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Por eles denominados de invisível.
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Nunes Pereira na sua obra “A Casa das Minas” dedica um ítem a este centro, atestando que a
capela foi construída em uma pequena “fazenda” que segundo ele pertencia ao senhor Manuel Antão
da Silva - sendo que nas narrativas orais todos foram unânimes em afirmar que as terras pertenciam ao
senador Manoel Julião de Souza. Segundo ele, o braço direito para a construção da capela foi Elias
Kemer, pessoa bastante citada nas entrevistas e um dos primeiros membros do lugar. Além disso
reconhece Daniel como fundador da Barquinha, afirmando que ele foi ligado a mãe-de-santo conhecida
por Joana. Este último dado é bastante curioso, tendo em vista que nenhum dos meus informantes
mencionou este fato. Entretanto, não tenho material suficiente para comprovar este argumento de
Nunes Pereira (Nunes Pereira, 1979:39).
Mestre Daniel tinha, segundo depoimentos, uma relação muito próxima com o
mar. Grande parte dos salmos do hinário da casa referem-se ao mar, a viagens
através de uma nau e a seres aquáticos. Sua história de vida reforçou a proximidade
do Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz com a Marinha,
sendo um dos principais elementos sagrados a Barquinha.
A barca para os seus integrantes tem dois significados: o primeiro é o de que a
mesma representa a própria missão deixada por Daniel e a segunda expressa a
viagem de cada um. Esta barca é a viagem de suas vidas, em resumo, uma viagem
dentro da grande viagem. Ela tem como característica principal realizar uma grande
travessia. A barca tenta sobretudo atravessar uma grande tempestade. Os homens
que nela viajam estão na barca de Deus. Ele é portanto o seu proprietário de direito.
Para que a barca não afunde é necessário “trabalhar”, procurando evitar que a
Barquinha desapareça mar a dentro. Esses trabalhadores vivem em função de seu
proprietário e o trabalho é uma dívida que os praticantes tem com ele.
Os adeptos da Barquinha também acreditam que a nau é a própria igreja, local
de reuniões periódicas dos fiéis. A embarcação relaciona-se sobretudo a barcaças
típicas da amazônia que constantemente cortam os rios daquela região.Para eles, o
proprietário da barca é Deus e esta é pilotada por São Francisco das Chagas, Mártir
São Sebastião, São José e Daniel Pereira de Mattos, o fundador da casa, que tem
como missão conduzir a nau ao encontro de Jesus e, juntamente com os adeptos,
procuram evitar grandes tormentas em sua travessia.
A Barca Santa Cruz, designação apresentada por eles para a embarcação, está
marcado por instruções provenientes do invisível e apresenta na sua trajetória
características escatológicas.
“A viagem nada mais é do que uma provação, onde a água agitada reflete as
tentações do mundo de ordem mundana. A água se agita porque a sociedade humana
quebrou determinadas regras divinas. As águas marítimas exprimem o sentimento
descontrolado aos seres humanos e o desgosto do criador”. (Araújo Neto, 1995:13).
A Barquinha, em sua forma mais ampla, continua sendo a missão criada por
Daniel Pereira de Mattos, com a finalidade de viajar dentro de três mistérios. Pode ser
ainda designada de vida, na sua mais completa plenitude. Por último ela representa
uma longa viagem, feita pelos fiéis. São os atos destes que irá determinar o rumo que
a Barquinha irá tomar.
Esta barca viaja em três mistérios, ou três planos cosmológicos - o céu, a terra
e o mar - e seus componentes são chamados de marinheiros do mar sagrado, ou
soldados dos exércitos de Jesus. São enquadrados enquanto marinheiros a partir do
momento que recebem o fardamento.
Quando assumem os trabalhos espirituais da Barquinha, os marinheiros
desempenham tarefas básicas para alcançar um maior grau de luz quando
desencarnarem. Se houver uma preparação aguçada por parte dos fiéis, dizem-lhes
que estão promovidos a oficiais e não mais a marinheiros, uma vez que ocupam
dentro da sua hierarquia religiosa, uma posição mais elevada. A Barquinha acaba
sendo uma escola de preparação de oficiais. Determinadas entidades, por eles
designadas como entidades de luz são chamadas também de oficiais e são
consideradas chefes de pelotão. Por exemplo, a entidade por nome de Dom Simeão,
que chefia parte dos trabalhos das Obras de Caridade.
Estes oficiais, quando chegam para trabalhar usam determinados instrumentos
referentes à “forças armadas” tais como lanças, espadas, algemas, cachorros, etc. Os
registros desses instrumentos são revelados nos salmos entoados pelos presentes.
Essas “forças armadas”, compostas de entidades de luz são provenientes dos
mistérios do céu, terra e mar e visam combater entidades do mal. Há portanto, um
duelo entre entidades de luz e entidades das trevas. Logo, a barca, juntamente com
marinheiros e oficiais vem a ser um receptáculo de conversão de entidades maléficas
em entidades benéficas, através de um processo desencadeado mar a dentro.
O mar, no qual navegam esses marinheiros, são as águas sagradas, ou melhor
dizendo, o Daime, daí a denominação mar sagrado. Estas personagens navegam,
portanto, sobre as ondas do daime, no balanço da Barca Santa Cruz.
O Daime é considerado uma luz. A luz associa-se a revelação, a uma ampliação
de conhecimentos, e aqueles que navegam sobre as ondas do mar sagrado
gradativamente vão adquirindo conhecimentos para si e uma sensibilidade maior de
enxergar o outro. É quando se percebe a vida nos olhos, o olhar de si no outro e do
outro em si. A revelação é considerada como um processo simbólico de aprendizagem
significativo.
Este ponto de associação do Daime à luz retoma outra discussão, como bem
lembrou o antropólogo Alberto Groisman (1993), acerca do mundo da ilusão X mundo
de luz. Assim como os daimistas, os componentes da Barquinha vêem no daime uma
forma de entrar em contato com o mundo espiritual, onde habitam espíritos de luz que
assessoram as pessoas que, através do daime, estão fazendo um preparo espiritual.
Mas é somente através de determinadas provações que o ser humano poderá afirmar
se está ou não preparado para alcançar este mundo espiritual, irradiador da luz divina.
O Daime, enquanto mar sagrado, torna-se uma substância de poder, um elo de
ligação com o sagrado e um locus de cura. Evidentemente esta “água” não é acessível
a qualquer um, a qualquer hora e de qualquer maneira. Por ser sagrada, esta tem que
ser usada em um tempo e espaço sacros. Para ter direito ao uso, o homem tem que
passar por uma série de provas.
Podemos dizer que a água é luz, vida e fonte de rica energia positiva do divino.
O daime é um dos meios de conexão com o sagrado, um dos elementos condutores
da troca vertical entre os homens e os seres divinos. Portanto ele é mar, ao mesmo
tempo que é luz, algo que afasta as trevas e ilumina o espírito. É a água/luz sagrada
que conduz o sujeito a uma viagem para a vida eterna.
O daime é considerado um instrutor, um professor, que sempre está ensinando
os participantes das performances rituais que fazem o seu uso. Ele se torna um
veículo de comunicação entre a vida material e a vida espiritual. Neste sentido, ele
contribui para que o participante do ritual tenha contato com seres divinos de
realidades sagradas. Ele traz revelações de entidades de luz, entidades santificadas.
Logo, a escola de Daniel acaba se tornando uma escola que está sempre ensinando
“mistérios” aos que dela participam.
Esta substância produz “sonhos”, é uma planta que faz “sonhar” (Costa, 1956).
Ela dá aos integrantes das performances rituais características proféticas, porque às
vezes, anuncia um determinado fato que poderá ocorrer. Quando tal fato é
concretizado, ele é então “testificado”, tirado a limpo, vindo a ser duplamente
verdadeiro.
A ayahuasca é ainda chamada de voz divina. O ponto de ligação com o ser
supremo, um dos meios de conversar com o sagrado representado no topo da
pirâmide por Deus.
É do céu que emergem ordens divinas. Estas ordens são chamadas de
instruções e são estas instruções que manobram o barquinho Santa Cruz; na terra
podem ser encontrados seres como caboclos e pretos velhos, indígenas e exus; já no
mar circulam entidades que participam dos trabalhos da casa. São encantados que se
manifestam aos presentes mostrando os mistérios ou encantos; muito próximo ao
plano celestial encontra-se o Astral, também com seres iluminados, mas que ainda se
encontram em fase de preparação. Alguns destes seres do Astral têm a permissão
para entrar em contato direto com os seres humanos, mas muitos não tem esta
permissão, como é o caso da maioria dos bispos do local.
O Astral rege dois planos que ficam mais abaixo: a terra e o mar. Nestes dois
planos, é possível encontrar entidades boas, boas e más ao mesmo tempo e más. São
entidades dos encantos das florestas como caboclos, pretos velhos, indígenas e exus,
e os encantados do mar tais como botos, sereias, cobras d’água. As entidades do
Astral são aquelas que são responsáveis para dar assistência às entidades da terra e
do mar.
Quando os componentes da Barquinha falam de Astral, referem-se a Astral
superior, que foi designado de várias formas: planos do alto, planos de luz, planos de
preparação, planos superiores, planos iluminados.
Através de viagens, os tripulantes da Barquinha conhecem lugares diversos,
produzindo o que nós podemos denominar de sagrado compartimentado, tendo em
vista que os planos que regem esta casa passam de espaços míticos à lugares
míticos, uma forma de demonstrar que nesses planos ou mistérios, nota-se uma
geografia mítica que é ricamente construída a partir das visões dos integrantes da
Barquinha que narraram experiências diversas em alguns lugares dos espaços míticos
que compõem o quadro cosmológico.
COSMOLOGIA AMAZÔNICA EM CONSTRUÇÃO
Durante o campo, o objetivo central da pesquisa foi voltado para uma etnografia
do Centro Espírita e culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz retratando a
História, a Cosmologia e o Ritual. Durante o estudo nos deparamos com uma velha
discussão teórica: a noção de sincretismo.
A Barquinha insere-se no chamado ecletismo religioso, segundo a literatura
antropológica, que propicia ao indivíduo uma experiência que se dá:
“Por uma operação (...) através da qual são
ecleticamente reaproximados, sobrepostos e/ou refundidos
elementos oriundos das várias tradições, nativas e
importadas, que a mobilidade geográfica das pessoas e dos
produtos culturais põe hoje a sua disposição. Novas
entidades coletivas apontam no horizonte dessas
operações, mas elas tendem a ser transconfessionais,
ameaçando desde já, nesse sentido, redesenhar nessas
sociedades centrais o mapa do campo religioso
contemporâneo. Parece possível esperar das
conseqüências desse fenômeno uns efeitos de
transformações mais radicais que as do tradicional
‘sincretismo brasileiro’ (Sanchis 1995).