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A lei penal contém uma norma, que é uma ordem estatal dirigida a todos os
cidadãos, no sentido de fazer ou não fazer alguma coisa. A norma penal incriminadora,
por exemplo, contém um mandamento que impõe determinado comportamento: não
matar (art. 121, CP), não constranger mulher a conjunção carnal mediante violência ou
grave ameaça (art. 213, CP).
Toda norma, de conseqüência, necessita ser conhecida em sua inteireza para que
se possa bem saber o que se pode e o que não se pode fazer, o que é certo e o que é
errado, distinguindo o proibido do permitido.
Por mais clara que seja, aparentemente, uma norma, ainda assim precisa ser
analisada e examinada. Quando se diz que uma norma é clara e, por isso, não precisa
ser interpretada, é porque, quando se a considerou clara, já se a tinha analisado e
2 – Direito Penal – Ney Moura Teles
A interpretação é uma operação lógica que visa descobrir a vontade da lei, para
aplicá-la aos casos que ocorrem no dia-a-dia.
Lembra BETTIOL:
É verdade, viva, a lei tem luz própria, impondo sua vontade até mesmo contra a
vontade do legislador.
1 BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. v. 1, p. 152.
Interpretação da Lei Penal - 3
Esta é a interpretação feita pelo próprio legislador, por meio da própria lei. Ao
elaborar determinada lei, verifica o legislador a existência de um conceito, um termo,
um instituto, inserido na norma que pode ser interpretado de forma dúbia ou ambígua
e, como a norma penal deve ser precisa, ele mesmo apresenta a solução da dúvida ou da
ambigüidade, espancando futuras controvérsias.
Trata-se da mais verdadeira interpretação da lei, pois é ela mesma quem diz qual sua
vontade, qual a extensão do conteúdo e o significado das expressões que utiliza.
Vê-se, assim, que por casa se deve entender qualquer lugar, ou compartimento
onde alguém more, vale dizer, um barraco, uma barraca, um trailer, bem assim o
escritório do profissional liberal, exceto a sala de espera, aberta ao público.
Nos arts. 312 a 326 do Código Penal estão definidas várias espécies de crimes que
só podem ser praticados por funcionário público. O legislador, prevendo ambigüidades
na conceituação de funcionário público, antecipou-se e fez no art. 327 sua
interpretação:
A Lei nº 6.538, de 22-6-78, que, entre outras coisas, definiu crimes contra o
serviço postal e o de telegrama, no art. 47 esclareceu o conteúdo de vários termos, como
4 – Direito Penal – Ney Moura Teles
Pode ocorrer que, em vigor uma lei e surgindo dúvidas quanto a sua vontade, o
legislador entenda necessário elaborar nova lei, esclarecendo o conteúdo da lei anterior,
dirimindo assim a dúvida ou ambigüidade. Esta é outra espécie de interpretação
legislativa, chamada posterior. Trata-se de lei nova, com o objetivo de interpretar a
anterior.
A interpretação doutrinária, é certo, não tem força obrigatória, pois não passa
da opinião de um homem; todavia, sendo ele um cientista, seu pensamento será levado
em conta pelos profissionais do Direito. À medida que determinado jurista se impõe
perante a sociedade – pela seriedade de seu trabalho, pela cientificidade de suas obras
e, sobretudo, pela coerência de suas idéias, e seu ajustamento ao sistema jurídico –
suas opiniões são respeitadas e acabam por se tornar de aceitação geral.
Para aplicar a lei, o juiz deve conhecer a norma e interpretá-la diante do caso
concreto. Deve, pois, descobrir a vontade da lei.
Esta interpretação tem força obrigatória apenas para o caso que estiver sendo
julgado. Isto significa que o juiz não está obrigado a dar à lei a mesma interpretação
dada, anteriormente, por outro juiz, ou pelo tribunal.
Não está o juiz vinculado à interpretação dada pela instância superior, nem pelo
Supremo Tribunal Federal.
Ao interpretar a lei penal, decidindo o caso concreto, o juiz deve estar atento para
a lição do grande NELSON HUNGRIA:
É seu dever zelar para que a lei ordinária nunca elimine o núcleo essencial
dos direitos do cidadão, constitucionalmente protegido. É seu dever, ainda, não
tolerar interpretações que acarretem o esvaziamento de sua jurisdição, em favor
de jurisdições especiais. É seu dever também garantir a ampla e efetiva defesa, o
contraditório e a isonomia de oportunidades, favorecendo, assim, o concreto
exercício da função de defesa. É seu dever, por fim, invalidar as provas obtidas
A descoberta da vontade da lei, pelo juiz, portanto, há de ser feita sem esquecer
que estará sendo aplicada ao homem, que é a razão de ser de tudo.
Assim, no art. 121, Código Penal, “matar alguém”; é preciso examinar ambas as
expressões. Por “matar” deve-se entender “tirar a vida” ou “causar a morte”. E por
“alguém” deve entender-se “qualquer pessoa”.
3 In: FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 18.
8 – Direito Penal – Ney Moura Teles
E não está porque a vontade da norma do art. 155 do Código Penal não é proteger
a saúde das pessoas, mas seu patrimônio. E o rim não é patrimônio, mas órgão
indispensável à manutenção da vida do homem.
Se não está certa esta interpretação, como, então, descobrir, qual norma se aplica
ao fato narrado?
O método literal não é o único, pois é preciso, além dele, utilizar o intérprete do
método teleológico ou finalístico, com o qual se descobre a vontade da lei.
Por meio deste método, o intérprete vai descobrir a vontade da lei, perguntando
quais seus objetivos, qual sua finalidade.
Como já foi dito, a tarefa do Direito Penal é a proteção dos bens jurídicos mais
importantes, das lesões mais graves. De conseqüência, é claro que as normas penais
incriminadoras foram elaboradas para dar proteção aos ditos bens jurídicos. Cada
norma penal incriminadora visa à proteção de um ou mais bens jurídicos. A norma do
art. 155 do Código Penal, que define o crime de furto, visa proteger o patrimônio – bens
materiais de valor econômico – das pessoas, dos ataques consistentes na apropriação
das coisas que integram o patrimônio, sem violência contra a pessoa e sem nenhuma
outra agressão a qualquer outro bem jurídico.
Já a norma do art. 157, Código Penal – que define o crime de roubo – visa proteger
o mesmo patrimônio das pessoas, mas dos ataques violentos – protegendo, igualmente,
a vida, a integridade física ou a tranqüilidade dos indivíduos.
Ora, existe alguma norma penal que protege a integridade corporal e a saúde das
pessoas? Claro que existe. Já no Código Penal encontrava-se o art. 129:
Um exemplo. No caput do art. 342 do Código Penal está definido o crime de “falso
testemunho ou falsa perícia”, assim:
Na parte geral, no título I (arts. 1º a 12), as regras de aplicação da lei penal. Nos
títulos II, III e IV (arts. 13 a 31), as normas que tratam do crime, em todas as suas
características gerais.
Na segunda parte, a Parte Especial, que vai do art. 121 até o 359, estão definidas
as várias modalidades de condutas consideradas criminosas, com algumas normas
penais permissivas especiais, e outras normas explicativas, relativas aos crimes em
espécie.
Dentre deles, os crimes contra a vida encontram-se nos arts. 121 a 128, que são:
Interpretação da Lei Penal - 11
Como se vê, portanto, existe uma ordem harmônica, de modo que o intérprete,
quando vai aplicar a norma incriminadora ao fato, deve considerar a existência de
várias normas e uma só delas aplicável, e que ela deve estar coerentemente ajustada ao
sistema.
Deve o intérprete ter em mente que os conceitos jurídicos não são, sempre,
suficientes para o estabelecimento da vontade da norma, devendo buscar, em outras
ciências, o auxílio indispensável, por exemplo, à conceituação do que seja moléstia,
saúde, doença mental, perturbação psíquica etc. Elementos extra-jurídicos,
sociológicos, psiquiátricos, antropológicos, colaboram com o alcance do objetivo
visado.
A pena para o crime de calúnia é de detenção de seis meses a dois anos e multa.
Se a calúnia for feita na presença de várias pessoas, a pena será de, no mínimo, oito
Concluindo que o mínimo é três pessoas, não terá nem ampliado, nem
restringido o significado da expressão várias.
pena será aumentada de quarta parte. O § 1º do art. 150, por sua vez, faz aumentar a
pena do crime de violação de domicílio, se ele for cometido “por duas ou mais pessoas”.
Então pode-se verificar que o Código Penal quando quer referir-se à quantidade
mínima de duas pessoas, expressamente refere-se ao número dois, utilizando-se da
fórmula “duas ou mais pessoas”, para se referir ao mínimo de pessoas que exige.
Se o mínimo não é duas pessoas, por que não seriam quatro pessoas?
Diz o art. 28, I, do Código Penal, que “a emoção ou a paixão” não excluem a
responsabilidade penal. Se alguém cometer um fato definido como crime sob o domínio
do estado de emoção ou da paixão, não estará, por isso, excluída sua responsabilidade
penal. Em outras palavras, a emoção e a paixão não retiram do homem sua capacidade
de responder por seus atos. Não será ele eximido da pena criminal pela simples razão
de ter agido sob domínio de emoção ou de paixão.
Se a letra da lei não restringiu, é de se perguntar, fê-lo porque era essa sua
vontade? A vontade do Código Penal é dizer que nenhuma emoção ou nenhuma
paixão exclui a capacidade penal? Será essa a vontade da lei?
É claro que não. O Código, repita-se, outra vez, é um sistema. Suas normas não
estão em conflito, mas convivem e amoldam-se com harmonia.
Esses estados que agridem a alma do homem, enquanto não tenham afetado a
psique humana de modo mais profundo, efetivamente não têm o condão de afetar a
capacidade de o homem entender as coisas, ou de governar-se.
Para incidir sobre casos como esses existe a norma do art. 26 do Código Penal, a
qual informa ser incapaz, do ponto de vista penal, aquele indivíduo portador de doença
mental que, em virtude desta, ao cometer um fato definido como crime, não tem
nenhuma capacidade de entender que seu comportamento é proibido, ou, quando
entende, não tem nenhuma capacidade de se controlar, de se governar.
O inverso também ocorre. A letra da lei, em certas situações, diz menos que é
sua vontade. O significado denotativo das palavras utilizadas não corresponde, por ser
menos amplo, ao que a norma pretende.
São raros os casos em que se pode fazer, com normas penais incriminadoras,
uma interpretação extensiva. Outro exemplo clássico de HUNGRIA7, aliás, não diz
respeito, propriamente, a uma norma penal incriminadora, mas ao nome jurídico de
um crime: a bigamia. O grande penalista pátrio mostra que, quando a lei faz referência
ao crime de bigamia, não deseja ela proibir apenas o segundo casamento, ou dois
casamentos, mas o terceiro, quarto, mais de um casamento.
Deseja a lei, portanto, definir como crime não apenas a bigamia, mas também a
poligamia. Então, o sentido da expressão bigamia deve ser interpretado extensivamente,
6.3.4 Conclusão
6.4 ANALOGIA
direito procure tratar de todas as hipóteses em que não se deve punir, por mais, enfim,
que o homem procure alcançar, com o Direito, todas as situações passíveis de proibição
penal, ou de permissão excepcional, sempre haverá lacunas, omissões.
Quando tiver o julgador de decidir um caso e não houver lei, deverá julgá-lo, em
primeiro lugar, de acordo com a analogia, depois com os costumes e, finalmente, com
os princípios gerais de direito.
E analogia, o que é?
Usar analogia é, em palavras bem simples, diante de um caso para o qual não
existe lei, aplicar a lei que se aplica a um caso bastante semelhante, bem parecido.
A procuração outorgada a João pode ser, por ele, substabelecida a Pedro, para
que este o substitua, exercendo o mandato conferido pelo outorgante. Esta
transferência de poderes chama-se substabelecimento. A lei civil é omissa no que diz
A resposta é, com todas as letras, garrafais: NÃO. O uso da analogia no que diz
respeito às normas penais incriminadoras é terminantemente proibido, pelo princípio
da legalidade: nullum crimen, nulla poena, sine lege. Só a lei pode definir crimes e
cominar penas.
Se não há lei considerando o fato um crime, o juiz está impedido de, usando a
analogia, aplicar uma pena à pessoa que o praticou.
O art. 155 do Código Penal define como crime o comportamento de uma pessoa
consistente em “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. Este é o delito
denominado furto.
Apresentado tal fato ao juiz, para julgamento, este, inicialmente, verificará que
Cláudio não subtraiu o veículo para si, nem para terceira pessoa. Logo, tal fato não está
proibido pela norma do art. 155 do Código Penal.
O juiz, verificando que não existe norma proibindo Cláudio de realizar tal
subtração, poderá, por analogia, aplicar a norma do art. 155, que se aplica a fatos bem
parecidos, bem semelhantes?
O Juiz, não.
O Código Penal (nos arts. 124 a 127) proíbe a realização do aborto – interrupção
da gravidez, com a morte do produto da concepção –, cominando-lhe severa sanção
penal. O art. 128, II, do Código Penal, todavia, contém uma norma penal permissiva,
que diz:
Isto significa que, se Maria, estuprada, ficar grávida, poderá consentir em que o
médico realize intervenção cirúrgica com o fim de interromper sua gravidez, e matar o
produto daquela concepção. É permitido esse aborto. Não ofende o Direito. É justo.
Foi constrangida a sexo oral, sexo anal, enfim, a uma série de contatos físicos,
sem, contudo, ter havido conjunção carnal, a penetração do pênis na vagina.
Apesar da ausência da conjunção carnal, Ana, dias depois, verificou estar grávida.
Como não tivera qualquer contato sexual com outro homem, é óbvio que, por uma
Interpretação da Lei Penal - 21
Poderá o médico realizar o aborto em Ana? A norma do art. 128, II, não o ampara,
pois ali só é justificado o aborto, quando a gravidez resulta do crime do art. 213 do
Código Penal, de estupro, e não do delito definido no art. 214, de atentado violento ao
pudor.
Esta é a analogia in bonam partem, aquela que beneficia o acusado, que deve ser
aplicada sempre, no Direito Penal.
Nessa situação, a vida do feto não estaria sob a proteção do Direito Penal, que
protege, sim, o direito de a gestante não procriar o fruto indesejado da violência. Por
questão de coerência, não poderia a lei obrigar uma mulher a ter um filho, de uma
gravidez que se sustenta num ato que a mesma lei considera não só proibido, mas
22 – Direito Penal – Ney Moura Teles
Melhor é pensar que o Direito não pode obrigar a mulher a continuar uma
gravidez que tenha resultado de um fato que o próprio direito considera crime. Dessa
forma, não se pode exigir que a gravidez seja causada exclusivamente por ação violenta,
mas qualquer outra ação proibida pela norma penal. Analogicamente, também deve ser
permitido o aborto, quando resultar a gravidez não só do atentado violento ao pudor,
mas também dos crimes dos arts. 215 e 216 do Código Penal.
A lei definiu tal fato como homicídio. Quando alguém mata outra pessoa, com
vontade efetiva de alcançar esse fim, realiza um fato que se identifica, que corresponde
à definição do crime de homicídio doloso simples. A pena prevista no art. 121, Código
Penal, é de reclusão de seis a 20 anos.
Ao definir os crimes, a lei deve abranger todas as situações que deseja alcançar,
descrevendo-as do modo mais claro possível. Assim, diz que é homicídio qualificado,
entre outros, aquele cometido: (a) mediante paga ou promessa de recompensa; (b) com
emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura; (c) à traição, de emboscada ou
mediante dissimulação.
Mas, como se pode observar, existem outras situações, muito parecidas com as
mencionadas, que, igualmente, merecem a mesma resposta penal, devendo ser
qualificadas do mesmo modo.
Para obedecer ao princípio da legalidade, a lei deveria descrever cada uma das
situações que pretendesse abarcar. Se fizesse assim, só para definir o homicídio
qualificado, a lei precisaria de centenas de locuções que expressassem cada um dos
casos possíveis e, por mais que se esforçasse, não alcançaria todas, pois a imaginação
humana e o avanço tecnológico cada vez criariam novas formas graves de agressões.
Para não deixar nenhuma delas fora do alcance da norma, utiliza a lei um
recurso parecido com aquele das normas penais em branco. Nestas o preceito é deixado
incompleto, devendo ser completado por outra norma. Aqui, o preceito está completo,
mas exige uma interpretação analógica.
Com esse artifício, a lei consegue alcançar todas as condutas que deseja, sem
precisar descrever, casuisticamente, cada uma delas. Será homicídio qualificado não só
aquele cometido mediante paga ou promessa de recompensa, como também qualquer
outro homicídio cometido por outro motivo torpe. Torpe será todo e qualquer motivo
análogo à torpeza do que recebe pagamento ou recompensa para matar.
Vê-se, portanto, que a lei manda seja feita uma interpretação analógica.