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SÓCRATES: a humanização da política

F. Cabral Pinto

Em 2003 foi editada uma tradução portuguesa do opúsculo de ORTEGA Y


GASSET intitulado “A desumanização da Arte”. O original veio pela primeira vez à luz
do dia em 1925. No pressuposto de que os editores, em regra, só publicam o que é
vendável, é de presumir que o conteúdo do texto em referência não perdeu actualidade.
Trata-se de uma posição, de uma tese filosófica sobre a arte. Talvez ALTHUSSER,
quando o “cachorro do estruturalismo [lhe] passou entre as pernas” tivesse alguma razão
ao afirmar – filosoficamente – que as questões da filosofia são imunes à história e, por
isso, em nenhum tempo ficam definitivamente decididas. A tese de que se trata pode
resumir-se em poucos enunciados: 1. a arte é por essência antipopular (sublinhe-se: não
simplesmente impopular, mas antipopular); 2. a arte divide a sociedade em duas
variedades distintas da espécie humana: uma elite de homens estéticos (uma
“aristocracia instintiva”), de um lado, e uma multidão de gente vulgar (a “massa”
popular), do outro; 3. a arte é indiferente aos problemas da vida humana; nada do que é
humano lhe interessa.
Em rigor, estes enunciados são mais prescritivos do que descritivos.
Apresentam-se como orientações de acção estratégica para a resistência das “minorias
selectas” contra a rebelião das massas. ORTEGA Y GASSET intitula assim o
fenómeno que outros interpretam como democratização, a saber, a crescente invasão
dos espaços públicos por pessoas anónimas: “Agora, de repente, aparecem sob a espécie
de aglomeração e os nossos olhos vêem por toda a parte multidões. Por toda a parte ?
Não, não; precisamente nos lugares melhores, criação realmente refinada da cultura
humana, reservados antes a grupos menores, em definitivo, a minorias” (1959, 57).
Dantes, o povo excluía-se dos prazeres de carácter artístico e luxuoso e abstinha-se de
juízos sobre as questões do governo. As actividades relevantes eram naturalmente
entregues à competência inquestionável de minorias qualificadas. “A massa – observa
ORTEGA Y GASSET – não pretendia intervir nelas ... Conhecia o seu papel numa
saudável dinâmica social” (1959, 60-1). Agora é totalmente diferente: “resolveu avançar
para o primeiro plano social e ocupar os locais, usar os utensílios e gozar dos prazeres
antes adscritos a poucos ... Hoje assistimos ao triunfo de uma hiperdemocracia
...Vivemos sob o brutal império das massas” (1959, 61 e 63).
Mas o filósofo espanhol não se limita a constatar e a lamentar estes sinais do
tempo: ele exorta a uma contra-rebelião das elites. E, embora o diagnóstico que faz da
contemporaneidade seja pessimista, é com optimismo que encara o futuro, profetizando
uma nova hegemonia aristocrática e o consequente fim da nivelação social: “Aproxima-
se o tempo em que a sociedade, da política à arte, se voltará a organizar, como é devido,
em duas ordens ou condições: a dos homens ilustres e a dos homens vulgares. Todo o
mal-estar da Europa acabará por desembocar e sarar nesta nova cisão salvadora” (2003,
42). A cultura será o factor determinante desta cisão. Para que a sociedade seja re-
aristocratizada é necessários que as expressões culturais sejam aversivas à multidão.
É assim que os enunciados de ORTEGA Y GASSET sobre a arte se tornam
prescritivos: a arte, em si mesma, não é antipopular, mas os artistas devem esforçar-se
para que ela o seja. O objectivo é reduzir o povo à sua insignificância social, ter sobre
ele o efeito de o obrigar a reconhecer-se como aquilo que é: “simples povo” e “matéria
inerte do processo histórico”. Concomitantemente, a arte deve contribuir “para que os
‘melhores’ se conheçam e reconheçam entre o cinzento da multidão e descubram a sua
missão que consiste em serem poucos e em terem que combater contra muitos” (2003,
41-2). Como é isso possível ? Segundo o filósofo, bastará prosseguir a tendência para a
desumanização iniciada pela arte nova. “Esta tendência levará a uma eliminação
progressiva dos elementos humanos, demasiado humanos, que dominavam a produção
romântica e naturalista”. Nesta perspectiva, a arte do futuro deverá cortar todos os seus
laços com o mundo não metafísico da vida comum, excluindo de si temas, personagens
e estilos que possam ser atractivos para a sensibilidade de um público popular. “Será
uma arte para artistas e não para a massa dos homens; será uma arte de casta e não
demótica” (2003, 45).
É demasiado evidente para que valha a pena sequer referi-lo o facto de que são
as diatribes demofóbicas de NIETZSCHE que alimentam esta mundividência elitista de
ORTEGA Y GASSET. A rebelião das massas é manifestamente um eco da rebelião
dos escravos que, segundo o filósofo alemão, estaria a transformar o europeu numa
“espécie diminuída, quase ridícula, um animal de rebanho, dócil, doentio e medíocre
...”. Concretamente, no que respeita à desumanização da arte, ela tem a sua matriz
ideológica na origem da tragédia onde o jovem NIETZSCHE, apóstolo de Diónisos,
proclama a condição antimoral e inumana da verdadeira obra artística. Os artistas são
semideuses que falam de deuses e de outros semideuses. Foi assim nos primórdios da
tragédia grega. Para o assunto que aqui desenvolvo, não interessam as lucubrações de
NIETZSCHE sobre o sucesso estético da feliz combinação dos dois princípios
estruturantes e originários da tragédia, o espírito apolíneo e o instinto dionisíaco.
Somente interessa saber onde vai ele descortinar razões para explicar o que
subjectivamente percepciona como morte daquela arte. Pois bem ! O declínio terá
começado quando o poeta EURÍPEDES decidiu, nas suas obras, trocar o céu pela terra,
as peripécias fatídicas de heróis sobre-humanos pela epopeia vital de gente comum.
Para o dizer no mesmo jogo de linguagem de ORTEGA Y GASSET, a causa letal
apontada por NIETZSCHE consiste justamente na humanização da arte. Escreve o
filósofo alemão: “Quem reconheceu de que substância, antes de Eurípedes, eram
formados os heróis dos trágicos prometeicos, e quanto estes estavam longe de querer
apresentar no palco qualquer máscara fiel da realidade, compreenderá agora também
nitidamente a absoluta divergência das tendências de Eurípedes. Devido a este, o
homem comum deixou o banco dos espectadores e subiu ao palco; o espelho, que
outrora reflectia só nobres e altivas feições, passou a representar com exactidão servil e
a reproduzir com minúcia todas as disformidades da natureza ... o espectador via e ouvia
o seu próprio duplo nas cenas de Eurípedes e rejubilava sinceramente com a sagacidade
demonstrada pelo seu sósia nos vários discursos” (1982, 90).
NIETZSCHE não verbera apenas banalização social das personagens, a
ocupação do espaço cénico por figuras da vida quotidiana; a sua ira vai sobretudo contra
a exoneração dos deuses e heróis, obrigados a ceder o protagonismo a parceiros de cena
menos nobres. Seja dado o exemplo de JASÃO na Medeia. Este herói lendário tornou-
se um pusilânime calculista que abandonou a mulher que lhe salvara a vida, e de quem
tinha dois filhos, para casar por interesse com CREUSA, filha de CREONTE, rei de
Corinto. Em contraste, emerge como verdadeira heroína MEDEIA, a mulher traída, que,
cega pelo ciúme, vai ao ponto de sacrificar a vida dos próprios filhos para saciar o seu
irreprimível desejo de vingança. Paixões humanas, sem dúvida; e, no entanto, nada que
constituísse novidade face à tradição das velhas teogonias e tragédias. O que, para
NIETZSCHE, era insuportavelmente humano, demasiado humano, não era o escândalo
da violência e do infanticídio (factos amorais na óptica do esteta), mas sim a mudança
de valores sociais e culturais que a peça espelhava e promovia. A ordem dos senhores
estava a ser subvertida pela autoconsciência dos escravos insubmissos. MEDEIA
representa no palco o despertar social da autoconsciência da condição feminina: “De
quanto há dotado de vida e razão, somos nós, as mulheres, a mais mísera criatura. Nós
que primeiro temos de (...) tomar um déspota do nosso corpo. E nisso vai o maior risco,
se o tomamos bom ou mau. Pois a separação para a mulher é inglória e não pode
repudiar o marido (...) Para nós, força é que contemplemos uma só pessoa. Dizem que
nós vivemos em casa uma vida sem risco enquanto eles combatem com a lança.
Insensatos ! Como eu preferiria mil vezes estar na linha de combate a dar à luz uma só
vez !” (230-250). Em Medeia, se há um grito de revolta, há também presságios de
esperança: “A fama mudará ...; a honra virá para a raça das mulheres e fama inglória
não mais nos manchará” (415-420).
A obra de EURÍPEDES dá testemunho da vontade de emancipação humana. E
dá força a essa vontade apresentando a emancipação como possível. É uma visão
optimista que pressupõe uma concepção racional-voluntarista do mundo. A
irracionalidade existente no mundo não é inelutável: pode ser vencida pelo
conhecimento e pela acção. O mundo pode ser melhor, isto é, mais racional, isto é, mais
humano. Com esta mensagem, EURÍPEDES humanizou a tragédia e isso significa que a
colocou ao serviço da humanização da vida. Ridicularizou ou pôs em questão a
existência da velhas divindades, fez cair do pedestal os míticos vencedores da guerra de
Tróia e, sobretudo, em pleno tempo de guerra, quando ALCIBÍADES se preparava para
a sua desastrada expedição à Sicília, denunciou nas Troianas o absurdo de todas as
guerras: os motivos serão sempre tão frívolos como a infidelidade de HELENA e os
efeitos de autodestruição tanto se farão sentir nos vencidos como nos vencedores.
“Deve, pois, evitar a guerra quem quer que tenha senso” (400).
Humanizando a tragédia, EURÍPEDES tê-la-á condenado à morte: tal é a tese de
NIETZSCHE. Trata-se de uma tese ideológica sob a aparência de tese estética. Na
verdade, não é a sobrevivência da tragédia que está em causa, mas a continuidade ou a
transformação do mundo social que nela se reflecte. De resto, o próprio filósofo não
esconde esse facto ao reconhecer que “existe uma luta eterna entre a concepção teórica
[quer dizer, racional] e a concepção trágica do mundo” (1982, 125). Antecipa aqui o que
ALTHUSSER enunciará como luta de classes na teoria. A concepção trágica veicula e
produz tolerância ou resignação perante os dramas concretos da vida humana. Por
conseguinte, não é apenas o problema de se postular a indiferença moral como condição
para que o espectador possa sentir “alegria estética”; bem mais preocupante do que isso
é a extrapolação para as situação do mundo real. O espectador faz no teatro a
experiência da contemplação neutra e da alegria estética como prémio dessa atitude de
neutralidade. Facilmente aprenderá a abster-se de qualquer intervenção destinada a
submeter a trama da narrativa mítica aos seus desejos e sentimentos. Segundo
NIETZSCHE, a mesma aprendizagem deve ser feita em relação à inevitabilidade dos
acontecimentos da vida e tal seria a missão da tragédia antes de EURÍPEDES, qual seja
a de fazer pensar “que o mundo e a existência não podem ter justificação alguma, a não
ser como fenómeno estético; assim compreenderemos [acrescenta ele] que o mito
trágico tem precisamente por fim convencer-nos de que até o que nos parece horrível e
monstruoso não é mais do que uma representação estética, com que a vontade brinca na
eterna plenitude da sua alegria” (1982, 170).
A concepção trágica do mundo é, assim, ideológica no duplo sentido:
encobridor e inibidor. Encobre a origem exclusivamente humana da ordem estabelecida
ao mesmo tempo que sacraliza essa mesma ordem para a imunizar contra a rebelião
auto-reprimida dos descontentes. Foi sempre assim na história da humanidade desde
que ela, no seu verdadeiro pecado original, se cindiu em senhores e escravos, em
proprietários e não-proprietários, em ricos e pobres. Em contrapartida, a concepção
racional do mundo é, ela também, ideológica, porém no duplo sentido inverso:
descobridor e indutor de acção. Põe a descoberto a base injusta das relações sociais e,
por impulso do saber crítico, faz nascer o imperativo moral de uma acção
emancipadora. NIETZSCHE, honra lhe seja feita, não pretende iludir o carácter de
classe da sua posição; e, por isso, escreve sem rodeios as considerações seguintes:
“Nada há mais terrível do que um povo bárbaro de escravos a quem ensinaram a ver que
a sua existência é uma injustiça, um povo que assim vai preparando a vingança não só
para a sua geração mas também para todas as gerações do porvir. Contra a ameaça de tal
assalto, quem ousaria, com segurança, clamar pelo auxílio das nossas religiões anémicas
e cansadas... O estado é tal que o mito, condição prévia e necessária de toda a religião,
já por toda a parte parece destituído de força, e até mesmo neste domínio reina agora
aquele espírito optimista que acabamos de definir como germe mortífero da nossa
sociedade” (1982, 132).
A denúncia do papel demolidor que EURÍPEDES desempenhou na putativa
morte da tragédia foi feita ao tempo por ARISTÓFANES em várias das suas peças,
muito em especial nas Rãs. NIETZSCHE em tudo reproduz as censuras do
comediógrafo. E dele colheu também a convicção de que SÓCRATES, mais do que um
amigo do poeta, fora o seu mentor. Terá sido por influência directa do filósofo que
EURÍPEDES renunciou à grandiloquência dramatúrgica de SÓFOCLES e ÉSQUILO
para dar à arte trágica uma intencionalidade assumidamente didáctica e edificante.
Privilegiando a comunicação pelo envolvimento emocional do público, as suas obras
teriam que ser escritas numa linguagem acessível, próxima da usada na vida quotidiana,
de forma a assegurar a inteligibilidade e o interesse da narrativa. Daí a utilização dos
prólogos para tornar compreensível desde o início todo o enredo subsequente. Segundo
NIETZSCHE, sempre a fazer fé em ARISTÓFANES, este socratismo estético terá
alcançado os seus objectivos: “Se a partir de então as multidões começaram a filosofar,
a discutir os negócios públicos e a querer administrá-los, deve-se isso à iniciativa de
Eurípedes, porque tal foi o resultado da sabedoria que ele inoculou à populaça” (1982,
91). Se isto é verdade, e seguramente é verdade pelo menos enquanto programa de
acção, então bem poderemos dizer que EURÍPEDES, a máscara de SÓCRATES, deu
um grande contributo para a humanização da política.
Identificando-se ideologicamente com ARISTÓFANES, empenhado como ele
no eterno retorno da luta contra a democracia, NIETZSCHE não hesitou em tomar como
histórico o SÓCRATES aristofânico. Fez bem porque o retrato feito por
ARISTÓFANES é fiável; fez mal, contudo, em ir além dele, retocando a imagem do
inimigo comum com pinceladas de dogmatismo teórico.
Dito isto, fico com duas demonstrações para fazer daqui para a frente: 1) a de
que há razões bastantes para crer que o SÓCRATES literário de ARISTÓFANES
corresponde ao SÓCRATES-real; e 2) a de que este não fingia nem mentia quando
reiteradamente protestava a sua ignorância nos assuntos que serviam de tema às
conversações filosóficas que entabulava com amigos, adversários ou simples
interlocutores de ocasião. Ao contrário do que NIETZSCHE supunha, para
SÓCRATES, em coerência com a sua visão da política como democracia, só o não-
saber era ensinável.
O SÓCRATES aristofânico, tal como aparece representado nas Nuvens, para ser
digno de crédito histórico, deve ser confirmado por outras fontes coevas do filósofo.
Não sendo estas nem muito numerosas, a “regra de ouro” seria buscar traços de
personalidade coincidentes em todas elas. Na economia deste texto, bastará no entanto
tomar PLATÃO como testemunha abonatória. Se o resultado for positivo, a presunção
de verdade da recriação teatral feita por ARISTÓFANES ganhará, sem dúvida, um
reforço acrescido já que é precisamente com fundamento nas obras de PLATÃO que se
tem construído a “lenda socrática” mais contrastante com a versão da comédia. É claro
que, para a acareação, interessa aqui sobretudo a Apologia de Sócrates por ser essa a
obra mais biográfica e, além disso, porque a veracidade dos factos nela narrados nunca
foi posta em causa.
As Nuvens não é uma comédia escrita para divertimento do público, mas sim
para combater a cosmovisão democrática, ainda que seja indiscutivelmente divertida. É
muito provável que o próprio SÓCRATES achasse graça à representação. Na altura
deveria sentir-se seguro como cidadão da mais liberal de todas as cidades gregas.
Tratava-se, no entanto, de um autêntico libelo contra o filósofo com a agravante de não
admitir a respectiva contradita. No breve tempo do espectáculo e na forma eficaz da
farsa, ARISTÓFANES apresenta a escola de SÓCRATES, o pensadouro, como lugar
de ideias subversivas, ilustra os efeitos desintegradores sobre quem segue o seu ensino e
termina com a destruição da escola e a morte dos seus ocupantes pelo fogo. As ideias
subversivas são, em primeiro lugar, as dos físicos jónios representados por
ANAXÁGORAS, ideias que dessacralizam a natureza e assentam o conhecimento na
observação empírica. Na peça, SÓCRATES faz a sua entrada em cena suspenso numa
cesta donde examina o sol. A ESTREPESÍADES que o procura para aprender com ele a
“arte de ganhar qualquer causa” dirá que só os elementos da natureza são reais, “tudo o
demais são histórias”. E, então o Zeus olímpico ? questionará aquele perplexo. “Deixa-
te de tolices, Zeus não existe”, tal é a resposta peremptória que ouviu do filósofo.
Subservisas são, em segundo lugar, as ideias dos sofistas, nomeadamente
GÓRGIAS, PROTÁGORAS, PRÓDICO e ANTIFONTE. Desta feita são ideias
políticas, mas, do mesmo modo que as da física, também elas postulam como condição
prévia de emancipação o ateísmo ou, no mínimo, o agnosticismo. Os sofistas ofereciam
à democracia o seu suporte teórico: o governo da cidade é assunto exclusivo dos
homens e não dos deuses – esses desconhecidos; a cidade é uma associação de homens
livres que tem na sua génese um contrato social e só a vontade expressa dos cidadãos
confere legitimidade à formação e ao exercício de qualquer governo. Esta humanização
da política implicou a substituição do argumento da autoridade pela autoridade do
melhor argumento. Não há dogmas; há simplesmente opiniões que devem fazer prova
da sua bondade mediante a retórica e a dialéctica argumentativa. É certo, porém, que um
uso mal-intencionado destas técnicas de comunicação pode dar a vitória à pior das
opiniões. E é esse indesmentível perigo que ARISTÓFANES explora na sua comédia.
FIDÍPEDES, filho de ESTREPESÍADES, irá ele aprender no pensadouro a “arte de
ganhar qualquer causa”, já que o pai se mostrara incapaz devido à idade. Dali sairá um
sofista feito e acabado e isso, no contexto da peça, quer dizer que terá perdido a fé nos
deuses e nos valores tradicionais, ficando apto a defender princípios contrários à justiça.
O pai fica naturalmente orgulhoso. Por pouco tempo, porém. Tendo emitido uma
opinião desfavorável a EURÍPEDES, provoca a cólera do filho, que lhe bate e
sofisticamente demonstra que é justo um filho bater no pai. Previsivelmente,
ESTREPESÍADES acaba arrependido diante de HERMES que o aconselha a deitar fogo
o mais depressa possível à casa dos palradores: “Mil razões há para isso, mas a principal
é que tenham ultrajado os deuses”.
A peça foi representada pela primeira vez em 423, durante as festas em honra de
DIÓNISO. Vinte e quatro anos depois, em 399, é apresentada por MÉLITO, um jovem
poeta, a seguinte acusação contra SÓCRATES: “Eu, Mélito, do demo de Piteia, acuso
sob juramento Sócrates, filho de Sofronisco, do demo de Alopece. Sócrates é culpado
de não reconhecer como deuses os deuses tradicionais e de querer introduzir novas
divindades; é também culpado de corromper a juventude. Pena pedida: a morte”. A
acusação foi apoiada em tribunal por LÍCON e ÂNITO, sendo este uma figura
proeminente da democracia recém-restaurada. PLATÃO assistiu ao julgamento. Tinha
menos de trinta anos e era na altura um amigo e admirador do acusado. Ninguém duvida
de que o texto da sua Apologia seja um registo bastante fiel do discurso de autodefesa
proferido por SÓCRATES. “Que assacam contra mim os meus caluniadores ? Como
num processo regular, precisarei de vos apresentar o teor da acusação: Sócrates erra por
investigar indevidamente o que se passa em baixo na terra e em cima no céu, por deixar
bons os argumentos ruins e também por induzir outros a fazerem a mesma coisa ...
Proposições deste jaez vós mesmos vistes na comédia de Aristófanes ...”.
SÓCRATES ilustrará a sua verdadeira actividade quotidiana e explicará como
essa actividade sempre fora geradora de inimigos como aqueles que o levaram a
tribunal. Com ironia ou não, disse que o seu procedimento habitual se devia a um
desafio do oráculo de Delfos segundo o qual ninguém seria mais sábio do que ele. “...
Decidi-me a investigar o caso deste modo: fui ter com um indivíduo considerado sábio
... Não há necessidade de declinar-lhe o nome; era um dos nossos homens públicos.
Mas, ao questioná-lo, aconteceu o seguinte: no decurso da nossa conversação, quis
parecer-me que ele passava por sábio para muita gente, mas principalmente para ele
mesmo, quando, na verdade, estava longe de sê-lo. De seguida procurei demonstrar-lhe
que ele se considerava sábio sem o ser, do que resultou atiçar contra mim o seu ódio e
de muitas pessoas presentes. Depois, ao retirar-me, falava a sós comigo: mais sábio do
que este homem terei de ser realmente. Pode bem dar-se que, em verdade, nenhum de
nós conheça nada belo nem bom; mas este indivíduo, sem saber nada, imagina que sabe,
ao passo que eu, sem saber, de facto, coisa alguma, ao menos não presumo saber”.
A repetição judicial do libelo de ARISTÓFANES prova que SÓCRATES não
mudou ou, se quisermos, mudou muito pouco ao longo de um quartel de século. Não se
dedicaria agora às ciências da natureza, mas a dessacralização do mundo que resultava
da investigação feita nesse domínio era um pressuposto fundamental do seu ensino
político. SÓCRATES dizia com verdade que não ensinava nada a ninguém. Ensinava,
porém, o não-saber que ele sabia, ou seja, como ele dizia, uma certa sabedoria que lhe
era própria. “Em cada caso concreto, sempre as pessoas presentes imaginavam que eu
era entendido no assunto em que punha a nu a ignorância dos demais ... Ora, esses
indivíduos assim examinados zangam-se comigo em vez de se zangarem com eles
mesmos e espalham que um celerado de nome Sócrates anda a corromper os moços”.
NIETZSCHE tem razão quando refere o optimismo socrático e diz que
“SÓCRATES julgou que devia endireitar o mundo” (103). Errou, porém, ao associar
aquele optimismo e este voluntarismo ético ao dogmatismo metafísico de um PLATÃO
pós-socrático. Com nitidez se pode ver no SÓCRATES da Apologia platónica o mesmo
SÓCRATES que ARISTÓFANES ridicularizou numa comédia que seria
completamente desprovida de graça se o público, sem dificuldade, não reconhecesse na
caricatura da personagem o modelo com o qual todos conviviam no quotidiano. Mas já
não é possível vilumbrar qualquer identidade entre o SÓCRATES da mesma Apologia e
o SÓCRATES, por exemplo, da REPÚBLICA: este último tem dogmas a ensinar;
aquele nada ensina, só desfaz certezas.
E é justamente disso que se trata: destruir certezas. Donde se conclui que, ao
contrário do que NIETZSCHE afirma, o filósofo grego nunca poderia ser o protótipo
original do homem teórico característico do cientismo moderno. Não porque ele fosse
céptico relativamente ao valor da ciência, mas porque era doutra esfera a missão em que
se empenhava e pela qual foi condenado à morte. Não se ocupava nem se preocupava
com o conhecimento do mundo natural, mas com as formas de vida do mundo social e
com o governo da pólis.
Vejamos agora por que razão SÓCRATES não fingia nem mentia quando se
proclamava incompetente para ensinar nas matérias que constituiam objecto das suas
conversas de rua. A sua competência esgotava-se na refutação: ir além dela seria expor-
se à mesma refutabilidade. Não podia preencher um falso saber com outro saber que
seria igualmente falso. É preciso fazer aqui uma correcção de ordem epistemológica. No
domínio da razão prática, aquele em que SÓCRATES actua, os saberes não são falsos
nem verdadeiros. Não se trata de fazer corresponder enunciados descritivos a factos,
mas enunciados performativos a finalidades pragmáticas. Por isso, quando SÓCRATES
refuta a pretensão de validade de um saber prático, não está a pretender dizer que ele é
falso, porque tal implicaria o prévio conhecimento do seu contrário, o saber verdadeiro;
está, em vez disso, a mostrar que esse saber é desajustado à finalidade e ao sentido de
toda a acção humana: a emancipação ou a realização de si mesmo. É desajustado porque
foi construído no paradigma do saber teórico: como um saber anterior às contingências
da sua aplicação. Um saber, contudo, não adquirido por intuição empírica, mas por
assimilação de uma imemorial tradição dogmática.
A ilustração pode ser dada com recurso à Antígona de SÓFOCLES. A heroína
realizou um acto de piedade proibido por um decreto de ORESTES e defende-se assim
perante o rei: “Tal não me foi prescrito por Zeus, nem a Justiça que coabita com os
deuses subterrâneos estabeleceu essa lei entre os homens. Tão-pouco creio que as tuas
ordens tenham tanta força, sendo tu um simples mortal, de modo a poderem derrogar as
leis não escritas e inconcussas dos deuses. Porquanto essas não são apenas de hoje nem
de ontem, mas vigoram sempre e ninguém sabe quando é que elas apareceram” (450-
455).
As crenças irracionais, a superstição, os tabus e os preconceitos são auto-
alienações que inibem a transformação das condições existentes. HEGEL diria que o
Espírito está dessa forma em contradição consigo mesmo: “Ele constitui para si mesmo
o verdadeiro obstáculo que é preciso superar”. Superação, porém, que jamais acontecerá
sem uma imensa luta de morte entre a parte que quer perpetuar o estado de alienação e a
parte que almeja a liberdade. Na sociedade, ninguém pode deixar de tomar lugar neste
confronto. A filosofia socrática consente que definamos a liberdade como o contexto
que permite a cada um a realização de si. Ela é, consequentemente, o maior dos bens
desejáveis. Todos os outros são maiores ou menores em função da sua utilidade em
ordem à consecução daquele; inversamente, a grandeza dos males é determinada pelo
grau de entrave que possam criar à expansão das potencialidades humanas. Ora,
ninguém, de forma deliberada, prefere um mal em detrimento de um bem, nem escolhe
entre dois bens o menor ou entre dois males o maior. Quer dizer que ninguém erra na
escolha dos bens e dos males a não ser por ignorância. Segundo o relato da Apologia,
SÓCRATES já se contentava somente em combater a ignorância-da-ignorância dos
falsos conhecedores do bem e do mal ou do justo e do injusto.
NIETZSCHE reproduziu com fundamento um lugar comum segundo o qual
SÓCRATES identifica virtude e conhecimento. Só que, com falácia anacrónica, colocou
esse conhecimento no paradigma moderno da causalidade científico-natural: “Penetrar
na profundidade das causas, distinguir do erro e da aparência o verdadeiro
conhecimento, foi para o homem socrático a vocação mais nobre, a única digna da
humanidade.... Até mesmo as mais nobres acções morais, os ímpetos de piedade, de
sacrifício e de heroísmo.... tudo isso, aos olhos de Sócrates e dos seus sucessores....
recai sob o domínio da dialéctica do saber e, como tal, pode ser ensinado” (1959, 114-
115). Já vimos que tal não corresponde ao modelo de racionalidade dentro do qual,
durante anos a fio, SÓCRATES submetia a exame a presunção de saber dos seus
interlocutores. Existe, no entanto, um paradoxo aparente no entendimento socrático de
virtude como conhecimento do bem. Esse paradoxo foi assinalado no termo, como
sempre inconclusivo, de um dos diálogos do jovem PLATÃO, mais concretamente no
Protágoras, onde um hipotético ouvinte do diálogo não deixaria de exprimir a sua
perplexidade face ao que julgaria ser uma contradição de SÓCRATES. Este, com efeito,
rebate a posição de PROTÁGORAS segundo a qual a virtude pode ser ensinada, mau
grado não ser conhecimento, contrapondo-lhe a tese contrária, ou seja, que a virtude é
conhecimento, porém não pode ser ensinada.
Pessoa virtuosa é aquela que, em cada circunstância, é capaz de deliberar e agir
em conformidade com as necessidades do seu autodesenvolvimento. Na ciência dos
objectos do mundo físico, o conhecimento é formado pelo domínio dos respectivos
conceitos e estes são ensináveis. Ao contrário, quando se trata de fazer uma escolha
moral ou política, o saber que a determina é a representação do que, na altura, se tomará
por bem maior e isso não se conhece por antecipação.
É curioso reencontrar esta tese, exposta rigorosamente nos mesmos termos, na
Ética de ESPINOSA. Como SÓCRATES, também este filósofo afirma que existe um
vínculo de necessidade entre as opções que se fazem na vida e o conhecimento que se
possui do bem. Segundo ele, escolhe-se sempre em função do que se julga ser um bem
ou um mal e não porque o objecto da escolha em si mesmo seja realmente bom ou mau.
Se o conhecimento for inadequado, como acontece quando ele está submetido à
influência de mitos e superstição, as opções que se fazem, mais cedo ou mais tarde,
revelar-se-ão contraproducentes. Só um conhecimento adequado fará recair a escolha
sobre o que, na altura, é o proprium utile, o verdadeiro bem. Por palavras de
ESPINOSA: “Do homem, enquanto é determinado a fazer alguma coisa pelo facto de
ter ideias inadequadas, não pode em absoluto dizer-se que age por virtude.... Agir
absolutamente por virtude não é em nós outra coisa senão agir, viver, conservar o seu
ser (estas três palavras significam a mesma coisa) sob a direcção da Razão e segundo o
princípio de que é preciso procurar a utilidade que nos é própria” (Ética, IV,
proposições XXIII e XXIV).
Ora, sendo que o móbil racional de toda a acção individual e colectiva é o
crescimento das possibilidades humanas, nada melhor do que uma associação de
homens constituída para esse fim universal. Portanto, não se pode desejar nada mais útil
à vida e à realização de cada um do que “todos procurarem em conjunto o que é útil a
todos. Donde se segue que os homens que se governam pela Razão.... não desejam nada
para si que não desejem também para os outros e, por conseguinte, eles são justos, leais
e honestos” (Ética, IV, proposição XVIII, escólio). Quanto à forma da organização
política daquela associação, torna-se óbvio que só a democracia é compatível com este
conceito secular e humanizado de virtude.
Mas aqui parece emergir um segundo paradoxo, agora já não na ordem interna
do pensamento socrático, mas no surpreendente desfecho das relações do filósofo com a
cidade. Surpreendente, é claro, desde que aceitemos como histórico o retrato intelectual
que resulta do testemunho de ARISTÓFANES e da confirmação feita por PLATÃO na
Apologia. Neste quadro, não há dúvida de que SÓCRATES, quer pela sua visão
desencantada do mundo, quer pela sua arte sofística da refutação exercida com o sentido
e a finalidade que vimos, só pode ser imaginado como democrata. E, no entanto, ele não
foi preso, julgado, condenado à morte e executado durante o governo dos Trinta
Tiranos: isso aconteceu após a restauração da democracia ocorrida no ano de 403. Este
facto é cruelmente desintegrador de todas as certezas. Compreensivelmente, há quem
tente reconstituir a coerência da biografia procurando outras linhas de definição. Está
neste caso MAGALHÃES-VILHENA que descobriu um novo nexo lógico-biográfico a
partir das obras que PLATÃO escreveu já depois da sua grande viragem metafísica. Se
SÓCRATES foi preso e condenado à pena máxima por delito de opinião num regime
democrático, então é porque ele seria inimigo desse regime.
Como as primeiras obras de PLATÃO não configuram nenhum pensamento
sistemático, uma primeira hipótese é pensar-se que a lacuna se ficou a dever à
imaturidade do autor das narrativas o qual, na altura em que acompanhava SÓCRATES,
não tinha ainda suficiente maturidade filosófica para captar as precompreensões latentes
que sustentam a dialéctica negativa do mestre; outra hipótese é imputar a lacuna ao
próprio SÓCRATES que seria um indagador compulsivo, todavia incapaz de passar à
construção de uma teoria minimamente consistente. Na primeira hipótese, as obras
dogmático-metafísicas de um PLATÃO mais amadurecido seriam produto da
descoberta que ele, entretanto, foi fazendo da verdadeira filosofia socrática. Na segunda,
essas mesmas obras representariam a solução consequente de problemas que
SÓCRATES só soubera colocar, mas não resolver. Alguns autores inclinam-se para a
primeira hipótese; MAGALHÃES-VILHENA escreveu os seus livros de maior sucesso
defendendo a segunda: “O mérito de Sócrates, tal como no-lo mostram os [primeiros]
Diálogos, consiste em haver posto o problema, em haver surpreendido as dificuldades e
ter tentado resolvê-las. O mérito de Platão, tal qual ressalta dos seus últimos Diálogos,
consistiria em ter sabido encontrar uma resposta para essas dificuldades” (1998, 344).
Seja como for, haja doutrina subentendida ou somente indagação inacabada, em
ambos os casos sempre deveríamos ver no platonismo a verdade do socratismo. E isso
significa ter que ignorar o SÓCRATES de ARISTÓFANES, convindo que este fez uma
“imperdoável confusão”, como pretende CHÂTELET, ou então que ele, pura e
simplesmente, com a liberdade própria de um autor cómico, terá feito uma provocação
divertida a um amigo de grandes ceias e convívios, amizade que o Banquete de
PLATÃO parece comprovar; mas significa, sobretudo, colocar SÓCRATES no campo
oposto ao dos democratas, admitir com MAGALHÃES-VILHENA que ele teria sido “o
dirigente intelectual incontestado e incontestável da reacção aristocrática no momento
decisivo da democracia triunfante”. Nesta perspectiva, o processo de SÓCRATES faria
realmente sentido.
Pode, porém, encontrar-se uma explicação alternativa para o enigma. E é essa
que proponho. Basta que, em vez de tentar ver a sombra de SÓCRATES no
reaccionarismo político da doutrina platónica, se questione antes sobre a autenticidade
democrática do regime que o condenou. Ora, o facto é que a democracia restaurada em
Atenas no ano de 403 deixava muito a desejar quanto à pureza dos seus princípios. O
governo dos Trinta Tiranos fora imposto por Esparta, vencedora da guerra do
Peloponeso. Só que a continuidade do regime implicava para o Estado protector um
esforço de guerra que atingira os limites da sustentabilidade. Passou-se,
consequentemente, da guerra à diplomacia. Foi, então, assinado sob a égide do rei de
Esparta um acordo de paz entre os moderados das duas facções rivais, oligarcas e
democratas. Este acordo incluía uma lei de amnistia que foi rigorosamente observada.
Atenas, agora sob o novo governo, manteve a sua aliança com Esparta, a tal ponto que,
justamente no ano em que SÓCRATES vai a julgamento, ambas as cidades integram
uma expedição contra uma outra onde reinava a democracia e que, inclusive, tinha
apoiado os democratas banidos pelo regime dos Trinta.
Curiosamente, os dois principais acusadores de SÓCRATES são representantes
proeminentes de cada uma das facções reconciliadas. ÂNITO é um dos políticos mais
poderosos da democracia restaurada e um dos homens mais ricos da cidade; MÉLITO,
por seu lado, foi um dos negociadores da paz de 403 pelo lado dos oligarcas. Que
perigos trazia SÓCRATES à polis que justificassem a associação daqueles dois
adversários políticos na mesma iniciativa judicial? Pode dizer-se que MÉLITO vai ao
Tribunal dos heliastas para um tardio ajuste de contas do anterior regime contra o
filósofo a quem um dia CRÍTIAS, o chefe dos Trinta Tiranos, segundo o testemunho de
XENOFONTE, proibira de emitir opiniões políticas na praça pública junto de cidadãos
comuns: “parece-me que tu os tens completamente manipulado à força de lhes falar”
(Memoráveis, I, II, 37). Por sua vez, ÂNITO vai tentar, dito com palavras anti-
socráticas de PLATÃO, limpar a cidade de um “filósofo bastardo” que anda a instigar a
rebelião, procurando convencer os oprimidos de que a sua condição se deve à
malignidade do governo e não aos desígnios incontrariáveis dos deuses. “Ora, a melhor
depuração é dolorosa.... é a que não opera a correcção senão mediante a sentença penal
e tem como pena máxima a morte ou o exílio” (Leis, 735 d-e).
A mudança de regime não trouxera melhores condições de vida para a classe
popular. O armistício declarou inviolável a propriedade, gorando assim a expectativas
alimentadas durante a guerra de uma nova divisão das terras. As desigualdades sociais
agravaram-se, o que, naturalmente, terá feito aumentar o número dos ouvidos
permeáveis à eloquência corrosiva de SÓCRATES. Lembremo-nos da observação de
NIETZSCHE: “Nada há mais terrível do que um povo bárbaro de escravos a quem
ensinaram a ver que a sua existência é uma injustiça, um povo que assim vai preparando
a vingança não só para a sua geração mas também para todas as gerações do porvir”. A
concepção trágica da existência induz à resignação, ao amor fati, mas a compreensão
racional do sentido emancipador da vida política é, pelo contrário, indutora de gestos de
inconformidade e rebelião. SÓCRATES combatia mitos e preconceitos inibidores,
esclarecendo que não são os deuses quem decide pelos homens, quem prescreve a
riqueza ou pobreza de cada um, quem eternamente dá a norma para as leis que
perpetuam o poder dos mais ricos. O filósofo fornecia aos atenienses as premissas que
permitiam concluir que eram eles próprios, humanos, simplesmente humanos, quem
realmente decidia, bem ou mal, de acordo com a consciência que pudessem ter do seu
interesse comum. Os poderosos da cidade não lhe perdoaram esta sua teimosa luta pela
humanização da política.

IV Conferências Internacionais de Epistemologia e Filosofia


Viseu, Instituto Piaget, 10 de Novembro de 2005

Bibliografia

ARISTÓFANES (2004), Las once comedias, México: Editorial Porrúa.


EURÍPEDES (1991), Medeia, Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos.
MAGALHÃES-VILHENA, V. (1998), Platão e a lenda socrática, Lisboa: Fundação
Caloste Gulbenkian.
NIETZSCHE, F. (1982), Origem da tragédia, Lisboa: Guimarães & C.ª Editores.
ORTEGA Y GASSET, J. (1959), A rebelião das massas, Rio de Janeiro: Livro Ibero-
Americano.
ORTEGA Y GASSET, J. (2003), A desumanização da arte, Coimbra: Almedina.
PINTO, F. Cabral (2002), Sócrates, um “filósofo bastardo”, 2ª ed., Lisboa: Instituto
Piaget.
PLATÃO (1970), Diálogos, São Paulo: Edições Melhoramento.

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