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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais


Programa de Pós-graduação em História Social

ATAVISMO E AÇÚCAR –
A " n a t u r a l i d a d e " d o h o me m a ç u c a r e i r o

Heitor Pinto de MOURA FILHO

SEMINÁRIO NATUREZA E HISTÓRIA

Prof. José Augusto Pádua

Agosto de 2003
RESUMO

Este texto argumenta que: a) o cérebro humano é constituído por zonas


filogeneticamente díspares; b) as ciências ainda hoje não conhecem adequadamente
o funcionamento do cérebro; c) as reações humanas decorrem de percepções e
reações oriundas simultaneamente dos três níveis cerebrais; d) existem "arenas e
ações atávicas" em que os níveis cerebrais mais antigos comandam as reações
humanas; e) o desenvolvimento da linguagem (e conseqüentemente da cultura)
caracterizou e diferenciou o homem em sua evolução; f) surgiram então "arenas e
ações históricas" regidas por ambientes essencialmente humanos, como o intelecto
(incluídos ai religião e ciência), a técnica, o mercado e o estado. O homem
diferenciou-se, também, pelo uso de mediação para atingir seus fins. Tal mediação
pode usar um elemento da natureza, outro homem, instrumentos ou
conceitos/estruturas desenvolvidos pelo próprio homem em suas arenas históricas.
Em conseqüência, o homem convive individualmente com camadas cerebrais
filogeneticamente diversas, em que dominam ora as reações históricas, ora as
atávicas. Também em sua vida social podemos identificar ambientes e reações "em
camadas". Ilustram-se essas idéias, em seguida, com exemplos retirados da história
da civilização açucareira no Brasil, com a participação determinante das
arenas/ações atávicas.

-1-
SUMÁRIO

1. Introdução

2. O homem em camadas

3. Arenas e ações atávicas

4. Arenas e ações históricas

5. A sociedade em camadas ( I )

6. Mediação

7. A sociedade em camadas ( II )

8. O atavismo do açúcar

9. Homem versus natureza (Mata – Animais – Terra)

10. Homem versus homem (Escravos – Senhores)

11. Homem versus sociedade (Estado – Mercado)

12. A "naturalidade" do homem açucareiro

Referências bibliográficas

-2-
1. INTRODUÇÃO

Será que considerações meramente econômicas são suficientes para explicar o crescimento e a
expansão geográfica da cadeia açucareira – sua produção, comércio e consumo – durante os
últimos cinco séculos da existência humana ? E, em especial, para explicar a permanência até
hoje de relações sociais nascidas nos idos do Brasil colonial ?
A História econômica e social apresenta uma gama de respostas – convincentes – a essas e
outras questões vinculadas ao setor açucareiro. Não procuraremos, aqui, buscar respostas
alternativas dentro da História econômica ou desautorizar as que foram oferecidas até agora.
Cremos, no entanto, que, ao nos afastarmos de um ambiente conceitual exclusivamente
econômico e político, ou seja, de um ambiente em que os temas abordados e as explicações
aduzidas decorrem unicamente do mundo "material" e das relações "objetivas" que os homens
estabeleceram com esse mundo e entre si, torna-se possível vislumbrar um novo ambiente
epistemológico, em que a percepção do mundo, das relações do homem com esse mundo e das
relações dos homens entre si se dá sobre um conjunto alternativo de temas e explicações. É esse
ambiente alternativo de temas e explicações que procuraremos apresentar neste texto, ilustrados
em seguida por tópicos da história da civilização açucareira no Brasil.
À dúvida exposta acima desejamos contrapor uma intuição: as relações do homem com o açúcar
e sua produção involvem atitudes originadas no passado distante, desde então submersas nos
níveis mais primitivos de nosso cérebro, mas que afloram em momentos privilegiados.
Pretendemos argumentar não só que a história do açúcar nos revela ambientes catalisadores
desse atavismo, mas que existe, alijada da historiografia, uma interrelação permanente entre
nossas diversas zonas cerebrais, traduzida na dinâmica entre emoções e intelecto1.
Esse projeto – certamente ambicioso além dos nossos conhecimentos e muito mais extenso que
os limites deste texto – pode ser situado, contudo, num rol de preocupações, dispersas pelas
ciências e recorrentes a cada geração, que exige teorias sempre mais completas do conhecimento
humano.

* * *

Em todas as áreas do conhecimento humano, o anseio generalizado por explicações abrangentes


contrasta com a especialização crescente das disciplinas científicas. Um anseio ainda maior, por

1
O raciocínio desenvolvido aqui poderá certamente ser reconstituído sobre outras atividades econômicas e outros
aspectos da sociedade humana.

-3-
explicações abrangentes e interdisciplinares, tem sido mais comumente suprido por leigos e
amadores (principalmente jornalistas e literatos) do que por cientistas à procura de elos com
outras áreas. Apesar disso, algumas áreas de estudo mais recentes, como a Ecologia e a História
Ecológica, por exemplo, têm conseguido reunir esforços interdisciplinares, talvez mais
induzidos pelas próprias características e dificuldades de seu entendimento do que por uma
iniciativa metodológica de seus respectivos profissionais.

Em aparente contradição com esse pensamento, mas com a autoridade própria a um doyen entre
historiadores, William H. McNeill viu ocorrer no século XX um movimento de aproximação
entre as ciências "duras" (física, química) e as ciências humanas. Isto aconteceu por terem
encontrado essas ciências "duras" limites a suas leis, até então universais, o que lhes trouxe um
inédito caráter histórico. A História estaria, assim, no ponto de se tornar "imperial, dividindo
perplexidades e limitações com todos as outras áreas do conhecimento". (McNeill 2001)
Desfazendo essa perspectiva de contradição, a História tem-se aberto para as outras ciências.
Entretanto, nas diversas escolas historiográficas que dominaram o século XX, poucos se
arriscaram a levar adiante projetos de envergadura mundial, ao estilo de A.Toynbee, por
exemplo. As lições de amplos voos de F.Braudel ficaram latentes em seus discípulos, que
preferiram exercitar seus estudos multifocados sobre regiões e ambientes cada vez mais
reduzidos. Num outro extremo do espectro historiográfico, a aparente amplitude de alguns
trabalhos de "cliometria", com abrangência multi-secular e poli-regional, revela-se um engodo,
ao assentarem-se sobre algumas poucas "variáveis", tidas como substitutas para toda a
diversidade histórica. Por outro lado, um grupo de historiadores, entre eles o próprio
W.H.McNeill, seu filho J.R.McNeill e Alfred Crosby, têm buscado abordar, em escala mundial,
não a história individual de cada civilização, mas os grandes movimentos da humanidade,
através dos encontros e comunicações entre essas civilizações2 (McNeill & McNeill 2003;
Crosby 1993).
Na Biologia, que terá importante participação indireta nesse texto, Lynn Margulis apontou
recentemente para uma dispersão de esforços e uma incapacidade de comunicação entre os
vários especialistas ao ponto de impedir que novas noções sobre a teoria da evolução cheguem à
maioria de seus profissionais. Reclamou, também, contra a resistência da maioria dos cientistas
em tratar de temas mais complexos, fora das amarras dos cânones laboratoriais3. É justamente o

2
Este grupo se reúne em torno do Journal of World History (http://www.uhpress.hawaii.edu/journals/jwh/).
3
"Ironically, science has documented evolution in action even if individual scientists have not. Most information
relevant to understanding evolution lies hidden in arcane literature. The news does not reach the professionals or
the public. (...) Mainly recorded in the esoteric languages of biochemistry and microbiology, it is inaccessible even
to professional biologists and geologists who specialize in evolution. Biochemists, microbiologists, physiologists,

-4-
processo de evolução da vida e, mais especificamente, do homem, que pretendemos aproximar,
no tempo, das épocas históricas e, pelo método, da historiografia.
Edward Wilson, na mesma coletânea de conferências, argumenta que chegou a hora de criar
sinergias entre os diversos ramos das ciências – e em especial entre a Biologia e as Ciências
Humanas, pois "After all, the brain, mind, and culture are composed of material entities and
processes; they do not exist in an astral plane floating above and outside the tangible world".
Para isso, revalida o termo "consiliência" (consilience), introduzido em 1840 por William
Whewell (em The philosophy of the inductive sciences, Londres: J.W.Parker), com o sentido da
concatenação de causas e efeitos entre as ciências (Wilson 2001).
Se, neste texto, tivermos conseguido pelo menos sugerir que tal "consiliência" entre a História e
os conceitos biológicos apresentados não só é possível, mas que também faz sentido, nosso
esforço heurístico terá sido amplamente recompensado.

* * *

Cabe inicialmente esclarecer o uso restrito que faremos dos termos "mundo" e "natureza" que –
unicamente por uma comodidade de expressão – oporemos aqui a "homem"4.
Concordamos que o homem seja um elemento integral da natureza. Na medida, contudo, em que
estaremos discorrendo sobre suas percepções e comportamentos, tanto frente a outros homens,
quanto frente aos demais elementos da natureza, usaremos "natureza" (ou alternativamente
"mundo") significando "toda a natureza, excluídos os homens"5.
Também por uma facilidade de expressão, e sem intenção técnica, utilizaremos,
anacronicamente, em alguns trechos, a antiga classificação tripartite entre elementos físicos
(água, terra, minerais etc.), botânicos (plantas e assemelhados) e zoológicos (animais, excluídos
os homens). Cremos que, apesar das sérias incorreções e imprecisões taxonômicas dessa opção,
tal terminologia, na forma restrita em que será empregada, não impõe empecilhos maiores à
análise, até por corresponder à classificação intuitiva adotada pelos homens ao longo dos vários
séculos sobre os quais recai nosso atenção6.

and other experimenters in esoterica often avoid discussion of the evolutionary implications of their work; they
disdain them as 'speculation'. (Margulis 2001 p.12)
4
Sobre a variedade de conceitos de natureza ao longo da história e suas relações com os homens, ver (Williams
1976).
5
Não se quer, com isso, adotar uma posição antropocêntrica, que valorizaria o homem e suas necessidades, em
oposição a um ecocentrismo, que valorizaria a natureza e suas necessidades (assim como percebidas e reveladas por
alguém, é claro).
6
As imprecisões e incorreções embutidas nessa classificação são muitas. Dois exemplos óbvios: os elementos
orgânicos na terra não são "físicos"; e os fungos se distinguem tantos de plantas quanto de animais. As bactérias,

-5-
2. O HOMEM EM CAMADAS

Hoje em dia o conceito de sistemas hierárquicos, em que entidades complexas se decompõem


em outras entidades complexas de um nível inferior e, simultaneamente, compõem outras
entidades complexas de um nível superior, está plenamente incorporado ao pensamento
científico. Desde a década de 1960, o tema vem sendo exposto por diversos estudiosos, entre os
quais mencionaremos especialmente A.Koestler, H.Maturana e E.Morin. O biólogo Stanley N.
Salthe resumiu, em 1985, o estado do conhecimento dos diversos aspectos e teorias do que se
chama de "sistemas gerais" em Evolving Hierarquical Systems. Their Structure and
Representation (Salthe 1985). Sem nos referir diretamente às múltiplas interrelações sistêmicas
identificadas em torno do homem, temos tal ambiente conceitual como pano de fundo para
nossas considerações, tanto sobre a evolução até o "aparecimento" do homem, quanto na época
"histórica" desde então até hoje.
Como um primeiro "axioma", postulamos que o homem percebe o mundo, age sobre ele e
interage com seus pares dirigido (ou apoiado) por um cérebro cujo funcionamento ainda escapa
em grande parte ao conhecimento biológico, bioquímico, genético e psíquico das ciências atuais
e, com maior razão ainda, aos conceitos que as ciências sociais e a História empregam para
explicar o comportamento humano, individual e social. Ilustrando, mais do que comprovando,
podemos citar mais uma vez W.H.McNeill:

"The cosmos, the ecosystem, the human brain, and human societies as well are more complicated,
more changeable, and more interconnected than we can fully understand or our predecessors ever
imagined." (McNeill 2001 p.3)

Em 1967, Arthur Koestler já expunha para o público leigo em Biologia como o cérebro do
homem atual tem sua origem (e ainda mantém características) de um acûmulo de "cérebros"
filogeneticamente anteriores: o mais antigo associado aos répteis, o segundo aos mamíferos em
geral e somente o terceiro, e mais recente, aos primatas e, em especial, aos humanos. Sem nos
aprofundarmos nos detalhes biológicos, nem na atualização das pesquisas nessa área, fiaremo-
nos nesse autor e em E.Morin para afirmar que diversas percepções e reações humanas são
regidas exatamente pelas zonas mais antigas do cérebro, sendo simplesmente "filtradas" pela
zona exclusivamente primata (o neocórtex). Essa filtragem conseguiria adeqüar (ou não !) aos
cânones "humanos e civilizados" os comportamentos possivelmente "selvagens" provocados por
esses nossos resquícios "animais". (Morin 1973; Koestler 1967; Koestler 1978)

hoje consideradas as principais responsáveis pela evolução das espécies (Margulis 2001), nem entrarão em
consideração.

-6-
Atividades complexas como a fala dependem, sem dúvida, de nosso aparato filogenético
recente, mas, além dessas atividades, há reações comandadas diretamente por nossos "cérebros"
mais antigos, que chamaremos aqui de "atávicas": medo diante dos elementos da natureza,
impulsos para comer, para dormir e para a atividade sexual, reações diante de outros homens,
como o enfrentamento pelo território, pela comida ou pela mulher, ou ainda reações diante de
crianças ou velhos, ou em situações de grupo. Adotamos esse qualificativo pois tais atividades e
comportamentos, identificados também nos animais "inferiores", datariam, no homem, de
épocas filogenéticas anteriores à do Homo sapiens.
Edgar Morin desenvolve argumento semelhante, enfatizando o desenvolvimento diferenciado
das três zonas cerebrais em paralelo a e "premiado por" várias características socio-culturais.

"Le développement de la complexité sociale exige, de la part du cerveau individuel, une


connaissance de plus en plus étendue et précise du monde extérieur (environment) et du monde
intérieur (société), une mémoire de plus en plus grande, des possibilités associatives multiples,
des aptitudes à prendre des décisions et à trouver des solutions dans un très gand nombre de
situations diverses et imprévues. Vient le moment où le petit cerveau des premiers hominiens, puis
celui de l'homo erectus parviennent au maximum de leurs potentialités. Dès lors, la pression pour
une compléxité accrue ne peut jouer que sur la plan du phylum et va favoriser toute mutation qui
accroît les potentialités du cerveau... accroissement ...du nombre des neurones du cortex
supérieur... établissement de connexions entre régions cérébrales... l'émergence de nouveaux
centres associateurs e organisateurs..." (Morin 1973 p.93)

A formulação de E.Wilson traz conceitos convergentes:

"Human nature is not the genes, which prescribe it. It is not the cultural universals, such as the
incest taboos and rites of passage, that are the products of human nature. Rather, human nature is
the epigenetic rules, the inherited regularities of mental development. These rules are the genetic
biases in the way our senses perceive the world, the options we open to ourselves, and the
responses we find easiest and most rewarding to make." (Wilson 2001 p.151)

Sem entrar nos seus meandros, vale lembrar que a Psicanálise – com outros instrumentos
teóricos e com outros fins, sem dúvida – lida com questões semelhantes às que levantaremos
aqui. Sigmund Freud (1856-1939) – com o estudo do inconsciente, Alfred Adler (1870-1937) –
com seu sentimento ameaçador de insegurança e de inferioridade, de origem biológica,
psíquica ou social, Sandor Ferenczi (1873-1933) – com a noção de paralelismo ontogenético e
filogenético, Carl Gustav Jung (1875-1961) – com o inconsciente coletivo e os arquétipos, entre
outros, não só buscaram as origens remotas de comportamentos e impulsos comuns aos homens,
como procuraram analisar suas condições de latência e de manifestação.
Também cabe mencionar a distinção que fez C.Lévy-Strauss:

"... a diferença fundamental entre [a História e a Etnologia] não é nem de objeto, nem de objetivo,
nem de método (...) elas se distinguem sobretudo pela escolha de perspectivas complementares: a
História organizando seus dados em relação às expressões conscientes, a Etnologia em relação às
condições inconscientes da vida social." (Lévy-Strauss 1970 p.35)

-7-
Nosso "homem em camadas" terá evoluído, desenvolvendo capacidades filogeneticamente
inéditas, como o pensamento conceitual, a fala e a cultura. Todas essas práticas dependem
simultaneamente de características individuais (a capacidade de raciocínio, de ouvir, de falar) e
de práticas coletivas (a transmissão e o aprendizado de palavras, de idéias e o desenvolvimento
de instituições e práticas culturais) 7.
Uma primeira conseqüência dessa evolução é o fato de os homens passarem a conviver
individualmente com um vai-e-vem permanente entre seus níveis filogenéticos, no que
poderíamos qualificar de um trânsito de informações e estímulos simultaneamente intelectuais,
emocionais e físicos.
Sem maiores pretensões teóricas, podemos imaginar esquematicamente que esses níveis se
entrecruzariam (de formas pouco conhecidas ou até mesmo totalmente desconhecidas) para
compor uma percepção ou um comportamento "resultante", combinação dos três níveis de
comandos que supomos produzidos por nosso cérebro. Mantendo a classificação de Koestler,
usaremos as letras H (homem), M (mamífero) e R (réptil) para designar os três níveis cerebrais.

REAÇAO
COMBINADA

PERCEPÇÃO H REAÇÃO H COMPONENTE H

INFORMAÇÃO
PERCEPÇÃO M REAÇÃO M COMPONENTE M
ORIGINAL

PERCEPÇÃO R REAÇÃO R COMPONENTE R

Figura 1

O que chamamos de "reação combinada" seria a conseqüência das reações simultâneas dos três
níveis de percepção e de ação do homem, combinadas segundo "regras" ainda pouco conhecidas
cientificamente e que, aqui, só podemos intuir. De qualquer forma, podemos supor que haja
integrações complexas entre esses compoentes, com predomínio ora de um, ora de outro
componente. Tais combinações também certamente irão variar conforme mude a situação
original ou as condições particulares do indivíduo. Temos um exemplo banal nas diversas

7
Humberto Maturana R. e Francisco Varela G., em seu El árbol del conocimiento definem uma conduta cultural
como "la estabilidad transgeneracional de configuraciones conductuales adquiridas ontogenéticamente en la
dinámica comunicativa de um medio social". (Maturana R. & Varela G. p.133) Assim, para haver cultura é
necessário comunicação repetida e estável entre indivíduos num grupo social. W.H.McNeill considera que: "What
makes humans different from other forms of life is our capacity to invent a world of shared feelings and symbolic
meanings and then act upon them in concert." (McNeill 2001 p.7)

-8-
reações de alguém frente a um alimento, conforme esteja com ou sem fome, conforme esteja em
casa ou num ambiente "de cerimônia", conforme sua origem social, constituição física etc.
A.Koestler considera que a ausência de algum tipo de coordenação entre os três níveis cerebrais
teria constituído um erro evolutivo. Cita outros erros evolutivos no desenvolvimento do cérebro,
em invertebrados cujo cérebro crescia em torno do trato digestivo e, portanto, não pôde crescer
sem impedir seu funcionamento. Outro caso foi o dos marsupiais, que não dispõem de um
corpus callosum, juntando os dois hemisférios do cérebro, que permanecem, assim, pouco
coordenados. (Koestler 1978 p.9-13) Erro ou não, é assim que somos e, portanto, é o que nos
cabe conhecer.

3. ARENAS E AÇÕES ATÁVICAS

Como um segundo "axioma", destacamos alguns situações em que as percepções e reações


humanas se tornam em grande parte, ou até mesmo totalmente, submetidas aos centros antigos
do cérebro8:
a) ao enfrentar "elementos na natureza", tais como chuva, trovão, raio, vento, sol, frio,
cataclismas etc.;
b) na disputa por um território e na manutenção de seu controle;
c) na busca pela alimentação e no próprio ato de se alimentar;
d) na busca de uma parceira sexual;
e) na proteção aos filhos.
Chamaremos tais situações de arenas atávicas. Supomos adicionalmente que essas antigas
arenas, loci característicos da vida animal, exigiam o desempenho de certas ações para a
sobrevivência de cada indivíduo e também de grupos, que, ao longo das gerações, terminaram
tornando-se "padronizadas". Sem a perspectiva de exaurir as possibilidades, propomos quatro
dessas ações-tipo, que chamaremos analogamente de ações atávicas e que supomos terem
constituído o quotidiano de nossos antepassados, distantes e nem tão distantes assim:

ENFRENTAR TOMAR SEDUZIR PROTEGER

8
J.Rueff menciona uma lista semelhante: "..les instincts profonds qui semblent tendre à la conservation de la vie
individuelle ou de celle de l'espèce, dans la guerre perpétuelle qu'est la sélection naturelle. Que l'on songe aux
qualités qui doivent se trouver rassemblées dans l'être qui survit.... la conquête de la subsistance, soif de richesses
tendant à la défense et à l'extension du domainde familial, instinct sexuel... amour de soi et amour des enfants..."
(Rueff 1967 p.218)

-9-
Antecipando possíveis críticas, lembramos que todos esses atos podem ser desempenhados sem
capacidade verbal ou de raciocínio simbólico: incluímos hormônios, por exemplo, na gama de
recursos atávicos com os quais seduzir.
Imaginando que tais ações acontecessem nas diversas arenas, ilustramos algumas possíveis
combinações no quadro abaixo:

Quadro 1 – Combinação de arenas e ações atávicas

AÇÕES
ENFRENTAR TOMAR SEDUZIR PROTEGER
ARENAS

a si mesmo
NATUREZA sol, frio, chuva, vento
a outros indivíduos
outros indivíduos a outros indivíduos outro indivíduo o território
TERRITÓRIO
outros grupos a outros grupos outro grupo conquistado
outros indivíduos a outros indivíduos o alimento
ALIMENTAÇÃO outro indivíduo
outros grupos a outros grupos a fonte de alimento
SEXO outros indivíduos a outros indivíduos a parceira (a parceira)
REPRODUÇÃO a mãe, os rebentos

Ao supor uma dinâmica de ações, de um indivíduo ou grupo, ao longo de um período qualquer,


percebemos que cada uma dessas ações não é um fim em si mesma e leva naturalmente a outra
ação, dentro dos ciclos quotidianos ou vitais de um indivíduo ou de um grupo. Cada tipo de
ação, também, não se distingue rigidamente de outra, e podemos, portanto, imaginar a existência
de um contínuo de atitudes e "sub-ações" intermediárias entre cada tipo. Assim, visualizamos
melhor a integração dessas ações como um circuito ao longo do qual se passa de uma a outra
ação-tipo num contínuo de atitudes e ações:

ENFRENTAR TOMAR

PROTEGER SEDUZIR

Figura 2 – Um circuito de ações atávicas

Enfrenta-se um inimigo para proteger seu território, seu alimento, sua parceira, sua cria.
Vencendo-se o enfrentamento, toma-se o território, o alimento ou uma parceira ao inimigo. Para
tomar um território, um alimento ou uma parceira a outro indivíduo, pode-se, alternativamente,
seduzi-lo. Tendo tomado o que se quer, é preciso protegê-lo. E para proteger será necessário
novamente enfrentar ou seduzir... numa dinâmica infindável.

- 10 -
É importante lembrar que se pretende para essas categorias um sentido heurístico e que devem
ser consideradas dentro das várias dinâmicas vitais. A cada ação ativa, por exemplo, devemos
supor uma ação passiva:

ENFRENTAR TOMAR SEDUZIR PROTEGER


SER ENFRENTADO PERDER SER SEDUZIDO SER PROTEGIDO

A cada ação, podemos também supor uma reação ou melhor, uma gama e seqüência de reações
e conseqüências:

MORRER
VENCER etc.
FUGIR etc.
ENFRENTAR
SEDUZIR etc.
PERDER
ENFRENTAR de novo

???

Figura 3 – Seqüência de ações atávicas

Não iremos expandir essa tipologia, pois nosso objetivo é simplesmente deixar claro que estas
noções serão mais úteis "livres, leves e soltas" do que contidas numa arcabouço conceitual
rígido – e de difícil construção, tratando-se de imaginar comportamentos de antepassados tão
distantes.

4. ARENAS E AÇÕES HISTÓRICAS

Aceitamos que exista uma continuidade no processo evolutivo, do mundo físico à cultura, em
que:

"Shared meanings... were capable of rapid evolution, radically outpacing older biological
processes of genetic mutation and selective survival. But the process of symbolic evolution does
not appear to be fundamentally different from the physical and chemical evolution of the cosmos
that preceded and sustained it." (McNeill 2001 p.7)

Como tudo em torno da vida se modifica, evolui ou involui, se reproduz, desaparece ou florece –
e o que o homem cria certamente não seria exceção a isso – podemos também supor que esses
três níveis de percepção e reação tenham participado em algum grau no desenvolvimento das
práticas e instituições sociais. Onde e como poderiam ser identificadas essas origens ?

- 11 -
Voltando dos primórdios do tempo para as épocas históricas, sabemos que a vida do homem
adquiriu gradativamente maior complexidade, agregando outras ações àquelas primitivas.
Passou a desenvolver-se, semelhantemente, em novas arenas. Como se deu isso e o que se
passou com as antigas ?
Consideraremos que, embora tendo surgido e ressurgido, evoluindo de forma desencontrada
temporal e geograficamente, o desenvolvimento de instituições sociais e culturais foi o marco
mais relevante para distinguir o aparecimento de uma história da civilização. H.Maturana atribui
ao surgimento da linguagem (ou define por esse surgimento) o surgimento do homem (Maturana
R. 2000; Maturana R., Mpodozis & Letelier 2000). Associando esse desenvolvimento humano,
inicialmente, ao efeito de uniformização do comportamento decorrente da transmissão cultural
(por linguagem simbólica) e conseqüentemente a um aumento da cooperação e do número de
homens que poderiam ser agrupados cooperativamente, W.H.McNeill argumenta que;

"Human societies thereupon became automated, so to speak, by custom. Effective response in


different circunstances was guaranteed by conforming to traditional rules of behavior, and
friction were minimized because everyone knew what to expect of one another in all ordinary
situations. Customary rules, expressed in words, therefore minimized quarrels, maximized
effective cooperation, and allowed increasingly complex division of labor among indefinitely
large numbers of individuals who spoke the same language." (McNeill 2001 p.8)

Transmissão cultural, cooperação e divisão de trabalho seriam, assim, as criações do homem


pós-linguagem simbólica, do homem "não-animal", do homem com o terceiro nível cerebral
ampliado. Podemos supor, então, que novas atividades e novas arenas surgiram em torno dessas
múltiplas possibilidades. Em oposição às arenas e às ações atávicas, chamaremos essas novas
arenas e ações de históricas9.
Julgamos ter identificado pelo menos quatro dessas arenas históricas:
a) o intelecto (incluindo a religião e, posteriormente, as ciências)
b) a técnica
c) o mercado
d) o estado
Percebe-se que todas essas arenas históricas são exclusividades humanas, pois dependem
necessariamente de suas capacidades de linguagem e raciocínio simbólico. Sabe-se, também,

9
E.Morin opõe, de modo análogo, uma arquê-sociedade (arkhe-société) à sociedade histórica (société historique).
(Morin 1973). J.Rueff hipotetiza, em Les dieux et les rois, dois ambientes: o jupiteriano, em que "os deuses criam e
agem", ou seja, em que o homem ou seus antepassados não controlam os acontecimentos, e o prometêico, em que
os homens tomam as redeas de seus atos. (Rueff 1967)

- 12 -
que evoluíram, se adaptaram e, principalmente, interagiram entre si, criando, desde o neolítico, a
teia de relacionamentos sociais de que trata a História10.
Em analogia com as arenas e ações atávicas, também podemos identificar ações históricas,
associadas a essas arenas: CONVENCER pelo intelecto, CONSTRUIR com a técnica, NEGOCIAR no
mercado e MANDAR através do estado. Semelhantemente, podemos imaginar que as ações
históricas formem um circuito integrado e dinâmico, interagindo entre si:

CONVENCER CONSTRUIR
intelecto técnica

estado mercado
MANDAR NEGOCIAR

Figura 3 – Um circuito de ações e arenas históricas

Há certamente ações (e arenas) intermediárias no circuito de ações históricas: o direito, entre o


intelecto e o estado; a ciência aplicada entre o intelecto e a técnica; a justiça entre o estado e o
mercado etc. Poderíamos, além disso, imaginar seqüências de ações, reações, conseqüências
etc., como fizemos para o ambiente atávico. De novo, o importante não é construir uma estrutura
em que se encaixem todas as instituições e sociedades. Mais vale considerar tais arenas e suas
ações como um recorte heurístico dessas instituições e sociedades, acompanhando o
conhecimento que se gerou sobre elas até hoje. E, mais, que se desenvolveram e operam através
da linguagem e do raciocínio conceitual.

5. A SOCIEDADE EM CAMADAS ( I )

Chegamos a um terceiro "axioma": à medida da evolução humana, à medida em que


desenvolveu sua inédita capacidade conceitual e à medida em que adquiriu novos
comportamentos e passou a enfrentar novos desafios, o homem não perdeu a memória das
antigas arenas e de suas antigas fainas. Teria simplesmente adotado as novas, "empilhando-as",
por assim dizer, sobre seu aparato mental existente 11. Sua evolução se teria dado, assim, não por

10
J.Rueff, tratando do mesmo tema, discute cinco fontes de ação impositiva, que seriam a força, a autoridade
divina, a consciência a justiça dos homens e o mecanismo de preços, que redundariam em três tipos de ordens:
moral, jurídica e econômica. (Rueff 1967)
11
"... let us note that the origin of the evolutionary blunder which gave rise to man's schizophysiological disposition
appears to have been the rapid, quasi-brutal superimposition (instead of transformation) of the neocortex on the

- 13 -
perdas sucessivas de capacidades, atitudes e reações, mas pela aquisição e sobreposição de
novas capacidades, atitudes e reações. De fato, é difícil constatar-se uma substituição pura e
simples nos processos evolutivos. É comum, por outro lado, verificar-se o abandono de
membros, de comportamentos, diante de alternativas mais ágeis e eficientes ou mais
adaptadas12. Hoje em dia já se trabalha com a hipótese de evolução diferenciada entre as três
zonas, mais do que com sua mera superposição. Nosso argumento não fica alterado por essa
questão, contudo, pois o foco aqui é a existência dos três níveis cerebrais e sua falta de (ou
pequena) coordenação.
Se, por constituição, nosso indivíduo vive "em camadas", não pode ser estranha a suposição de
que também as práticas e instituições sociais criadas e vividas por ele, de algum modo
evoluíram e se compõem de elementos associados a cada um dos níveis filogenéticos.
Imaginamos três processos básicos pelos quais tal "sociedade em camadas" poderia ter-se
originado:
a) ADAPTAÇÃO – o homem transferiu ou adaptou suas múltiplas reações individuais às de
sua vida em grupo, numa extensão social de seus processos internos;
b) NOMEAÇÃO – o homem passou a exprimir suas reações filogeneticamente mais antigas
através do pensamento conceitual e da fala, adaptando-as ou integrando-as aos designos
e práticas da zona "humana" do cérebro, isto é, dando alguma forma de expressão
"humana" a sensações e reações "animais"; e, por último,
c) ADOÇÃO – o homem incluíu nas suas construções culturais – eminentemente "humanas"
– elementos dessas percepções e reações "animais".
A partir dessa perspectiva, atividades, instituições e até conceitos que nos acostumamos a
compreender como unicamente econômicos, regidos objetivamente por cálculos de interesses
materiais, podem de fato significar para cada indivíduo (quer ele saiba disso ou não) o resultado
de três percepções e de três reações distintas pela origem, mas "combinadas" nas suas
expressões vitais.
E o que aconteceu com as antigas arenas e ações atávicas ? Vemos que o leque de opções que se
abre diante do homem se ampliou. Onde seus antepassados só podiam enfrentar ou seduzir, ele
poderá também, com seu novo aparato físico-emocional-mental, convencer, negociar, mandar

ancestral structures and the resulting insufficient coordination between the new brain and the old, and inadequate
control of the former over the latter." (Koestler 1978 p.11)
12
Sobre o desmantelamento das teses neo-darwinistas ("A evolução ocorre através de alterações genéticas causadas
principalmente por mutações, apoiadas pela sobrevivência dos mais bem adaptados.") diante da micro-biologia ("O
principal agente de mutações e recombinações genéticas são as bactérias.") ver (Margulis 2001).

- 14 -
ou construir (entre outras ações filogeneticamente novas). Mas ainda também poderá,
certamente impulsionado pelo antigo aparato atávico, enfrentar ou seduzir !
Algumas questões se põem:
a) Como convivem as ações atávicas e históricas ?
b) Que ambiente comanda os atos do indivíduo em cada arena ?
c) Que "evolução" podemos imaginar para cada um dos tipos de ações e para suas
relações ?
Para abordar esses temas, é preciso tratar de um conceito fundamental.

6. A MEDIAÇÃO

Junto com a capacidade de expressão simbólica e de raciocínio, temos implícita a noção de


objetivos e, num pequeno passo adiante, a de meios para atingir tal objetivo. J.Rueff distingue
assim a ação animal da ação humana:

"L'animal agit non parce qu'il veut la fin que l'acte poursuit et parce que l'acte est un moyen
efficace de l'atteindre, mais en application d'automatismes tout montés, inscrits, tel un programme
cybernétique, dans son patrimoine biologique. (...) Assurément, les comportements animaux sont
orientés vers une fin precise, qui leur donne une apparence de rationalité (...) si rationalité il y a,
elle n'est pas dans l'acteur, mais dans le processus créateur, responsable du montage qui
détermine l'action.(...) L'animal est porteur de programmes d'action; l'homme, porteur de fins."
(Rueff 1967 p.158)

A etologia moderna já terá até mostrado exemplos de comportamento animal dirigido a fins
claros, o que só reforça a idéia de continuidade, de possibilidade (atual e passada) de evolução.
A ênfase que todos esses autores dão à capacidade intelectual do homem (sapiens) como
elemento de distinção e, também (segundo W.H.McNeill), de aceleração da evolução humana
nos parece apropriada e proveitosa para o conhecimento desse processo. Mas a antiga
conceituação do homem como faber ou habilis não deve ser rejeitada. Dentro do exposto por
W.H.McNeill, o desenvolvimento da capacidade de fabricação, de construção, que distinguiria o
homem faber, teria sido uma conseqüência de ou teria surgido simultaneamente ao seu
desenvolvimento intelectual. Os conceitos, portanto, não se chocam, antes indicando uma
preferência de seus autores, assim como dos conhecimentos existentes à época de sua
proposição.

- 15 -
Podemos até trazer à discussão o Homo ludens, proposto por J.Huizinga (1872-1945)13 para
caracterizar nossa identidade humana. O próprio W.H.McNeill14 propõe a dança, o lúdico, como
precursor da linguagem simbólica. Assim, ter havido ou não uma seqüência
ludens >>> sapiens >>> faber
torna-se pouco relevante, pois todas as três características convergem para o racicíonio
conceitual/simbólico, que propomos manter como principal especificidade humana.
No entanto, a idéia de Homo faber, deixando de lado questões de primazia filogenética, aponta
para uma realidade indiscutível: o homem logo aprendeu a usar instrumentos. É esse fato que
precisamos incluir agora no panorama exposto.

* * *

Passamos a um quarto "axioma": o homem, ao usar instrumentos primitivos, já estaria pondo


em prática uma noção cujas repercussões seriam bem mais amplas, a mediação.
"Mediação" aqui é o ato de colocar algo entre si e qualquer outro elemento – natureza, animal ou
homem. Assim, poderíamos interpretar como havendo mediação da natureza física, no ato de
buscar a proteção de uma caverna contra o frio ou de atravessar um rio, deixando um animal
feroz na outra margem; mediação da natureza vegetal, no ato de usar um pau para cutucar um
animal ou para flutuar na travessia do rio; e mediação da natureza animal, no ato de domesticar
animais para comer, proporcionar energia ou simples lazer.
Num primeiro momento do ambiente atávico, não haveria mediação, sendo o indivíduo
diretamente responsável por praticamente todas suas ações – de enfrentar, tomar, seduzir,
proteger ou qualquer outra. Posteriormente (sempre num sentido evolutivo, isto é, com idas e
vindas, rotas sem saída e distribuição geográfica variável), teria surgido a mediação, com o
homem adaptando elementos da natureza a suas necessidades, conforme exemplificado acima.
Ao expandirmos o conceito para o ambiente histórico, percebemos que diferentes tipos de
mediação se desenvolvem. Além dos elementos da natureza (e também os próprios homens), o
homem passa a utilizar-se também das novas arenas e ações históricas como instrumentos.
Assim, as atividades de cada arena adquirem, além de seus fins específicos, um sentido
instrumental, de mediação: a religião ou a ciência como instrumento de controle, de poder; o
mercado, os bens materiais ou sua representação monetária como instrumento para seduzir ou
proteger; o estado como instrumento para enfrentar, tomar ou mesmo proteger etc. As
combinações são múltiplas e em constante mutação, como exposto pela história das civilizações.

13
(Huizinga 1971)
14
No livro Keeping Together in Time: Dance and Drill in Human History (Harvard UP, 1995).

- 16 -
Como fizemos anteriormente para o ambiente atávico, não iremos elaborar tipologia mais
detalhada sobre o tema. O quadro abaixo exemplifica algumas situações de mediação, sugerindo
a diversidade e a complexidade das combinações e dinâmicas.

Quadro 2 – Exemplos de interrelações entre arenas, ações e mediação

AÇÃO HISTÓRICA
ATÁVICA
ARENA enfrentar convencer

ATÁVICA MEDIAÇÃO: MEDIAÇÃO:


qualquer > sem mediação ou > histórica, pela religião, pela ciência; ou
arena atávica > atávica: com uma pedra, um pau > atávica, pela sedução, pela força

MEDIAÇÃO: MEDIAÇÃO:
> atávica, seduzir > atávica, seduzir
HISTÓRICA > histórica, do intelecto – argumentos, > histórica, do intelecto – argumentos,
arena do intelecto fontes fontes
(a ciência) > histórica, do mercado – oferecer maiores > histórica, do mercado – oferecer maiores
fundos para pesquisa fundos para pesquisa
> histórica, do estado – por leis, regras > histórica, do estado – por leis, regras

7. A SOCIEDADE EM CAMADAS ( II )

Chegamos ao ponto em que podemos ariscar modelar o que seriam as relações entre nossas
camadas filogenéticas.
Nosso "homem em camadas" convive, portanto, com suas arenas e ações atávicas, às quais ele
sobrepôs novas arenas e ações, históricas. Além disso, aprendeu a usar instrumentos existentes
na natureza e, fundamentalmente, a "instrumentalizar" os "novos" recursos de suas criações
mentais (as arenas e ações históricas). Com essa nova "invenção", passou a atuar tanto nas
antigas como nas novas arenas com toda sua gama de recursos, antigos ou novos, atávicos ou
históricos. Tornou-se um vencedor entre as espécies planetárias.
Em quase todas as situações – frente à natureza, frente aos animais e frente a homens menos
preparados – os novos recursos, históricos, mostram-se imbatíveis: argumentação verbal,
desenvolvimento técnico, organização de grandes contingentes pelo estado. Em outras situações,
as antigas ações diretas de enfrentar, tomar, seduzir continuam fortes, embora boa parte do
aparato das arenas históricas (nos mundos do intelecto, da técnica, do econômico e do político)
seja dirigido para reprimir e punir o uso de tais recursos atávicos nos ambiente históricos. Como
exemplos, temos as regras de boas-maneiras, os códigos jurídicos, os regulamentos

- 17 -
governamentais e até regras de jogos e esportes, que têm objetivos mais abrangentes, mas nos
quais os rompantes "animalescos" são unanimamente vetados.
O homem evolui, portanto, exercitando suas novas capacidades diante do que lhe aparecia à
frente: florestas confinantes, animais selvagens ou tribos estranhas. Temos insistido na
capacidade intelectual do homem como aspecto diferenciador entre espécies, ao longo da
evolução filogenética. As hipóteses de agregação e socialização através do lúdico
(W.H.McNeill, J.Huizinga) já mostram que o intelecto não surgiu isolado. H.Maturana, em texto
curto, Lenguaje y realidad. El origen de lo humano, coloca as emoções e as práticas delas
derivadas no centro do descobrimento/aperfeiçoamento da linguagem.

"El origen del lenguaje, como un domínio de coordinaciones conductuales consensuales, exige
una história de encuentros recurrentes en la aceptación mutua intensos y prolongados. (...) Lo
que distinguimos cuando hablamos de emociones es el dominio de acciones en que el organismo
observado se mueve. (...) digo que las distintas acciones humanas quedan definidas por la
emoción que las sustenta y que todo lo que hacemos lo hacemos desde una emoción. Por esto,
aunque lo humano surge en la historia evolutiva a que pertenecemos al surgir el lenguaje, se
constituye, de hecho, como tal en la conservación de un modo de vivir particular en el que el
comparir alimentos, la colaboración de machos y hembras en la crianza de los niños y el
encuentro sensual individualizado recurrente se dan en el entrelazamiento del lenguajear y el
emocionar que es el conversar. (...) nada humano ocurre fuera del entrelazamiento del lenguajear
con el emocionar, y, por lo tanto, lo humano se vive siempre desde una emoción, aun el más
excelso y puro razonar." (Maturana R. 2000)

Ora, se tudo tem emoção (ou mesmo é emoção) e as emoções surgem e agem a partir,
principalmente, de nossas zonas cerebrais "antigas", as interrelações entre nossas múltiplas
camadas filogenéticas fazem parte integrante e essencial de nosso ser. Se, como assevera
Maturana, até pensar envolve emoção, podemos inferir que, de um modo ou de outro, nossas
camadas "animais" estão sempre presentes, até nas atividades mais civilizadas e "históricas".
Cabe desvendar como essa presença emocional se faz sentir nas arenas históricas e em que as
análises das ciências sociais e da História podem ser melhoradas, ao levar esse fato em conta.

- 18 -
8. O ATAVISMO DO AÇÚCAR

"...para que os que não sabem o que custa a doçura do


assucar a quem o lavra, o conheção, & sintão menos
dar por elle o preço que val..." (Antonil 1965 p.78/x)

Para ilustrar a discussão anterior através de temas da história do açúcar, focalizaremos dois
momentos bem característicos da história do Brasil:
a) a colonização açucareira como atividade de fronteira, em expansão; e
b) a civilização açucareira como atividade antiquada, em declínio.
Mesmo não nos atendo a uma periodização mais precisa, cabe distinguir a época de introdução e
de expansão açucareira, no período colonial, da época do declínio da civilização açucareira –
como atividade econômica, como centro de gravidade político no Brasil e como uma sociedade
com ímpeto próprio no fluxo da história mundial – o que transcorreu durante o Império e
primeiras décadas da República. Não iremos buscar explicações para esses movimentos,
procurando, antes, interpretar as relações escolhidas, segundo os conceitos desenvolvidos
anteriormente.
No momento de sua ascenção, enquanto atividade de fronteira, a empresa (no seu antigo sentido,
sem conotação de sociedade) açucareira se deu essencialmente em arenas atávicas:
enfrentamentos territoriais contra nativos e concorrentes europeus; enfrentamento contra a
natureza selvagem e imprópria para a atividade desejada antes da derrubada da mata; trabalho
com mediação de homens mantidos principalmente pela força; isolamento em núcleos
autosustentáveis, caracterizando uma sociedade patriarcal e, podemos sugerir, quase tribal.
(Vamos enfatizar esse conceito, de critério atávico, em oposição ao de feudal, cujos contornos
são fundamentalmente econômicos e políticos.)
Existia, sem dúvida, a superposição de arenas históricas: a Igreja Católica, o estado
metropolitano, as instâncias do estado na colônia, os antagonismos entre estados e entre a Igreja
e o poder laico. Supomos, no entanto, que as arenas atávicas tiveram uma ascendência sobre as
históricas, impondo-se a essas, certamente além do que desejariam os beneficiários diretos das
instituições históricas, como a Igreja e o Estado distante, fosse ele metropolitano ou imperial.
No período do declínio, por outro lado, as antigas lutas haviam esmorrecido. Não se desbravava
a mata, simplesmente buscavam-se terras que ainda pudessem fornecer lenha. Os índios haviam
sido dizimados ou estavam contidos. Os estrangeiros não eram mais guerreiros, mas
representantes comerciais ou banqueiros, aceitos na melhor sociedade, contra quem se brigava

- 19 -
em instâncias econômicas, políticas ou jurídicas. A sociedade patriarcal lutava para sobreviver,
debilitada pela abolição da escravidão e pela drástica redistribuição do poder a outras regiões, a
produtores de outras mercadorias, a industriais e banqueiros. As arenas atávicas tornavam-se
resquícios antiquados, símbolos de atraso técnico e cultural, e impedimentos à adoção imediata
de idéias, práticas e valores modernos. As arenas históricas – do intelecto, da técnica, do estado
e do mercado – haviam tomado a frente em todos os aspectos da vida açucareira. E, dentro
dessas arenas, novos poderes, novos meios se firmavam, desmantelando as teias de poder que os
senhores do açúcar haviam montado, certamente com grande veemência atávica, ao longo do
período de ascenção.
Dentro desse recorte cronológico, privilegiamos as seguintes relações emblemáticas:
a) homem x natureza (mata, terra e animais)
b) homem x homem (senhor, escravo)
c) homem x sociedade (senhor, estado, mercado)
Na historiografia sobre o Brasil, o destaque para os aspectos "primitivos" da empreitada colonial
ficam, sem dúvida, com as relações "homem versus natureza". As relações "homem versus
homem", mesmo na escravidão, ficam diluídas, por exemplo, em considerações econômicas
sobre modo de produção e racionalidade escravista. Quanto às relações "homem versus
sociedade", deu-se ênfase às relações dos desvalidos contra o establishment: revoltas de
escravos, revoltas sertanejas. Ou seja, pouco se examinou do ponto de vista do homem,
pessoalmente, frente a esses ambientes. Exemplificando a diversidade e complexidade desta
abordagem, vale destacar que as relações pessoais (intrafamiliares, senhor-visitantes, senhor-
escravo ou senhor-trabalhador livre, senhor-fornecedor de cana etc.) permaneciam talvez não em
arenas exclusivamente atávicas, mas em ambientes em que o componente atávico estivesse
muito mais presente e ainda representasse uma causa última, em oposição aos ambientes
históricos que se tornavam a regra fora dali.

9. HOMEM VERSUS NATUREZA

9.1 A MATA
A relação do homem com a floresta, com a mata, é tão antiga, tão entranhada em suas culturas e
em seus "subconscientes" atávicos que quase todas as civilizações têm suas lendas sobre origens
e feitos silvestres. A varredura de mitos em torno da floresta realizada por Robert P.Harrison

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(Harrison 1992) constitui argumento veemente comprovando a antiguidade e a variedade desses
mitos.
Na civilização do açúcar no Brasil, a mata sempre teve uma representação dividida: fonte de
riqueza (pau-brasil, madeiras de lei e lenha) e ambiente selvagem (animais peçonhentos, índios e
território desconhecido). Sob a perspectiva da ação, a relação do homem com a mata alterou-se
claramente ao longo dos séculos. De hostil fonte de madeira, embora de onde se poderia extrair
a riqueza pela mediação de homens (os índios), tornou-se mero impecilho à expansão de
plantações (de açúcar, café, mandioca etc.), que se poderia eliminar também com a mediação de
homens (os escravos). Cada vez mais, tornou-se também necessária a mediação do estado e de
seus aparatos jurídicos ou mesmo militares e policiais, diante de conflitos entre concorrentes
nacionais ou de outras nacionalidades.
Concomitantemente ao período de declínio da atividade, surgem vozes pela defesa ambiental da
mata: por que destruí-la e não adotar métodos agrícolas modernos ou mesmo abolir a
escravidão, por que destruí-la no presente e perdê-la no futuro. J.A.Pádua discute as diversas
vertentes da polêmica ambiental, ainda incipiente, mas conjugada com questões dominantes da
época como a escravidão e o apoio do estado à agricultura (Pádua 2002).
A destruição da mata, na época de fronteira:

"Já os traficantes franceses tinham derrubado muito pau-brasil. Os primeiros portugueses


continuaram a derrubar a madeira de tinta, com o auxílio dos índios.(...) Mas foi com o começo da
exploração agrícola que o arvoredo mais nobre e mais grosso da terra foi sendo destruído não aos
poucos, mas em grandes massas." (Freyre 1937 p.65-6)

"Querem as fornalhas, que por sete & oito meses ardem de dia & de noite, muita lenha, & para
isso ha mister dous barcos velejados para se buscar nos portos, indo hum atraz do outro sem parar
& muito dinheiro para a comprar, ou grandes mattos com muitos carros & juntas de boys para se
trazer." (Antonil 1965 p.86, p.2 no original)

"Muitos vendem as terras que tem por cançadas ou faltas de lenha ..." (Antonil 1965 p.92/5)

O resultado, pós-declínio:

"Madeiras hoje [1937] de uma raridade tão grande ... que sai mais barato ao senhor de engenho
comprar nos armazéns do Recife madeira do Pará que utilizar a dos seus restos da mata. (...) A
cana começou a reinar sozinha léguas e léguas de terras avermelhadas pela coivara. Desvastadas
pelo fogo." (Freyre 1937 p.66)

"A devastação das matas do nosso litoral tem já produzido um grave dano, que será irreparável de
futuro se a indústria agrícola não preveni-lo." (Miguel Calmon du Pin e Almeida, Ensaio sobre o
fabrico de açúcar, Salvador, 1834, p.20 apud Pádua 2002)

Resumindo, podemos dizer que na arena de fronteira, de enfrentamento entre homem e mata,
venceu o homem, arrasando a mata. Nas arenas posteriores – complexas, tanto atávicas quanto
históricas – em que matas ainda são derrubadas, mas também em que existem homens que

- 21 -
reconhecem sua necessidade e seu valor utilitário (e, cada vez mais, até intrínsico),
considerações de intelecto (argumentos ecológicos), de mercado (a escassez da mata) e de
estado (leis ambientais) se sobrepõem ao enfrentamento puramente atávico.

9.2 ANIMAIS
A civilização nordestina do açúcar também dividia os animais em duas categorias opostas: os
úteis e os perniciosos. Tratava-se de domesticar e controlar os primeiros e de matar e afastar os
outros. Além disso, mesmo os animais domesticados deveriam ser controlados, pois, soltos,
destruíam os canaviais, como exprimiram sucessivamente alguns expoentes da historiografia do
açúcar, Frei Vicente do Salvador, Antonil e G.Freyre:

"...grandes cercas que fazem aos pastos dos bois dos engenhos, por que não saiam a comer os
cannaviaes do assucar e os achem no pasto, quando os houverem mister para a moenda, as quaes
cercas se fazem de estacas e varas atadas com [...] cipós." [Frei Vicente do Salvador, História do
Brasil, pp.29-30, apud Andrée Mansuy em (Antonil 1965 Nota 7 p.150)]

"Andão no pasto, além das egoas & boys, ovelhas & cabras, & ao redor do engenho a criação
miuda, como são perús, galinhas & patos, que são o remédio mais prompto para agazalhar os
hospedes que vem de improviso. Mas porque as ovelhas & os cavallos chegão muito com o dente
à raiz da grama, são de prejuizo ao pasto dos boys. E por isso se o destes fosse diverso seria
melhor." (Antonil 1965 p.150/37)

"A monocultura da cana no Nordeste acabou separando o homem ... dos próprios animais –
"bichos do mato", desprezíveis ou então considerados no seu aspecto único de inimigos da cana,
que era preciso conservar à distância dos engenhos (como os próprios bois que não fossem os de
carro)." (Freyre 1937 p.68)

O enfrentamento, numa arena essencialmente atávica, dava-se, assim, tanto na mata como no
canavial, onde todos eram nocivos: cabras, bois, cavalos, ratos, porcos, ladrões e caminhantes,
conforme lista Antonil no capítulo "Dos inimigos da canna em quanto está no cannaveal".
Além da destruição da fauna, duas conseqüências desses enfrentamentos merecem menção: a
primeira, ter-se tornado o cavalo um acessório aristocrático, em oposição ao boi e outros
animais igualmente úteis, o que lhe valeu cuidados diferenciados, semelhantes em muitos casos
àqueles dispensados aos familiares em oposição àqueles dispensados a animais somente úteis,
escravos ou trabalhadores "sem patente" (Freyre 1937 p.87-92). A segunda, foi a multiplicação,
ou melhor, a difusão das arenas de enfrentamento pessoal entre homem e animais "imbatíveis",
como o bicho-de-pé, mosquitos e murissocas, numa luta que o homem só conseguiria vencer,
muito depois, pela – ainda que precária – divulgação do conhecimento científico. Enquanto
isso, a natureza foi mais forte e o homem recorreu à fuga:

"O homem da casa-grande, sem saber ao certo quais seus inimigos mais perigosos, foi criando um
medo exagerado do ar, do "sereno", da água, do sol; de toda a proximidade de mata; do contato

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com a terra pegagenta; com a água barrenta. As portas e as janelas das casas-grandes foram se
trancando a ferrolho e travessão às primeiras sombras da noite por precaução contra inimigos
misteriosos que andavam no ar, que vinham do mais profundo das matas e das águas. "Miasmas".
Bichos. Era preciso fechar a casa contra os bichos." (Freyre 1937 p.113)

Domesticavam-se, destruíam-se ou evitavam-se os animais. Sua posição no ideário e na prática


do senhor – e, por extensão, no ideário e na prática de todos – foi correlacionada diretamente a
sua utilidade (como agente mediador) e inversamente a sua ferocidade (nas arenas atávicas).

9.3 TERRA
A terra serviu fundamentalmente como mediadora entre o homem e seu objetivo, a cana.
Mediadora exigente, contudo, que não perdoou o desmatamento, o descuido, a ganância. Os
engenhos à beira-mar, com massapê e matas, logo se tornaram raridade:

"De todas as castas de terras tem necessidade hum engenho real, porque humas servem para
cannas, outras para mantimento da gente, & outras para o aparelho & provimento do engenho
além do que se procura do Reyno. Porém nem todos os engenhos podem ter esta dita, antes
nenhum se achará a quem não falte alguma destas cousas. Porque aos que estão à beira-mar
commummente faltão as roças & a lenha, & aos que estão pela terra dentro faltão outras muitas
conveniencias que tem os que estão à beira-mar no Reconcavo." (Antonil 1965 p.150-2/37)

Desde cedo se havia reconhecido a adequação do massapê para o cultivo da cana. Bastava saber
disso e conhecer sua terra, junto com os demais requisitos do empreendimento.

"Se o senhor do engenho não conhecer a qualidade das terras, comprará salões por massapés &
apieús por salões. Por isso, valha-se das informaçoens dos lavradores mais entendidos & attente
(...) a todas as conveniencias que se hao de buscar para ter fazenda com cannaveas, pastos, aguas,
roças & mattos, & em falta destes, commodidade para ter a lenha mais perto que puder ser(...)"
(Antonil 1965 p.90/5)

No massapê surgiu a civilização do açúcar. G.Freyre identifica essa característica geográfica


com o restante do mundo açucareiro nordestino, a que opõe à dureza do sertão: à moleza da terra
se adequava a moleza da vida, das amas-secas negras e gordas.

"Quase se podem fixar as fronteiras entre as terras de massapê e as terras ásperas, por esse detalhe
do leite de mãe-preta – em vez do da comadre-cabra dos sertões..." (Freyre 1937 p.34)

O terreno praticamente determina a vida.


Um fato importante deve ser lembrado quanto às terras do Nordeste. Embora desgastadas por
séculos de uso e abuso, não chegaram a ser abandonadas, em contraste com a expansão
predatória sofrida pelo Vale do Paraíba do Sul, no caminho do café até São Paulo.
W.Dean assim descreve o processo canavieiro do Rio de Janeiro dos primeiros tempos:

"... a floresta primária era queimada e derrubada em toda parte onde ocorresse, porque recobria os
solos mais férteis. A cana... era colhida após um ano e deixada a rebrotar de suas raízes por duas
colheitas mais, para depois ser queimada e replantada. O ciclo se repetia por uma ou duas vezes e

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depois o campo era abandonado para reverter a floresta... talvez por vinte anos. Quando os preços
subiam, a fase de pousio era abreviada para até três anos. (...) Por fim, após vinte ou trinta anos, o
fazendeiro perderia o interesse, declararia sua terra 'cansada' e faria a solicitação de outra
sesmaria." (Dean 1995 p.190-1)

Assim, espalhou-se a "terra cansada" pelo Rio de Janeiro, em direção ao Espírito Santo, e
subindo o rio Paraíba do Sul, entrando pelo interior rumo a Campinas.

10. HOMEM VERSUS HOMEM

10.1 ESCRAVOS
G.Freyre, no seu Casa-Grande & Senzala, daria o tom da empreitada portuguesa nos trópicos:

"A mobilidade foi um dos segredos da vitória portuguesa; sem ela não se explicaria ter um
Portugal quase sem gente ... conseguido salpicar virilmente do seu resto de sangue e cultura
populações tão diversas e a tão grande distâncias umas das outras... (...) Quanto à miscibilidade,
nenhum povo colonizador, dos modernos, excedeu ou sequer igualou nesse ponto aos portugueses.
(...) A miscibilidade, mais do que a mobilidade, foi o processo pelo qual os portugueses
compensaram-se da deficiência em massa ou volume humano para a colonização em larga escala e
sobre áreas vastíssimas." (Freyre 1966 p.11-12)

Esses dois aspectos – a mobilidade e a miscibilidade – reforçam a idéia de essa colonização ter-
se construído em arenas essencialmente atávicas – a presença física e o contato sexual. Assim, à
simples mediação humana da escravidão, o português acrescentou um fator fundamental,
exercendo sua "miscibilidade" também sobre essa população importada, além de já fazê-lo sobre
a população nativa.
Quanto à importância do negro para o açúcar, a unanimidade foi geral:

"Não é possível o fabrico de açúcar sem o auxílio dos negros, que de Angola e outros portos da
África se transportam em grande número para o Brasil." (Barlaeus 1980 p.42)

"Os escravos são as mãos & os pés do senhor de engenho, porque sem elles no Brasil não he
possivel fazer, conservar & aumentar fazenda, nem ter engenho corrente." (Antonil 1965
p.120/22)

"O negro tornou-se parte do grande complexo brasileiro de cana de açúcar. A civilização do
açúcar não se teria feito sem ele – diga-se mais uma vez. Diga-se sempre." (Freyre 1937 p.131)

Como vimos com relação à mata e aos animais, o senhor também classificava suas relações com
os escravos em "boas" e "más". Aos "maus escravos", o castigo, violento, para incutir medo,
"bom senso" e também punir. Aos "bons escravos", as benesses do patriarca, direitos "além do
devido". Sob a ótica que desenvolvemos aqui, o "bom escravo" estaria incluído na família
patriarcal, em oposição ao "mau escravo", mero instrumento, dispensável e esquecível. O "bom"

- 24 -
ganharia, como ganhavam os filhos do patriarca, casa, comida, proteção e benção15. A forma
que tomavam essa casa, essa comida e essa proteção certamente era distinta para o escravo e
para os filhos, mas a intenção e a benção eram quase as mesmas16. Diferiam os contextos
históricos (sociais, poderíamos dizer no caso), mas intuímos que as arenas atávicas teriam sido
as mesmas. Aos "bons" a proteção, aos "maus" o enfrentamento.
Como exemplo de uma polêmica que poderia beneficiar-se conceitualmente dos recortes de
arenas/ações atávicas/históricas, podemos citar a discussão sobre o carácter benigno ou não da
escravidão, usualmente opondo o caso brasileiro ao norte-americano. F.Versiani trouxe diversos
esclarecimentos à questão, baseado principalmente na multiplicidade de contextos em que se
deu a escravidão no Brasil, contrastando com a idéia tradicional da escravidão violenta em
plantations. Assim, deixando de lado a índole própria de cada senhor, distingue situações
diversas para escravos urbanos, escravos domésticos, escravos de senhores com poucos
escravos, escravos em propriedades açucareiras do Nordeste em que a motivação econômica não
era o motor principal da vida. Em todos esses casos, havia um relacionamento pessoal entre o
senhor e os escravos, que sobrepujava a relação de violência inerente da escravidão. Poderíamos
dizer que tanto os objetivos do senhor (precisar de mais esforço bruto ou de mais habilidade),
quanto o tipo de arena em que se cruzavam, levaram a ações diferenciadas (Versiani 2000).

10.2 SENHORES
Além do enfrentamento, implícito ou real, entre desiguais, senhor e escravos, a vida do açúcar
impunha importantes enfrentamentos entre iguais: senhor contra senhor, richas entre famílias ou
brigas intra-famílias. Antonil, no século XVIII, já havia identificado esses conflitos:

"(...) quem duvida que poderia chegar a renovar semelhantes tragedias [Cain & Abel] ainda hoje
entre os parentes, pois ha no Brasil muitas paragens em que os senhores de engenhos são entre si
muito chegados por sangue & pouco unidos por charidade, sendo o interesse a causa de toda a
discordia, & bastando tal vez hum pao que se tire ou hum boy que entre hum cannaveal por
desuido para declarar o odio escondido & armar demandas & pendencias mortaes ?" (Antonil
1965 p.98/9)

G.Freyre aponta, além das richas, a violência contra a família:

"Sobre a própria família a justiça patriarchal às vezes se voltava com um rigor trágico. 'Não raros
crimes ... foram praticados pelo pater familias contra a pessoa da mulher e dos filhos, por motivos

15
Não cremos que a distinção, até usada pelo próprio G.Freyre, entre escravos de campo e escravos de casa altere
essa idéia, pois os escravos que passavam a vida no campo, distantes da casa-grande também poderiam obter as
benesses do senhor, sendo "bons".
16
"Tal união [entre os escravos e o poder representado pela Igreja] era por toda parte formalmente reconhecida por
uma pequena cerimônia que precedia a retirada dos escravos durante a noite. De pé, diante de seu senhor, o escravo
pronunciava as seguintes palavras: 'Peço-lhe a bênção em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo', ao que o senhor
respondia 'O Senhor Jesus Cristo lhe abençõe para sempre.'." (Valente 1972)

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de honra'. (...) Eram esses motivos de honra, questões de terra e rivalidades de partidarismo
político que às vezes lançavam uma família contra a outra, dando-se então crimes terríveis."
(Freyre 1941 p.172)

Em todos esses enfrentamentos, percebe-se a arena atávica em sua plenitude, embora "mediada"
por contextos absolutamente históricos, como questões de honra e partidarismo político. A luta
pelo território, ação reconhecidamente atávica, também já se encontra aqui permeada mais por
aspectos econômicos do que por aspectos diretamente pessoais.
Só lentamente, ao longo das décadas desde a abolição da escravidão, é que tais práticas foram
sendo afastadas por mudanças ideológicas, pelo reforço da presença coercitiva do estado e pela
desconcentração de poder.
Além do enfrentamento, vale lembrar uma característica de proximidade que certamente
exacerbou os componentes atávicos: durante esses primeiros quatro séculos de açúcar no Brasil
(até a década de 1930), quase tudo na vida ocorria através de relações pessoais diretas. Assim,
pode-se imaginar o grau de "intimidade" no relacionamento entre senhor de engenho e seus
fornecedores:

"Nem estranhe que os lavradores queirão ver no tendal & casa de purgar, no balcão & casa de
encaixar, ao seu assucar, pois tanto lhes custou chegallo a pôr nesse estado & tanta amargura
precedeo a esta limitada doçura !" (Antonil 1965 p.96/8)

Por outro lado, a atitude senhorial favorecia os conflitos:

"O ter muita fazenda cria commumente nos homens ricos & poderosos desprezo da gente mais
pobre, & por isso deos facilmente lha tira, para que se não sirvão della para crescer em soberba.
Quem chegou a ter titulo de nobreza, parece que em todos quer dependencia de servos." (Antonil
1965 p.94-6/7-8)

Se vivia em conflitos com muitos, a qualquer viajante "digno" um senhor tratava como
convidado pessoal, trazendo para dentro de sua casa, "seduzindo-o" e "protegendo-o" como faria
a sua família:

"A qualquer hora da noite ou dia que chegavamos, em brevissimo espaço nos davão de comer (...)
todas as variedades de carnes, galinhas, perús, patos, leitões, cabritos e outras castas e tudo têm de
sua criação com todo o genero de pescado e mariscos de toda sorte, dos quaes sempre têm a casa
cheia, por terem deputados certos escravos pescadores para isso e de tudo têm a casa tão cheia que
parecem uns condes e gastam muito." (Fernão Cardim, Tratado da terra e gente do Brasil apud
Wanderley Pinho, História de um engenho do Recôncavo, p.48, citado por A.Mansuy em Antonil,
1965, Nota 4 p.139)

Mais uma vez, era o senhor o centro de tudo que acontecia nos seus domínos. Não havia
indiferença, um desconhecido bem apresentado (por terceiros, por documentos ou pela simples
postura) seria considerado e tratado como amigo. Quem não tivesse tal apresentação passaria
por perigoso e possivelmente inimigo, sofrendo tratamento condizente.

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11. HOMEM VERSUS SOCIEDADE

11.1 IGREJA E ESTADO


Até mais do que o Estado, a Igreja foi a instituição formal mais presente na civilização do
açúcar no Brasil até o século XIX. Era quem educava, determinava o que se poderia ler e seguia
todos os passos da vida do cristão.
G.Freyre considera que a religião foi o grande elo unificador no mundo português:
"O Brasil formou-se, despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza de raça. Durante
quase todo o século XVI, a colônia esteve escancarada a estrangeiros só importando às
autoridades coloniais que fossem de fé ou religião Católica." (Freyre 1966 p.38)

Assim, a Igreja praticamente formava um braço do Estado. Desde a viagem, na qual "observou-
se a prática de ir um frade a bordo de todo navio que chegasse a porto brasileiro, a fim de
examinar a consciência, a fé, a religião do adventício" (Freyre 1966 p.38). No caso dos escravos,
"Logo nos começos tornou-se hábito batizar todos os negros da colônia portuguesa de Angola
antes de colocá-los nos navios negreiros" (Valente 1972 p.93). Essa relação perdurou após o
período colonial até a República17. Como tudo em torno do engenho, a Igreja se agregava à vida
centrada na casa-grande, no senhor e nas atividades do engenho.

"No dia em que se bota a canna a moer, se o senhor do engenho não convidar ao vigário, o
capellão benzerá o engenho & pedirá a Deos que dê bom rendimento & livre aos que nelle
trabalhão de todo o desastre. E quando no fim da safra o engenho pejar, procurará que todos dem a
Deos as graças na capella." (Antonil 1965 p.104/13-14)

No desenho do Engenho Noruega, que ilustra a abertura de Casa-Grande & Senzala, a capela
está integrada à casa-grande, num prédio único, e os religiosos aparecem em diversas atividades
(nem todas religiosas, contudo). A arena da religião foi, assim, a principal formadora de
conceitos (pela educação) e a principal mediadora (através da confissão, da vida pautada por
eventos religiosos e através da presença física em quase todo momento). É especialmente
interessante lembrar-se a atenção dada na liturgia católica a sua "apropriação" de arenas/ações
atávicas, em especial no ciclo vital do indivíduo (nascimento/batismo, formação/crisma,
reprodução/casamento, morte/extrema unção) e na manutenção de sua estabilidade
(confissão/comunhão).

17
Manoel Maurício de Albuquerque descreve sucintamente: "A imagem do poder e da autoridade, principalmente a
do Estado, era substancialmente constituída por elementos do sistema ideológico-religioso. Esta circunstância
explica, em grande parte, a primazia da Igreja no conjunto dos aparelhos ideológicos oficiais e o papel que
representou como intérprete exclusiva e autorizada da versão que melhor convinha à manutenção social
hierarquizada e à desigualdade respectiva, na repartição do produto realizado pelos produtores diretos, juridica-
mente livres ou escravos. (...) as duas entidades se identifica[vam] no plano da dominação necessária à permanência
de uma estrutura social hierarquizada e ... os representantes da Igreja integra[vam] o bloco de classes hegemônico
cujo poder assegurava a reprodução da ordem social vigente." (Albuquerque 1981 p.240)

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O outro ambiente institucional importante foi a mediação jurídica, que se tornava fundamental
nas relações entre senhores e nas relações entre senhores e o Estado. As relações entre senhores
e seus subordinados estavam (quase) totalmente nas mãos dos próprios senhores. Houve, sem
dúvida, uma evolução, desde os regulamentos de escravos do século XVII até os contratos de
colonos do XIX e, mais recentemente, o Estatuto da Lavoura Canavieira.
Mais uma vez, Antonil resume conflitos potenciais que, em sua essência, permanecem até hoje:

"Para ter lavradores obrigados ao engenho, he necessario passar-lhes arrendamento das terras em
que hão de plantar. (...) Porém ha-se de advertir que os que pedem arrendamento sejão fazendeiros
& não destruidores da fazenda, de sorte que sejão de proveito & não de dano. E na escritura do
arrendamento sa hão de pôr as condições necessarias (...) E para isso seria boa prevenção ter huma
formula ou nota de arrendamento, feita por algum letrado dos mais experimentados, com
declaração de como se haverão, despejando, acerca das bemfeitorias, para que o fim do tempo do
arrendamento não seja principio de demandas eternas." (Antonil 1965 p.94/7)

O recurso à instância jurídica sempre foi visto como o mais custoso e um problema a evitar:

"Feita a compra (...) attente à conservação & melhoramento do que comprou & principalmente use
de toda a diligencia para defender os marcos & as aguas de que necessita para moer o seu
engenho. E mostre aos filhos & aos feitores os ditos marcos, para que saibão o que lhes pertence
& possão evitar demandas & pleitos, que são huma continua desenquietação da alma & hum
continuo sangrador de rios de dinheiro que vay a entrar nas casas dos advogados, solicitadores &
escrivaens, com pouco proveito de quem promove o pleito, ainda quando alcança, depois de tantos
gastos & desgostos, em seu favor a sentença." (Antonil 1965 p.92/6) [A p.6/92]

O Estado, inicialmente substituído em suas funções de mantenedor da ordem e da justiça pelo


próprio senhor e pela Igreja, só lentamente viria a marcar presença no Nordeste canavieiro.
Formou-se como um braço dos senhores de engenho e das elites e assim se mantém, em boa
parte, até os dias de hoje. A partir do final do século XIX, relegados a segundo plano diante do
poderio industrial dos usineiros, aqueles senhores de engenho que não conseguiram galgar este
degrau econômico cederam aos novos donos do açúcar seu antigo lugar nessa elite.

11.2 MERCADO
O mercado sempre foi uma arena fundamental para a reprodução da civilização açucareira, onde
os senhores individualmente podiam vencer ou perder, conforme suas aptidões, suas trajetórias e
as circunstâncias do momento. Faremos alguns comentários sobre essa arena.
A proximidade pessoal entre os parceiros comerciais foi de início a regra. O senhor mantinha
estreito contato com aqueles a quem venderia o açúcar, fosse diretamente, fosse através de
correspondentes. Essas pessoas, mesmo quando fossem meros prepostos, tornavam-se a "cara"
do comprador perante o vendedor, numa relação homem-a-homem. Com o tempo, entretanto,
esse tipo de relação foi-se diluindo, chegando ao final do século XIX bastante descaracterizada.

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Embora sempre houvesse uma "cara" para discutir com o vendedor, as tratativas não se davam
mais de fato homem-a-homem, tendo sido imersas em arenas econômicas e jurídicas bem mais
complexas. O senhor de engenho vendia seu produto a uma empresa, representada por um
preposto. Na transmissão entre esse intermediário e os reais compradores, e na volta, seus
reclamos e argumentos perdiam qualquer expressão "atávica", emocional, sendo traduzidos para
um contexto puramente "histórico", comercial, em que só valiam cláusulas contratuais, prazos,
valores e números. Seus gritos não chegavam ao comprador.
Concomitantemente a essa institucionalização de um dos parceiros comerciais, ampliaram-se em
escala e em qualidade as formas de concorrência enfrentadas pelo produtor de açúcar. Durante o
período colonial, quando havia destino e comprador certos para o açúcar do Brasil, talvez
existisse uma concorrência restrita entre os senhores de engenho, por posição ou pequenas
diferenças de preço. Ao mesmo tempo em que Portugal deixou de ser o comprador obrigatório,
surgindo compradores alternativos em outras partes do Mundo, os vendedores brasileiros
passaram a concorrer, pela freguezia desses clientes alternativos com todos os demais
produtores do Mundo. O que parecia uma bênção, tornou-se um pesadelo. Não havia grito ou
argumento que vendesse açúcar quando seu preço não fosse "o do mercado". Nem havia como
vender açúcar a qualquer preço, quando não houvesse compradores. A arena do mercado, de
confiável caixa recebedora de mercadoria e pagadora, havia-se transformado em desconcertante
arena de luta, cujas regras e caminhos quase sempre escapam ao produtor brasileiro. Invertiam-
se as relações senhoriais, desdenhosas do comércio, passando o comércio a desdenhar do nome,
da posição e de toda a qualidade do senhor (agora somente) de engenho.

* * *

A importância de conhecimentos especiais para agir nessa arena é certa desde que surgiram
mercados: vocabulário técnico, medidas, câmbios, instrumentos jurídicos etc. Além disso, há
regras intrínsecas a serem observadas. Um exemplo interessante é o da confiança, que se
exprime e se avalia objetivamente através de um ambiente essencialmente histórico (o
cumprimento de contratos, por exemplo), mas que também é transmitida, sentida, por canais
atávicos (tino comercial, faro para negócios). Antonil, no seu capítulo XII "Como se ha de haver
o senhor do engenho com os mercadores & outros seus correspondentes na praça. E de alguns
modos de vender & comprar o assucar, conforme o estylo do Brasil" lembra:

"O credito de hum senhor de engenho funda-se na sua verdade, isto he, na pontualidade &
fidelidade em guardar as promessas. (...) assim tambem se ha de acreditar com os mercadores &
correspondentes na praça que lhe derão dinheyro para comprar peças, cobre, ferro, aço, enxarcias,
breo, velas & outras fazendas fiadas. Porque se ao tempo da frota não pagarem o que devem, não

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terão com que se aparelhem para a safra vindoura, nem se achará quem queira dar o seu dinheiro
ou fazenda nas mãos de quem lha não ha de pagar, ou tam tarde & com tanta difficuldade que se
arrisque a quebrar." (Antonil 1965 p.142/33)

Junto à questão da confiança vem a diversidade de enfrentamentos no mercado – enfrentamentos


com regras, enfrentamentos em que regras são quebradas e enfrentamentos sem regras. Tais
aspectos são certamente complexos e entram pelo campo detalhado das relações econômicas e
jurídicas. Podemos afirmar sem susto que tanto "a cola" agregadora que autoriza o homem
lançar-se confiante em transações na arena do mercado (com suas regras históricas), quanto as
reações que sofrerá diante do descumprimento dessas regras, podem ser consideradas
fundamentalmente atávicas, embora casadas com um ambiente jurídico e econômico, para o
qual sinais atávicos serão traduzidos e cujos sinais repercutirão sobre um ambiente atávico.
Em comparação com as demais arenas abordadas, o mercado talvez tenha sido a arena em que a
influência atávica se fez menos presente, embora pudesse proporcionar, pela importância "vital"
dos resultados que mediava, reações fortes (e atávicas) aos sucessos e insucessos que impunha.

12. A "NATURALIDADE" DO HOMEM AÇUCAREIRO

Embora nos atendo à civilização do açúcar, imaginamos que outros setores da atividade humana
e de sua história possam semelhantemente serem revistos pela ótica proposta. Cremos, no
entanto, que esta civilização açucareira deverá mostrar-se, em comparação com outros
momentos da história, especialmente própria para tal forma de análise, pela alta participação das
arenas/ações atávicas em seu quotidiano. Apesar da importante e inevitável presença de
arenas/ações históricas naquele ambiente – afinal eram homens – parece-nos que as atávicas
tiveram presença essencial. Daí a naturalidade do homem açucareiro, que certamente conviveu
muito mais com suas emoções e reações atávicas do que sugerimos ao falar em sociedade
colonial, feudal, escravista, patriarcal ... Naturalidade por agir conforme sua natureza, mas que
foi vista como indício de atraso por todas as correntes historiográficas, fincadas em postos de
observação mais modernos, mais científicos, mais capitalistas, mais desenvolvidos, mais
históricos.
Porque enfatizar tal naturalidade ? Cremos que justamente esse conceito pode diferençar
atitudes e momentos em geral (mal) agrupados pela historiografia.
Na época de expansão da cultura e da "civilização" açucareira, vimos que as características
supostamente "atrasadas" de seus membros foram exatamente as características necessárias para
vencer naquele ambiente e naquele momento. Uma pequena população conseguiu, com técnicas

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primitivas e parcos recursos, impor-se além-mar, desenvolver o maior negócio comercial do
Mundo e mantê-lo assim por mais de dois séculos !
Para isso precisou enfrentar a natureza, pródiga, mas hostil, para impor a atividade desejada.
Precisou enfrentar inimigos, nativos e concorrentes europeus, para assenhorar-se da colônia e
mantê-la. Precisou organizar a migração forçada de uma nova força-de-trabalho, inexistente na
metrópole e na própria colônia. Negociou a compra dessa mão-de-obra, criou as práticas de seu
transporte, submissão e aculturamento. Adeqüou e torceu regulamentos e ordens metropolitanas
a suas necessidades e a seus fins, sobrevivendo a invasões, ocupações, atribulações dinásticas e
a mudanças no centro de gravidade econômico.
Para ter sucesso em tudo isso, a participação de instituições "históricas" como a Igreja foi, sem
dúvida, fundamental, embora não se possa afirmar que, sem ela, não teria sido possível
desenvolver-se outro tipo de colonização: ou seja, não devemos, nem podemos, duvidar da
capacidade criativa da "natureza humana". Mas, é importante reconhecer que a empreitada
portuguesa do açúcar só aconteceu porque os portugueses enfrentaram homens e natureza;
tomaram terras, homens e mulheres; domaram e forjaram essa terra e essa gente a seu modo; e,
dentro de sua capacidade, protegeram e mantiveram sua colônia durante todo esse tempo.
Perderam-se como ? Os portugueses foram capazes de controlar seu quinhão do Mundo, mas o
fizeram às custas de uma sociedade conservadora, de pouca mobilidade e inovação, que se
mostrou eficaz até que outras sociedades, através de instrumentos "históricos" surgidos
posteriormente, provaram ser econômica e ideologicamente mais fortes. Além do capitalismo
industrial e do imperialismo financeiro, sempre lembrados, devemos incluir um "imperialismo
intelectual" entre os meios pelos quais a civilização colonial portuguesa foi vencida. Tanto
quanto aconteceu diante do progresso técnico, a civilização portuguesa metropolitana, sua
extensão colonial e, é claro, a civilização brasileira surgida dessa colônia mostraram-se
impermeáveis a inovações e "mutações" intelectuais. Ao manter seu antigo ideário, não estavam
preparadas, por exemplo, para enfrentar no campo ideológico a campanha contra o tráfico e a
abolição da escravidão, ou ainda para adequar ou substituir seu ideário em reação a essa
campanha.
Assim, a "naturalidade", o "atavismo", tão determinante para o sucesso da expansão colonial,
viu-se, logo em seguida, transformado em obstáculo decisivo para que a civilização açucareira
portuguesa se mantivesse à frente dos demais países. Criou uma sociedade vencedora, resistente,
mas incapaz de continuar vencendo nas novas arenas técnicas, econômicas e intelectuais. Essa
sociedade perdeu, mas, de tão resistente, ainda hoje sobrevive, acuada geograficamente,

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eventualmente disfarçada, mas claramente presente. Trata-se agora de trazer essa naturalidade
para a História, reunindo pela mente o que nosso corpo tem junto desde sempre.

* * *

Após esses comentários, que insistimos heurísticos, para suscitarem novos estudos, cabe apontar
algumas dúvidas e sugestões.
Cremos ter identificado conceitos, mas deixamos de lado um trabalho fundamental que seria
mostrar o valor deste tipo de análise frente aos instrumentos usuais da historiografia. Em que
momentos ou condições os conceitos puramente "objetivos" se perdem ou não chegam ao
âmago da "história" ? Em que nossas arenas/ações atávicas se distinguem da idéia de emoção e
de outros conceitos correntes na psicologia e psicanálise ? Como interagem com eles ? Que
historiografia existe com a qual se possa identificar e apurar essa análise de arenas/ações ?
Tendo sido levantadas essas questões preliminares, caberia desenvolver uma historiografia que
levasse em conta esses conceitos, como forma de trazer para o trabalho da História
características que sabemos tão humanas como são as emoções. Cremos que as noções aqui
desenvolvidas indicam um possível caminho para a incorporação desses aspectos,
desconsiderados pela historiografia por demasiadamente individuais e não sociais. Acreditamos
ter apontado indícios bastante claros de que emoções, mesmo referenciadas a um indivíduo num
momento e numa situação específica, podem ser analisadas socialmente e, portanto, devem ser,
de alguma maneira, incorporadas ao trabalho da História.

Rio de Janeiro, agosto de 2003

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