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Apresentação
1. Aspectos gerais
Jacques Lacan (1901-1981) formulou uma teoria profunda e complexa que, sob a égide do
retorno a Freud, redefiniu, sob a perspectiva do estruturalismo e da lingüística, todas as
categorias psicanalíticas conhecidas, ao mesmo tempo que criou muitas outras.
Discutido e ao mesmo tempo admirado, para alguns o maior depois de Freud, ou até mesmo
de seu tamanho; desviacionista, fator de retrocesso da psicanálise, para outros, é necessário que
se passe mais tempo para que esta figura, tão controvertida, adquira seu exato lugar na história
da evolução da psicanálise.
Lacan é um dos grandes pós-freudianos. Procedeu a uma reformulação das próprias bases da
teoria, da metapsicologia e da clínica. A outra figura equiparável a ele, em grandeza, certamente
é Melanie Klein.
Em princípio, a modificação conceptual proposta por Jacques Lacan deve ser entendida no
contexto criado pela influência estruturalista na França, principalmente com a lingüística de
Saussure e com a antropologia de Lévi-Strauss.
Obra erudita, difícil de compreender, obscura em suas formulações, com linguagem alusiva,
cheia de jogos de palavras, gongorismo estilístico, pedantismo intelectual, desprezo a toda
formulação próxima da sua, exceto algumas exceções momentâneas; é tudo isto ao mesmo
tempo e em graus diferentes, segundo o texto que considerarmos. O leitor se encontra diante de
um verdadeiro desafio para compreender e assimilar os enfoques lacanianos.
Nas páginas que se seguem, não procuraremos dar uma visão completa das idéias de Lacan,
mas descrever os vetores principais em que sua teoria se desenvolve. Pretendemos fazer uma
ordenação conceptual que ilustre, panoramicamente, aquilo que, em nossa opinião, Lacan
fornece.
Comecemos por destacar que estamos em presença de um discurso, para usar uma palavra
grata a Lacan, resultante de uma interação entre dois enfoques diferentes: o filosófico e o
psicanalítico. Neste sentido, Lacan é completamente original. Devemos recordar que, na França,
diferentemente do resto do mundo, é comum que os psicanalistas também tenham formação
filosófica e médica. Lacan escreve em termos psicanalíticos, filosóficos, antropológicos e
lingüísticos; sua reflexão sobre o sujeito, quiçá uma das temáticas principais, orienta-se em todas
estas direções. É oportuno recordar que Freud contribuiu em problemas vinculados à cultura, de
uma forma um tanto colateral. Apesar disso, esses estudos tiveram grandes implicações.
Pelo contrário, muitos dos seguidores de Lacan são filósofos ou provêm das ciências
humanísticas, não médicas, motivo pelo qual a linguagem lacaniana lhes é mais acessível.
Freud usou, para suas teorias, modelos biológicos como o do neurônio e o da evolução de
Darwin. Lacan, por seu turno, valeu-se da lingüística de Saussure, da antropologia de Lévi-
Strauss e da dialética de Hegel (relação com o semelhante, dialética do desejo e do olhar).
Toda a metapsicologia se modifica, assim como a clínica. Os termos utilizados por Lacan:
pulsão, desejo, libido, pulsão de morte, para citar somente alguns, adquirem outro significado no
conjunto de sua teoria. Isto nos Faz pensar (problema que examinaremos com mais vagar na
parte de comentários) que se trata de um desenvolvimento psicanalítico original e não de um
retorno a Freud, pelo menos não à estrutura da teoria psicanalítica tal como Freud a pensava.
Concordamos que se sustenta no espírito freudiano, mas não nas concepções clássicas da
psicanálise. Não pensamos que a teoria de Lacan, nem a de Melanie Klein, possam ser
consideradas como simples desenvolvimentos do legado de Freud.
A discussão das hipóteses de Lacan, como as dos demais autores estudados neste livro,
interessa-nos no plano das idéias e das concepções teóricas. Os problemas do movimento,
políticos ou de ambições pessoais, não serão levados em consideração.
Como a lingüística na obra de Lacan tem o papel decisivo que mencionamos, antes de entrar
no assunto, impõe-se uma breve revisão dos conceitos lingüísticos fundamentais. Deste modo
será mais fácil, depois, acompanhar os desenvolvimentos lacanianos. Começaremos,
necessariamente, por uma menção de Saussure.
A primeira pergunta a que Saussure procurou responder foi a relativa ao objeto de estudo da
lingüística, que ficou definido como "o conjunto de manifestações da linguagem humana, sem
nenhuma restrição; isto implica todas as línguas, todos os períodos da história, todas as formas
de expressão" (Fuchs e Le Goffic, 1975, p. 15). Portanto, o objeto de estudo do lingüista é a
língua em sua estrutura mais geral.
Se, agora, considerarmos a relação da linguagem com o eixo temporal, podemos ver que
surge outra dualidade: sincronia versus diacronia. A língua é, em um sentido sincrônico, um
sistema de relações entre signos lingüísticos. Estes permanecem unidos através de certas leis de
associação e cada um ocupa um lugar na estrutura, que o define e o distingue, simultaneamente,
dos demais signos. Porém, Saussure adverte que este sistema não permanece estático. O enfoque
diacrônico se interessa pelas mudanças que a estrutura sofre com o transcorrer do tempo.
Saussure outorga ao signo lingüístico outra característica especial: seu valor. Assim como
uma moeda, cada signo vale em relação aos demais signos da estrutura (ibid. pp. 192-202). Tem,
com eles, uma relação fixa e, além disso, é intercambiável. O signo cumpre, assim, duas
premissas básicas: a) como designa algo que Ihe é alheio, tem poder de mudança e b) seu poder
significativo depende das relações estabelecidas com os outros elementos do sistema.
Saussure destacou o fato de que há dois tipos de ordenamentos dos signos: a concatenação e
a substituição de um signo por outro. A partir destes conceitos, Jakobson (1963) distinguiu,
dentro da linguagem, os termos relacionados, por semelhança, com os associados por
contigüidade. Um exemplo dos primeiros seria "fogo" e "paixão"; em troca, um conceito
contíguo a fogo poderia ser "calor". A substituição de um significante por outro, na base de uma
relação de similitude, constitui a metáfora. Se, em compensação, um significante for substituído
por outro que tenha, com o primeiro. uma relação de contigüidade, estar-se-á efetuando uma
metonímia.
Esta tese fundamental leva Lacan a prestar especial atenção à organização da linguagem;
dela extrai numerosos conceitos que, depois, aplicará ao conhecimento do objeto psicanalítico
por excelência: o inconsciente.
3. Narcisismo. Papel do outro(a) na constituição do sujeito
No Congresso Psicanalítico Internacional de 1936, Lacan abriu uma nova perspectiva, com o
trabalho que depois se converteria em um clássico e que, em 1949, assumiu sua versão
definitiva: posteriormente, foi incluído em seus Ecrits de 1966. Referimo-nos, evidentemente, a
"Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je telle qu'elle nous est revélée dans
l'expérience psychanalytique".
Lacan parte de um fato observado na psicologia comparada: o bebê, ao redor dos seis meses,
reage jubilosamente diante da percepção de sua própria imagem refletida no espelho. Esta
reação contrasta com a indiferença que outros mamíferos demonstram ante seu reflexo
especular.
A que se deve esta resposta? Que conseqüências tem no desenvolvimento psíquico do ser
humano? Em torno destas perguntas, o autor desenvolve uma teoria sobre o narcisismo e a
identificação primordial.
Em nossa opinião, este tema constitui uma das contribuições mais destacadas da teoria
lacaniana, pois encara o estudo do fenômeno narcisista de uma perspectiva original. Em sua
formulação se conjugam, de maneira ajustada, fatos de observação clínica, conceptualizações de
nível teórico e um modo muito profundo de entender as relações do homem, não somente com a
mãe, mas também com o contexto cultural em que vive.
Lacan pensa que o ser humano tem uma representação fantasmática do corpo, na qual este
aparece fragmentado. A imago de seu esquema corporal fragmentado continua a se expressar
durante a vida adulta nos sonhos, delírios e processos alucinatórios. Concebe seu corpo como
quebrado ou sujeito a se partir em pedaços. Sinal de imaturidade? De prematuridade? Resultado
das vivências relacionadas à incoordenação motora, própria dos primeiros meses de vida? Imago
arcaica compartilhada por todos os homens, em todas as culturas? Mito? Lacan recorre a todas
estas explicações, em diferentes momentos, para explicar um fato de inquestionável verificação
clínica.
Nesta identificação com uma imago que não é mais do que a promessa daquilo que virá a
ser, há uma falácia: o sujeito se identifica com algo que não é. Na verdade, acredita ser o que o
espelho ou, digamo-lo logo, o olhar da mãe lhe reflete. Identifica-se com um fantasma; usando o
termo lacaniano, com um imaginário. Desde muito cedo, o homem fica preso a uma ilusão, da
qual procurará se aproximar pelo resto de sua vida. Ser um herói, ser Superman ou o Cavaleiro
Solitário, ser um gênio, não são mais do que versões do processo imaginário. Portanto, vemos
que o estágio do espelho não é apenas um momento do desenvolvimento do ser humano. É uma
estrutura, um modelo de vínculo que operará durante toda a vida. No seio da teoria lacaniana, é
conceptualizado como um dos três registros que definem o sujeito: o registro imaginário.
"Porém, o ponto importante é que esta forma situa a instância do eu, ainda antes de sua
determinação social, em uma linha de ficção, irredutível, para sempre, pelo próprio indivíduo;
ou então, que só assintoticamente tocará o devir do sujeito, seja qual for o êxito das sínteses
dialéticas por meio das quais tem de resolver, enquanto eu (je), sua discordância a respeito de
sua própria realidade" (ibid., p. 87).
Somente pelo fato de viver com outros homens, os seres humanos ficam presos,
irreversivelmente, em um jogo de identificações que os impelem a repetir aquela relação com a
imago antecipatória. Quando uma mulher diz a seu filho: "és a criança mais linda do mundo", o
está introduzindo nesta dialética, da qual a criança, futuro adulto, jamais poderá escapar. A
introdução do registro simbólico, através da problemática edípica, atenuará ou modificará estas
imagos especulares, mas nunca conseguirá acabar com elas.
O Eu assim constituído é, para a teoria lacaniana, o ego ideal, diferente do ideal do ego. O
ego ideal é uma imago antecipatória prévia, o que não somos mas queremos ser. Imagem mítica,
narcisista, cujo alcance persegue o homem incessantemente. A estátua, o uniforme, o herói são
significantes com que o ser humano substitui aquela ilusória assimetria primitiva. O ideal do
ego, pelo contrário, surge da inclusão do sujeito no registro simbólico. Por ser impossível se
tornar esse personagem lendário, poderoso, perfeito, o indivíduo aceita fazer parte de uma
estrutura, da qual é perpetuador. Seu papel é transmitir a lei. E apenas um elo da cadeia: o
homem entregará a seus_filhos o nome (e as normas) que, por seu turno, recebeu de seu pai, que
as recebeu de seu próprio genitor, e assim sucessivamente.
Para Lacan, o complexo de Édipo se desenvolve em três momentos, dos quais o estágio do
espelho constitui o primeiro. O devir psíquico transcorre desde a identificação narcisista, na
ordem imaginária, até a identificação simbólica com a Lei do pai, ao concluir o Édipo. Entre
estes dois pontos, situa-se o momento em que a relação diádica com a mãe marca a criança,
definindo sua identificação com o outro, ou melhor, com o desejo do outro. No estágio do
espelho, a criança se identifica com uma imago antecipatória de si mesma. Em um segundo
momento, fá-lo com o desejo da mãe. Finalmente, ao assumir a castração e compreender que
nem seu pai nem ela mesma são o falo, que somente podem transmiti-lo de geração em geração,
ingressará na ordem simbólica, aceitará a lei. Este último passo constituiria o que,
tradicionalmente é denominado de "dissolução do complexo de Édipo", embora, na realidade, os
três estilos de identificação coexistam, misturando-se durante toda a vida.
O tipo principal de identificação, com o qual funciona um sujeito, tem grande importância
psicopatológica. Lacan propôs que tanto as psicoses como as perversões se assentam mais em
um estilo identificatório da ordem do imaginário, do que da ordem do simbólico. O não aceder à
ordem do simbólico, à lei, produzirá no psicótico, segundo Lacan, o uso peculiar da linguagem
que o caracteriza. O psicótico tem um vínculo com sua mãe no qual não há espaço para um
terceiro, não há lugar para a triangulação edípica. A mãe ilude o filho com a crença de que ele é
seu falo, o filho vive a ilusão de sê-lo. A ausência do pai (não nos referimos aqui à ausência real
do pai, mas à sua ausência no discurso da mãe) obstaculiza o ingresso do sujeito na ordem do
simbólico. Mãe e filho compartilham uma ficção e, na verdade, esta ficção é a psicose.
Com o imaginário, que instaura o estágio do espelho, começa, em Lacan, a reflexão sobre a
intersubjetividade humana. Relação entre o sujeito e o semelhante, entre a criança e a mãe, do
homem com o outro. Captação do desejo humano no desejo do outro, através do olhar. Lacan
retoma a reflexão hegeliana da Fenomenologia do Espírito, especialmente a "Dialética do
Senhor e do Escravo". É na relação interdependente, mútua, de imprescindível necessidade entre
os dois membros do diálogo, que se constitui a identidade. É-se senhor porque existe o escravo,
e vice-versa. Dialética da intersubjetividade em uma organização dos lugares, através da
estrutura. O olhar do outro produz em mim minha identidade, por reflexo. Através dele, sei
quem sou e, nesse jogo narcisista, me constituo a partir de fora.
O olhar deve ser entendido como uma metáfora geral: é o que pensam de mim, o desejo do
semelhante, o cartel e o espetáculo de propaganda, o posto na família, no trabalho e na
sociedade. Identificação no outro e através do outro, este é meu eu. Lacan diz, em uma fórmula:
o lugar do moi é i(a), identificação com o desejo de a, autre (outro). Torna-se evidente que então
também se inicia a temática da alienação.
Com a ajuda samaritana, a vocação de curar, a "alma bela" e a chamada "lei do coração",
mantêm-se as imagos narcisistas. Tu és meu discípulo, portanto sou teu mestre. Uma coisa leva à
outra, circularmente. Nada irrita mais do que a intenção do outro de sair do jogo, pois tropeça no
que sou. Se o paciente não admite sê-lo, desgosto narcisista no analista. Se o analista questiona
uma certeza do paciente, desperta nele outra tensão agressiva.
Lacan, com sua teoria do imaginário, produz uma reviravolta muito interessante no problema
da agressividade humana. Propõe que todo questionamento de nossas fascinações especulares
causa uma visão paranóica do mundo. Basta dizer a alguém que não tem razão, que não é quem
acredita ser, mostrar-lhe um ponto onde se limita a asseveração de si, para que surja a
agressividade. Lacan considera a pulsão de morte como expressão do narcisismo.
Posteriormente, fa-la-á interagir, também, com o registro do simbólico, dizendo que o que
insiste, o que se repete, é a cadeia do significante. Ao abandonar a biologia, como fator
explicativo para a agressividade, resta apenas o efeito da estrutura narcisista, tornando tudo mais
simples e lógico. Por outro lado, para que a fratura seja possível, deve-se admitir que, antes da
identificação com a gestalt antecipada, o indivíduo devia ter uma imago ou representação
deslocada, fragmentada de si mesmo. A citação na qual se refere à obra de Hyeronimus Bosch,
ou aos desenhos e jogos infantis, indica-nos que Lacan acredita que estas imagens fantasmáticas
são originárias. Fazem parte de uma herança mítica, simbólica, que o homem recebe de seus
antepassados de maneira ineludível. Se uma pessoa sentir como agressiva a afirmativa: "creio
que isto te será muito difícil" é, diria Lacan, porque esta afirmativa está questionando a imago
onipotente, poderosa, íntegra, com a qual se identificara no estágio do espelho. Mas,
simultaneamente, se o questionamento se tornar possível, é porque, em alguma parte de sua
mente, o indivíduo percebe a possibilidade de ser fragmentado, criticado ou desintegrado. Esta
representação a priori faz parte do acervo que herdou, somente pelo fato de existir como ser
humano.
Lacan utiliza os elementos da lingüística em diversos planos e níveis. Por vezes, faz deles
um uso antropológico e, em outras, sua reflexão sobre a linguagem tem aplicações
psicanalíticas. Torna-se claro que seu pensamento não se move de maneira homogênea, nem
sempre no mesmo plano, mas que os diversos elementos interagem de maneira variada. No
entanto, com finalidades explicativas, é útil procurarmos discriminar estes diferentes níveis.
Em uma reflexão basicamente antropológica, Lacan destaca que o homem está inserido em
um universo de linguagem. De fato, o ser humano é, graças à sua inclusão em um sistema de
significantes, e é esta diferença essencial que distingue o homo sapiens das outras espécies do
mundo animal. As abelhas, por exemplo, comunicam-se entre si, podem transmitir umas às
outras a localização das flores, necessária para a fabricação do mel. Mas estes insetos estão
completamente incapacitados de criar, mediante seus meios de expressão, novos sentidos.
Devem se limitar a "dizer-se" aquilo para o qual estão etologicamente programados. O homem,
em compensação, pode utilizar seu meio de expressão para criar novos sentidos. Isto demonstra
que a linguagem é muito mais do que um meio fixo de comunicação. Seu uso é que faz do
homem um ser especial.
Através de que mecanismo pode a linguagem permitir esta criação? Sua própria estrutura é
ambígua. Recordemos os conceitos de sincronia e diacronia. A linguagem é combinatória nos
dois sentidos: um, horizontal, transcorre com o passar do tempo; no outro, vertical, um
significante desloca outro, que está ausente. Se dissermos "traze-me a mesa", em lugar de "traze-
me a cadeira", a substituição do significante "mesa" por "cadeira" muda o sentido. Obviamente,
há substituições que dão muito mais sentido. Voltemos à utilizada páginas atrás: a substituição
de "paixão" por "fogo" ou de "lobo" por "homem", evidentemente, é criadora de um novo
sentido. Segundo a opinião de Saussure, e também de Lacan, o que permite estes malabarismos
é a própria estrutura da linguagem, sua disposição em forma de trama, de entrecruzamento, com
linhas que se associam, em sentido vertical e horizontal. Esta trama é o que chama de "cadeia
significante", descrita como "anéis, cuja corrente se fecha no anel de outra corrente feita de
anéis" (1957 p. 481).
Do dito até o momento, pode-se deduzir o sentido radical que possui o enunciado lacaniano:
"O sujeito é falado pelo Outro". O Outro é a lei, as normas e, em última instância, a estrutura da
linguagem. O sujeito, enquanto o é não existe mais do que no e pelo discurso do Outro. Somos
alienados pela linguagem, pois somos efeito dela. Recordemos que o sujeito também está
alienado no imaginário, segundo o descrevemos para o estágio do espelho. Dupla alienação: no
desejo do outro (o semelhante) e no discurso do Outro (a lei, a linguagem). Cada um de nós crê
ser o que, na realidade, não é (nível imaginário), ao mesmo tempo que não é mais do que um
significante, produto da estrutura que o transcende (nível simbólico).
Falamos da criação de sentido, mas não nos detivemos em analisar o mecanismo de sua
produção. Dissemos que o que permite esta criação é a própria estrutura da linguagem. Mas,
como é que isso acontece efetivamente? Lacan introduz uma metáfora: a do ponto de capitonê
("point de capiton"). Do mesmo modo que o ponto com que o tapeceiro une entre si as diferentes
partes de um estofado, o ponto de capitonê fixa a significação em uma detetminada cadeia de
significantes. O último significante da cadeia é o que dá sentido aos que o precederam. Um
exemplo servirá para esclarecer esta idéia. Pensemos o quanto é diferente dizer: "a mesa está
vazia", do que "a mesa está". O significante "vazia" fecha o sentido, de uma maneira muito
diferente do que é feito com o verbo "está". Sublinhemos, então, um efeito retroativo de cada
significante sobre os significantes que o precederam o que dá a significação, ou seja o sentido.
Mais adiante, veremos que Lacan utiliza este enfoque na formalização de sua teoria do
desejo, aplicação que tem não poucas conotações. A mais evidente é que, de fato, nosso autor
postula que o desejo humano é, do mesmo modo que o próprio sujeito, efeito da estrutura da
linguagem, cumprindo, portanto, suas regras e normas. Até o momento, descrevemos o retrato
do homem tal como Lacan o concebe: aprisionado entre dois sistemas, o imaginário e o
simbólico. Este último o determina como sujeito, nomeia-o, situa-o, distingue-o como homem.
Em poucas palavras, torna-o ser.
"Digamos que o sonho é semelhante àquele jogo de salão, no qual se faz com que os
espectadores adivinhem um enunciado conhecido ou sua variante somente por meio de uma cena
muda. O fato do sonho dispor da palavra nada muda a este respeito, porque, para o inconsciente,
ela nada mais é do que um elemento de colocação em cena, como os demais... Os procedimentos
sutis que, não obstante, o sonho costuma empregar para representar estas articulações lógicas, de
maneira muito menos artificial do que aquela que o jogo geralmente utiliza, são objeto, em
Freud, de um estudo especial no qual se confirma, uma vez mais, que o trabalho do sonho segue
as leis do significante" (Ibid., p. 492).
Para Lacan, o significante tem um peso maior do que o significado. De fato, propõe a
primazia do significante. No seminário sobre o conto de Edgar Allan Poe, "A carta roubada"
(Ecrits, pp. 5-55), fica evidente este ponto de vista, em contraste, digamo-lo, com o equilíbrio
interno do signo lingüístico que Saussure postulara.
No relato, Poe cria uma trama em torno do desaparecimento de uma carta, cujo conteúdo
todos desconhecem. A presença ou ausência da carta põe os protagonistas em um jogo: quem a
tiver, possuirá poder sobre quem não sabe onde ela está. Na carta há, ao que parece, uma
informação incriminatória sobre a rainha. Seu desaparecimento e substituição por um envelope
idêntico, mas com conteúdo diferente, gera a tensão e causa os diferentes movimentos
executados pelos protagonistas.
Lacan utiliza o conto de Poe para demonstrar como o significante tem primazia sobre o
significado. A carta é um envelope, cujo conteúdo é sus peitado mas não conhecido. Neste
sentido, nada mais é do que um significante. Sua posse é o que situa cada um dos personagens
em cena: quem o possui, está em situação de incriminar a rainha; quem o perde, fica em
desvantagem. O espectador pode suspeitar do conteúdo do envelope ( o significado), através de
sua circulação entre os diferentes personagens (significantes). Mediante esta metáfora, Lacan
encena a posição do sujeito, quanto ao significante. O indivíduo move-se em torno, por causa
dele.
Também fica estabelecido seu ponto de vista acerca do que, em sua opinião, tem prioridade
no interior do signo lingüístico: o significante. Em síntese, o conto de Poe ilustra duas idéias
diferentes, mas vinculadas entre si: o significante tem prioridade sobre o significado e é sua
circulação que define o lugar que cada indivíduo ocupa na estrutura. Mas qual é o valor
representativo do significante? Lacan propõe que este decreta a morte da coisa. O significante é
aquilo que a coisa não é, o que determina uma carência que lhe é intrínseca. E, na medida em
que algo lhe falta e, ao mesmo tempo, existe, em relação aos outros significantes do código; é,
porque não é outro significante. Se, como vimos acima, o sujeito nada mais é do que um
significante, para outro significante, então podemos lhe aplicar esta mesma fórmula, da qual
resulta que o sujeito também possui uma carência de ser fundamental.
A importância destes conceitos, na obra de Lacan, nos obriga a Ihes dedicar umas linhas,
para que se possa compreender, em toda sua grandeza, a aplicação clínica que esta teoria nos
propõe.
Se, como faz Lacan, expressarmos, com um algoritmo, o signo lingüístico, poderíamos dizer
que este pode ser representado mediante S/s, onde S é o significante e s o significado. A
presença, no numerador, da fração do significante, indica sua primazia sobre o significado. Na
metáfora, a substituição operada é a de um significante por outro significante. Sua notação é a
seguinte:
Aqui, o significante 2 substitui o significante 1, mas este, junto com seu significado, passam
sob a barra de significação. Ficam como conteúdos latentes. Na metáfora, ao substituir um
significante por outro, deve-se colocar, na parte inferior da barra do algoritmo, o signo completo
substituído (significante e significado), pois não sendo assim criar-se-ia um novo signo e não
uma metáfora.
No exemplo que demos em paginas anteriores, esta substituição seria feita do seguinte
modo:
Processo metafórico
processo metonímico
No processo metonímico, não e possível tirar o significante substituído do algoritmo, pois sua
presença é necessária para que se constitua a metonímia. O significante 2 somente tem seu
sentido em função da contigüidade com o significante 1. Na metonímia, toma-se necessário um
processo de pensamento capaz de criar o sentido. Na metáfora, em compensação, o sentido surge
imediatamente. Explica-se pelo fato de que neste ú'timo caso, o significante franqueou a barra de
significação, ocupando o lugar do significado.
Dois dos fenômenos oníricos descritos por Freud têm notáveis semelhanças com os processos
metafóricos e metonímicos, próprios da linguagem. São a condensação e o deslocamento.
Os lapsus, os atos falhos, o sintoma e o chiste podem ser interpretados desta mesma
perspectiva. No trabalho "Fonction et champ de la parole et du langage en psychoanalyse",
Lacan descreve isto com a seguintes palavras: "O inconsciente é aquela parte do discurso
concreto, enquanto transindividual, que falta à disposição do sujeito para restabelecer a
continuidade de seu discurso consciente" (1963, p. 248), donde se deduz, claramente, que o
inconsciente se revela nos vazios do discurso. E mais adiante: "O inconsciente é o capítulo de
minha história que foi deixado em branco ou ocupado por um embuste: é o capítulo censurado.
Mas a verdade pode ser de novo encontrada; freqüentemente já está escrita em outro lugar. A
saber:
- nos monumentos: este é meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose, onde o sintoma
histérico mostra a estrutura de uma linguagem sendo decifrada como uma inscrição que, uma
vez recolhida, pode, sem grandes perdas, ser destruída;
- também nos documentos de arquivo: são as recordações de minha infância, tão
impenetráveis como elas, quando não conheço sua proveniência;
-na evolução semântica: isto corresponde tanto ao estoque e às acepções do vocabulário que
me é próprio, como ao estilo de minha vida e de meu caráter;
- também na tradição e, ainda, nas lendas que, sob uma forma heróica, veiculam minha
história;
- finalmente, nos rastros que, inevitavelmente, conservam as distorções necessárias para a
conexão do capítulo adulterado com os capítulos que o cercam, e cujo sentido minha exegese
restabelecerá; (ibid., p. 249).
Este enfoque conceptual indica, de maneira decisiva, a forma de trabalho proposta por Lacan.
Se o inconsciente se revelar, através das formações que lhe são próprias, e se estas forem efeito
da estrutura da linguagem, será pelos cortes e erros do discurso que se tornarão acessíveis à
consciência. Assim, não haveria outra forma de acesso ao inconsciente, senão a escuta atenta do
discurso do paciente, à espera de que um lapsus, um chiste, um sonho, desvendem a
combinatória peculiar de associações, que subjaz a estas produções. Isto devolve à palavra o
papel essencial que teve, no início da psicanálise e, em sentido inverso, diminui a eficácia que
alguns analistas atribuem às experiências emocionais ocorridas na sessão. Lacan critica
duramente as idéias daqueles que, como Balint, Winnicott e outros, propõem que a presença e a
atitude empática do analista na sessão têm um efeito curativo. Em sua opinião, o sentido é
revelado ao sujeito através dos cortes do discurso e de atos que possuem, em última instância, o
efeito de u na palavra. Privilegia-se a palavra, no sentido de que é por meio dela que temos
acesso ao inconsciente. Suas pontuações, seus erros, seus esquecimentos, a cadeia do discurso
(seqüência de significantes que, finalmente, se tornam significados, em virtude do último
significante da cadeia), tudo isso são ferramentas com que conta o analista.
Até o momento, vimos a posição que o sujeito mantém com a linguagem e como Lacan extrai
seus postulados, a partir da hierarquia que a estrutura lingüística possui, em sua teoria. Vejamos,
agora, mais pormenorizadamente, como a linguagem aliena o sujeito. Em outras palavras,
devemos considerar o estudo do mecanismo pelo qual o sujeito se inscreve na ordem do
significante. Este é o tema da Lei e do Outro.
O que é o falo, na obra de Lacan? Começaremos por esclarecer o que não é: não é o pênis. A
referência à castração não é, em nenhum momento, uma alusão à privação do órgão genital
masculino. Constitui uma referência à função do pai, como mediador da relação entre a mãe e a
criança. Essa função paterna se interpõe na relação diádica, imaginária, especular, que é
verificada entre o bebê e a mãe. É isto a castração.
Para poder ser o terceiro e intermediar o vínculo diádico, o pai deve transmitir a Lei, fato que
se atualiza por ser o portador do nome. É o pai quem nomeia o filho e, neste ato, está
simbolizado que é o possuidor do falo, da Lei.
Ao sair da fase identificatória do estágio do espelho, a criança está alienada em um
imaginário da mãe. Anseia ser o desejo da mãe. Isto implica ser o que a mãe não possui: o falo.
Há, neste momento, uma segunda etapa identificatória: a identificação com o desejo do outro. O
dilema em que o sujeito se debate, neste momento, é o de ser ou não ser o falo, o que posterga a
temática da castração; esta será enunciada mais adequadamente, se dissermos que o que ela trata
é de ter ou não ter o falo.
Precisamos esclarecer que, para que esta mediação seja possível, não basta que o pai
interponha a proibição. A mãe deve se fazer eco dela, transformando-se em porta-voz do que
Lacan chama de "Lei do pai". A criança então descobre que o desejo de cada um deve se
submeter à lei do desejo do outro. Neste ponto, a segunda etapa do Édipo, passa-se da ilusão de
"ser" o falo para a de "ter" o falo, pois se supõe que o pai tem o objeto do qual a mãe depende, a
ponto de impor uma lei que lhe causa, por sua vez, uma privação.
Neste segundo momento do processo edípico, a criança ingressa na simbolização da lei que,
mais tarde, permitirá o declínio do complexo. É confrontada com a castração, que implica a
necessidade de "ter" aquilo que preenche o desejo da mãe. O pai real, ao impor sua lei,
transforma-se em pai simbólico.
Este momento é crucial para o indivíduo, pois só assumindo a castração torna-se possível
aspirar a ter o falo, ou o que é o mesmo, a transmitir a Lei. Qual é o motivo pelo qual o homem
julga que seu pai é possuidor transitório do falo e não que é o próprio falo? A resposta é dada
pelo fato de que o pai é portador de um nome, que, por sua vez, lhe foi dado por outro homem,
seu próprio pai.
Assim, chegamos a uma terceira etapa do Édipo. É comprovada pelo fato de que a criança
recebeu a significação. Ela renuncia à sua condição de "ser" para ingressar na dialética da
negociação, que lhe permitirá "ter". Entra em jogo a identificação do varão com o pai e da
menina (que assume o "não ter") com a mãe.
Esta teorização também serve para Lacan dar uma feliz resposta ao problema da memória,
em psicanálise. Propõe que a memória nada mais é do que a estrutura da linguagem, presente no
inconsciente. Isto explica a in- destrutibilidade do desejo inconsciente. * * * "Não há outro meio
de conceber a indestrutibilidade do desejo inconsciente - quando não há necessidade que, ao ver
que lhe é proibida sua sociedade, não se quebre, em caso extremo pela consunção do próprio
organismo. E em uma memória, comparável ao que se chama com este nome em nossas
modernas máquinas de pensar (fundadas sobre a realização eletrônica da composição
significante), que reside essa cadeia que insiste em se reproduzir na transferência, e que é a de
um desejo morto" (Ecrits, p. 499).
O recalcamento primário, isto é a metáfora paterna, também é induzido pela Lei que o
representa, através da proibição do incesto e da castração. É necessário aceitá-lo para ser
portador, por seu turno, da Lei.
O que, portanto, se impõe, é a castração; aliena-nos na estrutura da linguagem que não nos
deixa resquícios para ser mais do que sujeitos alienados na demanda. O Outro, ao ditar as leis
da linguagem, que nos estruturam, e das relações de parentesco que estabelecemos, também dita
as normas a que se subordinarão nossos desejos e, conseqüentemente, nossas demandas.
O que é o real? Não se trata da realidade, no sentido tradicional, materialista, com a tomam
Freud e a psicologia do ego. Não temos uma percepção imediata da realidade. Os significantes a
segmentam e a criam. Quando vemos uma porta em um quarto não é só isto o percebido, o
significante "porta" decompõe o plano da parede, organizando o mundo externo e as emoções.
Lacan não dedica ao registro do real a mesma quantidade de trabalhos que aos demais. Um
dos sentidos que lhe atribui é o de um corte entre os dois registros, simbólico e imaginário.
Para Lacan, o desejo humano remete a algo diferente da necessidade biológica imediata. Em
Freud, esta questão foi apresentada ao separar Instinkt (instinto animal) de Trieb (pulsão
humana). Lacan discute o desejo humano fazendo interagir o registro do imaginário com o do
simbólico: as relações entre os processos da identificação imaginária e os que pertencem ao jogo
do significante. Intitulamos este item de "Entre o outro e o Outro", para explicar,
resumidamente, sob que ótica este autor encara o desejo.
Façamos um breve resumo das categorias que iremos encontrar nesta exposição.
- O outro (a) = autre (a): o ser humano se identifica com a imagem que lhe é devolvida pelo
olhar do semelhante. É a base da identificação narcisista. Alienado no desejo alheio, a criança e
o adulto mimetizam as aspirações que vêm de fora. Também é o ego ideal da figura heróica,
construída sobre imagos antecipatórias. O que não se é, mas se deseja ser. Nossa própria imagem
refletida.
- O ideal do ego, que nos diz: "Deverás ser como teu pai, como ele buscarás esposa, mas não
a dele". Surge a Lei e seus significantes ou símbolos, por exemplo, as tábuas da lei, a Santíssima
Trindade.
Os gráficos que Lacan usa em seus seminários (os do desejo, I, II e III, o do sujeito, L),
ilustram e são, ao mesmo tempo, metáforas. Não possuem rigorismo matemático ou geométrico.
Incluem vários níveis simultâneos de leitura. Lacan pensa que uma das vertentes do desejo
humano é que o sujeito procura se constituir em objeto do desejo de seu semelhante, o outro, em
primeira instância, a mãe. Desejo de (a). Desejo como (a) e que (a) nos tome como objeto de seu
desejo. Ali estaria uma das bases do amor (e se isto não ocorrer, do ódio). A criança quer ser o
desejo da mãe; como esta deseja um falo, a criança deseja ser o falo, para se constituir no objeto
do desejo da mãe. Esta estrutura é definida, em Lacan, como axiomática. O narcisismo remete a
uma topologia e a uma estrutura. É assim e acabou, não há livre arbítrio diante disto, a estrutura
se prende como uma máscara de ferro.
A outra vertente do desejo humano vem do grande Outro. Esta incidência é múltipla. É o
Outro quem dá, desde o início, as palavras para desejar. Quando o bebê tem uma necessidade, a
mãe a inscreve, junto com a satisfação desta necessidade, em um universo de linguagem. A
palavra que nomeia a coisa também encerra o gozo e o amor da experiência. O Outro indica o
que desejar. Sua mensagem aparece no sujeito de maneira invertida quando é expressa como
desejo próprio.
Há um duplo desejo de reconhecimento: pelo outro e pelo Outro. Porém, assim como
estrutura o sujeito, a linguagem confere ao desejo uma das características essenciais: o efeito de
deslocamento metonímico de um para outro objeto. Recordemos que, na metonímia, um
significante sempre remete, por contigüidade, a outro significante. Trinta velas, diz Lacan,
substitui o significante "trinta barcos". A linguagem transcorre neste contínuo deslocamento. O
inconsciente, ao acompanhar a estrutura da linguagem, repete este fenômeno. Isto leva a um
deslocamento interminável do objeto do desejo.
O objeto a, objeto da pulsão, a cria e é seu efeito. Neste objeto a, que Lacan vincula ao
fantasma, é onde a pulsão busca sua descarga e o êxito da satisfação. Quando o ser humano
deseja beber, o líquido satisfaz o nível pulsional, mas o desejo fica, inevitavelmente, insatisfeito.
Salta desta para outra experiência, em uma circulação metonímica incessante. O significante liga
o desejo a outro significante, mas o que pode um significante fazer senão se deslocar, sem nunca
se deter? Só dá um sentido em um corte sincrônico fugaz que, rapidamente, retoma sua marcha.
Assim, desejamos porque falamos. A linguagem é a estrutura que nos torna desejantes e, ao
mesmo tempo, o modelo do desejo. Lacan usa ambos os critérios, simultaneamente. O desejo
Fica, ao mesmo tempo, inscrito e oculto na demanda. Está antes dela. Na realidade, o que se
demanda é ser amado, como sucede na análise, tanto no paciente como no analista. O Outro
regula esta relação, assim como todas as relações. Porque há linguagem, expressa-se a demanda
de amor onde está o desejo de reconhecimento. Este, por efeito de ordem significante, nunca
pode ser preenchido. Aparece sempre de outra forma. Assim como o dicionário explica um
termo com outro e este remete, por sua vez, a um terceiro, um significante só encontra seu
sentido na cadeia de significantes.
No chiste do familionário, criou-se um neologismo que causa riso, porque há uma referência
ao tesouro do significante (familiar, milionário). O Outro está presente, fornecendo os elementos
e como ponto de ancoragem, para que surja o sentido oculto. O chiste, eis sua diferença com o
cômico, está escondido no significante, irrompendo por seu jogo.
Lacan pensa que o sintoma neurótico ou o sonho, do mesmo modo que o chiste, é a
metonímia do desejo. Este se esconde neles mas não tanto que não seja alcançado.
No início da vida, diante de uma situação biológica de tensão e desprazer (por exemplo, a
fome), aparece no mundo externo 0 objeto que a satisfaz. A criança, antes de que este objeto
existisse; está em uma situação de necessidade que exige ser satisfeita, e esta se produz em um
registro basicamente orgânico.
O mundo externo propõe-lhe um objeto que ele antes não buscava. Este objeto, junto com a
sensação de satisfação, transformar-se-á em uma marca mnêmica, constituída pela experiência
da necessidade, ligada à representação do objeto que satisfaz. A marca mnêmica, com seus dois
componentes, passará a fazer parte do cenário do repertório pulsional do bebê.
Lacan chama o objeto do desejo de objeto a. Como tal é, ao mesmo tempo, um objeto
perdido e a causa e objeto do desejo.
Pelo modo como Lacan considera o narcisismo, surge a idéia de que o desejo é uma busca da
satisfação primária. Na obra lacaniana, estas proposições têm valor de axiomas que se
enquadram na conceptualização global do sujeito, em sua relação consigo mesmo e com o outro.
Mas, além da busca primária, nas sucessivas buscas há, por parte da criança, uma intenção de
significar o que deseja. Este ingresso na significação, mediado pela linguagem, é
necessariamente incompleto, o que torna impossível reencontrar o júbilo primário.
De certa maneira, ser o único objeto do desejo do outro transforma-se, na criança, em uma
negociação da essência fundamental do desejo, que é a falta. Recusa tanto esta dimensão de falta
como a falta no outro, ao se apresentar, a si própria, como objeto desta falta. Inversamente,
reconhecer a falta no outro, como algo impossível de preencher, é o que faculta ao sujeito notar
a irreversibilidade de sua própria falta. Este é o primeiro passo para o desenvolvimento edípico.
Na dialética do Édipo, a criança deve abandonar a posição de objeto do desejo, ocupando,
portanto, uma posição na qual passa a ser sujeito do desejo de objetos substitutivos.
Antes de entrar no assunto, impõem-se alguns comentários gerais sobre a relação entre a
teoria psicanalítica e a técnica. Quanto mais precisa for a teoria da técnica, a prática clínica, ao
se ajustar a ela, deverá percorrer um caminho mais científico e seguro. Não pode ser
subestimada, portanto, a intenção de estabelecer as categorias da técnica, seus parâmetros e
operações, que são deduzidos a partir de concepções mais gerais, como a do inconsciente, a
transferência ou a estrutura do conflito. Os princípios da associação livre, a análise dos sonhos, a
neutralidade do analista, a análise da transferência, universalmente aceitos, servem para
encaminhar a tarefa clínica do analista, tornando-a mais eficaz. Mas, assim acontece com as
constituições dos países. Existe a letra, e também sua aplicação. Não é irrelevante que a letra
seja adequada, a melhor possível. Porém, depois virá sua aplicação e, então, o problema será
dirimido na saúde mental do analista, em sua capacidade, integridade e análise pessoal.
Qualquer constituição pode ser subvertida em sua aplicação e qualquer teoria da técnica pode ser
invocada para os piores excessos e erros.
Interessa-nos discutir e apresentar as idéias de Lacan, no plano da teoria da técnica.
Estabelecemos, oportunamente, a diferença entre teoria psicanalítica e movimento psicanalítico.
O movimento inclui muitos problemas de diferentes níveis: conflitos das pessoas, características
das instituições como fenômenos sociais e, evidentemente, questões ideológicas gerais que se
misturam com as do movimento. Também na teoria incidem alguns destes fatores.
Lacan mudou vários dos critérios técnicos clássicos da psicanálise freudiana. Isto, entre
outras coisas, foi um dos motivos manifestos de sua expulsão da Associação Psicanalítica
Internacional. Ele pensa que no discurso do paciente pode haver palavra vazia e palavra plena.
Há algo que se omite no discurso, quando o paciente recorre ao "molinete de palavras",
esperando a gratificação narcisista de seus conflitos ou envolver neles o analista. O imaginário é
mantido, ficando obstaculizado o acesso à verdade. Para tirar o paciente das fascinações
especulares, Lacan apela mais à interrupção da sessão do que à interpretação. Crê que um corte
adequado conseguirá, através do ato, um efeito simbólico, instaurando o Outro e a palavra plena.
Procura-se desalienar o sujeito de suas imagos, restaurando a verdadeira história, os
determinantes de seu ser, os enganos do sintoma. O ato acentua, rompe, causa uma saída do
imaginário; leva à palavra plena.
As considerações técnicas de Lacan são solidárias com a hierarquia que a linguagem técnica
lhe dá (tesouro do significante) em sua interação com o registro imaginário (identificação
narcisista).
Um último conceito, que queremos introduzir nesta síntese da técnica lacaniana, é a idéia do
Sujeito Suposto Saber. Pareceria, como o nome diz, que o analista sabe tudo o que o paciente
ignora.
Voltemos ao trabalho de Lacan, "Intervention sur le transfert", em que assenta as bases para
algumas das reformulações que acabamos de comentar.
O caso Dora pode ser reexaminado, à luz destas idéias, como uma sucessão de inversões
dialéticas. "Trata-se de uma escansão das estruturas na qual a verdade se transmuta para o sujeito
e que não toca apenas sua compreensão das coisas mas sua própria posição, enquanto sujeito, do
qual os 'objetos' são função. Isto é, o conceito da exposição é idêntico ao progresso do sujeito,
ou seja, à realidade da cura" (1951, p. 207).
Na epicrise do caso Dora, Freud define a transferência como o obstáculo contra o qual se
chocou a análise. Lacan estuda este tratamento, destacando as etapas através das quais é
decidido seu destino. Cada momento da análise corresponde a um desenvolvimento de Dora, ao
qual Freud contesta com uma inversão dialética. O processo se detém quando cessam estas
inversões. Acompanhemos Lacan em sua exposição.
Freud responde com a primeira inversão dialética: chama Dora, para observar que parte toca
a ela nas desordens daqueles de quem se queixa. Isto dá lugar a uma segunda formulação da
verdade. Dora admite sua cumplicidade com os amantes. Revela uma relação edípica, na qual
aparece manifestamente ciumenta da relação entre o pai e a Sra. K.
Freud responde com uma segunda inversão dialética. Não é o pretenso objeto do ciúme que
dá seu motivo, mas mascara com ele um interesse pela pessoa do sujeito-rival, expressado de
forma invertida. Isto é, Freud sugere que Dora não sente ciúme de seu pai por sua relação com a
Sra. K, mas da relação desta com seu próprio esposo.
Isto leva Dora a uma terceira formulação da verdade. A atração de Dora pela senhora K.,
que deveria ter suscitado em Freud uma terceira inversão dialética: como é que, se você tem em
tão alta estima esta pessoa, não sente como uma traição o jogo de intriga que a senhora K. fez
contra você?
Esta terceira inversão poria a descoberto a escolha de objeto homossexual de Dora e o valor
de "mistério" que a sra. K. tem para ela, que representa por sua vez o mistério de sua própria
feminilidade corporal.
Assim, Dora se identificara com o Sr. K e com Freud e sua relação com ambos "manifesta
essa agressividade, na qual vemos a dimensão própria da alienação narcisista" (Ibid., p. 211).
Desvendar.este fenômeno teria evita- do a interrupção do tratamento.
Freud, por seu turno, diz que: 1) o erro foi não interpretar a transferência; 2) poderia haver
uma identificação homossexual.
Das duas afirmativas, Lacan sintetiza que é a dificuldade de Freud para interpretar a
homossexualidade de Dora (por preconceitos admitidos pelo próprio Freud), o que precipitou a
transferência negativa. É devido à contratransferência que Freud não consegue ver o conflito em
sua paciente.
Lacan assim define a transferência: "Ela não pode ser considerada como uma entidade
totalmente relativa à contra-transferência, definida como a soma dos preconceitos, das paixões,
das perplexidades, até da insuficiente informação do analista, naquele momento do processo
dialético? O próprio Freud não nos diz que Dora teria podido transferir para ele o personagem
paterno, se ele tivesse sido bastante tolo para acreditar na versão das duas coisas que o pai lhe
representava?
Dito de outra maneira, a transferência não é nada real no sujeito, mas o aparecimento, em um
momento de estancamento da dialética analítica, dos modos permanentes segundo os quais
constitui seus objetos" (1951, p. 214).
A interpretação da transferência consiste, sob este ponto de vista, em uma operação que
procura encher, com um embuste, o vazio deste ponto morto. "Mas este embuste é útil, pois,
mesmo falaz, volta a lançar o processo" (lbld.).
Esta perspectiva é, mais tarde, completada. Em seu seminário Les quatre concepts
fondamentaux de la psychanalyse (1964), Lacan rediscute o tema da transferência e expressa seu
ponto de vista, relacionado às diferentes teorias que procuraram explicar o fenômeno.
Sobre aqueles que propõem que esta seja produto da situação analítica, opina: "Mesmo que
devamos considerar a transferência como um produto da situação analítica, poderemos dizer que
esta situação não poderia criar, em sua totalidade, o fenômeno, pois; para produzi-lo, seria
preciso que houvesse, fora dela, possibilidades já presentes, que proporcionariam sua
composição, talvez única".
"Isso não exclui, de modo algum, quando não há analista no horizonte, que possa haver
então, propriamente, efeitos de transferência" (Ibid., p. 133).
O autor lembra que, em seu informe de Roma, propôs que o inconsciente é a soma dos
efeitos da linguagem. A transferência, de acordo com as proposições de Freud, expressa-se em
um interrupção do discurso, em um fechamento do inconsciente. Mas, por isso mesmo, a
presença do analista deve ser vista como uma expressão de sua existência. Acrescenta:
"Podemos chegar a crer que a opacidade do traumatismo - tal como é mantida em sua função
inaugural pelo pensamento de Freud, isto é, para nós, a resistência da significação - então é
considerada, principalmente, como responsável pelo limite da rememoração. Depois de tudo,
poderíamos nos encontrar, comodamente, em nossa própria teorização, reconhecendo que então
se dá um momento muito significativo da transição de poderes do sujeito ao Outro, ao que
chamamos de grande Outro, o lugar da palavra, virtualmente o lugar da verdade" (Ibid., p. 137).
Critica duramente a psicologia do ego e sua proposta de se aliar à parte sadia desta instância
psíquica. Propõe que, quando se apela ao ego, ignora-se que é exatamente esta parte que está
interessada na transferência e que, portanto, é quem "fecha a porta", deixando "a bela"; (o
inconsciente) atrás dela.
Recordemos, por último, a proposta freudiana relativa a que a transferência é uma das
expressões da compulsão à repetição e, definitivamente, da pulsão de morte. Fiel à sua teoria da
estrutura inconsciente, Lacan postula que a repetição é um efeito significante, não se reduzindo a
um fenômeno emocional.
O jogo do carretel (Freud, 1920) simboliza a repetição "... mas não, em absoluto, a de uma
necessidade que apelaria para o retorno da mãe e que se manifestaria simplesmente no grito. É a
repetição da partida da mãe como causa de uma Spaltung no sujeito, superada pelo jogo
alternativo, fort-da, que é um aqui ou ali, não indicando, em sua alternância, nada mais do que
ser fort de um da e um da de um fort" (Ibid., p.72).
"... a psicanálise nos mostra, sobretudo na fase de partida, que o que mais limita a confiança
do paciente, sua entrega à regra analítica, é a ameaça de que o psicanalista seja enganado por
ele" (Ibid., p. 238).
O paciente retém certos elementos, para que o analista não vá depressa demais. "Em torno
deste enganar-se, que alberga a balança, o equilíbrio, deste ponto sutil, infinitesimal, que quero
acentuar" (Ibid. ).
"O sujeito sabe que não querer desejar possui, em si, algo tão irrefutável como uma fita de
Moebius que não tem avesso, isto é, que, ao percorrê-la, chegar-se-á, matematicamente, ao lado
que se julgava o oposto" (Ibid., p.239).
"É neste ponto de encontro que o analista é esperado. Como o analista supõe-se que saiba,
também se supõe que venha ao encontro do desejo inconsciente" (Ibid.). Neste ponto se articula
a transferência.
Reiteremos que o sujeito está alienado na ordem significante. Porém, a alienação está
essencialmente vinculada ao par de significantes. Não é a mesma coisa, haver dois ou haver três.
Quando há dois, um dos termos fica eclipsado, e isto, essencialmente, constitui a alienação.
Quando há três, pode se estabelecer uma relação circular entre eles.
Devemos, agora, nos perguntar qual é, para Lacan, o objetivo último da análise. O que é
proposto com sua técnica, já que renuncia à utilização da interpretação transferencial para seus
fins. Procuremos esclarecê-lo. No seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
analisa, minuciosamente, este assunto. Sua perspectiva, eminentemente estruturalista e
lingüística, portanto articula seus fins terapêuticos em consonância com o enfoque, a partir do
qual é definido o sujeito e o inconsciente.
No seminário mencionado, Lacan diz que, assim como Descartes introduziu o sujeito no
mundo, Freud disse ao sujeito que onde estava o sonho, era onde era ele mesmo.
A frase Wo es war, soll Ich werden não significa, como geralmente se traduz, que o ego deve
desalojar o id. Quer dizer que onde isso (rede de significante) estiver, está o sujeito. "Isso" é a
rede de significantes, o inconsciente, o sonho. Diz Lacan: "Mas o sujeito está ali para se
encontrar de novo, ali onde era (Ia où c'était) - antecipo - o real" (Ibid., p. 56).
Como se faz para que o sujeito advenha onde estava a rede? "E para saber que se está ali, não
há mais do que um único método: indicar a rede, e como é indicada uma rede? Volta-se,
regressa-se, cruza-se seu caminho, isso coincide sempre da mesma maneira, e, no Capítulo
sétimo de A interpretação dos sonhos não há outra confirmação de seu Gewiszheit do que
essa..." (Ibid., p. 56).
Dos escritos de Freud, em particular da carta 52 a Fliess, pode-se deduzir que, de forma
latente, Freud já tinha notado que a rede não pode ser constituída ao acaso. "Os significantes não
puderam se constituir simultaneamente, mas devido a uma estrutura muito definida da diacronia
constituinte. A diacronia é orientada pela estrutura" (Ibid. ).
Porém, isto não é tudo. A verdade, inscrita na ordem significante, requer, para seu
desvelamento, o ingresso do indivíduo no registro simbólico, o que, como vimos, exige um certo
tipo de vínculo intersubjetivo.
O acesso à "palavra plena" permite a estruturação do sujeito em sua verdade como tal. No
seminário sobre Les écrits techniques de Freud, Lacan diz: "A palavra plena é aquela que indica,
que forma a verdade, tal qual ela se estabelece no reconhecimento de um pelo outro. A palavra
plena é a palavra que faz ato. Depois de sua emergência, um dos sujeitos já não é o que era
antes. Por isso esta dimensão não pode ser eludida na experiência analítica" (1975, p. 168).
A experiência analítica convoca, portanto, a palavra plena. Esta aparece na hiância, nas
dificuldades do discurso.
Para afastar a tarefa analítica do doutrinamento intelectual, deve-se recorrer, mais uma vez, à
noção de transferência. Esta é que abre a hiância que permite o acesso à palavra plena. "A
transferência eficaz de que falamos é, simplesmente, em sua essência, o ato da palavra. Cada vez
que um homem fala a outro, de modo autêntico e pleno, há, no próprio sentido do termo,
transferência, transferência simbólica: algo acontece, que modifica a natureza dos dois seres que
estão presentes". "Todavia, esta é uma transferência diferente da que se apresentou
primeiramente na análise, não apenas como problema, mas como obstáculo" (Ibid.). Lacan está
se referindo à transferência, situada no plano imaginário. Diz que, apesar de tudo o que se tem
discutido sobre a transferência, ainda não está clara, nem sua natureza e, portanto, nem a
natureza e os recursos da cura analítica. Questiona, a seguir, as proposições referentes ao papel
do superego no processo analítico, destacados por Strachey (1934), em seu clássico artigo "The
nature of the therapeutic action of psychoanalysis". Lacan propõe, para resolver as contradições
que surgem desse trabalho, considerar a questão das relações entre analisado e analista, no plano
do ego e do não-ego, isto é, no plano da economia narcisista do sujeito (1975, p. 173). Em sua
opinião, a transferência é plurivalente, intervindo nos três registros: imaginário, simbólico e real.
Bibliografia básica
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(1975) Los escritos técnicos de Freud. Buenos Aires: Paidós, 1981.
NOTA
1) As citações dos Ecrits (1966) correspondem à l0a ediçào em espanhol, 1984. Traduçào de
Tomás Segovia e Armando Suárez. México: Siglo XXI.
FONTE
BLEICHMAR & BLEICHMAR. A Psicanálise depois de Freud. Ed. Artmed