Vous êtes sur la page 1sur 21

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 109-129 JUN.

2002

GLOBALIZAÇÃO E TRANSFORMAÇÕES
POLÍTICAS RECENTES NO BRASIL:
OS ANOS 19901

Marcus Faro de Castro Maria Izabel Valladão de Carvalho


Universidade de Brasília Universidade de Brasília

RESUMO
Este trabalho discute as transições políticas no Brasil no contexto da globalização. Focaliza os legados políticos que
ofereceram resistência aos processos externos e os “novos freios e contrapesos” que constituíram condições relevantes
para o processo de formulação e tomada de decisão de política nos anos 90. Indica também que o gerenciamento de
políticas macroeconômicas, combinado com o processo político mais amplo, foi uma importante dimensão das transições.
Conclui salientando a existência de desafios no âmbito do tratamento da questão social e dos vínculos entre os âmbitos
interno e externo.
PALAVRAS CHAVE: transições políticas; processos decisórios; política externa brasileira; inflação; política de estabilização.

I. INTRODUÇÃO desempenho insuficiente do governo brasileiro com


relação à proteção dos direitos humanos, incluindo,
Durante uma viagem feita ao Uruguai no início
segundo o ponto de vista de Washington, um fraco
de março de 2000, o Presidente Fernando Henrique
desempenho na promoção da justiça social, como,
Cardoso (FHC), declarou aos jornais que as tarifas
por exemplo, nas áreas referentes às relações
impostas pelo governo americano sobre as
trabalhistas e ao salário mínimo (UNITED STA-
importações de aço e suco de laranja brasileiros
TES OF AMERICA, 2000). Cardoso também suge-
estavam diretamente ligadas às precárias
riu que as informações veiculadas pelo governo
condições sociais em seu país. Cardoso perguntou:
americano eram “muito enganosas” (Folha de S.
“Qual é a responsabilidade que têm os mercados
Paulo, 02.mar.2000), já que levaram em conta o
americanos ou europeus para que não se abram
dólar americano como base de cálculo do salário
as economias, para que se mantenha a situação de
mínimo, ao invés de os valores dos bens de con-
fome aqui?” (Folha de S. Paulo, 02.mar.2000).
sumo locais em reais.
Cardoso também declarou que as políticas comer-
ciais americanas têm uma relação direta com “o As declarações do Presidente Cardoso são um
emprego daqui” e com a “condição de vida” do exemplo de como as transformações da política e
povo brasileiro. da economia mundiais, assim como de outras
condições nos anos recentes – conhecidas como
Estas afirmações do Presidente Cardoso vieram
“globalização” – têm tido um impacto nos proces-
como resposta a um relatório publicado pelo gover-
sos políticos e econômicos das diferentes socie-
no americano, que chamava a atenção para o
dades do mundo. Liberalizações das contas de
capital, que têm sido praticadas em vários países;
o impulso em direção à liberalização comercial
1 Esta é uma versão reformulada do trabalho Globalization desde as rodadas de negociação do GATT; a difusão
and Recent Political Transitions in Brazil apresentada no Seminá- da democracia no mundo – tudo isso tem contri-
rio “Internacional Progress and Challenge of Democra- buído para um aumento da interação ou competição
tization and Economic Liberalization”, realizado sob o patro- de interesses tanto econômicos quanto políticos,
cínio do Kellog Center, na Michigan State University (Michi- não somente dentro dos territórios de Estados,
gan, EUA), de 14 a 16 de abril de 2000; também foi apresen-
mas também entre Estados, e talvez em uma escala
tado no 2º Encontro Anual da Associação Brasileira de Ciên-
cia Política, realizado em novembro de 2000, na Pontifícia de intensidade sem precedentes.
Universidade Católica de São Paulo.

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 18, p. 109-129, jun. 2002


109
GLOBALIZAÇÃO E TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS RECENTES NO BRASIL

Porém, o impacto desses fatos ocorridos no Portanto, serão discutidas neste estudo transi-
ambiente internacional não tem sido o mesmo para ções recentes ocorridas no Brasil, tanto do ponto
todas as sociedades e estados. As diferenças podem de vista do impacto da globalização sobre o pro-
ser explicadas pela presença de condições locais cesso político democrático e sobre as políticas de
específicas que alimentam distintas reações a in- liberalização, quanto do ponto de vista das condi-
fluências externas e que podem modificar a ções políticas domésticas que alteraram o timing
natureza e/ou o timing das transformações po- e a natureza das transformações institucionais.
líticas. Tais condições locais referem-se à maneira
O estudo começará com a análise da formação
como valores ou idéias relevantes para o processo
do modelo desenvolvimentista e da estrutura cor-
de formulação e implementação de políticas e para
porativista de intermediação de interesses nos anos
a organização institucional, por um lado, e os
30 e do populismo macroeconômico nos anos 60,
interesses econômicos e políticos locais, por outro
ressaltando a sua permanência até os anos 80. Em
lado, interagem com as forças econômicas exter-
seguida, será examinado o surgimento, durante a
nas sob instituições e histórias institucionais locais.
década de oitenta, de uma considerável descentrali-
As abordagens históricas neo-institucionalistas zação do poder social e político, com a criação de
relativas às políticas contemporâneas (em oposi- “novos freios e contrapesos” para a operação do
ção às abordagens neo-institucionalistas com base processo de tomada de decisão pública. A seção
na teoria da escolha racional)2 têm oferecido análi- seguinte examina os efeitos dos “novos freios e
ses esclarecedoras sobre a mudança política e as contrapesos” no processo decisório de políticas
transições no processo de policy-making de dife- públicas. Os anos noventa serão abordados, por
rentes nações. Um exemplo bem conhecido é a um lado, pela perspectiva da influência dos “novos
descrição de como a mudança do modo pré- freios e contrapesos” e, por outro lado, mediante
keynesiano para o keynesiano de formulação e a análise das relações entre a política externa e a
implementação de políticas ocorreu nos Estados doméstica. A conclusão ressalta que a transição
Unidos, na Suécia e na Grã-Bretanha, no início da dos anos 1990 resultou, por um lado, na erosão
grande depressão dos anos 30 (WEIR & SKO- do legado do Estado desenvolvimentista e, por
CPOL, 1985). O ponto relevante nesse tipo de outro lado, nas transformações institucionais que
análise, que também será explorado no nosso trouxeram novos condicionantes para o processo
trabalho, é a ênfase dada aos condicionamentos político e para a formulação e implementação de
impostos por políticas públicas, estruturas estatais políticas econômicas.
e “capacidades burocráticas” às ações de mudança,
II. RESISTÊNCIAS E TRANSIÇÕES ANTIGAS
exercidas por grupos sociais, partidos políticos e
governos. A globalização econômica foi em grande parte
o resultado do declínio das condições econômicas
O foco do nosso trabalho são as transições
mundiais que prevaleceram durante o período da
políticas e econômicas relativas à política brasilei-
Guerra Fria. Durante essa fase, fizeram-se esfor-
ra, no contexto da globalização. Consideraremos,
ços em prol da manutenção da paz e da liberalização
por um lado, as resistências oferecidas pelo legado
econômica, por meio das rodadas de negociação
do modelo desenvolvimentista e da estrutura corpo-
do GATT, bem como em prol da manutenção de
rativa que o acompanhou e, por outro lado, as
um regime de taxas de câmbio praticamente fixas
inovações nas orientações ideológicas e de valor,
em todo o mundo, apoiado na assistência financei-
bem como no contexto social e institucional do
ra dada pelo FMI aos governos com dificuldades
país, que têm influenciado o processo de tomada
no balanço de pagamentos. A recusa de europeus
de decisão de políticas públicas desde os anos 80.
e japoneses em comprar papéis americanos, posi-
As resistências e as inovações, por sua vez, serão
cionando-se assim contra os déficits dos Estados
investigadas no contexto de forças econômicas
Unidos, derivados do financiamento inflacionário
exógenas (“supranacionais” ou “internacionais”).
de gastos desse país em programas sociais e na
Guerra do Vietnã nos anos 1960 (COX, 1994),
criou tensões no sistema econômico mundial. Es-
ses fatores contribuíram para o fim do regime cam-
2 Para uma discussão das diferenças entre as vertentes do bial de Bretton Woods. A suspensão da conversi-
neo-institucionalismo (escolha racional, teoria das organi- bilidade do dólar em ouro pelo Presidente Richard
zações e institucionalismo histórico), ver Immergut (1998). Nixon em 1971 foi um grande golpe para o sistema

110
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 109-129 JUN. 2002

econômico internacional. A desregulamentação dos novas condições econômicas mundiais. Contudo,


mercados financeiros preparou o terreno para a enquanto o ambiente econômico internacional
internacionalização da indústria bancária na década sofria modificações, as transições no Brasil fo-
de 80, enquanto a liberalização das contas de capi- ram lentas e vieram atingir um ponto de ruptura
tal em diversos países combinada com os riscos quando a inflação alcançou os quatro dígitos no
inerentes à flutuação das taxas de câmbio conduziu final da década de 1980 (ver Gráfico 1 abaixo).
ao aumento da vulnerabilidade de economias De fato, enquanto a maioria dos países latino-
nacionais, devido ao conseqüente crescimento da americanos já tinha adotado reformas liberais (pró-
volatilidade dos mercados financeiros. Além disso, mercado) no final da década de 1980, o Brasil era
a tentativa de cartelização efetuada pelos países considerado, juntamente com Cuba, um dos dois
produtores de petróleo (OPEP) e a elevação da casos de ajuste tardio no hemisfério (ALMEIDA,
taxa de juros americana sob Paul Volker na década 1996, p. 214). A lentidão da reação brasileira à
de 1980 deixaram muitos países em desenvolvi- globalização pode, em grande parte, ser atribuída
mento, inclusive o Brasil, em graves dificuldades à permanência de estruturas estatais e de idéias e
econômicas. práticas referentes aos processos de formulação
e implementação de políticas legadas do passado.
Diversos estados promoveram ajustes a essas

GRÁFICO 1 – Inflação anual medida pelo IPCA no mês de dezembro (1981-1999)

3000,00

2500,00

2000,00

1500,00

1000,00

500,00

0,00
81

82

83

84

85

86

87

88

89

90

91

92

93

94

95

96

97

98

99
19

19

19

19

19

19

19

19

19

19

19

19

19

19

19

19

19

19

19

Fonte: IBGE (s/d).

A seqüência pela qual o processo político 1930, com a emergência de um poder Executivo
desenvolveu-se ao longo do século XX no Brasil, federal voltado para a promoção da industria-
em seus traços gerais, pode ser descrita da se- lização;
guinte maneira:
(iii) as principais características desse arranjo
(i) durante a República Velha (1891-1930) o duraram cerca de 50 anos – 1930-1980;
processo político dependia do poder de oligarquias
(iv) na década de 1980, novas práticas e con-
rurais e a economia baseava-se na exportação de
dições institucionais começaram a emergir no con-
produtos primários;
texto de uma transição para a democracia, em dire-
(ii) a combinação de governos oligárquicos e ção a uma “descentralização política” que se dis-
de uma economia orientada para a exportação de tanciava muito de uma preeminência político-
produtos primários declina a partir da década de administrativa do poder Executivo federal.

111
GLOBALIZAÇÃO E TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS RECENTES NO BRASIL

O ano de 1930 foi realmente um marco, pois a estaduais criadas durante o Estado Novo. O PTB,
partir daí se iniciou o processo de evolução da por sua vez, estabeleceu vínculos desde a sua ori-
política oligárquica para as políticas populistas cen- gem com a estrutura corporativista instituída en-
tralizadoras, bem como a construção do modelo tre 1930 e 1945 (SOUZA, 1990).
desenvolvimentista de formulação e implementação
Tal estrutura ganhou amplos contornos, incluin-
de políticas. Isso correspondeu, de certa forma,
do dimensões econômicas, político-administrati-
às mudanças ocorridas em outras sociedades, tais
vas e sociais. O aspecto econômico de tal estrutura
como as transições de políticas liberais para políti-
compreendeu quatro tipos de instrumentos: “a)
cas keynesianas intervencionistas, típicas do New
órgãos destinados a equilibrar consumo e produção
Deal nos EUA e do Welfare State na Europa
em setores agrícolas e extrativos, ou reger sua
Ocidental.
importação e exportação; b) órgãos destinados a
O modelo desenvolvimentista caracterizou-se aplicar medidas de incentivo à indústria privada;
por: 1) um papel ativo do Estado na promoção do c) órgãos destinados à implantação, ampliação ou
crescimento econômico por meio da industriali- remodelação de serviços básicos de infra-estrutura
zação rápida; 2) uma política comercial protecio- para a industrialização; [e] d) órgãos destinados a
nista; 3) estruturas estatais regulatórias e financei- ingressar diretamente em atividades produtivas”
ras (crédito oficial), e 4) uma participação direta (idem, p. 99). O segmento político-administrativo
do Estado no processo produtivo, com a criação do corporativismo estava sediado no Departamen-
de empresas públicas. A implementação desse mo- to Administrativo do Serviço Público (DASP), um
delo estimulou o crescimento econômico impulsio- superministério cujos escritórios regionais quase
nado pela produção industrial promovida mediante sempre funcionavam como escritórios políticos
políticas de substituição de importações. para as políticas presidenciais (idem, p. 96-98).
Finalmente, o componente social dessa estrutura
O desenvolvimentismo atravessou diferentes
constituiu-se em um conjunto diversificado de fun-
fases da evolução política do país:
dos de aposentadoria e fundos de seguridade so-
a) o período da transição de uma estrutura política cial supervisionados pelo Ministério do Trabalho
oligárquica descentralizada para a centra- (MALLOY, 1979). A dimensão social da estrutura
lização política (1930-1937); corporativista, juntamente com a justiça trabalhista,
também instituída por Vargas no início da década
b) o período da ditadura civil (1937-1945);
de 40, foram os meios pelos quais se desenvolveu
c) o período do populismo democrático (1946- uma forma de tutelagem política exercida sobre a
1964); população, e chamada de cidadania regulada
d) o período da ditadura militar (1964-1985), e (SANTOS, 1979).

e) o período de reformas de transição (1986-pre- As políticas populistas desde os anos 30 basea-


sente). ram-se na legitimação plebiscitária do poder cen-
tralizador do Presidente da República, comple-
As políticas desenvolvimentistas tiveram o mentada pela supressão da vida partidária (de 1930
apoio ativo dos grupos industriais, dos sindicatos a 1946), e pela hegemonia da coalizão PSD-PTB
e da classe média que se expandia. Tais grupos (1946-1964). Supuseram também a distribuição
foram também produtos das novas condições eco- clientelística de subsídios, rendas e benefícios a
nômicas e sociais resultantes do declínio da hege- grupos econômicos e sociais por meio da estrutura
monia das políticas oligárquicas. A prevalência corporativista, de maneira orquestrada pelo poder
política do novo modelo expressou-se no poder Executivo federal.
dominante exercido no Congresso Nacional pela
coalizão entre o Partido Social Democrático (PSD) As características do modelo desenvolvimen-
e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Essas tista permaneceram por muitas décadas, sendo
foram as organizações partidárias que, de 1946 a mantidas e expandidas durante a fase autoritária
1964, proporcionaram as vias de negociação políti- (1964-1984). Contudo, paralelamente às estruturas
ca com a Presidência da República. O PSD absor- do modelo desenvolvimentista dos anos 1930-
veu e adaptou formas anteriores de exercício do 1950, uma outra característica institucional desen-
poder presidencial, que passaram a ser postas em volveu-se e adquiriu uma relevância crucial desde
prática por meio da estrutura das interventorias meados dos anos 1960. Trata-se do uso político,

112
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 109-129 JUN. 2002

pelo Executivo federal, da administração macro- no Brasil mudou a forma como os governos
econômica e de seus impactos econômicos e so- tratavam os conflitos políticos. Enquanto até a
ciais. Essa nova característica do aparelho institu- década de 1930 as tendências de acirramento do
cional pode ser chamada de uso político da admi- conflito político permaneciam sob o controle das
nistração macroeconômica, que, no caso brasileiro, formas de dominação oligárquica, no Estado
tomou inicialmente a forma do populismo macro- desenvolvimentista elas passaram a ser objeto das
econômico3. O uso político da administração práticas de patronagem, do clientelismo e da ope-
macro-econômica resultou dos comportamentos ração das estruturas corporativistas. Finalmente,
políticos induzidos pela percepção social das durante o regime militar, foram em grande parte
variações das oportunidades de investimento e reprimidas pela coerção e absorvidas pela dinâmica
consumo, que podem ser combinadas com a do “uso político da administração macroeconô-
legitimação plebiscitária do poder presidencial. O mica”. Neste último caso, passaram a interagir as
populismo macroeconômico é o uso político da decisões e medidas de política macroeconômica,
administração macroeconômica em que a ênfase a formação de expectativas e decisões dos agentes
preferencial da política econômica recai sobre o econômicos e as oscilações na opinião pública. A
crescimento e a redistribuição da renda, em influência mútua desses fatores no uso político
detrimento de preocupações com tendências da administração macroeconômica evidentemente
inflacionárias e constrangimentos externos. intensificou-se com a ampliação do sufrágio para
camadas cada vez maiores da população, como
A introdução do populismo macroeconômico
indicado na Tabela 1.

TABELA 1 – Número de votantes como porcentagem da população total (1945-1990)


Ano 1945 1960 1966 1970 1974 1978 1982 1986 1988 1990
Porcentagem 16 22 27 31 35 41 47 52 54 55
Fonte: Souza (1992, p. 197).

O uso político da administração macroeconô- gradual de serviços de estatística e pela padroniza-


mica e o desenvolvimento do populismo macro- ção de métodos contábeis utilizados na gerência
econômico foram favorecidos pela internacionali- das finanças públicas. No caso dos gastos sociais,
zação da Ciência Econômica em seus aspectos essa transformação implicou, por exemplo, a uni-
profissional e acadêmico e pelo crescimento dessa ficação do sistema de seguridade social, revertendo
disciplina como uma área específica de conhe- a tendência de multiplicação das instituições
cimento no Brasil (LOUREIRO, 1997, p. 61-117). previdenciárias, cujo número cresceu constante-
A transformação das múltiplas e potencialmente mente desde os anos 30 até os anos 40 e começou
conflituosas práticas clientelísticas em procedi- a decrescer nos anos 50, até a criação do Instituto
mentos decisórios da administração macroeconô- Nacional de Previdência Social (INPS) em 1967
mica4 foi viabilizada e ampliada pela implementação (MALLOY, 1979, p. 83-145; ver Tabela 2 adian-
te). A criação da Superintendência Monetária e de
Crédito (SUMOC) em 1945 e do Banco Central
3 Alguns autores descreveram a adoção de políticas fiscais e do Brasil em 1964 são outros exemplos de refor-
monetárias na América Latina e deram-lhe o nome de mas que possibilitaram o desenvolvimento do uso
"populismo econômico" (cf. estudos em DORNBUSH & político da administração macroeconômica, inicial-
EDWARDS, 1991). De um modo geral, tais autores destacam
mente sob a forma do populismo macroeconômico
o fato de que o populismo econômico acaba frustrando a
redistribuição da renda que seria corretiva da pobreza, (ver, no Brasil.
por exemplo, CARDOSO e HELWEGE, 1992). Contudo,
outros autores interpretam diversamente as relações entre a
política, tomada em sentido amplo, e a política econômica.
mento burocrático, que concentra a discricionariedade admi-
Hirschmann (1985), por exemplo, defende os efeitos “positi-
nistrativa mediante o foco exclusivo na regulamentação des-
vos” dos usos políticos da inflação.
personificada, neutra em relação a valores e precisamente
4 Tais procedimentos são caracterizados pelo alto insula- quantificada, dos fluxos monetários.

113
GLOBALIZAÇÃO E TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS RECENTES NO BRASIL

TABELA 2 – Evolução do sistema de seguro social no Brasil (1923-1970)


Ano Instituições Segurados ativos Segurados inativos
1923 24 22 991 -
1930 47 142 464 8 009
1940 95 1 912 972 34 837
1950 35 3 030 708 181 267
1960 6 4 222 470 518 088
1970 1 9 545 000 890 000
Fonte: Malloy (1979, p. 102).

Durante o regime militar, o populismo macro- resultado em uma segunda experiência de populis-
econômico utilizou três importantes mecanismos: mo democrático alinhado ao modelo desenvolvi-
(i) a correção monetária, desde 1964; (ii) as mentista. Foi o que ocorreu inicialmente sob a
minidesvalorizações cambiais, desde 1967, e (iii) administração do Presidente Sarney. Porém, essa
as isenções fiscais. Esses foram o que Skidmore fase não teve continuidade, sendo o modelo desen-
(1973, p. 28-31) chamou de “dispositivos volvimentista abandonado nos anos 90.
automáticos”, adotados no processo de adminis-
As novas condições responsáveis pela quebra
tração macroeconômica e constituindo meios ca-
do padrão cíclico da política brasileira foram uma
pazes de evitar a multiplicação das crises políticas
combinação de: (a) reformas institucionais introdu-
durante a ditadura militar, mediante a supressão
zidas no processo de reconstrução do regime de-
de procedimentos políticos competitivos.
mocrático brasileiro, especialmente um federalismo
No final da década de 70, ainda durante o revitalizado, que reinstituiu e ampliou proce-
período da ditadura militar, dado o aumento nos dimentos de competição política, fazendo assim
preços das importações de petróleo, as condições do populismo macroeconômico algo menos facil-
econômicas internacionais já eram altamente desfa- mente gerenciável; (b) o crescimento de um plura-
voráveis à manutenção da linha de políticas desen- lismo de interesses mais diversificado na sociedade
volvimentistas, que se apoiava nos gastos públicos brasileira, devido em parte ao grande crescimento
para promover o crescimento. Contudo, mesmo da população urbana durante as décadas de indus-
diante desse contexto externo desfavorável, o Pre- trialização rápida, e (c) a mudança do populismo
sidente Geisel (1974-1979) decidiu adotar o macroeconômico para o pragmatismo macro-
Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, cuja econômico sob o Plano Real do então Ministro
estratégia insistiu na substituição de importações. Fernando Henrique Cardoso, passando pelo breve
Essa estratégia também incluiu a obtenção de em- interregno do “personalismo plebiscitário” do
préstimos comerciais externos, o que foi inicial- Presidente Collor. Esses pontos serão considerados
mente viável, tendo em vista a disposição do sis- a seguir.
tema financeiro internacional em reciclar petro-
III. O SURGIMENTO DOS NOVOS FREIOS E
dólares (KAPSTEIN, 1994). Porém, ao longo da
CONTRAPESOS
década de 1980, essa estratégia resultou em difi-
culdades econômicas ainda mais graves, originadas Os estudos sobre a transição democrática no
do desequilíbrio do balanço de pagamentos e dos Brasil tendem a enfatizar os entendimentos
impactos fiscais do aumento das taxas de juros realizados entre as elites e as suas conseqüências
norte-americanas sobre os serviços da dívida para a construção de uma ordem democrática
externa brasileira. (O’DONNELL, 1988; LINZ, 1990). Entretanto,
a transição foi também um processo pelo qual o
Apesar dos esforços da oposição ao regime
poder social e político foi amplamente distribuído
militar, a transição democrática em 1985 poderia
a diferentes grupos durante a década de 80. Isso
ter trazido apenas mais um intervalo democrático
introduziu novas condições e tendências na ope-
no contexto de um padrão cíclico de mudança
ração do sistema político, contrastantes com a tra-
política marcado pela alternância de governos civis
dição de centralização política no Executivo fede-
e militares no poder, mantendo-se a constante do
ral, que vinha acompanhando a adoção do modelo
modelo desenvolvimentista. Em outras palavras,
desenvolvimentista e do corporativismo desde os
a transição democrática dos anos 80 poderia ter

114
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 109-129 JUN. 2002

anos 30. Foi esse legado que começou a ser chamada “judicialização da política”5 foram conse-
modificado durante a transição para a democracia qüências relevantes dessas alterações.
nos anos 80. Quatro fatores contribuíram de modo
A multiplicação de grupos de interesse fora das
crucial para a criação de um novo ambiente
estruturas corporativas apresentou-se também co-
institucional. O primeiro foi o das eleições diretas
mo uma mudança importante. Ela começou com
para governadores de estado em 1982. O segundo
a emergência do novo sindicalismo e desenvolveu-
constituiu-se na adoção de uma nova Constituição
se por meio de um intenso crescimento de diver-
em 1988. A hiperinflação, que frustrou o populismo
sos movimentos sociais pelos quais novas questões
macroeconômico, destacou-se como um terceiro
e formas de ação social foram articulados desde a
ingrediente. Finalmente, o quarto elemento que
década de 70.
trouxe ímpeto a essas mudanças foi a multiplicação
de uma grande variedade de grupos de interesse, De acordo com Gohn (1997) pode-se falar de
que se constituíram paralelamente à estrutura três grandes ciclos de movimentos sociais poli-
corporativa. ticamente relevantes no Brasil entre 1972 e 1997.
O primeiro ciclo compreendeu o nascimento de
As eleições de 1982 foram um primeiro passo
associações da sociedade civil e de movimentos
em direção à descentralização do poder do Exe-
sociais, por meio dos quais, de 1972 a 1984, diver-
cutivo federal e forneceram mais liberdade de ação
sos grupos mobilizaram-se, nacional ou localmente,
para negociações subseqüentes relativas à transição
em torno de reivindicações do retorno da democra-
para a democracia. Como foi indicado por Sallum
cia. Exemplos são o Movimento pela Anistia
Jr. e Kugelmas (1993, p. 290): “A realização das
(1977-1978), o Movimento Feminista (1975-
primeiras eleições diretas para os governos esta-
1982), o movimento Custo de Vida-Carestia (1974-
duais em 1982 e a expectativa de que o processo
1980), a Confederação Nacional de Associação
de abertura política prosseguiria sem retrocessos
de Moradores (CONAM) (1982) e a União Nacio-
abalaram a hierarquia existente entre os vários
nal dos Estudantes Secundaristas. Vários desses
centros de poder político”. Assim, desde 1983 o
movimentos permaneceram ativos e desenvolve-
poder dos partidos de oposição cresceu, e o poder
ram vínculos com partidos políticos, como o Mo-
do governo federal de influenciar as políticas locais
vimento dos Sem-Terra (surgido em 1979) com
declinou. As eleições foram, de fato, “[o] rompi-
o Partido dos Trabalhadores.
mento do esquema de controle do poder central
sobre a federação” (ibidem). Isso afetou também O segundo ciclo englobou associações e movi-
o relacionamento entre o Congresso brasileiro e o mentos organizados para lutar por uma pluralidade
não-mais-monolítico poder Executivo federal. Em cada vez maior de interesses e temas no período
resumo, “centros institucionais de poder antes que vai de 1985 a 1989. Aqui estão alguns exem-
subalternos, como os partidos, Congresso Nacio- plos: Movimento Nacional de Meninos e Meninas
nal, Executivos estaduais etc. foram ganhando de Rua; o Movimento dos Índios; o movimento
autonomia em relação ao poder central e maior dos Devedores do Sistema Nacional de Habitação;
representatividade popular” (idem, p. 291). o Movimento Nacional pela Reforma da Educação,
e assim por diante.
Um segundo passo que consolidou a tendência
de descentralização durante a transição para a O terceiro ciclo estendeu-se de 1990 a 1997 e
democracia no Brasil foi a promulgação da Consti- caracterizou-se por um declínio relativo dos movi-
tuição de 1988. A nova carta política incorporou mentos urbanos e por um crescimento dos movi-
vários dispositivos que produziram efeitos políticos mentos rurais, assim como por uma articulação
e econômicos significativos. Entre eles destacam- ente grupos nacionais e internacionais. Esse ciclo
se: o reforço do poder do Congresso Nacional pe-
rante o Executivo federal; a repartição federativa
das receitas tributárias, com a criação do Fundo
de Participação dos Estados e do Fundo de Partici-
5 O termo “judicialização da política” refere-se aos processos
pação dos Municípios; a adoção de uma carta de
pelos quais (a) os tribunais judiciais passam a julgar matérias
direitos detalhada, acompanhada de dispositivos cujo tratamento antes permanecia a cargo do Legislativo e/
que deram autonomia ao Poder Judiciário e ao ou Executivo, e (b) órgãos não-judiciais passam a adotar
Ministério Público. Um federalismo mais forte, procedimentos e critérios típicos do processo judicial. Cf.
uma vida política revigorada no Legislativo e a Castro (1997a).

115
GLOBALIZAÇÃO E TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS RECENTES NO BRASIL

abrangeu uma crescente diversidade de interesses As eleições para prefeitos e governadores e as


e temas. Como exemplos: os movimentos Viva políticas locais ganharam maior importância na
Rio e Viva São Paulo, cujas preocupações são o vida da população e no processo político nacional,
desenvolvimento, a segurança e a qualidade de vida com o federalismo ganhando cada vez mais força
urbana nessas duas regiões metropolitanas; o (SILVA, 1997). Em conseqüência, é possível afir-
movimento Ética na Política, organizado contra o mar que esses fatores contribuíram para a cons-
Presidente Fernando Collor de Mello (1992); o trução, durante as décadas de 80 e 90, de um con-
Movimento contra a Renovação Urbana de Áreas texto político-institucional com características de
Históricas; o Movimento Nacional contra as Refor- freios e contrapesos, ampliando significativamente
mas Estatais; a Ação da Cidadania contra a Fome, a experiência limitada do período democrático
a Miséria e pela Vida (1993-1996). populista (1945-1964).
Além da multiplicação de movimentos e asso- IV. EFEITOS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS
ciações civis, houve também uma diversificação
Essa versão brasileira de checks and balances
das organizações econômicas de produtores e tra-
teve conseqüências que foram muito além das
balhadores. Conforme descrito por Almeida,
negociações entre o governo federal e os governa-
“Sindicatos outrora tolhidos pelas instituições cor-
dores estaduais quanto à partilha das verbas
porativistas tornaram-se mais livres e belicosos.
públicas entre os níveis municipais, estaduais e
Os sindicatos no setor público cresceram em nú-
federal. As novas condições institucionais afeta-
mero e força, seja entre os trabalhadores das em-
ram, na realidade, várias áreas do processo político
presas estatais, seja entre os funcionários públicos,
federal, inclusive as políticas econômicas. Segundo
cuja organização estava proibida antes da Cons-
a descrição de Silva, “A diminuição da possibilidade
tituição de 1988. Organizações empresariais tam-
da União de manejar os fundos públicos como
bém se multiplicaram, tornando-se mais ativas e
elementos de articulação e soldagem de interesses
autônomas vis à vis o governo do que durante o
regionais e locais diferenciados tem proporcionado
regime autoritário” (ALMEIDA, 1996, p. 224).
a abertura de espaços de disputa em relação a
Dessa forma, as eleições para governador em outras questões, que passam pelo arranjo das insti-
1982, a adoção da Constituição democrática em tuições políticas (o sistema partidário e o sistema
1988 e o crescimento do pluralismo de interesses eleitoral); pela definição da política macroeconô-
tanto cívico como econômico introduziram trans- mica nacional e suas repercussões regionais; por
formações sem precedentes na política brasileira. investimentos em infraestrutura; e, finalmente,
A estrutura corporativa herdada do Estado desen- pelas formas de organização e representação, no
volvimentista perdeu gradualmente sua importância interior da máquina estatal, dos interesses economi-
como a melhor via para a articulação de interesses. camente mais fortes [...]” (SILVA, 1997, p. 359).
O poder do Congresso Nacional cresceu vis à vis
Os novos freios e contrapesos instituíram no-
o poder Executivo comparativamente à fase do
vos procedimentos e ao mesmo tempo trouxeram
regime autoritário6. O sistema partidário tornou-
novos desafios para o tratamento político das mais
se mais forte e diversificado e a imprensa e a
diversas questões, abrangendo desde as políticas
opinião pública passaram a exercer mais influência
sociais até a política econômica. Assim, além do
no mundo político. Juízes e promotores públicos
desenvolvimento da competição entre governado-
tornaram-se mais ativos no sentido de desafiar
res e prefeitos pelo repasse de recursos arrecada-
políticas públicas e proteger os direitos do cidadão
dos pelo governo central (ver ABRÚCIO & COS-
(CASTRO, 1997a; ARANTES, 1999). A cultura
TA, 1998), os governadores também entraram em
política dos brasileiros começou a mudar, expan-
conflito na tentativa de atrair fundos federais e in-
dindo-se o reconhecimento das eleições demo-
vestidores, aos quais ofereceram isenções de tribu-
cráticas como um valor político (MOISÉS, 1995).
tos – o que ficou conhecido como guerra fiscal.
Em resumo, o Brasil apresentou uma tendên-
6 Embora os poderes formais do Congresso tenham sido
cia à “multipolaridade política” (idem), reaniman-
expandidos sob a Constituição de 1988, a verificação
do, de certa forma, as políticas regionalistas que
empírica das conseqüências dessa mudança constitucional
tem sido objeto de controvérsia. Ver Figueiredo e Limongi tinham sido abafadas desde os anos 30. Assim,
(1995) e Santos (1997). um dos desafios recentes do Brasil nesta área tem

116
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 109-129 JUN. 2002

sido buscar formas de transformar o federalismo com conseqüências relevantes para o processo
“não-cooperativo” em um tipo “cooperativo” de de tomada de decisão na esfera da política econô-
sistema federal. Além disso, devido ao dispositivo mica. Os novos freios e contrapesos tornaram-se
da Constituição de 1988 que trata da repartição da assim um condicionante significativo do populismo
renda arrecadada pela União, vários grupos po- macroeconômico, adicionando pressões subnacio-
líticos locais tentaram criar novas jurisdições muni- nais à expansão fiscal e monetária. Com relação à
cipais a fim de se tornarem destinatários desses política fiscal, essa dinâmica na cadeia de interações
fundos. Isso levou a um aumento substancial do políticas entre autoridades locais e nacionais pode
número de municípios no Brasil. No estado do ser exemplificada através da descrição que se se-
Piauí, por exemplo, o número de municípios cres- gue: “O prefeito [sem ter como atender às deman-
ceu de 48 para 221 no período que vai de 1988 a das] reclama e pede verbas para o governador. O
1997, tendo assim mais que triplicado em 9 anos. governo estadual, por sua vez, cujos recursos são
O aumento do número de municípios entre 1988 também insuficientes, reclama e pede verbas para
e 1997 ficou acima de 31%, tornando-se um ele- o Presidente da República. Este, que também não
mento adicional no complexo jogo político dos pode atender todos, joga a culpa para o sistema
novos freios e contrapesos no Brasil. financeiro internacional, FMI, dívida pública, Con-
gresso Nacional, Constituição, partidos políticos
O federalismo revigorado também afetou o
etc.” (Montoro Filho apud CASTRO, 1997b, p.
processo de elaboração da política social, que
63-64).
passou a ser descentralizada. O controle local da
política social fôra um traço característico da polí- Tendências semelhantes ocorreram com rela-
tica brasileira, mesmo durante a era desenvolvi- ção à política monetária pré-Real. Segundo um
mentista. Conforme enfatizado por Abrúcio e relatório publicado pelo Presidente do Banco Cen-
Costa, “mesmo no caso de políticas sociais for- tral em 1993, governadores que se achavam em
temente centralizadas e burocratizadas – como a fim de mandato em 1982 usaram bancos públicos
Previdência Social sob a gestão do INPS, depois pertencentes aos governos estaduais para financiar
INSS – o caráter assistencialista era assegurado as campanhas dos seus candidatos (CASTRO,
através do controle patrimonial dos cargos estraté- 1997b). O relatório indicou esse fato político co-
gicos para a gestão do serviço nos níveis regional mo sendo a origem das dificuldades subseqüentes
e local” (idem, p. 111-112). para se implementar no Brasil uma política de
ajuste fiscal. Os governadores que tomavam posse
Na década de 1990, contudo, vieram as expe-
geralmente continuavam com as mesmas práticas
riências de arranjos “cooperativos” entre as admi-
de gastos públicos de seus predecessores. Além
nistrações municipais, estaduais e federal. Vários
disso, as constituições estaduais previam a exis-
conselhos de Saúde municipais e estaduais foram
tência e operação de bancos estaduais indepen-
estabelecidos desde a implementação do Sistema
dentes da autoridade central. A capacidade de ban-
Único de Saúde (SUS), criado pela Constituição
cos estaduais de financiar gastos para fins políticos,
de 1988 (idem, p. 115-142). De maneira semelhan-
mediante a troca de títulos públicos dos tesouros
te, nas áreas de saúde pública e ensino fundamen-
estaduais no mercado financeiro, agravou a pres-
tal, vários organismos representativos de comuni-
são inflacionária sobre a moeda brasileira. Assim,
dades locais foram estabelecidos em conexão com
a centralização da política monetária também se
a transferência de fundos pelo governo central.
tornou um problema de política federativa sujeita
Essa é a razão pela qual, em alguns estados onde
à dinâmica dos novos freios e contrapesos. Isso
reformas foram mais amplamente implementadas,
contribuiu para um populismo macroeconômico
diretores de escolas foram escolhidos pelos cole-
adquirisse uma feição politicamente mais descen-
giados em que pais, professores e funcionários
tralizada.
estavam representados (idem, p. 144-145).
V. O VÍNCULO INTERNO-EXTERNO E A
Finalmente, os freios e contrapesos revitali-
TRANSIÇÃO COLLOR
zados afetaram também o processo de elaboração
de políticas econômicas – políticas monetárias e O significado das transições aqui discutidas para
fiscais, por exemplo. Eles reinstituíram procedi- as condições políticas e econômicas internas não
mentos competitivos, vinculados às dinâmicas pode ser completamente entendido sem se fazer
político-eleitorais locais, regionais e nacionais, referência à sua articulação com a política externa.

117
GLOBALIZAÇÃO E TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS RECENTES NO BRASIL

Uma das principais características das transições no Nacional de Desenvolvimento (II PND) do
brasileiras foi a falta de uma articulação equilibrada Presidente Ernesto Geisel. O II PND teve como
entre as políticas internas e externas e a ausência objetivo central o exercício de uma firme ação
de uma política externa coerente e assertiva, capaz diplomática em organismos multilaterais, de modo
de orientar claramente a negociação e a construção a tirar proveito de condições internacionais que
de arranjos internacionais adequados ao novo favorecessem o crescimento industrial nacional.
contexto de freios e contrapesos e à emergência Segundo Lima, “El eje Norte-Sur posibilitaría al
dos novos interesses políticos e econômicos. MRE, en cuanto agencia responsable de la
conducción de la política exterior, encontrar en la
A política externa brasileira foi dominada pelo
diplomacia económica multilateral una misión
legado do Barão do Rio Branco desde o início do
organizacional específica: complementar las polí-
século XX até a década de 1970, excetuando-se
ticas gubernamentales de desarrollo industrial”
os anos da Política Externa Independente (1961-
(idem, p. 36-37).
1963). Rio Branco reorientou o curso da diploma-
cia brasileira, mudando o foco da política externa, Nesse sentido, fizeram-se esforços na área da
que antes priorizava as relações com a Europa e a política de comércio internacional para dar-se um
Inglaterra, para dar preferência ao relacionamento tratamento especial aos países menos desenvol-
com os Estados Unidos (STORRS, 1973, p. 102- vidos durante as rodadas de negociação do GATT,
169). O paradigma de “relacionamento especial” assim como através da UNCTAD (LAFER, 1971;
introduzido por Rio Branco permaneceu como o- ABREU, 1996). O paradigma globalista também
rientação dominante das relações exteriores do Bra- insistia em que a ordem mundial prevalecente tendia
sil até que o paradigma globalista emergisse a a “congelar” relações assimétricas de poder e que
partir da Política Externa Independente dos go- o Brasil deveria resistir às políticas internacionais
vernos Quadros e Goulart. Embora o golpe militar que impusessem restrições ao acesso a “tecnolo-
de 1964 tenha introduzido fatores internos políti- gias sensíveis”. Finalmente, o paradigma globalista
cos e ideológicos que conduziram a política externa também enfatizava a necessidade de o Brasil esta-
brasileira ao modelo “americanista” de Rio Branco, belecer vínculos e parcerias com uma grande plu-
a partir de 1967 o paradigma globalista passou a ralidade de países.
desenvolver-se dentro de um quadro político diver-
A partir do governo do Presidente Geisel, as
so. Essa nova orientação tornou-se aos poucos
propostas do paradigma globalista tornaram-se
articulada e ganhou apoio de membros proemi-
claramente perceptíveis. Dessa forma, reconhe-
nentes da comunidade diplomática brasileira (LI-
ceu-se que as assimetrias de poder internacional
MA, 1994, p. 34-40). O paradigma globalista in-
“congeladas” e o relativo isolamento político do
corporava: (a) uma crítica ao legado da política
Brasil requeriam uma ação diplomática ágil para o
externa “americanista”, de “relacionamento espe-
estabelecimento de novas parcerias com países
cial” com os Estados Unidos, que havia prevalecido
do Terceiro Mundo na África, no Oriente Médio
desde a época de Rio Branco; (b) a crítica desen-
e, especialmente, com as nações vizinhas. Ade-
volvida pela Comissão Econômica para a América
mais, recorreu-se a esforços diplomáticos para
Latina e Caribe (CEPAL), especialmente por Raúl
criticar regimes internacionais que instituíssem o
Prebisch, argumentando que as práticas econô-
controle sobre tecnologias sensíveis (LIMA, 1994).
micas internacionais eram prejudiciais às eco-
Por último, cabe destacar que essa orientação da
nomias latino-americanas, e (c) aportes da tradi-
política externa manteve-se com a redemocra-
ção do pensamento do realismo nas relações
tização, tendo permanecido até o governo José
internacionais, o qual, ao caracterizar a ordem
Sarney. Foi a partir do governo de Fernando Collor
internacional como anárquica, justificava a defesa
de Mello que ela sofreu alterações importantes –
ativa dos próprios interesses nacionais por cada
como será demonstrado mais adiante.
país (ibidem).
Por outro lado, é preciso destacar que, duran-
O paradigma globalista emergiu, portanto,
te as décadas de 1970 e 1980, o ambiente econômi-
como uma visão abrangentemente articulada sobre
co internacional passou por modificações profun-
o setor externo, que complementava e apoiava as
das, advindas das crises do petróleo, do aumento
políticas internas do Estado desenvolvimentista.
das taxas de juros norte-americanas, da crise da
A articulação do paradigma globalista de política
dívida externa latino-americana e da internaciona-
externa deu-se a tempo de apoiar o Segundo Pla-
lização da indústria bancária. Novos temas emer-

118
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 109-129 JUN. 2002

giram na política comercial multilateral como uma deu-se a introdução dos ajustes
resposta americana aos problemas dos free riders estruturais como contrapartida para a
do comércio mundial7, assim como aumentava a assistência financeira internacional. As
preocupação com as barreiras não-tarifárias (tais conseqüências sociais e políticas adver-
como regulamentações técnicas e incentivos indi- sas dessas políticas de ajuste para os
retos do Estado para a produção e para o comér- países receptores de tais financiamentos
cio). Dessa forma, no mesmo momento em que a foram enormes.
política externa brasileira ganhava consistência e
(b) transições domésticas:
ímpeto suficientes para efetivamente complementar
a política interna de crescimento industrial nacio- · transição para a democracia recente-
nal, as condições econômicas e políticas mundi- mente completada;
ais mudaram drasticamente. Paralelamente, a
· promulgação da Constituição em 1988;
incapacidade dos governos brasileiros de adminis-
trar conflitos internos através de procedimentos · novos freios e contrapesos;
políticos competitivos (novos freios e contrape- · um crescente pluralismo de interesses
sos) e conectá-los a uma política macroeconômica cívicos e econômicos;
que lograsse sucesso no controle inflacionário foi
também uma característica dos anos 1980. · um legado de políticas desenvolvimen-
tistas voltadas para a substituição de
Portanto, as condições políticas e econômicas importações;
domésticas e externas do Brasil no final dos anos
80 podem ser resumidas da seguinte maneira: · uma política externa globalista;
(a) transições do ambiente internacional: · o populismo macroeconômico sujeito à
descentralização política, e
· fim da Guerra Fria;
· taxas de inflação crescentes.
· hegemonia de políticas liberalizantes;
Foi sob tais condições que, em 1989, Fernando
· mudança de ênfase na política comercial Collor de Mello foi escolhido Presidente em uma
multilateral, refletida nas pressões eleição com expressivo conteúdo plebiscitário.
americanas para a regulamentação de Collor foi eleito como um líder de forte apelo
novas áreas de atividades econômicas, popular e fracos vínculos históricos com os
tais como a da propriedade intelectual e grupos políticos estabelecidos. A sua eleição foi
medidas de investimento relacionadas ao motivada por vários fatores: a) instabilidade social
comércio, que ao final da Rodada trazida pela grave crise econômica pela qual o país
Uruguai do GATT (1994) resultaram passava, inclusive com altos índices de inflação;
nos acordos TRIPS (Trade Related In- b) o temor dos grupos dominantes de que um
tellectual Property Rights), e TRIMs candidato da esquerda (Luís Inácio “Lula” da
(Trade Related Investment Measures); Silva) poderia ascender ao poder político, e c) a
· como uma reação a desequilíbrios insatisfação do eleitorado com os partidos políticos
trazidos pela recessão e pela crise da hegemônicos8.
dívida dos países subdesenvolvidos, Permanece crucial o fato de Collor (1990-
1992) ter adotado um estilo político distante do
populismo macroeconômico e alheio às novas
7 Desde a Rodada Tóquio (1973-1979), os Estados Unidos condições da política brasileira expressas na
passaram a afirmar que o princípio da “nação mais favorecida”, presença dos novos freios e contrapesos. Assim,
que permitia que os resultados das reduções tarifárias Collor não se engajou em negociações e não
acordadas fossem estendidos a todos os participantes do procurou introduzir reformas por meio de proce-
GATT, dava oportunidade para que os países dimentos políticos competitivos. Pelo contrário,
subdesenvolvidos fossem beneficiados pelos resultados das
negociações sem necessariamente ter que oferecer algo em
troca. Em outras palavras, a cláusula magna do GATT
possibilitava que esses países adotassem o comportamento
“caronista” (LIMA,1986). 8 Esse último ponto é destacado por Lavareda (1989).

119
GLOBALIZAÇÃO E TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS RECENTES NO BRASIL

adotando um comportamento típico de uma pre- gadas ao funcionamento de empresas do setor


sidência imperial, ele audaciosamente afirmou que público. No governo do presidente Figueiredo
“dispunha de uma única bala para acabar com a (1979-1985), iniciativas modestas haviam sido
inflação”. O Plano Collor – Plano Brasil Novo – adotadas no sentido de privatizar empresas públi-
implementado por meio de trinta e quatro medidas cas. Collor, porém, implementou um programa de
provisórias, foi extremamente abrangente e privatização muito mais ambicioso, cujos objetivos
intervencionista. Ele abarcou tanto medidas de foram “reduzir o déficit público, aumentar a
estabilização monetária quanto ações que disseram eficiência dos serviços públicos e promover a
respeito à regulamentação da economia, privatiza- democratização do capital, a modernização e a
ção de empresas estatais, venda de imóveis da competitividade da economia” (idem, p. 218). Com
União, reforma administrativa, extinção de órgãos suas reformas, Collor ampliou e acelerou a priva-
federais e um Plano Nacional de Desestatização, tização do setor público e estabeleceu uma agenda
entre outras. de privatização, que acabou sendo seguida por seu
sucessor, Itamar Franco (1992-1994), apesar da
Se por um lado Collor não procurou negociar
adesão deste último ao modelo desenvolvimentista.
mediante os procedimentos políticos competitivos
dos novos freios e contrapesos e nem desenvolver Na área da política comercial, Collor também
uma maneira nova e consistentemente estruturada introduziu mudanças relevantes. A prática do
de fazer um “uso político da política macroeconô- populismo macroeconômico dos anos 60 aos 80,
mica”, por outro, tentou apoiar-se sobretudo em somada à crise da dívida dos anos 80, tinha evo-
seu carisma. Essa forma de fazer política, acima luído no sentido de conduzir a política comercial
dos partidos e ao largo do Congresso Nacional, para objetivos de estabilização monetária. Isso teve
ignorando os processos negociadores caracterís- conseqüências significativas para o vínculo interno-
ticos das instituições democráticas, trouxe-lhe externo, na medida em que resultou na eliminação
custos políticos altos. Como no caso de dois outros da área comercial da política externa “globalista”.
presidentes – Getúlio Vargas e Jânio Quadros – Nesse sentido, Lima e Santos (1998, p. 16)
que tinham adotado comportamentos semelhantes, destacaram que “[a]o longo daquela década, a
Collor não chegou ao fim do seu mandato. Em política de comércio exterior deixou de ser um
menos de dois anos, foi acusado de participação instrumento de fomento industrial e passou a ser
em práticas de corrupção, sendo submetido a um utilizada primordialmente para objetivos de
processo de impeachment e forçado a renunciar ajustamento do balanço de pagamentos”. A política
em 1992. Contudo, apesar de sua renúncia, Collor de liberalização comercial dos anos 90 teve o
teve tempo suficiente para fazer rupturas decisivas objetivo de frear a inflação, assim como de aumen-
com o importante legado desenvolvimentista. tar a competitividade da indústria brasileira. Nas
frentes multi e bilaterais esperava-se que a busca
Com o seu estilo imperial, Collor estabeleceu
por linhas menos contenciosas de ação diplomática
mudanças relevantes na estrutura estatal ao
facilitariam o caminho para uma melhor negocia-
introduzir reformas que alterariam a forma pela
ção da dívida externa (ver ABREU, 1997, p. 348).
qual o Estado e a economia interagiam. Segundo
As medidas de liberalização comercial foram
Almeida (1996, p. 217), “[a] agenda da adminis-
adotadas sem negociações políticas com o Con-
tração Collor, pela primeira vez, associou o com-
gresso Nacional ou com grupos de interesse
bate à inflação com reformas destinadas a mudar
(LIMA & SANTOS, 1998, p. 22-23). Ademais,
os padrões de intervenção estatal na economia”.
as reduções tarifárias tampouco foram negociadas
Essas reformas, com conseqüências de longo pra-
em organismos multilaterais de modo que pudes-
zo, concentraram-se principalmente em duas
sem oferecer novas oportunidades econômicas
áreas: liberalização comercial e privatização de
para os interesses brasileiros. Do ponto de vista
empresas do setor público. Além disso, mudanças
da política externa, a estratégia de Collor pode ser
importantes também foram introduzidas na política
caracterizada como um movimento brusco que
externa, pela aceleração e ampliação de iniciativas
instituiu uma ampla liberalização, mas que não
diplomáticas regionais.
trouxe nenhuma vantagem tangível correspon-
Durante os últimos anos do regime militar, as dente que tenha sido obtida dos competidores,
autoridades já haviam manifestado preocupação incluindo os Estados Unidos. Tal liberalização
com os impactos inflacionários das despesas li- comercial foi, inclusive, severamente criticada por

120
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 109-129 JUN. 2002

diplomatas brasileiros alinhados com o paradigma havia sido defendida por Sarney e Alfonsin.
“globalista” (ver, e. g., BATISTA, 1993).
Assim, nessas três áreas – privatização, libe-
Collor também acelerou e expandiu a política ralização comercial e integração regional – as
de integração regional. O estabelecimento de laços reformas de Collor foram rápidas e radicais o
mais fortes com as economias vizinhas foi um suficiente para trazerem modificações profundas,
ponto destacado pela postura “globalista” da políti- que não poderiam ser fácil ou rapidamente rever-
ca externa. No governo do Presidente Sarney, o tidas no futuro. Porém Collor não tentou negociar
desenvolvimento de uma política externa regional suas reformas internamente através de procedi-
expressou-se em documentos como a Declaração mentos políticos competitivos. Ele não levou em
do Iguaçu e o Tratado de Integração, Cooperação consideração o surgimento das novas condições
e Desenvolvimento, ambos assinados conjunta- institucionais correspondentes aos novos freios e
mente em 1985 e 1988 pelo Brasil e pela Argentina. contrapesos e nem desenvolveu mecanismos de
Entretanto, naquela época, a integração regional formulação e implementação de políticas econômi-
ainda era algo visto como um empreendimento cas que substituíssem o populismo macroeco-
limitado e de longo prazo. A integração entre Brasil nômico. Além disso, seu governo falhou no con-
e Argentina estava programada para acontecer trole da inflação e na articulação de uma política
dentro de um período de dez anos, e apenas então externa abrangente, que conduzisse a uma inser-
seria considerada a criação de um mercado co- ção internacional afirmativa do Brasil e favorecesse
mum. Collor acelerou e expandiu muito esse pro- o crescimento nacional sustentado, juntamente
cesso. A integração e o desenvolvimento de um com um significativo apoio popular. Foi isso o
mercado comum foram reprogramados para acon- que Fernando Henrique Cardoso propôs-se a con-
tecer em apenas quatro anos e foram expandidos seguir9.
para incluírem o Uruguai e o Paraguai. Já na Ata
VI. POLÍTICA E POLICY-MAKING NO GOVER-
de Buenos Aires, assinada por Fernando Collor e
NO DE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Carlos Menem em julho de 1990, o prazo previsto
para a constituição do mercado comum reduzira- Durante o regime militar, todas as forças polí-
se de dez para quatro anos, e, no Tratado de As- ticas relevantes, inclusive as oposicionistas, eram
sunção (de março de 1991), Brasil, Argentina, favoráveis às estratégias de desenvolvimento li-
Uruguai e Paraguai comprometeram-se com esse deradas pelo Estado (ALMEIDA, 1996, p. 220-
prazo. Na fase de transição para a criação do mer- 221). Contudo, a oposição rejeitou as políticas
cado comum (1991-1994), “[...] a preocupação econômicas adotadas pelos governos militares ale-
imediata dos negociadores governamentais dos gando que elas valiam-se da repressão salarial
quatro países foi com a remoção do ‘entulho como uma das condições necessárias para o cres-
protecionista e anti-integracionista’ construído ao cimento, ainda que essa fosse habilmente mitiga-
longo de décadas de industrialização substitutiva” da pelo uso da correção monetária com datas-base
(ALMEIDA, 1998, p. 50). Em dezembro de 1992 diferenciadas. Assim, no final do período autoritá-
(Cronograma de Las Leñas), definiram-se os rio, grupos pró-democracia insistiram fortemente
valores da tarifa externa comum (TEC) – alíquota em uma política econômica apta a “combater a
máxima de 35% – e a data em que ela deveria inflação sem punir os mais pobres, retomar o de-
entrar em vigor – 1o de janeiro de 1995. De 1990 senvolvimento econômico, renegociar a dívida
a 1994 a alíquota média das tarifas brasileiras externa, bem como estabelecer instituições demo-
passou de 32,20% para 14,38%, e a máxima de cráticas” (idem, p. 220). Essas foram as reivin-
105% para 40% (BRASIL. Ministério do Desen- dicações essenciais da Aliança Democrática, a
volvimento, Indústria e Comércio, 2000). Dessa coalizão de centro-esquerda que negociou com o
forma, a política de integração regional do governo regime autoritário a transição para a democracia
Collor incluiu-se em uma perspectiva de reforço em 1985. Esse amplo consenso, entretanto, erodiu
da adaptação do país ao processo de globalização na segunda metade dos anos 1980, devido aos
econômica e de implementação de políticas libe- sucessivos fracassos governamentais no contro-
ralizantes no nível interno (redução do escopo de
atuação do Estado e abertura comercial). Por
conseguinte, o governo brasileiro afastava-se da 9 Ver o discurso de posse de FHC em 1º de janeiro de 1996
perspectiva integracionista mais cautelosa, que (BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1996).

121
GLOBALIZAÇÃO E TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS RECENTES NO BRASIL

le da inflação. Em especial, o fiasco do Plano Cru- do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) como base
zado durante o governo de Sarney (1985-1989) de apoio político para aprovar o Plano Real.
contribuiu para que emergisse uma nova aborda- QUADRO 1 – Planos de estabilização (1979-1991)
gem a respeito da política econômica (idem, p.
1. Primeiro Plano Delfim (1979)
222). Essa abordagem, considerada como pragmá-
tica (Pereira, Maravall e Pzeworski apud ALMEI- 2. Segundo Plano Delfim (1981)
DA, 1996, p. 222), criticava o populismo econô- 3. Terceiro Plano Delfim (1983)
mico e a incapacidade dos governos de tratarem 4. Plano Dornelles (1985)
do componente inercial da inflação. De fato, o
5. Plano Cruzado (1986)
populismo macroeconômico alimentara a inflação
que, no caso do Brasil, tinha ganho forte dimensão 6. Plano Bresser (1987)
psicológica. Essa dimensão era o chamado “com- 7. Plano Feijão com Arroz (1988)
ponente inercial” da inflação10, um legado direto 8. Plano Verão (1987)
do populismo macroeconômico e de seu uso da
9. Primeiro Plano Collor (1990)
correção monetária. Considerava-se que a classe
média brasileira acostumara-se ao jogo da inflação 10. Segundo Plano Collor (1991)
(OLIVEIRA, 1996, p. 26-28) – colhendo os bene- Fonte: Pereira (1992, p. 141-144).
fícios da correção monetária – enquanto as classes
de baixa renda sofriam grandes perdas decorrentes O Plano Real (1994) englobou reformas emer-
do “imposto inflacionário”. Além disso, a aborda- genciais nas áreas de política fiscal e monetária,
gem pragmática defendia a redução do Estado, além de várias outras reformas de longo prazo.
acompanhada da reorientação do seu papel para a As reformas emergenciais objetivaram controlar
promoção do bem-estar social e para o desenvol- o componente inercial da inflação. As reformas
vimento de uma política industrial voltada para a de longo prazo consistiram por um lado, no apro-
promoção das exportações. fundamento da abertura comercial, na integração
regional, na privatização e na desregulamentação;
Desde 1979, o governo tentou controlar as por outro lado, a estratégia dirigiu-se para o Con-
tendências inflacionárias por meio de vários planos gresso e para as reformas constitucionais. Várias
de estabilização. Do primeiro Plano Delfim Neto, emendas constitucionais foram promulgadas em
em 1979, até 1992, houve dez planos de esta- 1995, as quais flexibilizaram o monopólio estatal
bilização monetária (ver Quadro 1). Contudo, todos sobre o gás canalizado, o petróleo, as teleco-
esses planos haviam sido extraordinariamente mal- municações e eliminaram a discriminação contra
sucedidos ao tratarem do componente inercial da o capital estrangeiro, redefinindo o conceito de
inflação brasileira. Assim, após a experiência de empresa nacional (OLIVEIRA, 1996, p. 97). Em
10 planos de estabilização que não deram certo, seguida, dando seqüência à estratégia legislativa,
aparentemente não havia mais meios disponíveis foram discutidas no Congresso as reformas previ-
para a superação do impacto prejudicial da hiperin- denciária, administrativa e tributária, as duas pri-
flação sobre a sociedade. meiras já aprovadas, encontrando-se a última ainda
O Plano Real, adotado por Fernando Henrique em tramitação.
Cardoso quando Ministro da Economia no governo As reformas de longo prazo visaram a intro-
Itamar Franco (1992-1994), foi extremamente duzir mudanças significativas na relação entre o
bem-sucedido. Enquanto políticos de esquerda co- Estado e a economia e no papel do capital estran-
mo Lula rejeitavam o plano, agarrados a antigas geiro nas atividades produtivas, dando continui-
fórmulas populistas e desenvolvimentistas, Cardo- dade ao processo de desmonte do desenvolvimen-
so estabeleceu alianças com grupos políticos con- tismo. Elas buscaram construir uma ordem eco-
servadores do Partido da Frente Liberal (PFL) e nômica com características liberalizantes (maior
presença das relações de mercado), mais integrada
10 O termo “componente inercial” foi “usado por eco-
a uma economia globalizada. Isso correspondia a
mudanças na estrutura do processo de formulação
nomistas para descrever a propensão generalizada dos atores
econômicos a ajustarem os preços constantes de forma e implementação de políticas, de modo a contribuir
automática, em antecipação à inflação futura, com base na para que a estabilização monetária se tornasse uma
inflação passada” (OLIVEIRA, 1996, p. 26-28). característica duradoura do sistema econômico.

122
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 109-129 JUN. 2002

Na descrição oferecida por Oliveira (1996), o pla- quatro grandes fases, conforme indicado no Qua-
no de estabilização de Cardoso foi organizado em dro 2.

QUADRO 2 – Programa de estabilização de Fernando Henrique Cardoso


Fase 1 Ajuste fiscal emergencial (1993):
a) Programa de Ação Imediata (PAI): cortes emergenciais em despesas; renegociação das dívi-
das estaduais e municipais; maior controle sobre os bancos estatais; reorientação do progra-
ma de privatização.
b) Fundo Social de Emergência (FSE): obtenção pelo Executivo de poder discricionário para
gastos orçamentários.

Fase 2 Reformas monetárias emergenciais (fevereiro a julho de 1994):


a) Unidade Referencial de Valor (URV) (fev.1994): unificação da correção monetária em um único
“super-índice” para sincronização dos ajustes de preço.
b) Adoção do Real como nova moeda (jul.1994)

Fase 3 Reformas monetárias de longo prazo (a partir de julho de 1994):


a) Política de contração monetária
b) Alinhamento cambial: ancoramento flexível ao dólar americano

Fase 4 Reformas estruturais (a partir de julho de 1994):


a) Liberalização comercial e integração regional: continuação de políticas de governos anteriores;
usada para controlar aumentos de preços internos.
b) Privatização: continuação de políticas de governos anteriores.
c) Desregulamentação: extinção de regulamentações burocráticas estatizantes.
d) Reformas constitucionais: permitem o investimento privado em serviços de utilidade pública
(energia, telecomunicações etc.)

Fonte: adaptado de Oliveira (1996, p. 31-75).

Do ponto de vista do processo de tomada de tecnocráticos foram implementados em áreas


decisão, a principal característica das reformas centrais do processo de formulação e gestão das
propostas por FHC foi o estabelecimento de uma políticas monetárias e orçamentárias, tais como o
estrutura decisória em dois níveis: em um primeiro, Conselho Monetário Nacional (CMN).
ocorreria uma negociação mais ampla, enquanto
Com efeito, no passado, a composição do CMN
no outro teria lugar um processo de insulamento
era mais ampla, incluindo a representação de várias
burocrático. De fato, as políticas monetária e
burocracias e do setor privado. Contudo, desde
cambial permaneceram isoladas da negociação
1994, pouco tempo após a posse de Cardoso, o
política, sendo postas a cargo de uma equipe eco-
número de membros do Conselho Monetário Na-
nômica nuclear, orientada por uma visão tec-
cional reduziu-se ao menor de toda sua história:
nocrática da administração macroeconômica,
apenas o Ministro da Economia, o Ministro do
enquanto que as reformas econômicas não-
Planejamento e o Presidente do Banco Central hoje
monetárias ficaram abertas aos procedimentos
fazem parte deste Conselho (SOUZA & CASTRO,
políticos competitivos, incluindo o federalismo
1995). A variação no número de membros do Con-
revitalizado11. O insulamento burocrático e o
selho Monetário Nacional é mostrada na Tabela 3
estrito controle administrativo dos quadros
a seguir.

11 Os estudos sobre as relações entre o Executivo e o outro lado, apontam também que negociações efetivas foram
Legislativo no governo Fernando Henrique Cardoso mostram, realizadas para a aprovação das reformas constitucionais
por um lado, uma significativa preeminência do Executivo (ALMEIDA & MOYA, 1997; SANTOS, 1997; ALMEIDA,
sobre as decisões do Congresso Nacional, quer do ponto de 1999). Dessa maneira, a hegemonia do Executivo tem
vista da formação da agenda e do uso amplo de medidas convivido com processos negociadores no âmbito do
provisórias, quer do ponto de vista dos resultados alcançados Legislativo, em contraste com o que ocorreu durante o
(MELO, 1997; FIGUEIREDO & LIMONGI, 2000); por governo Collor.

123
GLOBALIZAÇÃO E TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS RECENTES NO BRASIL

TABELA 3 – Membros do Conselho Monetário Nacional


(1964-1994)
Ano Membros
1964 11
1967 10
1969 14
1972 15
1990 17
1994-presente 3
Fonte: Souza e Castro (1995).

O poder político da equipe econômica nuclear e) sob os auspícios da coalizão governamen-


cresceu também devido à centralização de pro- tal, realizar extensas negociações com referência
cedimentos de gestão do orçamento (LOUREIRO às áreas não-monetárias do plano.
& ABRUCIO, 1999). Ou seja, a ampliação das
FHC de fato abandonou o populismo macroeco-
negociações como meio de incorporar os novos
nômico, que tinha caracterizado a formulação e a
freios e contrapesos às políticas do poder Executi-
implementação de políticas no passado, e
vo federal teve como contrapartida o insulamento
desenvolveu o pragmatismo macroeconômico, no
de áreas-chave do processo de administração da
qual a ênfase da política econômica recai sobre o
política macroeconômica e a subordinação da capa-
controle de tendências inflacionárias e sobre a
cidade operacional dos ministros às decisões da
atenção aos constrangimentos externos, em detri-
equipe econômica nuclear, que manteve autoridade
mento de preocupações com a redistribuição da
e controle prático sobre a liberação de recursos.
renda, o emprego e o estímulo ao crescimento
Dessa forma, Cardoso foi capaz de fazer um uso
acelerado. Em resumo, Cardoso aproveitou-se dos
político da política macroeconômica, recorrendo
rompimentos iniciados por Collor em relação aos
à maior capacidade que o insulamento burocrático
legados do desenvolvimentismo e procedeu à ex-
oferecia para a defesa radical da estabilidade mone-
pansão das reformas pró-mercado. Contudo, ao
tária economicamente sustentada em aumentos
contrário de Collor, Fernando Henrique: (a) desen-
colossais nas taxas de juros. A esse respeito, as
volveu uma estrutura político-administrativa, por
estratégias de Cardoso foram:
meio da qual ele pôde implementar o pragmatismo
a) neutralizar, desde antes de sua posse, o macroeconômico, e (b) incorporou os novos
poder de veto de grupos conservadores na política freios e contrapesos à sua estratégia política. En-
partidária através do estabelecimento de uma alian- quanto Collor fez uso sobretudo de uma política
ça entre o seu partido, o PSDB, e o PFL e o PTB; imperial, Cardoso favoreceu negociações no con-
texto dos novos freios e contrapesos e ao mesmo
b) tirar vantagem do aumento de popularida-
tempo estabeleceu fortes constrangimentos para
de trazido pela queda acentuada da taxa de inflação,
o comportamento dos grupos sociais e econômi-
obtida pelo engenhoso controle do seu componente
cos mediante taxas de juros extremamente ele-
inercial e a conseqüente supressão do imposto
vadas, que alimentaram uma gigantesca dívida pú-
inflacionário;
blica. As tendências ao acirramento do conflito
c) controlar a inflação por meio de (i) uma político, antes parcialmente resolvidas por meio
política de alinhamento cambial flexível do real de práticas clientelistas e cooptativas das antigas
em relação ao dólar, e de (ii) uma política de libe- estruturas corporativistas e que em seguida haviam
ralização comercial ampla mas com exceções sido absorvidas sob as práticas do populismo ma-
negociadas, o que permitiu certa proteção a alguns croeconômico, juntamente com seus efeitos cola-
interesses especiais, como no caso do regime terais inflacionários, agora, sob o pragmatismo
automotivo; macroeconômico, passaram a sujeitar-se aos im-
pactos do gerenciamento da dívida pública. Isso
d) trocar “taxas de inflação explosivas” por
foi complementado, no nível externo, pela maior
“taxas de juros exorbitantes”, apesar dos reflexos
credibilidade perante a comunidade financeira inter-
no aumento astronômico da dívida pública, que
nacional, incluindo o FMI e o Banco Mundial, e,
atualmente gira em torno de 47% do PIB (BANCO
no nível interno, por negociações – sob os olhos
CENTRAL DO BRASIL, 2000), e

124
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 109-129 JUN. 2002

vigilantes da coalizão governante – com grupos O antigo paradigma globalista não é mais per-
de interesse na aprovação de reformas da fase 4 cebido de modo consensual pela diplomacia como
do Programa de estabilização12. sendo capaz de gerar uma política externa eficaz
(LIMA, 1994; ARBILLA, 2000). O fim da Guerra
A renovação periódica no Congresso do Fun-
Fria e a redução do poder de coalizão do Sul são
do Social de Emergência (mais tarde chamado de
alguns dos fatores que impedem a efetividade
“Fundo de Estabilização Fiscal” – FEF) e as nego-
daquele paradigma na sua totalidade (LIMA, 1994,
ciações com partidos, parlamentares, gover-
p. 43). Como também tem sido enfatizado por
nadores e grupos de interesse, sob o firme controle
FHC e foi repetido pelo seu então Ministro das
da equipe econômica nuclear, o atendimento às
Relações Exteriores, Embaixador Lampreia (1995-
recomendações das agências internacionais,
2001), “a excessiva volatilidade dos fluxos finan-
sobretudo o FMI e o Banco Mundial – todos esses
ceiros internacionais” é prejudicial “para o Brasil
fatores permitiram que Fernando Henrique manti-
e para a economia internacional como um todo”
vesse o rumo da estabilização econômica e fosse
(LAMPREIA, 1998, p. 8). Ao mesmo tempo, é
inclusive reeleito em 1998.
reconhecido que “acabaram-se os tempos do iso-
O calcanhar-de-Aquiles da política de Cardoso, lacionismo e da auto-suficiência” (ibidem). Ainda
contudo, permanceu o aspecto social: a capacidade de acordo com Lampreia, o Brasil agora luta por
limitada de seu governo de enfrentar a situação da “uma ordem internacional cujos processos deci-
pobreza no Brasil (ver BARROS, HENRIQUES & sórios estejam mais abertos do que hoje a um
MENDONÇA, 2000). Essa é uma área em que a número maior de nações, em especial de socie-
sociedade brasileira nunca passou por qualquer dades em desenvolvimento” (idem, p. 11).
transição. Apesar de todo o virtuosismo dos gover-
Uma das principais orientações da recente
nos na área de formulação e implementação de
política externa do Brasil tem sido o estabeleci-
políticas econômicas, tanto sob o populismo
mento e o fortalecimento de vínculos regionais,
macroeconômico quanto sob o pragmatismo
compatível com uma posição diplomática afirma-
macroeconômico, o Brasil permanece com níveis
tiva diante das nações mais poderosas, principal-
extremamente altos de desigualdade social e pobre-
mente os EUA. Esse propósito traduziu-se, por
za, conforme indicam as pesquisas recentes do
exemplo, na postura brasileira de fortalecer o
Banco Mundial (WORLD BANK, 2001). As
Mercosul para impulsionar as negociações refe-
promessas originais dos tempos da transição para
rentes à ALCA (Área de Livre Comércio das Amé-
a democracia, de se “combater a inflação sem punir
ricas) nas conferências de Miami e de Santiago,
os mais pobres”, parecem ter se perdido sob as
ocorridas em 1994 e 1998, respectivamente. Po-
engrenagens do gerenciamento macroeconômico
rém, permanece o fato de que a “autonomia pela
e de seus condicionamentos externos.
integração” (ibidem) não é suficiente para tratar
Nesse ponto, o vínculo interno-externo torna- efetivamente da injustiça social. Essa realidade foi
se mais uma vez inteiramente relevante. É provável captada no comentário de Lampreia: “Em síntese,
que constrangimentos econômicos do setor exter- o peso do nosso país vem crescendo de modo
no, que condicionam muito do pragmatismo ma- acentuado; e estamos assumindo responsabilidades
croeconômico, poderiam ser diminuídos como internacionais para nós sem precedentes. O Brasil
resultado de reformas das instituições financeiras jamais esteve tão próximo de tornar-se um ator
e de comércio exterior13, em uma época em que realmente central no cenário mundial. É evidente
a política externa brasileira encontra-se em busca que isto dependerá, em primeiro lugar, de conse-
de um novo paradigma. guirmos superar os nossos problemas internos,
especialmente na área social” (idem, p. 14).
O enfrentamento mais eficaz da injustiça social
12 Incluem-se aí a privatização e a abertura de mercados nos e o estabelecimento de um paradigma de política
setores de serviços (nas áreas de energia, telecomunicações externa capaz de articular um vínculo interno-
etc.), os quais estavam, até então, fechados a investimentos externo mais adequado aos interesses sociais e
privados ou estrangeiros. econômicos do país são objetivos que, a nosso
13 Tais como as que têm sido sugeridas recentemente pela ver, ainda são insuficientemente perseguidos pela
UNCTAD (2001). elite governamental do país. Tornar esses objetivos

125
GLOBALIZAÇÃO E TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS RECENTES NO BRASIL

uma preocupação central das políticas de gover- reforçar as resistências à mudança nas décadas
no parece ser um desafio que os grupos políticos de 1970 e 1980. Indicamos também que o
que disputarão as eleições presidenciais de 2002 gerenciamento de políticas macroeconômicas
deve-rão, com certeza, enfrentar. combinado com o processo político mais amplo
foi uma importante dimensão das transições.
VI. COMENTÁRIOS FINAIS
Enquanto o populismo macroeconômico desenvol-
Nosso trabalho discutiu as transições políticas veu-se desde os anos 60 e forneceu novos instru-
no Brasil no contexto da globalização. Focalizamos mentos aos governos do regime militar para
as transformações na estrutura do Estado e os administrar os conflitos sociais, o aumento da infla-
legados políticos que influenciaram, segundo ção determinou o surgimento do pragmatismo
nosso ponto de vista, respostas internas a um macroeconômico. Também focalizamos o papel
ambiente internacional em transformação. Enfa- da política externa e de seus limites na busca de
tizamos que o legado do modelo desenvolvimentista uma articulação mais adequada do vínculo interno-
de formulação e implementação de políticas e a externo. O Quadro 3 resume esses resultados.
estrutura corporativa foram importantes para

QUADRO 3 – Transições políticas no Brasil


1930-anos 1980 Anos 1980-presente
Estrutura corporativista
+ Transição Novos freios e contrapesos
Práticas clientelísticas

Desenvolvimentismo Políticas liberalizantes


+ +
Populismo macroeconômico Pragmatismo macroeconômico
(desde 1964) Transição (desde 1994)
+ +
Política externa globalista Busca de um novo paradigma de
(desde os anos 1970) política externa

Dessa maneira, se os legados de políticas cionantes para o processo de formulação e imple-


desenvolvimentistas e da estrutura corporativista mentação de políticas públicas.
explicam de modo significativo o timing tardio e a
Por último, cabe acrescentar que nas transi-
natureza pragmática da adaptação do país a um
ções ocorridas no Brasil, durante o século XX,
contexto internacional no qual há a hegemonia de
uma única área permaneceu inalterada: as
políticas liberalizantes, tais legados tomados
disparidades na distribuição da renda e a pobreza
isoladamente não foram suficientes para explicar
disseminada não foram superadas, seja pelos go-
as transições ocorridas nos anos 90. Para isso é
vernos autocráticos, seja pelos democráticos. Elas
importante considerar, por um lado, a descentraliz-
permaneceram mesmo diante de diferentes e até
ação do poder político e social que acompanhou a
engenhosos estilos de formulação e implementação
transição para democracia no país, e, por outro
de políticas econômicas.
lado, a hiperinflação e a crise econômica. Esse
conjunto de fatores contribuiu para a erosão dos Recebido em 30 de outubro de 2001.
legados referidos e para a criação de novos condi- Aprovado em 2 de abril de 2002.

Marcus Faro de Castro (mfcastro@unb.br) é Doutor em Direito pela Harvard University e Professor do
Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).
Maria Izabel Valladão de Carvalho (mabel@unb.br) é Doutora em Ciência Política pela Universidade de
São Paulo (USP) e Professora do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília
(UnB).

126
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 109-129 JUN. 2002

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, M. P. 1996. O Brasil e o GATT : 1947- BATISTA, P. N. 1993. A política externa de Collor
1990. In : ALBUQUERQUE, J. A. G. (ed.) : modernização ou retrocesso? Política Exter-
Diplomacia para o desenvolvimento. São na, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 106-135, mar.
Paulo : Cultura.
CARDOSO, E. & HELWEGE, A. 1992. Popu-
_____. 1997. O Brasil na Rodada do Uruguai do lism, Profligacy and Redistribution. In : DOR-
GATT : 1982-1993. In : FONSECA JR., G. & NBUSH, R. & EDWARDS, S. (eds.). The Ma-
CASTRO, S. H. N. (orgs.). Temas de política croeconomics of Populism in Latin America.
externa brasileira II. V. 1. 2a ed. Brasília : Chicago : The University of Chicago Press.
Fundação Alexandre Gusmão.
CASTRO, M. F. 1997a. O Supremo Tribunal Fe-
ABRUCIO, F. L. & COSTA, V. M. F. 1998. Re- deral e a judicialização da política. Revista Bra-
forma do Estado e o contexto federativo brasi- sileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 12,
leiro. São Paulo : Fundação Konrad-Adenauer- n. 34, p. 147-156, jun.
Stiftung.
_____. 1997b. Considerações preliminares sobre
ALBUQUERQUE, J. A. G. (ed.). 1996. Diploma- o federalismo e a política econômica no Brasil
cia para o desenvolvimento. São Paulo : após 1980. In : CBRI. O federalismo mundial
Cultura. e perspectivas do federalismo no Brasil. Semi-
nário internacional. São Paulo : Conselho Brasi-
ALMEIDA, M. H. T. & MOYA, M. 1997. A re-
leiro de Relações Internacionais.
forma negociada : o Congresso e a política de
privatização. Revista Brasileira de Ciências So- CBRI. 1997. O federalismo mundial e perspec-
ciais, São Paulo, v. 12, n. 34, p. 119-132, jun. tivas do federalismo no Brasil. São Paulo :
Conselho Brasileiro de Relações Internacionais.
ALMEIDA, M. H. T. 1996. Pragmatismo por
necessidade. Dados, Rio de Janeiro, v. 39, n. COHN, M. G. 1997. Teorias dos movimentos
2, p. 213- 234, maio-ago. sociais. São Paulo : Loyola.
_____. 1999. Negociando a reforma : a privatiza- COX, R. 1994. Global Restructuring : Making
ção de empresas públicas no Brasil. Dados, Sense of the Changing International Political
Rio de Janeiro, v. 42, n. 3, p. 421-452, set.- Economy. In : STUBBS, R. & UNDERHILL,
dez. G. (eds.). Political Economy and the Chang-
ing Global Order. New York : Saint Martin’s
ALMEIDA, P. R. 1998. Mercosul : fundamentos
Press.
e perspectivas. São Paulo : LTR.
DINIZ, E. & BOSCHI, R. R. 1997. Estabilização
ALVES, M. H. M. 1984. Estado e oposição no
e reformas econômicas no Brasil : a visão das
Brasil (1964-1984). Petrópolis : Vozes.
elites empresariais e sindicais. Teoria e
ARANTES, R. B. 1999. Direito e política : o Minis- sociedade, Belo Horizonte, n. 1, p. 105-125.
tério Público e a defesa dos direitos coletivos.
_____. 2000. Associativismo e trajetória política
Revista Brasileira de Ciências Sociais, São
do empresariado brasileiro na expansão e declí-
Paulo, v. 14, n. 39, p. 83-102, fev.
nio do Estado desenvolvimentista. Teoria e
ARBILLA, J. M. 2000. Arranjos institucionais e sociedade, Belo Horizonte, n. 5, p. 48-81, jun.
mudança conceitual nas políticas externas
DORNBUSH, R. & EDWARDS, S. (eds.). 1991.
argentina e brasileira (1989-1994). Contexto
The Macroeconomics of Populism In Latin
internacional, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p.
America. Chicago : The University of Chicago
237-283, jul.-dez.
Press.
BARROS, R. P., HENRIQUES, R. & MEN-
FIGUEIREDO, A. C. & LIMONGI, F. 1995.
DONÇA, R. 2000. Evolução recente da pobre-
Mudança constitucional, desempenho do Le-
za e da desigualdade : marcos preliminares para
gislativo e consolidação institucional. Revista
a política social no Brasil. Cadernos Adenauer
Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, n.
1 : Pobreza e política social. São Paulo : Fun-
29, p. 175-200, out.
dação Konrad-Adenauer-Stiftung.

127
GLOBALIZAÇÃO E TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS RECENTES NO BRASIL

_____. 1999. Executivo e Legislativo na nova digmas en la política exterior brasileña. Amé-
ordem institucional. Rio de Janeiro : Fundação rica Latina Internacional, Buenos Aires, v. 1,
Getúlio Vargas. n. 2, p. 27-46, otoño-invierno.
FONSECA JR., G. & CASTRO, S. H. N. LINDBERG, L. N. & MAIER, C. S. (eds.). 1985.
(orgs.). 1997. Temas de política externa brasi- The Politics of Inflation and Economic Stag-
leira II. v. 1. 2a ed. Brasília : Fundação Alexan- nation. Theoretical Approaches and Interna-
dre de Gusmão. tional Case Studies. Washington, D. C. : The
Brookings Institution.
GOHN, M. da G. 1997. Teoria dos movimentos
sociais. São Paulo : Loyola. LINZ, J. 1990. Transitions to Democracy. The
Washington Quarterly, Washington, v. 13, n.
HIRSCHMANN, A. O. 1985. Reflections on the
3, p. 143-164, Summer.
Latin American Experience. In : LINDBERG,
L. N. & MAIER, C. S. (eds.). The Politics of LOUREIRO, M. R. & ABRUCIO, F. L. 1999.
Inflation and Economic Stagnation. Theoreti- Política e burocracia no presidencialismo bra-
cal Approaches and International Case Stud- sileiro : o papel do Ministério da Fazenda no
ies. Washington, D. C. : The Brookings Insti- primeiro governo Fernando Henrique Cardoso.
tution. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São
Paulo, v. 14, n. 41, p. 69-89, out.
IMMERGUT, E. M. 1998. The Theoretical Core
of the New Institutionalism. Politics and So- LOUREIRO, M. R. 1997. Os economistas no
ciety, Thousand Oaks, v. 26, n. 1, p. 5-34. governo. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio
Vargas.
JAGUARIBE, H. (org.). 1992. Sociedade, Estado
e partidos na atualidade brasileira. São Paulo MALLOY, J. M. 1979. The Politics of Social
: Paz e Terra. Security In Brazil. Pittsburgh : University of
Pittsburgh Press.
KAPSTEIN, E. B. 1994. Governing the Global
Economy. Cambridge : Harvard University MOISÉS, J. A. 1995. Os brasileiros e a demo-
Press. cracia. São Paulo : Ática.
LAFER, C. 1971. O GATT, a cláusula de nação MONTORO FILHO, A. F. 1994. Federalismo e
mais favorecida e a América Latina. Revista reforma fiscal. Revista de Economia Política,
de Direito Mercantil, Rio de Janeiro, v. X, n. Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 20-30, jul.-set.
3, p. 42-56.
NUNES, E. 1997. A gramática política do Brasil.
LAMPREIA, L. F. 1998. A política externa do Brasília : Escola Nacional de Administração
governo FHC : continuidade e renovação. Pública.
Revista Brasileira de Política Internacional,
_____. 1998. Reforma administrativa, reforma
Brasília, v. 42, n. 2, p. 5-17, jan.-jun.
regulatória : a nova face da relação Estado-
LAVAREDA, A. 1989. Governos, partidos e elei- economia no Brasil. Trabalho apresentado no
ções segundo a opinião pública : o Brasil de XII Encontro Anual da Associação Nacional
1989 comparado ao de 1964. Dados, Rio de de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências
Janeiro, v. 32, n. 3, p. 341-362, set.-dez. Sociais, realizado em Caxambu. Digit.
LIMA, M. R. S. & SANTOS, F. 1998. O Congres- O’DONNELL, G. 1988. Transições, continuida-
so brasileiro e a política de comércio exterior. des e alguns paradoxos. In : REIS, F. W. &
Artigo apresentado na 21a Reunião da Latin O’DONNELL, G. (orgs.). A democracia no
American Studies Association, realizada em Brasil. Dilemas e perspectivas. São Paulo :
Chicago, Illinois. Digit. Vértice.
LIMA, M. R. S. 1986. The Political Economy of OLIVEIRA, G. 1996. Brasil real : desafios da
Brazilian Foreign Policy : Nuclear Energy, pós-estabilização na virada do milênio. São
Trade and Taipei. Nashville. Tese (Doutorado Paulo : Mandarim.
em Ciência Política). Vanderbilt University.
PEREIRA, L. C. B. 1992. O décimo-primeiro
_____. 1994. Ejes analíticos y conflicto de para- plano de estabilização. In : VELLOSO, J. P. R.

128
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 18: 109-129 JUN. 2002

(org.). Combate à inflação e reforma fiscal. SOUZA, A. 1992. O sistema político-partidário.


Rio de Janeiro : José Olympio. In : JAGUARIBE, H. (org.). Sociedade, Estado
e partidos na atualidade brasileira. São Pau-
SALLUM JR., B. & KUGELMAS, E. 1993. O
lo : Paz e Terra.
Leviatã acorrentado : a crise brasileira dos anos
80. In : SOLA, L. (org.). Estado, mercado e SOUZA, M. C. C. 1990. Estado e partidos polí-
democracia. São Paulo : Paz e Terra. ticos no Brasil (1930-1964). 3a ed. São Pau-
lo : Alfa-Ômega.
SALLUM JR., B. 1995. Transição política e crise
do Estado. In : SOLA, L. & PAULINI, L. M. SOUZA, M. L. & CASTRO, M. F. 1995. Inde-
(orgs.). Lições da década de 80. São Paulo : pendência política e econômica do Banco Cen-
Universidade de São Paulo. tral do Brasil. Cadernos de Ciência Política,
Brasília, n. 17.
SANTOS, M. H. C. 1997. Governabilidade,
governança e democracia : criação de capacida- STORRS, K. L. 1973. Brazil’s Independent
de governativa e relações Executivo-Legislativo Foreign Policy, 1961-1964. Ithaca. Thesis (Ph.
no Brasil pós-Constituinte. Dados, Rio de D.). Latin American Program, Cornell Uni-
Janeiro, v. 40, n. 3, p. 335-376, set.-dez. versity.
SANTOS, W. G. 1979. Cidadania e justiça : a STUBBS, R. & UNDERHILL, G. (eds.). 1994.
política social na ordem brasileira. Rio de Ja- Political Economy and the Changing Global
neiro : Campus. Order. New York : Saint Martin’s Press.
SILVA, P. L. B. 1997. A natureza do conflito fede- VELLOSO, J. P. R. (org.). 1992. Combate à in-
rativo no Brasil. In : DINIZ, E. & AZEVEDO, flação e reforma fiscal. Rio de Janeiro : José
S. (orgs.). A reforma do Estado e democracia Olympio.
no Brasil. Brasília : Universidade de Brasília.
WEIR, M. & SKOCPOL, T. 1985. State Struc-
SKIDMORE, T. 1973. Politics and Economic Po- tures and the Possibility for “Keynesian” Re-
licy-Making in Authoritarian Brazil, 1937-71. sponses to the Great Depression In Sweden,
In : Stepan, A. (ed.). Authoritarian Brazil. New Britain, and the United States. In : EVANS, P.
Haven : Yale University Press. B. Bringing the State Back In. Cambridge :
Cambridge University Press.

OUTRAS FONTES

BANCO CENTRAL DO BRASIL. 2000. Boletim IBGE. s/d. Índice nacional de preços ao con-
do Banco Central, fev. http://www.bacen.gov. sumidor (IPCA). Série histórica. ftp://ftp.
br/htms/boletim.htm : 14.mar.2000. ibge.gov.br/ Precos_Indices_de_Precos_ao_
Consumidor/Numeros_Indices/Series_Compa-
BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVI-
tibilizadas/IPCA : 11.maio.2001.
MENTO, INDÚSTRIA E COMÉRCIO. 2000.
Evolução tarifária no Brasil. Brasília : Minis- UNCTAD. 2001. Trade and Development Report,
tério do Desenvolvimento, Indústria e Comér- 2001. www.unctad.org/em/pubs/ps1tdr01.
cio, Secretaria de Comércio Exterior, Departa- em.htm : 30.mar.2001.
mento de Negociações Internacionais.
UNITED STATES OF AMERICA. 2000. 1999
BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Country Reports on Human Rights Practices -
1995. Discurso de posse do Presidente da Re- Brazil. www.state.gov./www/global/hu-
pública Fernando Henrique Cardoso. 1o de man_rights/1999_hrp_report/brazil.html :
janeiro de 1995. www.planalto.gov.br : 05.mar.2000.
mar.2000.
WORLD BANK. 2001. World Bank Development
Folha de S. Paulo. 02.mar.2000. Report 2000/2001. www.worldbank.org/data/
wdi2001/pdfs/tab4.pdf : 08.abr.2002.

129

Vous aimerez peut-être aussi