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A cidade e o sangue – Episódio 2 – Luiz César Baptista

A cidade e o sangue

Episódio II – Os fantasmas atacam Hank Fisher

Escrito e criado por Luiz César Baptista

luizcesarbaptista.blogspot.com

A cidade àquela hora surgia como salpicado de luzes e néones que submergiam
no manto negro da noite. As ruas pareciam vazias, abandonadas. Até o céu parecia
abandonado, sem lua, quase sem estrelas. De vez em quando, ouvia-se o ressoar dos
passos elegantes de um gato pardo que patrulhava as ruas em busca de jantar. Nos
becos, um ou outro vagabundo procurava conforto entre os caixotes de lixo e as caixas
de cartão. Era a hora de os bares fecharem. Os bêbados são postos na rua e as luzes
apagam-se. As prostitutas arranjam os últimos clientes e escondem-se na solidão dos
gemidos.
É a hora dos miseráveis, e entre estes, há um que destoa pela familiaridade. Um
homem que caminha a galope para o inverno da vida, semblante duro e pesado, carrega
a embriaguez de mais uma noite. Afoga-se na garrafa que leva na mão e cambaleia com
a oscilação de um barco naufragado. Leva a boca ao gargalo e tenta submergir as
memórias e a consciência que lhe pesam. Tanto. Os caminhos surgem-lhe desfocados.
Cruzam-se em entroncamentos disformes que o confundem. Os fantasmas perseguem-
no. Vincos alucinados que o fazem soltar murmúrios despidos de qualquer lucidez. Os
carros passam por ele e têm a forma de monstros de metal com olhos ofuscantes que o
querem engolir. As pedras no passeio são contornos salientes que o fazem tropeçar. A
decadência é uma amiga que o ampara.
A rua sobe e as pernas já não têm a energia que deviam ter. Os movimentos são
cada vez mais forçados, sente-os como inúteis. Ao passar de uma esquina, a escuridão
parece subitamente aumentar. Os candeeiros de rua estão apagados e as janelas dos
prédios estão todas fechadas. Quase que não consegue ver os próprios passos. A atenção
dispersasse em imagens que lhe nascem. Um gato olha-o de cima de um muro e os
olhos têm um brilho invulgar. Sente-se vigiado. Não sabe onde está, nem sabe porque
está ali. Deixa-se levar por qualquer coisa que não sabe explicar. Numa mão a garrafa
quase vazia, na outra o que lhe resta da existência. Pesa-lhe.
Eis então que um grito arrasta-lhe os sentidos. Num impulso deixa cair a garrafa
no chão que se estilhaça em mil pedaços. A embriaguez confunde-o, leva-lhe as
certezas. Transporta-o para um estado em que não sabe se o que ouviu foi real ou apenas
um fruto alucinado do seu estado. Não, pensa, foi real. Era uma pessoa, uma mulher que
gritou com a angústia de quem vê a sua sobrevivência em risco. Só assim alguém
poderia gritar daquela forma. A rua continua vazia e Hank Fisher não consegue dizer a

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A cidade e o sangue – Episódio 2 – Luiz César Baptista

direcção exacta da sonância que o alertou. Julga ter sido da sua direita, talvez de trás
daquelas tábuas de madeira. Aproxima-se e tenta apagar o álcool que lhe corre no
sangue e ganhar a lucidez necessária para compreender o que o rodeia. A visibilidade é
quase nula. Sente-se como se estivesse no fundo de um poço sob mil pés de fundura.
Hank tenta aguçar a audição mas os sons fundem-se numa harmonia disforme que não
consegue distinguir.
De súbito, outro grito. O mesmo grito, o mesmo timbre, a mesma intensidade,
mas vindo de outra direcção, dali, da direcção de um armazém abandonado que existe
do outro lado. Hank não hesita, e com a velocidade que consegue, arrasta-se para o
local. É um antigo armazém de electrodomésticos que foi desmantelado há mais de uma
década. Agora, aqui vivem drogados que se injectam e que se vão destruindo aos
poucos, escondidos dos olhares do resto da cidade. O portão está fechado e do interior
apenas o ressoar das agulhas a penetrarem as veias. Hank pára e olha em volta. A rua
deserta como antes. O mesmo silêncio que lhe provoca uma dor aguda nos ouvidos.
Hank começa a duvidar de si mesmo. Coloca a hipótese de tudo ter sido não mais do
que a junção do álcool e da imaginação. Pensa em desistir e tentar encontrar o caminho
para casa, e quando se decide a iniciar os passos que o levem dali, o grito regressa.
Exactamente o mesmo grito. Mas agora sem direcção definida. Era como se o grito
tivesse saído de todos os sítios que o rodeiam, como se o grito saísse de dentro de si
próprio. Hank leva as mãos à cabeça em desespero e deixa-se cair ali mesmo, no meio
do passeio, como um cepo morto. Fecha os olhos e sente-se desligar.
Hank acorda com o movimento dos passos à sua volta. O sol já espreita e fere-
lhe o olhar. Sente uma dor que o percorre que não sabe se é física ou psicológica. Talvez
ambas, numa sobreposição torturante que o abala. Não se lembra de muito, mas recorda
o essencial. Levanta-se e as pessoas que passam por ele ignoram-no, pensam que é
apenas mais um vagabundo. Já de pé, a custo, olha em volta e procura qualquer coisa.
Encontra. Os passos ardem-lhe. Leva a mão a um dos bolsos e procura uma moeda.
Levanta o auscultador do repouso e enfia a moeda na ranhura. Mete a mão ao outro
bolso e engana-se. Leva a mão a um terceiro bolso e encontra. Pega num cartão e tenta
ler o número. Marca-o, e só à terceira tentativa consegue estabelecer chamada:
- Katherine? Vem ter comigo ao meu escritório daqui a duas horas.

Faltavam dois minutos para as nove da manhã quando Katherine regressou ao


nº5 da rua S. Subiu ao último andar como no dia anterior, e quando chegou ao escritório
de Hank a porta já estava aberta. Entrou. Olhou em volta, esperando ver Hank, mas a
sala parecia vazia. Encolheu os ombros e sentou-se preparando-se para esperar.
Enquanto isto tirou uma pasta ao acaso, das muitas que se encontravam abandonada em
cima da secretária de Hank, e começou a folheá-la. Absorvida que estava, que nem deu
conta que pouco depois Hank entrou carregando dois copos de café.

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- Vejo que já te instalaste. Estás a gostar da leitura? – pergunta-lhe, provocando


um breve susto em Katherine que devolveu de imediato a pasta ao lugar, com o ar de
uma criança que tinha sido apanhada com a mão no doce.
- É interessante ver como um dos melhores detectives da cidade, agora se dedica
a investigação de casos de adultério a mando de donas de casa que querem saber se o
marido o anda a trair com a melhor amiga. – responde Katherine tentando recuperar a
pose elegante e altiva.
- O que é que queres? Um gajo tem que ganhar a vida. Antes isto que procurar o
gato siamês de uma condensa qualquer que desapareceu…
- Roubaram um gato?
- Não, mas ela pensa que sim. O gato fugiu. Descobri-o no preciso instante em
que conheci a condensa. Eu se fosse o gato também fugia dela, mulher mais chata…mas
isto agora não interessa…
- Presumo então que aceita colaborar comigo, ou ligou-me às sete da manhã por
outra razão?
Gera-se em Katherine um sorriso vitorioso na expressão.
- Colaborar? Sim, talvez. – responde Hank sem a olhar, entretido a procurar
alguma coisa numa gaveta.
- Talvez? – estranha Katherine observando Hank despejando um pouco de
brandy em cada um dos cafés – Para mim não, obrigado, prefiro simples.
Hank fita-a com uma expressão forçada de surpresa:
- Se soubesse que também querias café tinha trazido mais um.
- Ia beber os dois? – espanta-se Katherine, também um pouco embaraçada.
- Ia não, vou, mas para a próxima prometo que também te trago um, não quero
ser um anfitrião desleixado. – e dito isto, Hank engole os dois cafés de uma vez sob o
olhar de desaprovação e de subtil repulsa de Katherine que fica indecisa sem saber se
aquilo tinha sido uma situação casual ou alguma forma de Hank demonstrar algum tipo
de poder sobre ela.
- E em relação ao caso? - insiste Katherine, tentado focar-lhe a atenção.
- O que tem o caso?
- Sempre aceita colaborar comigo? – repete Katherine com tiques de impaciência
no tom de voz.
- Já lhe respondi a isso.
- Disse-me: “sim, talvez”.
- Sim, talvez. Acho que a minha resposta foi muito clara – retorna Hank
enquanto procura algo debaixo da pilha de papéis sobre a secretária, remexendo-os com
notável desorientação.
Katherine suspira e desiste de argumentar com Hank, olha-o curiosa e pergunta:
- Do que é que está à procura?
- Estava à procura do processo do tal assassino em série…
- Do padre Malone? Mas tem-no? – inquire-o Katherine esperançada. – Pensava
que a só a polícia o tinha.
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Hank leva a mão à teste em jeito dramatizado:


- Tens razão não o tenho. Pois bem, já tens a tua primeira missão, arranjares-me
uma cópia do processo, e pelo caminho, senão te custar muito, tudo o que souberes
sobre a nova vítima.
Katherine sente-o como uma provocação. Pensa que Hank está a tratá-la apenas
como uma miúda, um moço de recados com a missão única de lhe obedecer. A ideia
repugna-lhe, mas deixa-a correr. Para já, dá-se por muito satisfeita só por o ter
conseguido aliar-se a si. Decide deixá-lo pensar pelo menos nos primeiros tempo que
ele é o chefe supremo. Depois com o tempo logo se vê. Contudo, pergunta em jeito de
desafio:
- E o que o leva a pensar que vou conseguir acesso ao processo?
- Eu sei que vais. Da mesma forma que conseguiste as fotografias que me
mostraste ontem…espero é que não tenhas depois problemas com o teu irmão…
Hank lança-lhe um sorriso corrosivo, e Katherine sente-o como um soco no
estômago.
- Como sabe sobre o meu irmão? – pergunta com o olhar atordoado.
- Não achas que eu me ia dar ao trabalho de te investigar antes de aceitar o que
fosse? Sei tudo sobre ti. Posso-te dizer o nome dos teus pais, o número de contribuinte
dos teus avós, o nome do teu primeiro cão, quantas vezes foste ao ginecologista no ano
passado, a morada do professor que está a dar a aula a que tu estás a faltar para estares
agora aqui…
- Sim, já percebi, é o grande Hank Fisher, o melhor detective da cidade, escusa
de se pavonear mais, e esteja descansado que amanhã terá tudo o que quer.
Entretanto…- Katherine encontra qualquer coisa na mala e estende-a na direcção de
Hank. -… adiantei trabalho de casa. Aqui tem toda a informação sobre Dina Waters, é
assim que se chama a vítima.
Hank aceita a pasta e abre-a.
- Muito bem. Estou impressionado… – comenta enquanto começa a ler -…39
anos, casada, dois filhos, presidente da associação de pais da escola, casada com Robert
Waters, advogado de sucesso, bla bla bla…pois, tal como esperava.
- Como esperava? Como assim?
- Uma pessoa perfeitamente normal. A mulher e mãe modelo, sem qualquer
indício aparente que leve a um motivo para um crime deste género.
- Tal como as vítimas do padre Malone, não é assim?
Hank acena afirmativamente, reconforta-se nas costas da cadeira e estende as
pernas sobre a secretária:
- Pelo que me lembro, sim.
- Como é possível não se lembrar? – estranha Katherine.
- Miúda, eu às vezes já não me lembro onde moro, quanto mais. Quando
chegares à minha idade, e não tenhas muita vontade nisso, vais perceber o que quero
dizer. Porque achas que preciso do processo…mas sim, tenho quase a certeza que todas

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as vítimas eram pessoas perfeitamente normais, com empregos normais, vidas normais,
famílias normais, sem cadastro, sem nenhum padrão aparente que as relacionasse…
- Violência aleatória – interrompe Katherine.
- Violência aleatória? O que é isso?
- É isso mesmo. Violência praticada de forma completamente aleatória, neste
caso assassinar sem nenhuma razão. A vítima é escolhida sem nenhum tipo de…
- Ah, queres dizer matar ao calhas? Não, isto não existe. Um assassino tem
sempre um motivo…é uma questão de ética profissional, ninguém mata sem razão. Às
vezes as razões podem não ser totalmente compreensíveis…
- Às vezes? Porquê? Há vezes em que são? - ironiza Katherine enquanto espreita
o relógio.
- Claro que sim. Matar por vingança ou paixão é sempre compreensível…
- É?
- É. A sociedade actual é que está corrompida por moralismos que há bem pouco
tempo nem sequer existiam. Não é preciso ir muito longe para ainda encontrares sítios
onde um marido possa matar uma mulher só porque desconfiou que esta é adúltera...
- Ou a um sítio onde se executa um padre sem provas concretas. – retorna
Katherine com o mesmo tom irónico, e voltando a olhar o relógio.
- Tens algum sítio onde tenhas de estar? - pergunta Hank reparando na
insistência do gesto.
- Sim e não. Está a ver? Também sei ser bastante clara.
Katherine levanta-se em gestos delicados, quase provocantes, e antes de sair,
volta-se e pergunta como se disparasse uma pistola:
- Acredita mesmo que foi o padre Malone o assassino?
Hank desvia os olhos do que lia e responde de forma pragmática:
- Claro que não.

Luiz César Baptista Produções


2009

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Todas as personagens e instituições citadas nesta narrativa são pura ficção. Qualquer
semelhança com a realidade é mera coincidência.

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