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A cidade e o sangue
luizcesarbaptista.blogspot.com
A cidade àquela hora surgia como salpicado de luzes e néones que submergiam
no manto negro da noite. As ruas pareciam vazias, abandonadas. Até o céu parecia
abandonado, sem lua, quase sem estrelas. De vez em quando, ouvia-se o ressoar dos
passos elegantes de um gato pardo que patrulhava as ruas em busca de jantar. Nos
becos, um ou outro vagabundo procurava conforto entre os caixotes de lixo e as caixas
de cartão. Era a hora de os bares fecharem. Os bêbados são postos na rua e as luzes
apagam-se. As prostitutas arranjam os últimos clientes e escondem-se na solidão dos
gemidos.
É a hora dos miseráveis, e entre estes, há um que destoa pela familiaridade. Um
homem que caminha a galope para o inverno da vida, semblante duro e pesado, carrega
a embriaguez de mais uma noite. Afoga-se na garrafa que leva na mão e cambaleia com
a oscilação de um barco naufragado. Leva a boca ao gargalo e tenta submergir as
memórias e a consciência que lhe pesam. Tanto. Os caminhos surgem-lhe desfocados.
Cruzam-se em entroncamentos disformes que o confundem. Os fantasmas perseguem-
no. Vincos alucinados que o fazem soltar murmúrios despidos de qualquer lucidez. Os
carros passam por ele e têm a forma de monstros de metal com olhos ofuscantes que o
querem engolir. As pedras no passeio são contornos salientes que o fazem tropeçar. A
decadência é uma amiga que o ampara.
A rua sobe e as pernas já não têm a energia que deviam ter. Os movimentos são
cada vez mais forçados, sente-os como inúteis. Ao passar de uma esquina, a escuridão
parece subitamente aumentar. Os candeeiros de rua estão apagados e as janelas dos
prédios estão todas fechadas. Quase que não consegue ver os próprios passos. A atenção
dispersasse em imagens que lhe nascem. Um gato olha-o de cima de um muro e os
olhos têm um brilho invulgar. Sente-se vigiado. Não sabe onde está, nem sabe porque
está ali. Deixa-se levar por qualquer coisa que não sabe explicar. Numa mão a garrafa
quase vazia, na outra o que lhe resta da existência. Pesa-lhe.
Eis então que um grito arrasta-lhe os sentidos. Num impulso deixa cair a garrafa
no chão que se estilhaça em mil pedaços. A embriaguez confunde-o, leva-lhe as
certezas. Transporta-o para um estado em que não sabe se o que ouviu foi real ou apenas
um fruto alucinado do seu estado. Não, pensa, foi real. Era uma pessoa, uma mulher que
gritou com a angústia de quem vê a sua sobrevivência em risco. Só assim alguém
poderia gritar daquela forma. A rua continua vazia e Hank Fisher não consegue dizer a
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A cidade e o sangue – Episódio 2 – Luiz César Baptista
direcção exacta da sonância que o alertou. Julga ter sido da sua direita, talvez de trás
daquelas tábuas de madeira. Aproxima-se e tenta apagar o álcool que lhe corre no
sangue e ganhar a lucidez necessária para compreender o que o rodeia. A visibilidade é
quase nula. Sente-se como se estivesse no fundo de um poço sob mil pés de fundura.
Hank tenta aguçar a audição mas os sons fundem-se numa harmonia disforme que não
consegue distinguir.
De súbito, outro grito. O mesmo grito, o mesmo timbre, a mesma intensidade,
mas vindo de outra direcção, dali, da direcção de um armazém abandonado que existe
do outro lado. Hank não hesita, e com a velocidade que consegue, arrasta-se para o
local. É um antigo armazém de electrodomésticos que foi desmantelado há mais de uma
década. Agora, aqui vivem drogados que se injectam e que se vão destruindo aos
poucos, escondidos dos olhares do resto da cidade. O portão está fechado e do interior
apenas o ressoar das agulhas a penetrarem as veias. Hank pára e olha em volta. A rua
deserta como antes. O mesmo silêncio que lhe provoca uma dor aguda nos ouvidos.
Hank começa a duvidar de si mesmo. Coloca a hipótese de tudo ter sido não mais do
que a junção do álcool e da imaginação. Pensa em desistir e tentar encontrar o caminho
para casa, e quando se decide a iniciar os passos que o levem dali, o grito regressa.
Exactamente o mesmo grito. Mas agora sem direcção definida. Era como se o grito
tivesse saído de todos os sítios que o rodeiam, como se o grito saísse de dentro de si
próprio. Hank leva as mãos à cabeça em desespero e deixa-se cair ali mesmo, no meio
do passeio, como um cepo morto. Fecha os olhos e sente-se desligar.
Hank acorda com o movimento dos passos à sua volta. O sol já espreita e fere-
lhe o olhar. Sente uma dor que o percorre que não sabe se é física ou psicológica. Talvez
ambas, numa sobreposição torturante que o abala. Não se lembra de muito, mas recorda
o essencial. Levanta-se e as pessoas que passam por ele ignoram-no, pensam que é
apenas mais um vagabundo. Já de pé, a custo, olha em volta e procura qualquer coisa.
Encontra. Os passos ardem-lhe. Leva a mão a um dos bolsos e procura uma moeda.
Levanta o auscultador do repouso e enfia a moeda na ranhura. Mete a mão ao outro
bolso e engana-se. Leva a mão a um terceiro bolso e encontra. Pega num cartão e tenta
ler o número. Marca-o, e só à terceira tentativa consegue estabelecer chamada:
- Katherine? Vem ter comigo ao meu escritório daqui a duas horas.
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A cidade e o sangue – Episódio 2 – Luiz César Baptista
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A cidade e o sangue – Episódio 2 – Luiz César Baptista
as vítimas eram pessoas perfeitamente normais, com empregos normais, vidas normais,
famílias normais, sem cadastro, sem nenhum padrão aparente que as relacionasse…
- Violência aleatória – interrompe Katherine.
- Violência aleatória? O que é isso?
- É isso mesmo. Violência praticada de forma completamente aleatória, neste
caso assassinar sem nenhuma razão. A vítima é escolhida sem nenhum tipo de…
- Ah, queres dizer matar ao calhas? Não, isto não existe. Um assassino tem
sempre um motivo…é uma questão de ética profissional, ninguém mata sem razão. Às
vezes as razões podem não ser totalmente compreensíveis…
- Às vezes? Porquê? Há vezes em que são? - ironiza Katherine enquanto espreita
o relógio.
- Claro que sim. Matar por vingança ou paixão é sempre compreensível…
- É?
- É. A sociedade actual é que está corrompida por moralismos que há bem pouco
tempo nem sequer existiam. Não é preciso ir muito longe para ainda encontrares sítios
onde um marido possa matar uma mulher só porque desconfiou que esta é adúltera...
- Ou a um sítio onde se executa um padre sem provas concretas. – retorna
Katherine com o mesmo tom irónico, e voltando a olhar o relógio.
- Tens algum sítio onde tenhas de estar? - pergunta Hank reparando na
insistência do gesto.
- Sim e não. Está a ver? Também sei ser bastante clara.
Katherine levanta-se em gestos delicados, quase provocantes, e antes de sair,
volta-se e pergunta como se disparasse uma pistola:
- Acredita mesmo que foi o padre Malone o assassino?
Hank desvia os olhos do que lia e responde de forma pragmática:
- Claro que não.
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A cidade e o sangue – Episódio 2 – Luiz César Baptista
Todas as personagens e instituições citadas nesta narrativa são pura ficção. Qualquer
semelhança com a realidade é mera coincidência.