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O Navegante
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O Navegante
por Carlos Carvalho
Capítulos
1. O Sonho 4
2. Os preparativos da Viagem 8
8. A Ilha de Moçambique 43
16. A libertação 94
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1. O Sonho
Nos dias de chegada dos navios acorre ao cais da Pedra em Alfama para ver
as naus a chegar, de longe, carregadas de especiarias, e mais importante que
tudo de estórias de encontros com outras culturas.
Fica a pensar como será partir dentro de uma nau e atravessar a costa de
África, passar o equador, observar um céu diferente daquele que vislumbra
todas as noites. Ao Sul passaria a como guia o Cruzeiro do Sul, a mais
pequena das constelações do céu em forma da cruz de Cristo, símbolo dos
descobrimentos ao invés da sua conhecida Estrela Polar.
Apesar de Martim pretender viajar e ter dito isso mesmo a seu pai, “Pai, quero
viajar rumo ao Oriente para conhecer as cidades onde os nossos marinheiros
foram, as gentes que lá habitam, as culturas que lá efervescem. Quero respirar
a terra com o odor do gengibre e da canela”, o mesmo não partilha de seus
sentimentos. “Não digas disparates”, retorque seu pai, “quem viaja para esses
lados do mundo vai porque ou não tem vintém, ou vai em busca de títulos de
nobreza. O teu futuro é continuares com o negócio da família, no comércio de
especiarias mas com os pés assentes em Lisboa. Deixa as aventuras para
quem não pensa”.
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Afonso pretende que seu filho continue o seu trabalho como mercador,
comprando as mercearias vindas do longínquo Oriente e vendendo as mesmas
com uma boa margem de lucro para os portos da Flandres.
Enquanto isso, Martim sonha, sonha em viajar, embarcar numa nau rumo ao
Oriente e ver pelos seus próprios olhos tudo o que conhece apenas das
estórias contadas pelos marinheiros.
Que gentes são essas do Oriente longínquo com culturas diferentes e raças
díspares. Que terras são essas banhadas pelo Sol nascente onde brotam as
especiarias. Que terras são essas onde existem povos de cores mil, indianos de
tom de pele cor da canela, chineses e japoneses da cor do gengibre.
Por forma a colocar em prática tudo o que sabe, pretende adquirir uma
pequena barca por forma a verificar empiricamente o conhecimento que vai
adquirindo.
Pede auxílio a seu pai mas este volta a negar-lhe o pedido por achar que ele
tem é que dedicar-se ao negócio da família e esquecer essas futilidades.
Martim vira-se então para sua mãe, Inês da Nóbrega, mulher na casa dos seus
37 anos que apesar de viver a maior parte do tempo no recluso da casa por
imposição do marido, procura sempre ouvir o seu filho.
Inês, apesar de não gostar das ideias de seu filho acha que seu pai é
demasiado severo. “Filho, o teu pai quer o melhor para ti, tens que aprender a
ouvi-lo e respeitá-lo. Ele quer que continues com o seu negócio, Procura seguir
os seus conselhos”. “Mas mãe, o que eu quero é viajar, conhecer o Oriente
longínquo, verificar que o céu no hemisfério Sul é diferente daquele que nós
todas as noites vemos. Quero conhecer as terras da pimenta, do cravo,
gengibre e canela, quero ver as terras onde o sol nasce e brota todos os dias.
Quero dar vida ao meu sonho”.
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“Ele está no vigor da sua juventude não sendo mais que uma fase. Assim que
arranjar esposa assentará a vida e dedicar-se-á aos negócios da família. Se o
ajudar agora, provavelmente ele verá que não é isso que quer e voltará a seguir
o rumo devido”, confidenciava ela para consigo própria.
Com a sua barca, Martim aproveita para colocar em prática o que ouvira dos
marinheiros e lera dos compêndios de astronomia e matemática.
Todas as semanas inventa uma desculpa a seu pai, dizendo que vai até
Setúbal em busca de contactos comerciais e oportunidades de negócio. Com a
ajuda destas viagens começa a aprender a arte da navegação.
Sonha visitar terras de Oriente, mas para já como não tem idade contenta-se
em passear perto de Lisboa.
Nas Berlengas, fica fascinado pelas suas múltiplas cores. Apesar de ser uma
ilha não habitada pelo homem, a multiplicidade de vegetação na Primavera faz
com que um tapete seja estendido sobre a mesma. Todas as manhãs desenha-
se um arco-íris, com o seu contraste de cores, e confluência de todos os
oceanos de flores num único local.
Ele sabia que um dia iria sentir o mesmo que eles sentiram, o seu destino
estava ligado a essas terras longínquas. Apesar da distância das mesmas
sentia o seu chamamento sempre que avistava o nascer do Sol vindo dessas
paragens.
2. Os preparativos da Viagem
Dois anos se passaram desde que Martim tivera o impulso de entrar numa nau
e viajar rumo a Oriente. Com os seus 18 anos já tinha conhecimento prático da
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Graças à barca adquirida por sua mãe, à leitura da obra de Pedro Nunes, às
conversas tidas com marinheiros, sabia manejar com facilidade o astrolábio,
permitindo-lhe orientar-se no mar. Sabia que a sua hora para a caminhada
rumo a Oriente se encontrava cada vez mais próxima.
“Ganhei-te por isso vais ter que me pagar o que deves e é agora”. “Calma
homem, eu bem sei que me ganhaste mas por ora não tenho com que te pagar.
Mas está descansado que andam a recrutar marinheiros para a carreira da
Índia que parte este ano em Abril. Como eles pagam adiantado o dinheiro pelos
trabalhos da viagem eu aí vou poder pagar-te o que devo”. “Está bem, aceito”,
responde o outro, “mas já que não pagas agora vais ter que me pagar mais por
causa disso”. “Está descansado que te pagarei o que te é de direito. Anda lá
que agora pago-te um copo”.
Martim começa a sentir um formigueiro a subir-lhe da planta dos pés até à sua
cabeça. “A carreira da Índia, a carreira da Índia ...” põe-se ele a falar para os
seus botões. Era mesmo isso que ele queria ouvir. Sem demora, pergunta a um
deles se lhe sabe dizer quem é o capitão-mor do navio. “Pelo que ouvi dizer o
capitão-mor é D. Afonso de Menezes, nomeado pelo regente do Reino.”
Teria que lhe fazer ver que já estaria experimentado nas artes do mar. As
viagens efectuadas entre Setúbal e as Berlengas certamente que lhe teriam
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dado a experiência e traquejo necessários para tal viagem e além disso já era
experimentado no uso do astrolábio para a determinação da latitude. Os
estudos da obra de Pedro Nunes não teriam sido efectuados em vão.
As conversas que tivera ao longo dos anos com antigos marinheiros que se
juntavam nas tabernas já lhe tinham moldado o espírito de aventura e
encontrava-se preparado para todo o tipo de males que pudesse vir a sofrer,
nomeadamente a solidão, o facto de comer várias vezes comida sem sabor e já
estragada e o perigo do escorbuto, esse mal dos marinheiros que tantas vezes
atacava pela calada.
Mal esse que muitos padeciam fazendo com que lhes caíssem os dentes,
inchassem as gengivas morrendo muitas vezes em virtude das infecções. Mas
o facto de poder conhecer o Oriente valia todos esses sacrifícios.
Onze da manhã. Martim dirige-se para a tasca indicada pelos marinheiros com
vista a encontrar-se com D. Afonso de Menezes. Pergunta a um vendedor
ambulante o caminho para a taberna do Chico e lá segue alegremente a
assobiar pelo caminho.
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Martim, pede um copo de vinho ao taberneiro por forma a ganhar coragem para
se dirigir a D. Afonso de Menezes. Pega no copo de vinha e toma-o de um só
golo sentindo um ardor a descer pela sua garganta em direcção ao estômago.
À medida que o vinho começa a entranhar-se no seu sangue começa a ganhar
coragem para se aproximar junto de D. Afonso de Menezes.
Levanta-se e dirige-se em direcção a ele. “Muito bom dia pela Graça de Deus.
Chamo-me Martim da Nóbrega e ouvi dizer que Vós sois o capitão mor da
carreira da Índia deste ano”. “Isso que vós dizeis é verdade, mas não vedes que
estou a jogar com os meus amigos? Quem sois vós para incomodar o meu
jogo?”.
“Peço desculpa a Vossa Senhoria se vos estou a importunar, espero então pelo
fim do jogo por forma a que possa falar com vossa senhoria”. Martim começou
a constatar que D. Afonso de Menezes não era pessoa de fácil trato pelo que
teria que ter paciência e ser bastante convincente por forma a que conseguisse
fazer parte da carreira deste ano. Mas Martim não era homem para se deixar ir
abaixo.
Não lhe restava outra forma que não esperar pelo fim do jogo e dizer o que o
trazia ali. Pede outro copo de vinho por forma a ludibriar a passagem do tempo
ficando a observar o capitão-mor a jogar com os seus amigos.
Rapaz, como ousava ele tratá-lo por um rapaz se ele já tinha os seus 18 anos
de idade e experiência de navegação? Engole a seco, sentindo um nó na
garganta que parece que lhe tolhe a respiração dirigindo-se então de novo ao
capitão-mor. “Como sei que é Vossa Senhoria quem está a tratar do processo
de recruta para a carreira da Índia, venho aqui apresentar-me a Vossa Exa.
Possuo experiência de pilotagem e sei ler as cartas náuticas e posicionar-me de
acordo com a leitura dos astros. Posso parecer um rapaz a Vossa Senhoria
mas posso-vos garantir que sou um homem de coragem e com vontade de
servir o Reino de Portugal pela Graça de Deus”.
Martim, apesar de ainda não ter conseguido o que pretende está contente pois
fora dado mais um passo em relação à concretização do seu sonho.
Olha para o Sol. Eram umas 2 da tarde. Martim pensa para ele “bolas, nunca
mais acaba o dia por forma a que venha um novo nascer do Sol por forma a
que me possa encontrar com o piloto da carreira da Índia”. Martim desce pelas
ruas de Lisboa em direcção a Belém. Sobe para o seu cavalo e todo contente
vai para casa.
Tal como as nuvens que no céu se formam e por obra do acaso se mutam nas
mais variadas formas, bastando uma rajada de vento para que se dispersem e
desapareçam o mesmo se passa com os sonhos. Martim consciente disso,
verifica que tem que ter calma e esperar que Francisco de Arriaga o avalie.
Mas sente-se confiante. Os tempos que passara a navegar na sua barca, a S.
Miguel, juntamente com a leitura de compêndios e conversas com marinheiros
experimentados proporcionaram-lhe a experiência suficiente para estar à altura
do desafio.
Coloca-se de joelhos junto ao altar e reza. Reza a Deus para que o ajude e lhe
dê forças para convencer Francisco de Arriaga do seu valor. Enquanto reza, o
seu espírito viaja. Viaja em direcção a Oriente, vendo o Sol a nascer na terra da
canela, gengibre e pimenta. De repente sente uma mão sobre o seu ombro. Era
um padre que lhe estava a colocar a mão sobre o ombro. “Meu filho, acorda.
Estás na casa do Senhor, isto não é local para dormir”. “Perdoe-me padre, mas
eu não estava a dormir. Estava a rezar e devo ter-me distraído com o tempo”.
Levanta-se. Quase nem sente os seus joelhos de tanto tempo ter estado
dobrado. Mas sente uma sensação de paz no seu corpo e confiança nas suas
capacidades.
Sem saber como , sente que tinha acabado de estar em terras de Oriente. Sai
da igreja, monta o seu cavalo e segue em direcção à taberna por forma a
encontrar-se com Francisco de Arriaga.
Dirige-se ao piloto. “Bons dias pela Graça do Senhor. Sois Vós Francisco de
Arriaga?”, “Sim, sou eu. E quem me pergunta?”- responde Francisco de
Arriaga. “Sou Martim da Nóbrega, filho de Afonso da Nóbrega mercador. Venho
aqui por indicação de D. Afonso de Menezes que me pediu para falar convosco.
Tenho experiência de navegação e quero voluntariar-me para servir o Reino na
carreira da Índia”.
“ Se D. Afonso de Menezes vos enviou ter comigo é porque deve querer que eu
avalie as tuas capacidades.
Pois bem, se souberes responder a três perguntas que eu te vou colocar farás
parte da carreira da Índia. Aviso-te que o trabalho é bastante penoso e a
viagem perigosa, demorada tendo que se suportar inúmeros sacrifícios,
atribulações e até mesmo fome. Existe uma vaga para co-piloto, portanto se
fores recrutado será para essa posição.
Eu já conto com três viagens na carreira da Índia como piloto. Depois desta
reformar-me-ei desta vida de piloto das Índias e vou passar a viver aqui por
Portugal uma vida de paz sem grandes atribulações.
Mas vamos então às perguntas. Podes pensar bem antes de dar uma resposta,
mas basta falhar uma para não seres escolhido. Primeira pergunta: Como
consegue um piloto orientar-se no mar alto sem conseguir ver a costa?
Segunda pergunta: O céu é igual em toda a parte? Terceira pergunta: Como
consegue um barco navegar quando o vento está a menos de 8 quartas da
proa?”
Martim ao escutar cada uma das perguntas começa a pensar. Pensa saber as
respostas às perguntas do piloto mas sente o peso da responsabilidade ao
responder. Basta errar uma para não ser escolhido, pelo que tem que ter calma
e pensar antes de responder. Respira fundo e responde à primeira pergunta
colocada. “Um bom marinheiro não precisa de ver a costa para se orientar.
Para determinar a posição de um barco basta determinar a latitude e longitude
do mesmo. Para determinar a latitude podemos recorrer à altura da estrela
Polar em relação à linha do horizonte. O que é válido apenas para o hemisfério
norte pois no hemisfério sul a estrela Polar não é visível. Com isto respondo à
segunda pergunta. Voltando de novo à primeira. Para medir a latitude
recorremos ao astrolábio que mede a altura do sol aquando do seu zénite.
Como o Sol não é uma esfera fixa, recorre-se ao auxílio dos almanaques
solares para determinar com precisão a latitude. Na determinação da longitude
recorremos à medição da posição da lua face às estrelas. Para a determinação
exacta da mesma recorre-se também ao auxílio de almanaques mas lunares.
Quanto à última pergunta, a resposta é navegar à bolina. Para isso, temos que
colocar a vela a navegar contra o vento a cerca de 5 quartas a contar da proa.”
“Muito bem, estou a ver que sabes alguns dos segredos do mar. Podes
considerar-te a partir deste momento o meu sota-piloto. Passa amanhã pela
capitania para tratarmos da inscrição na carreira da Índia. Em Abril partiremos
rumo a Oriente, rumo a Goa”.
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No dia seguinte, Martim dirige-se à capitania e vai ter com Francisco de Arriaga.
Este dá-lhe uns papéis para assinar, tornando-se oficialmente seu sota-piloto.
Mais um passo tinha sido dado a caminho do Oriente.
Chegado a casa, Martim conta o passado a sua mãe, Inês da Nóbrega. Diz-lhe
que é sota-piloto da carreira da Índia. Em Abril parte rumo a Goa.
Inês da Nóbrega ao ouvir as palavras de seu filho entra em choque. “Meu filho,
meu filho…. O que me dizes agora parte o meu coração. Não vás, não me
abandones a mim e ao teu pai. O que ele dirá quando souber disto?”.
“Mãe, a minha decisão já está tomada. Tenho um sonho e quero cumpri-lo. Não
posso virar as costas ao meu destino.”
“Pai, sou um homem. Sei o que quero para a minha vida. Eu é que decido o
que devo ou não fazer. Eu é que sei o que é ou não melhor para mim e para a
minha vida. Nasci para viajar, para conhecer o mundo. Estou apenas a seguir
os meus sonhos.”
“Pois bem, se achas que és tu quem manda na tua vida sem querer ouvir o que
o seu pai e mãe têm para dizer fica a saber que a partir deste momento não
tenho filho. Nunca fui pai na vida e a tua mãe nunca foi mãe. Ela está proibida a
partir deste momento de falar contigo e em pronunciar o teu nome nesta casa.
Deserdo-te. Não te quero ver mais à minha frente. Sai da minha vista! Não
tenho filho!”.
“Pois bem pai, se é assim que queres assim será. Não me resta outra
alternativa que não sair. Vou seguir o meu caminho. Só tenho pena de minha
mãe que tanto gosto.”
Afonso, apesar de ter dito estas palavras dura para com Martim, sente o seu
coração a arder em ferida aberta como se o mesmo estivesse envolvido em
silvas.
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Não podia dar parte de fraco. Sim, Afonso da Nóbrega, não podia deixar que
seu filho fizesse o que quisesse sem ele ser tido nem achado. Tinha o seu
orgulho a manter e o seu orgulho é que fazia com que se conseguisse levantar
todos os dias e seguir a vida.
Nisto, Martim, pega nas suas coisas e abandona sua casa. Quando se
aproxima de sua mãe para a abraçar, vê seu pai pegar nos braços dela e
arrastá-la para os seus aposentos.
Apenas consegue ouvir os gritos e choro de sua mãe que grita pelo seu nome.
Sente uma cólera a invadir o seu corpo, mas não podia voltar atrás. Tinha o seu
destino para cumprir, tinha que seguir o seu sonho.
Sem sítio para pernoitar, Martim passa a viver na sua barca a S. Miguel. O facto
de também viver numa embarcação era vista por ele como mais uma
preparação para os tempos futuros, tinha que se habituar a viver num barco por
forma a preparar-se devidamente para a carreira de sota-piloto da Índia.
Como meio de manter o seu sustento, nos meses anteriores à partida rumo à
Índia, Martim passa a usar a sua velha barca S. Miguel como meio de
transporte de mercadorias entre os portos.
Nesses momentos de libertação do espírito era mais fácil suportar a dor que
sentia pela falta de sua mãe Inês da Nóbrega de quem ele tanto gostava e que
seu pai, devido ao seu forte orgulho, lhe proibia de ver. “Mãe, minha querida
mãe, compreendei que a decisão que tomei foi por forma a cumprir o meu
sonho” – confidenciava Martim ao vento. “Se eu permanecesse no Reino e
seguisse as indicações de meu pai estaria a cortar as asas ao pássaro que é o
meu sonho. Desde menino me ensinaste que devemos ser nós a construir o
nosso próprio caminho, a percorrer o nosso rumo. Por isso mãe, obrigado por
me teres ajudado a cumprir o meu sonho”.
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Nisto uma lágrima começa a correr na face direita de Martim. Ele apressa-se a
limpá-la com um lenço que retira cuidadosamente do bolso e que lhe tinha sido
dado por sua mãe. Sente o perfume dela a invadir-lhe o nariz, acalmando desse
modo a sua alma. Sabe que apesar de não a puder ver ela está consigo a
ajudá-lo no cumprimento do seu sonho. Agora havia que seguir em frente e
chegar a Goa.
Abril de 1567, mês da partida da carreira da Índia. Este ano a carreira da Índia
seria constituída no total por 5 barcos. A S. João, uma nau com cerca de 250
toneis, três mastros e que levava cerca de 45 marinheiros, a S. Rafael outra
nau com cerca de 240 toneis, três mastros e 42 marinheiros, a S. Bernardo com
270 toneis, três mastros e 40 marinheiros e 2 caravelas a Santa Maria com 80
toneis e três mastros e 28 marinheiros e a Bugio com 70 toneis e três mastros
sendo tripulada por 20 marinheiros. As caravelas eram usadas como forma de
abastecimento das naus e meio de patrulha no mar alto, pois a sua capacidade
de manobra era maior.
Além dos marinheiros viaja um contingente de cerca de 750 soldados que iam
servir nas praças de Goa, Damão, Diu, Panjim, Malaca, Macau, sendo
colocados às ordens do vice-rei da Índia na altura D. Antão de Noronha.
Juntamente com os soldados viajavam ainda 25 cavalos que iriam servir o
império no Oriente, tal como um conjunto de missionários da companhia de
Jesus que vão propagar o catolicismo pelo Oriente.
“Martim bons olhos o vejam. Estava mesmo à sua espera”, diz Francisco de
Arriaga. “Estava a contar com a sua vinda porque quero mostrar-lhe o navio em
que vamos navegar. Siga-me que vamos subir a bordo da S. Bernardo. Ela vai
ser a nau principal da carreira, a nau almirante. Vai ser nela que nós vamos
com D. Afonso de Menezes. Esta nau já fez comigo duas vezes o percurso. É
uma bela nau, companheira de muitas viagens e léguas. É como se fosse a
minha mulher, tal é o modo que eu a conheço como ela a mim”.
“Para percorrer esta rota vamos levar entre 6 a 9 meses e pelo meio encontrar
muitas contrariedades. Mas não te preocupes que eu já sou um homem
experimentado, já fiz esta viagem bastantes vezes, o segredo para sobreviver
está em ser-se perseverante, se bem que em cada viagem que faço estão
sempre a aparecer novos perigos e aventuras novas. Mas estou certo que
chegaremos a bom porto, daqui a uns meses estaremos a pousar os nossos
pés em Goa”
distância e tempo que as separava dos seus amados. Caso o seu amor
aguentasse o tempo e a distância era sinal de que se mereciam. Dentro de ano
e meio tornariam a ver-se e caso tudo corresse bem com um bom pé de meia
para auxiliar o início de vida. Viúvas havia que tinham perdido seus maridos na
carreira da Índia e viam partir agora seus filhos na incerteza do seu regresso.
“Uma senhora deu-me uma moeda de ouro tendo em troca que te entregar
este lenço.”. “Martim reconhece de imediato aquele lenço feito com a mais pura
das sedas. Ao tocar-lhe sente um frio invadir o seu corpo subindo da espinha
até à sua cabeça. Era o lenço que sua mãe Inês costumava usar sobre a sua
cabeça quando se deslocava para rezar à igreja. Aperta-o junto ao coração e
guarda-o. Sua mãe não podia assistir à sua partida, proibida por seu pai, mas
tinha conseguido uma maneira de o acompanhar durante toda a viagem.
Agradece ao miúdo por lhe ter entregue o lenço e continua a subir a rampa de
acesso à nau, começando a subir até ao seu convés.
Belém começa a ficar para trás, os Jerónimos vêem-se cada vez mais ao fundo.
Martim olha em direcção a Este conseguindo vislumbrar a cidade de Lisboa.
Nunca se sentira tão feliz e triste ao ver a torre de Belém e os Jerónimos. Feliz
por estar a caminhar em direcção ao seu sonho, triste por se afastar de sua
mãe, embora saiba que ela o apoia e que estará sempre do seu lado.
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Ao dobrarem o cabo Espichel, Martim recorda-se das viagens que fazia a bordo
de sua barcaça a S. Miguel. Belos tempos esses em que viajava com os seus
amigos de Alfama que o acompanhavam nessas viagens. Nisto, observa a
serra da Arrábida a erguer-se em direcção ao Atlântico. Pergunta-se a si
mesmo quando e se algum dia a tornaria a ver.
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Tal como todas as cabinas das naus, não primava pelo conforto e higiene, mas
Martim não era um homem arreigado ao material pelo que não se importa das
agruras que tinha que sofrer. Esperava-o em troca uma enorme recompensa,
chegar ao Oriente.
A cama era uma esteira em madeira cheia com uns fardos de palha e por cima
tinha a cobri-la uma manta. Procura espalhar a palha por forma a que a cama
fique mais uniforme e finalmente deixa-se mergulhar no oceano de palha.
Ao dormitar o chamamento do Oriente não consegue invadir o seu pensamento,
tal como sua mãe Inês. Aperta o lenço uma vez mais junto ao seu coração e
começa então a dormir profundamente, embalado pelo ondular das ondas que
batiam sobre o casco da nau.
Nas noites seguintes, Martim fica constantemente a pensar nesse sonho, qual
seria o significado do mesmo e que voz era aquela que o chamava. Nunca a
tinha ouvido antes, mas ao ouvi-la tinha a sensação de calma, paz, serenidade.
Estava cada vez mais determinado em chegar a terras de Oriente.
A viagem rumo a Goa já vai com alguns dias. Sobre o imenso céu azul um
marinheiro avista um albatroz navegando sobre o céu infinito pairando no ar
com as suas grandes asas abertas. Depois de ter alertado o resto da tripulação
do avistamento um dos marinheiros diz: “Este pássaro é bom presságio. Deve
significar que deve haver terra por perto. Devemos estar perto de terra,
provavelmente próximos da Madeira. O contramestre ordena a um dos
contramestres para subir ao mastro principal por forma a se certificarem se
estão próximos ou não de terra firme.
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Primeiro domingo passado a bordo. Logo pela manhã, ainda o sol se começa a
espraiar sobre o horizonte começa a tocar o sino. É hora de rezar a missa pelo
que todos os homens param as actividades que estavam a realizar. Junto à
popa é improvisado um altar, indo os grumetes buscar ao porão as arcas onde
se guardavam os santos castiçais, crucifixo, bandeiras.
Mais dez dias se passaram. A viagem prossegue em mar alto. À medida que as
naus sulcavam as ondas do Atlântico ao ritmo dos ventos de norte, um imenso
azul os abraçava vindo das profundezas.
Martim, do alto da cabine repara numa mancha escura que se começa a juntar
no céu vinda de oriente e com forma de esfera. Chama Francisco de Arriaga
para lhe perguntar que fenómeno era aquele que nunca antes tinha avistado.
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“Santo Deus! Também nunca vi nada igual ao longo da minha vida de piloto”.
Um dos marinheiros mais experimentados, já na casa dos céus 40 começa
então a gritar “Deus nos acuda a todos! Jesus salvai-nos desta desgraça! Isto é
um enxame de gafanhotos que se prepara para nos atacar”.
Com muito custo e dificuldade os marinheiros pegam no que lhes vem à mão e
começam com pás, tábuas e mantas a matar os insectos que podem. O chão
começa a ser invadido por uma substância viscosa e fedorenta como resultado
dos animais esventrados. Apesar do afinco dos marinheiros a luta revela-se
inglória tal era o número de soldados do exército inimigo. Por cada gafanhoto
que conseguiam matar mais uma dúzia aparecia a substituir o gafanhoto
tombado.
Marinheiros em desespero e por força das picadas e mordidas dos insectos
acorriam até à popa do navio e atiravam-se ao mar esperando a sua salvação.
Esqueciam-se é que as águas sobre aquelas latitudes era infestada de tubarões
que sempre que sentiam a água agitar-se acorriam em cardume em direcção
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O ataque dos insectos perdura por mais cinco horas. Os homens ofegantes, já
sem forças para respirar começam então a ver a luz do sol abraçar o convés.
Tal como tinham chegado assim partiram. Sem aparente razão, os insectos
abandonam os navios, abrindo as asas e viajando rumo a outros alvos.
Como resultado do ataque algumas das cordas dos mastros estavam em mau
estado e outras tinham sido completamente devoradas não sendo desse modo
possível desfraldar todas as velas. Sobre o convés encontrava-se o resultado
do encontro. Uma pasta amarelo-esverdeada e um cheiro fétido que invadia
todos os navios. Além dos estragos materiais, algumas vidas também se tinham
perdido pois alguns marinheiros menos precavidos resolveram saltar do convés
esperando encontrar a salvação nas águas, tendo no entanto caminhado ao
encontro do cardume de tubarões que povoavam aquelas águas tendo
encontrado desse modo a sua morte.
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abstraírem de todos os perigos passados e que ainda estavam para vir. Mais
uma etapa da viagem estava concluída.
“De acordo com a carta marítima devemos estar a cerca de umas 90 milhas de
distância de Santiago. Dentro de uns 3 dias devemos lá chegar e aí poderemos
efectuar reparações e reabastecimento”. “Ao menos temos essas boas novas.
Obrigado pela informação. Nem tudo está perdido. Rumo então a Santiago.”
Martim, deitado sobre a sua cama pergunta-se a si mesmo que mais aventuras
e atribulações lhe estarão reservadas durante a viagem. Nunca tinha visto nada
semelhante àquele exército de gafanhotos que procurava atacar tudo o que
visse em frente. Realmente a viagem em direcção a Goa era tudo menos
monótona. Quem diria que uns insectos que isoladamente parecem frágeis e
inofensivos em aglomerado se comportam como um gigante, quase invencível.
pensem que por se encontrarem em terra podem fazer o que quiserem. Só têm
licença de abandonar o barco quando sol nasce e têm que voltar antes que o
sol se ponha. Quem não cumprir as minhas ordens será severamente
castigado”.
A tasca situada junto ao porto começa então a ser invadida pelos marinheiros
recém-chegados. O dono da mesma era Manuel da Silva, um português
originário de Beja que tinha abandonado a sua terra em direcção a terras de
Brasil, mas como tinha adoecido a bordo durante a viagem, viu-se obrigado a
ficar retido na Ribeira Grande. Quando voltou a ter a oportunidade de rumar em
direcção ao Brasil preferiu permanecer por aquelas paragens pois tinha aberto
o seu próprio negócio e a vida não lhe estava a correr mal.
Isto passara-se há 15 anos atrás. Actualmente vivia com uma negra originária
da Guiné Bissau que ele tomara por companheira e tinha já tido quatro
mestiços. Martim dirige-se ao taberneiro. “Ora viva, pode dizer-me qual é a
especialidade aqui na sua taberna? Já há três semanas que eu e os meus
companheiros andamos pelo mar e queremos ver se conseguimos recuperar o
paladar e o apetite”.
“Pois bem, tenho aqui uma especialidade para vós que julgo que nunca devem
ter provado. Moreia frita. Com um pouco de piri-piri e acompanhada de grogue
feito aqui em Santiago resultado da destilação da melhor cana de açúcar penso
que vocês vão passar uma tarde bem alegre”.
“Assim seja. Venha daí essa moreia e o grogue”.
“Cá este grogue é mesmo poderoso”. Diz Martim para Francisco de Arriaga.
“Sim, isto é bom, e além disso impa o corpo. Deve matar todos os males que
temos por aqui dentro. Até um morto alevanta. Vamos lá ver que tal é a
moreia”.
Uns minutos depois, e depois de já terem bebido alguns copos de grogue chega
finalmente a moreia frita. Vinha numas travessas de barro e tinha uma
consistência mole ao trincar-se.
Ao trincar-se a sua carne, a mesma procurava escapar-se dos dentes, mas o
seu sabor era agradável, especialmente com o piri-piri que a acompanhava.
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Ao longo da subida, Martim repara que existe uma gradual transição de cores.
O castanho e o ocre deixam de predominar na paisagem em troca com o verde.
Pequenas maçarocas de milho, cheias de um profundo verde, figueiras
verdejante, amendoeiras carregadas de amêndoas ainda em desenvolvimento,
mangueiras, começam a invadir a paisagem.
Ao olhar para baixo, para o fundo da ilha repara que só mesmo ao fundo é que
se consegue avistar a Ribeira Grande com a sua ribeira e enseada a abraçarem
o mar. Junto à mesma consegue observar os barcos acostados que os tinham
trazido até àquela ilha e os levariam rumo a Goa, rumo a terras do Oriente.
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Já com sede dirige-se a um poço onde encontra um negro a tirar água para
regar os campos. “Bons dias com a graça do Senhor. Posso servir-me da
água? Vou em direcção do Pico da Antónia e está a dar-me a sede”.
“Se vossa senhoria tem sede sirva-se à vontade. A água é um daqueles bens
que não se podem negar a ninguém. Vossa senhoria diz que vai até ao Pico da
Antónia. Pois bem, prepare-se porque é capaz de apanhar chuva lá por cima.
Além disso vá bem agasalhado por lá faz muito frio. Sabe, é que como a
montanha toca nas nuvens, há muita humidade e vento”.
“Muito obrigado pela água e pelo conselho. Está mesmo fresquinha e era o que
me estava a fazer falta para encher o corpo de força e energia.”
Em seu redor acerca-o a vegetação luxuriante que por ali cresce. Vê com
atenção as dedaleiras em flor que com o seu odor adocicado chamam as
abelhas que por ali se encontram .
Naquele instante, Martim sente-se um privilegiado por ter a oportunidade de
partilhar aquele momento com as plantas e abelhas. Aquele local era mesmo
especial. O verde, as flores, as abelhas, o vento, as nuvens tudo o fascinava.
Senta-se no mar verde e começa a petiscar do farnel que trazia consigo. Uns
figos secos e um pedaço de pão acompanhados com grogue era o que trazia
consigo. Tinha comprado o farnel a Manuel da Silva o dono da tasca na Ribeira
Grande que também lhe tinha emprestado o jumento para aceder até ao topo.
Depois de ter dormido durante algum tempo, Martim volta a levantar-se. Eram
cerca de umas duas horas da tarde, pelo que tinha que começar a descer em
direcção à Ribeira Grande por forma a chegar antes do pôr do sol.
Antes de ter chegado à ilha de Santiago, Martim nunca pensara que Cabo
Verde fosse uma terra tão fascinante como aquela que estava a ver, respirar e
sentir. Ao ver que o momento da partida estava próxima começa já a sentir
saudades da Ribeira Grande, do grogue, do Pico da Antónia, mas sente-se feliz
por ir a caminho de cumprir o seu sonho: chegar a Oriente e viajar por terras de
Sol nascente, onde se respirava canela, bebia-se o gengibre e sentia-se a
pimenta.
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Martim, junto à carta piloto volta uma vez mais a verificar as coordenadas que
tinha tirado ao medir a altitude do Sol no zénite.
À medida que se iam deslocando em direcção a Sul, o Sol estava cada vez
mais alto face à linha do horizonte. Isto era porque se estavam a aproximar
cada vez mais do Equador, linha imaginária que separa a Terra em duas
metades iguais. Uma vez verificadas as medições na carta marinha, Martim
apressa-se a dar indicações ao homem que se encontra no leme.
Este era o momento mais prolongado da viagem. Iriam ter que viajar durante
cerca de quatro meses sem pisar terra contando apenas com os víveres a
bordo.
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Como era comum existia uma fila bem grande para os fogões, pois tentavam
todos cozinhar na mesma altura. Com a impaciência da espera um dos
marinheiros desentendeu-se com um dos grumetes que estava à sua frente,
pois queria passar-lhe à frente. “Desde quando a canalha tem prioridade sobre
os mais velhos? Sai mas é da minha frente e troca de lugar comigo.”
“Lá porque você é mais velho do que eu não quer dizer que me pode passar à
frente Não é mais do que eu. Tem que esperar tal como os outros. Eu também
estou aqui à espera há bastante tempo”, responde o grumete. O marinheiro
toma a resposta como uma afronta, pega na navalha que tem em seu bolso e
espeta-a na barriga do grumete.
Nisto o marinheiro que o tinha morto falou. “Fui eu quem o matou. Ele insultou-
me e tive que defender a minha honra”. “Mas que afronta é que fez o grumete
para ser esfaqueado? Certamente teve que ser algo bem forte para o sucedido.
Conte-me o que se passou e diz a verdade pois tenho aqui o resto da tripulação
que viu tudo o que se passou. Eu sou a tua única defesa”.
“Ele estava à minha frente e não quis trocar de lugar comigo na fila para o
fogão. Quando lhe fiz o pedido respondeu-me de forma deseducada, logo tive
que defender a minha honra.”
“Mas você não vê que era um miúdo? Um miúdo indefeso que estava a fazer a
sua primeira viagem? O que é que eu direi à sua mãe? Já pensou nisso? Vou
contar o sucedido ao capitão mor D. Afonso de Menezes e ele decidirá o que
fazer, ele é que aplicará a justiça”.
você tem que ter mão nos seus homens. Isto não pode acontecer no meu
navio. Precisamos de uma tripulação coesa por forma a podermos vencer todas
as contrariedades da viagem.
Para o assassino do grumete, já que ele confessou já tenho a pena a decretar.
Irá levar 200 vergastadas, será colocado a ferros até chegarmos a Goa e viverá
com meia ração. Assim que chegar a Goa entregá-lo-ei para ser julgado.”
Cada vez que as mesmas tocavam nas costas do condenado, a sua cara dava
espasmos de dor. Tal era o sofrimento que o marinheiro ao fim de umas 20
vergastadas perdeu a voz não conseguindo mais gritar.
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“Duas mortes estúpidas que não tinham razão para o ser”, diz Francisco de
Arriaga a Martim. “Os homens ao fim de algum tempo no mar cometem
loucuras que não cometeriam em Terra. Os nervos começam a aparecer e sem
explicação dão-se estas coisas”. Martim ouve as suas palavras mas escuta-as
sem lhes prestar atenção. Nunca tinha visto um assassinato diante dos seus
olhos e sentia-se horrorizado ao ver o que o homem era capaz de fazer em
momentos de loucura. Sentia-se extremamente enjoado depois de ter visto o
que acabara de ver. Acorre para o convés, debruça-se sobre o navio e começa
a vomitar.
Mais duas semanas se passaram. Sem vento que auxilie a locomoção dos
navios encontram-se os mesmos parados no meio do oceano.
“Porque estamos parados há tanto tempo Jorge de Sá?”, pergunta Martim ao
mestre.
“Não há vento. Sem ele não nos podemos deslocar. Não se sabe o tempo que
poderemos por aqui ficar. Serão horas, semanas, meses, quem sabe? O certo
é que se ficarmos muito tempo estaremos condenados à morte pois faltar-nos-
ão os víveres e água para sobrevivermos”. Martim escuta as palavras do velho
mestre apreensivo. Naquele momento tem consciência das dificuldades da
viagem. Quase tudo dependia de factores sobre os quais não tinha poder de
influência ou decisão.
Mais dois dias e nem sinal da mais leve brisa. Os navios continuam parados
sem se movimentar como rochas com as raízes numa montanha. O capelão da
S. Rafael decide celebrar uma missa ao Senhor. Sem soluções para o problema
que enfrentavam havia que recorrer ao divino. Todos os homens juntam-se a
ele e começam a rezar ajoelhados em direcção para a cruz.
Com toda a força e fé que lhes inunda a alma pedem piedosamente a presença
da mais leve brisa de vento.
Além dos jogos de azar havia os que tocavam para se entreterem a si e aos
outros. Uns tocavam flauta, pandeireta, tambor e em conjunto dançavam,
procurando desse modo esquecer-se das agruras e preocupações da viagem
nem que fosse unicamente por uns curtos instantes.
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Com o calor cada vez mais intenso começa a derreter-se em banha o toucinho,
os figos secos em melaço e a serem invadidos por colónias de larvas.
Acompanhados destes problemas a população de baratas começava a
aumentar. O número chega a atingir tais dimensões que mesmo de dia elas
começam a passear-se sobre o convés sem medo dos homens de tão elevado
que era o seu número.
Enquanto Martim se encontrava a ler a carta náutica, Martim observa umas
patas a passear pela mesma. Observa com maior atenção e visualiza uma
barata a caminhar na maior das despreocupações.
Sem demora pega na barata e esmaga-a com as suas mãos. Fica com as mãos
cheias de suas entranhas amareladas. Um cheiro fétido começa a invadir a
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cabine resultante do acto por si cometido. “Que cheiro horrível esse bicho
liberta”, diz Francisco de Arriaga. “Não chega comer das nossas rações e ainda
libertar esses odores”. “Realmente este bicho só pode ser obra do diabo. Come
tudo o que encontra e possui um odor bastante forte”, responde Martim. “Vou
apanhar um balde e colher água do mar para me lavar, pois já não aguento
este cheiro”.
Jorge de Sá ao ver da gravidade da situação, diz-lhe “Tu ouve lá. Não contes
isto a mais ninguém porque não quero que o pânico se comece a espalhar pelo
navio. Temos que começar a racionar a água e esperar que chova. Só um
milagre nos salvará”.
“Isto é a ira de Deus que por nós se abate”, dizia o capelão. “Pelo facto de
sermos pecadores, Deus dá-nos estas tribulações. Temos que rezar, rezar e
pedir para que nos salve”.
O físico a bordo ter acesso aos meios necessários para procurar curar os
homens recorre à única solução que tinha. Com uma navalha afiada golpeava
os homens nos braços deixando o sangue escorrer para uma bacia, sendo
depois atirado ao mar. Pensava-se que o mal que padeciam estava no sangue
e este ao sair levaria com ele todos os males apesar de fazer com que os
homens ficassem ainda mais debilitados.
Outro tratamento utilizado era colocar umas ventosas no corpo. Eram feitas de
vidro e aquecidas sobre o corpo o que causava um efeito de vácuo. Ao fim de
alguns minutos o sangue ficava junto à pele que adquiria uma tonalidade cada
vez mais avermelhada, fazendo com que as bolhas rebentassem e libertassem
o pus. Em seguida as feridas eram lavadas com água do mar por forma a que o
sal queimasse as feridas.
Martim aproveitava as noites para olhar para o céu. Já não tinha a Estrela Polar
como companheira das noites, mas tinha a possibilidade de vislumbrar a
constelações e estrelas que nunca antes tinha visto, apenas lido sobre as
mesmas. Martim ao vislumbrar a abóbada celeste depara-se quão ínfima é a
importância do homem tal o número de estrelas que habitam o universo. Fica
por momentos a observar a constelação do Cruzeiro do Sul.
Ao contrário da Estrela Polar, esta não se situava sobre o pólo geográfico. Para
determinar com ela o Sul, era necessário traçar uma linha imaginária entre a
Grã-cruz e a Acruz. Contava-se cerca de 5 vezes essa distância. Uma vez
chegados a esse ponto, traçava-se uma perpendicular em relação ao
firmamento do horizonte, encontrando-se então a direcção a Sul.
Martim nunca tinha visto animais tão grandes na vida. Já tinha ouvido falar em
baleias mas agora que podia ver com os seus próprios olhos fica extasiado ao
observar o tamanho das mesmas. Como era possível haver animais tão
gigantescos do tamanho de navios. Estas ao observarem que os barcos se
aproximam começam a brincar, passando ao lado dos mesmos e libertando os
repuxos que de repente inundavam os barcos de partículas de água. Era como
se uma pequena nuvem se levantasse e libertasse as suas águas sobre os
barcos.
Alguns como solução de recurso passam a beber vinho fervido por forma a que
saia o álcool pois o capitão mor não autorizava beberem nas horas de serviço,
caso contrário andariam todos bêbados e o navio tornar-se-ia ingovernável.
Já não teriam que beber água impregnada de sabores fétidos que os tornava
mais doentes a cada trago que bebiam.
Ao fim de umas três semanas de viagem em alto mar começa a avistar-se terra.
Francisco de Arriaga procede à medição da latitude, consulta as cartas náuticas
e constata que se encontravam mesmo próximos do Cabo.
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“Homens, recolham a vela principal, subam aos mastros sem medo que não há
tempo para pensar. Se não agirmos com prontidão acabaremos as nossas
vidas nestas águas malditas”, grita o mestre Jorge de Sá para os marinheiros.
Sobre o porão, correm pipas acabadas de soltar com a violência dos embates.
Água e vinho começam a jorrar sobre o porão.
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Martim desata a chorar ao ver o que se passa diante dos seus olhos. Que mal
tinham feito estes homens para merecerem triste fim? Porque é que isso
aconteceu a eles e não a ele? O que é que ele era mais que os outros?
Homens batem com a cabeça no tecto, nas portas, nas paredes cada vez que o
navio desce uma onda. Cada qual tenta agarrar-se com todas as forças para se
manter equilibrado mas a tarefa era quase impossível tal era a violência de
cada embate.
Martim, auxilia Francisco de Arriaga a atar cordas ao leme. “Temos que o atar
para o manter direito, senão é o nosso fim. Força, agarra bem a corda do teu
lado”, grita Francisco.
Uma onda gigante com cerca de vinte metros vem em direcção à S. Rafael, o
navio começa a subir a mesma com toda a velocidade. Ao descer em direcção
ao oceano embate com violência. Uma das pipas no porão que se encontrava
solta embate contra o casco e abre uma fissura no mesmo. Começa a jorrar
água para dentro do navio.
Jorge de Sá com a ajuda da experiência e dos seus nervos de ferro grita para
os seus homens. “Calma que nada está perdido. Só temos uma pequena fuga
de água, se a conseguirmos tapar salvamos o navio, por isso não fiquem
parados. Comecem a pegar numas tábuas, pregos e panos de calafetagem que
com a ajuda de Deus vamos conseguir tapar a fuga”.
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A água continua a entrar pelo barco, começando a dar pelo joelho dos
marinheiros. Jorge de Sá não se cansa de gritar para os mesmos. “Vá
depressa, quero isso tapado, peguem em baldes e comecem a mandar a água
lá para fora. Vamos depressa que se não se mexerem morrem é pela minha
espada”.
Com a ajuda das tábuas, pregos e panos a água no porão começa a deixar de
entrar ficando o navio de novo estanque. Jorge de Sá suspira de alívio e vê na
cara de seus homens um sinal de agradecimento. Não fossem os seus nervos
de ferro e estariam certamente neste momento a caminho de outro mundo que
não Goa.
Jorge de Sá procura esconder a sua alegria. Havia que manter os seus homens
em linha e não podia dar confiança. Começa a gritar para os homens: “Agora
que a fuga está vencida não é tempo de festas e descanso. Temos que tirar
esta água toda daqui para fora, não há tempo a perder. Vá continuem a levar os
baldes lá para cima”.
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Martim, sente uma enorme dor no seu coração. Quão fútil e frágil era a vida.
Nada mais era que uma vela que podia perdurar até ao fim da cera, ou vir uma
aragem que apagasse a sua chama.
A história das velas invade de novo o seu pensamento. Nem todas as velas são
iguais. Há-as perfumadas, há-as de várias cores e as que têm diferentes fins e
utilizações. Umas criadas para iluminar as casas, outras para servirem de
elemento de decoração, outras para representarem o espírito.
O seu destino era viajar e conhecer o mundo, não seria feliz vivendo em Lisboa
junto de seus pais e a fazer o que não gosta. Ele era uma vela viajante e como
tal tinha que cumprir a sua função e caminho.
Três dias se passaram e os navios, agora quatro, já que a caravela Santa Maria
se tinha perdido, resolvem parar para pescar. Os homens lançam os batéis à
água e começam a lançar as redes. Martim estava eufórico pelo facto de ser a
primeira vez que presenciava uma pescaria no Índico. Seriam os peixes
semelhantes ao do Atlântico? Caso existissem espécies comuns nos dois
oceanos será que o seu sabor era semelhante ou o facto de habitarem águas
diferentes conferia-lhes outro sabor?
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enchiam o convés de tinta escura tentando ocultar-se das mãos que iam em
seu encontro, pargos, garoupas de cor avermelhada e com pintas azuladas.
Estamos perto do meio dia solar, momento em que o sol se aproxima do seu
zénite. Martim volta a ler no astrolábio as coordenadas que lhe permitem
calcular a latitude. Com recurso à carta piloto calcula o ponto onde se
encontram e dá conta do mesmo a Francisco de Arriaga. “Encontramo-nos a
cerca de 260 milhas da ilha de Moçambique de acordo com as últimas leituras
no astrolábio”, informa Martim.
“Vossa Senhoria, tenho uma informação para vos dar. De acordo com as
últimas leituras na carta piloto, encontramo-nos a cerca de 260 milhas da ilha
de Moçambique.” “Obrigado pela informação Francisco de Arriaga. Acabei de
ser informado há pouco do estado dos navios. Temos alguns mastros partido,
uns ligeiros rombos nos cascos, e outros danos. Desse modo acho que temos
que atracar no porto da ilha de Moçambique para proceder aí ao
reabastecimento e todas as reparações necessárias.”
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8. A Ilha de Moçambique
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Martim sente uma frustração pelo facto de não saber falar árabe, não podendo
por isso entender o que os homens por aí falavam. O pouco que conseguia
perceber das conversas devia-o a um dos membros da tripulação que falava
árabe e por vezes servia de tradutor contando a Martim e ao resto dos seus
companheiros aquilo que os outros estavam a falar.
“Como gostaria de poder trocar ideias, histórias com aquelas gentes, mas
infelizmente não nos entendemos na mesma língua”, pensava Martim para
consigo.
Tinha de se contentar em beber a bebida feita de chá e hortelã que nunca antes
tinha bebido. Adorava passar as tardes à sombra a bebericar o chá e ouvir os
anciãos contarem as estórias se bem que não entendia muito daquilo que
diziam, mas os seus gestos, expressões mantinham-no completamente
hipnotizado. Ao contrário do vinho, aguardente ou grogue que tinha bebido na
Ribeira Grande em Santiago, Cabo Verde, o chá não alterava o estado de alma
de quem o bebia mas apesar de não se ficar eufórico com a sua bebida ficava-
se mais relaxado e ao mesmo tempo desperto. As ideias desenrolavam-se a um
ritmo diferente daquele a que Martim estava habituado. Sentia-se mais desperto
e atento sobre o que se passava em seu redor.
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Ao contrário do dia, durante a noite o tempo era mais fresco e agradável. Uma
brisa corria sobre a S. Rafael, batendo a mesma sobre a face de Martim
enquanto este observa os céus. Deitado sobre o convés e abstraído de tudo o
que o rodeia nem dá conta de Francisco de Arriaga que se aproxima e o
chama. “Martim, Martim da Nóbrega!”, nada, Martim de tão concentrado se
encontrar nem se apercebe que o chamam.
“Não faz mal”, responde Francisco de Arriaga. “Eu também gosto muito de ficar
deitado a olhar para o céu e as estrelas. Se soubermos ouvi-las com atenção
conseguimos ouvir aquilo que elas nos dizem. Sabes, as estrelas são como
flores que habitam os jardins dando uma profusão de cores ao nosso céu. Os
conjuntos das mesmas formam os canteiros, ou as constelações, existindo uma
relação de vizinhança entre as mesmas. Ao conjunto dos canteiros temos o
céu, que é o jardim mais belo que eu já vi na minha vida. Aqui ao fundo no
horizonte à minha direita, estás a ver? Está o canteiro mais bonito do hemisfério
Sul, o cruzeiro do Sul, que nos indica o caminho para Sul. Como vês tudo na
vida tem um sentido. No hemisfério Norte temos a flor mais bela de todas as
flores sobre a qual as outras se curvam e rodam, a estrela Polar. Aqui a Sul,
não temos a companhia dela, mas temos um canteiro muito especial formado
por quatro estrelas que todas as noites nos indicam a direcção a Sul. Como sua
guardiã temos o canteiro de Centauro que todas as noites zela pela sua
segurança ”.
De facto Martim já nem se podia imaginar sem a companhia das estrelas. Elas
eram o seu guia durante a noite permitindo-lhe determinar com exactidão o
ponto geográfico onde se situava e as suas confidentes, pois era a elas a quem
Martim confiava as suas saudades, sonhos e anseios.
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No dia a seguir Martim volta à loja onde os homens se reuniam para conversar.
Com o apoio do membro da tripulação que falava árabe Martim volta à casa
onde se reuniam os homens da ilha para passarem o tempo a beber chá e
conversar. Um dos velhos que ali estava sentado a beber o chá, pergunta ao
tripulante da embarcação se estavam interessados em ouvir alguns ditados e
contos. O marinheiro pergunta a Martim, e este diz que sim, pois estavam ali
para aprender mais de suas estórias e cultura.
O velho todo contente começa então a contar alguns ditados árabes. “Existem
no mundo dois tipos de inveja”, refere o velho ancião, “um deles é bom e o
outro é mau. O bom é quando vemos alguém superior a nós e queremos ser
como ele, o mau é quando desejamos a sua queda”. Martim fica entusiasmado
ao ouvir essas palavras sábias. De facto, nunca tinha pensado que existissem
duas visões para a inveja. A mesma podia ser algo de positivo, levando-nos a
procurar o melhor de nós mesmos, a superar-nos ou destrutivo, a procurar o
mal dos outros apenas porque nós não somos capazes de nos encontrar no
mesmo nível.
Continuando com suas histórias, o ancião continua contando outra “Um rico
joalheiro certo dia decidiu viajar necessitando para isso de atravessar o deserto.
Infelizmente durante a travessia foi atacado por um bando de ladrões que lhe
retiraram toda a comida, água e jóias. Desesperado, o joalheiro vagueou,
vagueou pelo deserto sem comida nem bebida. Quase a desmaiar vislumbra no
horizonte um saco. Decide acorrer em direcção ao mesmo e fica com a ideia de
que o saco é um saco cheio de grãos de trigo. Respira de alívio pois assim
podia salvar-se. Ao abrir o saco volta a ficar em desespero. Em vez de o saco
conter trigo encontrava-se cheio de pérolas. Como podem ver a riqueza de um
homem é dependente do que o mesmo pode adquirir com o que tem. Neste
caso as pérolas não lhe valiam de nada pois não o alimentavam.”
Martim, enquanto vai bebendo mais um trago da sua bebida à base de chá e
hortelã delicia-se a ouvir as histórias do velho ancião. Nunca tinha pensado que
a cultura islâmica fosse tão rica e cheia de sabedoria. A ideia errada que
possuía mas dominante era de que o Islão era uma religião cheia de heresias
que existia apenas com o objectivo de destruir o cristianismo. Afinal, começava
a vislumbrar que era uma cultura cheia de riquezas e sabedoria e que havia
homens bons e maus tal como no cristianismo ou em outras religiões ou povos.
“Existia numa aldeia um homem sábio já com bastante idade a quem todos
procuravam aconselhar-se. Mas existia um grupo de homens que com inveja da
sabedoria do sábio resolvem colocar a sua sabedoria em cheque. Um deles
virou-se para o outro e disse: “Já sei o que fazer para desacreditar o sábio.
Vou apanhar num pássaro, segurá-lo no meio das mãos e perguntar ao sábio
se o mesmo está vivo ou morto. Se ele responder vivo, esmago-o e todos verão
que o sábio se enganou, se disser morto, soltarei o mesmo e todos verão que
ele mentiu.” . Resolvem apanhar um pássaro e dirigir-se ao sábio. “Boa tarde, o
pássaro que tenho nas mãos está vivo ou morto?”, pergunta um dos homens.
Nisto o sábio responde-lhe : “A resposta à sua pergunta encontra-se nas suas
mãos.” Querem ouvir mais alguns contos?“, Martim acena que sim, que conte
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“Um certo dia numa aldeia, um grupo de homens decidiu partir em busca de um
tesouro. Ao fim de algum tempo e depois de terem aberto alguns buracos
encontraram-no. Ao abrirem a caixa enterrada verificaram que estava cheia de
moedas de ouro, estando todos ricos. Estando com fome, pediram a um deles
para ir à aldeia buscar comida. Este pensou para si “Vou buscar a comida mas
aproveito e coloco veneno para os matar. Se eles morrerem fica tudo só para
mim”. Ao regressar da aldeia com a comida envenenada, os outros decidem
matá-lo pois assim era menos um por quem dividir as riquezas. No fim decidem
festejar comendo a comida que o outro trouxera. Como resultado morreram
envenenados ficando o tesouro sem dono, voltando de novo a perder-se nos
tempos”.
“Um fazendeiro tinha um empregado que por ser vesgo via tudo a dobrar. Certo
dia o patrão pediu-lhe para trazer uma garrafa de azeite que estava numa
prateleira. O empregado ao ver duas, voltou ao pé do patrão e disse-lhe : “Há lá
duas garrafas. Qual delas é que trago?”, o fazendeiro ao saber que ele era
vesgo e querendo brincar com a situação diz-lhe: “Parte uma e traz a outra.” O
empregado lá foi e na volta vem de mãos vazias. O patrão pergunta-lhe : “Mas
então não trazes a garrafa contigo?”, “Fiz como me mandou. Parti uma delas,
só que ao partir uma a outra desapareceu e não pude trazer nenhuma” “.
Como se estava a aproximar o fim do dia e tinham que se apresentar junto dos
navios, Martim e o marinheiro despedem-se do ancião e agradecem-lhe pela
tarde muito bem passada e pelas histórias que o mesmo lhes contara.
Martim, especialmente fica fascinado com o modo hábil com que o velho
contava as histórias e com a mensagem subjacente a cada uma delas. Afinal
existia uma universalidade ao nível do pensamento humano, pensava Martim
para consigo. Pois duas culturas diferentes tinham meios de pensar afinal
comuns e ditados com mensagens semelhantes. O Homem era um ser com
pensamentos similares independentemente do sítio onde nascera, fora criado,
credo adoptado, vivência tida, cultura adquirida.
secas foram também para os navios tal como peixe seco ao sol, especialmente
sardinhas que a população local pescava nos meses de desova da mesma
quando se aproximava da costa sendo posteriormente seca ao sol.
Ainda faltavam cerca de dois meses de viagem até que chegassem ao seu
destino final, Goa.
Iriam subir a costa Oriental de África passando pelo estreito entre África e
Madagáscar, Mombaça, Quiloa, passar junto ao mar Vermelho e em seguida
rumar em direcção a Goa.
Martim junto à cabine de pilotagem, volta-se para trás vendo cada vez mais
distante dos seus olhos a ilha de Moçambique, terra onde pudera constatar que
afinal os homens pensam de maneira semelhante uns dos outros. Não existiam
pelo que constatara culturas fortes e culturas fracas, mas tão apenas diferentes
modos de olhar para a mesma realidade. Ao contrário do que lhe faziam ver, o
homem era semelhante no modo de pensar em todos os lados, não existindo
superioridade de uns face aos outros.
Homens havia que com o vício do jogo apostavam a porção de vinho que
tinham, o que permitia aos que ganhavam as apostas beber um pouco mais
durante o resto da viagem e vender o excedente que tinham a bom preço
muitas das vezes aos próprios jogadores que perdiam.
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Martim aproveita os tempos livres que tem para se deitar sobre o convés e
sentir a brisa marítima bater na sua face. Sentia cada vez mais Goa perto de si,
a voz que o chamava encontrava-se cada vez mais forte devido à distância ser
cada vez menor.
Alguns iriam ficar por terras de Oriente, o caso dos militares que engrossavam
nos navios indo servir às ordens do Vice Rei da Índia, enquanto outros,
especialmente os membros da tripulação, aportariam em Goa ficando aí até ao
fim das monções mas assim que estas passassem voltariam a partir em
direcção a Portugal carregados de especiarias, sedas, porcelanas e pérolas
resultantes do comércio.
Certo dia, um dos homens que estava no topo do mastro principal a puxar as
cordas das velas avista o que lhe parecem ser umas embarcações ao fundo do
horizonte. Grita logo para o convés : “Embarcações à vista, embarcações à
vista em direcção a bombordo”.
presença certamente que nos tentarão afundar. O que é que vossa senhoria
recomenda? Não nos podemos esquecer que eles são o inimigo e que nos
encontramos em guerra com eles.”
“Nós somos quatro, e eles são três. Penso que eles ainda não nos avistaram
pois o sol está a nosso favor encandeando-os. Temos que aproveitar a
vantagem que temos face a ele e procurar afundar esses miseráveis que sujam
as águas que os nossos barcos percorrem. Dê ordem ao piloto para entrarmos
em perseguição e coloque a tripulação em estado de alerta. Quero ter os
canhões prontos a disparar e enxamear o céu de bombardas por forma a
conseguir livrar o oceano desses pérfidos infiéis.”
Por toda a S. Rafael existe uma agitação e frenesim geral. Martim, junto com
Francisco de Arriaga dirigem o barco por forma a que se aproximem face ao
inimigo aproveitando o facto de terem o sol nas suas costas o que lhes permite
aparecerem invisíveis.
Martim ao escutar estas palavras fica confuso. Como era possível o capelão
estar a dizer que esta luta era um desígnio divino e que a morte do inimigo era
uma graça ao Senhor? Pensa ele para consigo. As palavras que escutara em
Moçambique do velho ancião árabe fizeram-lhe ver que as coisas não eram
assim tão simples. Não era uma espécie de combate religioso contra a mentira
como os elementos da igreja faziam ver. Combatia-se sim não pela religião mas
pelo direito a comerciar nestas terras. A religião era uma desculpa que se
utilizava para inflamar o espírito de quem combatia e fazer com que não
houvesse arrependimento pelas mortes infligidas e sacrifícios tomados. O cerne
de tudo resumia-se a duas únicas coisas: poder e dinheiro. Sim, neste
momento Martim começa a ver as coisas de outra perspectiva.
Mas como estava do lado de Portugal, a servir o Reino tinha que lutar, apesar
de sentir que esta não era a melhor solução, mas que sozinho não podia rumar
contra a corrente, decide lutar para se defender, pois se o inimigo lhe colocasse
as mãos em cima também seria impiedoso não se preocupando como Martim
pensava ou não. Neste momento tinha que lutar, mesmo que contra a sua
natureza.
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por Carlos Carvalho
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“Bem sei que vossa senhoria quer destrui-los tanto como e cada um de nós, o
problema é que eles parecem ser mais rápidos do que nós, temos que
concentrar o nosso fogo sobre uma das embarcações e deixar as outras duas
fugir, senão de outro modo corremos o risco de a sorte nos abandonar. De noite
podemos vir a ser atacados sem nos apercebermos”.
Jorge de Sá, dá ordens aos homens para dispararem sobre o navio que já tinha
sido atingido anteriormente. Uma nova rajada de balas é cuspida dos canhões
que começam a enxamear de novo os céus de balas. Um cheiro a pólvora
inunda a S. Rafael. As balas começam a descer em direcção do barco inimigo.
As balas voltam a cair sobre a embarcação inimiga destruindo desta vez parte
da parte superior da proa. Enquanto isso as outras duas embarcações inimigas
afastam-se, procurando fugir enquanto podem do destino traçado para a outra
embarcação.
Martim fica bastante chocado ao ver o destino que estava reservado aos ainda
sobreviventes da embarcação. Porquê tanta crueldade pergunta para consigo.
Se eles se tinham rendido deviam ser feitos prisioneiros e entregues nalgum
forte durante o caminho e não tratados como mera mercadoria.
“Mas ao menos não lhes podíamos dar um pequeno bote e deixá-los ir? Ao
menos podiam vir a conseguir escapar com vida.”, responde Martim. “As coisas
não são assim tão simples. Se eles fugissem podiam contar que tínhamos
capturado Abd al-Ramaan e teríamos a frota inimiga atrás de nós. Infelizmente
a vida é como é e temos que a aceitar assim. São as agruras da guerra”.
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“Como você sabe, encontra-se numa posição complicada. Capturado não tem
qualquer tipo de autonomia ou liberdade, estando à minha mercê. Se quer um
conselho meu, colabore e responda a todas as perguntas que eu lhe efectuar
pois desse modo passará a ter o tratamento digno de um capitão”, diz-lhe D.
Afonso de Menezes.
“Eu não tenho nada a dizer. Vocês já sabem o que querem e se me quiserem
fazer a vontade acabem com a minha vida, pois já não estou cá neste mundo a
fazer nada e Alá será generoso para comigo”.
“Se não tem nada a dizer é o que nós vamos ver agora. Eu acho que você tem,
por isso não esconda nada do que lhe for perguntado. O que é que vocês
andavam a fazer por estas águas? Quais são os planos do Vizir e onde é que
anda o resto da frota?”
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“Já lhe disse que não tenho nada a dizer. Da minha boca não sairá nenhuma
informação adicional. A minha vida já não tem valor pois perdi o meu barco e a
minha tripulação foi massacrada selvaticamente por vós”, responde Abd al-
Ramaan.
“Pois bem, se não quer responder às minhas perguntas vai ficar preso ao
mastro do navio a apanhar o sol durante todo o dia não lhe sendo dado de
comer ou beber. Se gritar por ajuda nós daremos água e comida em troco das
respostas”.
Jorge de Sá, pega no prisioneiro e dá ordens a seus homens que lhe tirem as
roupas por cima da cintura e que o amarrem ao topo do mastro principal por
forma a que o sol lhe bata com toda a força. Dificilmente alguém suportaria
tamanha tortura sem desistir.
Abd al-Ramaan no momento em que é preso ao mastro grita e pede a Alá que
lhe tire a vida pois não quer trair os seus homens. À medida que o sol começa a
subir, Abd al-Ramaan começa a sentir a sua cabeça a aumentar de pressão. O
sangue começa a fazer pressão sobre os seus olhos, a sua boca começa a
secar e a pedir por água. A sua língua começa a ficar colada ao céu da boca
devido à sede e começa a sentir tonturas. Mas decide aguentar o sofrimento ao
máximo pois está determinado a que a morte dos seus homens não tenha sido
em vão. Nisto, um dos marinheiros apercebe-se que Abd al-Ramaan acabara
de desmaiar.
Jorge de Sá dá então ordens para que o soltem e lhe deitem água salgada em
cima do seu corpo. Com a reacção da água fria certamente acordaria.
Abd al-Ramaan ao sentir a água a bater-lhe acorda de repente e começa a
expelir a água que lhe entrara para dentro da boca. A pouca água salgada que
engolira ainda aumentara mais a sua sede.
Tenta colocar-se de pé mas começa a sentir falta de força nas suas pernas e a
ter tonturas. Cai de imediato sobre o convés. Jorge de Sá apercebendo-se que
certamente o prisioneiro não aguentaria muito mais tempo vivo se não o
ajudassem dirige-se a D. Afonso de Menezes. “O prisioneiro está praticamente
moribundo. Resistiu às privações do sol sem ter falado uma única palavra. Se
não o ajudarmos não creio que sobreviva. O que é que vossa senhoria pensa
fazer?”
“Eu quero a informação dele custe o que custar e se ele morrer aí é que não a
obtenho. Deiam-lhe água e comida por forma a que consiga sobreviver. Mas
mal recupere voltaremos a interrogá-lo”.
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Abd al-Ramaan volta a dizer que não tem nada a falar. D. Afonso de Menezes
dá ordem aos marinheiros para que o atirem borda fora. Com os pesos atados
ao seu corpo o corpo de Abd al-Ramaan começa a entrar nas profundezas do
Índico. Ao fim de cerca de um minuto voltam a içá-lo. Este ao vir à superfície
começa a respirar de modo compulsivo e ofegante.
D. Afonso de Menezes diz-lhe “Não tens nada a dizer?”, este responde que
não. “Pois bem voltem a mergulhá-lo de novo e desta vez deixem-no mais
tempo lá em baixo. Ao fim de uns dois minutos voltam a içá-lo. Abd al-Ramaan
começa a cuspir água de sua boca e a respirar ofegadamente. D. Afonso de
Menezes volta a repetir a questão e a levar com a mesma resposta negativa.
Abd al-Ramaan conta então a D. Afonso de Menezes que o Vizir tinha enviado
vários barcos em patrulha destas águas por forma a capturar e afundar todos
os barcos portugueses que encontrassem pelo caminho. Além disso, existiam
planos para enviar uma força para capturar Ormuz.
“Isso que me estás a dizer é de facto uma boa notícia. Isso significa que nos
encontramos a deslocar a uma boa velocidade. Espero que continuemos a
manter este ritmo até Ormuz.”
“Ora muito bom dia. Se vocês se encontram a jogar é porque não têm nada
para fazer, certo?”, pergunta-lhes Jorge de Sá. “Pois bem, o navio tem o convés
um pouco sujo, pelo que está a precisar de ser lavado. Peguem nuns baldes e
comecem a tirar água do mar e a esfregar o convés, senão qualquer dia isto
parece mais uma pocilga do que o convés de um navio.”
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Os homens olham para Jorge de Sá com cara de indignados, pois esta era a
sua hora de repouso, mas como ele era o mestre não tinham nada a fazer que
não obedecer, pois de outro modo corriam o risco de ele se queixar a D. Afonso
de Menezes e serem desse modo severamente castigados.
Ormuz? Não é frequente os barcos da Carreira pararem por aqui.”, diz o capitão
da fortaleza.
“Essas notícias que me está a dar são de facto preocupantes. É verdade que
ultimamente temos notado alguma actividade por parte dos barcos persas e
turcos, sendo preciso andar constantemente alerta e a bombardeá-los, mas não
tinha ideia de que eles planeavam um ataque em grande escala. Quando à
captura de Abd al-Ramaan você nem imagina o quanto lhe fico grato. Esse
capitão turco é bastante conhecido por estas paragens. Já conseguiu atacar e
afundar com sucesso bastantes barcos nossos, existindo até uma recompensa
pela sua captura, recompensa essa que será dada a vossa Exa. A captura
desse homem vai abalar o moral das forças turcas pelo que é motivo para
comemorar.”
Em seguida, é recebido pelo rei de Ormuz que faz toda a honra em os receber
depois de saber que traziam consigo Abd al-Ramaan que tinha sido
responsável pelo afundamento de inúmeros barcos por aquelas águas o que
fazia com que o comércio por aquelas paragens tivesse recrudescido o que
fazia com que os rendimentos do rei fossem mais baixos e se tornasse mais
complicado para o mesmo efectuar o pagamento da tença anual devida ao
reinado de Portugal.
O rei de Ormuz, recebe D. Afonso de Menezes numa sala ampla decorada com
as mais finas sedas, existindo um enorme contraste entre o vermelho e azul
das sedas e a cor branca das colunas e paredes do palácio. O rei encontrava-
se sentado numa cadeira de madeira tendo a decorar a mesma dois leões, um
de cada lado. D. Afonso de Menezes ajoelha-se em sinal de respeito dando-lhe
o rei sinal para se levantar.
“Vossa Senhoria nem sabe quão grande é a honra de ser vosso convidado. Irei
avisar o resto da tripulação e entregar-lhe-ei pessoalmente Abd al-Ramaan.”
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Em seguida dá ordem aos seus soldados para que entreguem Abd al-Ramaan.
O mesmo, é entregue algemado ao rei de Ormuz. Este ao ver Abd al-Ramaan
diante de si volta a elogiar uma vez mais a coragem de D. Afonso de Menezes
e agradece ao reino de Portugal pela captura do corsário.
D. Afonso de Menezes depois de ter ouvido as palavras do rei fica mais calmo.
Apesar de não compreender a atitude do rei, vê-se obrigado a aceitá-la, pois
agora a guarda de Abd al-Ramaan estava a cargo de Ormuz. Além disso vem-
lhe à memória um ditado que ouvira do seu pai quando jovem – a guerra faz-se
com guerreiros, os tratados com diplomatas. Havia que dar uma oportunidade
ao rei de Ormuz de obter um acordo que satisfizesse os interesses da coroa
Portuguesa.
O rei dá então ordem para que se sentem na mesa preparada para o jantar.
Junto ao rei de Ormuz senta-se D. Afonso de Menezes como convidado de
honra, estando a ladeá-lo os outros capitães das naus, tal como os ministros do
Vizir, o capitão Português da fortaleza de Ormuz, os pilotos e alguns membros
portugueses e locais do exército de Ormuz.
O rei de Ormuz dá então ordem aos criados para que comecem a servir o
jantar. De entrada presenteou os convivas com sumos feitos de frutas tropicais.
Aproveita para falar com D. Afonso de Menezes e com Abd al-Ramaan. Este
responde às suas perguntas e entra em diálogo com D. Afonso de Menezes.
“D. Afonso de Menezes, queira saber que todos os meus actos efectuados
foram feitos tendo em vista a defesa dos interesses do Vizir. Nada tenho contra
a sua pessoa, mas estamos de lados opostos nesta luta pelo controlo do
comércio com a Índia. Não veja isto como um confronto pessoal, mas como o
cumprimento do dever da minha pessoa face ao meu reino a quem jurei
fidelidade. Para vocês posso ser um bandido, um pirata, um assassino mas
apenas procuro defender aquilo para que vivo, a minha terra, o meu país.”
“Concordo com aquilo que você diz”, retorque Abd al-Ramaan. “Esta guerra de
santa não tem nada. Que guerra é esta que apelidam de santa que tantas vidas
já colheu a cada uma das partes. É uma guerra de interesses, de dinheiro. Mas
vocês portugueses têm que ver que o Vizir quer apenas garantir os direitos de
monopólio que já detém há séculos. Nós não vemos com bom agrado a vossa
chegada a estas paragens porque as nossas margens comerciais baixaram
desde a vossa vinda e o império tem sofrido muito à custa disso. Mas
compreendo também o vosso lado. Vocês descobriram uma nova rota de
comércio em direcção à Europa e querem ter o direito de usufruir da mesma.
Só que quando existe um conflito de interesses e as partes não se entendem,
surge o conflito e a guerra.”
“Como eu partilho das vossas palavras. Estou a ver que afinal pensamos de
forma idêntica”, responde D. Afonso de Menezes. “Só tenho pena de nos
encontrarmos no lado oposto da barricada. Ficai sabendo que se nos voltarmos
a encontrar no futuro no mar ou em terra terei que lutar contra você. Não será
de bom grado que o farei mas o facto de servir a coroa de Portugal leva-me a
defender os interesses do Reino. Bem sei que você fará o mesmo, o que me
enche de honra ter um opositor como Abd al-Ramaan”.
Depois de terem trocado este diálogo, (a que Martim assistiu entusiasmado por
ver que afinal quer Abd al-Ramaan, quer D. Afonso de Menezes eram homens
com coração e pensamento ), os dois homens trocam um abraço entre si,
estando o rei de Ormuz a observá-los. D. Afonso de Menezes volta uma vez
mais a elogiar o carácter de Abd al-Ramaan que conseguira aguentar a tortura
mais do que qualquer homem que alguma vez tinha visto e o facto de
partilharem pensamentos similares.
O rei de Ormuz observa o modo como afinal estes dois homens de lados
opostos se cumprimentam e falam. Quem diria que dois homens que se preciso
se matavam um ao outro caso tivessem oportunidade afinal partilhavam ideias,
pensamentos e atitudes. Pensa para consigo que caso se privilegiasse o
diálogo em vez de partir directamente para a agressão muitas das guerras e
atrocidades cometidas ao longo dos tempos seriam evitadas.
Ambos os homens com lágrimas nos olhos, ocultas por um passar dos mesmos
sobre as mangas, despedem-se e desejam que a guerra entre as duas coroas
acabe e desejam o melhor destino para cada um deles.
D. Afonso de Menezes diz a Abd al-Ramaan que espera que o mesmo seja
libertado e este retorque dizendo que espera que ele chegue a Goa sem
problemas de maior. Apesar da amizade que brotara entre estes dois
combatentes, existia acima de tudo o dever de servir os interesses das suas
coroas mesmo que tais interesses fossem meramente económicos e sem base
em valores racionais que não o mero lucro.
Sentiam-se como um pássaro que viveu toda a vida numa gaiola. Quando se
ecncontravam lá dentro sempre pensaram como seria a vida fora da gaiola,
mas quando viram a portinhola aberta decidem permanecer dentro da gaiola,
pois é um mundo que conhecem. Poderá haver quem chame falta de coragem
a esta atitude, mas os moldes da educação de ambos e o sentido de
cumprimento do dever levavam-nos a pensar desse modo, tolhendo os seus
impulsos.
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Jorge de Sá diz que com a duração da viagem que já ia longa havia homens
que se tinham deixado acomodar e que não estavam no melhor da forma física.
Propõe pois a D. Afonso de Menezes um treino diário que iriam efectuar
diariamente até que chegassem a Goa. Desse modo, os homens conseguiam
voltar a apurar a sua forma física e tornava-se também mais simples a
passagem do tempo a bordo dos navios.
Martim via o destino como uma corrente de um rio. Por muito que se tentasse
remar contra a corrente esta acabava sempre por vencer e a arrastar-nos em
direcção à foz. Se havia coisas que não se podia contrariar uma delas era o
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destino e Martim conseguia inalar pela primeira vez o ar das terras que tanto
sonhara.
Mais valia aproveitar enquanto se podia, diziam eles sussurrando entre si por
forma a que Jorge de Sá ou D. Afonso de Menezes não soubessem do que eles
falavam entre si. De outro modo arriscavam serem castigados por
desobediência, postos a ferros enquanto não chegassem a Goa e ai seriam
provavelmente julgados, condenados e executados na forca, tendo que sofrer
uma morte lenta por asfixia em que a circulação de sangue e respiração seriam
interrompidas e a pressão na cabeça aumentaria gradualmente, as órbitas dos
olhos efectuariam pressão para sair ate que finalmente viria o alivio final com a
morte.
Não, nenhum dos homens queria ter esse fim, por isso havia que aguentar os
exercícios infligidos por Jorge de Sá. Antes ser trespassado por uma espada ou
atingido por um tiro ou estilhaço de uma bala de canhão morrendo em honra do
que sofrer tremenda humilhação. Mas melhor que morrer em batalha sempre é
melhor morrer de velhice em suas casas junto dos seus, pensa cada um dos
homens. Ao mesmo tempo que pensam isto cada um deles sabe que nem
todos morrerão de velhice.
Muitos morrerão pelo Oriente, pois anteriores militares que serviram o reino por
ai ficaram no descanso final. Uns por doenças provocadas pelo clima quente e
húmido que se sentia por essas paragens, outros por manuseamento indevido
das armas, por morte causada por naufrágios, combates,... . Cada um olhava
para os companheiros a seu lado e perguntavam-se a si mesmos se os seus
companheiros sobreviveriam, se eles todos sobreviveriam ... . Era como se
tivessem acabado de abrir os olhos e começassem a ver as coisas de uma
forma mais realista. Será que o dinheiro que iam ganhar compensava o risco
que corriam? De que lhes valia o dinheiro ganho se não o podiam usufruir
depois da morte? Nisto os homens colectivamente como se um só corpo
fossem começam a ficar em pânico. Será este o nosso triste fim, a nossa paga
por termos aceite alistarmo-nos em troca de uns reis?
Seu pai, ao pressentir na hora da morte que a sua vontade não seria respeitada
mandou chamar os seus cinco filhos junto ao seu leito. Pegou num feixo de
lenha e pediu a cada um deles que o tentasse partir. Todos tentaram mas
nenhum foi capaz de conseguir quebrar o feixe. Nisto o rei pede a seus filhos -
"Tentem agora todos juntos a ver se o conseguem quebrar." Eles tentaram e
em conjunto conseguiram quebra-lo. Nisto o velho rei dirige-se para os seus
filhos: "Meus filhos, tal como sozinhos nenhum conseguiu quebrar o feixe de
lenha, também isoladamente nenhum conseguia governar o reino. Em conjunto
conseguem-no. Apesar de só um poder ser rei, espero que se entre ajudem uns
aos outros. Sozinhos não conseguem fazer nada, mas em conjunto são
invencíveis."
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Martim vira-se para Francisco de Sá : “Os dados que acabamos de ler na carta
estarão correctos? Será que estamos mesmo a cerca de 40 milhas de Goa?”,
“Sim”, responde Francisco de Sá, “a carta e os dados não mentem,
encontramo-nos mesmo próximos do nosso destino tão desejado e que tantos
sacrifícios e vidas colheu para o atingirmos. Como estás a fazer um bom
trabalho auxiliando-me nas tarefas de pilotagem, dou-te a honra de dares a boa
nova ao capitão-mor D. Afonso de Menezes. Encontramo-nos
aproximadamente a um dia do nosso destino. Amanhã ou depois de amanhã
aportaremos em Goa”
Martim sente o seu coração a palpitar. Sente o sangue a percorrer o seu corpo
com uma velocidade vertiginosa. Sente os pêlos dos seus braços a eriçar-se
numa apoteose de alegria. Tem dificuldade em respirar, tais são os sentimentos
que o invadem neste momento. Mas tem que ganhar forcas para dar a boa
nova ao capitão. Apressa-se a descer as escadas da cabine de pilotagem,
tendo cuidado para não escorregar nas mesmas e dirige-se em direcção à
cabine do capitão-mor. Bate à porta. “Quem é que entre e que diga o que o
traz”, diz D. Afonso de Menezes que era um homem de poucas cerimónias.
Martim ainda ofegado dirige-se ao capitão-mor. “Diz logo o que te traz aqui ao
pé de mim, Martim. Quem te vir parece que estás a deitar os bofes de fora,
rapaz, o que é que se passou para vires aqui tão apressado? Passou-se algo
de grave ou importante que eu não tenha tido conhecimento até agora?”
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“Rapaz, com uma notícia dessas tu mereces uma moeda de ouro.” Nisto D.
Afonso de Menezes mete a mão no bolso e atira uma moeda de ouro em
direcção a Martim que este apanha ainda no ar. “Já há muito tempo que não
tinha notícias tão boas. Isso realmente são boas novas. Vou dirigir-me à
tripulação mas antes disso quero falar com Jorge de Sá que é o meu braco-
direito e merece saber a notícia de antemão antes que o resto da tripulação.
Podes fazer-me o favor de o chamar?”
“Jorge de Sá, D. Afonso de Menezes pediu para que fosse ter com ele.” “Por
acaso o Martim sabe o que vossa senhoria pretende?”, pergunta Jorge de Sá a
Martim enquanto se encontra a dirigir exercícios com os militares a bordo. “Não
faço ideia daquilo que vossa senhoria lhe pretende falar ou pedir,” diz Martim
por forma a que D. Afonso de Menezes tenha a honra de ser o primeiro a dar-
lhe a boa nova, “mas sei que é algo de importante e urgente pois quando me
pediu para o chamar disse que era algo de urgente.”
“Pois bem, se D. Afonso de Menezes pretende falar comigo vou então ver o que
é que pretende. Provavelmente quer saber o estado de preparação das tropas,
deve ser isso. Homens, vou ter com D. Afonso de Menezes que me pretende
ver, mas peco-vos para que continuem a fazer os exercícios que estavam a
fazer, pois vocês têm que estar em forma para quando chegarem a Goa. Vocês
têm que ser o orgulho de todo o reino. Têm que mostrar ao vice-rei de que fibra
são feitos.”
Esperava que não fosse isso, pois estava a dar o seu melhor por forma a
manter as tropas com uma moral elevada e com um estado de prontidão
imediato para o combate caso fosse necessário. Além disso, tinha conseguido
ganhar o apoio dos homens quando pressentiu que os mesmos estavam
psicologicamente abatidos e cheios de pânico e medo de morrer ao serviço do
reino em terras longínquas. Bem, como não fazia mesmo ideia daquilo que D.
Afonso de Menezes pretendia decide acelerar o passo por forma a que chegue
a seu encontro o mais depressa possível.
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“Jorge de Sá, mandei chamá-lo porque tenho algo a dizer-lhe”, diz D. Afonso de
Menezes. “Sim vossa senhoria, diga o que me tem a dizer que eu estou aqui
para seguir as vossas ordens”. “Homem, calma que desta vez não lhe vou pedir
para cumprir uma ordem. Estou aqui porque quero dar-lhe uma notícia em
primeira mão. Acabei de saber mesmo há uns minutos atrás que estamos a
cerca de um dia de chegar a Goa. É verdade, finalmente a nossa viagem está
quase a terminar, e queria dar-lhe essa boa nova em primeira mão porque o
Jorge de Sá é o meu braço direito aqui a bordo, a minha pessoa de confiança.
Agora em seguida quero ir consigo ter junto de toda a tripulação para dar a boa
nova.”
“A notícia que eu acabei de vos dar penso que é uma boa nova para todos.
Ninguém mais do que eu esperava por este dia. Sei que todos fizeram inúmeros
sacrifícios durante a viagem e quero relembrar a perda da Santa Maria que foi
apanhada pelo cabo das tormentas. O momento que estamos a viver neste
momento é um momento de alegria e de reflexão. Alegria por nos encontrarmos
próximos de chegar a Goa o nosso objectivo e de reflexão por forma a que não
nos esqueçamos de todos os nossos companheiros que não conseguiram
chegar aonde chegámos. Temos que os trazer na nossa memória e não nos
podemos esquecer de agradecer todos os sacrifícios efectuados ao longo da
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viagem. Peco-vos também para que continuem a fazer as tarefas que estavam
a fazer com o mesmo afinco e determinação e que não se esqueçam de se
prepararem para a chegada a Goa.”
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Por volta do meio dia, um dos marinheiros que se encontrava a puxar uma das
velas nos mastros grita “Terra à vista! Terra à vista!” . Todo o barco pára
instantaneamente ao ouvir estas palavras ecoarem ao longo do casco do navio.
Martim procura verificar se é verdade aquilo que o marinheiro acabara de dizer
junto de D. Afonso de Menezes e de Jorge de Sá. Era verdade, lá ao fundo
conseguia avistar-se terra, terras de Goa ao fundo do horizonte.
“Pois sejam bem vindos a Goa em nome do vice-rei da Índia. Contávamos com
a vossa chegada mais dia menos dia. Podem seguir-nos em direcção ao porto
de Goa onde poderão aportar os vossos barcos.”
vez mais próxima. Além disso com o bater dos raios de sol que inundavam a
cidade, a vista era de facto maravilhosa. Martim sente-se enubriado com a
beleza da cidade que começa a avistar cada vez melhor diante dos seus olhos.
Finalmente conseguia visualizar diante dos seus olhos terras do Oriente, sentia
que se esticasse um pouco mais conseguia tocar na cidade de Goa que era
invadida pelos raios de sol que batiam sobre a mesma e se espelhavam ao
longo das águas.
Estavam cada vez mais próximos da ilha de Goa, podendo vislumbrar a grande
baía que abarcava a mesma. Ao longo do caminho viam o conjunto de barcos
que vinham de Goa e em direcção à mesma, levando consigo especiarias e
pedras preciosas.
Enquanto isso, Martim encontra-se maravilhado com aquilo que vê. Finalmente
estava em Goa, capital do império no Oriente. Podia tocar, respirar e sentir o
Oriente. Sentia-se leve como uma pena que podia levantar voo à mais pequena
brisa que por ali passasse, tal era a sensação de paz e tranquilidade que sentia
neste momento. Conseguia finalmente visualizar a cara daquela que o chamava
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De facto aquilo por que tanto lutara finalmente tinha o privilégio de ver atingido.
Goa, cidade dos mil encantos, a Lisboa do Oriente, como era conhecida na
altura estava diante de si. Goa, cidade velha com a sua larga baía que
abarcava o Índico e que era banhada pelo sol poente estava finalmente a
abraçá-lo. Tão absorvido estava pelo fascínio de ter chegado que nem repara
que Francisco de Arriaga estava a falar consigo. “Martim, estás a ouvir-me? O
que se passa rapaz? Parece que não estás aqui.”
“Francisco, fico bastante honrado por aquilo que me estás a dizer. Para mim é
mesmo uma honra ouvir das palavras de um piloto com a experiência e mestria
do Francisco que eu sou capaz de sozinho pilotar um navio. Pois eu ainda não
sei bem o que vai ser da minha vida. Ainda estou na fase de vislumbramento
com tudo aquilo que vejo diante dos meus olhos. Ainda não sei bem o que farei.
Mas até quando é que tenho que me alistar ou não na carreira de regresso?”
“Agora que perguntas isso penso que tens que te alistar para o regresso dentro
de um mês que é quando começam a efectuar os preparativos de regresso. Até
lá pensa o que é que pretendes fazer. Mas olha por ora aproveita para
descansares por hoje que é o que eu vou fazer que estou cansado.”
os sacrifícios valem a pena quando se luta por um sonho. Neste caso ele
estava a viver o seu.
Martim pensa para consigo como bonito era o nascer do sol, especialmente
nesta terra mística cheia de encantos e segredos. Na fortaleza encontra dois
soldados que se encontravam de vigia. Um deles era português e o outro
goense cristão e que também falava português. “Bom dia”, dizem-lhe os
soldados, “estamos a ver que você deve ter chegado há pouco tempo a estas
paragens para estar tão fascinado com o nascer do sol. Eu também a primeira
vez que o vi em Goa fiquei fascinado com a sua magia. É de facto um
espectáculo digno de se ver”.
irmos a esse mesmo jantar. Vão lá estar as pessoas mais importantes de Goa.
Membros da nobreza, militares, o bispo de Goa e alguns membros da
companhia de Jesus.”
Todos os homens dizem que é uma grande honra irem a esse jantar oferecido
pelo vice-rei e confirmam que irão estar nesse jantar.
A riqueza das suas cores era de facto incrível e para quem nunca tinha visto um
era capaz de estar horas seguidas a olhar para os múltiplos padrões de cores
que emergiam das suas penas.
Depois de falarem entre si, e de se terem dado a conhecer, eis que aparece um
mordomo a indicar-lhes outra sala onde decorreria o jantar e onde o vice-rei
apareceria para o jantar. Depois de se dirigirem para a sala onde se iria
desenrolar o banquete, sala essa ricamente decorada com as mais finas pecas
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Martim não cabe de contente. Iria partir em direcção a Cochim, uma outra
possessão portuguesa na Índia, estando esta situada mais a sul da Índia.
Cochim tinha sido uma das primeiras cidades a aliar-se ao reino de Portugal já
em 1500, tendo sido tornada portuguesa por volta de 1503 com o auxílio de
Duarte Pacheco Pereira. Era a segunda cidade mais importante do império da
Índia.
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Logo pela manhã, Martim mal acorda e depois de se ter vestido e comido
qualquer coisa na messe dirige-se em direcção à capitania de Goa. Ia
determinado a inscrever-se como piloto.
Ao passear pelas ruas de Goa volta uma vez mais a apreciar a beleza da
cidade. Era uma cidade bastante grande, com cerca de duzentos mil habitantes
rivalizando em números com as mais importantes cidades do mundo. Tinha
ruas alinhadas, um sistema de esgotos e casas bastante belas que
resplandeciam com os raios do sol. Era também uma cidade que fervilhava de
comércio vendo-se em cada canto vendedores a venderem os mais variados
produtos, desde especiarias a frutas e animais.
Goa era uma cidade cosmopolita onde se viam pessoas das mais diversas
origens e vestidas de mil cores. Martim admirava-se ao ver gente proveniente
de tantos lugares díspares. Chamou-lhe a atenção enquanto se deslocava em
direcção ao porto a presença de dois mercadores chineses. Nunca tinha visto
nenhum chinês anteriormente e ficou maravilhado ao reparar nas suas feições e
olhos em forma de amêndoa. Já tinha ouvido relatos de marinheiros que lhe
contaram como os chineses eram, mas era totalmente diferente ver com os
seus próprios olhos. Realmente Martim não parava de se surpreender com o
Oriente. Realmente era um lugar mágico, místico e cheio de mil cores.
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por Carlos Carvalho
Chegados à Terra Firme, que era uma extensa zona de arvoredo e com alguns
campos de cultivo especialmente de arroz, os homens apressam-se a arrastar a
fusta para terra firme por forma a que não seja levada pelas marés. Uma vez
em terra firme Martim repara na beleza e contraste da paisagem. Junto ao rio a
beleza dos areais brancos com as palmeiras e um pouco mais adiante o verde
do arvoredo e ao lado os campos dos arrozais. Com o vento a bater levemente
neles os arrozais assemelhavam-se a pequenas ondas que ondulavam ao
sabor do vento.
Como o sol se estava a colocar alto decide dirigir-se para a sombra de umas
árvores e deita-se. Sem se aperceber cai no mais profundo dos sonhos
embalado pelo vento que vai batendo na sua face e embalando os arrozais.
Cada vez que inala ar para dentro dos seus pulmões sente novos perfumes e
sensações desta terra mágica e maravilhosa.
No dia seguinte Martim aproveita para passear pela cidade. Visita as igrejas de
Goa construídas numa mescla da cultura indiana e portuguesa e visita pela
primeira vez os templos hindus. Apesar de Martim ser católico ao visitar os
templos hindus cheios de mil cores e embutidos no perfume do incenso sente-
se tão ou mais próximo de Deus do que numa igreja católica. Os templos eram
ricamente decorados em ouro e tinham murais pintados com cenas da criação
do mundo aparecendo em muitos deles representações de Shiva o deus da
criação e destruição.
Observa os peregrinos que vêem de longe para oferecer prendas aos templos e
as suas vestimentas em tons de azul, verde e vermelho.
As mulheres usavam véus da mais pura das sedas e jóias nos seus belos pés,
ornamentados com anéis e as mais belas pulseiras que se possa imaginar.
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preparar uma grande armada para a tomarem de assalto, logo havia que agir e
antecipar os seus movimentos.
Martim ao chegar à capitania fica a saber que iria pilotar a Santa Bárbara,
protectora das trovoadas, uma nau com cerca de 220 tonéis e três mastros. A
comandá-la ia um capitão de seu nome Joaquim de Morais, homem já
experimentado nas artes da guerra. O total de elementos da tripulação era de
cerca de 200 homens entre marinheiros e soldados.
No fim da missa, é dada ordem por D. António de Noronha para que todos
subam a bordo para os seus barcos e para que seja dada ordem de partida.
São dadas ordens para que sejam levantadas as âncoras e soltas as amarras.
Os navios começam então a navegar em comboio em direcção a Cochim com o
intuito de mostrarem o poderio naval às forcas de Calecute.
Martim sente o peso da responsabilidade nos seus ombros. Pela primeira vez
estava a cumprir oficialmente o cargo de piloto numa nau. Apesar de se sentir
capacitado para cumprir os deveres de pilotar a Santa Bárbara sentia que tinha
crescido bastante como homem desde que abandonara Lisboa em direcção ao
Oriente. Consulta as cartas marítimas que lhe tinham sido facultadas antes de
embarcar e começa a delinear a rota que terão que tomar em direcção a
Cochim. De acordo com as medições do mapa, estavam a cerca de 600 milhas
de distância de Cochim pelo que demorariam cerca de duas semanas a chegar
até lá.
A bordo da Santa Bárbara, tal como no resto dos outros navios que
compunham a armada em direcção a Cochim, todos os dias os militares
praticavam fazendo exercícios de forma exaustiva por forma a que se
encontrassem em estado de prontidão imediata caso fosse necessário, pois as
forcas muçulmanas eram compostas por homens destemidos e bem
preparados.
Martim volta assim a envolver-se num combate marítimo. Da outra vez tinha
sido quando se encontravam a subir a costa oriental africana tendo então
capturado Abd al-Ramaan e dizimado o resto da tripulação. Desta vez era
próximo de Cochim onde encontravam as forcas de Calecute e seus aliados. Ao
todo os navios turcos e indianos eram cerca de 30 navegando também em
conserva.
D. António de Noronha faz sinal aos navios para se separarem em dois grupos,
tentando cada um deles apanhar os navios inimigos de cada um dos lados. A
armada vinda de Goa separa-se então em dois grupos. Um dirige-se em
direcção a sudoeste e outro a sudeste procurando desse modo atacar pelos
flancos as embarcações inimigas. A Santa Bárbara faz parte do grupo que se
desloca em direcção a sudoeste. Os homens no barco apressam-se a erguer as
velas por forma a que o navio ganhe a maior velocidade possível e os canhões
começam a ser carregados. A azáfama dentro do navio é grande com homens
a correr de um lado para o outro.
Martim procura manter a Santa Bárbara a navegar de forma veloz por forma a
que consigam atingir os navios inimigos sem sofrerem ataques dos mesmos. O
mestre da Santa Bárbara grita para com os seus homens para que continuem a
colocar balas e pólvora nos canhões e façam fogo. Os canhões estavam
divididos em grupos pares e ímpares, disparando primeiro os ímpares e
passado alguns minutos quando o navio voltava a estabilizar os pares e assim
sucessivamente.
Mal os navios turcos que ficaram para trás começam a incendiar-se são dadas
ordens para os navios portugueses se manterem afastados pois havia sempre o
perigo de um navio se incendiar em contacto com o outro. Ao fim de alguns
minutos dão-se novas explosões nos navios incendiados acabando estes
também por se afundar.
Podia haver quem achasse que isto era excesso de zelo da sua parte, ao tentar
fazer com que tudo corresse de acordo com o planeado, mas Martim não queria
facilitar e queria mostrar a todos que era um bom piloto. A sua idade podia ao
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Mais uma semana se passa a bordo. Um dos outros barcos que navegava em
conserva com o resto da forca de expedição começa a agitar uma bandeira no
topo do mastro principal. Era sinal de que tinham avistado terra, encontravam-
se próximos de Cochim. Martim ouve do mestre da Santa Bárbara dizer que de
acordo com as outras embarcações encontravam-se próximos de Cochim.
Havia então que começar a preparar a chegada ao porto.
Cochim era uma cidade de menor dimensão que Goa. Encontrava-se próxima
do extremo sul da parte ocidental do continente indiano sendo por isso um sítio
estratégico pois permitia controlar o tráfego marítimo.
“D. António de Noronha, seja bem vindo a Cochim. Queira desde já aceitar os
meus agradecimentos a si e ao vice-rei por ter vindo acorrer de modo tão
espevito em nosso auxílio. Soube que no meio do caminho encontraram forcas
vindas de Calecute nesta direcção e que conseguiram repelir as mesmas. Se
eles tivessem chegado aqui primeiro não faço ideia do que e que aconteceria.
Nós estamos com falta de homens por aqui. Por isso é que eu escrevi ao vice-
rei a pedir reforços. As forcas de Calecute aperceberam-se da nossa fraqueza e
por isso é que tentaram atacar-nos. Com os reforços que nos trás vai ser
possível patrulharmos esta zona como deve ser. Conto consigo e com os
restantes oficiais para um jantar que irei oferecer.”
população tal era de todo impossível pois a influência hindu era enorme e como
os hindus eram inimigos das forcas do crescente os mesmos eram tolerados e
vistos como aliados da coroa.
Martim lá lhe conta a sua história, o fascínio que sempre tivera pelo Oriente e o
sonho de ali chegar um dia. Neste momento encontrava-se a vivê-lo e sentia-se
feliz como tal. Giovanni decide convidar Martim para trabalhar consigo. Diz-lhe
que assim Martim teria oportunidade de viajar por terras de Oriente, visitar
feitorias e comerciar por aquelas terras. Martim agradece, mas diz que por
enquanto quer permanecer como piloto pois é algo que gosta de fazer, mas no
futuro quem sabe poderia trabalhar com ele.
Giovanni diz que compreende mas se algum dia Martim quiser trabalhar com
ele bastava aparecer por Cochim que teria trabalho certo.
Na manhã seguinte começam os trabalhos de reparação nos navios. Alguns
tinham uns mastros partidos, outros umas velas rasgadas como resultado do
confronto com as forcas de Calecute, mas nada que uns dias de trabalho por
parte da tripulação e os carpinteiros disponibilizados pelo governador não
conseguissem reparar.
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mortalmente. Tal como esta bala que atinge a Santa Bárbara, outras começam
a atingir outros dos navios portugueses.
Após algumas rajadas estava decidido qual o lado vencedor do dia. Os navios
portugueses que tinham menos danos decidem procurar escapar abandonando
os restantes ao seu destino. A esquadra inimiga ao aperceber-se da fuga das
forcas portuguesas decide atacar os restantes navios portugueses e dar o golpe
de misericórdia sobre os navios impossibilitados de fugir.
Martim começa a ver a vida escapar-se pelas suas mãos. Pelos vistos o seu
destino estava traçado, morrer em águas de Oriente em combate com forcas de
Calecute. Sentia que era chegada a sua hora. Apesar de morrer ainda jovem
sente que pelo menos cumprira o seu sonho de conhecer o Oriente, mesmo
que tenha pago com isso a sua vida.
Martim ouve uma voz familiar. “Não pode ser”, pensa ele para consigo. “Já ouvi
esta voz.” De repente lembra-se quem é que estava a falar. Era Abd al-
Ramaan. Ao menos o facto de saber que Abd al-Ramaan se encontrava por ali
dava-lhe uma sensação de alívio. Abd al-Ramaan podia ser inimigo mas era um
homem de carácter e princípios. Martim resolve gritar pelo seu nome : “Abd al-
Ramaan, Abd al-Ramaan!!!”.
Este ao ouvir o seu nome, volta-se para ver quem o chama. Reconhece
imediatamente Martim. Dirige-se para ele “Martim, o que foste fazer rapaz,
porque é que vieste precisamente neste navio? Por Alá, porque é que isto nos
aconteceu? Bem sabes que vais ter que ser feito prisioneiro. Nada tenho contra
ti Martim, mas estás no sítio errado à hora errada. Bem me lembro da última
vez que te vi a ti e a D. Afonso de Menezes falei que esperava não vos ver mais
enquanto estivéssemos em guerra. Mas olha, vou fazer tudo o que estiver ao
meu alcance para te manter vivo. És e sou teu amigo”.
“Obrigado Abd al-Ramaan. Só te peço que olhes também pela vida destes
homens. Eles também não têm culpa do que se passa. São homens com
família e que também se encontram apanhados no meio deste conflito sem
terem escolhido as suas sortes.”
“Está bem rapaz, prometo-te que dentro do que estiver ao meu alcance,
procurarei mantê-los vivos. Agora vamos ter que vos levar a todos connosco
até Calecute. Aí pediremos um resgate ao vice-rei por forma a conseguir a
vossa liberdade.”
Martim sente-se conformado com a sua nova situação. Não havia nada que
pudesse fazer que não esperar que a sua situação se resolvesse. Acontecesse
o que acontecesse tinha que ver que por ora encontrava-se vivo e tinha que
fazer os possíveis para se manter nessa situação.
Martim de repente sente o frio das algemas a rodear os seus pulsos. Pela
primeira vez sentia-se numa situação de total impotência e submissão. A sua
vida e destino não estavam sobre si mas dependiam e muito da boa vontade de
Abd al-Ramaan. Martim pensa consigo que para cúmulo dos cúmulos tinha que
ser aprisionado por Abd al-Ramaan. O que não devia custar a ele ter que
aprisionar um amigo seu. O destino de facto estava a ser injusto para os dois.
“Martim, tu ficas nos meus aposentos. Não permito que vás para baixo para o
porão. Nem sabes o que me custa ver-te aprisionado. O melhor que posso
fazer é ter-te o mais confortável possível”.
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por Carlos Carvalho
“Abd al-Ramaan, nem sabes o quanto me agrada ouvir essas palavras tuas.
Mas prefiro ir para o porão com o resto dos meus companheiros. Faço parte de
um grupo e se eles sofrem quero também sofrer junto deles, pois eu sou
apenas mais um do grupo. Peço-te que compreendas esta minha decisão e não
leves a mal. Tu no teu lugar farias o mesmo.”
Uma vez no porão, os homens foram conduzidos para uma cela gigante que
tinha um grande portão a separar a divisão do acesso ao convés. Os homens
começaram a entrar dentro da mesma começando a amontoar-se, tal era a falta
de espaço.
São homens como nós que também têm momentos de alegria e tristeza com
famílias. Conheço um dos chefes, Abd al-Ramaan. Na minha viagem até Goa
vindo de Lisboa ele fora capturado e posto a ferros. A sua tripulação ao
contrário de nós foi chacinada à sua frente. Vi o que ele aguentou sobre tortura
e o modo como passou a dar-se com o capitão mor D. Afonso de Menezes.
Posso dizer-vos que é um homem de carácter. De tudo o que depender dele
podemos estar seguros que se não levantarmos problemas conseguiremos
chegar a Calecute com vida.”
Apesar de haver alguns homens que começaram a ripostar dizendo que Martim
era um vendido às forças inimigas, as suas vozes foram logo silenciadas pelos
restantes prisioneiros que concordaram com Martim. Havia que tentar manter a
calma e fazer o possível para chegar a Calecute e ser libertado.
De noite, apesar de ser difícil distinguir a noite do dia dentro do porão pois a
pouca luz que havia era dada por uma candeia, os homens ouvem uns passos
a acorrer em direcção dos mesmos. Os passos tornam-se cada vez mais
perceptíveis até que conseguem ver a cara de um dos soldados. Vinha trazer-
lhes água e comida. De acordo com o mesmo Abd al-Ramaan tinha dado
ordens para os alimentar.
Martim sorri para si mesmo. Abd al-Ramaan era mesmo um homem às direitas.
Estava a procurar providenciar o melhor tratamento dentro do possível a todos
os homens. Afinal de contas pouco melhor podia fazer visto serem prisioneiros.
Passadas umas duas horas um grupo de soldados vem ter com eles. Começam
por abrir a porta da prisão onde se encontravam presos e pedem para que
saiam em fila. Os homens ao levantarem-se começam a cambalear. Tal tinha
sido o número de dias em que se tinham encontrado imobilizados que quase
nem se conseguiam mexer.
Estes ao verem que ele se dirige para eles dão-lhe um pontapé e Martim cai ao
chão. Os homens começam a virar-se contra os soldados mas Martim procura
manter a calma. Se houvesse agora uma revolta seria o fim deles, havia que
manter a calma. Martim levanta-se e é o primeiro a sair. Cambaleando, como
resultado do pontapé sofrido e de estar parado lá vai seguindo pelo seu pé. Os
outros homens seguem-no.
Já no convés Martim encontra Abd al-Ramaan. Este ao vê-lo vem logo abraçá-
lo. “Martim, estamos em Calecute. Agora vocês irão para a prisão existente aqui
no forte. Procurarei fazer com que vocês sejam tratados bem dentro das
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“Abd al-Ramaan, quero desde já agradecer-te pelo facto de termos sido bem
tratados dentro do navio. Não nos faltou comida e água, pelo que tenho que te
agradecer o facto de teres feito o possível para que a nossa estadia aqui tenha
corrido bem dentro do possível.
Martim procura acalmar os homens. O que o capitão estava a fazer era tentar
humilhá-los e fazer com que alguns respondessem à afronta, mas havia que
manter a calma, pois as suas vidas estavam na mão de homens como este.
Ao fim de umas duas semanas de cativeiro, Martim tem uma visita. Os soldados
chamam Martim, abrem a porta da cela e levam-no para uma sala. Lá tinha à
sua espera Abd al-Ramaan. Este ao ver Martim a chegar, apressa-se a dirigir-
se ao seu encontro e abraça-o. “Martim como é bom ver-te. Vocês estão a ser
bem tratados? Eu falei com o capitão da prisão para ver se vocês são bem
tratados dentro do possível, mas não há muito mais que eu possa fazer.”
“Sim, Abd al-Ramaan, dentro do possível estamos a ser bem tratados. Ao início
houve umas fricções com o capitão mas agora penso estar tudo resolvido. É
normal que ele não goste de portugueses, tal como a maioria dos portugueses
não gosta dele. Há que não esquecer que somos inimigos e muitas vezes isso
faz com que haja um véu que encubra as faces das pessoas e faça com que
não nos vejamos como homens iguais aos outros.”
“Abd al-Ramaan agradeço-te por tudo o que tens andado a fazer por mim e
pelos homens que aqui se encontram aprisionados. Pelo que me dizes não nos
resta nada que não esperar.”
Martim depois de se ter encontrado com Abd al-Ramaan fica indeciso sobre o
que fazer. Devia contar ao resto dos homens que afinal as coisas estavam
complicadas e a libertação demoraria mais tempo do que o esperado? Ou ao
invés devia actuar como se não soubesse de nada? A sua cabeça estava
inundada de incertezas. O que é que deveria fazer? Se lhes contasse podia
fazer com que alguns desanimassem e desistissem de lutar, se permanecesse
calado à medida que o tempo passava a ansiedade dos mesmos aumentaria
levando ao desespero. Após ter pensado e reflectido durante algumas horas
chega à conclusão que lhes deve contar a verdade.
“Homens, hoje estive reunido com Abd al-Ramaan. Ele comunicou-me que as
forças portuguesas já estão cientes da nossa captura e foi-lhes exigido um
resgate pela nossa libertação. De acordo com ele as forças portuguesas até
agora ainda não responderam. Logo temos que aguardar pelo momento em
que as boas novas cheguem. Temos que nos manter vivos enquanto isso não
ocorre.”
Os homens começam a olhar apreensivos uns para os outros. Será que iriam
sair daquele cativeiro com vida? Será que poderiam ver as faces das suas
mulheres, pais, irmãos, amigos uma vez mais na vida? Mas tal como Martim
lhes tinha dito só lhes restava esperar. Não havia nada que eles pudessem
fazer para influenciar um bom desfecho da situação.
“Martim, em Cochim vieram aos meus ouvidos notícias da vossa captura por
parte das forças de Calecute. Procurei indagar junto das autoridades
portuguesas se estava prevista a vossa libertação e ninguém me conseguia
responder. Ou diziam que não tinham conhecimento do vosso cativeiro ou
então que não sabiam como as negociações se estavam a desenrolar. Decidi
então agir por minha iniciativa e contactei uns amigos mercadores aqui de
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Cochim. Eles disseram-me que tinhas um amigo por aqui Abd al-Ramaan que
era o capitão mor da força que vos capturou. Entrei em contacto com ele e
decidi pagar o teu resgate. Quero que venhas trabalhar comigo. Preciso de um
homem com experiência de navegação e determinação junto de mim. Abd al-
Ramaan só tem falado coisas boas da tua pessoa e quero que aceites o meu
convite. Vem trabalhar comigo.”
“Abd al-Ramaan está certo, Martim.”, responde Giovanni Umani, “se tu fores
comigo podes fazer pressão junto das autoridades por forma a que o resto dos
prisioneiros sejam soltos. És mais incómodo para as forças portuguesas solto
do que permanecendo em cativeiro com o resto dos teus companheiros. Podes
lutar pela libertação deles lá fora. Pensa bem no que Abd al-Ramaan te disse
Martim. Aceita por ti e pelos outros homens.”
“Escutei os vossos conselhos e aceito ser libertado. Preferia sê-lo junto com os
restantes homens, mas penso que vocês têm razão em dizer que posso ser
mais útil para a libertação dos mesmos se me encontrar livre do que
permanecendo aqui em cativeiro junto deles. Infelizmente terei que os
abandonar mas tal será por forma a que possa lutar pela libertação dos
mesmos. Aceito o resgate, mas juro que não descansarei enquanto não
conseguir a libertação dos restantes homens.”
oceanos e tiveram que combater acabando por o capturar, pensa Abd al-
Ramaan para consigo. Mas agora havia que festejar a libertação de Martim.
16. A libertação
Depois de ter falado com Abd al-Ramaan e Giovanni Umani, Martim volta para
a cela. Ia determinado em tratar da libertação dos homens, essa seria a sua
missão agora que se encontrava solto. Não conseguia respirar sem se lembrar
cada vez que inalava o ar nas suas narinas que era um privilegiado e que tinha
companheiros seus em sofrimento. Havia que lutar por forma a que os mesmos
conseguissem sair em liberdade.
Ao chegar junto dos restantes prisioneiros, Martim diz que quer falar com todos.
Estes juntam-se e procuram escutar as suas palavras. “Acabei de ser visitado
por Abd al-Ramaan e por Giovanni Umani um mercador genovês que conheci
em Cochim. Queriam encontrar-se comigo porque Giovanni pagou o resgate da
minha libertação. Ao princípio recusei a mesma porque disse-lhes que não
queria ser o único libertado neste momento. Só sairia quando vocês saíssem
junto comigo. Mas escutei os argumentos deles. De acordo com eles sou mais
útil à vossa libertação lá fora do que aqui junto de vocês. Sou obrigado a
concordar. Não julguem que vos abandonarei. Não pensem que isto são
palavras de circunstância, não são, são palavras que vêem do fundo do meu
coração”, neste momento Martim começa a soltar lágrimas que começam a
percorrer a sua face, “não descansarei enquanto não conseguir que todos
vocês sejam libertados. Assim que for libertado procurarei falar com as forças
portuguesas e tratar da vossa libertação. Não descansarei enquanto vocês não
forem livres. Enquanto isso não acontecer não se esqueçam que têm que se
manter vivos. Procurem resistir todos os dias e continuem a exercitar-se por
forma a que se mantenham em forma.”
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Martim olha para trás para ver os seus companheiros que permanecem em
cativeiro. Não descansaria enquanto não conseguisse tratar da libertação dos
mesmos. Era uma promessa que fazia a ele próprio. Ao subir as escadas que o
levavam em direcção à liberdade Martim começa a vislumbrar Abd al-Ramaan e
Giovanni. Encontravam-se à sua espera.
Abd al-Ramaan convida Giovanni e Martim para irem jantar com ele antes de
partirem na madrugada seguinte para Cochim. Agora que Martim era um
homem livre podia caminhar pelas ruas se bem que acompanhado por Abd al-
Ramaan não fosse um habitante local atacá-lo ao saber que ele era português
pois as relações entre os portugueses e os habitantes de Calecute não eram as
melhores.
Chegada a noite Martim junto com Giovanni e Abd al-Ramaan dirigem-se para
uma tasca onde se sentam e começam a conversar. Abd al-Ramaan pede a um
dos miúdos que se encontrava a servir para que traga chá.
“Obrigado Abd al-Ramaan. É uma grande tristeza para mim saber que hoje me
encontro deste lado mas os meus companheiros têm que continuar presos. Mas
não descansarei enquanto não os vir libertados. Se não fosse o Giovanni a
tratar da minha libertação bem sei que continuaria nos calabouços por bastante
tempo. Por isso Giovanni quero agradecer-te do fundo do meu coração por
teres tratado da minha libertação e desse modo possibilitar-me de tratar da
libertação dos meus companheiros ainda aprisionados. Aceito de bom grado o
convite de trabalhar para ti e voltar à vida de comerciante. Já me encontro farto
de guerras e intrigas. O que eu quero mesmo é viajar e conhecer o mundo sem
que para isso tenha que entrar em guerras e disputas.”
Uma vez chegado o chá os três homens começam a beber. Martim sente um
misto de sentimentos. Contente por estar livre junto de Abd al-Ramaan e
Giovanni o homem que o libertou e ao mesmo tempo com sentimentos de culpa
por se encontrar livre enquanto os seus companheiros se mantêm aprisionados
no cárcere. Mas o melhor a fazer era procurar expiar esses sentimentos de
culpa pois os mesmos não o ajudavam na sua tarefa que era fazer com que a
libertação dos seus companheiros fosse o mais breve possível.
“Abd al-Ramaan, agora que Martim está solto e vai começar a trabalhar comigo
nos negócios de comércio não quer abandonar a sua vida de militar e juntar-se
a nós? Dava-me jeito mais um braço a meu lado”, diz Giovanni Umani.
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“Obrigado pelo convite, mas não posso aceitar. Fiz um juramento de obediência
ao sultão em servi-lo até à morte e tenciono cumprir a promessa. Apesar de
gostar de poder trabalhar consigo e especialmente com o Martim a quem vejo
como um irmão. O facto de eu ser muçulmano também penso que não iria
ajudar, pois certamente que iriam sofrer represálias por parte das autoridades
portuguesas. Além disso possuo a minha cabeça a prémio e não duvido que o
vice-rei da Índia gostaria de ver a minha cabeça pendurada numa estaca, mas
nunca lhe hei-de dar esse prazer.”
“Abd al-Ramaan tens razão ao referir que a tua cabeça se encontra a prémio.
Infelizmente as autoridades portuguesas vêem-te como um corsário ao serviço
das forças turcas e teriam o maior prazer em capturar-te. Infelizmente neste
mundo não há lugar para um homem fazer o que quer e estar junto daqueles
com quem pretende estar. Os nossos destinos não dependem apenas da nossa
vontade. Além da sorte e fortuna temos também os nossos governantes a
separar-nos. Muitas vezes questiono-me a mim próprio se os governantes
defendem mesmo os interesses do país ou os seus, especialmente depois
deste infeliz episódio da captura e todos os entraves para liberar os meus
companheiros.”
Giovanni depois de ouvir os argumentos dos dois homens acaba por concordar.
De facto seria uma atitude praticamente suicida da parte de Abd al-Ramaan se
decidisse trabalhar com ele. Mais cedo ou mais tarde as autoridades
portuguesas saberiam quem de facto era aquele homem tão temido e
procurado e não pensariam duas vezes em capturá-lo mesmo que ele já tivesse
deixado a vida de guerreiro.
Parecia que existia uma espécie de estigma da parte de quem passara pela
vida de guerreiro. Uma vez guerreiro, guerreiro seria toda a vida para aqueles
com quem se tinha lutado. De facto nem Abd al-Ramaan poderia pairar por
terras sobre domínio ou influência portuguesa ou Martim sobre terras de
influência árabe. Para toda a vida portariam esse estigma que era uma espécie
de lepra para aqueles que se encontravam do outro lado. Não era possível
distinguir o homem do guerreiro, era como se fosse uma tatuagem entranhada
na pele visível para os que ainda os viam como um inimigo.
era até nunca mais se encontrarem, pois caso se voltassem a ver o mais
provável era encontrarem-se num cenário de confronto em que os dois teriam
provavelmente que lutar um contra o outro por algo a que eles eram alheios
mas em que seriam arrastados come um barco de noz ao ser arrastado num
ribeiro .
“Abd al-Ramaan nem sei o que te dizer. Se não fosses tu eu já não estaria
neste mundo e grande parte dos meus companheiros. Quero que saibas que és
um homem de carácter e que nunca conheci ninguém tão recto e amigo do seu
amigo como tu. Obrigado não chega, nem sei o que te dizer, contigo aprendi a
ser mais homem a respeitar os outros e a cumprir as minhas tarefas. Quero que
saibas que não vou desistir da libertação dos meus companheiros, não os
posso desiludir. Muito obrigado por me teres feito crescer como homem.”
Nisto Martim começa a subir em direcção ao convés com Giovanni. Ao ver Abd
al-Ramaan afastar-se não consegue evitar que algumas lágrimas comecem a
descer sobre o seu rosto. Sabia que tinha ali um amigo que infelizmente por
força das vicissitudes da vida e dos interesses económicos provavelmente não
iria voltar a ver. Mas Abd al-Ramaan tinha-lhe dado um dos maiores presentes
da vida: a amizade pura e verdadeira e além disso ajudara-o na construção do
seu eu. Desde que abandonara Lisboa, Martim já não era um menino mas sim
um homem que iria lutar pela libertação dos seus companheiros e que
procuraria conhecer o Oriente. Já não se dedicaria à arte da guerra pois ficou
chocado ao ver as atrocidades que eram feitas de parte a parte em nome dos
interesses da coroa, coroa essa que depois voltava as costas àqueles que a
tinham servido com a própria vida. Agora iria trabalhar para Giovanni, fazer o
possível e impossível por obter a libertação dos seus companheiros e viajar por
terras de Oriente em busca de comércio.
O capitão do navio diz que não vê nenhum inconveniente e até pelo contrário, é
sempre bom ter mais uma pessoa com experiência de navegação a bordo. Diz
então a Martim para o seguir. Iria apresentá-lo ao piloto da embarcação e ver
no que é que Martim poderia auxiliar.
“Giovanni, sei que vou trabalhar para si mas ainda não sei muito bem quais são
as funções que me serão confiadas. Procurarei servi-lo com o máximo de afinco
possível, mas gostava de saber o que é que eu vou fazer de facto, quais é que
irão ser as minhas tarefas.”
“Claro Martim, claro que te direi quais são as tarefas que te vou confiar. Vejo
em ti um homem com carácter e com um grande futuro pela frente. Eu tenho
presença comercial em Cochim, Malaca, no Sião, Macau, Cantão e Nagasáqui.
Ora como sou só um homem, que não consegue estar em todos os lados ao
mesmo tempo torna-se difícil para mim orientar os negócios em todos esses
sítios e desconfio que quando não estou lá muitas vezes os negócios não são
geridos do modo como deviam ser, sendo muitas vezes deixados ao desleixo e
abandono pelos meus capatazes. Como este é um negócio muito lucrativo, nem
se preocupam em esforçar-se para melhorar as coisas pois para obter lucro
não é preciso grande esforço. Como vês estou preocupado com o modo como
as coisas estão a ser geridas e quero que tu sejas o meu braço direito. Quero
que tu vás visitar pessoalmente cada um desses sítios e inspeccionar o modo
como os negócios estão a ser geridos. O que te peço é algo de arriscado pois
podes vir a sofrer represálias por parte dos capatazes que não devem ficar
nada contentes ao saberem que vão ser analisados de perto, mas penso que tu
és o homem ideal para a tarefa. Mas serás bem recompensado. Vou pagar-te o
salário equivalente ao de um capitão do vice-reino da Índia e uma percentagem
de dez por cento dos lucros.”
“Giovanni, claro que aceito a tarefa que me está a ser confiada antes demais
por uma questão de honra e respeito. Estou livre neste momento graças a si.
Caso não tivesse feito por me libertar ainda estaria neste momento em cativeiro
com os meus companheiros, mas agora que estou livre posso lutar pela
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Impotência pelo facto de pouco poder fazer pelos seus companheiros que não
tentar arranjar dinheiro para pagar o resgate exigido pelas forças de Calecute.
Desilusão por se sentir traído e abandonado pelas forças portuguesas. Como
era possível saberem que havia homens aprisionados em Calecute como
resultado de terem lutado pelos interesses da Coroa e nada fazerem pela sua
libertação? Se D. António de Noronha tivesse sobrevivido ao ataque talvez
tivessem feito algo pela sua libertação, mas como era apenas raia miúda que se
encontrava aprisionada ninguém se interessava ou procurava fingir que esse
episódio nunca tivera ocorrido.
Está uma bela tarde de quarta-feira. O Sol bate no horizonte iluminando com
sua luz a bela cidade de Cochim que se avista lá ao fundo a oriente. Ao fundo
da baía era possível avistar o porto que abrigava a cidade. O navio dirige-se
lentamente em direcção ao mesmo até que as amarras se prendem junto aos
pilares do porto.
“Pois assim seja. Amanhã vou dar informações à tripulação para se prepararem
para irem até Malaca. Dentro de uma semana estarás de partida e estou
confiante que depois da tua ida até Malaca os negócios vão prosperar.”
“Sim senhor, estou aqui para vos servir Martim da Nóbrega. Em nome de toda a
tripulação da Sargaço desejo as boas vindas. Espero que venhamos a ter boas
recordações desta viagem. É bom ver um homem cheio de vida e energia a
comandar este belo navio.”
Durante a viagem até ao destino Martim estuda com exactidão a situação dos
negócios de Giovanni em Malaca. No estabelecimento que lá tinha, Giovanni
comprava pimenta, canela e gengibre sendo parte transportada parte para os
mercados de Cochim e Goa e a restante enviada directamente para Lisboa. A
dirigir os negócios por essas terras encontrava-se um português de quem
Martim sabia o nome. Era um tal de Rodrigo da Pereira que tinha lá chegado
como soldado e por lá ficara tendo estabelecido família com uma malaia.
Segundo Giovanni os lucros enviados por esse tal Rodrigo tinham vindo a
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O Navegante
por Carlos Carvalho
“Meu capitão, boa noite. O meu capitão desculpe a observação mas devia estar
a dormir, amanhã de manhã chegaremos a Malaca e tem que chegar lá cheio
de energia”.
“Agradeço a tua preocupação, João, mas não conseguia dormir. Também não
me sinto muito cansado e é bom um homem de vez em quando deitar-se e ficar
a olhar para as estrelas. Como sabes fui piloto e de vez em quando gosto de
olhar para o céu. É a maneira que tenho de passar o tempo. Fico a observar as
estrelas, a determinar a nossa posição relativa, faz-me sentir calmo. Não devia
estar a ter esta conversa contigo, mas eu ainda me sinto muito novo para ter
tamanha responsabilidade. Ninguém me obrigou a fazer seja o que for, mas
tenho medo de errar, de fazer algo que não deva. Tenho nas minhas mãos a
vida desta tripulação e os negócios de Giovanni, sinto o peso da
responsabilidade. Ainda nem há dois anos atrás era um miúdo com sonhos de
embarcar na Carreira da Índia e agora sou capitão de um navio e encarregado
de negócios. Não sei se consegues compreender mas isto é uma mudança
muito grande na minha vida. Não sei se também sabes, mas fui aprisionado por
forças turcas em Calecute e foi Giovanni quem me conseguiu soltar. Mas
apenas eu consegui sair, tenho os meus companheiros ainda todos lá e fiz-lhe
uma jura de que iria conseguir a sua libertação. As forças portuguesas não
estão minimamente preocupadas com o estado deles, são apenas raia miúda e
não acham que valha a pena pagar o resgate. Por isso resta-lhes apenas a eles
que eu consiga arranjar a soma necessária para os soltar. Não posso falhar,
não os posso desiludir”.
“O meu capitão não se precisa de preocupar tanto. Vai ver que vai correr tudo
bem. A sua missão em Malaca vai correr dentro do melhor. Não nos
conhecemos bem, mas pelo que Giovanni me contou e do pouco que já pude
ver o meu capitão é um homem de fibra. Não era qualquer um que conseguia
sobreviver ao cativeiro em Calecute e servir de líder para os homens lá
aprisionados. Há homens que nascem com o dom de liderar e o Martim é um
desses homens. Já vi muitos capitães passarem pela minha frente. Uns muito
bons, capazes de motivar a tripulação, outros que nem aqueciam ou arrefeciam
e outros que não tinham mesmo nenhuma vocação para comandar. Do último
grupo tenho a certeza que não faz parte, e se tudo correr como penso mostrará
ser um líder a toda a prova”.
"Martim, pode contar comigo para o que der e vier. O meu capitão pode ainda
ser novo, mas vejo em si uma aura diferente. Tem qualquer coisa de especial
em si que me atrai mas que eu não consigo explicar.
Estavam ali a cumprir uma missão crítica para os negócios de Giovanni e para
os homens aprisionados em Calecute, pelo que havia a evitar desvios em
relação à missão que ali os trazia.
Batem à porta e são atendidos por um criado. "Muito bom dia. Queremos falar
com o seu amo, Rodrigo da Pereira", diz Martim num tom de voz decidido.
"Diga-lhe que estamos aqui a mando de Giovanni Umani para ver como é que
os negócios têm andado a ser geridos e que por isso necessitamos de falar
com o seu amo."
"O meu capitão pediu a minha opinião por isso dar-lha-rei com o maior gosto.
Penso que sim, devemos procurar por ele aqui por sua casa porque também
não estou a ver com bons olhos toda esta espera. Algo de estranho se passa.
O quê também não sei, mas devemos procurar indagar sem mais tardar."
"Bom dia. Você deve ser Rodrigo da Pereira. Meu nome é Martim da Nóbrega e
estou aqui em Malaca em representação de Giovanni Umani. A acompanhar-
me está o mestre João da Ribeira. Íamos ao seu encontro junto à loja mas você
não se encontrava por lá. Deram-nos a morada de sua casa, falamos com o
seu criado que disse que o ia chamar, estivemos mais de uma hora à espera e
nada. Como não estava decidido a vir ter connosco nós viemos ter consigo."
Rodrigo da Pereira ainda meio bêbado começa a entrar na realidade. Ainda via
as coisas meio turvas e cada palavra de Martim soava a um trovão, mas
começa a ver que as coisas não andam muito bem para o seu lado. Havia que
agir e depressa se queria manter o seu trabalho. Começa então a falar com os
dois homens.
"Eu peço antes demais desculpa pelo sucedido. Não sabia que vocês estavam
a caminho, senão tinha-me preparado devidamente para vos receber. Se não
se importam dão-me uns dez minutos para me vestir e lavar que eu vou já ter
convosco. Quanto a ti vil criado, não sei porque não me avisaste que tinha
visitas. Hás-de pagá-las."
Ao fim de uns vinte minutos Rodrigo da Pereira vem ter com eles. Pede uma
vez mais desculpas dando as mais variadas razões por se encontrar a dormir e
não a trabalhar e procura mostrar a Martim que tal coisa não tornará a
acontecer de novo.
Martim pede a Rodrigo da Pereira que os leve até à loja pois iria querer
consultar a documentação e o registo de compras e vendas. Este lá acaba por
aceder e lá vão os três homens em direcção à loja.
"João, gostava de saber a sua opinião sobre este Rodrigo da Pereira. O que é
que o seu instinto lhe diz? Bem sei que não devemos julgar as acções de um
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O Navegante
por Carlos Carvalho
"O meu capitão quer saber o que penso, pois aqui vai. Acho que ele é um
bêbado e mentiroso que tem andado a roubar D. Giovanni nos últimos tempos.
Aposto consigo que anda a comprar as mercadorias acima do preço de
mercado ficando com uma margem para ele, embora não tenha provas para o
acusar, mas isto é o que eu penso".
"Bem sei João, bem sei que não podemos ter ideias pré-concebidas, mas eu
também partilho dessas ideias. Tenho uma ideia. Amanhã iremos viajar pelas
redondezas da cidade, passando por mercadores vindos de Portugal em busca
de especiarias e tentaremos ver quais os preços praticados. Por hoje acho que
está altura de irmos em direcção ao porto para pernoitarmos. Amanhã
continuaremos as nossas investigações."
Na manhã seguinte, Martim dirige-se com João da Ribeira até aos mercados
para indagar os preços praticados na compra da pimenta. De acordo com o que
verificou e indagou o preço oscilava entre os dois e três cruzados não variando
muito mais além disso. Começava a verificar que de facto ou Rodrigo da
Pereira andava a enganar Giovanni ou então andava a comprar sem se
preocupar com os preços que praticava. De acordo com o que tinha consultado
nos livros, os preços andavam sempre à volta dos quatro, cinco cruzados.
Rodrigo já tinha com que se preocupar, mas Martim ainda estava decidido a
investigar mais.
Martim ao ouvir esta história, volta atrás nas decisões que já tinha tomado.
Pensava que Rodrigo andava a enganar Giovanni mas afinal tudo indicava que
os maus resultados que os seus investimentos andavam a ter por estas
paragens não se deviam a enganos mas a má gestão. Desse modo não iria
"Homem, pára com isso. Eu acredito nas pessoas e todos devem ter a
oportunidade de se redimirem. Eu deixo-te continuar à frente dos negócios se tu
me prometeres duas coisas:
1. largares a bebida e começares a ter uma vida honrosa, passando a gerir
os negócios tal como fazias há uns anos atrás ou com ainda maior afinco
2. sempre que os barcos saírem daqui carregados em direcção a Cochim
entregares um relatório com tudo o que se passa. Quero que me relates
tudo, quais as vendas, os preços de compra, se tem chovido muito ou
pouco, tudo, quero toda a informação mesmo aquela que tu julgues inútil.
Caso me falhes em algum destes pontos eu próprio venho cá e tiro-te do posto
que ocupas mas se cumprires fielmente aquilo que te disse e trabalhares com
afinco terás o meu respeito."
Martim com este gesto ganha a confiança de Rodrigo da Pereira. Este sabia
que a partir de agora iria ter que viver uma vida acertada, mas estava
agradecido a Martim pois tinha-o salvo a ele e aos negócios. Rodrigo estava
determinado a mostrar-lhe que era merecedor da confiança por parte de Martim
e terminada a reunião saiu da loja indo visitar todos os fornecedores por forma
a renegociar os preços.
Durante a viagem Martim aproveita para consultar as notas que tem sobre os
negócios que Giovanni tem em Galle. Possuía aí uma feitoria que se dedicava à
venda de especiarias e compra de pedras preciosas que eram vendidas para a
Europa. Aí chegavam os mais puros rubis e safiras que eram trocados por ouro
e especiarias.
O responsável pelos negócios era Pedro Coutinho, português que tinha ido para
Galle, ao serviço do império das Índias e que por lá ficara a tomar conta dos
negócios de Giovanni. Ultimamente era elevado e anormal o número de
ataques às embarcações de Giovanni, sendo estas atingidas quase duas vezes
mais que as outras. Martim perguntava-se qual seria a razão, se o infortúnio, se
a fraca preparação na defesa das embarcações, a existência de uma
conspiração contra os interesses de Giovanni. Fosse o que se estivesse a
passar Martim estava determinado a ver o que se passava.
"Boa tarde, o que vos traz por cá e o que me querem?" - pergunta Pedro
Coutinho.
"Isso que diz é verdade. Temos sofrido grandes perdas com esses ataques de
piratas. Eu bem que me tenho queixado às autoridades portuguesas aqui em
Galle mas estas pouco ou nada têm feito. Eu não posso fazer muito mais, tenho
apetrechado as embarcações com canhões e armamento mas os nossos
navios são comerciais e não de guerra e contra forças especializadas pouco ou
nada podemos fazer."
"Obrigado pela informação, mas peço que me deixe a sós a mim e ao João da
Ribeira que vamos analisar a documentação."
Martim desloca-se de novo para a sala onde João da Ribeira estava a analisar
a documentação e volta a analisar a documentação enquanto aguarda pelo
regresso de Pedro Coutinho.
Passadas umas duas horas, aparece Pedro Coutinho com os papéis de volta.
"Cá estão os registos. Encontravam-se noutro sítio porque esqueci-me de os
arrumar. Há dias tinha-os consultado em casa e não os tinha arrumado."
"Martim, não sei porquê mas eu não vou muito com a cara desse Pedro
Coutinho. Parece que anda sempre nervoso e com medo que se descubra
qualquer coisa."
"Calma João. Não podemos tirar conclusões precipitadas. Temos que analisar
primeiro todos os documentos, visitar a cidade, falar com as pessoas e só então
é que se tomará uma conclusão."
Martim está cada vez mais convencido que existe um esquema qualquer por
trás dos ataques, mas não tem provas. Necessitava de verificar com maior
exaustão tudo aquilo que se andava a passar por ali e não descansaria
enquanto não conseguisse revelar tudo o que se passava.
O facto de as pessoas não quererem falar muito sobre Pedro Coutinho aguçou
ainda mais a curiosidade de Martim. Acompanhado de João da Ribeira vão até
ao tasco onde se juntavam os marinheiros e soldados. Começam a pagar uns
copos a todos os que lá se encontram e aproveitando o facto de as pessoas se
encontrarem animadas começam a fazer perguntas sobre Pedro Coutinho.
Ao que parece Pedro Coutinho tinha andado a aumentar a sua fortuna ao longo
dos últimos anos. Tinha adquirido bastantes propriedades e emprestava
dinheiro a outros comerciantes. Como ele o tinha conseguido ninguém o sabia
explicar, pois quando ele tinha chegado a Galle era um pobre homem quase
sem dinheiro para comer, não fosse o salário que ganhava na tropa e mal se
podia alimentar. Desde que começou a trabalhar com Giovanni na feitoria é que
começou a adquirir riqueza e prestígio na localidade. Todos lhe tinham muito
medo em Galle, até as próprias autoridades, pois já não era a primeira ou
segunda vez que homens que lhe tinham feito frente tinham desaparecido
misteriosamente.
Martim estava cada vez mais convencido que todos esses ataques tinham a
mão de Pedro Coutinho por trás, mas havia que o provar, pois sem provas nada
podia fazer.
De noite, estando Martim a dormir na sua cabine, ouve um barulho. A porta que
dava acesso ao seu quarto começa a ranger e quando se prepara para
levantar, sente o fio de uma faca tocar na sua garganta. Quando a lâmina
começa a deslizar, começando a fazer um corte no seu pescoço, ouve um tiro e
com ele cai a lâmina.
"Meu capitão, está bem? Ouvi um barulho perto da sua cabine. Peguei logo no
mosquete, armei-o e vim ver o que se passava. Mal abri a porta vi um patife
tentar matá-lo e não tive outra opção que não disparar. Tome este pano e
coloque à volta do seu pescoço que vou chamar o físico."
Depois de ter sido tratado pelo físico, Martim manda chamar João da Ribeira.
"João, nem sei como agradecer. Não fosses tu e já não estaria aqui com vida.
Obrigado do fundo do meu coração."
"O meu capitão não tem que me agradecer. Ouvi um barulho e vim ver o que se
passava. Mas se eu tivesse chegado atrasado uns segundos não sei o que
aconteceria. Como foi possível alguém ter tentado atentar contra a sua vida?
Eu não sei não, mas acho que isto está relacionado com a história dos ataques
piratas e desvios de pedras preciosas. Mas sem provas nada podemos fazer,
mas eu se apanho o canalha que ordenou esta acção nem sei o que lhe faça.
Esgano-o com as minhas próprias mãos."
"Calma João, temos que agir com cautela e não podemos tomar acções sem
termos provas. Conseguiram identificar o corpo?"
"O assassino era um nativo, ordenei agora aos homens que o transportassem
até ao forte para ver se alguém o conseguirá identificar. Mandei reforçar a
segurança e vigia aqui no navio para evitar novo ataque. Se eu apanho quem
está por trás disto, ... ".
voltou a falar com João. Tinha um plano para apanhar os bandidos e gostava
de saber a sua opinião.
"João, acho que tenho uma maneira de pararmos com os ataques piratas de
uma vez por todas, mas gostava de saber a tua opinião. Então é assim, os
canalhas que estão por detrás do meu atentado devem ser os mesmos que
controlam as acções piratas. O que eu proponho é ludibriá-los. Vamos usar o
fogo contra o fogo. Eu desço a terra e peço retiro em casa do Pedro Coutinho.
Direi que vocês têm que regressar a Cochim e não podem esperar pela minha
recuperação. Eu regressarei a Cochim posteriormente na embarcação que
transporta as pedras preciosas. Ele não será suficientemente estúpido para
atentar contra a minha pessoa em sua casa e provavelmente aproveitará a
minha viagem de regresso para pôr o fim à minha vida. Mas vocês não irão até
Cochim, ficarão escondidos numa enseada que se encontra a norte daqui e
sairão de lá daqui a duas semanas. Eu farei com que o navio passe por essas
águas e encontro-vos aí nessa zona. Se formos atacados pelos piratas iremos
apanhá-los de surpresa e desmascaremos todo o esquema."
"O plano que o meu capitão me conta é muito arriscado. Pode vir a resultar,
mas a sua vida estará em constante perigo e não sei se isso será boa ideia. Eu
estou aqui para o defender e não para assistir ao seu funeral."
"A minha vida já agora se encontra em perigo, não acabei de ser atacado?
Além disso o sítio mais seguro para me encontrar nos próximos tempos será na
toca do lobo. Ele aí não me atacará de certeza. Manda prepararem uma liteira
para eu me deslocar até casa de Pedro Coutinho. Assim ele pensará que o meu
estado físico ainda é mais grave do que aquele que é na realidade. Se ele
pensar que eu estou debilitado agirá de modo mais impulsivo porque pensa que
o meu fim está próximo."
Martim chega a casa de Pedro Coutinho. "Boa tarde Martim. Como está a
recuperar do ataque? Tem-se sentido melhor? Já apanharam o criminoso que o
tentou assaltar?"
"Mas claro que sim, nem se pensa duas vezes nisso. É preciso que o Martim
recupere a sua forma o mais depressa possível e é uma honra tê-lo em minha
casa como hóspede."
"Martim, é com grande pena que o deixo aqui em Galle, mas não podemos
mesmo estar aqui mais tempo. Vemo-nos então em Cochim. Aqui me despeço
de si e do Pedro Coutinho que vos irá tratar bem, não tenho a mínima dúvida.
Depressa estará recuperado."
"Pode contar comigo. Nós estamos metidos nisto até ao pescoço. Eu próprio
lhe cortarei o pescoço. Desta vez não falharemos."
"Com certeza, dentro de uns três dias estará tudo pronto e será possível seguir
rumo a Cochim. Mas não acha que é arriscado levar uma carga elevada de
pedras preciosas? Se houver um ataque pirata pode significar um duro golpe
nas contas."
"Sendo assim quem sou eu para o contradizer", responde Pedro Coutinho com
um sorriso interior. Isso seria o melhor de dois mundos. Matar Martim e
apoderar-se de carga tão preciosa. Como lhe estava a correr tão bem a vida.
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O Navegante
por Carlos Carvalho
Sobe até bordo da Tágide e apresenta-se à tripulação. "Bom dia, sou o Martim
da Nóbrega e serei o vosso capitão e piloto até Cochim. Espero que a viagem
seja agradável e que bons ventos nos levem ao nosso destino."
Sem que os homens se apercebam, Martim faz uma ligeira alteração na rota,
indo em direcção ao ponto de encontro com a Sargaço. Ao fim de um dia
encontram-se as duas embarcações. Martim dá ordens para que os dois navios
se encostem e a tripulação da Tágide fica meio surpreendida com a manobra.
"Homens tenham calma que a tripulação do outro barco é minha conhecida. Eu
sou o capitão da Sargaço e já que nos encontramos vou só dar uma palavra ao
capitão João da Ribeira que me está a substituir."
"Martim, meu capitão, bons olhos o vejam. Estávamos à sua espera. Já está
recuperado do ataque?"
"Pode deixar capitão, irei pedir ao piloto para manter uma certa distância entre
nós. Iremos passar despercebidos aos olhos de fora."
"Espero mesmo que este plano resulte para desmascarar de uma vez por todas
este esquema de desvio de pedras preciosas. Assim que os piratas comecem a
atacar a Tágide quero que os surpreendas e os ataques com a máxima força.
Assim não terão hipótese."
Mais um dia se passou e nada de sinal dos piratas. Até que, ao pôr do sol se
ouve uma rajada de tiros de canhão. Martim ao ouvir o silvar das balas dá logo
ordem aos homens para se colocarem a postos. Como a maioria da tripulação
tem pouca experiência militar o caos começa a instalar-se a bordo da Tágide.
Martim ordena aos homens para que carreguem os canhões e comecem com
os disparos. Ao fim de uns minutos começa a avistar-se o navio pirata. Era uma
nau bastante veloz e carregada com uns 16 canhões, pelo que se não tivessem
cuidado corriam o risco de se afundarem.
Dá ordens aos homens para que disparem em direcção dos piratas por forma a
evitar que estes tentem aproximar-se demasiado. Havia que ganhar tempo para
que a Sargaço pudesse entrar em acção. Uma salva de tiros atinge a Tágide
com violência. Um dos mastros auxiliares parte-se e o navio começa a perder
velocidade. Martim pensa para consigo se não estará tudo perdido.
Era a Sargaço que finalmente tinha entrado em acção. Como os piratas não
estavam a contar com ela, tinham um dos lados do navio completamente
desprotegidos e só se aperceberam da sua presença quando foram atingidos.
se preocupem que até lá irão sofrer muito e pedirem que ela venha o mais
depressa possível se não falarem e disserem qual é o vosso chefe."
"João, não posso tolerar que sejas tão violento para com os prisioneiros. O
homem devia estar a falar a verdade e não percebia português. Não me leves a
mal mas quero ser eu a conduzir o interrogatório por ora. Pedirei a ajuda de um
intérprete que fale sinhala."
"Meu capitão, quando se faz um interrogatório temos que semear o medo. Com
o medo as pessoas falam tudo o que sabem."
"João, podes estar certo, não digo que não, mas o homem podia estar a falar a
verdade e não perceber o que estavas a dizer. Deixa-me interrogá-los com um
intérprete. Se não resultar iremos utilizar então os teus métodos, mas só como
solução de último recurso."
Martim pede a um dos marinheiros que falava português e sinhala que traduza
aquilo que ele diz. Pega num dos prisioneiros e pede ao marinheiro para
traduzir. "Quero saber uma informação. Diz-me qual é o teu chefe e se disseres
a verdade prometo que não serás condenado à morte. Intercederei a teu favor e
dos teus companheiros e sereis apenas obrigados a fazer trabalhos forçados."
Martim grita para a tripulação e diz. Agarrem nesse homem que esse é o chefe
deles. Tragam-mo até mim. Arrastado até Martim, o pirata assim que o vê fala
em português. "Vejo que recuperaste bem do ataque que sofreste. Pena o teu
pescoço ainda se encontrar intacto. Se o meu assassino tivesse feito as coisas
como devia ..."
"Espera João. Não vês que é isso que ele quer? Que a gente o mate para que
ele não conte nada? Não vamos entrar no jogo dele. Deixa estar que eu trato
disto. Ele não tem motivos para rir. Quero ver a cara dele quando sentir a corda
da forca apertar o seu pescoço."
Martim levanta o prisioneiro e pede para o levarem até à cabina pois queria
falar com ele num sítio mais privado. O prisioneiro é então transportado para a
cabina do capitão ficando João da Ribeira a guardá-lo com mais dois homens e
Martim.
"Aqui estamos mais à vontade para conversar. Queres beber água? Deves
estar com sede", pergunta Martim.
"De vós não quero nada. Não falo com escumalha." Nisto João da Ribeira
prepara-se para bater de novo no prisioneiro. "João, pára. Não lhe respondas.
Bates só quando eu mandar."
"Se tu não queres água assim seja, tu é que sabes. Como sabes com as provas
que temos de ti não te livrarás da forca, que é a pena para actos de pirataria.
Mas quando fores enforcado quem se irá rir de ti não sou eu, mas o teu
cúmplice por tu estares condenado e ele solto. Ele ficará com as jóias todas
que tu roubaste ao longo de todos estes ataques, rir-se-á de ti e agradecerá por
teres sido apanhado. Isto claro se não colaborares connosco. Se me disseres
quem é o teu cúmplice já não terás ninguém a rir-se de ti. Mas é claro a decisão
é sempre tua. Tu é que decides se queres ver o teu cúmplice rir-se no dia em
que fores enforcado em Galle. Ficará a viver o resto da vida dos rubis e safiras
roubados enquanto tu a arder no inferno. Um nome, quero só um nome."
"Eu não tenho nada a dizer. Não tenho cúmplices e não tenho medo de
morrer.", responde o pirata.
"Pois bem, serás enforcado em Galle. Vou dar ordens aos homens para
partirmos em direcção a Galle. Dentro de três dias chegaremos."
"Martim, vais deixar este miserável assim sem falar? Eu posso tirar qualquer
confissão da sua boca. É só estar com ele umas horas que ele contará tudo."
diz João da Ribeira.
"Não João. Não o iremos torturar fisicamente. Se ele não quer falar deixá-lo.
Garanto-te que quando chegarmos a Galle ele confessará tudo. Por ora não te
posso contar mais, mas confia em mim."
Martim leva os prisioneiros até ao forte de Galle. Pede para falar com o
comandante. Entrega-lhe pessoalmente os prisioneiros. Este radiante agradece
a Martim por ter desmantelado a rede de piratas. Agora as águas por Ceilão
estariam livres de perigo.
No dia seguinte à detenção em Galle, o chefe dos piratas tem uma visita
inesperada. Martim vai ter com ele e pede para falar com ele a sós numa sala.
"Como vês não foi necessário confessares nada. Consegui apanhar o teu
cúmplice, Pedro Coutinho. Encontramos em casa dele uma enorme quantidade
de pedras preciosas e ele confessou tudo. Disse que tu eras o chefe da
quadrilha e que o obrigaste a entrar no esquema senão tu matá-lo-ias e à sua
família. Como ele confessou tudo irá cumprir uma pena de trabalhos forçados e
tu serás enforcado. Ele ficará a rir-se de ti quando te vir na forca. Se tivesses
confessado na altura nada disto teria acontecido."
"Não, não oiçam o que o Pedro Coutinho diz. Ele é que era o chefe. Ele
contactou-me há uns anos para atacar os navios e dividir os despojos com ele.
Ele dava-me sempre informação dos navios, carga, tripulação. Eu atacava os
navios, roubava a carga e repartia os lucros com ele. Não posso ser só eu a
pagar pelos crimes. Ele é tão ou mais culpado e deve ser enforcado como eu.
Isso não pode ficar assim."
"Muito obrigado. Acabaste de confessar tudo e era o que eu queria ouvir. Atrás
da porta estavam os guardas a ouvir a tua confissão. Eu não tinha prova
nenhuma contra o Pedro Coutinho, apenas suspeitas, mas tu agora deste-me o
que faltava."
O pirata fica a olhar para Martim com ar de furioso. Tinha acabado de ser
apanhado numa ratoeira e sem querer acabado por confessar tudo.
que voltar para Cochim. Com a rede desmantelada está o nosso trabalho por
aqui terminado."
Com o caso resolvido Martim volta para Cochim na Sargaço, levando consigo
as pedras preciosas.
"Boa tarde Martim. Bons ares te vejam. Como correu a viagem até Malaca e
Galle?"
"Ora viva Giovanni. Digamos que correu bem apesar de terem existido alguns
problemas, mas acabou por correr tudo bem.
Os negócios em Malaca vão melhorar substancialmente depois desta viagem.
Descobri que o capataz que lá se encontra, Rodrigo da Pereira tinha uns
problemas pessoais e não se estava a concentrar nos negócios como devia,
mas a partir de agora as coisas voltarão a funcionar normalmente.
Quanto à feitoria em Galle desmascarei uma rede de pirataria entre o capataz,
Pedro Coutinho e uns piratas. Ele dava-lhes indicações da partida dos navios,
conteúdo da carga, tripulação, destino e estes atacavam saqueando os
mesmos.
Cheguei a ser atacado por eles durante a noite, mas posso agradecer ao João
da Ribeira por ainda cá andar neste mundo. Ele salvou-me da morte certa,
tendo morto um dos piratas quando este se preparava para me cortar a
garganta.
Com a rede desmantelada e a quadrilha presa será necessário indicar outra
pessoa de confiança para gerir os negócios.
Na viagem de regresso consegui trazer uma quantidade considerável de rubis e
safiras pelo que dará para recuperar de alguma parte das perdas."
"Sim, encontro-me bem. Agora que isto já passou até posso dizer que o ataque
foi providencial. Permitiu enganar os piratas, pois inventei uma história que não
estava em condições de viajar e a Sargaço tinha que voltar a Cochim o mais
depressa possível. Assim, fiquei por casa do Pedro Coutinho, viajando depois
num dos barcos de transporte de mercadorias. Os piratas tentaram saqueá-lo
mas não sabiam era que a Sargaço andava por perto. Conseguimos assim
capturá-los e acabar com a rede de malfeitores."
O coração de Martim nesse momento volta a palpitar com mais força. Uma
enorme ânsia invade o seu corpo. Como gostava de estar com os seus
companheiros e libertá-los. Para os ajudar tinha que juntar a maior quantidade
de dinheiro possível para pagar o seu resgate. Mal podia esperar pelo dia em
que voltaria a ver as suas faces de novo, podendo falar com eles.
Martim aproveita os dias passados em Cochim para pescar. Era uma maneira
que tinha para passar o tempo, descontraindo-se e procurando abstrair-se das
suas angústias.
Nunca Martim se sentira tão motivado para uma missão. Estava expectante
para entrar a bordo do barco que o levaria até terras do sol nascente e traria a
liberdade para os seus companheiros.
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O Navegante
por Carlos Carvalho
A viagem até Malaca ocorre sem problemas de maior. Fazem por lá uma escala
de reabastecimento. Martim aproveita para se reencontrar com Rodrigo da
Pereira e verificar como andavam os negócios.
Rodrigo da Pereira recebe Martim e João da Ribeira em sua casa e agradece
uma vez mais por lhe ter salvo a vida.
De acordo com as suas indicações, Giovanni estava a ganhar cada vez mais
dinheiro por aquelas paragens. O facto de Rodrigo se ter aplicado nos negócios
e largado a vida viciosa que levava fez com que as actividades comerciais no
comércio da pimenta, canela e gengibre tivessem prosperado.
Sem tempo para pensar, Martim resolve ir em direcção dos dois navios. Ao
aproximarem-se vêem que eram duas embarcações chinesas, pertencendo o
navio atacado à frota imperial de acordo com as bandeiras que ostentava.
"Mas Martim, porque iremos meter-nos no assunto entre dois navios que não
são nossos conhecidos?"
mais depressa possível, acabando por se perder de vista nuns ilhéus que por ali
se encontravam próximos.
"Não lhe sei dizer. Ainda ninguém desceu do navio. Acabei de enviar um
emissário para oferecer os nossos serviços de acolhimento e auxílio nas
reparações. O nosso comandante convidou o capitão do navio da frota imperial
e gostava de contar também com a vossa presença."
"Pode dizer ao seu comandante que irei ao jantar com todo o gosto."
"Muito boa noite, chamo-me José Vasconcelos e sou o comandante das forças
portuguesas em Macau. Soube do grande feito efectuado por você hoje de
manhã. Ajudou a cimentar as relações com o império chinês. É com grande
honra que o recebo em minha casa."
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O Navegante
por Carlos Carvalho
"Isso diz o Martim, mas garanto-lhe que devem contar-se pelos dedos da minha
mão o número de homens que fariam tal acto heróico."
Martim sentia o seu coração bater de forma intensa e suas pernas trémulas. Já
tinha visto mulheres bonitas em sua vida, mas nunca uma lhe tinha provocado
este efeito. Que mulher era aquela que Martim acabara de conhecer que era
capaz de o deixar desorientado.
Durante o jantar, Martim fala das suas viagens a José de Vasconcelos e aos
convidados chineses, mas sempre que pode lança olhares sobre Nia Zhing.
Sua face era como um magneto. Não conseguia desviar seus olhos dela.
Fica a saber que efectuadas as reparações o navio imperial rumaria até terras
de Cantão para a feira internacional. Martim vê aí a sua oportunidade de poder
voltar a ver Nia Zhing. Pergunta ao capitão da frota se as inscrições para a feira
ainda se encontravam abertas, pois estava interessado em viajar até lá em
negócios. Este responde que não mas visto Martim os ter salvo do ataque
abririam uma excepção podendo Martim navegar até Cantão.
Martim não cabe em si de contente. Teria oportunidade para ver Nia Zhing de
novo. Terminado o jantar, uma das damas de companhia dirige-se junto a
Martim e entrega-lhe um lenço de seda. Martim coloca sorrateiramente o lenço
dentro do seu casaco sem que ninguém se aperceba.
Durante a noite Martim não consegue pregar olho. Vira-se para um lado, para o
outro mas do seu pensamento não sai a imagem de Nia Zhing. Sem se
aperceber acabara de se apaixonar.
"Relativamente às cotas vou ver o que posso fazer. Não sei se já lhe chegou
aos ouvidos mas ontem salvamos um navio da frota imperial do ataque de
piratas. Consegui salva-conduto até à feira de Cantão e aproveitarei para
negociar o aumento de cotas. Gostava que o António Nogueira viajasse
connosco. Como sabe ler e escrever chinês e falar cantonense será uma
grande ajuda para nós."
"Mas claro que sim, terei todo o prazer de vos acompanhar até Cantão. Quando
é que é a partida por forma a que prepare as coisas?"
"A feira começa daqui a duas semanas pelo que partiremos na próxima
semana. Iremos tentar trazer a maior quantidade possível de sedas. Vamos ver
se conseguiremos aumentar a nossa quota."
Passado uma semana, a Sargaço ruma até Cantão. Levam cerca de um dia até
chegarem à cidade. Subindo o rio das Pérolas em direcção a Nordeste,
chegavam a Cantão. A distância percorrida era de cerca 87 milhas.
A cidade de Cantão era bastante dinâmica, sendo das poucas cidades da China
onde era autorizada a presença de estrangeiros mas apenas em determinadas
alturas do ano para negociarem. As ruas encontravam-se cheias de lojas que
vendiam os mais variados tipos de produtos : as mais puras e finas sedas, as
porcelanas mais delicadas, os chás mais aromáticos que se possa imaginar,
pinturas em seda, esculturas em jade e marfim.
Martim nunca tinha visto tão grande variedade de produtos na sua vida. Fica
assombrado ao ver a quantidade e variedade de opções que tem pela frente.
Com a ajuda de António Nogueira começam a consultar os preços da seda.
Ainda não começaria as compras, pois primeiro queria ver se conseguia
aumentar a quota de importação, mas queria conhecer o que havia de oferta.
Junto com o lenço segue um bilhete, que Martim pede a António Nogueira para
lho escrever - "em troca do meu coração recebi o mais puro e belo lenço. Este
não é igual ao que recebi, mas ao tocar-lhe veio-me à cabeça a sua imagem.
Do seu admirador, Martim da Nóbrega".
António Nogueira ao escrever, vira-se para Martim: "O Martim desculpe falar
consigo desta maneira, mas não acha ousado demais enviar este bilhete e
presente à filha do mandarim?"
"António, eu sei que é ousado, mas desde o momento que vi aquela mulher não
a consigo tirar da minha cabeça. Isto nunca me aconteceu antes, mas desde
esse momento que ando desorientado. Não a consigo tirar da cabeça. Seus
olhos de amêndoa, boca de avelã, ..."
"O que o Martim tem sei eu muito bem. Está apaixonado, essa é que é essa.
Mas tinha logo que escolher a filha do mandarim? Valha-nos Deus que ainda
iremos ter problemas à conta deste amor. Bem sei que no amor não
escolhemos aqueles que queremos amar, é algo que acontece, mas tinha logo
que ser a filha do mandarim?"
"Eu sei que é uma loucura aquilo que eu sinto, mas não posso fugir aos meus
sentimentos. Nunca senti algo tão profundo na vida por uma mulher. Desde que
a vi que ela passou a ser importante para mim. Antes via uma seara e cada vez
que olhava para ela não conseguia distinguir as espigas. Mas desde aquele
olhar, aquele momento passei a conhecer uma espiga diferente das outras.
Saiu do anonimato e ganhou vida. Agora quando olho na planície para a
mesma seara vejo uma espiga no meio das outras anónimas. Esta ao contrário
das outras tem um nome, um rosto, um perfume."
Feito o passeio pela cidade, os homens dirigem-se de volta à Sargaço. Por ali
pernoitariam e amanhã iriam tentar falar com as autoridades chinesas por forma
a tentarem obter o aumento de quota de seda.
João da Ribeira olha para o mesmo e não sabendo ler o que lá estava escrito
chama António Nogueira para ler o mesmo. Este pega no envelope, abre-o
cuidadosamente para não o danificar e começa a ler para si. "Tenho que falar
com Martim relativamente a esta mensagem", diz ele a João da Ribeira,
deslocando-se em direcção à cabina do capitão.
"Martim, tenho aqui uma mensagem de Nia Zhing. Ela agradece o lenço e
convida-nos para irmos a um jantar no palácio. Quer agradecer o facto de ter
sido salva do ataque dos piratas."
"Óptimas notícias. Vou poder estar de novo com ela. Nem sabes a alegria que
acabas de me dar, as palavras que acabaste de me dizer soaram melhor que
um recital de música. Agora vamos trabalhar, que não me esqueci daquilo que
aqui nos trouxe, aumentar as quotas de importação de seda e adquirir a
mesma."
"Ora, isso é algo que se pode arranjar. Como sinal de agradecimento por nos
terem salvo do ataque pirata intercederei no vosso pedido. Afinal de contas, o
Martim salvou-me a vida e nada que eu possa fazer pagará essa dívida."
"Não existe nenhuma dívida, aquilo que eu fiz qualquer um faria na mesma
situação. Quando se vê alguém em apuros deve tentar-se socorrer o mesmo."
"Seja como for, eu faço questão de interceder no pedido, senão levo a mal. É a
minha forma de agradecer a sua generosidade", diz o capitão chinês.
"Muito boa noite aos meus convidados." Martim e os outros dois homens ficam
estupefactos. Tinham ouvido sair Nia Zhing falar com eles em português.
Estariam eles a ouvir bem, ou estariam a ficar loucos?
"A menina fala português?", pergunta Martim. "Eu estarei a ouvir mal ou acabei
de a ouvir falar em português?"
"Sim, sei falar português. Vou explicar como aprendi. Quando era criança um
padre jesuíta subiu o rio das Pérolas e apresentou-se ao mandarim de Heong
San, meu pai. Queria pedir-lhe autorização para evangelizar por estas terras.
Meu pai acedeu com a condição de que educasse as suas filhas. A partir daí
comecei a aprender português."
"Convidei-os para virem até ao palácio porque queria agradecer por me terem
salvo a vida do ataque dos piratas. Se não tivessem aparecido naquela altura
não sei o que teria acontecido. O mais certo era já não estar neste mundo."
Durante o jantar, Nia Zhing pede a Martim para este lhe contar as suas
aventuras. Ele conta-lhe um resumo de sua vida. A vontade que tinha de viajar
e conhecer o Oriente desde miúdo, a saída de Lisboa rumo a Goa, o cativeiro
em Calecute, o início dos trabalhos com Giovanni. À medida que Martim fala de
sua vida, Nia Zhing mexe incessantemente nos seus longos cabelos,
enrolando-os num dos dedos em sinal de grande interesse.
"Vou contar-te uma coisa relacionada com a lua que não sei se conheces. A lua
é uma mentirosa. Quando está a crescer, tem a forma de um D e quando se
encontra em minguante de um C. Agora está com um D pelo que está a
crescer. Apesar de mentirosa, é minha amiga juntamente com as estrelas.
Muitas noites passei em que ficava horas e horas a olhar para os céus e ver as
estrelas bailar em redor da estrela Polar que nos indica o norte."
Nia Zhing vira-se em direcção a Martim e este beija-a intensamente. Nia Zhing,
agarra-se a Martim e diz-lhe "Quem me dera ficar abraçada a ti para sempre.
Sinto-me segura nos teus braços, sinto que nada de mal me acontecerá."
"Nia, gostava de te levar comigo mas ainda não posso. Tenho os meus amigos
aprisionados em Calecute e jurei que os libertaria. Enquanto eles não estiverem
em liberdade não posso fugir contigo. De certeza que seríamos perseguidos
pelo mandarim e este não descansaria enquanto não nos separasse."
"Se é assim, esquece o espaço e o tempo e beija-me", diz Nia Zhing. Os dois
amantes entrelaçam-se por baixo das cerejeiras fundindo-se com o perfume de
suas flores e pétalas que caíam sobre o vento. Ao fim de algum tempo Martim
diz a Nia Zhing que teria que se ir embora, senão os seus companheiros ou os
soldados poderiam desconfiar de alguma coisa. Beija-a uma vez mais e diz que
voltará ao seu encontro assim que libertar os seus amigos.
Nia Zhing, solta os seus cabelos e entrega uma pulseira em jade a Martim.
Toma, quero que leves esta pulseira. Cada vez que sentires a minha falta olha
para ela e pensa em mim. Martim beija-a pela última vez e dirigem-se de volta
ao palácio. Só pensa no momento em que libertaria os seus amigos e
companheiros para que pudesse voltar e levar Nia Zhing consigo. Estava
determinado a fazer todos os sacrifícios, até mesmo arriscar a perder a vida
para estar com ela.
"João, obrigado pelo conselho, mas eu não consigo viver sem ela. É difícil
explicar o que sinto, mas quando estou com ela, as estrelas iluminam com mais
intensidade, as flores perfumam o ar, o tempo pára. É como se o mundo fosse
só eu e ela. Mas não te preocupes que posso estar apaixonado mas não estou
louco mentalmente. Sei que tenho a cumprir a missão de salvar os meus
companheiros. Só colocarei a minha vida em cheque no momento em que eles
estiverem livres. Até aí não cometerei loucuras que coloquem em risco a vida
dos outros."
Dois dias depois, Martim recebe uma carta do serviço de alfândegas. O pedido
de aumento de quotas de importação de seda tinha sido aprovado. António
Nogueira sente-se radiante, aquilo porque lutara durante bastante tempo tinha
sido conseguido. Não estaria alheio ao facto a interferência por parte do capitão
da frota imperial que tinha sido auxiliado por Martim. Com o aumento da quota
poderia expandir os seus negócios em Macau, exportando mais seda para
Nagasáqui e com isso importar a mais pura prata dessas mesmas terras.
"Giovanni irá ficar bastante satisfeito quando souber desta grande realização.
Poderá ver aumentar os seus lucros no comércio da seda e da prata, vendo
assim recompensados os seus esforços e investimentos", diz Martim.
Sem que se aperceba, sente umas mãos macias a taparem seus olhos e um
riso. Com suavidade retira as mãos que o cobriam e vira-se para trás. Era Nia
Zhing. Ao vê-lo ela ri-se uma vez mais para ele. Instintivamente, Martim lança-
se sobre os seus braços e beija-a.
"Nia nem sabes a felicidade que tenho em te ver, sentir e tocar. Tenho uma
coisa para te dizer. Infelizmente estou de partida, tenho a Sargaço carregada
de seda que irei levar até Macau e posteriormente até Nagasáqui. Em seguida
voltarei até Cochim e tentarei resgatar os meus companheiros que se
encontram presos em Calecute. Prometo-te que assim que eles se encontrem
livres virei ter contigo. Não me consigo imaginar viver sem ti. Agora sei que o
chamamento que tinha desde miúdo para viajar até Oriente não era por causa
das especiarias, da prata, do ouro, da fama. Não, era por ti, tu é que me
chamavas ao teu encontro."
Ao cair da noite, despedem-se. Martim abraça Nia Zhing por uma última vez e
despedem-se. Tinha ganho força e coragem para sair de Cantão e cumprir a
promessa de resgatar os seus companheiros.
"Bom dia, chamo-me Mário Antão e sou o responsável aqui pela loja de
Giovanni. Bons ventos vos tragam. Fizeram boa viagem, de Macau?"
"Sim, claro. Faço questão de vos convidar hoje à noite para jantarem em minha
casa. Agora vamos em direcção ao porto para efectuar a descarga da
mercadoria." Mário Antão manda um criado avisar em sua casa que hoje iria ter
visitas vindas de Portugal, tendo pedido para prepararem algo de especial.
entrada da casa de Mário Antão. Era uma casa grande, encontrando-se situada
no fundo de uma colina.
"O Martim disse alguma coisa?", pergunta Mário Antão que tinha acabado de
ouvir Martim balbuciar. "Não, desculpe, estava a pensar alto. Não é nada."
"Esta é a minha mulher, Tonoko Antão. Por amor a ela renunciei ao sacerdócio
e passei a viver a vida de um comum leigo."
Ela abre a porta da casa e leva-os até à sala onde se encontrava uma mesa no
centro. Mário Antão dá sinal aos convidados para se sentarem e começa a
servir-lhes um chá. Martim e João da Ribeira agradecem e começam a beber
com Mário Antão.
"Isso de facto são mesmo muito boas notícias", diz Mário Antão enquanto volta
a servir chá aos seus convidados. "Eu na loja tenho sempre uma grande
procura de sedas e se mais tivesse mais venderia. Com as notícias que acaba
de me dar será possível aumentar as vendas e os lucros."
Enquanto conversam, a esposa de Mário Antão traz então o jantar. Era arroz
cozido e como pratos principais sashimi de atum e teriyaki de pargo (pargo
grelhado). A acompanhar o jantar Mário Antão serve-lhes vinho de arroz.
"A acompanhar o jantar têm este vinho de arroz, não é o mesmo que o vinho de
uva a que estão habituados mas também é bom. É um pouco forte pelo que
convém terem um pouco de cuidado ao beberem o mesmo."
Martim prova o vinho. De facto tinha um trago forte mas acompanhado com o
peixe e os molhos de sashimi e wasabi ficava uma combinação perfeita.
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O Navegante
por Carlos Carvalho
Na manhã seguinte Martim decide passear por Nagasáqui. Caminha pelas ruas
sem destino até que vê num topo de um monte um grande edifício. Resolve
caminhar até lá. Ao fim de uma hora chega ao sopé do monte, onde se
encontra um templo budista. Ao lado do templo encontra uma estátua dedicada
a Buda. Resolve entrar no templo. Uma sensação de paz começa a invadir o
seu espírito. Apesar de ser católico, respeitava as outras religiões e a paz que
ali se fazia sentir faz com que sua mente comece a vaguear.
Vê-se ao lado de Nia Zhing, caminhando a seu lado num jardim de cerejeiras
em flor com as mais variadas cores, do branco ao rosa. Toca em Nia Zhing e
beija-a. No momento em que a beija, acorda e apercebe-se que se encontra
dentro do templo. Pensa para consigo como estará Nia Zhing, será que ela se
encontrava bem, teria tantas saudades dele como ele tinha dela? Olha para a
pulseira que ela lhe oferecera. Ao pegar nela, sente-se mais confiante de si, é
como se ela se encontrasse junto a si. Se fechasse os seus olhos quase
conseguia ouvir sua voz sussurrar em seu ouvido, "Nia, não te preocupes que
eu voltarei para ti", diz Martim.
Com a venda das últimas peças de seda e os cofres cheios de prata como
resultado da venda, Martim decide partir para Cochim com parte do dinheiro.
Os negócios encontravam-se bem entregues nas mãos de Mário Antão, que
encetava todos os esforços para aumentar a influência de Giovanni por aquelas
paragens.
Martim despede-se de Mário Antão deixando uma carta em sua posse. Era uma
carta dirigida a Nia Zhing contando o seu regresso a Cochim. A mesma seria
enviada para Cantão assim que partisse um barco com destino a Macau.
Numa bela tarde de domingo, a Sargaço atraca em Malaca dois meses e meio
após ter saído de Nagasáqui. Martim apressa-se a descer do navio e caminha
em direcção da casa de Rodrigo da Pereira. Bate à porta e passado pouco
tempo é atendido pelo seu criado. Este ao ver Martim, apressa-se a recebê-lo
encaminhando-o para a sala e corre a chamar Rodrigo da Pereira.
"Martim, bons olhos te vejam, mas que surpresa agradável. O que te traz por
cá? Da última vez que nos vimos ias salvo erro em direcção a Macau. Correu
tudo bem por essas paragens?"
"Ora viva Rodrigo, de facto já há uns bons meses que não nos viam. Acabo de
chegar vindo de Nagasáqui. Estive de visita à feitoria de lá e dirijo-me para
Cochim. Como me encontrava a navegar por perto decidi atracar para
reabastecer, já que me encontro no meio da viagem e queria ver que tal estão
as coisas por aqui."
"Os negócios têm corrido muito bem, desde que estiveste daqui da última vez
consegui aumentar as vendas de pimenta e consegui fazer negócio com um
dos maiores produtores aqui da região a preços bastante favoráveis. Mas
vamos aproveitar o jantar para falarmos melhor, porque és desde já meu
convidado."
Durante o jantar, Martim conta as suas aventuras por terras de Macau, Cantão
e Nagasáqui, relatando o encontro com o navio pirata que estava a atacar uma
embarcação da frota imperial, a sua viagem até Cantão onde conseguiu
aumentar as quotas de importação de seda e a visita a Nagasáqui.
"Martim, como estás? Que tal correu a viagem? Acredito que estejas cansado,
por isso convido-te para ires descansar em minha casa e quando estiveres
recuperado falaremos das tuas aventuras."
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O Navegante
por Carlos Carvalho
"A viagem correu bem obrigado e aceito com todo o gosto o convite, pois acho
que estou mesmo a precisar de umas horas de descanso."
Relativamente aos negócios tenho que dar-te apenas boas notícias, pois
consegui aumentar as quotas de importação de sedas em Cantão e desse
modo trazer mais prata de Nagasáqui como resultado do comércio triangular.
Como resultado dessas trocas tive a oportunidade de trazer a Sargaço cheia de
prata trazida de Nagasáqui mas não te preocupes que com o aumento das
quotas a mesma vai continuar a fluir em grande escala. Posso dizer-te que só
boas coisas aconteceram nesta viagem.
Quero fazer-te uma confissão. Foi nesta viagem que o meu coração ficou com
uma dona. Conheci a mulher que me faz sentir completo, que me faz rir quando
não faz sol, rir quando estou triste. Seu nome é Nia Zhing. Não sei se acreditas
no destino, eu não acreditava até há uns tempos atrás mas agora posso dizer-
te que sim, acredito. Desde miúdo que sentia uma atracção por estas terras,
mas no momento em que a vi é que entendi que o chamamento que eu sentia
era em direcção a ela, o seu chamamento é que me trouxe a estas paragens.
"Martim, fico contente por ti, estou a ver que realmente estás apaixonado por
essa mulher e se estás feliz estou feliz por ti. Como sabes fiz-te a promessa de
que se me auxiliasses nos negócios e fosses triunfante eu faria todos os
possíveis para te ajudar a libertar os teus companheiros. Conseguiste dar uma
volta aos meus negócios em Galle, em Malaca, aumentar as quotas de
importação de seda em Macau, aumentar o afluxo de prata de Nagasáqui.
Superaste bastante as minhas expectativas, tenho que confessar. Sempre
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pensei que triunfarias mas nunca em tão grande escala e num tão curto espaço
de tempo. Em menos de dois anos consegui ver os meus negócios
transformarem-se e crescerem. Ajudaste-me e agora é a minha vez de te
ajudar. Eu pagarei do meu bolso o resgate dos teus companheiros, é o mínimo
que poso fazer. Dei-te a minha palavra e é com toda a honra que a cumprirei."
Após três semanas em Cochim, Giovanni dá então ordens a Martim para rumar
em direcção a Calecute na Sargaço e tratar do resgate dos seus homens.
"Martim, é chegada a hora de cumprir a minha promessa, autorizo-te a
navegares com a Sargaço até Calecute e trazeres os teus companheiros em
liberdade. Assim que achares que estás pronto e o navio aparelhado podes
seguir viagem."
"Giovanni eu nem sei como te agradecer, nem sabes o peso que se me levanta
da consciência, todos os dias, todas as noites penso neles aprisionados. O que
me choca ainda mais é o facto de as autoridades portuguesas não se dignarem
em lutar pela sua libertação, aqueles homens foram aprisionados quando
lutavam em nome do reino, mas infelizmente são como se diz raia miúda, não
contando para nada. Irei dar ordens de imediato para que aparelhem a
Sargaço. Dentro de uns cinco dias estarei pronto a partir em direcção a
Calecute e lutar pelo resgate de todos os cativos. Uma vez mais obrigado."
"Chamo-me Martim da Nóbrega e estou aqui para me encontrar com seu amo,
Abd al-Ramaan."
"Um momento que eu vou ver se o meu amo se encontra por casa."
Ao fim de uns minutos surge Abd al-Ramaan que se encaminha até Martim.
"Martim, que surpresa agradável, não estava a contar ver-te. Então o que
contas e o que te traz por cá? Vens para saber novidades dos teus
companheiros? Eles ainda se encontram sobre o cativeiro, de tempos a tempos
passo por lá para ver como estão e envio fruta para a prisão por forma a que se
alimentem melhor."
"Abd al-Ramaan, estou aqui para cumprir a promessa que fiz a mim e a eles
quando estive cá da última vez. Giovanni Umani auxiliou-me e venho pagar o
resgate para a sua libertação."
"Não sabes o quão contente fico por ti e por eles, eu sabia que tu não te irias
esquecer deles. Realmente tu és um homem da tua palavra. És meu convidado
para jantares aqui em minha casa, quero que me contes as tuas aventuras.
Amanhã irei contigo para falarmos com o capitão da prisão e começaremos a
tratar do resgate."
Durante o jantar os dois amigos voltam a falar, já há uns anos que não se viam
e queriam saber o que se passara a cada um deles desde então.
"Abd al-Ramaan, o que tens feito desde que te vi da última vez? Continuas a
trabalhar para a frota turca?"
"Não, os meus tempos de luta acabaram, ao fim de tantas lutas comecei a ficar
farto e decidi assentar. Deixei de sentir verdadeiramente uma causa por que
lutar, a última vez que o fiz foi no encontro em que tu acabaste aprisionado com
os teus companheiros. Não me consegui refazer desde essa altura, larguei as
armas e passei a dedicar-me ao comércio. Posso dizer-te que não estou nada
arrependido, antes pelo contrário. Transportar mercadorias é muito mais
reconfortante que andar a tirar vidas a pessoas que morrem muitas vezes sem
causas concretas, matando por conveniência de causas obscuras e muitas
vezes desconhecidas. Então e tu? O que tens andado a fazer?"
"Como sabes quem tratou do meu resgate e libertação foi Giovanni Umani.
Desde o momento que fui libertado comecei a trabalhar para ele e a ajudá-lo
nos seus negócios. Em virtude disso vi-me viajar pelas mais variadas paragens,
Galle, Malaca, Macau, Cantão, Nagasáqui. Posso dizer-te que ter aceite o seu
convite foi a melhor coisa que fiz.
"Martim fico bastante contente por ti, por ver que encontraste uma mulher que
te complementa, mas dizes-me tu que ela é filha de um mandarim? Não estás a
ser doido? Imagino que o pai dela não consinta a relação entre ambos. Bem sei
que o amor não escolhe pessoas nem momentos, mas algo me diz que vais ter
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problemas com o teu amor, mas olha tudo o que eu possa fazer para te ajudar
diz-me. Sou teu amigo e quero ajudar-te a encontrares a felicidade, se é com
Nia Zhing que a tens pois assim seja, fazes muito bem em lutar por ela, mas
digo-te que não vai ser fácil para ti e para ela, vocês têm que ter um amor muito
forte para conseguirem combater todas as adversidades."
"Bem sei que o meu amor por ela é um amor complicado, mas como tu próprio
disseste o amor não escolhe pessoas e momentos, é algo que acontece e
quando tal se dá temos que lutar por ele e é o que faço e farei. Sinto
verdadeiramente que ela é a razão pela qual eu aqui me encontro. Desde
miúdo que sentia uma atracção pelo Oriente, mas a partir do momento em que
a vi, compreendi então que a origem de tal atracção era ela. Era sua voz quem
me chegava pelo sol e pelo vento a Lisboa e me fez embarcar e navegar em
seu encontro."
"Assim seja Martim, eu também sou um homem que acredita no destino e estou
aqui para te auxiliar. Tudo aquilo que eu puder fazer para te ajudar a estar com
ele farei. Amanhã sem falta irei contigo tratar da libertação dos teus
companheiros. Agora vamos dormir que se faz tarde."
"Um momento que eu vou ver se o mesmo o pode receber". Ao fim de uns
quinze minutos aparece de novo o soldado indicando-lhes o caminho para o
gabinete do capitão. Teriam que subir umas escadas até ao seu gabinete
porque o mesmo se encontrava no topo do exercício. À medida que Martim
sobe as escadas perde a conta do número de lanços que tem que efectuar até
chegar ao topo. Encontrava-se tão concentrado na sua missão que caminho
mecanicamente e acaba quase por tropeçar quando chega ao topo, tentando
subir mais um lance que não existe.
"Está tudo bem Abd al-Ramaan, eu é que ia meio distraído e nem dei conta que
os lances de escada tinham terminado." Nisto os dois homens riem-se e o
soldado fica a olhar para eles com ar de perdido por não compreender o motivo
para os risos.
Batem à porta do capitão e este diz para entrar. O mesmo ao ver Abd al-
Ramaan a chegar com Martim levanta-se e dirige-se para os mesmos.
"Bom dia, Abd al-Ramaan estou a ver que trazes contigo um antigo prisioneiro.
Será que ele tem tantas saudades da prisão que quer voltar a viver na mesma?
Ahahahahah! "
Abd al Ramaan olha para o capitão e responde-lhe rispidamente. "Bom dia, isto
não são maneiras de tratar as visitas. Encontro-me aqui com o Martim da
Nóbrega porque queremos falar consigo relativamente aos prisioneiros
portugueses. Estamos aqui para pagar o resgate dos mesmos e tratar da sua
libertação."
"Então quer dizer que finalmente os portugueses resolveram pagar pelo resgate
dos mesmos. Já não era sem tempo, eles andam aqui a ocupar o espaço da
prisão há muito tempo. E onde estão as autoridades portuguesas, posso saber?
Tiveram vergonha de aparecer?"
"O resgate não será pago pelas autoridades portuguesas, será pago pelo
Martim com o patrocínio de Giovanni Umani, a mesma pessoa que tratou da
libertação dele", responde Abd al-Ramaan.
"Bem que ele era louco já eu sabia, mas tratar do pagamento do resgate de uns
miseráveis marinheiros? Mas pronto, o dinheiro é dele e do italiano, podem
fazer com ele o que muito bem entenderem. O que nós queremos é mesmo
receber o resgate a que temos direito. Vocês têm convosco o dinheiro para
pagar o resgate?"
"Não o trazemos por ora connosco porque queríamos falar primeiro consigo,
mas não se preocupe que o mesmo será entregue hoje mesmo. O Martim
gostava de visitar os seus companheiros, será o mesmo possível?"
"Pois bem, então tragam o dinheiro do resgate, pois sem ele não poderão
resgatar os aprisionados, vocês pensam que eu sou doido? Sem o dinheiro não
há visitas nem libertação."
Voltando de volta à prisão, já com as moedas de ouro voltam uma vez mais
para falar com o capitão.
"Vocês voltaram depressa, imagino que com o dinheiro do resgate." Nisto Abd
al-Ramaan pega no saco com as moedas e atira-o em direcção ao capitão.
"Aí está o dinheiro e esteja à vontade para o contar mas verá que está aí tudo.
Agora queremos ver os homens e tratar da libertação dos mesmos."
O capitão pega no saco, agitando-o. Assim que ouve o barulho das moedas a
baterem umas nas outras diz "Realmente há outro som mais belo no mundo?
Podem ir visitar os homens podem, mas só sairão em liberdade depois de toda
a papelada estar pronta."
O carcereiro pega então na chave e abre a cela. À medida que abre a cela os
raios de luz das tochas começam a invadir a mesma. Assim que a porta se
encontra aberta os homens entram.
"Ora muito bom dia a todos. Quero antes demais pedir-vos desculpas por me
ter demorado a cumprir aquilo que vos prometi há uns anos atrás mas aqui
estou para tratar da vossa libertação. A partir de hoje serão de novo homens
livres."
"Martim? És mesmo tu? Sim, é ele, é o Martim, ele veio cá para nos libertar",
começa por dizer um dos prisioneiros. Nisto levantam-se todos e em coro
começam a gritar pelo seu nome "Martim, Martim, Martim". Cada vez que
Martim ouve seu nome ecoar sente um calafrio na espinha, nem acredita que o
momento que tanto lutara por que ocorresse estivesse a acontecer.
Depois de ter visto os companheiros aprisionados, Martim dirige-se com Abd al-
Ramaan ao gabinete do capitão da prisão. "Então acabaram de visitar os meus
hóspedes? Como vêem estavam bem tratados, se calhar até vão ter saudades
do tempo aqui passado", diz o capitão num tom irónico.
"Claro que sim, vou dar ordens aos soldados para os soltarem de imediato. Eles
irão ter convosco junto ao portão principal, não se preocupem que será tudo
tratado dentro das conformidades."
O grupo segue em direcção à Sargaço e uma vez lá chegados Martim fala com
os homens. "Meus amigos, companheiros de luta, hoje consegui saldar a dívida
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O Navegante
por Carlos Carvalho
que tinha para convosco. Não imaginam a alegria que vem da minha alma ao
ver as vossas caras de novo, poder falar convosco, respirar a liberdade em
conjunto. A partir deste momento vocês são homens livres e podem fazer aquilo
que muito bem entenderem. Assim que abandonarmos Calecute, levar-vos-ei
até Cochim e uma vez aí chegados poderão tratar da vossa vida. Quem quiser
pode continuar a trabalhar comigo ou seguir a sua vida. Não julguem que têm
uma dívida para comigo porque não têm, eu é que tinha para convosco e
acabei de a saldar. Giovanni Umani, a pessoa que tratou do meu resgate e que
me auxiliou no vosso precisa de homens fortes e destemidos que trabalhem a
seu lado. Quem quiser trabalhar comigo e com ele pode voluntariar-se para o
mesmo e quem quiser seguir outro caminho está livre de o fazer. A decisão é
vossa e será sempre aceite e respeitada."
Martim olha para seus homens e sente o espírito de comunhão que os mesmos
acabam de fazer para com ele. Sente-se responsável por eles e eles por
Martim, um forte laço de amizade os unia e dificilmente seria quebrado.
Abd al-Ramaan presencia este gesto da parte dos homens e fala a Martim "Tu
não páras de me surpreender. Quem diria que o menino que conheci há uns
anos atrás se iria tornar o homem e líder que presencio hoje perante meus
olhos? Tens uma grande responsabilidade em comandar estes homens mas
garanto-te que eles irão contigo a qualquer sítio e farão qualquer sacrifício para
te verem bem. A partir de agora é como se fossem tua família. Tens que olhar
por eles e eles olharão por ti."
"Obrigado Abd al-Ramaan pelos teus conselhos. Sem ti não sei o que seria
muitas vezes de mim, nos momentos de necessidade estás sempre pronto a
aconselhar-me e dar-me a mão."
"Martim não tens nada que agradecer, aquilo que eu fiz por ti sei que também o
farias por mim. Um dia voltaremos a ver-nos tenho a certeza. Desejo-te uma
viagem rumo a Cochim e espero que sejas feliz ao lado de Nia Zhing. O amor é
o sentimento mais forte que existe e se for puro e verdadeiro vence todos os
obstáculos. Agora parte antes que percas a maré."
Ao fim de uns dias em Cochim Martim pede para falar com Giovanni. "Ora viva
Martim, então o que me queres?"
"Giovanni preciso de falar contigo porque tenho algo a pedir-te. Como sabes
quando viajei para Macau conheci a mulher dona do meu coração. Prometi-lhe
que assim que libertasse os meus companheiros voltaria a Cantão e começaria
a partilhar o meu destino com ela. Como acabei de libertar os meus
companheiros quero pedir-te que me deixes ir para o ano na próxima feira
internacional de Cantão viajar até essas terras e ir ter com a minha amada."
"Ora viva António! Como andam as coisas aqui por Macau desde que saí?"
"Eu bem sei António, mas tenho que lutar pela minha felicidade. Só me sinto
bem a seu lado e se não lutar pelo amor o que direi a mim próprio daqui a uns
anos? Que tive a oportunidade de ser feliz mas devido a hesitar, ter medo e
falta de coragem que troquei a felicidade por uma vida segura e infeliz? Não,
estou disposto a lutar pela minha felicidade e de Nia Zhing. Estou certo que ela
será feliz a meu lado e eu junto a ela."
Ao fim de três dias em Macau, Martim segue rumo na Sargaço rumo a Cantão
acompanhado de António Nogueira. Ia em direcção àquelas terras para
comprar sedas e ver Nia Zhing. Estava disposto a correr todos os sacrifícios e
perigos para se encontrar com ela.
Depois de um dia de viagem a subir a foz do rio das Pérolas, a Sargaço atraca
em Cantão. Assim que chega a terra Martim escreve um bilhete a Nia Zhing
dando-lhe conta da sua chegada. Pede-lhe para se encontrarem logo que ela
pudesse. Pega no bilhete e entrega-o a um miúdo que caminhava junto ao
porto. Este em troca de uma moeda de prata certifica-se que a mensagem
chega ao seu destino.
Martim começa a olhar ansioso para o tempo, quer que o mesmo passe
depressa por forma a poder ver de novo Nia Zhing. Todos os dias sentia a sua
falta mas agora que sabia que se iam reencontrar sente ainda mais o peso de
não a ver. Era como se uma eternidade se tivesse passado desde o seu último
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O Navegante
por Carlos Carvalho
Sente um aroma invadir o seu nariz, aroma esse que o começa a abstrair-se de
tudo o que se passa em seu redor, perdendo noção do espaço e tempo. O
mesmo começa a intensificar-se sentindo de repente umas mãos tocarem em
suas costas. Instintivamente começa a beijar as mãos de seda que o rodeavam
e vira-se.
Sente seu corpo consumir-se nas chamas da paixão, desejando ficar assim
eternamente. Ao mesmo tempo abraça-a e sente o coração de Nia Zhing bater
a um ritmo sincronizado com o seu coração.
"Nia, meu amor, que saudades tinha de teu sorriso, teus beijos, teu perfume,
tua boca, teu corpo. Passei os últimos meses a pensar em ti, no momento em
que te voltaria a ver. O que me deu força para vencer todas as contrariedades
que se me deparam ao longo do tempo foi saber que te voltaria a ver, a estar
contigo. A partir de agora não te quero mais abandonar, quero viver junto de ti,
abraçar-te todos os dias, acordar com o teu sorriso, ser embalado no teu
perfume."
"Martim, eu também tenho pensado em ti todos os dias. Sentia falta dos teus
beijos, dos teus abraços, da tua companhia. Quem me dera que o mundo fosse
só eu, tu e este jardim, não houvesse mais nada que não nós. Seríamos
eternamente felizes. Abraça-me com força, faz com que o mundo seja só eu e
tu, faz com que o tempo pare e que fiquemos eternamente abraçados."
Enquanto Martim a abraça, Nia Zhing começa a chorar. Sua face começa a ser
invadida de lágrimas. "Nia, o que se passa, porque começas a chorar? Estou
junto aqui contigo, o que te atormenta, diz-me.", enquanto diz isto Martim
começa a limpar as lágrimas da face de Nia Zhing.
"Porque é que as coisas não são como queremos? Porque é que há sempre
obstáculos na procura da felicidade? Como te disse o mundo devia ser apenas
este jardim, existindo só eu e tu para a eternidade. Meu pai prometeu a minha
mão em casamento e terei que casar dentro de quatro meses. Faz com que o
tempo pare, eu quero viver este momento para toda a eternidade."
Martim ao ouvir as palavras de Nia Zhing tem como primeira reacção ficar
petrificado. Por uns breves instantes deixa de raciocinar, perdendo noção de
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O Navegante
por Carlos Carvalho
tudo o que o rodeia, mas ao fim de uns segundos volta a despertar para a
realidade. Aquilo que ela lhe contava significava que se queria ser feliz teria que
lutar por aquilo que lhe era mais importante, seu amor por Nia Zhing. Teria que
evitar esse casamento custasse o que custasse.
"Nia, meu amor, eu lutarei pelo nosso amor custe o que custar. Irei até ao fim
do mundo se necessário for, lutarei contra quem for necessário, tu és a pessoa
mais importante da minha vida e não consigo viver sabendo que não estás feliz.
Quero a tua e a minha felicidade e tudo farei para que sejamos felizes. Sei que
te pode parecer louca a ideia que te vou dar, mas vem comigo, deixa-me ser
feliz a teu lado,que nossas vidas sigam um caminho comum, sê minha mulher
para todo o sempre. Foge comigo, deixa o teu pai, o palácio, casa comigo."
"Tenho medo, se meu pai descobre ele é capaz de te matar, não consigo
suportar essa ideia. Mas também não suporto a ideia de casar com um homem
que não gosto e viver sem ti. Beija-me, abraça-me, faz-me sentir segura em
teus ombros."
Martim estava determinado a lutar por aquilo que lhe era mais precioso, pelo
amor a Nia Zhing estava disposto a lutar contra quem se interpusesse em seu
caminho e estava disposto a levar as suas ideias até às últimas consequências.
Assim que Nia Zhing voltara a sossegar, volta a falar-lhe na ideia de fugirem os
dois, iriam para Cochim, para longe das mãos do mandarim, buscando aí a sua
felicidade. Os dois amantes combinam a fuga. Teriam que sair de Cantão pela
calada da noite, levando as estrelas como suas testemunhas e companheiras.
A Sargaço teria que levantar âncora durante o dia e Martim esconder-se-ia por
Cantão sem que ninguém se apercebesse. Deixaria perto do porto um pequeno
batel e assim que Nia Zhing se encontrasse junto dele remariam rio abaixo em
direcção à Sargaço. O plano era arriscado, mas os dois amantes encontravam-
se dispostos a correr os riscos necessários para lutarem pela sua felicidade.
Dentro de uma semana seria o começo de lua nova, pelo que Martim combina
com Nia Zhing ser esse o dia. Ela encontrar-se ia com ele junto ao porto, indo
ter com ele disfarçada de pedinte.
Ao fim de uma semana em Cantão, e com noite de lua nova a Sargaço parte de
Cantão rumo a Macau ao meio dia. Levava em seu casco toda a tripulação e as
sedas adquiridas,exceptuando Martim, que se tinha escondido no porto por
baixo de uns batéis estacionados.
"Pudera eu ter o mundo para te dar se pudesse. Para ter um sorriso teu seria
capaz de viajar até ao fim do mundo se preciso fosse meu amor. Vamos,
segue-me, temos que descer até ao batel que ninguém nos está a ver."
"Boa noite Martim, bons olhos te vejam a ti e à Nia Zhing. Correu tudo bem?"
"João, muito obrigado por me ajudares a mim e à Nia, não sei como te
agradecer a ti e a toda a tripulação por aceitarem fazer isto por mim e pela Nia
Zhing."
Depois de terem içado o batel seguem viagem rumo a Macau, acabando por
aportar no porto no dia seguinte. Chegados a Macau, Martim decide deslocar-
se com Nia Zhing à igreja por forma a que se casem. Apesar de ela não ser
católica ele entende ser melhor fazê-lo por protecção dos dois. Uma vez
casados seria difícil terem problemas em terras de Portugal, ou assim pensava
Martim.
Chegados à igreja de Macau, que era uma pequena capela situada junto ao
porto, Martim dirige-se ao padre e pede para se confessar. Ao confessar-se
conta a história toda ao padre e este no fim acede a casá-los em segredo.
Como testemunhas do acto estariam João da Ribeira e António Nogueira.
Assim que os dois noivos se acabaram de casar, dirigem-se para casa de
António Nogueira para selarem o matrimónio.
No dia seguinte e uma vez casados, os dois amantes decidem dar uma volta
pela vila. Como se encontravam já casados não havia nada a esconder pelo
que Martim se sentia seguro ao andar com sua esposa.
Ao fim de uns dias acabam por chegar aos ouvidos do mandarim de Heong San
que sua filha se encontrava por Macau e tinha casado com um português. Este
procura mostrar sua fúria e impõe um ultimato às autoridades portuguesas. Ou
lhe entregam sua filha ou então invadiria Macau e sacaria a vila. António
Nogueira mal sabe da notícia corre para avisar Martim, dizendo ao mesmo para
fugir de Macau, caso contrário o mais certo seria as autoridades cederem à
pressão do mandarim.
"Martim, meu rapaz, então estás de volta! Estou a ver que não regressaste
sozinho de Oriente. Então quem é a bela senhora a teu lado?"
"Giovanni quero apresentar-te a minha esposa Nia Zhing. Nia Zhing apresento-
te Giovanni o homem a quem devo a minha liberdade."
Uma noite, Martim ouve baterem em sua casa, já a noite era bastante
adiantada. Ao abrir a porta verifica que eram os soldados que estavam ali para
o prender. Questiona-se da razão pela qual estavam ali para o prender. De
acordo com os mesmos tinham acabado de receber ordens superiores para o
prenderem por traição.
Martim nada pode fazer, via-se indefeso perante os soldados e acaba por se
entregar. Nia Zhing procura agarrar-se a ele, pedindo que a levem junto dele.
Martim procura acalmá-la, dizendo-lhe que tudo irá correr bem. Pede a ela para
na manhã seguinte informar Giovanni do que se passara que certamente se
encontraria uma solução para o problema.
desfeitos pelo que ela seria levada de volta até Cantão e entregue às mãos do
mandarim.
A morte não o afligia, o que lhe causava mais dor era saber a infelicidade que
estava a causar a Nia Zhing. Pensara que tinha salvo a flor do seu jardim, mas
afinal tinha apenas cortado a mesma e colocado sobre um vaso de água.
Durante os primeiros tempos a flor ainda desabrochou com a água, mas a falta
da seiva da raíz acabaria por definhar a mesma.
Não podiam deixar as coisas dessa maneira, tinham que agir. Estavam
dispostos a fazer todos os sacrifícios e até a sacrificarem suas vidas para
salvarem Martim. Fazem fazer ver isso mesmo a João da Ribeira. Eram
capazes de cometer qualquer loucura para libertarem o seu capitão.
Ao fim de uns dias já com a Sargaço pronta decide ser chegado o momento de
agir. Reúne com os homens de novo e combinam fazer o ataque na noite
seguinte. Um pequeno grupo iria até casa de Martim e levariam Nia Zhing até à
Sargaço enquanto o resto do grupo atacaria de surpresa a prisão.
Chegada a noite do ataque, João da Ribeira decide dar uma grande festa e
convida os soldados para a mesma. Durante a noite não falta o vinho que não
pára de jorrar dos toneis em direcção às canecas e gargantas sedentas dos
soldados. Com a maioria dos soldados embriagados, João da Ribeira decide
agir. Com o grupo de homens dirige-se armado até à prisão e obrigam o
sentinela a abrir a cela onde se encontrava Martim.
Martim ao ouvir a porta da cela abrir-se acorda e levanta-se. "João, mas o que
te traz por cá a esta hora da noite?"
"Boa noite Martim, estou aqui juntamente com os homens para te libertar. Estás
acusado injustamente de traição e não podemos pactuar com isso. Temos a
Sargaço aparelhada e pronta para partir, não queremos que te preocupes com
a Nia Zhing porque ela já se encontra lá à tua espera. Agora segue-nos."
Martim acorre em direcção a João da Ribeira e abraça-o. "João, uma vez mais
salvaste a minha vida, não tenho como te pagar por tamanha gratidão tua.
Aceita do fundo do meu coração a minha gratidão."
"Martim não digas isso, eu estou a teu lado porque foi esse o caminho que
decidi tomar, ninguém me obrigou a segui-lo, e se estou aqui contigo é porque
te amo e quero viver a teu lado. Não me importam os sacrifícios que tenha que
fazer se tal significar estar a teu lado."
João clama por vingança, diz a Martim estar preparado para se tornar num
pirata junto com o resto da tripulação. Atacariam e sacariam as embarcações
portuguesas e amigas destes como modo de retaliação por todas as injustiças
sofridas e sentimento de abandono. Martim mostra-lhe que não é esse o
caminho, se seguissem esse rumo tornar-se-iam iguais ou piores que aqueles
que neste momento andavam em sua busca e não queria ceifar vidas
inocentes. Partindo da máxima os inimigos de nossos inimigos são nossos
amigos, Martim decide rumar até Calecute. Se aportassem nessa cidade
decerto que as autoridades os receberiam bem se soubessem que tinham
fugido às forças portuguesas. Além disso, Martim contava com a amizade de
Abd al-Ramaan para o ajudar a viver em exílio.
Decidem então rumar até Calecute, os homens ao saberem que rumariam para
tais terras, onde muitos deles estiveram presos durante anos sentem ao início
que vão caminhar de novo rumo à prisão, mas não tinham outra escolha que
não rumar a essas paragens. A cidade que para eles tinha sido maldita e sinal
do cativo preparava-se agora para os receber de braços abertos, acabados de
ser orfãos iam a caminho dos únicos capazes de os receber e acolher.
Martim conta a Nia Zhing o que acabara de falar com João da Ribeira, não
tinham outra escolha que não rumar em direcção a Calecute. Sob a protecção
do rei de Calecute e das forças turcas estariam em protecção e poderiam
finalmente viver em paz. Além disso em Calecute estava um dos seus maiores
amigos, Abd al-Ramaan, contando a Nia Zhing a estória de Abd al-Ramaan.
"Martim, eu vou contigo para qualquer lugar do mundo, só desejo que possa
estar junto a teu lado sem ninguém que procure interferir na nossa felicidade.
Estou desejosa de conhecer o teu amigo Abd al-Ramaan, pelo que me contas é
um homem íntegro e cheio de coragem."
Martim beija Nia Zhing e promete-lhe que desta vez seriam felizes, finalmente
iriam encontrar o jardim onde poderiam viver abstraídos de tudo o resto que os
rodeasse. Poderiam passar a concentrar-se apenas em serem felizes.
"Bom dia, chamo-me Martim da Nóbrega e estou aqui para me entregar. Sou
um foragido das autoridades portuguesas, acusado injustamente de traição à
coroa portuguesa. Prefiro ser preso por vós que por aqueles que não merecem
a minha honra e lealdade."
O capitão do porto fica meio surpreendido com tal gesto, não era normal ver um
português apresentar-se para se entregar. Ao fim de algum tempo decide então
questionar Martim. "Mas porque foge das autoridades portuguesas e que acto
tão grave cometeu para o acusarem de traição?"
"A história é bastante longa, mas vou tentar resumir. Nas minhas viagens pela
China conheci uma bela mulher por quem fiquei apaixonado. Ela é filha de um
mandarim bastante poderoso e como ele queria dar sua mão a um homem que
ela não amava fugiu comigo e casámos em Macau. O mandarim ao saber que
sua filha tinha fugido e casado comigo fez pressão às autoridades portuguesas.
Queria sua filha de volta a todo o custo. Como ela se encontra casada comigo a
única maneira que tinham para lha entregar de volta era acabando com a minha
vida. Desse modo fui acusado de traição e perseguido pelas autoridades
portuguesas. Com a minha morte poderiam devolver a minha legítima mulher
às mãos do mandarim. Se aqui ainda estou posso agradecer aos meus homens
que me ajudaram a fugir de Cochim até aqui. Por isso aqui me apresento às
autoridades de Calecute para que vocês julguem de meus actos. Se acham que
sou um criminoso a vós minha vida entrego, mas se achar que nada cometi de
grave, peço asilio em meu nome e de todos os meus homens."
"A ser verdade aquilo que me acaba de contar não vejo razão para o prender,
aquilo que fez foi apenas lutar pelo seu amor e felicidade, pode seguir em
liberdade mas não podem sair da cidade enquanto não se averiguarem
devidamente os factos."
Nisto Martim abraça Nia Zhing e beija-a cheio de paixão. Finalmente encontrara
um local onde poderia viver só para ela, não teria que andar em constante fuga
e perseguição, ali seriam felizes.
Depois de falar com Nia Zhing, desloca-se em direcção ao convés e pede para
todos os homens se reunirem. Ia dar-lhes a novidade, todos eles seriam bem
recebidos em terras de Calecute podendo viver aí em paz.
Martim desce uma vez mais da Sargaço em busca de Abd al-Ramaan. Segue
pelas ruas de Calecute em direcção a sua casa, à medida que se vai
deslocando imagina qual será a reacção de Abd al-Ramaan quando souber da
sua chegada e os motivos que o levaram a viajar até Calecute.
Ao chegar a casa de Abd al-Ramaan bate à porta, esperando por uns breves
momentos que lhe abram a porta. Um criado abre a porta e pergunta quem é e
o que o traz por ali.
"Bom dia, chamo-me Martim da Nóbrega, diga ao seu amo Abd al-Ramaan que
me encontro aqui para o ver."
O criado diz-lhe para aguardar uns momentos que iria chamar seu amo,
enquanto espera Martim aproveita para respirar, cada vez que inala ar em
direcção de seus pulmões toma consciência da sua liberdade, tinha encontrado
o sítio onde poderia amar e ser amado.
"Abd al-Ramaan, nem sabes a felicidade que tenho em ver-te e poder falar
contigo. Da última vez que nos vimos contei-te que me tinha apaixonado por
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O Navegante
por Carlos Carvalho
terras de Cantão, tendo morrido aí de amores pela mulher da minha vida, Nia
Zhing. Voltei a Cantão para me reencontrar com ela e fugimos para Macau
onde casámos. Seu pai, o mandarim ao saber da fuga e do casamento de sua
filha comigo exigiu às autoridades portuguesas que lhe voltassem a devolver
sua filha. Como ela se encontrava casada comigo, a única maneira que tinham
para a devolver a seu pai seria acabarem com a minha vida. Acusaram-me
injustamente de traição e acabei sendo preso em Cochim. Não fossem os meus
valentes companheiros e hoje já não respiraria. Atacaram a prisão, libertaram-
me e auxiliaram-me na fuga. Como iríamos ser perseguidos em todos os portos
controlados pelas autoridades portuguesas, não me restou outra solução que
não rumar em direcção a Calecute. Aqui cheguei e entreguei-me ao capitão do
porto. Contei-lhe a razão que me trouxe cá e ele depois de saber a minha
história acedeu a receber-me a mim e a todos os meus companheiros."
"Nem imagino o quanto deves ter sofrido por teres sido injustamente acusado
de traição, mas fazes bem em lutar pelo teu amor e felicidade. Tudo aquilo que
precisares conta comigo. Sou e serei teu amigo nas boas e más horas. Fico
feliz e triste por saber que irás viver em Calecute. Feliz porque terei o prazer de
desfrutar da tua companhia mas triste porque saber as razões que te levaram a
vir para cá. Mas agora vamos esquecer as coisas más e falar apenas nas
coisas boas. Quero ter-te a meu lado e faço já o convite para que trabalhes
comigo. Os meus negócios têm vindo a prosperar e estou a precisar de alguém
que me ajude a geri-los e esse alguém quero que sejas tu. És um homem cheio
de fibra, experiente no mundo do comércio e em quem eu confio. Enquanto não
arranjares casa quero que venhas viver com a tua mulher para aqui. A minha
casa é bastante grande e assim tenho sempre o prazer de ter a tua companhia.
Os teus homens podem também sentir-se seguros que eu também tenho
trabalho para todos eles. Não penses que isto é um favor que te estou a fazer a
ti ou a eles que não o é, para mim é uma dádiva poder contar com homens tão
determinados e leais aos seus principios."
Martim depois de ter falado com Abd al-Ramaan apressa-se a dar a boa nova a
Nia Zhing e seus homens. Havia trabalho para todos e teriam um sítio onde
poderiam lutar pela sua felicidade.
Martim segue com Nia Zhing em direcção a casa de Abd al-Ramaan. Este ao
vê-la diz a Martim "realmente agora percebo a razão porque lutaste pelo teu
amor. Tens contigo uma verdadeira pérola, sua beleza é de facto irradiante,
desejo as maiores felicidades para ti e para Nia Zhing, que os dois sejam
felizes".