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Lacan. Teoria do Sujeito. Entre o outro e o grande Outro.

Apresentação

LIVRO - "A Psicanálise depois de Freud"


AUTOR: Bleichmar & Bleichmar

1. Aspectos gerais

Jacques Lacan (1901-1981) formulou uma teoria profunda e complexa que, sob a égide do
retorno a Freud, redefiniu, sob a perspectiva do estruturalismo e da lingüística, todas as
categorias psicanalíticas conhecidas, ao mesmo tempo que criou muitas outras.

Discutido e ao mesmo tempo admirado, para alguns o maior depois de Freud, ou até mesmo
de seu tamanho; desviacionista, fator de retrocesso da psicanálise, para outros, é necessário que
se passe mais tempo para que esta figura, tão controvertida, adquira seu exato lugar na história
da evolução da psicanálise.

Lacan é um dos grandes pós-freudianos. Procedeu a uma reformulação das próprias bases da
teoria, da metapsicologia e da clínica. A outra figura equiparável a ele, em grandeza, certamente
é Melanie Klein.

Em princípio, a modificação conceptual proposta por Jacques Lacan deve ser entendida no
contexto criado pela influência estruturalista na França, principalmente com a lingüística de
Saussure e com a antropologia de Lévi-Strauss.

Obra erudita, difícil de compreender, obscura em suas formulações, com linguagem alusiva,
cheia de jogos de palavras, gongorismo estilístico, pedantismo intelectual, desprezo a toda
formulação próxima da sua, exceto algumas exceções momentâneas; é tudo isto ao mesmo
tempo e em graus diferentes, segundo o texto que considerarmos. O leitor se encontra diante de
um verdadeiro desafio para compreender e assimilar os enfoques lacanianos.

Nas páginas que se seguem, não procuraremos dar uma visão completa das idéias de Lacan,
mas descrever os vetores principais em que sua teoria se desenvolve. Pretendemos fazer uma
ordenação conceptual que ilustre, panoramicamente, aquilo que, em nossa opinião, Lacan
fornece.

Comecemos por destacar que estamos em presença de um discurso, para usar uma palavra
grata a Lacan, resultante de uma interação entre dois enfoques diferentes: o filosófico e o
psicanalítico. Neste sentido, Lacan é completamente original. Devemos recordar que, na França,
diferentemente do resto do mundo, é comum que os psicanalistas também tenham formação
filosófica e médica. Lacan escreve em termos psicanalíticos, filosóficos, antropológicos e
lingüísticos; sua reflexão sobre o sujeito, quiçá uma das temáticas principais, orienta-se em todas
estas direções. É oportuno recordar que Freud contribuiu em problemas vinculados à cultura, de
uma forma um tanto colateral. Apesar disso, esses estudos tiveram grandes implicações.

Mesmo que a discussão de problemas filosóficos e antropológicos interesse a um grande


número de psicanalistas, não constituem temas que tenham preocupado, centralmente, a
totalidade do movimento psicanalítico. O psicanalista de formação tradicional, que em geral
provém da medicina e da psiquiatria, tem, portanto, uma dificuldade inicial para se confrontar
com a obra de Lacan. O tipo de linguagem que emprega o surpreende, propõe-lhe obstáculos e
até pode lhe causar desagrado.

Pelo contrário, muitos dos seguidores de Lacan são filósofos ou provêm das ciências
humanísticas, não médicas, motivo pelo qual a linguagem lacaniana lhes é mais acessível.

Freud usou, para suas teorias, modelos biológicos como o do neurônio e o da evolução de
Darwin. Lacan, por seu turno, valeu-se da lingüística de Saussure, da antropologia de Lévi-
Strauss e da dialética de Hegel (relação com o semelhante, dialética do desejo e do olhar).

Todavia, a lingüística, em Lacan, é muito mais do que um modelo aplicado à resolução de


certos problemas ou à exemplificação de uma idéia. Está incorporada de maneira constitutiva à
teoria lacaniana. O inconsciente se estrutura como linguagem e existe porque há linguagem ou
convenção significante, como Lacan gosta de chamá-la, em um sentido muito amplo. O desejo
do ser humano desliza, incessantemente, de um objeto para outro, seguindo o caminho que a
linguagem lhe indica, com sua organização de deslocamento sintagmático ou metonímico. A
reformulação que Lacan obtém, ao introduzir a lingüística na psicanálise como elemento
fundamental, é muito radical; a linguagem determina o sentido, engendrando as estruturas da
mente.

Toda a metapsicologia se modifica, assim como a clínica. Os termos utilizados por Lacan:
pulsão, desejo, libido, pulsão de morte, para citar somente alguns, adquirem outro significado no
conjunto de sua teoria. Isto nos Faz pensar (problema que examinaremos com mais vagar na
parte de comentários) que se trata de um desenvolvimento psicanalítico original e não de um
retorno a Freud, pelo menos não à estrutura da teoria psicanalítica tal como Freud a pensava.
Concordamos que se sustenta no espírito freudiano, mas não nas concepções clássicas da
psicanálise. Não pensamos que a teoria de Lacan, nem a de Melanie Klein, possam ser
consideradas como simples desenvolvimentos do legado de Freud.

A discussão das hipóteses de Lacan, como as dos demais autores estudados neste livro,
interessa-nos no plano das idéias e das concepções teóricas. Os problemas do movimento,
políticos ou de ambições pessoais, não serão levados em consideração.

2. Definição de alguns termos lingüísticos

Como a lingüística na obra de Lacan tem o papel decisivo que mencionamos, antes de entrar
no assunto, impõe-se uma breve revisão dos conceitos lingüísticos fundamentais. Deste modo
será mais fácil, depois, acompanhar os desenvolvimentos lacanianos. Começaremos,
necessariamente, por uma menção de Saussure.

No momento em que a figura de Saussure emerge, na lingüística européia, as correntes em


voga realizavam estudos de tipo comparativo e histórico. A língua era comparada a um
organismo vivo, cujas origens e evolução deviam ser elucidadas. Este era o tipo de tarefa que os
gramáticos comparativistas e os neo-gramáticos realizavam. Apesar de ter feito parte do
movimento neo-gramático, Saussure decidiu separar-se desse grupo, propondo que se
suspendesse toda investigação lingüÍstica até que fossem revisa= das as premissas gerais desta
ciência. A isso dedicou os cursos que ministrou em Genebra, entre 1906 e 1911.
Assim surgiu uma nova corrente na lingüística, claramente estruturalista; esta é uma
perspectiva teórica que, segundo veremos mais adiante, também abriu novos rumos em outras
disciplinas, como é o caso da antropologia.

A primeira pergunta a que Saussure procurou responder foi a relativa ao objeto de estudo da
lingüística, que ficou definido como "o conjunto de manifestações da linguagem humana, sem
nenhuma restrição; isto implica todas as línguas, todos os períodos da história, todas as formas
de expressão" (Fuchs e Le Goffic, 1975, p. 15). Portanto, o objeto de estudo do lingüista é a
língua em sua estrutura mais geral.

A perspectiva saussuriana é eminentemente dualista. A linguagem é, ao mesmo tempo, um


fato individual e social; é um sistema estabelecido e em evolução, é uma associação de sons e
idéias.

A primeira das oposições que acabamos de mencionar, correspondem, respectivamente, os


conceitos de fala e língua. A fala é um fenômeno individual. A língua o é, em nível social. Fuchs
e Le Goffic pensam que a oposição entre língua e fala pode ser interpretada pelo menos em três
sentidos:

- como a correspondente aos códigos universais, em contraposição aos códigos particulares;


- como oposição entre o aspecto virtual da linguagem (conjunto de elementos e suas possíveis
combinações) e sua atualização (combinações que efetivamente têm lugar);
- como a resultante do contraste entre o código universal, dentro de uma comunidade
lingüística, e o ato livre de utilização deste código pelos sujeitos.

Se, agora, considerarmos a relação da linguagem com o eixo temporal, podemos ver que
surge outra dualidade: sincronia versus diacronia. A língua é, em um sentido sincrônico, um
sistema de relações entre signos lingüísticos. Estes permanecem unidos através de certas leis de
associação e cada um ocupa um lugar na estrutura, que o define e o distingue, simultaneamente,
dos demais signos. Porém, Saussure adverte que este sistema não permanece estático. O enfoque
diacrônico se interessa pelas mudanças que a estrutura sofre com o transcorrer do tempo.

No último parágrafo, introduzimos um conceito ao qual é necessário dedicar algumas linhas:


o signo lingüístico. Saussure propõe que a língua seja composta de unidades discretas,
descontínuas, que estabelecem uma combinação. As unidades também se definem a partir de
uma dualidade: som/idéia. Em seu Cours de Línguístique Générale, diz: "O papel característico
da língua, diante do pensamento, não é o de criar um meio fônico material para a expressão das
idéias, mas o de servir de intermediário entre o pensamento e o som, em condições tais que sua
união leve, necessariamente, a delineamentos recíprocos de unidades" (Saussure, 1915 p. 192).
A unidade fundamental da linguagem é o signo, que é composto de uma imagem acústica ou
significante, e um significado ou conceito. Notemos, no entanto, que o significante é incorpóreo.
Embora seja suscetível de se tornar sensível, não é requerida sua presença física para que entre
na categoria de significante. O que o caracteriza é a diferença que há entre sua imagem acústica
(que pode potencialmente se tornar sensível) e todas as demais imagens acústicas do sistema.

O significado é aquilo a que o significante se refere. Ducrot e Todorov (1972, p. 122)


explicam que o significado é o que está ausente na parte sensível do signo.
Entre significado e significante existe um equilíbrio impossível de romper: um não existe
sem o outro. O significante não existe sem o significado, é apenas um objeto. O significado, por
sua vez, sem o auxílio do significante, é impensável, indizível é o inexistente.

A aliança entre significado e significante, como acabamos de ver, é indissolúvel. Mas é


arbitrária. Não há nada em um que remeta, de maneira específica, ao outro. Prova disso é o fatõ
de que significados iguais se associam em línguas diferentes, com diferentes significantes
(exemplo: mãe, mother etc.). Portanto, a única forma de explicar um signo é em relação com os
demais signos do sistema e não com a relação recíproca de significante-significado. Esta idéia
foi formulada por Saussure (1915, pp. 130-133) com sua teoria da arbitrariedade do signo
lingüístico.

Saussure outorga ao signo lingüístico outra característica especial: seu valor. Assim como
uma moeda, cada signo vale em relação aos demais signos da estrutura (ibid. pp. 192-202). Tem,
com eles, uma relação fixa e, além disso, é intercambiável. O signo cumpre, assim, duas
premissas básicas: a) como designa algo que Ihe é alheio, tem poder de mudança e b) seu poder
significativo depende das relações estabelecidas com os outros elementos do sistema.

Saussure destacou o fato de que há dois tipos de ordenamentos dos signos: a concatenação e
a substituição de um signo por outro. A partir destes conceitos, Jakobson (1963) distinguiu,
dentro da linguagem, os termos relacionados, por semelhança, com os associados por
contigüidade. Um exemplo dos primeiros seria "fogo" e "paixão"; em troca, um conceito
contíguo a fogo poderia ser "calor". A substituição de um significante por outro, na base de uma
relação de similitude, constitui a metáfora. Se, em compensação, um significante for substituído
por outro que tenha, com o primeiro. uma relação de contigüidade, estar-se-á efetuando uma
metonímia.

O processo metafórico é criador de sentido. Se dissermos, referindo-nos a um homem:


"atirou-se sobre seu inimigo como um lobo", estamos ampliando o sentido da frase, criando,
assim, um novo significado para o conceito de "homem", que o associa, neste exemplo, à
ferocidade e à brutalidade.

Na metonímia, como já dissemos, um significante substitui outro, associado por


contigüidade. Este seria o exemplo da substituição do termo "psicanálise" pela palavra "divã".
Neste caso, não há criação de sentido. No processo, nem um nem outro significante sofre
modificações no que se refere à sua significação. Se, na frase, "aproximou-se do fogo",
substituirmos o último termo por "calor", não mudamos o sentido geral do que quisemos dizer.

A obra de Lacan hierarquizou os conceitos lingüísticos que acabamos de expor, ao se servir


deles para a elaboração e formalização de sua teoria. Sobre os processos metafóricos e
metonímicos, Lacan constrói sua tese de que o inconsciente se estrutura como linguagem.
Também o lapsus, os atos falhos, os sonhos e os sintomas, em suma, todas as formações do
inconsciente, surgem como resultado das substituições metafóricas ou metonímicas de um ou
mais significantes por outros, vinculados aos originais por diferentes tipos de relações.

Esta tese fundamental leva Lacan a prestar especial atenção à organização da linguagem;
dela extrai numerosos conceitos que, depois, aplicará ao conhecimento do objeto psicanalítico
por excelência: o inconsciente.
3. Narcisismo. Papel do outro(a) na constituição do sujeito

No Congresso Psicanalítico Internacional de 1936, Lacan abriu uma nova perspectiva, com o
trabalho que depois se converteria em um clássico e que, em 1949, assumiu sua versão
definitiva: posteriormente, foi incluído em seus Ecrits de 1966. Referimo-nos, evidentemente, a
"Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je telle qu'elle nous est revélée dans
l'expérience psychanalytique".

Lacan parte de um fato observado na psicologia comparada: o bebê, ao redor dos seis meses,
reage jubilosamente diante da percepção de sua própria imagem refletida no espelho. Esta
reação contrasta com a indiferença que outros mamíferos demonstram ante seu reflexo
especular.

A que se deve esta resposta? Que conseqüências tem no desenvolvimento psíquico do ser
humano? Em torno destas perguntas, o autor desenvolve uma teoria sobre o narcisismo e a
identificação primordial.

Em nossa opinião, este tema constitui uma das contribuições mais destacadas da teoria
lacaniana, pois encara o estudo do fenômeno narcisista de uma perspectiva original. Em sua
formulação se conjugam, de maneira ajustada, fatos de observação clínica, conceptualizações de
nível teórico e um modo muito profundo de entender as relações do homem, não somente com a
mãe, mas também com o contexto cultural em que vive.

Lacan pensa que o ser humano tem uma representação fantasmática do corpo, na qual este
aparece fragmentado. A imago de seu esquema corporal fragmentado continua a se expressar
durante a vida adulta nos sonhos, delírios e processos alucinatórios. Concebe seu corpo como
quebrado ou sujeito a se partir em pedaços. Sinal de imaturidade? De prematuridade? Resultado
das vivências relacionadas à incoordenação motora, própria dos primeiros meses de vida? Imago
arcaica compartilhada por todos os homens, em todas as culturas? Mito? Lacan recorre a todas
estas explicações, em diferentes momentos, para explicar um fato de inquestionável verificação
clínica.

A imagem de seu próprio corpo, refletida no espelho, surpreende o lactente, pois se vê


esculpido em uma gestalt que nada mais é do que uma imagem antecipatória da coordenação e
integridade que não possui naquele momento. "O fato de que sua imagem especular seja
assumida, jubilosamente, pelo ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da
lactância, em que está o homenzinho, nesse estágio infans, parecer-nos-á, portanto, que
manifesta, em sua situação exemplar, a matriz simbólica na qual o Eu(je) se precipita, em uma
forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a
linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito" (1949, p. 87). "É que a forma total
do corpo, graças à qual o sujeito se adianta, em um espelhismo, à maturação de seu poder, não
lhe é dada senão como Gestalt, isto é, em uma exterioridade onde, sem dúvida, esta forma é
mais constituinte do que constituída, mas onde, principalmente, tudo lhe aparece em um relevo
de estatura que a coagula e sob uma simetria que a inverte, em oposição à turbulência de
movimentos com que se experimenta a si mesmo, animando-a" (Ibid., pp. 87-88) (1).

Nesta identificação com uma imago que não é mais do que a promessa daquilo que virá a
ser, há uma falácia: o sujeito se identifica com algo que não é. Na verdade, acredita ser o que o
espelho ou, digamo-lo logo, o olhar da mãe lhe reflete. Identifica-se com um fantasma; usando o
termo lacaniano, com um imaginário. Desde muito cedo, o homem fica preso a uma ilusão, da
qual procurará se aproximar pelo resto de sua vida. Ser um herói, ser Superman ou o Cavaleiro
Solitário, ser um gênio, não são mais do que versões do processo imaginário. Portanto, vemos
que o estágio do espelho não é apenas um momento do desenvolvimento do ser humano. É uma
estrutura, um modelo de vínculo que operará durante toda a vida. No seio da teoria lacaniana, é
conceptualizado como um dos três registros que definem o sujeito: o registro imaginário.

"Porém, o ponto importante é que esta forma situa a instância do eu, ainda antes de sua
determinação social, em uma linha de ficção, irredutível, para sempre, pelo próprio indivíduo;
ou então, que só assintoticamente tocará o devir do sujeito, seja qual for o êxito das sínteses
dialéticas por meio das quais tem de resolver, enquanto eu (je), sua discordância a respeito de
sua própria realidade" (ibid., p. 87).

Somente pelo fato de viver com outros homens, os seres humanos ficam presos,
irreversivelmente, em um jogo de identificações que os impelem a repetir aquela relação com a
imago antecipatória. Quando uma mulher diz a seu filho: "és a criança mais linda do mundo", o
está introduzindo nesta dialética, da qual a criança, futuro adulto, jamais poderá escapar. A
introdução do registro simbólico, através da problemática edípica, atenuará ou modificará estas
imagos especulares, mas nunca conseguirá acabar com elas.

O Eu assim constituído é, para a teoria lacaniana, o ego ideal, diferente do ideal do ego. O
ego ideal é uma imago antecipatória prévia, o que não somos mas queremos ser. Imagem mítica,
narcisista, cujo alcance persegue o homem incessantemente. A estátua, o uniforme, o herói são
significantes com que o ser humano substitui aquela ilusória assimetria primitiva. O ideal do
ego, pelo contrário, surge da inclusão do sujeito no registro simbólico. Por ser impossível se
tornar esse personagem lendário, poderoso, perfeito, o indivíduo aceita fazer parte de uma
estrutura, da qual é perpetuador. Seu papel é transmitir a lei. E apenas um elo da cadeia: o
homem entregará a seus_filhos o nome (e as normas) que, por seu turno, recebeu de seu pai, que
as recebeu de seu próprio genitor, e assim sucessivamente.

Portanto, o ingresso na conflitiva edípica constitui o grande desafio às ilusões narcisistas


forjadas no estágio do espelho. Mas estas marcam, de maneira definitiva, o que sucederá no
Édipo. Assim, o ego ideal e o ideal do ego estão em permanente luta e interação.

Para Lacan, o complexo de Édipo se desenvolve em três momentos, dos quais o estágio do
espelho constitui o primeiro. O devir psíquico transcorre desde a identificação narcisista, na
ordem imaginária, até a identificação simbólica com a Lei do pai, ao concluir o Édipo. Entre
estes dois pontos, situa-se o momento em que a relação diádica com a mãe marca a criança,
definindo sua identificação com o outro, ou melhor, com o desejo do outro. No estágio do
espelho, a criança se identifica com uma imago antecipatória de si mesma. Em um segundo
momento, fá-lo com o desejo da mãe. Finalmente, ao assumir a castração e compreender que
nem seu pai nem ela mesma são o falo, que somente podem transmiti-lo de geração em geração,
ingressará na ordem simbólica, aceitará a lei. Este último passo constituiria o que,
tradicionalmente é denominado de "dissolução do complexo de Édipo", embora, na realidade, os
três estilos de identificação coexistam, misturando-se durante toda a vida.

O tipo principal de identificação, com o qual funciona um sujeito, tem grande importância
psicopatológica. Lacan propôs que tanto as psicoses como as perversões se assentam mais em
um estilo identificatório da ordem do imaginário, do que da ordem do simbólico. O não aceder à
ordem do simbólico, à lei, produzirá no psicótico, segundo Lacan, o uso peculiar da linguagem
que o caracteriza. O psicótico tem um vínculo com sua mãe no qual não há espaço para um
terceiro, não há lugar para a triangulação edípica. A mãe ilude o filho com a crença de que ele é
seu falo, o filho vive a ilusão de sê-lo. A ausência do pai (não nos referimos aqui à ausência real
do pai, mas à sua ausência no discurso da mãe) obstaculiza o ingresso do sujeito na ordem do
simbólico. Mãe e filho compartilham uma ficção e, na verdade, esta ficção é a psicose.

A agressividade, fenômeno que sempre foi polêmico em psicanálise, produz-se quando é


questionada a imago especular que se construiu.

Na conferência intitulada "L'agressivité en psychoanalyse" (1948), Lacan enuncia várias


teses que, em conjunto, procuram demonstrar que a agressividade como vivência essencialmente
subjetiva, surge do encontro entre a identificação narcisista, da qual o indivíduo é portador, e as
fraturas, clivagens, rupturas, às quais esta imago está submetida. Esclarece que este efeito da
ação do outro sobre o ego especular somente pode ser verificado porque, antes da identificação
antecipatória, o sujeito tem uma imago fantasmática de si mesmo correspondente à do corpo
fragmentado.

No começo do trabalho mencionado, em sua tese II, explica: "A agressividade na


experiência, nos é dada com intenção de agressão e como imagem de deslocamento corporal, e é
deste modo que se demonstra eficiente" (p. 96). Basta recordar os jogos e os desenhos das
crianças, nos quais arrancar a cabeça, abrir o ventre, estripar a boneca constituem eventos
completamente naturais. Acrescenta: "Deve-se folhear um álbum que reproduza o conjunto e os
detalhes da obra de Hyeronimus Bosch, para reconhecer neles o atlas de todas estas imagens
agressivas que atormentam os homens..."

"Voltamos a encontrar, constantemente, estas fantasmagorias nos sonhos, especialmente no


momento em que a análise parece ir se refletir no fundo das fixações mais arcaicas... São todos
dados primários de uma gestalt própria da agressão no homem, ligada ao caráter simbólico..."
(ibid., p. 98). Tomando como base estas evidências primitivas e a função integradora que o
estágio do espelho realiza, Lacan postula: "A agressividade é a tendência correlacinada, à
maneira de identificação, que chamamos de narcisista, e que determina a estrutura formal do ego
do homem e do registro de entidades características de seu mundo" (ibid., p. 102).

Com o imaginário, que instaura o estágio do espelho, começa, em Lacan, a reflexão sobre a
intersubjetividade humana. Relação entre o sujeito e o semelhante, entre a criança e a mãe, do
homem com o outro. Captação do desejo humano no desejo do outro, através do olhar. Lacan
retoma a reflexão hegeliana da Fenomenologia do Espírito, especialmente a "Dialética do
Senhor e do Escravo". É na relação interdependente, mútua, de imprescindível necessidade entre
os dois membros do diálogo, que se constitui a identidade. É-se senhor porque existe o escravo,
e vice-versa. Dialética da intersubjetividade em uma organização dos lugares, através da
estrutura. O olhar do outro produz em mim minha identidade, por reflexo. Através dele, sei
quem sou e, nesse jogo narcisista, me constituo a partir de fora.

O olhar deve ser entendido como uma metáfora geral: é o que pensam de mim, o desejo do
semelhante, o cartel e o espetáculo de propaganda, o posto na família, no trabalho e na
sociedade. Identificação no outro e através do outro, este é meu eu. Lacan diz, em uma fórmula:
o lugar do moi é i(a), identificação com o desejo de a, autre (outro). Torna-se evidente que então
também se inicia a temática da alienação.

Com a ajuda samaritana, a vocação de curar, a "alma bela" e a chamada "lei do coração",
mantêm-se as imagos narcisistas. Tu és meu discípulo, portanto sou teu mestre. Uma coisa leva à
outra, circularmente. Nada irrita mais do que a intenção do outro de sair do jogo, pois tropeça no
que sou. Se o paciente não admite sê-lo, desgosto narcisista no analista. Se o analista questiona
uma certeza do paciente, desperta nele outra tensão agressiva.

O imaginário interage com a ordem do simbólico do tesouro do significante.

Lacan, com sua teoria do imaginário, produz uma reviravolta muito interessante no problema
da agressividade humana. Propõe que todo questionamento de nossas fascinações especulares
causa uma visão paranóica do mundo. Basta dizer a alguém que não tem razão, que não é quem
acredita ser, mostrar-lhe um ponto onde se limita a asseveração de si, para que surja a
agressividade. Lacan considera a pulsão de morte como expressão do narcisismo.
Posteriormente, fa-la-á interagir, também, com o registro do simbólico, dizendo que o que
insiste, o que se repete, é a cadeia do significante. Ao abandonar a biologia, como fator
explicativo para a agressividade, resta apenas o efeito da estrutura narcisista, tornando tudo mais
simples e lógico. Por outro lado, para que a fratura seja possível, deve-se admitir que, antes da
identificação com a gestalt antecipada, o indivíduo devia ter uma imago ou representação
deslocada, fragmentada de si mesmo. A citação na qual se refere à obra de Hyeronimus Bosch,
ou aos desenhos e jogos infantis, indica-nos que Lacan acredita que estas imagens fantasmáticas
são originárias. Fazem parte de uma herança mítica, simbólica, que o homem recebe de seus
antepassados de maneira ineludível. Se uma pessoa sentir como agressiva a afirmativa: "creio
que isto te será muito difícil" é, diria Lacan, porque esta afirmativa está questionando a imago
onipotente, poderosa, íntegra, com a qual se identificara no estágio do espelho. Mas,
simultaneamente, se o questionamento se tornar possível, é porque, em alguma parte de sua
mente, o indivíduo percebe a possibilidade de ser fragmentado, criticado ou desintegrado. Esta
representação a priori faz parte do acervo que herdou, somente pelo fato de existir como ser
humano.

4. O inconsciente estruturado como linguagem Primazia do significante e do grande Outro


(A)

Lacan utiliza os elementos da lingüística em diversos planos e níveis. Por vezes, faz deles
um uso antropológico e, em outras, sua reflexão sobre a linguagem tem aplicações
psicanalíticas. Torna-se claro que seu pensamento não se move de maneira homogênea, nem
sempre no mesmo plano, mas que os diversos elementos interagem de maneira variada. No
entanto, com finalidades explicativas, é útil procurarmos discriminar estes diferentes níveis.

Em uma reflexão basicamente antropológica, Lacan destaca que o homem está inserido em
um universo de linguagem. De fato, o ser humano é, graças à sua inclusão em um sistema de
significantes, e é esta diferença essencial que distingue o homo sapiens das outras espécies do
mundo animal. As abelhas, por exemplo, comunicam-se entre si, podem transmitir umas às
outras a localização das flores, necessária para a fabricação do mel. Mas estes insetos estão
completamente incapacitados de criar, mediante seus meios de expressão, novos sentidos.
Devem se limitar a "dizer-se" aquilo para o qual estão etologicamente programados. O homem,
em compensação, pode utilizar seu meio de expressão para criar novos sentidos. Isto demonstra
que a linguagem é muito mais do que um meio fixo de comunicação. Seu uso é que faz do
homem um ser especial.

Através de que mecanismo pode a linguagem permitir esta criação? Sua própria estrutura é
ambígua. Recordemos os conceitos de sincronia e diacronia. A linguagem é combinatória nos
dois sentidos: um, horizontal, transcorre com o passar do tempo; no outro, vertical, um
significante desloca outro, que está ausente. Se dissermos "traze-me a mesa", em lugar de "traze-
me a cadeira", a substituição do significante "mesa" por "cadeira" muda o sentido. Obviamente,
há substituições que dão muito mais sentido. Voltemos à utilizada páginas atrás: a substituição
de "paixão" por "fogo" ou de "lobo" por "homem", evidentemente, é criadora de um novo
sentido. Segundo a opinião de Saussure, e também de Lacan, o que permite estes malabarismos
é a própria estrutura da linguagem, sua disposição em forma de trama, de entrecruzamento, com
linhas que se associam, em sentido vertical e horizontal. Esta trama é o que chama de "cadeia
significante", descrita como "anéis, cuja corrente se fecha no anel de outra corrente feita de
anéis" (1957 p. 481).

Portanto, o homem nasce em um universo que fala, em um universo de linguagem. O fato de


ser nomeado o introduz no sistema lingüístico e este sistema o transforma em mais um
significante da cadeia. O sujeito é, segundo Lacan, um significante, para outros sujeitos ou
outros significantes. A única forma de designar um sujeito, em particular, é através dos
significantes da linguagem; dizer "Pedro" ou enunciar "aquele homem de óculos" requer nossa
submissão ao sistema significante da linguagem. Portanto, nada mais somos do que
significantes, em um sistema de significantes. E o somos pelo próprio efeito do sistema.

Do dito até o momento, pode-se deduzir o sentido radical que possui o enunciado lacaniano:
"O sujeito é falado pelo Outro". O Outro é a lei, as normas e, em última instância, a estrutura da
linguagem. O sujeito, enquanto o é não existe mais do que no e pelo discurso do Outro. Somos
alienados pela linguagem, pois somos efeito dela. Recordemos que o sujeito também está
alienado no imaginário, segundo o descrevemos para o estágio do espelho. Dupla alienação: no
desejo do outro (o semelhante) e no discurso do Outro (a lei, a linguagem). Cada um de nós crê
ser o que, na realidade, não é (nível imaginário), ao mesmo tempo que não é mais do que um
significante, produto da estrutura que o transcende (nível simbólico).

Falamos da criação de sentido, mas não nos detivemos em analisar o mecanismo de sua
produção. Dissemos que o que permite esta criação é a própria estrutura da linguagem. Mas,
como é que isso acontece efetivamente? Lacan introduz uma metáfora: a do ponto de capitonê
("point de capiton"). Do mesmo modo que o ponto com que o tapeceiro une entre si as diferentes
partes de um estofado, o ponto de capitonê fixa a significação em uma detetminada cadeia de
significantes. O último significante da cadeia é o que dá sentido aos que o precederam. Um
exemplo servirá para esclarecer esta idéia. Pensemos o quanto é diferente dizer: "a mesa está
vazia", do que "a mesa está". O significante "vazia" fecha o sentido, de uma maneira muito
diferente do que é feito com o verbo "está". Sublinhemos, então, um efeito retroativo de cada
significante sobre os significantes que o precederam o que dá a significação, ou seja o sentido.

Mais adiante, veremos que Lacan utiliza este enfoque na formalização de sua teoria do
desejo, aplicação que tem não poucas conotações. A mais evidente é que, de fato, nosso autor
postula que o desejo humano é, do mesmo modo que o próprio sujeito, efeito da estrutura da
linguagem, cumprindo, portanto, suas regras e normas. Até o momento, descrevemos o retrato
do homem tal como Lacan o concebe: aprisionado entre dois sistemas, o imaginário e o
simbólico. Este último o determina como sujeito, nomeia-o, situa-o, distingue-o como homem.
Em poucas palavras, torna-o ser.

Como se exprimem estas considerações, aplicadas ao homem como sujeito analítico?


Partiremos de uma das mais célebres e, também, controvertidas propostas lacanianas. Aquela
que postula que o inconsciente está estruturado como linguagem. Em seu trabalho "L'instance de
la lettre dans I'inconscient ou la raison depuis Freud" (1957), Lacan diz: "Nosso título dá a
entender que, além desta palavra, é toda a estrutura da linguagem o que a experiência
psicanalítica descobre no inconsciente. Pondo em alerta, desde o princípio, o espírito, advertido
sobre o fato de que pode ser obrigado a revisar a idéia de que o inconsciente não é mais do que a
sede das pulsões" (ibid., pp. 474-475). A letra, por sua vez, é definida como "... este suporte
material que o discurso concreto toma da linguagem..." (Ibid.). O que, na verdade, nada mais é
do que o significante.

"Digamos que o sonho é semelhante àquele jogo de salão, no qual se faz com que os
espectadores adivinhem um enunciado conhecido ou sua variante somente por meio de uma cena
muda. O fato do sonho dispor da palavra nada muda a este respeito, porque, para o inconsciente,
ela nada mais é do que um elemento de colocação em cena, como os demais... Os procedimentos
sutis que, não obstante, o sonho costuma empregar para representar estas articulações lógicas, de
maneira muito menos artificial do que aquela que o jogo geralmente utiliza, são objeto, em
Freud, de um estudo especial no qual se confirma, uma vez mais, que o trabalho do sonho segue
as leis do significante" (Ibid., p. 492).

Para Lacan, o significante tem um peso maior do que o significado. De fato, propõe a
primazia do significante. No seminário sobre o conto de Edgar Allan Poe, "A carta roubada"
(Ecrits, pp. 5-55), fica evidente este ponto de vista, em contraste, digamo-lo, com o equilíbrio
interno do signo lingüístico que Saussure postulara.

No relato, Poe cria uma trama em torno do desaparecimento de uma carta, cujo conteúdo
todos desconhecem. A presença ou ausência da carta põe os protagonistas em um jogo: quem a
tiver, possuirá poder sobre quem não sabe onde ela está. Na carta há, ao que parece, uma
informação incriminatória sobre a rainha. Seu desaparecimento e substituição por um envelope
idêntico, mas com conteúdo diferente, gera a tensão e causa os diferentes movimentos
executados pelos protagonistas.

Lacan utiliza o conto de Poe para demonstrar como o significante tem primazia sobre o
significado. A carta é um envelope, cujo conteúdo é sus peitado mas não conhecido. Neste
sentido, nada mais é do que um significante. Sua posse é o que situa cada um dos personagens
em cena: quem o possui, está em situação de incriminar a rainha; quem o perde, fica em
desvantagem. O espectador pode suspeitar do conteúdo do envelope ( o significado), através de
sua circulação entre os diferentes personagens (significantes). Mediante esta metáfora, Lacan
encena a posição do sujeito, quanto ao significante. O indivíduo move-se em torno, por causa
dele.

Também fica estabelecido seu ponto de vista acerca do que, em sua opinião, tem prioridade
no interior do signo lingüístico: o significante. Em síntese, o conto de Poe ilustra duas idéias
diferentes, mas vinculadas entre si: o significante tem prioridade sobre o significado e é sua
circulação que define o lugar que cada indivíduo ocupa na estrutura. Mas qual é o valor
representativo do significante? Lacan propõe que este decreta a morte da coisa. O significante é
aquilo que a coisa não é, o que determina uma carência que lhe é intrínseca. E, na medida em
que algo lhe falta e, ao mesmo tempo, existe, em relação aos outros significantes do código; é,
porque não é outro significante. Se, como vimos acima, o sujeito nada mais é do que um
significante, para outro significante, então podemos lhe aplicar esta mesma fórmula, da qual
resulta que o sujeito também possui uma carência de ser fundamental.

A combinação peculiar que os significantes adquirem no inconsciente diz respeito também às


leis da linguagem. A análise do sonho, uma das expressões mais notáveis do inconsciente, exige
a descoberta de uma frase oculta. Os mecanismos, pelos quais se deu este ocultamento, são
proporcionados pela linguagem: referimo-nos à metáfora e à metonímia.

A importância destes conceitos, na obra de Lacan, nos obriga a Ihes dedicar umas linhas,
para que se possa compreender, em toda sua grandeza, a aplicação clínica que esta teoria nos
propõe.

A metáfora se apóia na primazia do significante, dentro do signo lingüístico.

Se, como faz Lacan, expressarmos, com um algoritmo, o signo lingüístico, poderíamos dizer
que este pode ser representado mediante S/s, onde S é o significante e s o significado. A
presença, no numerador, da fração do significante, indica sua primazia sobre o significado. Na
metáfora, a substituição operada é a de um significante por outro significante. Sua notação é a
seguinte:

Aqui, o significante 2 substitui o significante 1, mas este, junto com seu significado, passam
sob a barra de significação. Ficam como conteúdos latentes. Na metáfora, ao substituir um
significante por outro, deve-se colocar, na parte inferior da barra do algoritmo, o signo completo
substituído (significante e significado), pois não sendo assim criar-se-ia um novo signo e não
uma metáfora.

No exemplo que demos em paginas anteriores, esta substituição seria feita do seguinte
modo:

Processo metafórico

Com o signo completo correspondente a "homem", conservando-se "latente", temos a criação


do próprio sentido da metáfora.

Passemos, agora, ao processo metonímico. Como já o mencionamos, na metonímia,


permuta-se um significante por outro, que tem, com o primeiro, uma relação de contigüidade.
Dor (1985, p. 59), em seu didático livro sobre Lacan, exemplifica-a assim: substituímos o
significante psicanálise pelo significante divã. Expressando-o com o algoritmo lacaniano,
diríamos que:

processo metonímico

No processo metonímico, não e possível tirar o significante substituído do algoritmo, pois sua
presença é necessária para que se constitua a metonímia. O significante 2 somente tem seu
sentido em função da contigüidade com o significante 1. Na metonímia, toma-se necessário um
processo de pensamento capaz de criar o sentido. Na metáfora, em compensação, o sentido surge
imediatamente. Explica-se pelo fato de que neste ú'timo caso, o significante franqueou a barra de
significação, ocupando o lugar do significado.

Apoiado nestes conceitos, Lacan estudou as diversas formações do inconsciente, propondo


que o inconsciente se estrutura como linguagem. Logo veremos as implicações metapsicológicas
que estas idéias possuem.

Dois dos fenômenos oníricos descritos por Freud têm notáveis semelhanças com os processos
metafóricos e metonímicos, próprios da linguagem. São a condensação e o deslocamento.

Na condensação, que para Lacan é análoga à metáfora, um significante substitui outro


significante, que passou ao estado latente. Uma casa, no sonho, pode ser, simultaneamente, a
casa em que passamos a infância, a escola e nosso atual local de trabalho. O significante "casa",
que faz parte do conteúdo manifesto do sonho, substituiu os demais significantes, porém estes,
como revela o trabalho da interpretação, não desapareceram. Apenas ficaram sob a barra de
significação, como conteúdos ou significados latentes. A substituição é plena de sentido, pois
sua descifração revela uma associação que, até então, era desconhecida para o sujeito.

Seguindo esta linha, o processo metonímico é análogo ao fenômeno de deslocamento descrito


por Freud. Nele, os elementos significativos são substituídos por outros que, embora façam parte
da mesma idéia geral, são os aspectos menos importantes dela ou guardam uma relação de
causa-efeito ou de continente-conteúdo. Neste caso, a relação entre um significante e outro é
direta e ambos os significantes estão, de uma ou outra maneira, presentes no material manifesto
do sonho. Uma mulher sonhou que desmanchava o vestido da irmã, no dia em que o estreava. As
associações poderiam revelar um sentido de inveja da irmã e o desejo oculto de que esta fosse
lesada. Aqui, o significante "vestido" substitui, metonimicamente, o significante "irmã", que se
torna evidente, porque ambos os significantes conservam entre si uma relação de contigüidade.

Os lapsus, os atos falhos, o sintoma e o chiste podem ser interpretados desta mesma
perspectiva. No trabalho "Fonction et champ de la parole et du langage en psychoanalyse",
Lacan descreve isto com a seguintes palavras: "O inconsciente é aquela parte do discurso
concreto, enquanto transindividual, que falta à disposição do sujeito para restabelecer a
continuidade de seu discurso consciente" (1963, p. 248), donde se deduz, claramente, que o
inconsciente se revela nos vazios do discurso. E mais adiante: "O inconsciente é o capítulo de
minha história que foi deixado em branco ou ocupado por um embuste: é o capítulo censurado.
Mas a verdade pode ser de novo encontrada; freqüentemente já está escrita em outro lugar. A
saber:

- nos monumentos: este é meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose, onde o sintoma
histérico mostra a estrutura de uma linguagem sendo decifrada como uma inscrição que, uma
vez recolhida, pode, sem grandes perdas, ser destruída;
- também nos documentos de arquivo: são as recordações de minha infância, tão
impenetráveis como elas, quando não conheço sua proveniência;
-na evolução semântica: isto corresponde tanto ao estoque e às acepções do vocabulário que
me é próprio, como ao estilo de minha vida e de meu caráter;
- também na tradição e, ainda, nas lendas que, sob uma forma heróica, veiculam minha
história;
- finalmente, nos rastros que, inevitavelmente, conservam as distorções necessárias para a
conexão do capítulo adulterado com os capítulos que o cercam, e cujo sentido minha exegese
restabelecerá; (ibid., p. 249).

Este enfoque conceptual indica, de maneira decisiva, a forma de trabalho proposta por Lacan.
Se o inconsciente se revelar, através das formações que lhe são próprias, e se estas forem efeito
da estrutura da linguagem, será pelos cortes e erros do discurso que se tornarão acessíveis à
consciência. Assim, não haveria outra forma de acesso ao inconsciente, senão a escuta atenta do
discurso do paciente, à espera de que um lapsus, um chiste, um sonho, desvendem a
combinatória peculiar de associações, que subjaz a estas produções. Isto devolve à palavra o
papel essencial que teve, no início da psicanálise e, em sentido inverso, diminui a eficácia que
alguns analistas atribuem às experiências emocionais ocorridas na sessão. Lacan critica
duramente as idéias daqueles que, como Balint, Winnicott e outros, propõem que a presença e a
atitude empática do analista na sessão têm um efeito curativo. Em sua opinião, o sentido é
revelado ao sujeito através dos cortes do discurso e de atos que possuem, em última instância, o
efeito de u na palavra. Privilegia-se a palavra, no sentido de que é por meio dela que temos
acesso ao inconsciente. Suas pontuações, seus erros, seus esquecimentos, a cadeia do discurso
(seqüência de significantes que, finalmente, se tornam significados, em virtude do último
significante da cadeia), tudo isso são ferramentas com que conta o analista.

Até o momento, vimos a posição que o sujeito mantém com a linguagem e como Lacan extrai
seus postulados, a partir da hierarquia que a estrutura lingüística possui, em sua teoria. Vejamos,
agora, mais pormenorizadamente, como a linguagem aliena o sujeito. Em outras palavras,
devemos considerar o estudo do mecanismo pelo qual o sujeito se inscreve na ordem do
significante. Este é o tema da Lei e do Outro.

5. O falo. A metáfora do nome-do-pai

O que é o falo, na obra de Lacan? Começaremos por esclarecer o que não é: não é o pênis. A
referência à castração não é, em nenhum momento, uma alusão à privação do órgão genital
masculino. Constitui uma referência à função do pai, como mediador da relação entre a mãe e a
criança. Essa função paterna se interpõe na relação diádica, imaginária, especular, que é
verificada entre o bebê e a mãe. É isto a castração.

Para poder ser o terceiro e intermediar o vínculo diádico, o pai deve transmitir a Lei, fato que
se atualiza por ser o portador do nome. É o pai quem nomeia o filho e, neste ato, está
simbolizado que é o possuidor do falo, da Lei.
Ao sair da fase identificatória do estágio do espelho, a criança está alienada em um
imaginário da mãe. Anseia ser o desejo da mãe. Isto implica ser o que a mãe não possui: o falo.
Há, neste momento, uma segunda etapa identificatória: a identificação com o desejo do outro. O
dilema em que o sujeito se debate, neste momento, é o de ser ou não ser o falo, o que posterga a
temática da castração; esta será enunciada mais adequadamente, se dissermos que o que ela trata
é de ter ou não ter o falo.

Em um segundo momento do processo edípico, o pai passa a participar, momento em que


privará a mãe de seu filho-falo e a este da satisfação imaginária, proporcionada por ser o falo da
mãe. A criança se vê forçada, simultaneamente, a pôr em dúvida sua identificação fálica e a
renunciar a ser o desejo da mãe. Correlativamente, do ponto de vista da mãe, o pai a priva do
falo que se supõe seja o filho. O pai parece ser, para a criança, o objeto fálico possível.

Precisamos esclarecer que, para que esta mediação seja possível, não basta que o pai
interponha a proibição. A mãe deve se fazer eco dela, transformando-se em porta-voz do que
Lacan chama de "Lei do pai". A criança então descobre que o desejo de cada um deve se
submeter à lei do desejo do outro. Neste ponto, a segunda etapa do Édipo, passa-se da ilusão de
"ser" o falo para a de "ter" o falo, pois se supõe que o pai tem o objeto do qual a mãe depende, a
ponto de impor uma lei que lhe causa, por sua vez, uma privação.

Neste segundo momento do processo edípico, a criança ingressa na simbolização da lei que,
mais tarde, permitirá o declínio do complexo. É confrontada com a castração, que implica a
necessidade de "ter" aquilo que preenche o desejo da mãe. O pai real, ao impor sua lei,
transforma-se em pai simbólico.

Este momento é crucial para o indivíduo, pois só assumindo a castração torna-se possível
aspirar a ter o falo, ou o que é o mesmo, a transmitir a Lei. Qual é o motivo pelo qual o homem
julga que seu pai é possuidor transitório do falo e não que é o próprio falo? A resposta é dada
pelo fato de que o pai é portador de um nome, que, por sua vez, lhe foi dado por outro homem,
seu próprio pai.

Assim, chegamos a uma terceira etapa do Édipo. É comprovada pelo fato de que a criança
recebeu a significação. Ela renuncia à sua condição de "ser" para ingressar na dialética da
negociação, que lhe permitirá "ter". Entra em jogo a identificação do varão com o pai e da
menina (que assume o "não ter") com a mãe.

Na teoria lacaniana, este processo é estruturante. O ingresso no mundo do significante e,


portanto, na constituição do inconsciente e o recalcamento originário, estão sujeitos a ele. É isto
que Lacan teorizou, sob o nome de "A metáfora do nome-do-pai".

Que o falo se constitua no significante por excelência, no significante primordial, é explicado


pelo fato de que é ele que ordena e distribui os papéis do drama vital. Quem o têm? A quem
falta? Quem gostaria de sê-lo? Pai, mãe, filho. Assim como no conto de Poe, os papéis estão
definidos, em relação à posse ou carência deste significante primordial. Não há outra forma de
definir o papel que cabe mais a um do que a outros e esta relação está, por sua vez, firmada pelo
falo, indicador do lugar correspondente a cada um, na estrutura.

A aceitação da lei do pai produz uma primeira substituição metafórica: substitui-se o


significante "falo" pelo "nome-do-pai". Possuir o falo é substituído pela "posse do nome-do-
pai", pois esta posse é que identifica, na estrutura, a posição do próprio pai. Esta primeira
substituição de um significante por outro é a metáfora originária, a metáfora do nome-do-pai.
Também é o primeiro processo de simbolização e o que indica o advento, para o sujeito, da
ordem significante. A partir de então, o objeto do desejo da mãe tem um nome que, embora
nunca seja dito, será enunciado por intermédio de infinitas verbalizações. A partir deste
momento inaugural, todos os objetos de desejo que o sujeito enuncia não são mais do que
deslocamentos metonímicos do significante primordial: o falo.

No curso de sua substituição pelo nome-do-pai, o significante fálico se torna inconsciente.


Porém, o falo é um significante altamente investido, em virtude de ser o desejo da mãe. Isso faz
com que este significante, já in- consciente, atraia outros significantes, associados
metonimicamente com ele. Os sucessivos significantes, que se tornarão objeto do recalcamento,
conservam entre si uma relação semelhante à que a estrutura da linguagem lhes confere, pois é
de suas leis que provêm.

A cadeia de significantes inconscientes responde a leis que estruturam a linguagem, o


recalcamento secundário se produzindo conforme estas mesmas leis. Vemos, então, por que é a
lei do Outro que define seus conteúdos inconscientes; aquilo que será reprimido não é
totalmente alheio; depende, completamente, da estrutura da linguagem e da lei da cultura, é algo
que nos precede e cujo controle escapa às nossas possibilidades.

Esta teorização também serve para Lacan dar uma feliz resposta ao problema da memória,
em psicanálise. Propõe que a memória nada mais é do que a estrutura da linguagem, presente no
inconsciente. Isto explica a in- destrutibilidade do desejo inconsciente. * * * "Não há outro meio
de conceber a indestrutibilidade do desejo inconsciente - quando não há necessidade que, ao ver
que lhe é proibida sua sociedade, não se quebre, em caso extremo pela consunção do próprio
organismo. E em uma memória, comparável ao que se chama com este nome em nossas
modernas máquinas de pensar (fundadas sobre a realização eletrônica da composição
significante), que reside essa cadeia que insiste em se reproduzir na transferência, e que é a de
um desejo morto" (Ecrits, p. 499).

O recalcamento primário, isto é a metáfora paterna, também é induzido pela Lei que o
representa, através da proibição do incesto e da castração. É necessário aceitá-lo para ser
portador, por seu turno, da Lei.

O sujeito psicológico nasce ao ser incluído na ordem do significante e na lei do pai,


reconhecendo a castração. Mas, por este mesmo ato, seu psiquismo é clivado, uma parte dele
ser-lhe-á inteiramente desconhecida: seu inconsciente. Então aparece uma alienação inicial. Não
é sujeito até que ingresse na ordem simbólica da linguagem e, quando o faz, fica dividido,
clivado pelo efeito da própria ordem simbólica.

O que, portanto, se impõe, é a castração; aliena-nos na estrutura da linguagem que não nos
deixa resquícios para ser mais do que sujeitos alienados na demanda. O Outro, ao ditar as leis
da linguagem, que nos estruturam, e das relações de parentesco que estabelecemos, também dita
as normas a que se subordinarão nossos desejos e, conseqüentemente, nossas demandas.

Os três registros, imaginário, simbólico e real, interagem simultaneamente. São o nó


borromeu, uma figura na qual, ao desatar um dos cordões, os demais ficam soltos. Há uma
solidariedade constitutiva entre todos os registros, embora se indique a primazia do simbólico,
como primazia do significante, em seu efeito sobre o imaginário e o real. Donnet diz, em seu
trabalho "Evolución histórica del psicoanálisis" (1974) que, se Melanie Klein é o imaginário e
Hartmann o real, Lacan é o simbólico. Embora demasiado definitivo, o julgamento encerra, de
todo modo, uma verdade, o papel principal que Lacan outorgou ao simbólico.

O que é o real? Não se trata da realidade, no sentido tradicional, materialista, com a tomam
Freud e a psicologia do ego. Não temos uma percepção imediata da realidade. Os significantes a
segmentam e a criam. Quando vemos uma porta em um quarto não é só isto o percebido, o
significante "porta" decompõe o plano da parede, organizando o mundo externo e as emoções.

Lacan não dedica ao registro do real a mesma quantidade de trabalhos que aos demais. Um
dos sentidos que lhe atribui é o de um corte entre os dois registros, simbólico e imaginário.

6. O desejo humano e sua topologia


Entre o outro e o Outro

Lacan estuda a temática do desejo em vários trabalhos. Destacam-se especialmente seus


seminários sobre Les formations de I’ïnconscient e O desejo e sua interpretação (1957-58 e
1958-59); retoma o tema em "Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente
freudiano", lido, primeiramente, em setembro de 1960, em Royaumont, sob os auspícios dos
"Colóquios Filosóficos Internacionais" e, posteriormente, publicado nos Ecrits (773-807).

Estamos, novamente, diante de proposições que, ao reformular, de maneira original, os


conceitos psicanalíticos clássicos, tornam-se de difícil compreensão. Acreditamos que há várias
leituras possíveis do discurso de Lacan a respeito deste tema, pois suas idéias, algumas vezes, se
expressam de forma ambígua, não ficando claramente entendido o que pensa o autor. Disto
decorre que nossa apresentação seja muito pessoal e, logicamente, passível de causar
discordâncias.

As idéias tradicionais sofrem uma notável modificação: a estrutura da intersubjetividade


humana, na ordem imaginária (identificação narcisista), é articulada com as idéias de Lacan
sobre a linguagem e a incidência do Outro ou tesouro do significante. Há problemas a respeito
deste tema que Lacan não consegue definir ou resolver, adquirindo suas afirmativas, em alguns
momentos, um caráter demasiadamente axiomático. No entanto, tudo isto pode ser estudado com
o espírito de constituir um vento renovador, que permite repensar aspectos muito significativos
da psicanálise.

Para Lacan, o desejo humano remete a algo diferente da necessidade biológica imediata. Em
Freud, esta questão foi apresentada ao separar Instinkt (instinto animal) de Trieb (pulsão
humana). Lacan discute o desejo humano fazendo interagir o registro do imaginário com o do
simbólico: as relações entre os processos da identificação imaginária e os que pertencem ao jogo
do significante. Intitulamos este item de "Entre o outro e o Outro", para explicar,
resumidamente, sob que ótica este autor encara o desejo.

Façamos um breve resumo das categorias que iremos encontrar nesta exposição.

- O outro (a) = autre (a): o ser humano se identifica com a imagem que lhe é devolvida pelo
olhar do semelhante. É a base da identificação narcisista. Alienado no desejo alheio, a criança e
o adulto mimetizam as aspirações que vêm de fora. Também é o ego ideal da figura heróica,
construída sobre imagos antecipatórias. O que não se é, mas se deseja ser. Nossa própria imagem
refletida.

- O Outro (A) - Autre (A): a linguagem e o significante constituem um tesouro. É o lugar do


Outro. O homem fica inscrito no universo de palavras e no nome que lhe dá seu lugar, outra
alienação primordial em um discurso que procede do exterior.

- O ideal do ego, que nos diz: "Deverás ser como teu pai, como ele buscarás esposa, mas não
a dele". Surge a Lei e seus significantes ou símbolos, por exemplo, as tábuas da lei, a Santíssima
Trindade.

Os gráficos que Lacan usa em seus seminários (os do desejo, I, II e III, o do sujeito, L),
ilustram e são, ao mesmo tempo, metáforas. Não possuem rigorismo matemático ou geométrico.
Incluem vários níveis simultâneos de leitura. Lacan pensa que uma das vertentes do desejo
humano é que o sujeito procura se constituir em objeto do desejo de seu semelhante, o outro, em
primeira instância, a mãe. Desejo de (a). Desejo como (a) e que (a) nos tome como objeto de seu
desejo. Ali estaria uma das bases do amor (e se isto não ocorrer, do ódio). A criança quer ser o
desejo da mãe; como esta deseja um falo, a criança deseja ser o falo, para se constituir no objeto
do desejo da mãe. Esta estrutura é definida, em Lacan, como axiomática. O narcisismo remete a
uma topologia e a uma estrutura. É assim e acabou, não há livre arbítrio diante disto, a estrutura
se prende como uma máscara de ferro.

Recordar-se-á que já mencionamos o apoio em Hegel e na "Dialética do Senhor e do


Escravo". A intersubjetividade é definida a partir da demanda do reconhecimento. És meu
escravo e, por isso, reconheço-me como teu amo. Para ser, defino-me na relação. Sem ti, nada
valho. Verdadeira carência de ser que a estrutura detém, momentaneamente, por meio de uma
identidade que se estabelece na alternância com o outro. Sou o que o outro não é. Portanto,
minha existência e meu desejo são definidos pelo desejo e a falta do outro.

A outra vertente do desejo humano vem do grande Outro. Esta incidência é múltipla. É o
Outro quem dá, desde o início, as palavras para desejar. Quando o bebê tem uma necessidade, a
mãe a inscreve, junto com a satisfação desta necessidade, em um universo de linguagem. A
palavra que nomeia a coisa também encerra o gozo e o amor da experiência. O Outro indica o
que desejar. Sua mensagem aparece no sujeito de maneira invertida quando é expressa como
desejo próprio.

Há um duplo desejo de reconhecimento: pelo outro e pelo Outro. Porém, assim como
estrutura o sujeito, a linguagem confere ao desejo uma das características essenciais: o efeito de
deslocamento metonímico de um para outro objeto. Recordemos que, na metonímia, um
significante sempre remete, por contigüidade, a outro significante. Trinta velas, diz Lacan,
substitui o significante "trinta barcos". A linguagem transcorre neste contínuo deslocamento. O
inconsciente, ao acompanhar a estrutura da linguagem, repete este fenômeno. Isto leva a um
deslocamento interminável do objeto do desejo.

O objeto a, objeto da pulsão, a cria e é seu efeito. Neste objeto a, que Lacan vincula ao
fantasma, é onde a pulsão busca sua descarga e o êxito da satisfação. Quando o ser humano
deseja beber, o líquido satisfaz o nível pulsional, mas o desejo fica, inevitavelmente, insatisfeito.
Salta desta para outra experiência, em uma circulação metonímica incessante. O significante liga
o desejo a outro significante, mas o que pode um significante fazer senão se deslocar, sem nunca
se deter? Só dá um sentido em um corte sincrônico fugaz que, rapidamente, retoma sua marcha.

Assim, desejamos porque falamos. A linguagem é a estrutura que nos torna desejantes e, ao
mesmo tempo, o modelo do desejo. Lacan usa ambos os critérios, simultaneamente. O desejo
Fica, ao mesmo tempo, inscrito e oculto na demanda. Está antes dela. Na realidade, o que se
demanda é ser amado, como sucede na análise, tanto no paciente como no analista. O Outro
regula esta relação, assim como todas as relações. Porque há linguagem, expressa-se a demanda
de amor onde está o desejo de reconhecimento. Este, por efeito de ordem significante, nunca
pode ser preenchido. Aparece sempre de outra forma. Assim como o dicionário explica um
termo com outro e este remete, por sua vez, a um terceiro, um significante só encontra seu
sentido na cadeia de significantes.

Lacan aborda a questão do desejo, combinando o discurso psicanalítico com o lingüístico.


Embora, em um sentido, amplie a teoria, também pode produzir um efeito redutor. Discuti-lo-
emos no setor de comentários.

Lacan diferencia a necessidade, no nível biológico e etológico, do desejo, inscrito em um


nível simbólico e imaginário. Deve-se distinguir o comer ou beber, como necessidade para
sobreviver, do desejo de gozo oral que, em sentido estrito, não é satisfeito com o líquido que
acalma a sede. Requer vinho, champagne ou Coca-Cola. Gozo e prazer são categorias
estritamente humanas do plano do desejo. Na demanda, pede-se reconhecimento e amor.
Demanda do paciente de ser amado por seu analista, de ser reconhecido em seu sintoma e em
sua presença. A ferida narcisista surge diante da frustração da demanda. Aparece a agressão.
Podemos tolerar muitas coisas, mas não suportamos não sermos reconhecidos. No México se diz
"me ningunea" (ignora-me, N. do T.), para exprimir que alguém não se sente levado em
consideração, que é subestimado, não reconhecido. Ferida terrível.

Em seu seminário "Les formations de l'inconscient", Lacan utiliza o chiste (freudiano, N. do


T.), para nos introduzir na temática do desejo. Um judeu que visita um familiar, rico
personagem, diz, com humor, que o receberam bem, com um tratamento verdadeiramente
familionário. Lacan diferencia o riso provocado pelo chiste, daquele que é causado por algo
cômico. Faz a seguinte reflexão: quando rimos diante da queda de uma pessoa, nossa reação se
deve a um fenômeno de ruptura do imaginário. O indivíduo, ao cair, também tropeça em uma
imagem, a do homem e sua pompa bípede, a figura solene. Junto com o homem que cai, vem
abaixo o ego ideal. O riso, que surge da ruptura imaginária, é efeito de uma ocorrência cômica.

No chiste do familionário, criou-se um neologismo que causa riso, porque há uma referência
ao tesouro do significante (familiar, milionário). O Outro está presente, fornecendo os elementos
e como ponto de ancoragem, para que surja o sentido oculto. O chiste, eis sua diferença com o
cômico, está escondido no significante, irrompendo por seu jogo.

Lacan pensa que o sintoma neurótico ou o sonho, do mesmo modo que o chiste, é a
metonímia do desejo. Este se esconde neles mas não tanto que não seja alcançado.

Da identificação narcisista surge o desejo de ser o desejo do outro (o semelhante), ocupando


o lugar do objeto de seu desejo. Desejamos ser reconhecidos. Porém, este mesmo semelhante
nos introduz, ao exprimir em palavras nosso desejo, em um universo significante que exige
nossa subordinação às leis da linguagem (o Outro). Como resultado disso, nosso desejo não
poderá ser nomeado jamais e circulará metonimicamente, de um para outro significante. Desejo
de uma roupa nova, mais tarde de outros sapatos, depois, de uma ceia com caviar, e assim
sucessivamente. A estrutura me obriga a continuar desejando. Definitivamente, desejo desejar.
Este seria o desejo oculto na metonímia dos significantes "roupa", "sapatos", "ceia".

Depois de descrever, em grandes traços, a teorização lacaniana do desejo, vamos


acompanhar, passo a passo, a inscrição do sujeito em sua dialética.

Satisfação da necessidade e objeto da pulsão

No início da vida, diante de uma situação biológica de tensão e desprazer (por exemplo, a
fome), aparece no mundo externo 0 objeto que a satisfaz. A criança, antes de que este objeto
existisse; está em uma situação de necessidade que exige ser satisfeita, e esta se produz em um
registro basicamente orgânico.

O mundo externo propõe-lhe um objeto que ele antes não buscava. Este objeto, junto com a
sensação de satisfação, transformar-se-á em uma marca mnêmica, constituída pela experiência
da necessidade, ligada à representação do objeto que satisfaz. A marca mnêmica, com seus dois
componentes, passará a fazer parte do cenário do repertório pulsional do bebê.

Quando o estado de tensão reaparece, reativa-se esta representação. Reinveste-se a imagem


do objeto que satisfaz. Em um primeiro momento, a criança confundirá o objeto real com o
objeto representado. Assim se produz a satisfação alucinatória da pulsão. A partir de sucessivas
experiências, a imagem representada será distinguível da real, orientando as buscas de objetos
para um objeto real que permita satisfazer a necessidade. Tudo 0 que dissemos sobre a
experiência de satisfação foi proposto por Freud, e Lacan o acompanha ponto por ponto.

A relação do desejo com o processo pulsional é peculiar. O desejo é a busca de satisfação da


pulsão, através do reinvestimento do objeto primário, o que equivale a dizer que o desejo só
encontra satisfação de forma alucinatória.

Portanto, não se pode falar de satisfação do desejo, na realidade. A pulsão pode, em


oposição, encontrar ou não sua satisfação. Isto é possível graças, precisamente, ao desejo, que
mobiliza a pulsão para o objeto pulsional. Mas o desejo, como tal, não tem objeto na realidade.

O outro (a) como espelho e lugar do desejo


A formulação da demanda

Lacan chama o objeto do desejo de objeto a. Como tal é, ao mesmo tempo, um objeto
perdido e a causa e objeto do desejo.

O desejo, assim concebido, pressupõe a presença de um outro. No iní- cio da vida, as


manifestações de tensão produzidas pela necessidade não têm, para a criança, valor
comunicativo. E o outro que as considera signos e, portanto, demandas. Isto demonstra que o
bebê está submergido, desde o começo, em um universo semântico, que significa suas próprias
vivências. É o outro que introduz o bebê neste referencial simbólico, processo através do qual se
transforma no Outro (ocupando o que, para a criança, é um lugar privilegiado).
A mãe responde à necessidade manifestada pela criança com gestos e palavras, que dão à
satisfação obtida um gozo que transforma a necessidade em desejo. A partir deste momento, a
criança poderá desejar, mas sempre através de uma demanda dirigida ao Outro.

A demanda, enquanto expressão do desejo, é essencialmente uma demanda de amor dirigida


ao outro; é demanda de ser o único objeto de desejo do Outro.

Pelo modo como Lacan considera o narcisismo, surge a idéia de que o desejo é uma busca da
satisfação primária. Na obra lacaniana, estas proposições têm valor de axiomas que se
enquadram na conceptualização global do sujeito, em sua relação consigo mesmo e com o outro.
Mas, além da busca primária, nas sucessivas buscas há, por parte da criança, uma intenção de
significar o que deseja. Este ingresso na significação, mediado pela linguagem, é
necessariamente incompleto, o que torna impossível reencontrar o júbilo primário.

O desejo, enquanto desejo do desejo do outro, transforma-se no desejo de um objeto


impossível de significar; o desejo renasce constantemente, sobre a falta deixada pela Coisa.
Todos os objetos com que se procure preencher esta falta serão, apenas, objetos substitutivos. O
objeto do desejo é o objeto "eternamente faltante". Assim, o objeto a, enquanto objeto faltante é,
em si mesmo, o objeto produtor da falta. A criança pressente, embora não chegue a descobrir,
que o outro padece, em seu desejo, da mesma falta que ela sofre e, por isso, aspira a se converter
no objeto faltante (o falo).

De certa maneira, ser o único objeto do desejo do outro transforma-se, na criança, em uma
negociação da essência fundamental do desejo, que é a falta. Recusa tanto esta dimensão de falta
como a falta no outro, ao se apresentar, a si própria, como objeto desta falta. Inversamente,
reconhecer a falta no outro, como algo impossível de preencher, é o que faculta ao sujeito notar
a irreversibilidade de sua própria falta. Este é o primeiro passo para o desenvolvimento edípico.
Na dialética do Édipo, a criança deve abandonar a posição de objeto do desejo, ocupando,
portanto, uma posição na qual passa a ser sujeito do desejo de objetos substitutivos.

7. A técnica psicanalítica. A transferência


O Sujeito Suposto Saber
Palavra plena e ato simbólico

Antes de entrar no assunto, impõem-se alguns comentários gerais sobre a relação entre a
teoria psicanalítica e a técnica. Quanto mais precisa for a teoria da técnica, a prática clínica, ao
se ajustar a ela, deverá percorrer um caminho mais científico e seguro. Não pode ser
subestimada, portanto, a intenção de estabelecer as categorias da técnica, seus parâmetros e
operações, que são deduzidos a partir de concepções mais gerais, como a do inconsciente, a
transferência ou a estrutura do conflito. Os princípios da associação livre, a análise dos sonhos, a
neutralidade do analista, a análise da transferência, universalmente aceitos, servem para
encaminhar a tarefa clínica do analista, tornando-a mais eficaz. Mas, assim acontece com as
constituições dos países. Existe a letra, e também sua aplicação. Não é irrelevante que a letra
seja adequada, a melhor possível. Porém, depois virá sua aplicação e, então, o problema será
dirimido na saúde mental do analista, em sua capacidade, integridade e análise pessoal.
Qualquer constituição pode ser subvertida em sua aplicação e qualquer teoria da técnica pode ser
invocada para os piores excessos e erros.
Interessa-nos discutir e apresentar as idéias de Lacan, no plano da teoria da técnica.
Estabelecemos, oportunamente, a diferença entre teoria psicanalítica e movimento psicanalítico.
O movimento inclui muitos problemas de diferentes níveis: conflitos das pessoas, características
das instituições como fenômenos sociais e, evidentemente, questões ideológicas gerais que se
misturam com as do movimento. Também na teoria incidem alguns destes fatores.

Lacan mudou vários dos critérios técnicos clássicos da psicanálise freudiana. Isto, entre
outras coisas, foi um dos motivos manifestos de sua expulsão da Associação Psicanalítica
Internacional. Ele pensa que no discurso do paciente pode haver palavra vazia e palavra plena.
Há algo que se omite no discurso, quando o paciente recorre ao "molinete de palavras",
esperando a gratificação narcisista de seus conflitos ou envolver neles o analista. O imaginário é
mantido, ficando obstaculizado o acesso à verdade. Para tirar o paciente das fascinações
especulares, Lacan apela mais à interrupção da sessão do que à interpretação. Crê que um corte
adequado conseguirá, através do ato, um efeito simbólico, instaurando o Outro e a palavra plena.
Procura-se desalienar o sujeito de suas imagos, restaurando a verdadeira história, os
determinantes de seu ser, os enganos do sintoma. O ato acentua, rompe, causa uma saída do
imaginário; leva à palavra plena.

Podemos acompanhar o pensamento clínico e técnico de Lacan através de vários de seus


artigos: "Intervention sur le transfert" (1951), Le seminaire de Jacques Lacan. Les écrits
techniques de Freud (1975), e grandes trabalhos como "Function et champ de la parole et du
langage en psychoanalyse" (1953) e "L'instance de la lettre dans I'inconscient ou la raison depuis
Freud" (1957).

As considerações técnicas de Lacan são solidárias com a hierarquia que a linguagem técnica
lhe dá (tesouro do significante) em sua interação com o registro imaginário (identificação
narcisista).

Se a linguagem aliena o sujeito e o converte em significante dentro de uma estrutura, é a


linguagem que deve desaliená-lo. Lacan questiona as correntes pós-freudianas que seguem a
linha das relações de objeto, hierarquizando a importância do vínculo emocional com o analista.
Para ele, o esquecimento da função da palavra, entre outros fatores, levou ao estancamento da
disciplina.

Quanto à teoria da transferência, afasta-se do critério clássico em vários pontos. Em alguns


trabalhos, Lacan considera que, se o analista interpretar adequadamente mantendo o processo
analítico dentro de comparações dialéticas adequadas, não só a análise não se interrompe, como
não se instala a transferência. Em seu trabalho de 1951, diz que a transferência do paciente é a
resposta a um preconceito do analista. Se o analista surgir, de imediato, como aquele que sabe,
fica instalada a transferência. Em princípio, é a estrutura intersubjetiva que dá lugar ao seu
aparecimento.

Para Lacan, como estruturalista, o que explica a transferência é a disposição e a organização


do campo. E um ponto de vista alternativo àquele que sustenta que a transferência, desdobrada
como expressão do conflito do paciente, é que organiza o campo. Lacan acredita que Dora vê
Freud como seu pai (com todas as conseqüências que isto traz), porque Freud tinha um
preconceito acerca de sua escolha de objeto: como Dora era mulher, seu objeto de amor devia
ser o Sr. K. Do ponto de vista sustentado por outros analistas, para a compreensão da
transferência, pensa-se que Dora repetiria, inexoravelmente, o vínculo com seu pai e poderia ver
Freud como se fosse aquele, independentemente do que este interpretasse ou qual fosse a contra-
transferência do analista.

Um último conceito, que queremos introduzir nesta síntese da técnica lacaniana, é a idéia do
Sujeito Suposto Saber. Pareceria, como o nome diz, que o analista sabe tudo o que o paciente
ignora.

Revelará seu saber na interpretação; o paciente procurara este conhecimento e, ao reconhecer


este papel no analista, também procurará seu amor. O analista pode, equivocadamente, assumir
este papel e "enche" o paciente com seus conhecimentos, em lugar de deixá-lo revelar sua
verdade pela palavra.

Se se colocar no lugar imaginário ou especular, oferecer-se-á ao paciente como aquele que


conhece a verdade, mas como garantia de que se utiliza de um método, a palavra, com a qual a
verdade será posta em evidência. O analista, como o pai do complexo de Édipo, pode crer e
fazer seu paciente crer que é o falo, desconhecendo que haja uma Lei, um Outro, ao qual ambos,
paciente e analista, devem se remeter.

Voltemos ao trabalho de Lacan, "Intervention sur le transfert", em que assenta as bases para
algumas das reformulações que acabamos de comentar.

A experiência analítica se diferencia de outras doutrinas psicológicas porque se desenrola,


inteiramente, de sujeito a sujeito. Na psicanálise, há um diálogo intersubjetivo, por existir uma
escuta.

O caso Dora pode ser reexaminado, à luz destas idéias, como uma sucessão de inversões
dialéticas. "Trata-se de uma escansão das estruturas na qual a verdade se transmuta para o sujeito
e que não toca apenas sua compreensão das coisas mas sua própria posição, enquanto sujeito, do
qual os 'objetos' são função. Isto é, o conceito da exposição é idêntico ao progresso do sujeito,
ou seja, à realidade da cura" (1951, p. 207).

Na epicrise do caso Dora, Freud define a transferência como o obstáculo contra o qual se
chocou a análise. Lacan estuda este tratamento, destacando as etapas através das quais é
decidido seu destino. Cada momento da análise corresponde a um desenvolvimento de Dora, ao
qual Freud contesta com uma inversão dialética. O processo se detém quando cessam estas
inversões. Acompanhemos Lacan em sua exposição.

O primeiro desenvolvimento da verdade consiste em uma afirmativa (dados biográficos


amores de seu pai com a Sra. K etc.), nos quais se expõe como objeto, dizendo a Freud: "Estes
fatos estão aí, procedem da realidade e não de mim. O que você quer mudar neles?"

Freud responde com a primeira inversão dialética: chama Dora, para observar que parte toca
a ela nas desordens daqueles de quem se queixa. Isto dá lugar a uma segunda formulação da
verdade. Dora admite sua cumplicidade com os amantes. Revela uma relação edípica, na qual
aparece manifestamente ciumenta da relação entre o pai e a Sra. K.

Freud responde com uma segunda inversão dialética. Não é o pretenso objeto do ciúme que
dá seu motivo, mas mascara com ele um interesse pela pessoa do sujeito-rival, expressado de
forma invertida. Isto é, Freud sugere que Dora não sente ciúme de seu pai por sua relação com a
Sra. K, mas da relação desta com seu próprio esposo.

Isto leva Dora a uma terceira formulação da verdade. A atração de Dora pela senhora K.,
que deveria ter suscitado em Freud uma terceira inversão dialética: como é que, se você tem em
tão alta estima esta pessoa, não sente como uma traição o jogo de intriga que a senhora K. fez
contra você?

Esta terceira inversão poria a descoberto a escolha de objeto homossexual de Dora e o valor
de "mistério" que a sra. K. tem para ela, que representa por sua vez o mistério de sua própria
feminilidade corporal.

Qual teria sido, então, o quarto desenvolvimento?

Provavelmente, a recordação infantil de Dora, chupando o polegar e puxando a orelha de seu


irmão. Esta recordação mostraria a identificação imaginária em que Dora tinha ficado presa: seu
irmão.

Assim, Dora se identificara com o Sr. K e com Freud e sua relação com ambos "manifesta
essa agressividade, na qual vemos a dimensão própria da alienação narcisista" (Ibid., p. 211).
Desvendar.este fenômeno teria evita- do a interrupção do tratamento.

Freud, por seu turno, diz que: 1) o erro foi não interpretar a transferência; 2) poderia haver
uma identificação homossexual.

Das duas afirmativas, Lacan sintetiza que é a dificuldade de Freud para interpretar a
homossexualidade de Dora (por preconceitos admitidos pelo próprio Freud), o que precipitou a
transferência negativa. É devido à contratransferência que Freud não consegue ver o conflito em
sua paciente.

Lacan assim define a transferência: "Ela não pode ser considerada como uma entidade
totalmente relativa à contra-transferência, definida como a soma dos preconceitos, das paixões,
das perplexidades, até da insuficiente informação do analista, naquele momento do processo
dialético? O próprio Freud não nos diz que Dora teria podido transferir para ele o personagem
paterno, se ele tivesse sido bastante tolo para acreditar na versão das duas coisas que o pai lhe
representava?
Dito de outra maneira, a transferência não é nada real no sujeito, mas o aparecimento, em um
momento de estancamento da dialética analítica, dos modos permanentes segundo os quais
constitui seus objetos" (1951, p. 214).

A interpretação da transferência consiste, sob este ponto de vista, em uma operação que
procura encher, com um embuste, o vazio deste ponto morto. "Mas este embuste é útil, pois,
mesmo falaz, volta a lançar o processo" (lbld.).

"Assim, a transferência não leva a nenhuma propriedade misteriosa da afetividade, e mesmo


quando é delatada, sob um aspecto de emoção, esta não adquire seu sentido senão em função do
momento dialético no qual é produzido.
Mas este momento é pouco significativo, pois, comumente, traduz um erro do analista,
embora somente seja o de querer demais o bem do paciente, cujo perigo, muitas vezes, o próprio
Freud denunciará" (Ibid., p. 215).

Esta síntese do trabalho de Lacan, de 1951, permite-nos vislumbrar a conceptualização que


ele faz da transferência, oposta, certamente, àquela que, tradicionalmente, tem sido aceita. A
partir de Freud, pensa-se a transferência como um fenômeno, cuja origem está no paciente,
dirigido para o analista. É o doente que transfere e deposita na pessoa do médico imagos
arcaicas. Lacan vira a luva. Quando a transferência se apresenta, opina, é porque o analista pôs
em jogo, na análise, seus próprios preconceitos, seus pontos cegos e seus conflitos inconscientes.
A transferência não revela apenas o conflito do paciente, ativa-se pelo conflito inconsciente do
terapeuta.

Esta perspectiva é, mais tarde, completada. Em seu seminário Les quatre concepts
fondamentaux de la psychanalyse (1964), Lacan rediscute o tema da transferência e expressa seu
ponto de vista, relacionado às diferentes teorias que procuraram explicar o fenômeno.

Sobre aqueles que propõem que esta seja produto da situação analítica, opina: "Mesmo que
devamos considerar a transferência como um produto da situação analítica, poderemos dizer que
esta situação não poderia criar, em sua totalidade, o fenômeno, pois; para produzi-lo, seria
preciso que houvesse, fora dela, possibilidades já presentes, que proporcionariam sua
composição, talvez única".

"Isso não exclui, de modo algum, quando não há analista no horizonte, que possa haver
então, propriamente, efeitos de transferência" (Ibid., p. 133).

O autor lembra que, em seu informe de Roma, propôs que o inconsciente é a soma dos
efeitos da linguagem. A transferência, de acordo com as proposições de Freud, expressa-se em
um interrupção do discurso, em um fechamento do inconsciente. Mas, por isso mesmo, a
presença do analista deve ser vista como uma expressão de sua existência. Acrescenta:
"Podemos chegar a crer que a opacidade do traumatismo - tal como é mantida em sua função
inaugural pelo pensamento de Freud, isto é, para nós, a resistência da significação - então é
considerada, principalmente, como responsável pelo limite da rememoração. Depois de tudo,
poderíamos nos encontrar, comodamente, em nossa própria teorização, reconhecendo que então
se dá um momento muito significativo da transição de poderes do sujeito ao Outro, ao que
chamamos de grande Outro, o lugar da palavra, virtualmente o lugar da verdade" (Ibid., p. 137).

No entanto, como a transferência aparece como interrupção, fechamento do inconsciente,


Lacan conclui que: "Em vez de ser a transmissão de poderes para o inconsciente, a transferência
é, ao contrário, seu fechamento" (ibid., p.137).

Critica duramente a psicologia do ego e sua proposta de se aliar à parte sadia desta instância
psíquica. Propõe que, quando se apela ao ego, ignora-se que é exatamente esta parte que está
interessada na transferência e que, portanto, é quem "fecha a porta", deixando "a bela"; (o
inconsciente) atrás dela.

Recordemos, por último, a proposta freudiana relativa a que a transferência é uma das
expressões da compulsão à repetição e, definitivamente, da pulsão de morte. Fiel à sua teoria da
estrutura inconsciente, Lacan postula que a repetição é um efeito significante, não se reduzindo a
um fenômeno emocional.
O jogo do carretel (Freud, 1920) simboliza a repetição "... mas não, em absoluto, a de uma
necessidade que apelaria para o retorno da mãe e que se manifestaria simplesmente no grito. É a
repetição da partida da mãe como causa de uma Spaltung no sujeito, superada pelo jogo
alternativo, fort-da, que é um aqui ou ali, não indicando, em sua alternância, nada mais do que
ser fort de um da e um da de um fort" (Ibid., p.72).

Este modelo será essencial para a compreensão da função do analista na interpretação da


transferência.

Até aqui, acompanhamos Lacan em suas formulações acerca da origem da transferência,


enquanto expressão da ordem significante. Devemos, agora, considerar o papel que tem, na
relação intersubjetiva, estabelecida entre paciente e analista, a relação que também se move no
registro imaginário.

No capítulo XVIII do seminário Les quatre concepts fondamentaux de la psychoanalyse,


Lacan estuda a fenomenologia da transferência, propondo que ela se baseia na existência do
Sujeito Suposto Saber.

Quando um indivíduo se dirige a outro, colocado no lugar do Sujeito Suposto Saber, a


transferência está bem fundamentada.

"... a psicanálise nos mostra, sobretudo na fase de partida, que o que mais limita a confiança
do paciente, sua entrega à regra analítica, é a ameaça de que o psicanalista seja enganado por
ele" (Ibid., p. 238).

O paciente retém certos elementos, para que o analista não vá depressa demais. "Em torno
deste enganar-se, que alberga a balança, o equilíbrio, deste ponto sutil, infinitesimal, que quero
acentuar" (Ibid. ).

"O sujeito sabe que não querer desejar possui, em si, algo tão irrefutável como uma fita de
Moebius que não tem avesso, isto é, que, ao percorrê-la, chegar-se-á, matematicamente, ao lado
que se julgava o oposto" (Ibid., p.239).

"É neste ponto de encontro que o analista é esperado. Como o analista supõe-se que saiba,
também se supõe que venha ao encontro do desejo inconsciente" (Ibid.). Neste ponto se articula
a transferência.

O aspecto comum com o paciente é, precisamente, o desejo do analista. Recordemos, além


disso, que o desejo do homem é o desejo do Outro. "Se somente no nível do desejo do Outro o
homem pode reconhecer seu desejo, enquanto desejo do Outro, não ocorreria nele algo, que deve
lhe parecer obstaculizar seu desvanecimento, que é um ponto no qual seu desejo nunca pode ser
reconhecido?" (Ibid., p. 240).

Reiteremos que o sujeito está alienado na ordem significante. Porém, a alienação está
essencialmente vinculada ao par de significantes. Não é a mesma coisa, haver dois ou haver três.
Quando há dois, um dos termos fica eclipsado, e isto, essencialmente, constitui a alienação.
Quando há três, pode se estabelecer uma relação circular entre eles.

Devemos, agora, nos perguntar qual é, para Lacan, o objetivo último da análise. O que é
proposto com sua técnica, já que renuncia à utilização da interpretação transferencial para seus
fins. Procuremos esclarecê-lo. No seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
analisa, minuciosamente, este assunto. Sua perspectiva, eminentemente estruturalista e
lingüística, portanto articula seus fins terapêuticos em consonância com o enfoque, a partir do
qual é definido o sujeito e o inconsciente.

No seminário mencionado, Lacan diz que, assim como Descartes introduziu o sujeito no
mundo, Freud disse ao sujeito que onde estava o sonho, era onde era ele mesmo.

A frase Wo es war, soll Ich werden não significa, como geralmente se traduz, que o ego deve
desalojar o id. Quer dizer que onde isso (rede de significante) estiver, está o sujeito. "Isso" é a
rede de significantes, o inconsciente, o sonho. Diz Lacan: "Mas o sujeito está ali para se
encontrar de novo, ali onde era (Ia où c'était) - antecipo - o real" (Ibid., p. 56).

Como se faz para que o sujeito advenha onde estava a rede? "E para saber que se está ali, não
há mais do que um único método: indicar a rede, e como é indicada uma rede? Volta-se,
regressa-se, cruza-se seu caminho, isso coincide sempre da mesma maneira, e, no Capítulo
sétimo de A interpretação dos sonhos não há outra confirmação de seu Gewiszheit do que
essa..." (Ibid., p. 56).

Dos escritos de Freud, em particular da carta 52 a Fliess, pode-se deduzir que, de forma
latente, Freud já tinha notado que a rede não pode ser constituída ao acaso. "Os significantes não
puderam se constituir simultaneamente, mas devido a uma estrutura muito definida da diacronia
constituinte. A diacronia é orientada pela estrutura" (Ibid. ).

Porém, isto não é tudo. A verdade, inscrita na ordem significante, requer, para seu
desvelamento, o ingresso do indivíduo no registro simbólico, o que, como vimos, exige um certo
tipo de vínculo intersubjetivo.

O acesso à "palavra plena" permite a estruturação do sujeito em sua verdade como tal. No
seminário sobre Les écrits techniques de Freud, Lacan diz: "A palavra plena é aquela que indica,
que forma a verdade, tal qual ela se estabelece no reconhecimento de um pelo outro. A palavra
plena é a palavra que faz ato. Depois de sua emergência, um dos sujeitos já não é o que era
antes. Por isso esta dimensão não pode ser eludida na experiência analítica" (1975, p. 168).

A experiência analítica convoca, portanto, a palavra plena. Esta aparece na hiância, nas
dificuldades do discurso.

Para afastar a tarefa analítica do doutrinamento intelectual, deve-se recorrer, mais uma vez, à
noção de transferência. Esta é que abre a hiância que permite o acesso à palavra plena. "A
transferência eficaz de que falamos é, simplesmente, em sua essência, o ato da palavra. Cada vez
que um homem fala a outro, de modo autêntico e pleno, há, no próprio sentido do termo,
transferência, transferência simbólica: algo acontece, que modifica a natureza dos dois seres que
estão presentes". "Todavia, esta é uma transferência diferente da que se apresentou
primeiramente na análise, não apenas como problema, mas como obstáculo" (Ibid.). Lacan está
se referindo à transferência, situada no plano imaginário. Diz que, apesar de tudo o que se tem
discutido sobre a transferência, ainda não está clara, nem sua natureza e, portanto, nem a
natureza e os recursos da cura analítica. Questiona, a seguir, as proposições referentes ao papel
do superego no processo analítico, destacados por Strachey (1934), em seu clássico artigo "The
nature of the therapeutic action of psychoanalysis". Lacan propõe, para resolver as contradições
que surgem desse trabalho, considerar a questão das relações entre analisado e analista, no plano
do ego e do não-ego, isto é, no plano da economia narcisista do sujeito (1975, p. 173). Em sua
opinião, a transferência é plurivalente, intervindo nos três registros: imaginário, simbólico e real.

Bibliografia básica
Como introdução à lingüística:

Saussure, F. (1915) Curso de lingüística general. Buenos Aires: Losada. 1945. Especialmente:
Introducción, caps. I-V. Primeira parte, caps. I-II-III. Segunda parte, caps. IV-V-VI.
Ducrot, O. e Todorov, T. (1972) Diccionario enciclopédico de las ciencias del lenguaje. Buenos
Aires: Siglo XXI. 1974. Especialmente: pp. 17-59, 121-172, 392-396.

Livros introdutórios ao estudo de Lacan:

Dor, J. (1985) Introduction à la lecture de Lacan. Paris: Denël. Em português, há a edição da


Artes Médicas, 1990.
Miller, J. S. (1980) Cinco conferencias caraquenas. Caracas: Ed. Ateneo de Caraca.
Rifflet-Lemaire, A. (1970) Lacan. Barcelona: La Gaya, Ciencia.

Principais trabalhos de Lacan que podem ser consultados em espanhol:

(1948) "La agresividad en psicoanálisis". Escritos, pp. 98-116. México: Siglo XXI,lOa ed.,
1984.
(1949) "EI estadio del espejo..."Escritos, pp. 86-93. México: Siglo XXI, l0a ed. 1984.
(1951) "Intervención sobre la transferencia". Escritos, pp. 204-215. México: SigIoXXI, 10°
ed., 198:f.
(1953) "Función y campo de la palabra y del lenguaje en psicoanálisis". Escritos,pp. 227-310.
México: Siglo XXI. l0a ed., 1984.
(1957) "La instancia de la letra en el inconciente o la razón desde Freud". Escritos, 473-509.
México: Siglo XXI, l0a ed., 1984.
(1958) "La significación del falo". Escritos, pp. 665-675. México: SigIoXXI, l0a ed., 1981.
(1960) "Subversión del sujeto y dialéctica del deseo en el inconciente freudiano".Escritos, pp.
773- 807. México: SigIoXXI. 10° ed., 1984.
(1957-58) Las formaciones del inconciente. Buenos Aires: Nueva Visión.
(1970-73) Los cuatro principios fundamentales del psicoanálisis. Espana: Barral Ed., 1977.
(1975) Los escritos técnicos de Freud. Buenos Aires: Paidós, 1981.

NOTA
1) As citações dos Ecrits (1966) correspondem à l0a ediçào em espanhol, 1984. Traduçào de
Tomás Segovia e Armando Suárez. México: Siglo XXI.

FONTE
BLEICHMAR & BLEICHMAR. A Psicanálise depois de Freud. Ed. Artmed

WebDesigner Vitor Murata


http://br.geocities.com/jacqueslacan19011981/textos2/lacanteoriadosujeito.htm

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