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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais


Programa de Pós-graduação em História Social

RETÓRICA E POLÍTICA
NAS PÁTRIAS DE FREI CANECA

HEITOR PINTO DE MOURA FILHO

Seminário “P ens ame nto S ocial e P olítico no Br as il”

Pr of. José Mur ilo de Carvalh o

FEVEREIRO 2004

-1-
Í ND ICE

INTRODUÇÃO

CONTEXTOS DA DISSERTAÇÃO

A RETÓRICA DE FREI CANECA

AS AUDIÊNCI AS DA DISSERTAÇÃO

REFERÊNCIAS BIBLI OGRÁFI CAS

-2-
"De tudo isto se conhece que não há coisa alguma no cidadão que se não
deva propor ao bem da pátria; e tudo se deve sacrificar à conservação,
lustre e glória da república."
Frei Caneca na Dissertação sobre o que se deve entender por pátria do
cidadão e deveres deste para com a mesma pátria
(início de 1822)

“Certifico que o réu frei Joaquim do Amor Divino Caneca foi conduzido
ao lugar da forca das Cinco Pontas, e aí pelas nove horas da manhã
padeceu morte natural, em cumprimento da sentença da comissão militar,
que o julgou (...)”

Miguel Arcanjo Póstumo do Nascimento, o escrivão do crime, nos autos


do processo de frei Caneca
(13 de janeiro de 1825)1

INTRODU ÇÃO

Os argumentos de frei Joaquim do Amor Divino Caneca em favor da primazia da patria ubi bene
est, sobre a patria in quo nati sumus, imortalizados em sua Dissertação sobre o que se deve
entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria, tornaram-se referência
muito citada, seja o tema a vida do carmelita ou as turbulências em torno da independência do
Brasil, seja tema mais analítico, como a identidade nacional brasileira. Para ilustrar essa
afirmação, sem pretensão de abrangência, podemos mencionar alguns autores.

Wilson Martins, em sua História da Inteligência Brasileira, diz

“Contrariando, com certeza, a opinião comum entre os brasileiros e, sem dúvida, a dos próprios
portugueses aqui residentes, Frei Caneca concluía que a verdadeira pátria do cidadão era a da
escolha, não a do nascimento...” (Martins 1977 p.122)

Segue lembrando que essa opinião refletiria posição anterior ao “feroz antilusitanismo a que Frei
Caneca iria entregar-se a partir do ano seguinte”. Sua volatilidade de opinião parece decorrer, na
avaliação de W.Martins, de fragilidades fundamentais: nem correspondiam aos anseios gerais,
nem foram convincentes2. Isso, quanto a seus argumentos sobre pátria, pois, em geral, Caneca
seria um “obcecado pelo fanatismo liberalista (e não liberal) que, naquele momento, era um

1
Citação de frei Caneca em (Caneca 2001a p.95). Citação do processo em (PERNAMBUCO. Comissão militar
presidida pelo brigadeiro Francisco de Lima e Silva, 2001 p.640)
2
“Ao que parece, nem brasileiros nem portugueses acreditaram na argumentação de Frei Caneca: a hostilidade entre
as duas comunidades está na fonte imediata da revolução de 1824, como havia anteriormente estado na de tantas
outras.” (Martins 1977 p.122)

-3-
fanatismo como qualquer outro...”, o que o teria arrastado a idéias “excelentemente resumidas
por Tobias Monteiro”:

“Alucinado pelas paixões desenvolvidas nas lutas locais, ele passou a sustentar que cada província
podia ‘seguir a estrada que bem lhe parecesse; escolher a forma de governo, que julgasse mais
apropriada às suas circunstâncias; e constituir-se da maneira mais conducente à sua felicidade’. A
aclamação do Imperador pelos fluminenses não obrigava os demais brasileiros.”3

Por outro lado, Maria de Lourdes Viana Lyra, em “Pátria do cidadão: a concepção de
pátria/nação em Frei Caneca”, sustenta que:

“No contexto do mundo luso-brasileiro as noções de pátria e nação continuavam, em finais do


século XVIII e início do XIX, dissociadas no contexto do projeto de unidade do Estado atlântico
português (...) A situação de impasse criada pelo conflito entre os interesses da pátria e os da nação
instigou a intervenção do frade filósofo (...) [para] despertar os cidadãos livres residentes em
Pernambuco, quanto ao encargo de se constituírem em nação e a empenharem suas vidas e seus
bens na defesa dos interesses da pátria.” (Lyra 1998)4

Finalizamos essa seqüência de exemplos com Evaldo Cabral de Mello em sua introdução à obra
de Caneca, “Frei Caneca ou a outra Independência”:

“Por ordem cronológica, o primeiro escrito político de frei Caneca é a ‘Dissertação...’, redigida no
primeiro semestre de 1822, ao tempo da junta de Gervásio Pires Ferreira, que dirigiu Pernambuco
de outubro de 1821 a outubro de 1822. (...) Embora sem exercer influência perceptível sobre a
junta gervasista, frei Caneca apoiou-a entusiasticamente, e a ‘Dissertação...’ visou a dar
formulação teórica a um dos principais objetivos de Gervásio Pires Ferreira, como seja conciliar o
comércio português da província com a nova ordem de coisas.” (Mello 2001 p.24-5)

Tendo razão os três autores, teríamos, no mesmo homem, a confluência de um radical


desequilibrado, um intelectual de vanguarda e um frade engajado.

Focando, agora, um pouco à margem dessas afirmações, verificamos que, para W.Martins, o
frade “[nem] percebia o sistema de ‘pesos e contrapesos’ – inspirado em Montesquieu,
entretanto! [que constaria de suas leituras] – que foi a Constituição de 1824. Na verdade, até
mesmo o sentido de ‘nascimento de uma nação’5, envolto nas peripécias da Independência,
parecia escapar-lhe.” Tudo isso parece decorrer, segundo o autor, do fato que, [nas palavras de
T.Monteiro] “ao contrário dos seus contemporâneos de mais alto valor, cujos símbolos seriam
José Bonifácio e Ledo, o Fr.Caneca não via na união nacional e na integridade do Brasil o
problema máximo da Independência.” Ou seja, os argumentos de Caneca não convenceram seus
leitores, ele mesmo logo mudou de opinião e, além do mais, compunham um programa
separatista, historicamente equivocado (Martins 1977 p.123-4).

3
Em História do Império, v.I, p.108-109, citado por (Martins 1977 p.123-4).
4
Não há paginação neste texto, obtido pela internet.
5
Referência às influências norte-americanas em sua formação.

-4-
M.L.Viana Lyra, ao contrário, discorre sobre diversos trechos da argumentação de frei Caneca,
aprovando sua relevância para o momento brasileiro e para o momento pernambucano, e
demonstrando como, em seu raciocínio, as noções de pátria e nação já se fundiam. Não enfatiza,
contudo, o importante componente retórico que permeia todo o texto de Caneca, dando a
entender que assume como opiniões literais as frases do publicista pernambucano.

E.Cabral de Mello aborda o contexto em que Caneca escreveu, dando ênfase à gama de opções
políticas que cada grupo enfrentava, mas, diferentemente dos dois autores anteriores, ao
explicitar as divergências entre os principais grupos políticos pernambucanos, realça uma
perspectiva sobre as intenções políticas do frade. Não entra, no entanto, em detalhes sobre a
Dissertação. Vejamos alguns aspectos dos múltiplos contextos dessa obra.

CON TEX TOS D A D IS SERTAÇÃO

No início de 1822, época em que Caneca afirma ter escrito a Dissertação6, os eventos políticos
se sucediam em passo acelerado, trazendo mudanças e perspectivas de ainda outras mudanças
para o Brasil. A ebulição ideológica desencadeada pela Revolução Francesa tornava-se mais
próxima do novo mundo, com a implantação das repúblicas na América e com as revoluções
constitucionalistas ibéricas.

Para melhor situar os variados pólos da arena politico-ideológica, podemos realçar duas
oposições principais, que concentravam polêmicas e despertavam reações repressoras. A
primeira discussão opunha monarquia a república. Inicialmente radical e de pólos excludentes,
tornou-se matizada pela possibilidade de uma monarquia constitucional. A segunda opunha a
vivência sob jugo colonial à soberania política. Esse eixo também logo se viu matizado pela
questão sobre a autonomia regional, que, no Brasil, ficou conhecida pelo enfrentamento entre
unitaristas e federalistas7. É no entrecruzamento dessas duas oposições que melhor se pode
avaliar esse contexto ideológico e político pernambucano. Essas questões devem ser analisadas
com cuidado, no entanto, pois nem sempre a “opinião convencional” corresponde às idéias então

6
Em nota inicial, Caneca avisa que “Esta dissertação foi escrita nos primeiros dias do ano de 1822 (...) e não saiu
logo à luz por falta de tipografia no país.” (Caneca 2001a nota p.53)
7
Cabe lembrar que a qualificação de “federalista”, no Brasil, marcou os defensores da autonomia provincial,
enquanto, nos Estados Unidos, ao contrário, indicou os defensores da união frente a interesses regionais.

-5-
correntes. Sobre isso, basta um exemplo. Referindo-se ao momento pós-dissolução da
Assembléia Geral Constituinte, em novembro de 1823, Glacyra L.Leite lembra que:

“...a idéia assumida em Pernambuco era de que o rompimento com o governo do Rio de Janeiro
significava a defesa dos princípios sob os quais tinha sido instituído o Estado brasileiro, isto é, a
unidade com constitucionalidade.
Dessa forma, os dois lados antagonizados – tanto os rebeldes de Pernambuco, como o governo do
Rio de Janeiro – apegavam-se ao princípio da integridade territorial. O sentido dado a esse
princípio é que se diferenciava. (...) Para o governo do Rio de Janeiro a rebelião era separatista
porque propunha um outro governo e outro sistema de governo.” (Leite 1989 p.117)8

O entendimento dos debates e atos políticos se torna mais complexo, pois ainda existem outros
eixos de opções que permeavam aquele universo ideológico. Desde o início do século, podemos
identificar a oposição entre colonialistas e autonomistas, por exemplo, no episódio em que a
maçonaria portuguesa, em busca de estabelecer-se na Bahia, onde já existiam lojas de afiliação
francesa, enfrenta dificuldades ideológicas e institucionais, pois

“...aquelas primeiras Lojas brasileiras, de certa forma ligadas ao Grande Oriente Francês, teriam
também interesse em desligar o Brasil de Portugal, não apenas no plano político-nacional, como
também no âmbito da própria organização maçônica. (...) Surgem desde aí desentendimentos entre
os ramos português e francês das Lojas maçônicas brasileiras sobretudo porque defendiam
princípios políticos diferentes, já que o antiabsolutismo da Maçonaria portuguesa não envolvia
uma posição favorável à independência colonial.” (Barreto 1970 p.201-2)

Quanto à maçonaria em Pernambuco, E.Cabral de Mello identifica um impulso britânico em sua


origem, considerando que “Desde [1813], as lojas pernambucanas tornaram-se exclusivamente
brasileiras, excluindo os portugueses, os quais por isso mesmo fizeram a sua à parte.” (Mello
2002 p.9-10)

Além da movimentação ideológica e política promovida pelas organizações maçônicas, as


experiências anteriores a 1822 – desde a transferência da corte para o Rio de Janeiro, aos
momentos revolucionários de 1817, culminando com as modificações introduzidas após a
revolução do Porto de 1820 – haviam deixado bem claro que as alternativas políticas teóricas,
aventadas nas discussões intelectuais, podiam rapidamente transformar-se em medidas práticas,
alterando drasticamente as relações sociais e a vida local. Esses mesmos eventos também haviam
mostrado que sempre existia uma gama de opções entre a completa dependência a uma
autoridade distante e o autogoverno. E mais – fato decisivo para a análise dos eventos à época da
Junta liderada por Gervásio Pires Ferreira no Recife – que esse eixo de opções não precisaria

8
A esta proposição, podemos contrapor: “Revoltas ocorreram não apenas contra o governo do Rio mas também
contra o próprio princípio monárquico. Uma das mais sérias irrompeu em Pernambuco, em 1824, onde os notáveis
locais se enfureceram com o fato de o monarca ter nomeado um novo presidente para a província sem consultá-los.
Os rebeldes eram republicanos militantes que queriam um Brasil livre de qualquer realieza. A batalha contra esses e
outros rebeldes republicanos elevava desse modo a monarquia ao nível de defensora da integridade territorial do
Brasil.” (Skidmore 2000 p.64-5)

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correr em paralelo aos eixos das discussões sobre monarquia versus república e submissão
colonial versus independência9.

Além desses temas mais definidamente políticos, haviam surgido, quase simultaneamente às
idéias políticas francesas, idéias econômicas inglesas que também apontavam para uma
revolução no trato das questões institucionais e jurídicas ligadas às atividades econômicas. Era
essencial medir palavras e posicionar-se frente a todos esses debates.

Quanto ao contexto político, vimos na citação inicial de E.Cabral de Mello que a Dissertação
tinha um objetivo explícito, que era desfazer resistências, de parte a parte, à absorção dos
portugueses na comunidade pernambucana. M. de L. Lyra explicita a indecisão dos governantes
de Pernambuco entre a monarquia constitucional, em vias de ser estabelecida pelas Cortes Gerais
de Lisboa, e o antigo sistema representado pelos Braganças no Rio de Janeiro, como motivação
para as reflexões de Caneca sobre “os elementos definidores do sentimento de pátria”10. As
próprias regras para eleição dos deputados brasileiros às Cortes requeriam a naturalidade do
candidato ou ter ele residência na província há mais de sete anos (Faoro 1977 p.268-9). Marcus
J.M.de Carvalho, por outro lado, relata os eventos transcorridos naqueles meses chegando à
conclusão que

“Essa oposição à união com o Rio (...) não era apenas fruto de idéias abstratas. O
constitucionalismo federalista tornou-se uma questão objetiva, amadurecida no próprio desenrolar
dos acontecimentos. A Junta de Gervásio Pires estava efetivamente governando a província
independente do Rio e de Portugal. Por que mexer na situação ? O constitucionalismo federalista –
a fonte desse poder e autonomia – era o cerne da questão. Agora se a sede do reino seria em Lisboa
ou no Rio, era uma questão secundária.” (Carvalho 1998)11

No entanto, a seqüência de eventos que culminou com a volta do capitão-general, Luis do Rego
Barreto, a Portugal, em outubro de 1821, passando a governar temporariamente Pernambuco a
“Junta de Goiana”, oferece um antecedente específico para a Dissertação. Desconsiderando
outros eventos, podemos nos concentrar no seguinte. Após escaramuças militares entre as forças
oficiais do governo de Rego Barreto e milícias comandadas pela Junta, houve um acordo pelo

9
J.Cruz Costa lembra que “A Revolução de 1817 foi liberal mas não deixou de ser também uma manifestação de
republicanismo. Antônio Carlos, que aderira a ela e mais tarde seria monarquista, declarava: ‘Um brasileiro liberal
podia crer em 1817 ser necessário aderir a republicanos e hoje adotar as instituições monárquicas. Naquela época a
realeza era contra a liberdade; agora não.’” (Costa 1970 p.183)
10
“A situação da província de Pernambuco era bastante particular no contexto geral do reino do Brasil. (...)
encontrava-se regida (...) por homens que haviam participado da Revolução de 1817, e ainda não demonstrava
interesse em se unir ao movimento das ‘províncias coligadas’ da parte Sul do Brasil, em apoio ao príncipe regente,
D.Pedro. Naquele momento (...) os esforços se concentravam (...) na defesa da adoção plena do sistema monárquico
constitucional adotado pelas Cortes Gerais de Lisboa. Daí o distanciamento em relação à política da corte do Rio de
Janeiro, ainda regida sob o antigo sistema. O que pode explicar a presteza de Frei Caneca em refletir com precisão
os elementos definidores do sentimento de pátria...” (Lyra 1998)
11
Também este texto foi obtido pela internet, sem paginação.

-7-
qual, até a eleição de nova junta, o governo manteria controle sobre a cidade do Recife e a Junta
de Goiana sobre o restante da província12. Este acordo foi negociado por procuradores de ambas
as partes, sendo um dos procuradores do governo (ou do Recife), Gervásio Pires Ferreira.
Marcus de Carvalho analisa:

“A saída de Luís do Rego causava um problema sério para os habitantes do Recife que o apoiaram.
Numa época em que as questões políticas sempre resvalavam para o lado pessoal, temiam-se
vinganças de lado a lado. Por essa razão, foi extremamente oportuno o manifesto distribuído na
cidade pelo procurador do Recife na convenção de Beberibe, Gervásio Pires. Nele conclamava-se a
união de todos, a não distinção dos portugueses, ‘pelo local de seu nascimento’, afinal de contas
‘os portugueses-brasileiros não vêem nos portugueses-europeus senão irmãos e amigos’.”
(Carvalho 1998)

Assim, Gervásio, que havia sido prisioneiro na Bahia junto com Caneca entre 1817 e 1821,
talvez já contasse com sua parceria intelectual, antes mesmo da Dissertação. Seja como for, o
tema da Dissertação fica muito claramente contextualizado nesses eventos políticos ocorridos
alguns poucos meses antes de Caneca sentar para escrevê-la.

O contexto político e ideológico pernambucano do início de 1822, sucintamente mencionado


acima, nos oferece um primeiro balizamento para a análise da Dissertação, a ser complementado
pelas características intelectuais de frei Caneca. Sobre o homem, temos informações relevantes
quanto a suas capacidades e recursos intelectuais. Ingressou na Ordem do Carmo, cujo convento
no Recife “era uma das casas ricas da província brasileira da Ordem”. Mostrou-se cedo estudioso
e interessado, buscando no Seminário de Olinda as fontes que não encontrava no Carmo. Com 24
anos já leciona geometria e retórica no convento. Publicou uma gramática portuguesa e um
tratado de eloqüência e versificação.

“A erudição demonstrada nos seus escritos, absorveu-a toda na biblioteca do Carmo e certamente
também na célebre biblioteca dos oratorianos do Recife...” (Mello 2001 p.13)

Este elo torna-se interessante para a avaliação da formação de Caneca, pois sabemos que foi um
oratoriano, Luís Antônio Verney, quem, algumas décadas antes, havia redigido um manual,
adotado, a partir das reformas pombalinas, como alternativa à retórica tomista em sua versão
jesuítica, que então dominava a educação e a produção intelectual portuguesas (Carvalho 2000
p.131).

“O que surpreende neste frade que nunca saiu de Pernambuco, exceto quando encarcerado na
Bahia, é a amplidão dos conhecimentos que demonstra, enciclopedismo obriga, das matemáticas à
teoria literária, passando pela história e pelas doutrinas políticas dominantes. Malgrado o que, as
obras políticas de frei Caneca escapam ao doutrinarismo e ao debate puramente especulativo de
idéias. Elas constituem sobretudo tomadas de posição relativamente a situações concretas da
política provincial e brasileira.” (Mello 2001 p.16)

12
Pernambuco se tornou uma província (de Portugal) em julho de 1821, ao ser ali jurada a constituição portuguesa.

-8-
A partir de seu retorno da prisão, Caneca dedicou-se ao debate político, através da pluma13. O
próprio T.Monteiro, tão ácido em suas críticas a ele, reconhece sua importância como publicista,
apelidando-o de “a língua do partido” (Martins 1977 p.120). G.L.Leite identifica os diversos
canais de atuação abertos ao frei Caneca:

“Quanto a Frei Caneca, além de ser um religioso com acesso ao púlpito da igreja e, portanto, com
possibilidade de levar seu pensamento a um público amplo e de constituição muito heterogênea,
era regente da cadeira de Geometria Elementar, o que o colocava em contato com outro tipo de
clientela. (...) Outro meio muito eficaz utilizado [para divulgar suas idéias], por Frei Caneca, eram
as reuniões políticas, em especial as reuniões do Grande Conselho. (...) A opinião manifestada em
seus votos era aquela que sempre conseguia ser referendada.” (Leite 1989 p.119)

É somente a partir da dissolução da Assembléia Geral Constituinte, contudo, que Caneca


assumirá atuação mais diretamente política.

Diante desse quadro, podemos supor que frei Caneca procurasse distilar na Dissertação recursos
não só capazes de convencer seus leitores segundo os padrões retóricos correntes, mas também
capazes de lhes incutir opiniões cuja adoção extrapolasse – por serem então politicamente
sensíveis – a simples aceitação daqueles argumentos.

A RETÓ RICA DE F REI CAN ECA

A importância da retórica como “chave de leitura” na história intelectual no Brasil foi realçada
por (Carvalho 2000)14. Das diversas características apontadas ali, cremos especialmente
relevante para a interpretação dos textos de frei Caneca a intimidade da retórica com argumentos
sobre juízos de valor. Por perceber na Dissertação mais do que um longo raciocínio, defendido
sucessivamente por argumentos de autoridade, pela razão e por exemplos, também acreditamos
ter identificado nela tomadas de posição sistemáticas, típicas de alguém não só treinado na
prática retórica, como certamente experimentado nos debates políticos. São essas segundas
intenções que procuraremos apontar no que segue.

13
Evaldo Cabral de Mello avalia que “...a frei Caneca não se pode considerar estrito senso um homem de ação, de
vez que sua atuação política foi sobretudo de cariz ideológico, através da imprensa e da polêmica” (Mello 2001
p.15). Sua atuação pública em assembléias e conselhos, no entanto, faz claramente a ponte com a ação política.
14
Dante Tringali, em sua Introdução à Retórica (A Retórica como crítica literária) a colocou como instrumento
analítico de textos em geral (Tringali 1988).

-9-
PRIMEIRO MOVIMENTO: SÓ HÁ UM PROBLEMA

Os comerciantes portugueses no Brasil e, em especial, em Pernambuco, sempre constituíram a


representação física do colonialismo15. O problema que Caneca decide abordar parece singelo e
de contornos bem-definidos: convencer portugueses estabelecidos no Brasil de que devem
assumi-lo como sua “pátria” e, inversamente, convencer os brasileiros a aceitar os portugueses.
Visto, entretanto, como parte de um contexto complexo, este objetivo torna-se uma meta parcial
de uma estratégia política mais ampla. Não escapava a Caneca, nem a seus mentores, a
diversidade de conflitos que defrontava a sociedade pernambucana, naqueles anos turbulentos:
interesses metropolitanos versus coloniais, monarquistas versus republicanos, fluminenses versus
pernambucanos, comerciais versus agrícolas, açucareiros versus algodoeiros, e tudo isso em
meio à permanente possibilidade de revoltas de escravos e brigas intestinas entre militares e
dentro da elite fundiária16.

C.Perelman e L.Olbrechts-Tyteca, em seu Tratado da Argumentação, lembram que:

“É muito comum acontecer que o orador tenha de persuadir um auditório heterogêneo, reunindo
pessoas diferenciadas pelo caráter, vínculos ou funções. Ele deverá utilizar argumentos múltiplos
para conquistar os diversos elementos de seu auditório.” (Perelman & Olbrechts-Tyteca 1996 p.24)

Assim, um primeiro e necessário movimento retórico seria o de concentrar tudo sobre a questão
a ser atacada, de modo a evadir a discussão de todas outras questões. Isto permitiria que, uma
vez demonstrada a validade do raciocínio proposto, pudesse proclamar resolvido o conflito, cujas
“complicações” foram escamoteadas nesse passe retórico.

Esse propósito já fica claro na “Introdução”, quando atribui a “idéias falsas” os correntes “juízos
falsos [e] incoerências”. Tudo ainda no plano das idéias. Na mesma frase, porém, dá o salto
retórico, ao continuar a listar as conseqüências das idéias falsas: “crimes, atentados, perturbações

15
A animosidade entre brasileiros e portugueses foi sempre uma realidade em Pernambuco. A relevância do tema
escolhido por Caneca fica reforçada pelos eventos acontecidos após a Independência: “...cabe lembrar...um setor da
sociedade que era agente de constatnes atritos – os comerciantes. No decorrer do período colonial, os nascidos em
Portugal se configuraram como uma categoria social ligada ao comércio e que representava os interesses da Coroa
Portuguesa. Com a Independência, em 1822, a identificação permaneceu e as animosidades eram um fator de
constantes conflitos. Eram choques de menor repercussão, mas quase diários, que aconteciam nas ruas de Recife (...)
Os portugueses, além de identificados como exploradores e inimigos da ndependência do Brasil, eram ainda
caracterizados como os brancos que desprezavam os brasileiros.” (Leite 1989 p.74)
16
Falando sobre a Revolução de 1817, Pedro Calmon disse: “Cristalizara em Pernambuco a paixão do regionalismo,
agravada pela asfixia fiscal, pela insolência dos militares europeus, pelos preconceitos gerados numa inimizade de
classes, que tinha cem anos. Lutava ainda, como no tempo dos ‘mascates’, o agricultor, homem de espada, com o
mercador, homem de dinheiro; dependia um do outro – e detestavam-se.” (Calmon 1935 p.160)
“As preocupações de Frei ...Caneca dirigiam-se...ao que denominava de perigo interno, isto é, desencontros entre
os pernambucanos e luta entre as facções rivais da província. Assim, conclamava os ‘patrícios’ a acabarem com ‘os
ódios e dissenções internas que nos dividem e nos dilaceram’.” (Leite 1989 p.120)

- 10 -
da sociedade e a sua ruína afinal” (p.55). A frase seguinte desvia a atenção do leitor com uma
obviedade incontestável:

“Com efeito, as idéias falsas e inexatas, que fizemos das coisas sociais, produzirão infalivelmente
juízos falsos, incoerências; crimes, atentados, perturbações da sociedade e a sua ruína afinal.
Isto não só o mostra a razão, como, para desgraça da humanidade, o comprova a experiência
diária desde os mais remotos séculos.” (Caneca 2001a p.55)

Sem reagir, concorda-se com o truismo, absorvendo, ao mesmo tempo, a semi-verdade que culpa
exclusivamente as falsas idéias por atos decorrentes de circunstâncias sabidamente complexas.

Emenda, afirmando que “em uma república bem constituída” é necessário dar “as luzes das
ciências, artes e ofícios” a todos, “dispartindo esta tarefa aos cidadãos mais sábios e eruditos”,
pois “um povo ignorante é um povo selvagem e bárbaro”. Mais um parágrafo, mais três tópicos
da “propaganda” transmitidos. Primeiro, os esclarecimentos necessários para acabar com as
“falsas idéias” fazem parte ou são essas “luzes”. Segundo, os cidadãos “mais sábios e eruditos”
são aqueles que participam dessa empreitada, donde a devem aceitar17. Terceiro, ninguém quer
ser, nem se acha, “selvagem e bárbaro”, portanto não pode discordar dos “esclarecimentos”
propostos, isto é, deve aceitar a “iluminação das falsas idéias” que o autor está prestes a começar
(p.55).

Após esse pequeno preâmbulo, resguarda-se pessoalmente:

“Pelo que vem a fazer um serviço, não para ser desprezado, à república aquele cidadão que toma
sobre si instruir o povo de seu país, ainda que sua obra não seja a maior e a mais perfeita que a
instrução admite...” (p.55)

Faz citações de autoridade e continua com o parágrafo principal da “Introdução”:

“É, portanto, levado do sincero desejo da perfeição dos meus compatriotas, [incluindo-se entre os
que fazem um serviço à república] e a fim de evitar para o futuro as ruinosas conseqüências de
idéias inexatas e falsos juízos, [como argumentado anteriormente] que para desgraça deste ameno,
fértil e rico país foram a maior, por não dizer a única, causa da luta escandalosa entre os
portugueses indígenas de Pernambuco e os portugueses europeus nele estabelecidos, [eis a tese
explicitada] que eu, a despeito da minha insuficiência [etc...] tomo esta pequena tarefa de ...
elucidar uma matéria em que vejo não se pensar com a devida retidão.” (p.56)

O final da “Introdução” são citações pouco incisivas, mas o texto poderá agora se desenvolver
concentrado na discussão sobre “pátrias”, já indiciadas como únicas e explícitas fontes para
todas as dificuldades, essas, deixadas implícitas.

17
Como um contraponto específico a essa interpretação, temos o texto de M.de L.Lyra (citado na p.16 adiante), para
quem as palavras de Caneca podem ser tomadas de modo bem mais literal.

- 11 -
SEGUNDO MOVIMENTO: TRANSFERIR ESSE PROBLEMA PARA A RELAÇÃO CIDADÃO-PÁTRIA

Essa transferência se opera através de mecanismos retóricos eficazes. Ao entitular seu primeiro
capítulo “I. Mostra-se que a falsa idéia, que se tem feito da pátria do cidadão, tem sido uma das
maiores causas da rivalidade entre os europeus estabelecidos no novo mundo, e os indígenas
dele”, Caneca já começa afirmando o que diz provar. No capítulo, estende-se longamente sobre
as dificuldades e conflitos existentes entre colonizadores e colonizados em diversas regiões da
América e em especial em Pernambuco, fatos incontestáveis por todos. Logo em seguida,
reafirma mais uma vez sua teses, como se essa afirmação fosse parte da sua demonstração:

“Este fatos, que nos apresenta a história desta quarta parte nova do mundo, sobre os quais
refletindo a razão tem descoberto que se não tem sido o motivo único desta indisposição, ao menos
lhe tem sublimado a acrimônia a falsa idéia que se tem feito da pátria do cidadão.” (p.59)

Segue relatando mais fatos incontestáveis, que descrevem os maltratos da colônia e dos seus
“nativos” pelos europeus, incluindo feridas recentes:

“O ser pernambucano foi uma prova indescritível dos maiores crimes e atentados; e o ser natural
de Portugal uma justificação e prova de inocência ainda naqueles casos em que uns e outros
obraram de mãos dadas.18” (p.62)

Continua afirmando sua tese e apresentando argumento que explicaria em parte os mal-tratos
metropolitanos, mas não demonstraria a tese, pois não faz referência aos múltiplos conflitos de
interesses:

“Porque como os lusos europeus estabelecidos em Pernambuco, não o tinham por sua pátria, não
se julgavam suscetíveis de obrar e fazer sacrifícios pelo bem e melhoramento de um país que
olhavam como um apanágio que lhes concedeu a natureza, só por ser conquistado pelas armas de
Portugal, ou melhor pela falta de ciência militar e instrumentos bélicos dos seus primeiros
habitantes.” (p.63)

Na realidade, ao afirmar que os lusos europeus “não se julgavam suscetíveis de obrar e fazer
sacrifícios pelo bem e melhoramento de um país...”(p.63), Caneca dá um passo argumentativo
além da frase “não tinha por sua pátria o lugar em que ele fez a sua morada e fixou o
estabelecimento” (tornada puramente retórica pela repetição). No entanto, pára aí.

Em notas, usa outro recurso retórico constante: demonstrar efetivamente, não sua tese, mas as
afirmações inconstestáveis que aduz, no caso, perguntar como teria progredido a dominação
portuguesa, caso os índios tivessem sido capazes de opor resistência decisiva.

Fecha o capítulo reafirmando mais uma vez que:

18
Refere-se Caneca a situações ocorridas na repressão ao movimento de 1817, quando, entre outros casos, um padre
foi condenado à morte “porque era um pernambucano que manejava muito a lei”, enquanto um português, também
conspirador, teve sua sentença revista “por ser natural do Minho” (Caneca 2001a p.62-3)

- 12 -
“E à vista de todos estes fatos, e destas mesmas expressões dos lusos europeus, poder-se-á dizer
que aventuramos o nosso conceito, quando dizemos que da falsa idéia que se há feito da pátria do
cidadão, tem procedido esta rivalidade entre os lusos europeus estabelecidos no Brasil e os seus
naturais, bem como entre outros naturais da Europa, climatizados na América e os naturais desta ?”
(p.64-5)

Assim, Caneca de fato mostra haver incontestáveis conflitos entre reinóis e nativos, mas
concentra todo seu raciocínio na afirmação não demonstrada de que não haveria conflitos se os
reinóis tratassem a colônia como sua própria pátria. Precisa, agora, dizer como se deve tratar a
pátria.

TERCEIRO MOVIMENTO: MOSTRAR QUE A COLÔNIA PODE SER A PÁTRIA DO REINOL

Caneca resume essa questão, rapidamente, no segundo capítulo “II. Mostra-se o que é a pátria de
um cidadão”, em que exemplifica o uso do termo tanto para local de nascimento como para local
de vivência. Além disso, lembra casos de portugueses que se naturalizaram estrangeiros e, vice-
versa, estrangeiros que optaram por Portugal. Sua frase de conclusão, mais uma vez, repete a
tese:

“De tudo isto que levamos expendido, resulta que, tendo muitos cidadãos duas pátrias, uma de
lugar e outra de direito, os portugueses europeus estabelecidos em Pernambuco, só pelo fato de
nele virem habitar e estabelecer-se, são legítimos compatriotas desta província, e ela sua pátria de
direito; e como tais devem de ser reconhecidos pelos indígenas de Pernambuco, a amando-se
fraternalmente, mostrarem que são cidadãos de um mesmo foro e direito, uma só família de irmãos
legais, sem jamais se distinguirem pela fútil, prejudicial e insubsistente diversidade de solo natal,
detestando-se e alongando de si a mal entendida paixão de nação ou paisanismo.” (p.74)

QUARTO MOVIMENTO: MOSTRAR QUE A PÁTRIA DE DIREITO É PREFERÍVEL À PÁTRIA DE LUGAR

No terceiro capítulo da Dissertação, em que discute esse tema, Caneca se encontra num
ambiente propriamente retórico e tira disso o melhor partido para sua argumentação. Reputamos
o ambiente eminentemente retórico, pois o autor deve nele “demonstrar” um juízo de valor: qual
a melhor pátria.

O elo retórico é construído pela analogia entre pátria de nascença–mãe biológica e pátria de
opção–mãe adotiva, com o que pretende transferir todo o conteúdo emocional da relação filial
para a relação ideológica cidadão–pátria19. Após uma abundânia de exemplos, conclui:

19
Associação que também usa em outros trechos da Dissertação: “Tanto é verdadeiro este pensar, que um grande
número deles [os portugueses europeus], depois de adquirirem riquezas na América, a deixam desamorosamente,
como quem nenhumas relações sociais houve com ela, e vão consumir com suas chamadas pátrias européias as

- 13 -
“E quantos destes exemplos podíamos nós citar em todos os tempos, e em todos os povos; os quais
provam, a todas as luzes, que no pensamento e ações dos homens a pátria de direito deve de ser
preferida à pátria de lugar ?” (p.84)

Prossegue, dando por provada esta parte da tese:

“Paremos porém por aqui, porque a verdade, para ser estabelecida de uma maneira inabalável, não
exige mais do que uma prova cheia de dedução, energia e evidência, e a multiplicidade de razões
de ordinário nada mais produz do que uma inculca de erudição intempestiva. Portanto, em vez de
procurarmos mais argumentos, que esteiem uma verdade posta fora de toda dúvida, passemos a
mostrar...”20 (p.84)

Ou seja, vamos em frente porque tudo até aqui está provado !

QUINTO MOVIMENTO: MOSTRAR QUEM REPRESENTA A PÁTRIA

No quarto e penúltimo capítulo da Dissertação, encontramos o que talvez seja o cerne da


propaganda implícita de Caneca. Compõe-se de três idéias: a) o homem nasceu para servir a
sociedade, b) os governos/os monarcas representam a sociedade, mas c) existem situações em
que os governos/os monarcas deixam de representar a sociedade.

Inicialmente, o qualificativo: “...os afetos e deveres do cidadão honrado para com a pátria...”
(p.85); assim, quem não pensar como eu não é honrado.

As duas primeiras idéias são apresentadas em conjunto, o autor ora argumentando a favor de
uma, ora a favor da outra.

“O homem, esse ente que a natureza criou para entender e obrar, nasceu para a sociedade dos
outros homens; por isso ele não só não é somente seu, pois, como diz Platão, no seu nascimento
tem uma parte a pátria, a outra os amigos, mas também, como diziam os estóicos, ele nasceu mais
para os outros homens do que para si mesmo ...” (Caneca 2001a p.86)

Logo antes, havia citado Metastásio, mas como se suas fossem as palavras:

“Os verdadeiros patriotas devem, portanto, empregar todas as suas forças no aumento, lustre e
glória, tanto no físico, como no moral, da pátria do cidadão; obedecer prontamente, e de bom
grado, as ordens dos governos e autoridades constituídas, sem examinar as razões das ordens,
porque de outro modo não alcança o mérito da obediência.” (Caneca 2001a p.86)

A supremacia dos interesses da pátria é mostrada claramente, sobrepondo-se, inclusive, a


interesses privados e materiais:

riquezas, que elas não lhes foram capazes de dar, gastando em benefício de ingratas madrastas o sangue que
extraíram da mãe amorosa, que os acolheu, alimentou, e encheu de benefícios.” (Caneca 2001a p.59)
20
Caneca vê-se obrigado a essa explicação, pois argumentos retóricos nunca encerram definitivamente um debate,
sendo sempre possível ao interlocutor retomar uma posição já “derrubada” pelo orador. (Carvalho 2000 p.137-8;
Perelman & Olbrechts-Tyteca 1996 p.65)

- 14 -
“... quando pede o bem da pátria, as nossas cogitações, as nossas palavras, as nossas ações, os
talentos, as riquezas, as possessões, todos os bens externos se devem prestar; nada se deve preferir
à pública necessidade.” (p.87)

Aqui, Caneca aproxima-se mais uma vez dos múltiplos conflitos de interesses reais, que estaria
subsomando em sua argumentação focada na pátria, sem, contudo, aprofundar a questão.

Os representantes da pátria são os governos, os reis, os tiranos. Caneca faz a ressalva de que:

“Este nome tirano ao princípio foi tomado, em boa parte, para significar o rei, o príncipe (...)
Porém no progresso do tempo, crescendo a malícia, começaram a reinar reis soberbos, injustos, e
este nome foi dado somente àqueles que por insolência abusavam das forças do império, e não
governavam por leis justas, sim por força e a seu arbítrio.” (nota p.93)

Tanto assim que argumenta inicialmente igualando tiranos a reis legítimos21 para, mais adiante,
discursar sobre o tirano ilegítimo:

“Se a morte do tirano é o preço da felicidade da pátria, que razão haverá para que se desampare o
bem da república ?
Derrame-se o sangue tirânico sobre o altar da liberdade (...) Se o bom cidadão e o virtuoso se
deve sacrificar pela causa da pátria, quanto mais o tirano, em cuja vida não há fé nenhuma, e
nenhuma afeição ? “ (p.93-5)

Para defender esse argumento, em muitas páginas, cita diversos autores clássicos. A preocupação
é digna de nota, pois, embora respaldada pela história e pela literatura, trata-se de opinião
reconhecidamente iconoclasta, com a qual nenhum monarca poderá concordar, exatamente por
sujeitar-se inteiramente à opinião de súditos e seus “intelectuais” para ser ou não qualificado de
“tirano”.

SEXTO MOVIMENTO: COMO AVALIAR A PÁTRIA E SEUS MONARCAS

As intenções de Caneca nesse quarto capítulo passam entre as palavras. Embora venha
defendendo o interesse da pátria acima de tudo, alerta:

“...todas [as relações] cedem aos deveres primários do cidadão para consigo mesmo.
A conservação da vida e existência é o primeiro dever do homem, e tão sagrado que a deve
sustentar a expensas da vida do injusto agressor, se outro meio não resta.” (p.90)

Logo na frase seguinte, contudo, insiste que “Esta mesma vida ele a deve sacrificar à
conservação e bem da república; e é desta maneira que ele se faz caro à pátria, e credor da
imortalidade”(p.91). E segue, com múltiplas citações, mostrando com é justo e correto morrer
pela pátria. Ao contrapor esses argumentos estaria meramente utilizando um recurso retórico de

21
“O bem e a salvação da pátria exige de nós humilhações ? (...) devemos dobrar o joelho ainda diante dos tiranos, e
comprar por este módico preço a salvação da república...” (Caneca 2001a p.89)

- 15 -
ênfase ou teria querido sinalizar que existem, sim, razões para “sustentar [sua vida] a expensas
da vida do injusto agressor”(p.90) ?

Cremos que Caneca buscou os dois efeitos, pois, à longa seqüência em favor da morte pela
pátria, seguem-se os argumentos sobre porque matar tiranos ilegítimos. Haveria contradição ?
Aparentemente não. Enquanto argumenta explicitamente a favor da pátria de direito, opinião
legítima e que não subverte a ordem estabelecida, deixa a cargo do leitor decidir se se acha
tolhido, além do justo, em suas liberdades. Se cabe a cada cidadão escolher sua pátria, porque
não caberia também escolher seus governantes ? De fato, a idéia subversiva é a da escolha.

“Em que balança, por mais fiel que seja, pesará mais a pátria da casualidade do que a da escolha ?”
(p.81)

A partir daí, por analogia, a distância é curta até concluir-se que mesmo monarcas devem ser
escolhidos, destronando-se o direito divino. Donde o que existe é o direito do homem, que
autoriza a escolha de regimes e governos. Ou seja, nem tiranos, nem relações coloniais, nem
príncipes potencialmente constitucionais. O cidadão deve sempre examinar seus interesses e os
de sua pátria22.

AS AUD IÊNCIAS DA D ISSERT AÇÃO

Caneca ficou variadamente imortalizado como o “republicano exaltado” (Quintas 1970 p.230),
um “obsecado pelo fanatismo liberalista” (Martins 1977 p.123), “o grande jornalista” (Andrade
1978 p.97), o “frade filósofo” (Lyra 1998), um “revolucionário” (Albuquerque 1981 p.348), “a
radical priest” (Bethell & Carvalho 1989 p.51) e, qualificação decisiva para seu destino, como
“escritor de papéis incendiários” (Pernambuco. Comissão Militar Presidida pelo Governador
Interino da Província 2001). As citações de suas obras, no entanto, freqüentemente contrapõem
suas posições “moderadas” no Sermão de Aclamação de d.Pedro I (em 8/12/1823), em que se
regozija diante da perspectiva de uma monarquia constitucional, e suas diatribes nos diversos
números do Typhis Pernambucano (de dezembro/1823 a agosto/1824), em que, por exemplo,
vocifera contra a dissolução da Assembléia Constituinte Legislativa (Caneca 2001b; Caneca
2001c).

22
Aliás, sua anterior citação de Cícero é muito pouco católica (com nosso grifo): “O homem, esse ente que a
natureza criou para entender e obrar...” e também poderia ser interpretada como um balão de ensaio à disposição de
idéias mais radicais. (Caneca 2001a p.86)

- 16 -
Teria havido, como quis W.Martins, uma radical mudança de posição? Ou o orador treinado,
veterano de quase quatro anos em prisões bragantinas, teria simplesmente dirigido suas opiniões
ao momento e à audiência? Aplicando-se na retórica acadêmica e política na Dissertação,
desvelando-se em respeito “constitucional” na Aclamação e soltando-se em indignação cívica no
Typhis? Acreditamos nesta segunda opção, pois conhecer seu auditório e adequar sua fala a ele é
requisito fundamental do orador23. Focando sobre a Dissertação, temos alguns indícios a
examinar.

Antes de tudo, temos a contraditória frase da Introdução: “Do que tenho dito, já se deixa ver que
eu não escrevo para os homens letrados; sim para o povo rude, e que não tem aplicação às letras”
(p.57). Estaria fazendo referência unicamente ao fato de sua citação logo anterior ser de um
poema épico brasileiro, “Caramuru”? Certamente não.

M.de Lourdes V.Lyra a toma literalmente:

“Dirigida ao ‘povo rude’, àquele sem ‘aplicação às letras’, com a intenção objetiva de elucidar a
noção correta do termo pátria, a Dissertação foi elaborada em consonância ao espírito das Luzes.
(...) Para o autor da Dissertação, iluminar o pensamento do ‘povo rude’ com as ‘luzes das ciências,
artes e ofícios’ era uma tarefa que competia não apenas ao governo, mas também aos ‘cidadãos
mais sábios e eruditos’ que desejassem ser úteis ao povo e à sociedade.” (Lyra 1998 3º parágrafo)

Não podemos negar essa intenção, mas cremos também estar diante de mais um recurso retórico,
de modéstia cortês, em que ele aponta para um objetivo óbvio e inócuo – os rudes – para não
melindrar os “não-rudes” com um sermão possivelmente percebido como arrogante24. Mas quem
seria a audiência de Caneca na Dissertação?

Primeiramente, temos os dois grupos mais mencionados e objetos explícitos da argumentação: os


lusos europeus e os portugueses indígenas. Mesmo tendo generalizado suas considerações para
englobar a totalidade da América e, também, todo o Brasil, deixa bem definido que se dirige
principalmente aos cidadãos de Pernambuco, onde “este mau humor se tem estendido,
porventura, mais...do que em outro nenhum ponto do Brasil” (p.58). Os argumentos são
aparentemente dirigidos a ambos, mas fica bastante claro, frase a frase, quando quer atingir um
ou outro desses adversários. A tônica geral para os “europeus” é “mudem porque vocês são
homens de razão e porque isto será para seu próprio bem e para o da sua pátria de direito”. Para
os “pernambucanos”, por outro lado, diz “sei das muitas injustiças cometidas, mas reconciliem-

23
“Não se concebe o conhecimento do auditório independentemente do conhecimento dos meios suscetíveis de
influenciá-lo. (...) O importante, na argumentação, não é saber o que o próprio orador considera verdadeiro ou
probatório, mas qual é o parecer daqueles a quem ela se dirige.” (Perelman & Olbrechts-Tyteca 1996 p.26)
24
“Cumpre observar ... que querer convencer alguém implica sempre certa modéstia da parte de quem argumenta, o
que ele diz não constitui uma ‘palavra do Evangelho’, ele não dispõe dessa autoridade que faz com que o que se diz
seja indiscutível e obtém imediatamente a convicção.” (Perelman & Olbrechts-Tyteca 1996 p.18)

- 17 -
se, porque vocês são homens de razão e porque isto será para seu próprio bem e para o da sua
pátria de nascimento”.

Caneca também se dirige brevemente aos governos e monarcas, cujo “primeiro cuidado a
respeito dos cidadãos e súditos, é procurar iluminá-los com as luzes das ciências, artes e ofícios,
dispartindo esta tarefa aos cidadãos mais sábios e eruditos” (p.55). Dirige-se a eles, agora
indiretamente, com uma ameaça intelectual, ao insistir nos argumentos sobre pais impatrióticos e
tiranos ilegítimos.

Mas estes são os interlocutores explícitos. Haveria outros? Só podemos responder baseados nos
indícios deixados pelas escolhas retóricas de frei Caneca.

Um discurso de orador eficiente contém citações, exemplos, raciocínios, mas, acima de tudo,
deve impressionar, persuadir. Para isso, um dos principais recursos é sua progressão para um
clímax. Na Dissertação, cujo título completo é “Dissertação sobre o que se deve entender por
pátria do cidadão [inócuo] e deveres deste para com a mesma pátria [genérico]”, Caneca conduz
sua oratória do genérico e pouco sensível politicamente em direção a temas bem mais específicos
e potencialmente subversivos. No primeiro capítulo “mostra que a falsa idéia que se tem feito da
pátria do cidadão tem sido uma das maiores causas da rivalidade entre os europeus estabelecidos
no novo mundo e os indígenas dele”, genérico e louvável. No segundo, ilustra seus leitores ao
“mostrar o que é a pátria de um cidadão”. Já no terceiro defende sua tese explícita, “mostrando
que a pátria de direito é preferível à pátria de lugar”, talvez sensível politicamente, mas louvável
pelo espírito de conciliação. No quarto capítulo. “mostram-se os ofícios do cidadão para com a
pátria”, título de aparência inócua, mas de conteúdo específico e, veremos, sugestivamente
subversivo. O quinto capítulo resume sua argumentação, num sumário para os apressados.

Como ápice do discurso, o que contém o quarto capítulo? Já itemizamos seus objetivos, mas vale
revê-los na ordem proposta. Tudo se deve à pátria, mesmo à custa de humilhações, morte de
irmãos ou de pais que “pretendam escravizá-la, entregá-la ao inimigo ou destruí-la” (p.90). Até a
vida se deve à pátria. E, fechando essa argumentação emotiva e forte, mostra, nas últimas duas
páginas do capítulo e de sua exposição, que “se a morte do tirano é o preço da felicidade da
pátria, que razão haverá para que se desampare o bem da república?”(p.93), concluindo que “de
tudo isto se conhece que não há coisa alguma no cidadão que se não deva propor ao bem da
pátria”(p.95).

Quem seria a audiência deste capítulo final, que trata “dos ofícios do cidadão para com a pátria”?
Todo cidadão, sem dúvida. E mais, como escreve primordialmente para os pernambucanos, a
quem adulou ao longo do texto com referências a queixas novas e antigas, dirige-se, certamente,

- 18 -
ao cidadão pernambucano. Estaria aqui também abrangendo os lusos europeus que optaram por
morar na província? Com certeza semelhante, sua retórica nos leva a responder no condicional:
aqueles que de fato optarem por Pernambuco como pátria de direito devem ter em mente, com
toda clareza, que, ao fazerem isso, também estarão optando pelos interesses natos
pernambucanos e estarão assumindo suas lutas, mesmo que contra “irmãos”, “pais” e “tiranos”
nascidos em qualquer país e residentes em qualquer província! E que devem estar preparados
para morrer por essas idéias.

REF ERÊNC IAS BIBLIO GR ÁF ICA S

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