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MARTINS, M. (2007) Pedagogia neurocientífica? Alfabetizar: a abordagem pedagógica em
diálogo interdisciplinar. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do
Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
Poderemos supor que o significado equivocadamente atribuído, pelo uso, ao
termo alfabetização advém da compreensão implícita de que haverá de se ter um
produto de todo modo de qualidade. Conseqüentemente, haveria uma didática uma
metodologia implícita e um a priori, um método a ser aplicado para efeito desse
sucesso, mais ainda, pressupõe o sucesso na aprendizagem na dependência na
escolha do método.
È possível identificar nesses procedimentos de ensino a contaminação exclusiva
dos aparatos de teorias psicológicas da aprendizagem. Ao menos duas foram
evidentes: uma o behaviorismo como a expressão psicológica do realismo
científico e uma outra, decorrente de um grupo de didáticas ligadas ao
experimentalismo‐estruturalismo um certo relativismo positivo científico. Entre
nós tem sido a predominante o behaviorismo, queremos dizer a predominante nos
processos de tomada de decisão quanto às formas de intervenção e ao emprego
dos meios de ensino. É possível admitirmos que houve um significativo demorar‐se
nessa prática docente (praticamente 80 anos do século XX) que inclusive retardou
a iniciação à escrita e à leitura em virtude da força ideológica de marcadores
considerados como pré‐requisitos inflexíveis para essa iniciação ao conhecimento
da forma escrita do idioma falado.
A ênfase desses fundamentos nos ensinou predominantemente a olhar sobre e
exclusivamente no quê ensinar, tomando o idioma particularmente por uma razão,
a sonora, não ressaltando o idioma dominado como um repertório inteligente de
significações e representações dos sentidos atribuídos pelos entes, seus usuários.
Colocar em foco a razão sonora do idioma não poderá significar a limitação da
produção de interação comunicativa, e a produção de mais comunicação. O signo
lingüístico construído historicamente é material da constituição da nossa
humanidade.
Ao compartilharmos da produção de conhecimento especialmente a partir dos
anos 70, identificamos novos acréscimos ao repertório teórico crítico para a
interpretação do fenômeno aprender a ler e escrever. Conhecemos melhor a
descrição acerca do sujeito do ensino. As ricas descrições sobre os processos de
desenvolvimento nos ensinaram sobre a natureza desse desenvolvimento,
tornando mais específico para nós quem é esse sujeito queremos dizer:
descrevendo‐o melhor para podermos construir e projetar intervenções docentes.
Há inúmeros exemplos dessas contribuições. Conhecemos melhor a descrição
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diálogo interdisciplinar. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do
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acerca p.ex da evolução do grafismo. Sabemos melhor que para alcançar‐se a
produção alfabética participam diferentes e integradas condições. Pode‐se admitir
que se o traçado se constitui inicialmente na garatuja, uma produção espontânea,
progride para a cópia e reprodução de modelos alcançando a configuração de
letras num harmonioso movimento visual práxico associado à constituição de
representações, a imagem mental. Fortalecendo essa contribuição poderemos
também evocar as explicações acerca da plasticidade cerebral, a identificação da
memória‐memórias. Nesse caso poderemos citar a memorização de sons e imagens
visuais adquiridas na relação fonemática grafemática e compreensivas à relação
que o sujeito escrevente estabelece entre: o referente, a coisa, ou objeto
extralingüístico, isto é, aquilo que o sujeito identifica como um fenômeno de
alguma permanência que poderá ser identificado no seu sistema simbólico
lingüístico como representante de uma referência. Vê‐se, uma organização de
sensações num inteligente processo de organização perceptiva. Queremos dizer
percepção como a constituição de um estado de consciência, a consciência de.
Os estudos acerca do desenvolvimento da linguagem oral, a matéria prima no
trabalho de alfabetizar, não ficaram restritos à neurofisiologia estudos necessários
mas não suficientes para explicar todo o complexo fenômeno da constituição das
representações tanto orais como escritas. Ultrapassou‐se essa descrição necessária
na direção da compreensão das interações entre a prática humana não verbal, a
captação do significado existencial dessa prática e a correspondente representação
dessa prática em um sistema de sinais, lingüístico, que se constituirá no repertório
de representações. Aprendemos que a construção de significações representadas
na linguagem são resultado e resultante da exposição do sujeito ao meio sócio‐
lingüístico. Podemos afirmar que os estudos sociolingüísticos reorientaram nossa
compreensão para a diferença entre: criança de código restrito de sujeito não
verbal e conseqüentemente o papel de protagonista da linguagem oral na
aprendizagem da sua representação na escrita. Temos então a representação ao
menos em dois níveis. Um o da apreensão dos significados das situações da prática
social representadas e fixadas na linguagem oral e por ela expressa; outro o do
entendimento que a produção da escrita, da grafia a essa representação se remete
ao compreender o que é a escrita, o sistema de sinais. Ou seja, não é apenas a
reprodução de sons. Está plena de significados colhidos na existência. Assim um
sistema de representações agora na forma alfabética.
Como esse repertório partilha do alfabetizar?
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UM ENSAIO DE APROXIMAÇÃO
“GB”, sexo masculino, nascido em Jan./96 em Pernambuco de parto normal sem
intercorrências, apesar de numa internação hospitalar constar anóxia neonatal.
Peso ao nascer de 3.550 g; primeira convulsão com 1 mês e quinze dias de vida,
iniciou uso de medicação (fenobarbital). Aos 5 meses nova convulsão. Aos 10
meses veio para São Paulo. Em 2000, aos 4 anos, apresentou crises convulsivas
subintrantes controladas com medicação após internação em UTI pediátrica. Mãe
refere que tios paternos têm convulsão. Ao exame físico apresenta fáscies
sindrômica, implantação dentária irregular, palato em ogiva, mantém a boca
aberta. Começou a andar aos dois anos e dois meses de idade e a falar com 5 anos.
“GB” tem sido acompanhado por assistência médica neuropediátrica e controle
constante por meio de exames. Dentre os exames mais relevantes à ressonância
magnética cerebral apesar de no laudo do radiologista constar como normal a
neurologista identificou discreta atrofia cortical posterior à esquerda e o
eletroencefalograma demonstrou atividade básica discretamente desorganizada às
custas de aumento da atividade rápida, surto de ondas lentas independente de
projeção em região temporal bilateral.
Aos 7 anos, em 2003, quando do início do atendimento na Escola na 1ª série a
queixa pedagógica era “não está aprendendo a ler e escrever; apresenta problemas
de fala, coordenação motora, concentração. Ele baba.” A expectativa da professora
é que “ele não vai aprender” é professora experiente, 25 anos de magistério, e
grande vivência em alfabetização.
“GB” em geral parece não se inteirar do que se propõe na atividade. Em
atividades do cotidiano escolar, ao se trabalhar com o objetivo de produção da
escrita, mediante conversas acerca do objeto apresentado, e embora os colegas lhe
dissessem que o que se apresentava era, “uma bola e para escrever começava com
a letra b” ele dizia: “brinquedo” certamente referindo‐se a bola como pertencendo
à categoria de brinquedo. Freqüentemente repetia aquilo que ouvia como um eco;
fez vários rabiscos e círculos que segundo ele eram: uma casa, uma boneca, um
helicóptero e uma boca (em. de 16/04/2003)
À comanda para copiar da lousa os combinados, não executa a instrução. À
orientação para desenhar a partir de dois traços em uma folha., observa o desenho
que fizera diz que gosta da escola, e vinha à escola para brincar. Completa que
gostava de comer e que vinha para as sessões de assistência pscopedagógica para
conversar. Nesse momento pára de falar muda o assunto e diz que a mãe batia
nele; mandava que calasse a boca e que jogaria seus brinquedos no lixo. Seu
pensamento não se mantem focado. Recupera episódios fortuitos talvez recentes
mas ao que parece relevantes para si. Dispara informações Conclui o ano letivo de
2003 submetido ao teste “Raven” é identificado como intelectualmente deficiente.
Ao executar como os demais colegas, a montagem do seu crachá registrando
nele o seu nome, o faz com traçados primitivos (15/04//04 fig. 01). Não reconhece
o crachá com seu nome preparado pela Psicopedagoga (30/04) (os demais alunos
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do grupo reconhecem). Reage agressivamente ao ser provocado pelo colega que o
impacientou pelo que fizera.
Na escrita do próprio nome (21 de Maio) com massa de modelar: só fez
“bolinhas” Suas representações estão sincréticas em virtude de não relacionar a
massa de modelar para efeito do seu objetivo.
No trabalho com esquema corporal, (em 28/05) com apelo para o ritmo,
conhecimento do próprio corpo na montagem de um corpo com diversos pedaços
de corpo retirados de revista para montagem de um corpo “esquisito” precisou de
ajuda para recortar as figuras, não conseguia posicionar seu corpo diante da
revista, recortar em volta das figuras. Algumas vezes partiu a figura ao meio.
Utilizou a esmo a letra “A” para escrever o seu nome
Em Junho 2004 (abaixo) ainda apresenta rabiscos de movimento circular e
movimentos de vaivém (Greig, 2004), sem controle visual (esse controle começa
por volta dos dois anos) sua intenção não está na forma mas apenas no ato. Há
repetição de gestos gráficos sem compromisso com a figuração.
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Em Julho encontramos a presença de rabisco em vaivém e o surgimento de
traços verticais
A escrita de palavras (em Agosto 13) retiradas da história “Galinha Vermelha”,
com letras móveis; tiras e espaços certos para a inclusão de letras para a escrita de
galinha, onça,... Não surtiu o efeito esperado. Reconhece‐se que “GB” não executou
porque sequer pode compreender as relações contidas no comando do exercício.
Em Setembro (19.ª sessão) escreveu o seu nome com o auxílio de um modelo
mas era preciso apontar letra por letra. Inverte o U e o V inverte também números
consegue identificar algumas letras nessa sessão, especialmente na atividade de
corresponder a palavra à sua letra inicial.
Em 17/09 escreve seu nome sem o modelo só colocou as vogais A e E Teve
dificuldade em encontrar as letras da palavra elefante. Consegue ligar às palavras a
letra inicial. Não escreveu o nome do animal preferido. Está pré‐silabico segundo a
hipótese da psicogênese da escrita. Utilizou basicamente as letras “A” e “E” e
algumas garatujas. Não identifica letras Precisa da linha para se orientar. Quando
ouve qual é a letra casualmente acerta e registra na folha. Suas respostas começam
a nos ensinar que ele procura em alguns raros momentos, por imitação,
corresponder às demandas, mas sem estratégias de organização da tarefa sem ser
um comportamento permanente.
Na atividade de dobradura e colagem, (em 08/10) sob o tema: primavera. Não
foi capaz de produzir a dobradura compreender as instruções e coordenar os
passos da construção da dobradura. Em 22/10 frente à atividade de
reconhecimento de letras não consegue realizar a tarefa. Permanece pré‐silábico.
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Em Março 20005 consegue produzir uma cópia.
Nessa cópia já adota a reprodução de letras sob o comando da ordem. O traçado
é trêmulo e conforme o exercício se repete a letra vai perdendo a forma original
tornando‐se quase irreconhecível.
Em Setembro de 2005 exercício de cópia reprodução
A reprodução da letra “S” acaba se confundindo no traçado com o numeral “5” o
traçado está mais firme em 02 /2006 Cópia com traçado mais firme mas
entretanto não adota o modelo letra cursiva
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o mesmo se dá na cópia de 04 de 2006
No ano de 2006 pode‐se reconhecer a cópia e reprodução de traçados de
algumas letras de seu nome, traçado esse, “trêmulo” irregular, e em algumas outras
situações a reprodução, cópia, de silabas demandadas por estímulos na classe.
Significando a aprendizagem escolar de GBSS
Ao estudarmos o caso de GBSS podemos encontrar as significações que
buscamos compreender nas situações comuns de ensinar aprender a ler escrever.
Como apontamos na introdução ao estudo reconhecemos a complexidade,
interatividade e complementaridade de áreas de conhecimento que abarca o
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exercício de alfabetizar.Iniciemos por destacar na totalidade de atos inteligentes
presentes nessa aprendizagem p. ex. a representação na escrita por meio de um
sistema simbólico o código alfabético Essa representação evoca simultaneamente:
a linguagem oral dominada o primeiro recurso simbólico, repertório que contém as
significações atribuídas pelos entes, seus usuários. Essas são significações que
preservadas no sistema semântico‐léxico disparam a possibilidade da produção da
interação comunicativa. Se a linguagem oral é o ambiente para a transposição para
a forma escrita, acrescentaremos ai as funções executivas: a praxia e a reprodução
do signo; o conhecimento visual e a organização da imagem mental em
configurações permanentes das formas dos grafemas
Ao nos aprofundarmos. na expressividade do registro ortográfico fica evidente
a presença da unidade “relação fonema grafema” de grande relevância não
obviamente para superdimensionar o som mas para reafirmar a atividade de
reconhecimento decifração das unidades alfabéticas compostas numa certa
seqüência para dizer de uma intenção de uma idéia. Estes breves
destaques.anunciam e nos ensinam acerca das dificuldades de “GB”.
A análise e síntese aditiva da composição dos sons por mais evidente que ela
seja uma relação obvia na forma de representação escrita, escrever não é
obviamente a reprodução de sons, mas, a identificação sonora mediante as marcas
alfabéticas de um sentido culturalmente atribuído àquela palavra. Portanto uma
representação sonora que ganha a forma ortográfica, mais do que apenas
reprodução de sons. Nessa representação o sujeito busca referência no seu sistema
semântico o que reafirma a circunstância da dificuldade de GB que conforme
sabemos sua linguagem oral sofreu na sua constituição pelo atraso na aquisição
inicial. GB não detinha ao mesmo tempo dos demais sujeitos essas representações
disponíveis.
Podemos identificar por diversos momentos o modo reiterativo pelo qual GB se
expressa graficamente por movimentos circulares dispersos na folha ou pela
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garatuja. Na idade de 7‐8anos. O que é segundo a descrição, algo comum em torno
dos dois anos. A garatuja representava em um dos momentos o seu nome. Seu
traçado primitivo é circular por mais de um ano. Em Julho de 2004 aparecem
traços verticais. A oralidade restrita acompanha os registros gráficos de GB em
geral apartada do contexto e do grupo com o qual ele convive cotidianamente. Com
isso queremos dizer que GB produz representações gráficas que não sendo
reconhecíveis por sua forma não nos auxiliam no reconhecimento do objeto que se
quer representar já que linguagem oral não completa a descrição da sua intenção.
Isso o acompanha na aprendizagem da escrita. Interessa‐nos destacar que na
produção ortográfica da escrita reproduzimos modelos ao identificar a letra
configurando‐a. Na relação grafema e seu traçado procedemos a uma cópia, cópia
de um modelo que está memorizado certamente, porque distinguimos
configuramos cada objeto pela sua particularidade e o reproduzimos. A
reprodução, cópia de modelos ocorre em substituição à produção gráfica
espontânea o que significa que nos processos de crescimento e desenvolvimento
nos equipamos para aprimorar os modos de representar. O grafismo e sua
evolução oferecem repertório para a compreensão da instalação da condição de
reproduzir graficamente a reprodução do modelo alfabético. Nosso sujeito ganhou
condição de somente reproduzir copiar em Setembro de 2005 traçado que se
aperfeiçoou em Abril de 2006.
Ao trazermos os modelos de representação para registrar o fenômeno da
aprendizagem inicial da escrita em “GB” queremos reafirmar que ao identificarmos
os modos como ele representa pelo grafismo sua intencionalidade aprendemos
melhor acerca da complexa rede presente no ato de aprendizagem inicial da
escrita. O alfabetizador tem à sua frente o compromisso de introduzir na abstrata
arte dos sinais lingüísticos e todas as razões históricas, um sujeito, as suas
particularidades da ordem psico‐social, das suas condições de inteligir, certamente
uma atividade de grande responsabilidade social e por certo não sendo possível
ser desenvolvida por leigos.
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