotar o outro aproveitaria para descansar. Martim começaria a pilotar ao fim do
dia. Até aí poderia descansar porque iria ter o navio nas suas mãos a partir da
noite. Antes de se acolher aos seus aposentos para descansar aproveita para
voltar a falar com Giovanni.

“Giovanni, sei que vou trabalhar para si mas ainda não sei muito bem quais são
as funções que me serão confiadas. Procurarei servi-lo com o máximo de afinco
possível, mas gostava de saber o que é que eu vou fazer de facto, quais é que
irão ser as minhas tarefas.”

“Claro Martim, claro que te direi quais são as tarefas que te vou confiar. Vejo
em ti um homem com carácter e com um grande futuro pela frente. Eu tenho
presença comercial em Cochim, Malaca, no Sião, Macau, Cantão e Nagasáqui.
Ora como sou só um homem, que não consegue estar em todos os lados ao
mesmo tempo torna-se difícil para mim orientar os negócios em todos esses
sítios e desconfio que quando não estou lá muitas vezes os negócios não são
geridos do modo como deviam ser, sendo muitas vezes deixados ao desleixo e
abandono pelos meus capatazes. Como este é um negócio muito lucrativo, nem
se preocupam em esforçar-se para melhorar as coisas pois para obter lucro
não é preciso grande esforço. Como vês estou preocupado com o modo como
as coisas estão a ser geridas e quero que tu sejas o meu braço direito. Quero
que tu vás visitar pessoalmente cada um desses sítios e inspeccionar o modo
como os negócios estão a ser geridos. O que te peço é algo de arriscado pois
podes vir a sofrer represálias por parte dos capatazes que não devem ficar
nada contentes ao saberem que vão ser analisados de perto, mas penso que tu
és o homem ideal para a tarefa. Mas serás bem recompensado. Vou pagar-te o
salário equivalente ao de um capitão do vice-reino da Índia e uma percentagem
de dez por cento dos lucros.”

“Giovanni, claro que aceito a tarefa que me está a ser confiada antes demais
por uma questão de honra e respeito. Estou livre neste momento graças a si.
Caso não tivesse feito por me libertar ainda estaria neste momento em cativeiro
com os meus companheiros, mas agora que estou livre posso lutar pela

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por Carlos Carvalho

libertação deles. Além disso o meu sonho é conhecer as terras de Oriente e à


conta deste trabalho vou poder seguir esse sonho.”

17. Regresso a Cochim e início dos trabalhos com Giovanni Umani

No barco de regresso a Cochim na companhia de Giovanni Umani, Martim


pensa nos seus companheiros que continuam presos. Quanto tempo levaria ele
a conseguir a sua libertação? Será que eles iriam aguentar com vida o cárcere
em Calecute? O capitão da prisão era um homem pérfido que iria fazer os
possíveis para tornar as suas vidas miseráveis e Abd al-Ramaan pouco poderia
fazer. Um sentimento de impotência e de desilusão invadia a sua alma.

Impotência pelo facto de pouco poder fazer pelos seus companheiros que não
tentar arranjar dinheiro para pagar o resgate exigido pelas forças de Calecute.
Desilusão por se sentir traído e abandonado pelas forças portuguesas. Como
era possível saberem que havia homens aprisionados em Calecute como
resultado de terem lutado pelos interesses da Coroa e nada fazerem pela sua
libertação? Se D. António de Noronha tivesse sobrevivido ao ataque talvez
tivessem feito algo pela sua libertação, mas como era apenas raia miúda que se
encontrava aprisionada ninguém se interessava ou procurava fingir que esse
episódio nunca tivera ocorrido.

Os dias passados na cabina de pilotagem ajudavam-no a descontrair-se e a


libertar-se das ideias e sentimentos que não abandonavam a sua mente. Como
era bom sentir o navio nas suas mãos à medida que se deslocava em direcção
a sul, a Cochim. Era a sua despedida do leme, deixaria a vida de piloto
passando a ser um homem de negócios a mando de Giovanni Umani. Martim
via este acontecimento como um sacrifício que teria que fazer pelos seus
companheiros. Tinha que conseguir amealhar bastante dinheiro por forma a
conseguir resgatá-los. Se ninguém se interessava por eles, ele nunca
conseguia tirar as caras de cada um da sua mente. Tinha-lhes prometido que
tudo iria fazer pela sua libertação e não iria faltar à sua palavra.

Está uma bela tarde de quarta-feira. O Sol bate no horizonte iluminando com
sua luz a bela cidade de Cochim que se avista lá ao fundo a oriente. Ao fundo
da baía era possível avistar o porto que abrigava a cidade. O navio dirige-se
lentamente em direcção ao mesmo até que as amarras se prendem junto aos
pilares do porto.

Martim desce do barco acompanhado de Giovanni Umani. Ao descer o navio


agradece ao capitão por o ter deixado conduzir o navio até ao porto. Seria a sua
despedida como piloto. Apesar de passar a ter outras funções não abandonaria
o mar, pois este era sua casa e confidente.

Giovanni leva Martim em direcção a sua casa. Chegados à mesma começa a


mostrar num mapa os locais onde tinha lojas de comércio. “Martim, estes são
os locais onde tenho as minhas lojas : encontro-me estabelecido em Malaca
onde compro pimenta, canela, gengibre, em Galle na ilha do Ceilão onde me
dedico à compra dos mais belos rubis e safiras, Macau onde faço de entreposto
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O Navegante
por Carlos Carvalho

de comércio entre a China e o Japão. Compro as mais puras e leves sedas em


Cantão, descendo o rio das pérolas em direcção a Macau onde vendo as
mesmas ao império do Japão com grande lucro e claro aqui em Cochim. Como
vês tenho negócios espalhados por muitos sítios o que não me facilita o
controlo dos mesmos. Tenho capatazes em cada um dos entrepostos mas
sabes como é. Sabem que não me encontro por lá e muitos dos lucros que
devia ter não lhes chego a deitar a vista em cima. Como isto são negócios que
dão sempre dinheiro eles desleixam-se e nem se esforçam para melhorar as
coisas. Mas isto vai mudar. Quero que tu faças visitas a cada um dos
entrepostos e dou-te plenos poderes para fazeres aquilo que bem entenderes.
Se entenderes podes substituir quem estiver à frente dos negócios. Aviso-te
que podes vir a sofrer pressões por parte dos capatazes. Eles não vão ver com
bons olhos a tua presença por lá, mas conto com a tua inteligência e
perspicácia para escapares aos perigos.”

O bom deste trabalho pensa Martim para si é mesmo a possibilidade de viajar.


Poderia andar por terras de Oriente conhecer novas gentes, culturas e ganhar
dinheiro suficiente para pagar o resgate dos seus companheiros.

Durante o jantar começa a traçar os planos com Giovanni. Martim tem a


decisão de escolher quais os sítios a visitar primeiro. Depois de olhar para o
mapa, toma uma decisão e dá a saber da mesma a Giovanni. “Já que posso ser
eu a decidir, acho que o melhor é fazer a primeira visita a Malaca. Fica mais ou
menos situado geograficamente no meio e na viagem de regresso posso passar
por Galle antes de voltar a Cochim”.

“Pois assim seja. Amanhã vou dar informações à tripulação para se prepararem
para irem até Malaca. Dentro de uma semana estarás de partida e estou
confiante que depois da tua ida até Malaca os negócios vão prosperar.”

Durante a semana de preparativos para a viagem Martim aproveita para passar


o tempo em comunhão com os elementos. Banha-se nas águas do Índico,
ficando horas a boiar dentro de água. Enquanto ouve as ondas bater sobre o
seu corpo medita. Liberta-se de todos os pensamentos fúteis que possa ter e
concentra-se nos seus companheiros. A face de cada um não lhe sai da
cabeça. Promete mais uma vez a cada um deles que os irá libertar. Têm que
aguentar o cativeiro que o momento de libertação está cada vez mais próximo.

Outro pensamento que invade sua mente é o seu novo trabalho e


responsabilidades. Será que ia estar à altura dos acontecimentos e seria capaz
de aguentar as pressões do novo cargo? Estava avisado por Giovanni que os
capatazes de cada uma das lojas iriam fazer-lhe a vida difícil, mas não sabia o
que contar. Além disso será que ele era a pessoa indicada para gerir um
negócio tão gigantesco? A pouca experiência que tinha fora adquirida na loja de
seu pai em Lisboa e quando ainda era um miúdo e decerto ia lidar com homens
bastante experientes e sabidos. Mas por ora havia que ganhar forças para
vencer todas as batalhas que iriam aparecer-lhe na frente.

É chegado o dia da partida. Martim segue acompanhado de Giovanni Umani


que o leva até ao barco que o levaria até Malaca. Ao subirem ao navio,
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O Navegante
por Carlos Carvalho

Giovanni apresenta Martim ao mestre da Sargaço, João da Ribeira. Era um


homem na casa dos seus quarenta anos, baixo e com umas enormes barbas.

“João da Ribeira, apresento-lhe o capitão da Sargaço, Martim da Nóbrega. Ele


vai ser o responsável por tudo o que se passar dentro e fora deste navio até ao
vosso regresso de Malaca. Terás que obedecer a tudo o que ele te pedir tal
como se fosse eu a fazê-lo e faz tudo para o proteger durante a viagem.”

“Sim senhor, estou aqui para vos servir Martim da Nóbrega. Em nome de toda a
tripulação da Sargaço desejo as boas vindas. Espero que venhamos a ter boas
recordações desta viagem. É bom ver um homem cheio de vida e energia a
comandar este belo navio.”

Martim fica meio anestesiado ao ouvir Giovanni e João da Ribeira falarem.


Capitão de um navio, só agora é que começa a cair em si. Vê-se de um
momento para o outro responsável pelo comando de um navio e pela vida de
uma tripulação. Pensa para consigo como conseguirá levar a missão a bom
termo. Pouca ou nenhuma experiência tinha de liderança e não era nenhum
Afonso de Menezes, o melhor líder que encontrara juntamente com Abd al-
Ramaan, mas iria ter que procurar fazer o melhor possível e não errar, pois do
seu sucesso dependiam as vidas destes homens e os companheiros
aprisionados em Calecute.

Giovanni despede-se de Martim. Deseja-lhe uma boa viagem e que consiga


reabilitar os seus negócios por Malaca e Galle. Martim tinha livre conduto para
tomar todas as decisões que entendesse por forma a melhorar os negócios.

Já sem Giovanni a bordo, Martim do alto da cabina da Sargaço olha para o


porto de Cochim e as ilhas em redor. Era o momento de dar ordem de partida
por forma a aproveitar a preia-mar e os ventos.

Dá ordem ao mestre João da Ribeira para que levantem a âncora e desfraldem


as velas. Com um safanão originado pela brisa a Sargaço começa a deslocar-
se e a navegar em direcção a Malaca.

18. Ida até à feitoria em Malaca

A viagem até Malaca levaria cerca de um mês e meio. Passariam próximos da


ilha de Ceilão e navegariam em direcção a oriente. Quando chegassem até à
península de Sião teriam que navegar em direcção a sudeste até chegarem à
cidade de Malaca.

Durante a viagem até ao destino Martim estuda com exactidão a situação dos
negócios de Giovanni em Malaca. No estabelecimento que lá tinha, Giovanni
comprava pimenta, canela e gengibre sendo parte transportada parte para os
mercados de Cochim e Goa e a restante enviada directamente para Lisboa. A
dirigir os negócios por essas terras encontrava-se um português de quem
Martim sabia o nome. Era um tal de Rodrigo da Pereira que tinha lá chegado
como soldado e por lá ficara tendo estabelecido família com uma malaia.
Segundo Giovanni os lucros enviados por esse tal Rodrigo tinham vindo a
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O Navegante
por Carlos Carvalho

baixar nos últimos tempos. Desculpava-se com o aumento da concorrência por


parte de outros comerciantes e aos ataques de alguns navios por parte de
piratas que faziam com que muita da carga se perdesse.

Martim ia determinado a indagar o que de facto se passava e quais as medidas


que teria que tomar para recuperar os negócios de Giovanni. Uma vez chegado
a Malaca procuraria ouvir a opinião das mais variadas pessoas sobre Rodrigo e
inspeccionaria ao pormenor o seu trabalho, tomando depois uma decisão.

Cinco semanas se passaram desde que a Sargaço abandonara Cochim em


direcção a Malaca. O navio encontrava-se a descer a península de Sião em
direcção a sudeste e encontrava-se próximo da cidade. De vez em quando
cruzava-se com embarcações que circulavam por aquelas águas, trocando-se
sinais entre elas por forma a terem notícias. Mais um dia e estariam em Malaca.
Apenas uma noite de viagem os separava.

Martim com a ansiedade de chegar não consegue pregar olho. Rebola na


cama, vira-se levanta-se, volta-se a deitar mas não consegue dormir. Sentia um
formigueiro na barriga motivado pela vontade de chegar e resolver os
problemas. Veste-se e dirige-se em direcção ao convés. Ao abrir a porta da
cabina sente a brisa do mar bater na sua face. Isso fê-lo sentir-se mais calmo e
confiante. Deita-se sobre o convés e fica a olhar para as estrelas. Sem se
aperceber João da Ribeira vem ter consigo e começa a meter-lhe conversa.

“Meu capitão, boa noite. O meu capitão desculpe a observação mas devia estar
a dormir, amanhã de manhã chegaremos a Malaca e tem que chegar lá cheio
de energia”.

“Agradeço a tua preocupação, João, mas não conseguia dormir. Também não
me sinto muito cansado e é bom um homem de vez em quando deitar-se e ficar
a olhar para as estrelas. Como sabes fui piloto e de vez em quando gosto de
olhar para o céu. É a maneira que tenho de passar o tempo. Fico a observar as
estrelas, a determinar a nossa posição relativa, faz-me sentir calmo. Não devia
estar a ter esta conversa contigo, mas eu ainda me sinto muito novo para ter
tamanha responsabilidade. Ninguém me obrigou a fazer seja o que for, mas
tenho medo de errar, de fazer algo que não deva. Tenho nas minhas mãos a
vida desta tripulação e os negócios de Giovanni, sinto o peso da
responsabilidade. Ainda nem há dois anos atrás era um miúdo com sonhos de
embarcar na Carreira da Índia e agora sou capitão de um navio e encarregado
de negócios. Não sei se consegues compreender mas isto é uma mudança
muito grande na minha vida. Não sei se também sabes, mas fui aprisionado por
forças turcas em Calecute e foi Giovanni quem me conseguiu soltar. Mas
apenas eu consegui sair, tenho os meus companheiros ainda todos lá e fiz-lhe
uma jura de que iria conseguir a sua libertação. As forças portuguesas não
estão minimamente preocupadas com o estado deles, são apenas raia miúda e
não acham que valha a pena pagar o resgate. Por isso resta-lhes apenas a eles
que eu consiga arranjar a soma necessária para os soltar. Não posso falhar,
não os posso desiludir”.

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O Navegante
por Carlos Carvalho

“O meu capitão não se precisa de preocupar tanto. Vai ver que vai correr tudo
bem. A sua missão em Malaca vai correr dentro do melhor. Não nos
conhecemos bem, mas pelo que Giovanni me contou e do pouco que já pude
ver o meu capitão é um homem de fibra. Não era qualquer um que conseguia
sobreviver ao cativeiro em Calecute e servir de líder para os homens lá
aprisionados. Há homens que nascem com o dom de liderar e o Martim é um
desses homens. Já vi muitos capitães passarem pela minha frente. Uns muito
bons, capazes de motivar a tripulação, outros que nem aqueciam ou arrefeciam
e outros que não tinham mesmo nenhuma vocação para comandar. Do último
grupo tenho a certeza que não faz parte, e se tudo correr como penso mostrará
ser um líder a toda a prova”.

“João da Ribeira, tenho que agradecer as palavras de confiança que deposita


em mim. Espero não o desiludir a si e a todos os que confiaram em mim. Sei
que sou bastante novo e com pouca experiência, mas conto com a sua
experiência e ajuda para me ajudar a levar a missão que trago em mãos a bom
porto."

"Martim, pode contar comigo para o que der e vier. O meu capitão pode ainda
ser novo, mas vejo em si uma aura diferente. Tem qualquer coisa de especial
em si que me atrai mas que eu não consigo explicar.

Eu também me meti nestas andanças de viajante ainda muito novo. Ainda me


lembro como se fosse hoje. Morava numa aldeia perto de Viseu e trabalhava
com os meus pais no campo, mas desde criança que me fascinava ouvir as
histórias do mar. Mais dia menos dia sabia que iria ao seu encontro. Tal
aconteceu quando eu tinha uns 15 anos de idade. Durante a noite saí de casa
sem que meus pais soubessem e viajei em direcção à cidade do Porto. Aí
consegui trabalho num barco como grumete e parti em direcção a Lisboa.

Chegado a Lisboa alistei-me como marinheiro para a Carreira da Índia, viajei


até Goa, servi no exército por terras de Oriente e cumprido o serviço militar
rumei até Cochim onde conheci na altura D. Giovanni. Ele estava à procura de
homens que quisessem trabalhar no transporte de mercadorias entre as suas
várias lojas e feitorias e assim estou há uns 15 anos nesta vida. Posso dizer-lhe
que D. Giovanni é um homem que raramente se engana nas suas escolhas. Se
ele viu em si as qualidades necessárias para ser um líder então é porque o
Martim as tem."

Os dois homens continuaram a falar até que os raios do sol começaram a


invadir a Sargaço vindos de oriente. Ao fundo no horizonte começa a avistar-se
a cidade de Malaca. João da Ribeira repara que se encontram próximos do
destino e alerta Martim. Este dá-lhe ordens para que comecem as manobras de
acostagem ao porto.

O navio entra em azáfama. Os marinheiros apressam-se a içar as velas e a


colocar a âncora. Cabos são atirados em direcção ao porto e amarrados a terra
por forma a que a Sargaço ficasse ligada a terra. Martim dá ordens aos homens
para que desçam a terra embora ficasse estabelecido que nenhum poderia
pernoitar fora da embarcação, de modo a controlar as acções dos homens.
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O Navegante
por Carlos Carvalho

Estavam ali a cumprir uma missão crítica para os negócios de Giovanni e para
os homens aprisionados em Calecute, pelo que havia a evitar desvios em
relação à missão que ali os trazia.

Acompanhado de João da Ribeira, Martim desloca-se por Malaca em direcção à


loja de Giovanni Umani. Chegados à loja perguntam a um dos moços que se
encontravam ao balcão a atender por onde andava Rodrigo da Pereira. O
miúdo um pouco atrapalhado diz que não tinha bem a certeza por onde é que
ele estaria, mas tentassem saber notícias dele em sua casa. Uma vez dadas as
indicações da sua morada dirigem-se à mesma.

Batem à porta e são atendidos por um criado. "Muito bom dia. Queremos falar
com o seu amo, Rodrigo da Pereira", diz Martim num tom de voz decidido.

"Quem deseja falar-lhe?", pergunta o criado.

"Diga-lhe que estamos aqui a mando de Giovanni Umani para ver como é que
os negócios têm andado a ser geridos e que por isso necessitamos de falar
com o seu amo."

O criado, meio atrapalhado tenta empatar os dois homens, dizendo-lhes para


esperarem numa sala que ele iria chamar o amo. Oferece-lhes vinho para beber
e fruta. Estes recusam. Com impaciência e vendo que o tempo passava , já ali
estavam parados há mais de uma hora e nada de notícias de Rodrigo da
Pereira, Martim confidencia com João da Ribeira "estou a ver que ou o Rodrigo
da Pereira não se encontra por aqui, ou se está não nos quer receber. Achas
que devo procurá-lo pelos aposentos da casa?"

"O meu capitão pediu a minha opinião por isso dar-lha-rei com o maior gosto.
Penso que sim, devemos procurar por ele aqui por sua casa porque também
não estou a ver com bons olhos toda esta espera. Algo de estranho se passa.
O quê também não sei, mas devemos procurar indagar sem mais tardar."

Dito e feito. Os dois homens começam a procurar pelos aposentos da casa de


Rodrigo da Pereira. O criado dá com eles no corredor e pergunta-lhes o que
andam a fazer por ali que o seu amo já iria ter com eles. Martim, irritado não
liga às suas palavras e continua a andar no corredor até encontrar uma porta.
Bate à mesma e não ouvindo resposta abre-a. Encontra lá dentro um homem a
dormir e junto à sua mesa de cabeceira um grande jarro meio vazio de vinho.
Decide entrar em acção. Pega nos lençóis, levantando os mesmos e despeja o
jarro de vinho sobre o homem que se encontrava a dormir. Este sobressaltado
acorda e levanta-se perguntando o que é que se passava.

"Bom dia. Você deve ser Rodrigo da Pereira. Meu nome é Martim da Nóbrega e
estou aqui em Malaca em representação de Giovanni Umani. A acompanhar-
me está o mestre João da Ribeira. Íamos ao seu encontro junto à loja mas você
não se encontrava por lá. Deram-nos a morada de sua casa, falamos com o
seu criado que disse que o ia chamar, estivemos mais de uma hora à espera e
nada. Como não estava decidido a vir ter connosco nós viemos ter consigo."

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O Navegante
por Carlos Carvalho

Rodrigo da Pereira ainda meio bêbado começa a entrar na realidade. Ainda via
as coisas meio turvas e cada palavra de Martim soava a um trovão, mas
começa a ver que as coisas não andam muito bem para o seu lado. Havia que
agir e depressa se queria manter o seu trabalho. Começa então a falar com os
dois homens.

"Eu peço antes demais desculpa pelo sucedido. Não sabia que vocês estavam
a caminho, senão tinha-me preparado devidamente para vos receber. Se não
se importam dão-me uns dez minutos para me vestir e lavar que eu vou já ter
convosco. Quanto a ti vil criado, não sei porque não me avisaste que tinha
visitas. Hás-de pagá-las."

No momento em que se prepara para bater no seu criado, João da Ribeira


segura-lhe na mão. "Acho que não é boa ideia bater-lhe. Ele limitou-se a
cumprir ordens e você é que devia ter vergonha de estar completamente
bêbado em vez de tratar dos negócios. As coisas já estão bastante más contra
si por isso não se esteja a afundar mais."

Martim acena com a cabeça, dando aprovação à atitude de João da Ribeira e


dirige-se com ele em direcção à sala. Iriam ficar ali à espera que Rodrigo da
Pereira fosse ter com eles.

Ao fim de uns vinte minutos Rodrigo da Pereira vem ter com eles. Pede uma
vez mais desculpas dando as mais variadas razões por se encontrar a dormir e
não a trabalhar e procura mostrar a Martim que tal coisa não tornará a
acontecer de novo.

Martim pede a Rodrigo da Pereira que os leve até à loja pois iria querer
consultar a documentação e o registo de compras e vendas. Este lá acaba por
aceder e lá vão os três homens em direcção à loja.

Uma vez lá chegados, Rodrigo da Pereira mostra as instalações a Martim e


João da Ribeira e diz que ultimamente as coisas têm andado meio paradas
devido ao aumento da concorrência. Conta que nos últimos tempos tinha sido
grande o afluxo de novas lojas na cidade pelo que a procura da pimenta, canela
e gengibre tinha disparado e com ela os preços. Além disso, para infortúnio
deles alguns dos navios tinham sido atacados por piratas tendo-se perdido
desse modo as cargas.

Martim depois de ouvir Rodrigo da Pereira, dirige-se para o livro de registo de


compras e vendas e começa a folhear o mesmo, tonando nota dos preços de
compra e venda. Pergunta a Rodrigo da Pereira quais os principais
fornecedores e onde os podia contactar. Este procura empatá-lo dizendo que
os fornecedores eram Malaios e que era difícil falar com eles e que muitas
vezes eles é que vinham até à loja para vender e não o contrário. Martim
desiste de saber o contacto dos mesmos, despede-se de Rodrigo da Pereira e
sai com João da Ribeira.

"João, gostava de saber a sua opinião sobre este Rodrigo da Pereira. O que é
que o seu instinto lhe diz? Bem sei que não devemos julgar as acções de um
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O Navegante
por Carlos Carvalho

homem apenas pela intuição, será necessário investigar a fundo o que se


passa, mas gostava de ter a sua opinião."

"O meu capitão quer saber o que penso, pois aqui vai. Acho que ele é um
bêbado e mentiroso que tem andado a roubar D. Giovanni nos últimos tempos.
Aposto consigo que anda a comprar as mercadorias acima do preço de
mercado ficando com uma margem para ele, embora não tenha provas para o
acusar, mas isto é o que eu penso".

"Bem sei João, bem sei que não podemos ter ideias pré-concebidas, mas eu
também partilho dessas ideias. Tenho uma ideia. Amanhã iremos viajar pelas
redondezas da cidade, passando por mercadores vindos de Portugal em busca
de especiarias e tentaremos ver quais os preços praticados. Por hoje acho que
está altura de irmos em direcção ao porto para pernoitarmos. Amanhã
continuaremos as nossas investigações."

Na manhã seguinte, Martim dirige-se com João da Ribeira até aos mercados
para indagar os preços praticados na compra da pimenta. De acordo com o que
verificou e indagou o preço oscilava entre os dois e três cruzados não variando
muito mais além disso. Começava a verificar que de facto ou Rodrigo da
Pereira andava a enganar Giovanni ou então andava a comprar sem se
preocupar com os preços que praticava. De acordo com o que tinha consultado
nos livros, os preços andavam sempre à volta dos quatro, cinco cruzados.
Rodrigo já tinha com que se preocupar, mas Martim ainda estava decidido a
investigar mais.

Depois de terem visitado o mercado, e já com a fome a apertar, Martim e João


da Ribeira vão até uma tasca para comer. Seguem pelas ruas da cidade até
que encontram uma com bastante gente lá dentro. Pensam para com eles, se
tanta gente aqui está é porque não se deve comer mal. Resolvem entrar na
mesma e pedem para comer uns peixes fritos acompanhados de vinho. O
taberneiro, apesar de ser malaio falava português pelo que era fácil o
entendimento.

Ao fim de alguns copos e já meio ambientados ao ambiente que os rodeava,


Martim pergunta ao taberneiro se conhecia Rodrigo da Pereira. Este diz-lhe que
sim, que o conhece muito bem. Uma vez que o taberneiro o conhecia, Martim
decide oferecer uns copos ao taberneiro e convida-o a sentar-se com eles.
Este começa então a falar de Rodrigo da Pereira. Segundo ele, parece que
todos os dias andava bêbado a cair por todos os cantos. Ao que tudo indicava
era tudo devido a males de amor. A sua mulher tinha-o abandonado há uns dois
anos atrás e desde aí ele nunca mais fora o mesmo. Antes era um homem
responsável e dedicado, mas não tendo superado o abandono entregou-se de
alma e coração a Baco, pelo que os negócios passaram a ser menosprezados.

Martim ao ouvir esta história, volta atrás nas decisões que já tinha tomado.
Pensava que Rodrigo andava a enganar Giovanni mas afinal tudo indicava que
os maus resultados que os seus investimentos andavam a ter por estas
paragens não se deviam a enganos mas a má gestão. Desse modo não iria

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O Navegante
por Carlos Carvalho

acusar Rodrigo da Pereira de burla e traição mas teria na mesma que o


substituir das funções.

Terminada a patuscada Martim e João da Ribeira dirigem-se de volta ao porto.


Em caminho, Martim dá uma moeda a um miúdo para dar o recado a Rodrigo
da Pereira que amanhã iriam passar pela loja e seria bom ele estar por lá.

Na manhã seguinte, quando Martim e João da Pereira chegam à loja, Rodrigo


da Pereira já lá se encontrava. Martim dá-lhe os bons dias e diz que quer falar
com ele a sós. Os dois homens dirigem-se para uma sala, fechando Martim a
porta da mesma.

"Rodrigo, Rodrigo, andei a verificar e os negócios ultimamente não têm andado


a correr muito bem. Consultei os registos de compras e vendas e tem-se
andado a comprar a pimenta a quatro cruzados quando eu no mercado a
conseguia comprar a dois, dois e meio. Como explicas esta diferença?"

Rodrigo começa a gaguejar. "Mamartim, eu eu tenho feito o que posso mas os


os fornecedores é que se recusavam a baixar o preço."

"Mas tu devias estar aqui a defender os interesses de Giovanni. Se eles não ta


vendiam mais barata ias comprá-la a outro lado. Não seria o facto de eles
verem que tu andas sempre bêbado que os levava aproveitarem-se da situação
e venderem os produtos a ti mais caros que aos outros? Não me escondas
nada porque eu já sei de tudo. Sei que ultimamente só te tens entregue à
bebida, quase nunca apareces aqui pelo trabalho e isto assim não pode ser.
Por muito que Giovanni goste de ti tu não podes viver à custa dele. Sei que
tiveste problemas familiares e somos obrigados a compreender a tua situação
delicada, mas a bebida não é solução para ninguém. Ao principio tinha a ideia
que andavas a enganar Giovanni, mas agora vejo que te tens andado a
enganar a ti próprio. Se não paras de beber arruinas a tua vida. Continuando na
situação que estás sou obrigado a substituir-te por outra pessoa, ..."

"Martim, eu compreendo. Sou um cobarde, um animal e um canalha, nem de


mim próprio sei tomar conta quanto mais dos negócios de Giovanni. Eu tenho
vergonha de mim mesmo", diz Rodrigo da Pereira, começando a chorar.

"Homem, pára com isso. Eu acredito nas pessoas e todos devem ter a
oportunidade de se redimirem. Eu deixo-te continuar à frente dos negócios se tu
me prometeres duas coisas:
1. largares a bebida e começares a ter uma vida honrosa, passando a gerir
os negócios tal como fazias há uns anos atrás ou com ainda maior afinco
2. sempre que os barcos saírem daqui carregados em direcção a Cochim
entregares um relatório com tudo o que se passa. Quero que me relates
tudo, quais as vendas, os preços de compra, se tem chovido muito ou
pouco, tudo, quero toda a informação mesmo aquela que tu julgues inútil.
Caso me falhes em algum destes pontos eu próprio venho cá e tiro-te do posto
que ocupas mas se cumprires fielmente aquilo que te disse e trabalhares com
afinco terás o meu respeito."

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O Navegante
por Carlos Carvalho

Ao ouvir as palavras de Martim, Rodrigo da Pereira coloca-se de joelhos e


dirige-se a Martim tentando beijar-lhe a mão.

"Homem, deixa-te disso e levanta-te que agora há que voltar ao trabalho. Eu


vou andar por cá mais uma semana para ver como estão as coisas. Acredito
que depois desta reunião estejamos a ver o verdadeiro Rodrigo da Pereira. O
Rodrigo que eu vi até hoje morreu aqui e nasceu um novo."

Martim com este gesto ganha a confiança de Rodrigo da Pereira. Este sabia
que a partir de agora iria ter que viver uma vida acertada, mas estava
agradecido a Martim pois tinha-o salvo a ele e aos negócios. Rodrigo estava
determinado a mostrar-lhe que era merecedor da confiança por parte de Martim
e terminada a reunião saiu da loja indo visitar todos os fornecedores por forma
a renegociar os preços.

Ao sair da sala, Martim dirige-se a João da Ribeira e conta-lhe o que se passou.


Diz que estava para substituir Rodrigo da Pereira por outra pessoa, mas achou
que ele era merecedor de mais uma oportunidade. Antes de ter tido os
problemas com a bebida Rodrigo era um bom capataz pelo que se voltasse a
ter uma vida sã tinha todas as capacidades de o voltar a ser. Além disso,
Martim sabia que uma vez ganha a confiança de Rodrigo à sua pessoa este
dificilmente o iria enganar, pois tinha que mostrar serviço e que era merecedor
da mesma. Mas, ao mínimo descuido por parte de Rodrigo, Martim seria
forçado a mudar de ideias.

João da Ribeira depois de ouvida a explicação da decisão por parte de Martim


fica mais convencido das suas qualidades como líder. De facto o mais fácil seria
substituir Rodrigo por outra pessoa, mas essa pessoa seria sempre uma
incógnita. Martim já conhecia Rodrigo, as suas fraquezas e virtudes, pelo que
sabia com o que contar e como este agora lhe devia um favor tinha que mostrar
que era merecedor da sua confiança. "O Martim rapaz que vejo diante de mim
esconde um Martim Homem dentro de si", diz João da Ribeira para consigo.

Ao fim de uma semana e com Rodrigo da Pereira renascido os negócios


voltaram a melhorar. Os preços de aquisição baixaram para metade e as
margens de lucro de Giovanni voltaram a aumentar consideravelmente. Martim
tinha sido capaz de numa única jogada recuperar os negócios de Giovanni e
ganhar o respeito e confiança de Rodrigo da Pereira. A partir de agora tinha um
homem da sua confiança a tomar conta dos negócios por Malaca.

Era chegada a hora de partir e ir em direcção a Galle, fortaleza situada na ilha


de Ceilão onde Giovanni tinha negócios de aquisição de pedras preciosas,
nomeadamente rubis da cor do ferro incandescente e safiras da cor do céu.
Martim e João da Ribeira despedem-se de Rodrigo da Pereira e este garante-
lhe que irá tomar conta dos negócios com todo o afinco. Martim dá ordem de
partida e o Sargaço começa a navegar em direcção a noroeste rumo a Galle.

19. Percalços por terras de Galle

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O Navegante
por Carlos Carvalho

Em cerca de três semanas de viagem chegariam ao forte de Galle situado no


extremo sul da ilha de Ceilão. Durante uma semana de viagem navegariam pelo
estreito de Malaca e em seguida navegariam em direcção a oeste até
chegarem a Galle o seu destino.

Durante a viagem Martim aproveita para consultar as notas que tem sobre os
negócios que Giovanni tem em Galle. Possuía aí uma feitoria que se dedicava à
venda de especiarias e compra de pedras preciosas que eram vendidas para a
Europa. Aí chegavam os mais puros rubis e safiras que eram trocados por ouro
e especiarias.

O responsável pelos negócios era Pedro Coutinho, português que tinha ido para
Galle, ao serviço do império das Índias e que por lá ficara a tomar conta dos
negócios de Giovanni. Ultimamente era elevado e anormal o número de
ataques às embarcações de Giovanni, sendo estas atingidas quase duas vezes
mais que as outras. Martim perguntava-se qual seria a razão, se o infortúnio, se
a fraca preparação na defesa das embarcações, a existência de uma
conspiração contra os interesses de Giovanni. Fosse o que se estivesse a
passar Martim estava determinado a ver o que se passava.

A Sargaço acabara de atracar no porto de Galle. Martim dá ordem aos seus


homens para descerem da embarcação e dirige-se com João da Ribeira até à
feitoria que Giovanni Umani possuía para falarem com Pedro Coutinho.

Perguntam a uns soldados onde se situa a feitoria e seguem em sua direcção.


Uma vez lá chegados, perguntam por Pedro Coutinho. A recebê-los está um
rapaz novo que vai chamar por Pedro Coutinho. Este vem de dentro da loja em
direcção ao balcão.

"Boa tarde, o que vos traz por cá e o que me querem?" - pergunta Pedro
Coutinho.

"Boa tarde, chamo-me Martim da Nóbrega e estou cá em nome de Giovanni


Umani para ver como estão a correr os negócios aqui por Galle. Aqui ao meu
lado está João da Ribeira e é o meu braço direito. Pelo que tenho ouvido tem
existido um número anormal de ataques às embarcações de Giovanni nos
últimos tempos. Há alguma explicação para o facto?"

"Isso que diz é verdade. Temos sofrido grandes perdas com esses ataques de
piratas. Eu bem que me tenho queixado às autoridades portuguesas aqui em
Galle mas estas pouco ou nada têm feito. Eu não posso fazer muito mais, tenho
apetrechado as embarcações com canhões e armamento mas os nossos
navios são comerciais e não de guerra e contra forças especializadas pouco ou
nada podemos fazer."

"Obrigado pela informação. Agora se me dá licença gostava de consultar os


registos de compras, vendas e documentos de despacho de mercadorias."

Pedro Coutinho desloca-se a uma gaveta e entrega os papéis a Martim. "Pode


olhar à vontade para os papéis mas verá que está tudo dentro das
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O Navegante
por Carlos Carvalho

conformidades. Não fossem os piratas que atacam as embarcações e os


negócios estariam a correr bem."

"Obrigado pela informação, mas peço que me deixe a sós a mim e ao João da
Ribeira que vamos analisar a documentação."

O capataz decide deixa-os em paz e volta para os seus serviços. Martim


começa a analisar a documentação com João da Ribeira. De facto os registos
encontravam-se detalhados minuciosamente, talvez até demais, havendo o
registo das compras, preços de compra, qual o vendedor, preços de venda,
data da expedição, destino dos produtos.

Ao analisarem os documentos, João pergunta a Martim onde se encontram os


registos de ataques às embarcações. Martim procura pelos mesmos e não os
encontra nos papéis entregues por Pedro Coutinho. Decide ir perguntar-lhe
pelos mesmos.

"Cá estou eu de volta. Estou a analisar os registos como o João da Ribeira e


não encontramos os registos dos ataques às embarcações. Onde é que se
encontra essa informação?"

"Esses papéis não se encontram com os que eu entreguei? Estranho. Só se


estiverem noutro sítio. Esperem um momento que eu vou procurá-los e assim
que os vir irei entregá-los."

Martim desloca-se de novo para a sala onde João da Ribeira estava a analisar
a documentação e volta a analisar a documentação enquanto aguarda pelo
regresso de Pedro Coutinho.

Passadas umas duas horas, aparece Pedro Coutinho com os papéis de volta.
"Cá estão os registos. Encontravam-se noutro sítio porque esqueci-me de os
arrumar. Há dias tinha-os consultado em casa e não os tinha arrumado."

"Obrigado, pode deixá-los aí que nós iremos consultá-los em seguida. Pode


continuar com o seu trabalho enquanto eu e o João da Ribeira continuamos a
ver os documentos."

"Martim, não sei porquê mas eu não vou muito com a cara desse Pedro
Coutinho. Parece que anda sempre nervoso e com medo que se descubra
qualquer coisa."

"Calma João. Não podemos tirar conclusões precipitadas. Temos que analisar
primeiro todos os documentos, visitar a cidade, falar com as pessoas e só então
é que se tomará uma conclusão."

Os dois homens continuam a examinar a documentação. Levou cerca de dois


dias a inspeccionarem ao pormenor todos os registos de compras, vendas e
transportes. O que era estranho era que a maioria dos ataques dava-se quando
os navios transportavam as maiores quantidades de pedras preciosas. Ou era

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O Navegante
por Carlos Carvalho

uma grande coincidência ou então alguém andava a fornecer essa informação


aos piratas. Martim decide começar a investigar essa coincidência.

No dia seguinte falam com as autoridades em Galle sobre os ataques piratas.


De acordo com o capitão do porto o número de ataques não tem aumentado
nos últimos tempos, o estranho é a maioria estar concentrada nos
carregamentos de pedras preciosas quando estes são feitos em segredo, sinal
de que havia informação sobre as cargas que estava a ser passada aos piratas
.

Martim está cada vez mais convencido que existe um esquema qualquer por
trás dos ataques, mas não tem provas. Necessitava de verificar com maior
exaustão tudo aquilo que se andava a passar por ali e não descansaria
enquanto não conseguisse revelar tudo o que se passava.

Martim decide recolher informações sobre Pedro Coutinho e começa a falar


com os habitantes de Galle. Segundo os mesmos Pedro Coutinho encontrava-
se a morar em Galle há uns dez anos, tendo ido para lá cumprir serviço militar,
casado e tornado capataz de Giovanni Umani. Sempre que Martim perguntava
mais pormenores acerca de Pedro Coutinho as pessoas diziam que não sabiam
mais nada e procuravam desviar a conversa.

O facto de as pessoas não quererem falar muito sobre Pedro Coutinho aguçou
ainda mais a curiosidade de Martim. Acompanhado de João da Ribeira vão até
ao tasco onde se juntavam os marinheiros e soldados. Começam a pagar uns
copos a todos os que lá se encontram e aproveitando o facto de as pessoas se
encontrarem animadas começam a fazer perguntas sobre Pedro Coutinho.

Ao princípio sempre que falavam no seu nome, os homens procuravam desviar


a conversa dizendo que não sabiam muita coisa, que mal o conheciam, mas
após uns copos de vinho e aguardente acompanhados de uns peixes fritos
começam a falar.

Ao que parece Pedro Coutinho tinha andado a aumentar a sua fortuna ao longo
dos últimos anos. Tinha adquirido bastantes propriedades e emprestava
dinheiro a outros comerciantes. Como ele o tinha conseguido ninguém o sabia
explicar, pois quando ele tinha chegado a Galle era um pobre homem quase
sem dinheiro para comer, não fosse o salário que ganhava na tropa e mal se
podia alimentar. Desde que começou a trabalhar com Giovanni na feitoria é que
começou a adquirir riqueza e prestígio na localidade. Todos lhe tinham muito
medo em Galle, até as próprias autoridades, pois já não era a primeira ou
segunda vez que homens que lhe tinham feito frente tinham desaparecido
misteriosamente.

Os ataques piratas costumavam dar-se sempre muito próximo de Galle, a cerca


de umas cem milhas marítimas e cada vez que os ataques se davam os piratas
apenas retiravam a carga preciosa (rubis, safiras) deixando o resto da carga,
navios e tripulação intactos.

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O Navegante
por Carlos Carvalho

Martim estava cada vez mais convencido que todos esses ataques tinham a
mão de Pedro Coutinho por trás, mas havia que o provar, pois sem provas nada
podia fazer.

De noite, estando Martim a dormir na sua cabine, ouve um barulho. A porta que
dava acesso ao seu quarto começa a ranger e quando se prepara para
levantar, sente o fio de uma faca tocar na sua garganta. Quando a lâmina
começa a deslizar, começando a fazer um corte no seu pescoço, ouve um tiro e
com ele cai a lâmina.

Vira-se assustado e vê diante de si João da Ribeira empunhando um mosquete


ainda a fumegar de pólvora.

"Meu capitão, está bem? Ouvi um barulho perto da sua cabine. Peguei logo no
mosquete, armei-o e vim ver o que se passava. Mal abri a porta vi um patife
tentar matá-lo e não tive outra opção que não disparar. Tome este pano e
coloque à volta do seu pescoço que vou chamar o físico."

Com o som do disparo junta-se um reboliço junto da Sargaço e todos os


homens começam a juntar-se no convés. João da Ribeira começa a gritar com
eles e manda-os dispersar, ordenando que redobrem as vigias. Tinham tentado
matar o capitão pelo que a partir de agora a segurança tinha que ser reforçada.

O físico dirige-se a Martim e com o auxílio de um pano molhado começa a lavar


a ferida. "O corte é apenas superficial. Vou apenas limpar com um pouco de
aguardente e colocar um pano limpo. Dentro de um dia estará totalmente
recuperado, mas até aí recomendo descanso."

Depois de ter sido tratado pelo físico, Martim manda chamar João da Ribeira.
"João, nem sei como agradecer. Não fosses tu e já não estaria aqui com vida.
Obrigado do fundo do meu coração."

"O meu capitão não tem que me agradecer. Ouvi um barulho e vim ver o que se
passava. Mas se eu tivesse chegado atrasado uns segundos não sei o que
aconteceria. Como foi possível alguém ter tentado atentar contra a sua vida?
Eu não sei não, mas acho que isto está relacionado com a história dos ataques
piratas e desvios de pedras preciosas. Mas sem provas nada podemos fazer,
mas eu se apanho o canalha que ordenou esta acção nem sei o que lhe faça.
Esgano-o com as minhas próprias mãos."

"Calma João, temos que agir com cautela e não podemos tomar acções sem
termos provas. Conseguiram identificar o corpo?"

"O assassino era um nativo, ordenei agora aos homens que o transportassem
até ao forte para ver se alguém o conseguirá identificar. Mandei reforçar a
segurança e vigia aqui no navio para evitar novo ataque. Se eu apanho quem
está por trás disto, ... ".

Devido ao ataque Martim foi obrigado a permanecer os dois dias seguintes


dentro do barco, recuperando das mazelas. Quando se sentia mais recuperado,
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O Navegante
por Carlos Carvalho

voltou a falar com João. Tinha um plano para apanhar os bandidos e gostava
de saber a sua opinião.

"João, acho que tenho uma maneira de pararmos com os ataques piratas de
uma vez por todas, mas gostava de saber a tua opinião. Então é assim, os
canalhas que estão por detrás do meu atentado devem ser os mesmos que
controlam as acções piratas. O que eu proponho é ludibriá-los. Vamos usar o
fogo contra o fogo. Eu desço a terra e peço retiro em casa do Pedro Coutinho.
Direi que vocês têm que regressar a Cochim e não podem esperar pela minha
recuperação. Eu regressarei a Cochim posteriormente na embarcação que
transporta as pedras preciosas. Ele não será suficientemente estúpido para
atentar contra a minha pessoa em sua casa e provavelmente aproveitará a
minha viagem de regresso para pôr o fim à minha vida. Mas vocês não irão até
Cochim, ficarão escondidos numa enseada que se encontra a norte daqui e
sairão de lá daqui a duas semanas. Eu farei com que o navio passe por essas
águas e encontro-vos aí nessa zona. Se formos atacados pelos piratas iremos
apanhá-los de surpresa e desmascaremos todo o esquema."

"O plano que o meu capitão me conta é muito arriscado. Pode vir a resultar,
mas a sua vida estará em constante perigo e não sei se isso será boa ideia. Eu
estou aqui para o defender e não para assistir ao seu funeral."

"A minha vida já agora se encontra em perigo, não acabei de ser atacado?
Além disso o sítio mais seguro para me encontrar nos próximos tempos será na
toca do lobo. Ele aí não me atacará de certeza. Manda prepararem uma liteira
para eu me deslocar até casa de Pedro Coutinho. Assim ele pensará que o meu
estado físico ainda é mais grave do que aquele que é na realidade. Se ele
pensar que eu estou debilitado agirá de modo mais impulsivo porque pensa que
o meu fim está próximo."

Martim chega a casa de Pedro Coutinho. "Boa tarde Martim. Como está a
recuperar do ataque? Tem-se sentido melhor? Já apanharam o criminoso que o
tentou assaltar?"

"Boa tarde. Venho aqui pedir-lhe um favor. Recebemos notícias de Giovanni


Umani e parece que ele precisa da Sargaço o mais depressa possível para
enviar mercadorias para Lisboa, pelo que a Sargaço irá ter que partir hoje.
Como eu estou combalido e o físico não acha que seja boa ideia eu viajar vinha
pedir ao Pedro Coutinho se me deixa ficar em sua casa por umas duas
semanas até melhorar. Depois seguia viagem num dos barcos de transporte de
mercadorias até Cochim."

"Mas claro que sim, nem se pensa duas vezes nisso. É preciso que o Martim
recupere a sua forma o mais depressa possível e é uma honra tê-lo em minha
casa como hóspede."

"Obrigado pela hospitalidade. Irei dar boas recomendações suas a Giovanni


Umani quando voltar a Cochim. Nem sabe a angústia que me dá ver a Sargaço
partir sem mim, mas não tenho mesmo outra alternativa. João da Ribeira, muito
obrigado por tudo o que fizeste por mim. Encontramo-nos de novo em Cochim.
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por Carlos Carvalho

Na minha ausência serás o capitão da Sargaço. Espero que a leves a bom


porto."

"Martim, é com grande pena que o deixo aqui em Galle, mas não podemos
mesmo estar aqui mais tempo. Vemo-nos então em Cochim. Aqui me despeço
de si e do Pedro Coutinho que vos irá tratar bem, não tenho a mínima dúvida.
Depressa estará recuperado."

Feitas as despedidas a Sargaço parte então supostamente rumo a Cochim,


embora fique estacionada umas milhas a norte escondida numa enseada à
espera do encontro com Martim.

Durante o período de convalescença de Martim, dá-se um encontro secreto de


Pedro Coutinho com um marinheiro. Combinam encontrar-se junto à praça
principal durante a noite. O marinheiro disfarça-se de indigente e tenta pedir
uma esmola a Pedro Coutinho.

"Uma esmola para uma pobre alma, senhor."

"Ninguém nos está a ver, podemos falar. Estou mesmo decepcionado


convosco. Pensei que a vida de Martim já não estaria neste mundo mas o
ataque falhou. Tenho-o em minha casa e assim que ele estiver melhor partirá
num navio junto com as pedras preciosas. Desta vez quero que assaltem o
navio, pilhem a carga e matem toda a tripulação. Não quero que fique nenhum
vestígio do que se passou."

"Pode contar comigo. Nós estamos metidos nisto até ao pescoço. Eu próprio
lhe cortarei o pescoço. Desta vez não falharemos."

Martim sentindo-se recuperado do ataque fala com Pedro Coutinho. "Pedro


Coutinho já me sinto em condições e recuperado. Penso que é chegada a altura
de voltar para Cochim. Quero que compre o maior número possível de rubis e
safiras porque quero levar uma boa carga para Giovanni. Temos tido azar
ultimamente e se levarmos o navio carregado poderemos recuperar muito do
dinheiro perdido. Como já não piloto há bastante tempo quero ser eu a pilotar o
navio. Comece a preparar tudo para a minha viagem."

"Com certeza, dentro de uns três dias estará tudo pronto e será possível seguir
rumo a Cochim. Mas não acha que é arriscado levar uma carga elevada de
pedras preciosas? Se houver um ataque pirata pode significar um duro golpe
nas contas."

"Pedro, obrigado pela preocupação mas não se preocupe. Se o conteúdo da


carga for anónimo não há maneira de eles saberem o conteúdo e caso ataquem
estarei lá para me defender a mim, à tripulação e carga. Isto fica à minha
responsabilidade."

"Sendo assim quem sou eu para o contradizer", responde Pedro Coutinho com
um sorriso interior. Isso seria o melhor de dois mundos. Matar Martim e
apoderar-se de carga tão preciosa. Como lhe estava a correr tão bem a vida.
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por Carlos Carvalho

Feitas as aquisições dos rubis e safiras e carregado o navio com víveres e


provisões para a viagem estava tudo a postos para a viagem até Cochim.
Martim despede-se de Pedro Coutinho, desejando que a partir de agora se
dêem menos ataques piratas.

Sobe até bordo da Tágide e apresenta-se à tripulação. "Bom dia, sou o Martim
da Nóbrega e serei o vosso capitão e piloto até Cochim. Espero que a viagem
seja agradável e que bons ventos nos levem ao nosso destino."

Depois de se ter apresentado à tripulação, dá ordem de partida. As velas são


desfraldadas e a Tágide ruma em direcção a Cochim carregada de pedras
preciosas.

Sem que os homens se apercebam, Martim faz uma ligeira alteração na rota,
indo em direcção ao ponto de encontro com a Sargaço. Ao fim de um dia
encontram-se as duas embarcações. Martim dá ordens para que os dois navios
se encostem e a tripulação da Tágide fica meio surpreendida com a manobra.
"Homens tenham calma que a tripulação do outro barco é minha conhecida. Eu
sou o capitão da Sargaço e já que nos encontramos vou só dar uma palavra ao
capitão João da Ribeira que me está a substituir."

Martim desloca-se até ao outro navio caminhando sobre uma prancha de


madeira que une as duas embarcações. Ao chegar à Sargaço dá um grande
viva aos homens e fala com João da Ribeira em privado.

"Martim, meu capitão, bons olhos o vejam. Estávamos à sua espera. Já está
recuperado do ataque?"

"Ora viva João. Já me encontro completamente recuperado. Agora que nos


reencontramos quero que vocês sigam a Tágide mas de modo a que dê a
impressão a quem está de fora que navegamos em rotas distintas."

"Pode deixar capitão, irei pedir ao piloto para manter uma certa distância entre
nós. Iremos passar despercebidos aos olhos de fora."

"Espero mesmo que este plano resulte para desmascarar de uma vez por todas
este esquema de desvio de pedras preciosas. Assim que os piratas comecem a
atacar a Tágide quero que os surpreendas e os ataques com a máxima força.
Assim não terão hipótese."

Os dois navios começam a navegar em direcção a Cochim embora mantendo


uma distância entre si. Se os piratas resolvessem atacar havia que dar a
impressão que não navegavam em conjunto.

A Tágide encontrava-se quase a atravessar o extremo norte da ilha de Ceilão e


nada de sinais de piratas. Martim começava a preocupar-se. Será que eles não
vão atacar? Não teriam eles conhecimento da carga ou teriam reparado na
presença da Sargaço e decidiram recuar?

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O Navegante
por Carlos Carvalho

Mais um dia se passou e nada de sinal dos piratas. Até que, ao pôr do sol se
ouve uma rajada de tiros de canhão. Martim ao ouvir o silvar das balas dá logo
ordem aos homens para se colocarem a postos. Como a maioria da tripulação
tem pouca experiência militar o caos começa a instalar-se a bordo da Tágide.
Martim ordena aos homens para que carreguem os canhões e comecem com
os disparos. Ao fim de uns minutos começa a avistar-se o navio pirata. Era uma
nau bastante veloz e carregada com uns 16 canhões, pelo que se não tivessem
cuidado corriam o risco de se afundarem.

Dá ordens aos homens para que disparem em direcção dos piratas por forma a
evitar que estes tentem aproximar-se demasiado. Havia que ganhar tempo para
que a Sargaço pudesse entrar em acção. Uma salva de tiros atinge a Tágide
com violência. Um dos mastros auxiliares parte-se e o navio começa a perder
velocidade. Martim pensa para consigo se não estará tudo perdido.

Grita, grita incansavelmente para os seus homens para que mantenham as


suas posições e continuem a disparar em resposta aos ataques. A cada disparo
dos canhões a Tágide estremece.

Quando o navio pirata se começa a aproximar em direcção da Tágide ouve-se


um grande estrondo. O barco pirata tinha sido atingido violentamente e ficado
sem mastro principal e com o convés parcialmente destruído.

Era a Sargaço que finalmente tinha entrado em acção. Como os piratas não
estavam a contar com ela, tinham um dos lados do navio completamente
desprotegidos e só se aperceberam da sua presença quando foram atingidos.

Os homens da Tágide ao verem o navio pirata mutilado começam a entrar em


regozijo. Martim manda acalmar os homens e insiste para que continuem a
disparar, pois o inimigo apesar de ferido ainda podia morder. Ao ser atacado de
ambos os lados pela Sargaço e a Tágide o navio pirata perde a cada salva de
tiros homens e parte da sua estrutura, ficando sem mastros, completamente a
boiar no oceano sem se poder movimentar.

Martim dá então sinal aos homens na Tágide e Sargaço para incendiarem o


navio pirata. São atiradas tochas de fogo em direcção do navio. Os piratas para
puderem fugir das chamas começam a atirar-se em direcção ao mar. Martim dá
então ordem para que recolham e prendam os sobreviventes.

Presos os sobreviventes, são todos colocados no convés da Sargaço. Havia


que começar os interrogatórios e ver quais os cabecilhas. João da Ribeira pede
a Martim para ser ele a liderar os interrogatórios. Estava disposto a fazer tudo
para extrair informação dos prisioneiros, fossem quais fossem os meios. Martim
a princípio fica reticente. Não gostava de ver os outros sofrer, mas neste caso
seria um mal menor, pois havia que apurar e encontrar os responsáveis.

João da Ribeira começa então a falar a todos os prisioneiros. Apesar de


nenhum deles ser português fala com eles de forma pausada. "Homens, vocês
estão aprisionados e sabem qual o destino dado aos piratas - a forca. Mas não

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O Navegante
por Carlos Carvalho

se preocupem que até lá irão sofrer muito e pedirem que ela venha o mais
depressa possível se não falarem e disserem qual é o vosso chefe."

Nisto pega num dos prisioneiros e manda-o colocar-se de joelhos. Pede-lhe


para este dizer qual deles é o chefe. Este acena com a cabeça e diz que não
percebe o que ele diz. Jorge da Ribeira grita com ele e o homem volta a acenar
com a cabeça que não, que não percebe. Nisto Jorge da Ribeira irado pega
numa garrafa de vidro e parte a mesma sobre o convés. Pega no homem e
obriga-o a ajoelhar-se em cima dos vidros. Este começa a gritar em Sinhala
dizendo que não percebe, não percebe português. Pelos seus joelhos sai cada
vez mais sangue, que começa a manchar o convés. Martim, horrorizado pede a
João da Ribeira para falarem a sós e manda recolherem o homem. Os outros
prisioneiros olham terrificados para João da Ribeira. Este ao olhar para cada
um deles nos olhos enquanto se desloca com Martim, vê os seus olhares
desviarem-se para baixo.

"João, não posso tolerar que sejas tão violento para com os prisioneiros. O
homem devia estar a falar a verdade e não percebia português. Não me leves a
mal mas quero ser eu a conduzir o interrogatório por ora. Pedirei a ajuda de um
intérprete que fale sinhala."

"Meu capitão, quando se faz um interrogatório temos que semear o medo. Com
o medo as pessoas falam tudo o que sabem."

"João, podes estar certo, não digo que não, mas o homem podia estar a falar a
verdade e não perceber o que estavas a dizer. Deixa-me interrogá-los com um
intérprete. Se não resultar iremos utilizar então os teus métodos, mas só como
solução de último recurso."

Os dois homens deslocam-se de novo em direcção ao convés. João da Ribeira


vai meio resignado mas a resmungar.

Martim pede a um dos marinheiros que falava português e sinhala que traduza
aquilo que ele diz. Pega num dos prisioneiros e pede ao marinheiro para
traduzir. "Quero saber uma informação. Diz-me qual é o teu chefe e se disseres
a verdade prometo que não serás condenado à morte. Intercederei a teu favor e
dos teus companheiros e sereis apenas obrigados a fazer trabalhos forçados."

O marinheiro começa a traduzir as palavras de Martim. O homem nervoso


começa a olhar para os outros prisioneiros. Ao olhar para os mesmos todos
baixam os olhos e olham para baixo excepto um deles que olha fixamente para
o prisioneiro.

Martim grita para a tripulação e diz. Agarrem nesse homem que esse é o chefe
deles. Tragam-mo até mim. Arrastado até Martim, o pirata assim que o vê fala
em português. "Vejo que recuperaste bem do ataque que sofreste. Pena o teu
pescoço ainda se encontrar intacto. Se o meu assassino tivesse feito as coisas
como devia ..."

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O Navegante
por Carlos Carvalho

Nisto João da Ribeira num acesso de raiva corre em direcção do prisioneiro e


bate-lhe com umas correntes levando-o ao chão. "Seu cão miserável.
Encontras-te preso e ainda tens a afronta de brincar? Espera que eu já te
ensino a ter respeito pelas pessoas."

"Espera João. Não vês que é isso que ele quer? Que a gente o mate para que
ele não conte nada? Não vamos entrar no jogo dele. Deixa estar que eu trato
disto. Ele não tem motivos para rir. Quero ver a cara dele quando sentir a corda
da forca apertar o seu pescoço."

Martim levanta o prisioneiro e pede para o levarem até à cabina pois queria
falar com ele num sítio mais privado. O prisioneiro é então transportado para a
cabina do capitão ficando João da Ribeira a guardá-lo com mais dois homens e
Martim.

"Aqui estamos mais à vontade para conversar. Queres beber água? Deves
estar com sede", pergunta Martim.

"De vós não quero nada. Não falo com escumalha." Nisto João da Ribeira
prepara-se para bater de novo no prisioneiro. "João, pára. Não lhe respondas.
Bates só quando eu mandar."

"Se tu não queres água assim seja, tu é que sabes. Como sabes com as provas
que temos de ti não te livrarás da forca, que é a pena para actos de pirataria.
Mas quando fores enforcado quem se irá rir de ti não sou eu, mas o teu
cúmplice por tu estares condenado e ele solto. Ele ficará com as jóias todas
que tu roubaste ao longo de todos estes ataques, rir-se-á de ti e agradecerá por
teres sido apanhado. Isto claro se não colaborares connosco. Se me disseres
quem é o teu cúmplice já não terás ninguém a rir-se de ti. Mas é claro a decisão
é sempre tua. Tu é que decides se queres ver o teu cúmplice rir-se no dia em
que fores enforcado em Galle. Ficará a viver o resto da vida dos rubis e safiras
roubados enquanto tu a arder no inferno. Um nome, quero só um nome."

"Eu não tenho nada a dizer. Não tenho cúmplices e não tenho medo de
morrer.", responde o pirata.

"Pois bem, serás enforcado em Galle. Vou dar ordens aos homens para
partirmos em direcção a Galle. Dentro de três dias chegaremos."

"Martim, vais deixar este miserável assim sem falar? Eu posso tirar qualquer
confissão da sua boca. É só estar com ele umas horas que ele contará tudo."
diz João da Ribeira.

"Não João. Não o iremos torturar fisicamente. Se ele não quer falar deixá-lo.
Garanto-te que quando chegarmos a Galle ele confessará tudo. Por ora não te
posso contar mais, mas confia em mim."

João da Ribeira apesar de respeitar a decisão de Martim, não vê como é que


ele seria capaz de extrair informações do pirata sem o torturar, mas já que ele
garantia ser capaz estava ansioso para ver como.
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O Navegante
por Carlos Carvalho

Os dois navios aportam em Galle. Ao atracarem no porto junta-se um grande


alvoroço ao saberem da notícia da captura dos piratas. Pedro Coutinho
apressa-se a dirigir ao porto e fala com Martim. Queria saber novidades e se
era verdade que tinham capturado os piratas. Martim diz que sim, que
capturaram os piratas e a rede estava desmantelada. Agora a vida voltaria ao
normal. Pedro Coutinho sente um alívio. A sua posição não tinha sido
comprometida. Assim até seria melhor. Tinha ganho o suficiente com os
ataques e assim conseguia lavar as suas mãos. Se voltasse a ter uma vida
normal sem desvios poderia viver descansado para o resto da vida. Tinha sido
o golpe perfeito.

Martim leva os prisioneiros até ao forte de Galle. Pede para falar com o
comandante. Entrega-lhe pessoalmente os prisioneiros. Este radiante agradece
a Martim por ter desmantelado a rede de piratas. Agora as águas por Ceilão
estariam livres de perigo.

No dia seguinte à detenção em Galle, o chefe dos piratas tem uma visita
inesperada. Martim vai ter com ele e pede para falar com ele a sós numa sala.
"Como vês não foi necessário confessares nada. Consegui apanhar o teu
cúmplice, Pedro Coutinho. Encontramos em casa dele uma enorme quantidade
de pedras preciosas e ele confessou tudo. Disse que tu eras o chefe da
quadrilha e que o obrigaste a entrar no esquema senão tu matá-lo-ias e à sua
família. Como ele confessou tudo irá cumprir uma pena de trabalhos forçados e
tu serás enforcado. Ele ficará a rir-se de ti quando te vir na forca. Se tivesses
confessado na altura nada disto teria acontecido."

"Não, não oiçam o que o Pedro Coutinho diz. Ele é que era o chefe. Ele
contactou-me há uns anos para atacar os navios e dividir os despojos com ele.
Ele dava-me sempre informação dos navios, carga, tripulação. Eu atacava os
navios, roubava a carga e repartia os lucros com ele. Não posso ser só eu a
pagar pelos crimes. Ele é tão ou mais culpado e deve ser enforcado como eu.
Isso não pode ficar assim."

"Muito obrigado. Acabaste de confessar tudo e era o que eu queria ouvir. Atrás
da porta estavam os guardas a ouvir a tua confissão. Eu não tinha prova
nenhuma contra o Pedro Coutinho, apenas suspeitas, mas tu agora deste-me o
que faltava."

O pirata fica a olhar para Martim com ar de furioso. Tinha acabado de ser
apanhado numa ratoeira e sem querer acabado por confessar tudo.

João da Ribeira ao saber que Martim tinha conseguido obter a confissão do


prisioneiro pergunta-lhe como o conseguira. "Foi fácil, apenas tive que jogar
mentalmente com ele. Dei-lhe a ideia que o Pedro Coutinho também estava
aprisionado mas iria ter uma pena menor. Ele assim sentiu-se injustiçado e
decidiu confessar tudo para punir o Pedro Coutinho sem saber que me estava a
dar as chaves para o cofre. Com vês eu bem que te disse que iria conseguir
obter a confissão dele sem o recurso à violência. João, a arma mais poderosa
que o homem tem não são os músculos mas a mente. Agora vamos que temos
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que voltar para Cochim. Com a rede desmantelada está o nosso trabalho por
aqui terminado."

Com a denúncia do pirata é dada ordem de prisão a Pedro Coutinho, juntando-


se ao resto dos seus comparsas. Teria a mesma sorte que o resto dos
aprisionados. Seria julgado por pirataria e cumpriria a pena de morte por forca.

Com o caso resolvido Martim volta para Cochim na Sargaço, levando consigo
as pedras preciosas.

20. Regresso a Cochim

A viagem de regresso a Cochim ocorreu sem grandes dificuldades, não tendo


havido grandes percalços. Chegados a Cochim são recebidos por Giovanni
Umani que quer saber o resultado da viagem.

"Boa tarde Martim. Bons ares te vejam. Como correu a viagem até Malaca e
Galle?"

"Ora viva Giovanni. Digamos que correu bem apesar de terem existido alguns
problemas, mas acabou por correr tudo bem.
Os negócios em Malaca vão melhorar substancialmente depois desta viagem.
Descobri que o capataz que lá se encontra, Rodrigo da Pereira tinha uns
problemas pessoais e não se estava a concentrar nos negócios como devia,
mas a partir de agora as coisas voltarão a funcionar normalmente.
Quanto à feitoria em Galle desmascarei uma rede de pirataria entre o capataz,
Pedro Coutinho e uns piratas. Ele dava-lhes indicações da partida dos navios,
conteúdo da carga, tripulação, destino e estes atacavam saqueando os
mesmos.
Cheguei a ser atacado por eles durante a noite, mas posso agradecer ao João
da Ribeira por ainda cá andar neste mundo. Ele salvou-me da morte certa,
tendo morto um dos piratas quando este se preparava para me cortar a
garganta.
Com a rede desmantelada e a quadrilha presa será necessário indicar outra
pessoa de confiança para gerir os negócios.
Na viagem de regresso consegui trazer uma quantidade considerável de rubis e
safiras pelo que dará para recuperar de alguma parte das perdas."

"Mas estás então mesmo bem fisicamente? Conseguiste recuperar do ataque?"

"Sim, encontro-me bem. Agora que isto já passou até posso dizer que o ataque
foi providencial. Permitiu enganar os piratas, pois inventei uma história que não
estava em condições de viajar e a Sargaço tinha que voltar a Cochim o mais
depressa possível. Assim, fiquei por casa do Pedro Coutinho, viajando depois
num dos barcos de transporte de mercadorias. Os piratas tentaram saqueá-lo
mas não sabiam era que a Sargaço andava por perto. Conseguimos assim
capturá-los e acabar com a rede de malfeitores."

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O Navegante
por Carlos Carvalho

"Martim, tu estás mesmo a exceder as minhas expectativas. És realmente o


homem certo para tomar conta dos meus negócios. Serás devidamente
recompensado pelo que fizeste.
Provavelmente também queres saber notícias dos teus companheiros que se
encontram em Calecute.
De acordo com as últimas informações que tenho eles ainda se encontram por
lá aprisionados. Sei que a coroa portuguesa não se tem mostrado muito
interessada no assunto, mas não te preocupes que eu hei-de arranjar maneira
de te ajudar nesse assunto."

O coração de Martim nesse momento volta a palpitar com mais força. Uma
enorme ânsia invade o seu corpo. Como gostava de estar com os seus
companheiros e libertá-los. Para os ajudar tinha que juntar a maior quantidade
de dinheiro possível para pagar o seu resgate. Mal podia esperar pelo dia em
que voltaria a ver as suas faces de novo, podendo falar com eles.

Martim aproveita os dias passados em Cochim para pescar. Era uma maneira
que tinha para passar o tempo, descontraindo-se e procurando abstrair-se das
suas angústias.

Depois de umas três semanas de descanso em Cochim, Martim fala de novo


com Giovanni Umani. Ainda não tinha visitado todas as feitorias e queria entrar
de novo em acção.

Faltava-lhe ir até à feitoria de Macau e Nagasáqui. Em Macau a maior parte do


comércio era feito com a China e o Japão. Como era proibido aos mercadores
chineses negociarem directamente com o Japão por imposição imperial, era
necessário colocar os portugueses como intermediários. Estes adquiriam sedas
na China, vendendo-as posteriormente para o Japão e Europa e no Japão
adquiriam prata que vendiam posteriormente à China. Era um negócio triangular
que servia os interesses dos comerciantes estabelecidos em Macau porque
possibilitava uma fonte segura de lucro.

"Giovanni, já estou aqui parado em Cochim há três semanas e quero voltar a


fazer o meu trabalho. Ainda me faltam visitar as feitorias em Macau e Japão e
penso ser chegada a altura de o fazer. O que me dizes?"

"Martim, tu é que sabes como te sentes. Se achas que já estás em condições


de partir até Macau e Nagasáqui tens o meu total apoio. Garanto-te que caso a
viagem até essas terras corra tão bem como a missão que fizeste em Malaca e
Galle libertarei os teus companheiros. Dou-te a minha palavra."

21. Visita à feitoria de Macau e resgate da filha de um mandarim da


China

Nunca Martim se sentira tão motivado para uma missão. Estava expectante
para entrar a bordo do barco que o levaria até terras do sol nascente e traria a
liberdade para os seus companheiros.
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por Carlos Carvalho

Preparada a Sargaço para mais uma viagem os homens rumam em direcção a


oriente. Metade do caminho seria já conhecido a Martim. Teriam que navegar
em direcção a Malaca mas continuariam navegando a sul, contornando a
península de Sião, virando em seguida em direcção a nordeste até chegarem à
foz do rio das Pérolas.

A viagem levaria aproximadamente três meses dependendo da força das


correntes e do estado do tempo e implicaria a travessia de um novo oceano
para Martim, o Pacífico.

A viagem até Malaca ocorre sem problemas de maior. Fazem por lá uma escala
de reabastecimento. Martim aproveita para se reencontrar com Rodrigo da
Pereira e verificar como andavam os negócios.
Rodrigo da Pereira recebe Martim e João da Ribeira em sua casa e agradece
uma vez mais por lhe ter salvo a vida.
De acordo com as suas indicações, Giovanni estava a ganhar cada vez mais
dinheiro por aquelas paragens. O facto de Rodrigo se ter aplicado nos negócios
e largado a vida viciosa que levava fez com que as actividades comerciais no
comércio da pimenta, canela e gengibre tivessem prosperado.

Reabastecida a Sargaço, rumam em direcção a Macau. Dentro de cerca oito


semanas estariam a pisar terras na foz do rio das Pérolas.

Principio da manhã, oito semanas se passaram desde que a Sargaço saíra de


Malaca encontrando-se perto da ilha de Coloane. Ao fundo do horizonte ouvem-
se tiros de bombarda. João da Ribeira informa Martim do sucedido e este
decide investigar. Espreita para o horizonte e vê o que aparenta ser um navio
atacado por outro.

Sem tempo para pensar, Martim resolve ir em direcção dos dois navios. Ao
aproximarem-se vêem que eram duas embarcações chinesas, pertencendo o
navio atacado à frota imperial de acordo com as bandeiras que ostentava.

"Vamos correr no encalço das duas embarcações e defender o barco da frota


imperial", diz Martim a João da Ribeira.

"Mas Martim, porque iremos meter-nos no assunto entre dois navios que não
são nossos conhecidos?"

"João, de acordo com as bandeiras aquele navio pertence à frota imperial. Se


formos ao seu auxílio isso fará com que sejamos bem vistos e facilitará o nosso
trabalho em Macau. Assim teremos possibilidade de participar na feira
internacional de Cantão. Não nos podia ter calhado melhor sorte."

É dada ordem aos homens na Sargaço para defenderem o navio da frota


imperial. Os canhões da Sargaço começam a cuspir bolas de ferro em direcção
do barco atacante. Este vendo-se apanhado desprevenido procura afastar-se o

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O Navegante
por Carlos Carvalho

mais depressa possível, acabando por se perder de vista nuns ilhéus que por ali
se encontravam próximos.

Do lado da embarcação da frota imperial são agitadas bandeiras em sinal de


agradecimento. O navio da frota imperial tinha perdido parte das velas durante
o ataque pelo que segue caminho com a Sargaço em direcção à península de
Macau.

Aportados os dois navios no porto de Macau, Martim dá ordens para descerem


a terra. A recebê-lo tinha as autoridades portuguesas que mal souberam da
notícia de uma embarcação que tinha salvo um navio da frota imperial chinesa
acorreram em direcção ao porto para receber os novos heróis.

"Muito boa tarde. Chamo-me Inácio Fonseca e sou o capitão do porto de


Macau. Fui informado que vocês acabaram de salvar um navio da frota
imperial. Nem sabem com quanto agrado soube dessa notícia. O facto de uma
embarcação portuguesa ter salvo um navio da frota imperial fortalece mais a
nossa força aqui em Macau. Estas águas costumavam estar enxameadas de
piratas. Temos conseguido capturar grande parte deles, mas há sempre uns
que conseguem escapar, mas vocês hoje conseguiram mais uma vitória."

"Muito obrigado. Chamo-me Martim da Nóbrega e estou aqui em negócios. Vim


visitar uma loja do meu patrão Giovanni Umani e ver como se encontram os
negócios por aqui. Por acaso sabe dizer-me quem viaja no navio imperial?"

"Não lhe sei dizer. Ainda ninguém desceu do navio. Acabei de enviar um
emissário para oferecer os nossos serviços de acolhimento e auxílio nas
reparações. O nosso comandante convidou o capitão do navio da frota imperial
e gostava de contar também com a vossa presença."

"Pode dizer ao seu comandante que irei ao jantar com todo o gosto."

"Muito bem. O jantar será servido às sete na casa do comandante perto do


templo de A-Ma."

Martim prepara-se para o jantar e dirige-se em direcção ao templo de A-Ma.


Macau era uma pequena vila, situada numa encosta composta por um
aglomerado de casas próximas do porto. Uma quantidade de vegetação
rodeava a vila e separava-a da China em parte pela foz do Rio das Pérolas e
por um estreito. A rodeá-lo encontrava-se um conjunto de várias ilhas sendo as
duas maiores Taipa e Coloane onde os piratas procuravam refúgio
escondendo-se dentro de cavernas abertas para o mar, dificultando a sua
captura.

Martim apresenta-se na casa do comandante. Este recebe-o pessoalmente.

"Muito boa noite, chamo-me José Vasconcelos e sou o comandante das forças
portuguesas em Macau. Soube do grande feito efectuado por você hoje de
manhã. Ajudou a cimentar as relações com o império chinês. É com grande
honra que o recebo em minha casa."
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O Navegante
por Carlos Carvalho

"Boa noite. Sou Martim da Nóbrega e encontro-me em Macau por motivos de


negócios. Venho visitar uma loja que o meu patrão, Giovanni Umani aqui
possui, e ver o que posso fazer para expandir os negócios. O que eu e a minha
tripulação fizeram hoje foi o que qualquer capitão faria, defender quem se
encontrava desprotegido e em perigo."

"Isso diz o Martim, mas garanto-lhe que devem contar-se pelos dedos da minha
mão o número de homens que fariam tal acto heróico."

Martim dirige-se em direcção à sala onde seria servido o jantar. Ao entrar na


sala acompanhado de José Vasconcelos verifica que os oficiais chineses já se
encontram dentro da sala acompanhados por uma mulher rodeada de suas
damas de companhia.

José de Vasconcelos apresenta Martim ao capitão da embarcação. Este


agradece a Martim o facto de os ter ajudado. Estava ao serviço do mandarim de
Heong San que controlava as terras circundantes a Macau e ia levar a sua filha
mais nova até Cantão que ia de visita à feira internacional.

Martim tem oportunidade de conhecer a filha do mandarim. Ela desloca-se em


sua direcção e agradece-lhe por ele lhe ter salvo a vida. Seu nome era Nia
Zhing . Assim que Martim a vê aproximar-se começa a ficar hipnotizado pela
sua beleza e presença. Nunca tinha visto uma mulher com uma forma tão bela
e delicada. Era alta, esguia e seu rosto enigmático. Cada vez que ela falava
para o tradutor, Martim olhava em direcção a seus lábios de avelã. Não
conseguia desviar o seu olhar dos olhos de Nia Zhing. Esta ao ver que Martim
não tirava os olhos de si, ri-se timidamente e afasta-se.

Martim sentia o seu coração bater de forma intensa e suas pernas trémulas. Já
tinha visto mulheres bonitas em sua vida, mas nunca uma lhe tinha provocado
este efeito. Que mulher era aquela que Martim acabara de conhecer que era
capaz de o deixar desorientado.

Durante o jantar, Martim fala das suas viagens a José de Vasconcelos e aos
convidados chineses, mas sempre que pode lança olhares sobre Nia Zhing.
Sua face era como um magneto. Não conseguia desviar seus olhos dela.

Fica a saber que efectuadas as reparações o navio imperial rumaria até terras
de Cantão para a feira internacional. Martim vê aí a sua oportunidade de poder
voltar a ver Nia Zhing. Pergunta ao capitão da frota se as inscrições para a feira
ainda se encontravam abertas, pois estava interessado em viajar até lá em
negócios. Este responde que não mas visto Martim os ter salvo do ataque
abririam uma excepção podendo Martim navegar até Cantão.

Martim não cabe em si de contente. Teria oportunidade para ver Nia Zhing de
novo. Terminado o jantar, uma das damas de companhia dirige-se junto a
Martim e entrega-lhe um lenço de seda. Martim coloca sorrateiramente o lenço
dentro do seu casaco sem que ninguém se aperceba.

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O Navegante
por Carlos Carvalho

De regresso à Sargaço, tem a oportunidade de ver à vontade o lenço. Era um


lenço de Nia Zhing, podendo ainda sentir-se o seu perfume. Martim agarra no
lenço e guarda-o debaixo de sua almofada. Era um sinal de que Nia Zhing
também se mostrara interessada em Martim.

Durante a noite Martim não consegue pregar olho. Vira-se para um lado, para o
outro mas do seu pensamento não sai a imagem de Nia Zhing. Sem se
aperceber acabara de se apaixonar.

Na manhã seguinte desce de novo a terra. Vai ao encontro do encarregado de


negócios de Giovanni Umani por aquelas terras. Seu nome era António
Nogueira. Encontrava-se há uns doze anos a viver em Macau e era capaz de
falar cantonense e escrever chinês.

Chegado à loja, Martim apresenta-se como um representante de Giovanni


estando ali para falar com António Nogueira.
"Bom dia, chamo-me Martim da Nóbrega e encontro-me aqui em representação
de Giovanni Umani para ver como correm os negócios por estas paragens e o
que é necessário fazer para expandir os mesmos. A acompanhar-me tenho
João da Ribeira, mestre da Sargaço o navio que nos trouxe até terras de
Macau."

António Nogueira cumprimenta os dois homens.

"Bom dia, chamo-me António Nogueira e sou o encarregado de negócios aqui


em Macau. Vocês vieram então a estas paragens ver como se encontram os
negócios. Pois bem, posso dizer que estão a correr muito bem.
Todos os anos conseguimos vender toda a seda comprada para Portugal, Goa
e Nagasáqui. Se mais seda tivéssemos mais se venderia. A imposição de cotas
por parte das autoridades chinesas é que impede o nosso crescimento."

"Relativamente às cotas vou ver o que posso fazer. Não sei se já lhe chegou
aos ouvidos mas ontem salvamos um navio da frota imperial do ataque de
piratas. Consegui salva-conduto até à feira de Cantão e aproveitarei para
negociar o aumento de cotas. Gostava que o António Nogueira viajasse
connosco. Como sabe ler e escrever chinês e falar cantonense será uma
grande ajuda para nós."

"Mas claro que sim, terei todo o prazer de vos acompanhar até Cantão. Quando
é que é a partida por forma a que prepare as coisas?"

"A feira começa daqui a duas semanas pelo que partiremos na próxima
semana. Iremos tentar trazer a maior quantidade possível de sedas. Vamos ver
se conseguiremos aumentar a nossa quota."

Passado uma semana, a Sargaço ruma até Cantão. Levam cerca de um dia até
chegarem à cidade. Subindo o rio das Pérolas em direcção a Nordeste,
chegavam a Cantão. A distância percorrida era de cerca 87 milhas.

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O Navegante
por Carlos Carvalho

Chegados ao porto de Cantão, Martim dá ordem para atracar a Sargaço.


Depois de terem colocadas as amarras no navio, Martim desce até terra
acompanhado de João da Ribeira e António Nogueira.

António Nogueira apressa-se a falar com as autoridades que querem verificar


se a documentação está em ordem. António Nogueira mostra o salvo conduto
arranjado pelo oficial do mandarim em Macau. Depois de terem verificado a
autenticidade do documento, deixam os homens deslocar-se pela cidade.

A cidade de Cantão era bastante dinâmica, sendo das poucas cidades da China
onde era autorizada a presença de estrangeiros mas apenas em determinadas
alturas do ano para negociarem. As ruas encontravam-se cheias de lojas que
vendiam os mais variados tipos de produtos : as mais puras e finas sedas, as
porcelanas mais delicadas, os chás mais aromáticos que se possa imaginar,
pinturas em seda, esculturas em jade e marfim.

Martim nunca tinha visto tão grande variedade de produtos na sua vida. Fica
assombrado ao ver a quantidade e variedade de opções que tem pela frente.
Com a ajuda de António Nogueira começam a consultar os preços da seda.
Ainda não começaria as compras, pois primeiro queria ver se conseguia
aumentar a quota de importação, mas queria conhecer o que havia de oferta.

Ao passearem pelas lojas, Martim vê um lenço de seda que o atrai, um lenço


vermelho bastante macio ao toque. Pega nele. Assim que lhe toca lembra-se de
imediato de Nia Zhing. Desde que a conhecera no jantar não a consegue tirar
da cabeça. Hesita por alguns segundos sem saber o que fazer, mas acaba por
comprar o lenço. Ao pagar o mesmo, diz ao vendedor para o entregar na casa
da filha mais nova do mandarim de Heong San.

Junto com o lenço segue um bilhete, que Martim pede a António Nogueira para
lho escrever - "em troca do meu coração recebi o mais puro e belo lenço. Este
não é igual ao que recebi, mas ao tocar-lhe veio-me à cabeça a sua imagem.
Do seu admirador, Martim da Nóbrega".

António Nogueira ao escrever, vira-se para Martim: "O Martim desculpe falar
consigo desta maneira, mas não acha ousado demais enviar este bilhete e
presente à filha do mandarim?"

"António, eu sei que é ousado, mas desde o momento que vi aquela mulher não
a consigo tirar da minha cabeça. Isto nunca me aconteceu antes, mas desde
esse momento que ando desorientado. Não a consigo tirar da cabeça. Seus
olhos de amêndoa, boca de avelã, ..."

"O que o Martim tem sei eu muito bem. Está apaixonado, essa é que é essa.
Mas tinha logo que escolher a filha do mandarim? Valha-nos Deus que ainda
iremos ter problemas à conta deste amor. Bem sei que no amor não
escolhemos aqueles que queremos amar, é algo que acontece, mas tinha logo
que ser a filha do mandarim?"

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O Navegante
por Carlos Carvalho

"Eu sei que é uma loucura aquilo que eu sinto, mas não posso fugir aos meus
sentimentos. Nunca senti algo tão profundo na vida por uma mulher. Desde que
a vi que ela passou a ser importante para mim. Antes via uma seara e cada vez
que olhava para ela não conseguia distinguir as espigas. Mas desde aquele
olhar, aquele momento passei a conhecer uma espiga diferente das outras.
Saiu do anonimato e ganhou vida. Agora quando olho na planície para a
mesma seara vejo uma espiga no meio das outras anónimas. Esta ao contrário
das outras tem um nome, um rosto, um perfume."

Os outros dois homens colocam-se a abanar as cabeças. Martim estava


definitivamente apaixonado e tinham que ter cuidado não fosse ele cometer
alguma loucura, pois não se apaixonara por uma mera mulher, mas sim uma
filha do mandarim. Um amor condenado à nascença, mas que Martim teimava
em lutar por ele.

Feito o passeio pela cidade, os homens dirigem-se de volta à Sargaço. Por ali
pernoitariam e amanhã iriam tentar falar com as autoridades chinesas por forma
a tentarem obter o aumento de quota de seda.

Na manhã seguinte, um moço de recados dirige-se à Sargaço. Sobe ao navio e


começa a falar com um dos homens. Este como não percebia cantonense,
começa a imitar o miúdo. Este irrita-se e deixa um envelope no chão e desce do
navio. O marinheiro toma-o por doido e olha para o envelope. Estava atado e
tinha umas inscrições em chinês. Como não percebe o que era aquilo chama
João da Ribeira.

João da Ribeira olha para o mesmo e não sabendo ler o que lá estava escrito
chama António Nogueira para ler o mesmo. Este pega no envelope, abre-o
cuidadosamente para não o danificar e começa a ler para si. "Tenho que falar
com Martim relativamente a esta mensagem", diz ele a João da Ribeira,
deslocando-se em direcção à cabina do capitão.

"Martim, tenho aqui uma mensagem de Nia Zhing. Ela agradece o lenço e
convida-nos para irmos a um jantar no palácio. Quer agradecer o facto de ter
sido salva do ataque dos piratas."

"Óptimas notícias. Vou poder estar de novo com ela. Nem sabes a alegria que
acabas de me dar, as palavras que acabaste de me dizer soaram melhor que
um recital de música. Agora vamos trabalhar, que não me esqueci daquilo que
aqui nos trouxe, aumentar as quotas de importação de seda e adquirir a
mesma."

Dirigem-se em direcção à administração das alfândegas para negociarem o


aumento das quotas. Uma vez lá chegados, são recebidos por um funcionário
que lhes diz que podem efectuar o pedido por escrito mas que dificilmente seria
aprovado. Havia muitos pedidos de aumento de quotas e não seria possível
atender a todos. António Nogueira tenta negociar com o oficial chinês, mas este
é intransigente. Teriam que preencher o impresso e só com muita sorte é que
seria atendido.

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O Navegante
por Carlos Carvalho

Martim pede a António Nogueira para preencher o mesmo e encaminham-se


para a saída. Ao saírem deparam com o capitão do navio da frota imperial que
tinha sido atacado pelos piratas em Coloane. Este ao ver Martim, baixa a
cabeça em sinal de cumprimento e pergunta-lhes o que os trazia até à
alfândega.
"Viemos aqui pedir um aumento de quota de importação de seda, mas já vi que
será difícil obter a mesma. De acordo como funcionário existem já bastantes
pedidos e será difícil atender a todos."

"Ora, isso é algo que se pode arranjar. Como sinal de agradecimento por nos
terem salvo do ataque pirata intercederei no vosso pedido. Afinal de contas, o
Martim salvou-me a vida e nada que eu possa fazer pagará essa dívida."

"Não existe nenhuma dívida, aquilo que eu fiz qualquer um faria na mesma
situação. Quando se vê alguém em apuros deve tentar-se socorrer o mesmo."

"Seja como for, eu faço questão de interceder no pedido, senão levo a mal. É a
minha forma de agradecer a sua generosidade", diz o capitão chinês.

Martim agradece ao capitão e regressa até à Sargaço. Teria que se preparar


para o jantar oferecido por Nia Zhing. Estava impaciente pelo momento em que
voltaria a vê-la. Ao visualizá-la mentalmente suas pulsações aumentam
vertiginosamente. Desde o momento em que a viu que sua imagem não saía de
sua cabeça, que bom seria poder vê-la, olhar para seus olhos, sua cara, seu
corpo. Estava impaciente pelo encontro.

Depois de devidamente vestidos para o jantar, Martim encaminha-se para o


palácio que o mandarim de Heong San tinha em Cantão. Este não se
encontrava pelo palácio, estando em viagem, pelo que a anfitriã do jantar seria
Nia Zhing.

Chegados ao palácio, António Nogueira apresenta-se aos guardas do palácio e


diz que estão ali para um jantar a convite de Nia Zhing. Estes dão-lhes ordem
de entrada. Um grande portão de metal abre-se e os homens entram.
Atravessam um grande jardim, ornamentado com lagos e pontes que cruzavam
os mesmos dirigindo-se para a entrada principal. À sua espera encontrava-se o
mordomo do palácio que os encaminha para uma grande sala. Chegados à
sala, manda-os sentar e oferece-lhes para tomarem um chá.

Estes agradecem e começam a beber um chá de flores aromáticas. De repente,


uma porta abre-se e como um raio de luz a invadir a sala surge Nia Zhing. Ela
traz um vestido vermelho bordado com decorações a ouro, levando sobre os
ombros o lenço que Martim lhe tinha enviado.
Martim levanta-se beijando a mão de Nia Zhing. Esta sorri ao mesmo tempo
que fica corada dando-lhes as boas noites em português.

"Muito boa noite aos meus convidados." Martim e os outros dois homens ficam
estupefactos. Tinham ouvido sair Nia Zhing falar com eles em português.
Estariam eles a ouvir bem, ou estariam a ficar loucos?

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O Navegante
por Carlos Carvalho

"A menina fala português?", pergunta Martim. "Eu estarei a ouvir mal ou acabei
de a ouvir falar em português?"

"Sim, sei falar português. Vou explicar como aprendi. Quando era criança um
padre jesuíta subiu o rio das Pérolas e apresentou-se ao mandarim de Heong
San, meu pai. Queria pedir-lhe autorização para evangelizar por estas terras.
Meu pai acedeu com a condição de que educasse as suas filhas. A partir daí
comecei a aprender português."

"Convidei-os para virem até ao palácio porque queria agradecer por me terem
salvo a vida do ataque dos piratas. Se não tivessem aparecido naquela altura
não sei o que teria acontecido. O mais certo era já não estar neste mundo."

Durante o jantar, Nia Zhing pede a Martim para este lhe contar as suas
aventuras. Ele conta-lhe um resumo de sua vida. A vontade que tinha de viajar
e conhecer o Oriente desde miúdo, a saída de Lisboa rumo a Goa, o cativeiro
em Calecute, o início dos trabalhos com Giovanni. À medida que Martim fala de
sua vida, Nia Zhing mexe incessantemente nos seus longos cabelos,
enrolando-os num dos dedos em sinal de grande interesse.

Terminado o jantar, ela convida-o a passear pelos jardins, sobre um caminho


cheio de cerejeiras em flor. Este acede de imediato. No momento em que se vê
só com Nia Zhing, Martim olha-a nos olhos e diz-lhe o quão bonita ela é, capaz
de hipnotizar qualquer homem com sua beleza. Nia Zhing ri-se de forma
envergonhada. Martim olha para o céu, encontrando-se a lua a iluminar o
mesmo acompanhado pelas estrelas.

"Vou contar-te uma coisa relacionada com a lua que não sei se conheces. A lua
é uma mentirosa. Quando está a crescer, tem a forma de um D e quando se
encontra em minguante de um C. Agora está com um D pelo que está a
crescer. Apesar de mentirosa, é minha amiga juntamente com as estrelas.
Muitas noites passei em que ficava horas e horas a olhar para os céus e ver as
estrelas bailar em redor da estrela Polar que nos indica o norte."

Martim pega na mão direita de Nia Zhing e aproxima o indicador dela em


direcção da estrela Polar. "Estás a vê-la? É a rainha dos céus, todas as outras
estrelas bailam em seu redor, se não fosse ela não estaria aqui a falar contigo,
ter-me-ia perdido nos oceanos e não nos teus braços."

Nia Zhing vira-se em direcção a Martim e este beija-a intensamente. Nia Zhing,
agarra-se a Martim e diz-lhe "Quem me dera ficar abraçada a ti para sempre.
Sinto-me segura nos teus braços, sinto que nada de mal me acontecerá."

"Desde o momento em que te vi da primeira vez, em Macau senti uma atracção


por ti, Nia Zhing. Tenho pensado em ti constantemente desde esse momento.
Sinto falta de ver os teus olhos, beijar os teus lábios, do teu perfume. Meu Deus
penso em cada momento em ti. Mas o nosso amor está condenado à nascença,
tu és filha do mandarim e eu um mero marinheiro. Quem me dera que a vida
fosse diferente e pudesse estar sempre contigo."

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O Navegante
por Carlos Carvalho

"Martim, não me importo de seres quem és. Contigo sinto-me segura e só me


sinto completa a teu lado. Leva-me contigo, quero viajar contigo."

"Nia, gostava de te levar comigo mas ainda não posso. Tenho os meus amigos
aprisionados em Calecute e jurei que os libertaria. Enquanto eles não estiverem
em liberdade não posso fugir contigo. De certeza que seríamos perseguidos
pelo mandarim e este não descansaria enquanto não nos separasse."

"Se é assim, esquece o espaço e o tempo e beija-me", diz Nia Zhing. Os dois
amantes entrelaçam-se por baixo das cerejeiras fundindo-se com o perfume de
suas flores e pétalas que caíam sobre o vento. Ao fim de algum tempo Martim
diz a Nia Zhing que teria que se ir embora, senão os seus companheiros ou os
soldados poderiam desconfiar de alguma coisa. Beija-a uma vez mais e diz que
voltará ao seu encontro assim que libertar os seus amigos.

Nia Zhing, solta os seus cabelos e entrega uma pulseira em jade a Martim.
Toma, quero que leves esta pulseira. Cada vez que sentires a minha falta olha
para ela e pensa em mim. Martim beija-a pela última vez e dirigem-se de volta
ao palácio. Só pensa no momento em que libertaria os seus amigos e
companheiros para que pudesse voltar e levar Nia Zhing consigo. Estava
determinado a fazer todos os sacrifícios, até mesmo arriscar a perder a vida
para estar com ela.

Acabado o jantar, volta a dirigir-se com os seus companheiros à Sargaço. João


da Ribeira sente coragem para falar com Martim. "De facto Nia Zhing é uma
mulher muito bonita, mas tens que ter cuidado. Seu pai é muito poderoso e não
aprova o vosso amor. Sei que o amor é cego, mas tem cuidado para não ires
em direcção a um precipício."

"João, obrigado pelo conselho, mas eu não consigo viver sem ela. É difícil
explicar o que sinto, mas quando estou com ela, as estrelas iluminam com mais
intensidade, as flores perfumam o ar, o tempo pára. É como se o mundo fosse
só eu e ela. Mas não te preocupes que posso estar apaixonado mas não estou
louco mentalmente. Sei que tenho a cumprir a missão de salvar os meus
companheiros. Só colocarei a minha vida em cheque no momento em que eles
estiverem livres. Até aí não cometerei loucuras que coloquem em risco a vida
dos outros."

Dois dias depois, Martim recebe uma carta do serviço de alfândegas. O pedido
de aumento de quotas de importação de seda tinha sido aprovado. António
Nogueira sente-se radiante, aquilo porque lutara durante bastante tempo tinha
sido conseguido. Não estaria alheio ao facto a interferência por parte do capitão
da frota imperial que tinha sido auxiliado por Martim. Com o aumento da quota
poderia expandir os seus negócios em Macau, exportando mais seda para
Nagasáqui e com isso importar a mais pura prata dessas mesmas terras.

"Giovanni irá ficar bastante satisfeito quando souber desta grande realização.
Poderá ver aumentar os seus lucros no comércio da seda e da prata, vendo
assim recompensados os seus esforços e investimentos", diz Martim.

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O Navegante
por Carlos Carvalho

"Com a autorização de aumento das quotas temos que começar a negociar a


compra da seda. Quero encher a Sargaço dos mais puros rolos de tecido e
enviá-los para Macau. Em seguida irei até Nagasáqui e levarei pessoalmente os
rolos para lá. O restante da carga será enviado para Macau e tu António
tratarás de despachar os mesmos para Nagasáqui, Cochim, Goa e Lisboa."
Os homens encaminham-se para o mercado em Cantão, iriam determinados
em negociar a compra de seda em grandes quantidades agora que tinham
autorização para tal. Com o auxílio de António Nogueira que dominava o
cantonense discutem com os comerciantes as melhores condições e datas de
entrega. Teriam carga disponível para despachar dentro de uma semana,
podendo então voltar a Macau nessa altura.

Uma ambiguidade de sentimentos invade Martim. Tinha conseguido aumentar


as quotas de importação de seda tal como desejava, mas daqui a uma semana
partiria de Cantão, deixando assim de ver Nia Zhing. Seria difícil suportar essa
separação, mas sabia também que tinha que cumprir a promessa que fizera a
seus companheiros, libertando-os do cativeiro. Assim que tivesse feito essa
proeza estava determinado a voltar a Cantão e resgatar Nia Zhing, dona do seu
coração.

Escreve um bilhete e pede a um miúdo para o ir entregar no palácio. Queria


encontrar-se com Nia Zhing e despedir-se dela antes da partida. Esta responde-
lhe para se encontrarem num jardim que havia em Cantão ao meio da tarde.

Na hora combinada, Martim dirige-se até ao jardim. A carga encontrava-se


pronta e era chegado o momento de partida, pelo que este seria o encontro de
despedida. Senta-se encostando-se a um chorão que se encontrava situado
junto a um lago e fica a olhar para os peixes que nadam.

Sem que se aperceba, sente umas mãos macias a taparem seus olhos e um
riso. Com suavidade retira as mãos que o cobriam e vira-se para trás. Era Nia
Zhing. Ao vê-lo ela ri-se uma vez mais para ele. Instintivamente, Martim lança-
se sobre os seus braços e beija-a.

"Nia nem sabes a felicidade que tenho em te ver, sentir e tocar. Tenho uma
coisa para te dizer. Infelizmente estou de partida, tenho a Sargaço carregada
de seda que irei levar até Macau e posteriormente até Nagasáqui. Em seguida
voltarei até Cochim e tentarei resgatar os meus companheiros que se
encontram presos em Calecute. Prometo-te que assim que eles se encontrem
livres virei ter contigo. Não me consigo imaginar viver sem ti. Agora sei que o
chamamento que tinha desde miúdo para viajar até Oriente não era por causa
das especiarias, da prata, do ouro, da fama. Não, era por ti, tu é que me
chamavas ao teu encontro."

"Martim, tu sabes o que sinto por ti e o facto de cumprires a tua promessa de


salvares os teus companheiros ainda faz aumentar mais os meus sentimentos.
Eu esperarei por ti, o meu coração só tem espaço para um homem e esse
homem és tu. Agora quero que me abraces e que passemos o resto do dia
juntos. Estou certa que chegará o dia em que te tornarei a ver."

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O Navegante
por Carlos Carvalho

Os dois amantes passam o resto do dia no jardim, procurando parar o tempo.


Enquanto permanecem juntos perdem a noção do espaço e do tempo, tendo
atenção apenas um para o outro.

Ao cair da noite, despedem-se. Martim abraça Nia Zhing por uma última vez e
despedem-se. Tinha ganho força e coragem para sair de Cantão e cumprir a
promessa de resgatar os seus companheiros.

Encontrando-se a Sargaço carregada com os rolos de seda, Martim dá ordem


de partida. Desceriam o rio das Pérolas em direcção a Macau, procedendo à
descarga dos rolos e preparação da viagem até Nagasáqui. Segura a pulseira
de jade e à medida que descem o rio, olha uma última vez para trás como que
se despedindo de Nia Zhing. Estava certo que voltaria a ver a cidade de Cantão
e Nia Zhing, mas agora teria que continuar com o seu trabalho.

22. Visita a terras de Nagasáqui

A Sargaço desloca-se em direcção a Macau carregada com rolos da mais


preciosa das sedas. Uma vez aí chegada, descarregariam a carga preparando
o navio para a viagem seguinte : iriam até Nagasáqui levar os rolos adquiridos
em Cantão e em troca trariam os cofres cheios de prata. Não poderiam navegar
directamente até Nagasáqui porque o comércio entre a China e Japão
encontrava-se proibido, mas se descarregassem a carga em Macau e
voltassem a carregar a mesma até Nagasáqui já não haveria problemas na
chegada ao porto de Nagasáqui.

Ao fim de um dia de viagem, de descida do rio das Pérolas, a Sargaço atraca


no porto de Macau. Martim dá ordem aos seus homens para que descarreguem
a carga nos armazéns detidos por Giovanni, próximos do porto, deslocando-se
ao serviço de alfândegas com os papéis comprovativos das compras de seda.
Aproveita para deixar uma carta dirigida a Giovanni em Cochim, dando conta
das realizações conseguidas na viagem a Macau - tinham conseguido aumentar
as quotas de importação de seda e desse modo aumentado o potencial de
ganhos no comércio com Cantão, Nagasáqui, Cochim, Goa e Lisboa.

Dentro de duas semanas com a Sargaço reabastecida para a viagem, Martim


seguiria rumo em direcção a Nagasáqui. Até aí, passaria os dias que tinha em
Macau para descansar e calcular a rota a seguir até Nagasáqui. A distância de
Macau a Nagasáqui era de aproximadamente 1110 milhas náuticas, levando
em média umas quatro semanas a chegar embora as condições do tempo
pudessem levar a ligeiras oscilações.

Aparelhada a Sargaço, Martim prepara-se para prosseguir viagem até


Nagasáqui acompanhado de João da Ribeira. António Nogueira ficaria por em
Macau a tratar dos negócios de Giovanni Umani. Os dois homens despedem-
se, sentindo ambos um grande respeito pelo outro. Martim via em António
Nogueira um homem sério, corajoso e com capacidades para os negócios e
António via Martim como um verdadeiro líder, defensor dos seus companheiros,
lutador e com um grande sentido de responsabilidade e serviço.
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por Carlos Carvalho

A Sargaço começa a sua viagem até Nagasáqui, deslocando-se pelo mar da


China em direcção a nordeste. Durante a viagem, Martim começa a estudar os
negócios que Giovanni tinha por aquelas terras. A loja aí detida dedicava-se à
compra de sedas, vendendo as mesmas à população e comerciantes locais em
troca da mais pura prata e pérolas, umas das riquezas dessa cidade. O
representante de Giovanni em Nagasáqui era um antigo jesuíta que tinha
viajado para aquelas terras em evangelização, mas ao perder-se de amores por
uma japonesa abandonou a batina, casando-se com ela e iniciando-se nos
negócios com Giovanni. Seu nome era Mário Antão, sendo um homem na casa
dos quarenta anos de idade.

Desde que Mário Antão se tornara representante de Giovanni por aquelas


paragens os negócios começaram a prosperar. Por certo não estaria aliado ao
facto, Mário Antão ter grandes conhecimentos da cultura local, sabendo falar
japonês e escrever em chinês, facilitando desse modo os negócios com os
locais.

A viagem até Nagasáqui decorre sem problemas de maior, durante o caminho


os homens encontram bom tempo e chegam à cidade vinte e sete dias depois
de terem largado de Macau.

Chegados a Nagasáqui, Martim desce da Sargaço e encaminha-se em direcção


das autoridades da alfândega. Ia mostrar os documentos de importação de
sedas, mostrando que o carregamento tinha tido origem em Macau. Verificada
a autenticidade dos mesmos, dirige-se com João da Ribeira até à loja que
Giovanni tinha por aquelas paragens para se encontrar com Mário Antão para
começarem a descarregar a carga.

"Bom dia, sou Martim da Nóbrega e estou aqui em representação de Giovanni


Umani. A meu lado está João da Ribeira, o mestre da embarcação que nos
trouxe até aqui, a Sargaço. Chegamos vindos de terras de Macau carregados
de sedas e estamos preparados para começar a descarregar a carga. Pode ir
connosco e providenciar ajuda na descarga?"

"Bom dia, chamo-me Mário Antão e sou o responsável aqui pela loja de
Giovanni. Bons ventos vos tragam. Fizeram boa viagem, de Macau?"

"Sim, obrigado, a viagem correu bem. Depois de efectuarmos a descarga


teremos que falar melhor dos negócios."

"Sim, claro. Faço questão de vos convidar hoje à noite para jantarem em minha
casa. Agora vamos em direcção ao porto para efectuar a descarga da
mercadoria." Mário Antão manda um criado avisar em sua casa que hoje iria ter
visitas vindas de Portugal, tendo pedido para prepararem algo de especial.

Descarregada a mercadoria, os homens deslocam-se até casa de Mário Antão.


A sua casa não ficava muito longe do porto, levando cerca de quinze minutos a
cavalo. Chegados a sua casa, desmontam os cavalos e dirigem-se para a

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O Navegante
por Carlos Carvalho

entrada da casa de Mário Antão. Era uma casa grande, encontrando-se situada
no fundo de uma colina.

Ao entrarem na casa caminham por um jardim cheio de árvores, arbustos e


estátuas. Martim ao caminhar no jardim em direcção à casa de Mário Antão
repara que no jardim se encontram algumas cerejeiras carregadas de cerejas.
Ao olhar para as mesmas sorri e visualiza mentalmente a face de Nia Zhing.
Sem se dar conta balbucia "Nia, como és tão bela."

"O Martim disse alguma coisa?", pergunta Mário Antão que tinha acabado de
ouvir Martim balbuciar. "Não, desculpe, estava a pensar alto. Não é nada."

Os homens seguem então caminho até à casa de Mário Antão. À entrada da


porta, encontrava-se sua esposa, vestida com um kimono azul que assim que
os viu chegar apressa-se a recebê-los. Inclina-se em sinal de respeito.

"Esta é a minha mulher, Tonoko Antão. Por amor a ela renunciei ao sacerdócio
e passei a viver a vida de um comum leigo."

Martim e João da Ribeira inclinam-se também em sinal de respeito e Mário


Antão apresenta-os à sua esposa.

Ela abre a porta da casa e leva-os até à sala onde se encontrava uma mesa no
centro. Mário Antão dá sinal aos convidados para se sentarem e começa a
servir-lhes um chá. Martim e João da Ribeira agradecem e começam a beber
com Mário Antão.

"Mário Antão quero desde já agradecer-lhe a sua hospitalidade. Tem de facto


uma casa muito bonita. Mas estamos aqui nem só para falar de nós mas
também de negócios. Aquando da minha ida a Macau tive a sorte de interceptar
o ataque de um navio pirata a uma embarcação da frota imperial chinesa que
se deslocava até Cantão. Devido a esse acontecimento consegui aumentar as
quotas de importação de seda da China, pelo que a partir de agora será
possível começar a trazer mais mercadoria para cá."

"Isso de facto são mesmo muito boas notícias", diz Mário Antão enquanto volta
a servir chá aos seus convidados. "Eu na loja tenho sempre uma grande
procura de sedas e se mais tivesse mais venderia. Com as notícias que acaba
de me dar será possível aumentar as vendas e os lucros."

Enquanto conversam, a esposa de Mário Antão traz então o jantar. Era arroz
cozido e como pratos principais sashimi de atum e teriyaki de pargo (pargo
grelhado). A acompanhar o jantar Mário Antão serve-lhes vinho de arroz.

"A acompanhar o jantar têm este vinho de arroz, não é o mesmo que o vinho de
uva a que estão habituados mas também é bom. É um pouco forte pelo que
convém terem um pouco de cuidado ao beberem o mesmo."

Martim prova o vinho. De facto tinha um trago forte mas acompanhado com o
peixe e os molhos de sashimi e wasabi ficava uma combinação perfeita.
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por Carlos Carvalho

Terminado o jantar os homens agradecem a hospitalidade de Mário Antão e


regressam até à Sargaço onde pernoitariam.

Na manhã seguinte Martim decide passear por Nagasáqui. Caminha pelas ruas
sem destino até que vê num topo de um monte um grande edifício. Resolve
caminhar até lá. Ao fim de uma hora chega ao sopé do monte, onde se
encontra um templo budista. Ao lado do templo encontra uma estátua dedicada
a Buda. Resolve entrar no templo. Uma sensação de paz começa a invadir o
seu espírito. Apesar de ser católico, respeitava as outras religiões e a paz que
ali se fazia sentir faz com que sua mente comece a vaguear.

Vê-se ao lado de Nia Zhing, caminhando a seu lado num jardim de cerejeiras
em flor com as mais variadas cores, do branco ao rosa. Toca em Nia Zhing e
beija-a. No momento em que a beija, acorda e apercebe-se que se encontra
dentro do templo. Pensa para consigo como estará Nia Zhing, será que ela se
encontrava bem, teria tantas saudades dele como ele tinha dela? Olha para a
pulseira que ela lhe oferecera. Ao pegar nela, sente-se mais confiante de si, é
como se ela se encontrasse junto a si. Se fechasse os seus olhos quase
conseguia ouvir sua voz sussurrar em seu ouvido, "Nia, não te preocupes que
eu voltarei para ti", diz Martim.

Levanta-se do templo e volta a retomar o caminho em direcção à cidade. A


visita que fizera ao templo servira para retemperar o seu espírito, servira para
encurtar a distância que o separava física mas não espiritual e mentalmente de
Nia Zhing, visto ela andar sempre em seu coração.

Passado uma semana depois de terem aportado em Nagasáqui Mário Antão dá


a notícia a Martim de que tinha acabado de vender as últimas peças de seda.
Ao ritmo a que a procura andava não iria ser difícil vender as peças que
chegariam dentro de umas semanas de Macau.

Com a venda das últimas peças de seda e os cofres cheios de prata como
resultado da venda, Martim decide partir para Cochim com parte do dinheiro.
Os negócios encontravam-se bem entregues nas mãos de Mário Antão, que
encetava todos os esforços para aumentar a influência de Giovanni por aquelas
paragens.

Ao fim de duas semanas com o navio reabastecido para a viagem, encontram-


se preparados para regressar até Cochim. Cerca de quatro meses e meio era o
tempo que levariam até chegar a terras de Cochim. Pelo caminho parariam por
Malaca para reabastecimento e verificar como se encontravam a correr os
negócios por aquelas paragens geridos por Rodrigo da Pereira.

Martim despede-se de Mário Antão deixando uma carta em sua posse. Era uma
carta dirigida a Nia Zhing contando o seu regresso a Cochim. A mesma seria
enviada para Cantão assim que partisse um barco com destino a Macau.

É dada ordem de partida da Sargaço. Levantada a âncora que a prendia a


Nagasáqui começa a mesma a deslizar pelo Pacífico em direcção ao Índico.
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O Navegante
por Carlos Carvalho

23. Regresso a Cochim

Depois de ter saído de Nagasáqui, e entrado em águas do Índico, a Sargaço


altera a rota e começa a navegar em direcção a Noroeste. Encontra-se próxima
de terras de Malaca e Martim decide parar por lá por forma a reabastecer o
navio e encontrar-se com Rodrigo da Pereira. Já há algum tempo que não tinha
notícias suas e queria ver que tal se estava a sair.

Numa bela tarde de domingo, a Sargaço atraca em Malaca dois meses e meio
após ter saído de Nagasáqui. Martim apressa-se a descer do navio e caminha
em direcção da casa de Rodrigo da Pereira. Bate à porta e passado pouco
tempo é atendido pelo seu criado. Este ao ver Martim, apressa-se a recebê-lo
encaminhando-o para a sala e corre a chamar Rodrigo da Pereira.

"Martim, bons olhos te vejam, mas que surpresa agradável. O que te traz por
cá? Da última vez que nos vimos ias salvo erro em direcção a Macau. Correu
tudo bem por essas paragens?"

"Ora viva Rodrigo, de facto já há uns bons meses que não nos viam. Acabo de
chegar vindo de Nagasáqui. Estive de visita à feitoria de lá e dirijo-me para
Cochim. Como me encontrava a navegar por perto decidi atracar para
reabastecer, já que me encontro no meio da viagem e queria ver que tal estão
as coisas por aqui."

"Os negócios têm corrido muito bem, desde que estiveste daqui da última vez
consegui aumentar as vendas de pimenta e consegui fazer negócio com um
dos maiores produtores aqui da região a preços bastante favoráveis. Mas
vamos aproveitar o jantar para falarmos melhor, porque és desde já meu
convidado."

Durante o jantar, Martim conta as suas aventuras por terras de Macau, Cantão
e Nagasáqui, relatando o encontro com o navio pirata que estava a atacar uma
embarcação da frota imperial, a sua viagem até Cantão onde conseguiu
aumentar as quotas de importação de seda e a visita a Nagasáqui.

Ao fim de quatro dias de estadia em Malaca, Martim despede-se de Rodrigo da


Pereira desejando-lhe sorte na continuação dos negócios e larga do porto de
Malaca em direcção a Cochim, onde chegariam dentro de cerca de sete
semanas, navegando em direcção a Oeste após contornarem a península de
Sião rumando em seguida a Norte após terem passado a ilha de Ceilão.

A viagem até Cochim correu dentro da normalidade, tendo levado 45 dias. As


notícias da chegada da Sargaço ao porto tinham corrido por toda a cidade,
encontrando-se Giovanni Umani à sua espera no porto.

"Martim, como estás? Que tal correu a viagem? Acredito que estejas cansado,
por isso convido-te para ires descansar em minha casa e quando estiveres
recuperado falaremos das tuas aventuras."
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por Carlos Carvalho

"A viagem correu bem obrigado e aceito com todo o gosto o convite, pois acho
que estou mesmo a precisar de umas horas de descanso."

Depois de Martim ter descansado em casa de Giovanni é servido o jantar em


sua honra. Giovanni ansioso por saber novidades da viagem começa logo a
interpelá-lo de perguntas. "Como correu a viagem? Gostaste de conhecer as
terras de Macau e Nagasáqui? Os negócios prosperam por essas terras?"

Martim ao ver ser inundado de questões começa por começar a responder


calmamente a cada uma delas. "A viagem correu bem e dentro do planeado,
não tendo havido interferências de maior durante a mesma. Apanhámos
sempre bom tempo e ventos favoráveis pelo que não houve atrasos durante a
mesma. Relativamente às terras de Oriente fascinou-me visitar as mesmas.
Gostei da arquitectura que encontrei, das pessoas, dos cheiros, adorei a
experiência.

Relativamente aos negócios tenho que dar-te apenas boas notícias, pois
consegui aumentar as quotas de importação de sedas em Cantão e desse
modo trazer mais prata de Nagasáqui como resultado do comércio triangular.
Como resultado dessas trocas tive a oportunidade de trazer a Sargaço cheia de
prata trazida de Nagasáqui mas não te preocupes que com o aumento das
quotas a mesma vai continuar a fluir em grande escala. Posso dizer-te que só
boas coisas aconteceram nesta viagem.

Quero fazer-te uma confissão. Foi nesta viagem que o meu coração ficou com
uma dona. Conheci a mulher que me faz sentir completo, que me faz rir quando
não faz sol, rir quando estou triste. Seu nome é Nia Zhing. Não sei se acreditas
no destino, eu não acreditava até há uns tempos atrás mas agora posso dizer-
te que sim, acredito. Desde miúdo que sentia uma atracção por estas terras,
mas no momento em que a vi é que entendi que o chamamento que eu sentia
era em direcção a ela, o seu chamamento é que me trouxe a estas paragens.

Quando nos encontrávamos a navegar até Macau encontramos um navio da


frota imperial a ser atacado por uma embarcação pirata. Não hesitei e resolvi
acorrer em seu auxílio, tendo levado o navio chinês até ao porto de Macau.
Dentro do navio ia Nia Zhing, filha do mandarim de Heong San e que estava em
viagem até Cantão. O capitão do navio convidou-nos a ir até à feira do
comércio onde consegui o aumento da quota de importação de seda e onde
conheci verdadeiramente Nia Zhing. Assim que conseguir libertar os meus
companheiros em Calecute irei ter com ela."

"Martim, fico contente por ti, estou a ver que realmente estás apaixonado por
essa mulher e se estás feliz estou feliz por ti. Como sabes fiz-te a promessa de
que se me auxiliasses nos negócios e fosses triunfante eu faria todos os
possíveis para te ajudar a libertar os teus companheiros. Conseguiste dar uma
volta aos meus negócios em Galle, em Malaca, aumentar as quotas de
importação de seda em Macau, aumentar o afluxo de prata de Nagasáqui.
Superaste bastante as minhas expectativas, tenho que confessar. Sempre
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O Navegante
por Carlos Carvalho

pensei que triunfarias mas nunca em tão grande escala e num tão curto espaço
de tempo. Em menos de dois anos consegui ver os meus negócios
transformarem-se e crescerem. Ajudaste-me e agora é a minha vez de te
ajudar. Eu pagarei do meu bolso o resgate dos teus companheiros, é o mínimo
que poso fazer. Dei-te a minha palavra e é com toda a honra que a cumprirei."

Martim ao ouvir as palavras de Giovanni ecoarem em seus ouvidos sente seu


coração bater a um ritmo cada vez mais acelerado. Aquilo porque tanto
esperava, o resgate de seus companheiros encontrava-se próximo de
acontecer. Estava próximo o o dia em que poderia voltar a vê-los, cumprindo
finalmente a promessa que lhes tinha feito aquando do seu resgate por
Giovanni Umani.

Depois do jantar Martim aproveita para dormir. Ao deitar-se sente os seus


ombros mais leves, pois sente que finalmente poderia cumprir o que prometera.

Após três semanas em Cochim, Giovanni dá então ordens a Martim para rumar
em direcção a Calecute na Sargaço e tratar do resgate dos seus homens.
"Martim, é chegada a hora de cumprir a minha promessa, autorizo-te a
navegares com a Sargaço até Calecute e trazeres os teus companheiros em
liberdade. Assim que achares que estás pronto e o navio aparelhado podes
seguir viagem."

"Giovanni eu nem sei como te agradecer, nem sabes o peso que se me levanta
da consciência, todos os dias, todas as noites penso neles aprisionados. O que
me choca ainda mais é o facto de as autoridades portuguesas não se dignarem
em lutar pela sua libertação, aqueles homens foram aprisionados quando
lutavam em nome do reino, mas infelizmente são como se diz raia miúda, não
contando para nada. Irei dar ordens de imediato para que aparelhem a
Sargaço. Dentro de uns cinco dias estarei pronto a partir em direcção a
Calecute e lutar pelo resgate de todos os cativos. Uma vez mais obrigado."

"Não tens que me agradecer Martim, nós fizemos um acordo. Tu cumpriste a


tua parte e agora é a minha vez de cumprir a minha. Assim que os homens
estiverem libertados estão convidados a trabalhar para mim se assim o
entenderem. Com a expansão dos negócios preciso cada vez de mais mãos e
as de homens corajosos como os teus companheiros serão sempre bem
vindas."

24. Resgate dos companheiros em Calecute

Em quatro dias a Sargaço ficou preparada para partir em direcção a Calecute


cumprindo-se deste modo a promessa efectuada por Martim aos seus
companheiros.

Ao ser levantada a âncora e desfraldadas as velas, Martim sente o


chamamento dos seus companheiros vindo com o vento do Norte. Estava
próximo o momento em que iria finalmente voltar a vê-los e cumprir sua
promessa.
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O Navegante
por Carlos Carvalho

À medida que a Sargaço se vai deslocando pelo Índico navegando a norte em


direcção a Calecute, Martim segura na pulseira que Nia Zhing lhe oferecera em
Cantão. Ao segurar nela, sentia-se mais seguro de si mesmo e caso fechasse
os olhos conseguia vê-la junto a seu lado. Mal podia esperar pelo momento de
libertação de seus companheiros, pois assim que estivesse cumprida essa
promessa poderia navegar em direcção a Cantão e ter com sua amada.

No espaço de uma semana poderia dirigir-se a Calecute e tratar da libertação


de seus companheiros. De noite, para passar melhor o tempo, Martim deitava-
se e ficava a olhar para as estrelas do céu embalado pelo som das ondas que
iam batendo na Sargaço. Ao olhar para os céus sentia-se mais próximo de Nia
Zhing, lembrando-se dos breves momentos que passaram juntos no jardim de
sua casa sobre as cerejeiras em flor observando juntos o céu.

Ao fim de oito dias de viagem a Sargaço aporta em Calecute. Assim que o


navio fica com as suas amarras presas a terra e a âncora baixada Martim
acorre a descer do navio. Iria ver se conseguia encontrar-se com Abd al-
Ramaan pois este certamente que o iria auxiliar no resgate de seus amigos.

Começa a caminhar pelas ruas de Calecute dirigindo-se a casa de Abd al-


Ramaan. Bate à porta. Ao fim de algum tempo a mesma abre-se e Martim é
recebido por um dos criados de Abd al-Ramaan.

"Boa tarde, pode dizer-me ao que vem?", pergunta o criado.

"Chamo-me Martim da Nóbrega e estou aqui para me encontrar com seu amo,
Abd al-Ramaan."

"Um momento que eu vou ver se o meu amo se encontra por casa."

Ao fim de uns minutos surge Abd al-Ramaan que se encaminha até Martim.

"Martim, que surpresa agradável, não estava a contar ver-te. Então o que
contas e o que te traz por cá? Vens para saber novidades dos teus
companheiros? Eles ainda se encontram sobre o cativeiro, de tempos a tempos
passo por lá para ver como estão e envio fruta para a prisão por forma a que se
alimentem melhor."

"Abd al-Ramaan, estou aqui para cumprir a promessa que fiz a mim e a eles
quando estive cá da última vez. Giovanni Umani auxiliou-me e venho pagar o
resgate para a sua libertação."

"Não sabes o quão contente fico por ti e por eles, eu sabia que tu não te irias
esquecer deles. Realmente tu és um homem da tua palavra. És meu convidado
para jantares aqui em minha casa, quero que me contes as tuas aventuras.
Amanhã irei contigo para falarmos com o capitão da prisão e começaremos a
tratar do resgate."

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O Navegante
por Carlos Carvalho

Durante o jantar os dois amigos voltam a falar, já há uns anos que não se viam
e queriam saber o que se passara a cada um deles desde então.

"Abd al-Ramaan, o que tens feito desde que te vi da última vez? Continuas a
trabalhar para a frota turca?"

"Não, os meus tempos de luta acabaram, ao fim de tantas lutas comecei a ficar
farto e decidi assentar. Deixei de sentir verdadeiramente uma causa por que
lutar, a última vez que o fiz foi no encontro em que tu acabaste aprisionado com
os teus companheiros. Não me consegui refazer desde essa altura, larguei as
armas e passei a dedicar-me ao comércio. Posso dizer-te que não estou nada
arrependido, antes pelo contrário. Transportar mercadorias é muito mais
reconfortante que andar a tirar vidas a pessoas que morrem muitas vezes sem
causas concretas, matando por conveniência de causas obscuras e muitas
vezes desconhecidas. Então e tu? O que tens andado a fazer?"

"Como sabes quem tratou do meu resgate e libertação foi Giovanni Umani.
Desde o momento que fui libertado comecei a trabalhar para ele e a ajudá-lo
nos seus negócios. Em virtude disso vi-me viajar pelas mais variadas paragens,
Galle, Malaca, Macau, Cantão, Nagasáqui. Posso dizer-te que ter aceite o seu
convite foi a melhor coisa que fiz.

Permitiu-me lutar pela libertação dos meus companheiros que se encontram


cativos e descobri a razão pela qual decidi embarcar num navio em Lisboa com
direcção a Goa. Encontrei a mulher que me preenche, que me faz lutar, sentir,
respirar, viver. Seu nome é Nia Zhing, ela é filha do mandarim de Heong San.
Vou contar-te como a conheci.

Quando ia a caminho de Macau, encontrando-me próximo do local de chegada,


perto da ilha de Coloane encontrei um barco a ser atacado por outro. Decidi ir
em seu auxílio tendo conseguido fazer com que o barco agressor fugisse.
Como o barco atacado estava danificado seguiram rumo comigo até Macau.
Chegado aí é que fiquei a saber que o barco pertencia à frota imperial e dentro
do mesmo viajava a mulher mais bonita que alguma vez vi, Nia Zhing. Conheci-
a no jantar dado na casa do capitão do porto de Macau. Posso dizer-te que foi
amor à primeira vista. Assim que a vi da primeira vez não consegui tirar os
olhos dela. Em virtude de ter auxiliado o navio da frota imperial, recebi um
convite do seu capitão para ir até à feira internacional de Cantão, o que fiz, pois
consegui aumentar as quotas de importação de seda e reencontrar-me com Nia
Zhing. Tive aí oportunidade de estar mais tempo com ela, falar com ela e
conhecê-la. Fiquei aí a saber que ela também estava interessada em mim e
prometi-lhe que assim que conseguisse resgatar os meus companheiros iria ter
com ela. Já não me consigo imaginar viver sem ela, posso dizer-te que existia
um Martim antes de a conhecer e um novo Martim depois de conhecer Nia
Zhing."

"Martim fico bastante contente por ti, por ver que encontraste uma mulher que
te complementa, mas dizes-me tu que ela é filha de um mandarim? Não estás a
ser doido? Imagino que o pai dela não consinta a relação entre ambos. Bem sei
que o amor não escolhe pessoas nem momentos, mas algo me diz que vais ter
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O Navegante
por Carlos Carvalho

problemas com o teu amor, mas olha tudo o que eu possa fazer para te ajudar
diz-me. Sou teu amigo e quero ajudar-te a encontrares a felicidade, se é com
Nia Zhing que a tens pois assim seja, fazes muito bem em lutar por ela, mas
digo-te que não vai ser fácil para ti e para ela, vocês têm que ter um amor muito
forte para conseguirem combater todas as adversidades."

"Bem sei que o meu amor por ela é um amor complicado, mas como tu próprio
disseste o amor não escolhe pessoas e momentos, é algo que acontece e
quando tal se dá temos que lutar por ele e é o que faço e farei. Sinto
verdadeiramente que ela é a razão pela qual eu aqui me encontro. Desde
miúdo que sentia uma atracção pelo Oriente, mas a partir do momento em que
a vi, compreendi então que a origem de tal atracção era ela. Era sua voz quem
me chegava pelo sol e pelo vento a Lisboa e me fez embarcar e navegar em
seu encontro."

"Assim seja Martim, eu também sou um homem que acredita no destino e estou
aqui para te auxiliar. Tudo aquilo que eu puder fazer para te ajudar a estar com
ele farei. Amanhã sem falta irei contigo tratar da libertação dos teus
companheiros. Agora vamos dormir que se faz tarde."

Martim foi em direcção à Sargaço para dormir, mas a ansiedade porque se


levantasse o sol era tanta que não conseguia fechar os olhos. Porque é que às
vezes o tempo passava tão depressa e outras vezes demorava tanto tempo a
passar. Mas não havia nada a fazer, teria que aguardar pelo novo dia para ir
em direcção à prisão e tratar do resgate dos seus companheiros. Para passar o
tempo olhava para a pulseira de jade que Nia Zhing lhe oferecera, ao passar
suas mãos pela superfície macia, semelhante à pele de Nia Zhing, acalma-se e
consegue finalmente fechar os olhos.

Chegada a manhã seguinte, mal os raios de sol começam a raiar vindos de


oriente Martim levanta-se e apressa-se a descer da Sargaço em direcção à
casa de Abd al-Ramaan. Encontrava-se ansioso por que chegasse o momento
por que tanto esperara e lutara ultimamente. Toma caminho em direcção a sua
casa e chega finalmente a ela. Bate à porta e é atendido imediatamente por
Abd al-Ramaan.

"Bom dia Martim, chegaste mesmo a tempo. Acabei de efectuar as orações da


manhã pelo que estou pronto para ir até à prisão contigo. Vamos então falar
com o capitão por forma a que apressemos a libertação dos teus
companheiros, eles já lá se encontram aprisionados há demasiado tempo."

Os homens seguem em direcção à prisão. À medida que se aproxima da prisão


Martim lembra-se do tempo de cativeiro ali passado. O seu coração começa a
palpitar cada vez com maior intensidade, finalmente aquilo porque lutara se
tornaria realidade.

Chegados à prisão, Abd al-Ramaan apresenta-se a um dos soldados que se


encontravam a vigiar a entrada. "Bom dia, chamo-me Abd al-Ramaan e
encontro-me aqui para falar com o capitão da prisão."

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O Navegante
por Carlos Carvalho

"Um momento que eu vou ver se o mesmo o pode receber". Ao fim de uns
quinze minutos aparece de novo o soldado indicando-lhes o caminho para o
gabinete do capitão. Teriam que subir umas escadas até ao seu gabinete
porque o mesmo se encontrava no topo do exercício. À medida que Martim
sobe as escadas perde a conta do número de lanços que tem que efectuar até
chegar ao topo. Encontrava-se tão concentrado na sua missão que caminho
mecanicamente e acaba quase por tropeçar quando chega ao topo, tentando
subir mais um lance que não existe.

"Martim, está tudo bem contigo? Ias quase caindo."

"Está tudo bem Abd al-Ramaan, eu é que ia meio distraído e nem dei conta que
os lances de escada tinham terminado." Nisto os dois homens riem-se e o
soldado fica a olhar para eles com ar de perdido por não compreender o motivo
para os risos.

Batem à porta do capitão e este diz para entrar. O mesmo ao ver Abd al-
Ramaan a chegar com Martim levanta-se e dirige-se para os mesmos.

"Bom dia, Abd al-Ramaan estou a ver que trazes contigo um antigo prisioneiro.
Será que ele tem tantas saudades da prisão que quer voltar a viver na mesma?
Ahahahahah! "

Abd al Ramaan olha para o capitão e responde-lhe rispidamente. "Bom dia, isto
não são maneiras de tratar as visitas. Encontro-me aqui com o Martim da
Nóbrega porque queremos falar consigo relativamente aos prisioneiros
portugueses. Estamos aqui para pagar o resgate dos mesmos e tratar da sua
libertação."

"Então quer dizer que finalmente os portugueses resolveram pagar pelo resgate
dos mesmos. Já não era sem tempo, eles andam aqui a ocupar o espaço da
prisão há muito tempo. E onde estão as autoridades portuguesas, posso saber?
Tiveram vergonha de aparecer?"

"O resgate não será pago pelas autoridades portuguesas, será pago pelo
Martim com o patrocínio de Giovanni Umani, a mesma pessoa que tratou da
libertação dele", responde Abd al-Ramaan.

"Bem que ele era louco já eu sabia, mas tratar do pagamento do resgate de uns
miseráveis marinheiros? Mas pronto, o dinheiro é dele e do italiano, podem
fazer com ele o que muito bem entenderem. O que nós queremos é mesmo
receber o resgate a que temos direito. Vocês têm convosco o dinheiro para
pagar o resgate?"

"Não o trazemos por ora connosco porque queríamos falar primeiro consigo,
mas não se preocupe que o mesmo será entregue hoje mesmo. O Martim
gostava de visitar os seus companheiros, será o mesmo possível?"

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por Carlos Carvalho

"Pois bem, então tragam o dinheiro do resgate, pois sem ele não poderão
resgatar os aprisionados, vocês pensam que eu sou doido? Sem o dinheiro não
há visitas nem libertação."

Os dois homens saem da prisão e dirigem-se em direcção à Sargaço onde se


encontravam as moedas necessárias para pagar o resgate dos homens. Ao
todo seriam necessárias noventa moedas de ouro e trinta de prata para pagar o
resgate dos homens.

Voltando de volta à prisão, já com as moedas de ouro voltam uma vez mais
para falar com o capitão.

"Vocês voltaram depressa, imagino que com o dinheiro do resgate." Nisto Abd
al-Ramaan pega no saco com as moedas e atira-o em direcção ao capitão.

"Aí está o dinheiro e esteja à vontade para o contar mas verá que está aí tudo.
Agora queremos ver os homens e tratar da libertação dos mesmos."

O capitão pega no saco, agitando-o. Assim que ouve o barulho das moedas a
baterem umas nas outras diz "Realmente há outro som mais belo no mundo?
Podem ir visitar os homens podem, mas só sairão em liberdade depois de toda
a papelada estar pronta."

Martim e Abd al-Ramaan são encaminhados para as catacumbas da prisão. À


medida que se vão dirigindo em direcção às celas Martim começa a sentir uma
grande ansiosidade a invadir o seu corpo. A cada passo que dá sente um nó na
barriga, não aguentava pelo momento em que podia ver os homens de novo.

O carcereiro pega então na chave e abre a cela. À medida que abre a cela os
raios de luz das tochas começam a invadir a mesma. Assim que a porta se
encontra aberta os homens entram.

"Ora muito bom dia a todos. Quero antes demais pedir-vos desculpas por me
ter demorado a cumprir aquilo que vos prometi há uns anos atrás mas aqui
estou para tratar da vossa libertação. A partir de hoje serão de novo homens
livres."

"Martim? És mesmo tu? Sim, é ele, é o Martim, ele veio cá para nos libertar",
começa por dizer um dos prisioneiros. Nisto levantam-se todos e em coro
começam a gritar pelo seu nome "Martim, Martim, Martim". Cada vez que
Martim ouve seu nome ecoar sente um calafrio na espinha, nem acredita que o
momento que tanto lutara por que ocorresse estivesse a acontecer.

Os homens ajoelham-se perante ele e dizem em uníssono "Meu capitão,


estamos aqui para obedecer às suas ordens." "Vá parem lá com isso, eu estou
apenas a cumprir aquilo que vos prometi, agora levantem-se e comecem a
preparar-se que hoje serão homens livres. Poderão ir para onde quiserem e
fazer o que bem entenderem. Aquilo que já devia ter acontecido há muito, está
agora a dar-se, vocês há bastante tempo que deviam estar em liberdade mas
só agora é que consegui cumprir o que prometera."
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O Navegante
por Carlos Carvalho

Os homens emocionados e com a voz meio a soluçar respondem-lhe. "Nós


bem sabíamos que não nos abandonarias, que lutarias pela nossa liberdade,
obrigado, muito obrigado." As lágrimas começam a percorrer a face de Martim.
Antes de sair da cela abraça cada um dos homens e promete aos mesmos que
a liberdade encontrava-se próxima.

Depois de ter visto os companheiros aprisionados, Martim dirige-se com Abd al-
Ramaan ao gabinete do capitão da prisão. "Então acabaram de visitar os meus
hóspedes? Como vêem estavam bem tratados, se calhar até vão ter saudades
do tempo aqui passado", diz o capitão num tom irónico.

"Nós estamos aqui é para tratar da papelada e não queremos entrar em


discussões. Diga-nos quais as formalidades a tratar para que eles sejam
libertados o mais depressa possível", diz Abd al-Ramaan meio exaltado depois
de ter ouvido as provocações por parte do capitão.

"Vamos lá tratar então da papelada toda para libertar esses míseros


prisioneiros. Cada dia que passa só nos dão prejuízo, temos que alimentá-los e
dar-lhes abrigo e não somos uma instituição de caridade."

O capitão assina uns papéis e dá os mesmos a Martim de modo a que os


assine. De acordo com os papéis o resgate tinha sido recebido e aquele que
tinha pago o resgate garantia que os prisioneiros lhe tinham sido confiados e
era responsável pelos mesmos até que eles abandonassem a cidade. Martim
assina os papéis e devolve os mesmos ao capitão.

"Agora que assinei os papéis quero levar os homens comigo, eles já se


encontram presos há demasiado tempo."

"Claro que sim, vou dar ordens aos soldados para os soltarem de imediato. Eles
irão ter convosco junto ao portão principal, não se preocupem que será tudo
tratado dentro das conformidades."

Martim e Abd al-Ramaan descem as escadas e dirigem-se junto ao portão


principal. Ali aguardariam pela chegada dos homens. Ao fim de uns trinta
minutos de espera vêem ao fundo um grupo de homens escoltado por um
conjunto de soldados. Eram os marinheiros que finalmente se deslocavam em
sua direcção.

Assim que o contingente se aproxima dos dois homens os soldados indicam


aos homens que podem sair, apontando-lhes o caminho para a estrada.
Finalmente poderiam respirar o sabor da liberdade ao fim dos anos de cativeiro.
Já fora da prisão os homens entoavam cânticos em honra de Martim. Este cada
vez que ouvia seu nome ecoar sentia seu coração bater de emoção e alívio. A
promessa que tinha efectuado estava saldada e agora podia dedicar-se à luta
por sua felicidade e de Nia Zhing.

O grupo segue em direcção à Sargaço e uma vez lá chegados Martim fala com
os homens. "Meus amigos, companheiros de luta, hoje consegui saldar a dívida
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O Navegante
por Carlos Carvalho

que tinha para convosco. Não imaginam a alegria que vem da minha alma ao
ver as vossas caras de novo, poder falar convosco, respirar a liberdade em
conjunto. A partir deste momento vocês são homens livres e podem fazer aquilo
que muito bem entenderem. Assim que abandonarmos Calecute, levar-vos-ei
até Cochim e uma vez aí chegados poderão tratar da vossa vida. Quem quiser
pode continuar a trabalhar comigo ou seguir a sua vida. Não julguem que têm
uma dívida para comigo porque não têm, eu é que tinha para convosco e
acabei de a saldar. Giovanni Umani, a pessoa que tratou do meu resgate e que
me auxiliou no vosso precisa de homens fortes e destemidos que trabalhem a
seu lado. Quem quiser trabalhar comigo e com ele pode voluntariar-se para o
mesmo e quem quiser seguir outro caminho está livre de o fazer. A decisão é
vossa e será sempre aceite e respeitada."

Os homens depois de ouvirem as palavras de Martim respondem em uníssono


"Tu és e serás o nosso capitão! Para onde fores nós seguir-te-emos. A nossa
decisão está tomada."

Martim olha para seus homens e sente o espírito de comunhão que os mesmos
acabam de fazer para com ele. Sente-se responsável por eles e eles por
Martim, um forte laço de amizade os unia e dificilmente seria quebrado.

Abd al-Ramaan presencia este gesto da parte dos homens e fala a Martim "Tu
não páras de me surpreender. Quem diria que o menino que conheci há uns
anos atrás se iria tornar o homem e líder que presencio hoje perante meus
olhos? Tens uma grande responsabilidade em comandar estes homens mas
garanto-te que eles irão contigo a qualquer sítio e farão qualquer sacrifício para
te verem bem. A partir de agora é como se fossem tua família. Tens que olhar
por eles e eles olharão por ti."

"Obrigado Abd al-Ramaan pelos teus conselhos. Sem ti não sei o que seria
muitas vezes de mim, nos momentos de necessidade estás sempre pronto a
aconselhar-me e dar-me a mão."

A Sargaço partiria em direcção a Cochim no dia seguinte assim que a maré


cheia o permitisse. Por ora festejariam a bordo a libertação.

Na manhã seguinte já com a maré cheia a Sargaço encontra-se pronta para


partir rumo a Cochim. Martim despede-se de Abd al-Ramaan, dando um grande
abraço ao mesmo. "Abd al-Ramaan, até um dia. Não sei quando nos
voltaremos a ver mas estou certo que nos veremos. Mais uma vez quero
agradecer-te por tudo aquilo que fizeste por mim e pelos homens, és um
verdadeiro irmão, um grande amigo."

"Martim não tens nada que agradecer, aquilo que eu fiz por ti sei que também o
farias por mim. Um dia voltaremos a ver-nos tenho a certeza. Desejo-te uma
viagem rumo a Cochim e espero que sejas feliz ao lado de Nia Zhing. O amor é
o sentimento mais forte que existe e se for puro e verdadeiro vence todos os
obstáculos. Agora parte antes que percas a maré."

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O Navegante
por Carlos Carvalho

25. Viagem até à China e resgate de Nia Zhing

Aproveitando a maré cheia a Sargaço desloca-se em direcção a Cochim.


Dentro de uns oito a nove dias chegariam ao porto.

Chegados a Cochim, Martim desloca-se a casa de Giovanni Umani e agradece-


lhe do fundo do coração por o ter ajudado a cumprir a promessa de libertar os
homens. Vinha também dar-lhe a boa nova de que eles aceitaram trabalhar
para si pelo que Giovanni passava a ver o seu número de trabalhadores
aumentar a olhos vistos. Como existia um grande laço de união dos ex-
prisioneiros com Martim, Giovanni sentia-se confiante pois era sinal de que iria
ter a seu lado pessoas cheias de vontade de trabalhar e mostrarem o seu valor.

Ao fim de uns dias em Cochim Martim pede para falar com Giovanni. "Ora viva
Martim, então o que me queres?"

"Giovanni preciso de falar contigo porque tenho algo a pedir-te. Como sabes
quando viajei para Macau conheci a mulher dona do meu coração. Prometi-lhe
que assim que libertasse os meus companheiros voltaria a Cantão e começaria
a partilhar o meu destino com ela. Como acabei de libertar os meus
companheiros quero pedir-te que me deixes ir para o ano na próxima feira
internacional de Cantão viajar até essas terras e ir ter com a minha amada."

"Martim, eu só posso falar bem de ti, desde o momento que passaste a


trabalhar comigo os meus negócios aumentaram e prosperam. Se vais em
busca da tua felicidade seja. O destino é algo que o homem não comanda e se
vais em busca do teu amor só te posso ajudar. Fica assente que para o ano irás
até Macau e Cantão por alturas da feira internacional. Até aí quero que
continues a fazer os teus trabalhos."

"Obrigado Giovanni, nem sabes a felicidade que me dás. Irei continuar


afincadamente com os meus deveres e não te preocupes que procurarei
sempre defender os teus interesses."

Enquanto não chegava a feira internacional de Cantão Martim prossegue a sua


vida de comerciante. Frequentemente viajava com a Sargaço até Galle e
Malaca trazendo pedras preciosas e especiarias para Cochim de cada viagem.
Quando faltavam três meses para o começo da feira volta a falar novamente
com Giovanni.

"Giovanni, como sabes a feira internacional de Cantão começa dentro de três


meses e tal como tinha falado anteriormente contigo gostaria de ir até lá. Quero
juntar o útil ao agradável e encontrar-me com Nia Zhing ."

"Tens a minha autorização, já anteriormente tínhamos falado sobre isso. Gosto


de ti e quero ver-te feliz, por isso segue caminho e luta pela tua felicidade."

Aparelhada a Sargaço, e carregada de mantimentos para a viagem, inicia-se a


mesma, começando a sulcarem-se as águas do Índico e Pacífico. Dentro de
três meses voltariam a pisar terra.
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O Navegante
por Carlos Carvalho

Chegados a Macau, Martim desloca-se à loja de Giovanni, indo em busca de


António Nogueira. Ia encontrar-se com ele porque queria a sua companhia para
a viagem até Cantão.

"Ora viva António! Como andam as coisas aqui por Macau desde que saí?"

"Martim, mas que prazer em ver-te! Os negócios têm prosperado bastante.


Desde que conseguimos o aumento das quotas de importação de seda
conseguimos dobrar o comércio com Nagasáqui e tem sido elevado o afluxo de
prata. Então o que te traz por estas paragens? Não acredito que seja só
negócios!", diz António Nogueira enquanto Martim faz um ar de sorridente.

"Realmente o que me traz por cá não é só negócios, tens razão. Quero


aproveitar o facto de ir até à feira de Cantão para me encontrar com Nia Zhing.
Não a consigo tirar do meu pensamento."

"Martim, tu tem cuidado, ela é filha do mandarim de Heong San e ele


certamente que não aprovaria a vossa união se soubesse da mesma. Ele deve
ter a sua mão apalavrada a algum rico chinês e se souber dos vossos
encontros podes correr risco de vida. Vê naquilo que te metes."

"Eu bem sei António, mas tenho que lutar pela minha felicidade. Só me sinto
bem a seu lado e se não lutar pelo amor o que direi a mim próprio daqui a uns
anos? Que tive a oportunidade de ser feliz mas devido a hesitar, ter medo e
falta de coragem que troquei a felicidade por uma vida segura e infeliz? Não,
estou disposto a lutar pela minha felicidade e de Nia Zhing. Estou certo que ela
será feliz a meu lado e eu junto a ela."

Ao fim de três dias em Macau, Martim segue rumo na Sargaço rumo a Cantão
acompanhado de António Nogueira. Ia em direcção àquelas terras para
comprar sedas e ver Nia Zhing. Estava disposto a correr todos os sacrifícios e
perigos para se encontrar com ela.

Depois de um dia de viagem a subir a foz do rio das Pérolas, a Sargaço atraca
em Cantão. Assim que chega a terra Martim escreve um bilhete a Nia Zhing
dando-lhe conta da sua chegada. Pede-lhe para se encontrarem logo que ela
pudesse. Pega no bilhete e entrega-o a um miúdo que caminhava junto ao
porto. Este em troca de uma moeda de prata certifica-se que a mensagem
chega ao seu destino.

No dia seguinte, estando Martim sentado no seu gabinete, recebe uma


mensagem lacrada. Era uma mensagem enviada por Nia Zhing, dizendo-lhe
que se quer encontrar com o mesmo ao anoitecer num jardim próximo do
palácio.

Martim começa a olhar ansioso para o tempo, quer que o mesmo passe
depressa por forma a poder ver de novo Nia Zhing. Todos os dias sentia a sua
falta mas agora que sabia que se iam reencontrar sente ainda mais o peso de
não a ver. Era como se uma eternidade se tivesse passado desde o seu último
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por Carlos Carvalho

encontro, valendo-lhe nos momentos de solidão a memória de seu sorriso,


rosto, perfume.

Martim desloca-se à hora marcada em direcção ao jardim, aguardando pela


chegada de sua amada. Senta-se junto a um chorão situado junto a um lago e
fica a vislumbrar os peixes vermelhos que se passeiam sobre o ondular dos
últimos raios de sol.

Sente um aroma invadir o seu nariz, aroma esse que o começa a abstrair-se de
tudo o que se passa em seu redor, perdendo noção do espaço e tempo. O
mesmo começa a intensificar-se sentindo de repente umas mãos tocarem em
suas costas. Instintivamente começa a beijar as mãos de seda que o rodeavam
e vira-se.

Ao virar-se, vê a cara de Nia Zhing e faz um sorriso de felicidade, exteriorizando


parte de seus sentimentos no mesmo. Ao fim de todos os meses de separação
voltava a encontrar-se com seu amor. Instantaneamente agarra-se a Nia Zhing
beijando-a profundamente.

Sente seu corpo consumir-se nas chamas da paixão, desejando ficar assim
eternamente. Ao mesmo tempo abraça-a e sente o coração de Nia Zhing bater
a um ritmo sincronizado com o seu coração.

"Nia, meu amor, que saudades tinha de teu sorriso, teus beijos, teu perfume,
tua boca, teu corpo. Passei os últimos meses a pensar em ti, no momento em
que te voltaria a ver. O que me deu força para vencer todas as contrariedades
que se me deparam ao longo do tempo foi saber que te voltaria a ver, a estar
contigo. A partir de agora não te quero mais abandonar, quero viver junto de ti,
abraçar-te todos os dias, acordar com o teu sorriso, ser embalado no teu
perfume."

"Martim, eu também tenho pensado em ti todos os dias. Sentia falta dos teus
beijos, dos teus abraços, da tua companhia. Quem me dera que o mundo fosse
só eu, tu e este jardim, não houvesse mais nada que não nós. Seríamos
eternamente felizes. Abraça-me com força, faz com que o mundo seja só eu e
tu, faz com que o tempo pare e que fiquemos eternamente abraçados."

Enquanto Martim a abraça, Nia Zhing começa a chorar. Sua face começa a ser
invadida de lágrimas. "Nia, o que se passa, porque começas a chorar? Estou
junto aqui contigo, o que te atormenta, diz-me.", enquanto diz isto Martim
começa a limpar as lágrimas da face de Nia Zhing.

"Porque é que as coisas não são como queremos? Porque é que há sempre
obstáculos na procura da felicidade? Como te disse o mundo devia ser apenas
este jardim, existindo só eu e tu para a eternidade. Meu pai prometeu a minha
mão em casamento e terei que casar dentro de quatro meses. Faz com que o
tempo pare, eu quero viver este momento para toda a eternidade."

Martim ao ouvir as palavras de Nia Zhing tem como primeira reacção ficar
petrificado. Por uns breves instantes deixa de raciocinar, perdendo noção de
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tudo o que o rodeia, mas ao fim de uns segundos volta a despertar para a
realidade. Aquilo que ela lhe contava significava que se queria ser feliz teria que
lutar por aquilo que lhe era mais importante, seu amor por Nia Zhing. Teria que
evitar esse casamento custasse o que custasse.

"Nia, meu amor, eu lutarei pelo nosso amor custe o que custar. Irei até ao fim
do mundo se necessário for, lutarei contra quem for necessário, tu és a pessoa
mais importante da minha vida e não consigo viver sabendo que não estás feliz.
Quero a tua e a minha felicidade e tudo farei para que sejamos felizes. Sei que
te pode parecer louca a ideia que te vou dar, mas vem comigo, deixa-me ser
feliz a teu lado,que nossas vidas sigam um caminho comum, sê minha mulher
para todo o sempre. Foge comigo, deixa o teu pai, o palácio, casa comigo."

"Tenho medo, se meu pai descobre ele é capaz de te matar, não consigo
suportar essa ideia. Mas também não suporto a ideia de casar com um homem
que não gosto e viver sem ti. Beija-me, abraça-me, faz-me sentir segura em
teus ombros."

Martim estava determinado a lutar por aquilo que lhe era mais precioso, pelo
amor a Nia Zhing estava disposto a lutar contra quem se interpusesse em seu
caminho e estava disposto a levar as suas ideias até às últimas consequências.
Assim que Nia Zhing voltara a sossegar, volta a falar-lhe na ideia de fugirem os
dois, iriam para Cochim, para longe das mãos do mandarim, buscando aí a sua
felicidade. Os dois amantes combinam a fuga. Teriam que sair de Cantão pela
calada da noite, levando as estrelas como suas testemunhas e companheiras.

A Sargaço teria que levantar âncora durante o dia e Martim esconder-se-ia por
Cantão sem que ninguém se apercebesse. Deixaria perto do porto um pequeno
batel e assim que Nia Zhing se encontrasse junto dele remariam rio abaixo em
direcção à Sargaço. O plano era arriscado, mas os dois amantes encontravam-
se dispostos a correr os riscos necessários para lutarem pela sua felicidade.
Dentro de uma semana seria o começo de lua nova, pelo que Martim combina
com Nia Zhing ser esse o dia. Ela encontrar-se ia com ele junto ao porto, indo
ter com ele disfarçada de pedinte.

Ao fim de uma semana em Cantão, e com noite de lua nova a Sargaço parte de
Cantão rumo a Macau ao meio dia. Levava em seu casco toda a tripulação e as
sedas adquiridas,exceptuando Martim, que se tinha escondido no porto por
baixo de uns batéis estacionados.

Assim que é chegada a noite, Martim desloca-se do sítio onde se encontra e


posiciona-se junto ao cais, deitando-se ao lado de uma das embarcações
estrangeiras que ali se encontravam por ocasião da feira e finge estar a dormir
embriagado.

Ao fim de algum tempo, Martim vê um vulto aproximar-se. À medida que o


mesmo se aproxima e a pouca luz emitida pelas estrelas o deixa vislumbrar
melhor repara que é Nia Zhing quem se aproxima, disfarçada de pedinte.

"Boa noite, tem a caridade de ajudar uma pobre?"


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"Pudera eu ter o mundo para te dar se pudesse. Para ter um sorriso teu seria
capaz de viajar até ao fim do mundo se preciso fosse meu amor. Vamos,
segue-me, temos que descer até ao batel que ninguém nos está a ver."

Os dois amantes descem o cais em direcção ao batel e sobem ao mesmo.


Martim ajuda Nia Zhing subir para o batel, subindo em seguida. Pega nos
remos e começa a remar, primeiro a um ritmo lento por forma a não fazer muito
barulho e em seguida a um ritmo normal assim que se encontra a uma distância
considerável do porto. Ao fim de remar durante uma hora, reencontra-se com a
Sargaço. Assobia duas vezes, sendo esse o sinal dado à tripulação para que
desçam umas cordas para poderem trepar para o convés.

Chegados ao convés, Martim verifica que é o próprio João da Ribeira quem


puxa pela corda que os leva até bordo, estando o resto da tripulação sobre o
convés à espera deles.

"Boa noite Martim, bons olhos te vejam a ti e à Nia Zhing. Correu tudo bem?"

"João, muito obrigado por me ajudares a mim e à Nia, não sei como te
agradecer a ti e a toda a tripulação por aceitarem fazer isto por mim e pela Nia
Zhing."

Depois de terem içado o batel seguem viagem rumo a Macau, acabando por
aportar no porto no dia seguinte. Chegados a Macau, Martim decide deslocar-
se com Nia Zhing à igreja por forma a que se casem. Apesar de ela não ser
católica ele entende ser melhor fazê-lo por protecção dos dois. Uma vez
casados seria difícil terem problemas em terras de Portugal, ou assim pensava
Martim.

Chegados à igreja de Macau, que era uma pequena capela situada junto ao
porto, Martim dirige-se ao padre e pede para se confessar. Ao confessar-se
conta a história toda ao padre e este no fim acede a casá-los em segredo.
Como testemunhas do acto estariam João da Ribeira e António Nogueira.
Assim que os dois noivos se acabaram de casar, dirigem-se para casa de
António Nogueira para selarem o matrimónio.

No dia seguinte e uma vez casados, os dois amantes decidem dar uma volta
pela vila. Como se encontravam já casados não havia nada a esconder pelo
que Martim se sentia seguro ao andar com sua esposa.

Ao fim de uns dias acabam por chegar aos ouvidos do mandarim de Heong San
que sua filha se encontrava por Macau e tinha casado com um português. Este
procura mostrar sua fúria e impõe um ultimato às autoridades portuguesas. Ou
lhe entregam sua filha ou então invadiria Macau e sacaria a vila. António
Nogueira mal sabe da notícia corre para avisar Martim, dizendo ao mesmo para
fugir de Macau, caso contrário o mais certo seria as autoridades cederem à
pressão do mandarim.

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Não se sentindo mais seguro em Macau, Martim decide partir de volta a


Cochim, saindo do porto antes que fosse tarde.

26. Perseguição das autoridades portuguesas

Ao fim de três meses e meio de viagem, a Sargaço aporta em Cochim. Martim


desloca-se com Nia Zhing até casa de Giovanni Umani. Queria apresentar Nia
Zhing a Giovanni.

"Martim, meu rapaz, então estás de volta! Estou a ver que não regressaste
sozinho de Oriente. Então quem é a bela senhora a teu lado?"

"Giovanni quero apresentar-te a minha esposa Nia Zhing. Nia Zhing apresento-
te Giovanni o homem a quem devo a minha liberdade."

Os três falam entre si e Martim conta a Giovanni as peripécias sofridas e a


saída atribulada de Macau. Assim que soubera do ultimato imposto pelo
mandarim às autoridades de Macau pelos ouvidos de António Nogueira
resolvera partir antes que sofressem as consequências.

Os dois amantes passam a viver então em Cochim. Encontravam-se a uma


grande distância de Cantão pelo que ali sentiam-se seguros, certamente que a
influência do mandarim não chegaria tão longe e suas vidas poderiam
prosseguir em paz. Tinham tempo para se amarem e desfrutarem do amor
mútuo entre ambos.

Uma noite, Martim ouve baterem em sua casa, já a noite era bastante
adiantada. Ao abrir a porta verifica que eram os soldados que estavam ali para
o prender. Questiona-se da razão pela qual estavam ali para o prender. De
acordo com os mesmos tinham acabado de receber ordens superiores para o
prenderem por traição.

As autoridades portuguesas de Macau assim que souberam da sua partida de


Macau decidiram incriminá-lo de traição e emitiram um mandado em seu nome.

Martim nada pode fazer, via-se indefeso perante os soldados e acaba por se
entregar. Nia Zhing procura agarrar-se a ele, pedindo que a levem junto dele.
Martim procura acalmá-la, dizendo-lhe que tudo irá correr bem. Pede a ela para
na manhã seguinte informar Giovanni do que se passara que certamente se
encontraria uma solução para o problema.

Na manhã seguinte, Nia Zhing desloca-se a casa de Giovanni e dá-lhe a


notícia. Este mal se apercebe da gravidade da situação desloca-se em direcção
à prisão e procura falar com o capitão. Ao falar com o mesmo apercebe-se que
as autoridades não estavam dispostas a retirar as acusações. A acusação de
traição seria para levar adiante, estando prevista a execução de Martim. Mal o
mesmo estivesse morto, os laços matrimoniais com Nia Zhing estariam

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desfeitos pelo que ela seria levada de volta até Cantão e entregue às mãos do
mandarim.

Giovanni encontra-se chocado ao ouvir isto da boca do capitão. Como era


possível cederem às pressões do mandarim, condenarem um homem à morte e
entregar sua esposa? Vendo que pouco podia fazer, pede ao capitão para falar
com Martim.

Descendo até à cela, Giovanni encontra-se com Martim e conta-lhe a conversa


que acabara de ter com o capitão da prisão. Martim ao ouvir os planos das
autoridades sente-se incrédulo e traído. Como era possível cederem à
chantagem do mandarim? Um sentimento de impotência e raiva invade seu
corpo. Para acalmar a ira que o invade dá um murro na parede da prisão,
começando a sangrar de sua mão. Pobre Nia Zhing, pensa ele para consigo, ao
invés de lhe ter proporcionado felicidade, ele seria o causador de sofrimento.
Começa a sentir-se culpado, ele é que a tinha convencido a fugir e casar-se
com ele.

A morte não o afligia, o que lhe causava mais dor era saber a infelicidade que
estava a causar a Nia Zhing. Pensara que tinha salvo a flor do seu jardim, mas
afinal tinha apenas cortado a mesma e colocado sobre um vaso de água.
Durante os primeiros tempos a flor ainda desabrochou com a água, mas a falta
da seiva da raíz acabaria por definhar a mesma.

João da Ribeira ao saber da notícia da captura de Martim, acusado de traição


por parte das autoridades portuguesas começa a sentir uma enorme raiva a
invadir sua alma. Como era possível, pensa ele para consigo, as autoridades
venderem-se às vontades de um mandarim? Sente-se traído pelas autoridades
portuguesas vendo que as mesmas se subjugavam aos interesses de um
mandarim.

Os marinheiros da Sargaço ao saberem da notícia da captura de seu capitão


Martim decidem falar com João da Ribeira. Sentiam-se em dívida para com
Martim, este tinha-lhes devolvido a liberdade que as autoridades portuguesas
não quiseram devolver quando foram capturados em Calecute e viam uma vez
mais sentirem-se traídos e abandonados pelas autoridades a quem tinham
servido anteriormente e pago sua lealdade e subserviência com o cativo.

Não podiam deixar as coisas dessa maneira, tinham que agir. Estavam
dispostos a fazer todos os sacrifícios e até a sacrificarem suas vidas para
salvarem Martim. Fazem fazer ver isso mesmo a João da Ribeira. Eram
capazes de cometer qualquer loucura para libertarem o seu capitão.

João ouve os homens e sente que os mesmos se encontram dispostos a lutar


pelo seu capitão. Surge em sua mente um plano e conta o mesmo aos homens,
auscultando sua opinião. Iriam preparar a Sargaço para partir, carregando-a de
munições e mantimentos e numa noite iriam atacar a prisão. Se agissem de
surpresa e pela calada seriam capazes de soltar Martim, fugindo de seguida
para uma cidade não dominada pelos portugueses. Isto significaria que nenhum
deles poderia voltar a pisar terras portuguesas a partir daí, pois seriam
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considerados criminosos por atacarem uma prisão e auxiliarem a fuga de um


prisioneiro.

Os homens depois de ouvirem o plano de João da Ribeira e conscientes dos


perigos a que se iriam submeter decidem apoiar seu plano por unanimidade.
João da Ribeira começa a aparelhar a Sargaço e não conta de suas intenções
nem mesmo a Giovanni com medo que este o tente impedir de cometer a
loucura que tinha planeado com seus homens.

Ao fim de uns dias já com a Sargaço pronta decide ser chegado o momento de
agir. Reúne com os homens de novo e combinam fazer o ataque na noite
seguinte. Um pequeno grupo iria até casa de Martim e levariam Nia Zhing até à
Sargaço enquanto o resto do grupo atacaria de surpresa a prisão.

Chegada a noite do ataque, João da Ribeira decide dar uma grande festa e
convida os soldados para a mesma. Durante a noite não falta o vinho que não
pára de jorrar dos toneis em direcção às canecas e gargantas sedentas dos
soldados. Com a maioria dos soldados embriagados, João da Ribeira decide
agir. Com o grupo de homens dirige-se armado até à prisão e obrigam o
sentinela a abrir a cela onde se encontrava Martim.

Martim ao ouvir a porta da cela abrir-se acorda e levanta-se. "João, mas o que
te traz por cá a esta hora da noite?"

"Boa noite Martim, estou aqui juntamente com os homens para te libertar. Estás
acusado injustamente de traição e não podemos pactuar com isso. Temos a
Sargaço aparelhada e pronta para partir, não queremos que te preocupes com
a Nia Zhing porque ela já se encontra lá à tua espera. Agora segue-nos."

Martim acorre em direcção a João da Ribeira e abraça-o. "João, uma vez mais
salvaste a minha vida, não tenho como te pagar por tamanha gratidão tua.
Aceita do fundo do meu coração a minha gratidão."

"Vá, vamos lá deixar-nos de pedidos de agradecimento, não tens nada que me


agradecer, aquilo que te fizeram a ti não se faz a ninguém, muito menos a um
homem com a tua valentia, integridade e que lutou em prol dos interesses da
coroa. Agora segue-me que se faz tarde."

Trancam o soldado que se encontrava a fazer de sentinela na cela onde Martim


se encontrava aprisionado e seguem em direcção ao porto. Não havia tempo a
perder, teriam que partir imediatamente antes que o alerta geral fosse lançado.

Os homens acorrem em direcção ao porto e caminham até bordo da Sargaço.


Mal chegados a bordo, Martim procura ir ter de encontro a Nia Zhing. Ela
encontrava-se nos aposentos onde ele normalmente ficava aquando de viagem.
Assim que a vê acorre em direcção a seus braços e beija-a. "Meu amor,
perdoa-me por só te trazer problemas. Comigo levas uma vida de fugitiva,
sempre a fugir de tudo e todos, sinto-me culpado por não te poder proporcionar
uma vida estável e em paz."

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"Martim não digas isso, eu estou a teu lado porque foi esse o caminho que
decidi tomar, ninguém me obrigou a segui-lo, e se estou aqui contigo é porque
te amo e quero viver a teu lado. Não me importam os sacrifícios que tenha que
fazer se tal significar estar a teu lado."

João da Ribeira dá ordens para levantarem as amarras e içarem a âncora,


partiriam de Cochim como fugitivos, mas com o sentimento de orgulho em suas
almas e um sentimento de grande revolta perante as autoridades portuguesas
que uma vez mais os tinham atraiçoado. Aquando da captura pelas forças
inimigas, fingiram não saber de sua captura, tendo sido todos dados como
mortos em batalha ignorando os pedidos de resgate por parte das autoridades
de Calecute, agora viam a injustiça abater-se sobre Martim que mais não tinha
feito que lutar por seu amor e felicidade.

Na manhã seguinte, já em mar alto, João da Ribeira reúne-se com Martim.


Agora que se encontravam fugidos das autoridades portuguesas havia que ver
para onde é que iriam. Todas as cidades e portos amigos das autoridades
portuguesas certamente não os receberiam mal soubessem das notícias da
fuga pelo que não lhes restava outra alternativa que não aportarem numa
cidade controlada pelas forças turcas.

João clama por vingança, diz a Martim estar preparado para se tornar num
pirata junto com o resto da tripulação. Atacariam e sacariam as embarcações
portuguesas e amigas destes como modo de retaliação por todas as injustiças
sofridas e sentimento de abandono. Martim mostra-lhe que não é esse o
caminho, se seguissem esse rumo tornar-se-iam iguais ou piores que aqueles
que neste momento andavam em sua busca e não queria ceifar vidas
inocentes. Partindo da máxima os inimigos de nossos inimigos são nossos
amigos, Martim decide rumar até Calecute. Se aportassem nessa cidade
decerto que as autoridades os receberiam bem se soubessem que tinham
fugido às forças portuguesas. Além disso, Martim contava com a amizade de
Abd al-Ramaan para o ajudar a viver em exílio.

27. Fuga até Calecute e reencontro com Abd al-Ramaan

Decidem então rumar até Calecute, os homens ao saberem que rumariam para
tais terras, onde muitos deles estiveram presos durante anos sentem ao início
que vão caminhar de novo rumo à prisão, mas não tinham outra escolha que
não rumar a essas paragens. A cidade que para eles tinha sido maldita e sinal
do cativo preparava-se agora para os receber de braços abertos, acabados de
ser orfãos iam a caminho dos únicos capazes de os receber e acolher.

Martim conta a Nia Zhing o que acabara de falar com João da Ribeira, não
tinham outra escolha que não rumar em direcção a Calecute. Sob a protecção
do rei de Calecute e das forças turcas estariam em protecção e poderiam
finalmente viver em paz. Além disso em Calecute estava um dos seus maiores
amigos, Abd al-Ramaan, contando a Nia Zhing a estória de Abd al-Ramaan.

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"Martim, eu vou contigo para qualquer lugar do mundo, só desejo que possa
estar junto a teu lado sem ninguém que procure interferir na nossa felicidade.
Estou desejosa de conhecer o teu amigo Abd al-Ramaan, pelo que me contas é
um homem íntegro e cheio de coragem."

Martim beija Nia Zhing e promete-lhe que desta vez seriam felizes, finalmente
iriam encontrar o jardim onde poderiam viver abstraídos de tudo o resto que os
rodeasse. Poderiam passar a concentrar-se apenas em serem felizes.

Ao fim de duas semanas de viagem encontram-se próximos da cidade de


Calecute. Martim ordena aos homens que icem uma bandeira branca sobre o
topo do mastro da Sargaço. Assim que chegassem ao porto iria entregar-se ao
capitão do porto e pediria para falarem com Abd al-Ramaan. Estava certo que
depois de contar a sua história lhe concederiam o direito de ali permanecer.

Ao chegarem ao porto de Calecute, Martim pede aos homens para


permanecerem no barco, descendo apenas ele. Dirige-se aos soldados e pede
para falar com o capitão do porto. Este recebe-o no seu gabinete.

"Bom dia, chamo-me Martim da Nóbrega e estou aqui para me entregar. Sou
um foragido das autoridades portuguesas, acusado injustamente de traição à
coroa portuguesa. Prefiro ser preso por vós que por aqueles que não merecem
a minha honra e lealdade."

O capitão do porto fica meio surpreendido com tal gesto, não era normal ver um
português apresentar-se para se entregar. Ao fim de algum tempo decide então
questionar Martim. "Mas porque foge das autoridades portuguesas e que acto
tão grave cometeu para o acusarem de traição?"

"A história é bastante longa, mas vou tentar resumir. Nas minhas viagens pela
China conheci uma bela mulher por quem fiquei apaixonado. Ela é filha de um
mandarim bastante poderoso e como ele queria dar sua mão a um homem que
ela não amava fugiu comigo e casámos em Macau. O mandarim ao saber que
sua filha tinha fugido e casado comigo fez pressão às autoridades portuguesas.
Queria sua filha de volta a todo o custo. Como ela se encontra casada comigo a
única maneira que tinham para lha entregar de volta era acabando com a minha
vida. Desse modo fui acusado de traição e perseguido pelas autoridades
portuguesas. Com a minha morte poderiam devolver a minha legítima mulher
às mãos do mandarim. Se aqui ainda estou posso agradecer aos meus homens
que me ajudaram a fugir de Cochim até aqui. Por isso aqui me apresento às
autoridades de Calecute para que vocês julguem de meus actos. Se acham que
sou um criminoso a vós minha vida entrego, mas se achar que nada cometi de
grave, peço asilio em meu nome e de todos os meus homens."

"A ser verdade aquilo que me acaba de contar não vejo razão para o prender,
aquilo que fez foi apenas lutar pelo seu amor e felicidade, pode seguir em
liberdade mas não podem sair da cidade enquanto não se averiguarem
devidamente os factos."

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Martim sai aliviado do gabinete do capitão do porto. Tinha que se apressar a


contar a novidade a Nia Zhing e seus homens, finalmente poderiam todos
descer da Sargaço e pisar terra que nada de mal lhes aconteceria.

Martim encaminha-se em direcção à Sargaço, sobe a bordo e dirige-se


imediatamente à cabine onde se encontrava Nia Zhing. Ia dar-lhe a notícia em
primeira mão a ela. "Nia meu amor, acabo de voltar de falar com o capitão do
porto. Estamos autorizados a permanecer aqui em Calecute que nada de mal
nos acontecerá, sob a sua protecção estaremos livres da influência do
mandarim e das autoridades portuguesas. Poderemos finalmente encontrar um
sítio onde poderemos viver em tranquilidade um para o outro sem nos
preocuparmos com o que possa acontecer amanhã."

Nisto Martim abraça Nia Zhing e beija-a cheio de paixão. Finalmente encontrara
um local onde poderia viver só para ela, não teria que andar em constante fuga
e perseguição, ali seriam felizes.

Depois de falar com Nia Zhing, desloca-se em direcção ao convés e pede para
todos os homens se reunirem. Ia dar-lhes a novidade, todos eles seriam bem
recebidos em terras de Calecute podendo viver aí em paz.

Estes ao saberem da boa nova começam imediatamente a festejar, ali


poderiam viver suas vidas em paz e Martim não teria que se preocupar mais
com as perseguições e acusações que tinha sofrido. Ao mesmo tempo pensam
eles para si como era o destino, como a terra amaldiçoada, onde passaram
anos seguidos de cativo lhes abria agora as portas da liberdade e aqueles por
quem muitos deles tinham lutado, colocado suas vidas em risco os perseguiam
agora como míseros traidores apenas por terem tentado corrigir uma injustiça.

Martim desce uma vez mais da Sargaço em busca de Abd al-Ramaan. Segue
pelas ruas de Calecute em direcção a sua casa, à medida que se vai
deslocando imagina qual será a reacção de Abd al-Ramaan quando souber da
sua chegada e os motivos que o levaram a viajar até Calecute.

Ao chegar a casa de Abd al-Ramaan bate à porta, esperando por uns breves
momentos que lhe abram a porta. Um criado abre a porta e pergunta quem é e
o que o traz por ali.

"Bom dia, chamo-me Martim da Nóbrega, diga ao seu amo Abd al-Ramaan que
me encontro aqui para o ver."

O criado diz-lhe para aguardar uns momentos que iria chamar seu amo,
enquanto espera Martim aproveita para respirar, cada vez que inala ar em
direcção de seus pulmões toma consciência da sua liberdade, tinha encontrado
o sítio onde poderia amar e ser amado.

"Martim, bons olhos te vejam. Então o que te traz por Calecute?"

"Abd al-Ramaan, nem sabes a felicidade que tenho em ver-te e poder falar
contigo. Da última vez que nos vimos contei-te que me tinha apaixonado por
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terras de Cantão, tendo morrido aí de amores pela mulher da minha vida, Nia
Zhing. Voltei a Cantão para me reencontrar com ela e fugimos para Macau
onde casámos. Seu pai, o mandarim ao saber da fuga e do casamento de sua
filha comigo exigiu às autoridades portuguesas que lhe voltassem a devolver
sua filha. Como ela se encontrava casada comigo, a única maneira que tinham
para a devolver a seu pai seria acabarem com a minha vida. Acusaram-me
injustamente de traição e acabei sendo preso em Cochim. Não fossem os meus
valentes companheiros e hoje já não respiraria. Atacaram a prisão, libertaram-
me e auxiliaram-me na fuga. Como iríamos ser perseguidos em todos os portos
controlados pelas autoridades portuguesas, não me restou outra solução que
não rumar em direcção a Calecute. Aqui cheguei e entreguei-me ao capitão do
porto. Contei-lhe a razão que me trouxe cá e ele depois de saber a minha
história acedeu a receber-me a mim e a todos os meus companheiros."

"Nem imagino o quanto deves ter sofrido por teres sido injustamente acusado
de traição, mas fazes bem em lutar pelo teu amor e felicidade. Tudo aquilo que
precisares conta comigo. Sou e serei teu amigo nas boas e más horas. Fico
feliz e triste por saber que irás viver em Calecute. Feliz porque terei o prazer de
desfrutar da tua companhia mas triste porque saber as razões que te levaram a
vir para cá. Mas agora vamos esquecer as coisas más e falar apenas nas
coisas boas. Quero ter-te a meu lado e faço já o convite para que trabalhes
comigo. Os meus negócios têm vindo a prosperar e estou a precisar de alguém
que me ajude a geri-los e esse alguém quero que sejas tu. És um homem cheio
de fibra, experiente no mundo do comércio e em quem eu confio. Enquanto não
arranjares casa quero que venhas viver com a tua mulher para aqui. A minha
casa é bastante grande e assim tenho sempre o prazer de ter a tua companhia.
Os teus homens podem também sentir-se seguros que eu também tenho
trabalho para todos eles. Não penses que isto é um favor que te estou a fazer a
ti ou a eles que não o é, para mim é uma dádiva poder contar com homens tão
determinados e leais aos seus principios."

Martim depois de ter falado com Abd al-Ramaan apressa-se a dar a boa nova a
Nia Zhing e seus homens. Havia trabalho para todos e teriam um sítio onde
poderiam lutar pela sua felicidade.

Martim segue com Nia Zhing em direcção a casa de Abd al-Ramaan. Este ao
vê-la diz a Martim "realmente agora percebo a razão porque lutaste pelo teu
amor. Tens contigo uma verdadeira pérola, sua beleza é de facto irradiante,
desejo as maiores felicidades para ti e para Nia Zhing, que os dois sejam
felizes".

Ao fim de umas semanas em Calecute, Martim e Nia Zhing encontram


finalmente a casa onde iriam viver. Era uma casa que ficava a alguma distância
do centro de Calecute, com um grande jardim em seu redor, onde os dois
amantes passavam o tempo a viverem um para o outro.

Isolados do resto do mundo, sem se apercebem da chuva que cai, trocam


beijos e carícias, fundindo-se com a água. Nada mais interessava, o mundo era
apenas o jardim.

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