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APEÚ SALVADOR, PA
68620-000
A maré sobe e a paisagem
da remota ilha de Apeú
Salvador muda, mas as
crianças não abdicam do
futebol no fim de tarde. Em
minutos, a maré voltará a
vazar e o pescador vai ter de
esperar a próxima preamar
para tirar o seu barco dali.
Estrelas do mar
POR HENRIQUE SKUJIS FOTOS DE MAURÍCIO DE PAIVA
Bel´em
Ape´u Salvador
O rancho é uma casa suspensa, construída longe da vila e feita de madei- Às mulheres, cabe buscar marés, o peixe falha”, lamenta-se, antes
ra retirada de manguezais, abundantes na ilha. O conforto limita-se à rede água nos poços (acima), de externar o motivo da escassez. “Sem-
para dormir e à fogueira para as refeições. Com sotaque forte e embebido cuidar da casa e preparar pre tivemos rede cheia, mas, há dois ou
no vocabulário local, o ilhéu explica que a rústica construção funciona como a comida. Os homens que três anos, grandes barcos pesqueiros vin-
um posto avançado para a pesca – fica mais próximo do mar e serve aos que não suportam o forte dos do Maranhão passaram a fazer ar-
nasceram sem o dom de resistir ao inexpugnável balanço da maré. É im- balanço do mar, como rastão.” Experiente, Trezentos explica que
portante saber que Apeú, uma das mais isoladas e desconhecidas ilhas do Zeca Baratinha (acima, à esses barcos pertencem à Cooperativa
litoral brasileiro, se divide entre os que suportam e os que não suportam a direita), pescam na beira dos Pescadores Artesanais do Maranhão
forte maresia. Os que não agüentam, pescam em canoa a poucas milhas da e criam animais. À direita, (Copama), usam redes com pedras e fa-
praia ou com redes na beira, como Baratinha.“Não vamos de barco lá para Ângelo, filho de Baratinha, zem uma varredura extremamente pre-
fora. É só na rede”, diz, apontando para o mar, que cresce a cada minuto. se prepara para tomar o judicial à pesca artesanal. Naquele dia,
Nessa hora, Nadir faz pousar no chão o camurim assado e traz copos com xibé, uma mistura de água um sábado de agosto, Trezentos prepa-
xibé, uma onipresente mistura de água e grossos flocos de farinha de man- e farinha de mandioca. ra-se para visitar a vila. Ouviu falar de
dioca. Com todos já saciados, até mesmo Ângelo, Baratinha oferece três pe- uma festa para brindar a visita do can-
quenos ovos indecifráveis. “São de camaleão. Uma delícia!” didato à prefeitura de Viseu, município
Depois do almoço, visito o rancho de Trezentos, um caboclo magro e do qual Apeú faz parte. Resolvo acom-
otimista que divide seu tempo livre entre falar e rir. O apelido deve-se a panhá-lo na longa caminhada pela pancada – termo local para “praia”.
uma dívida contraída (e já saldada) no passado. Mantive distância da casa Na chegada à vila, salvas de rojão pipocam no céu azul. Os fogos não
para não ser picotado pelo vira-lata criado para esbanjar valentia na hora são para Trezentos – muito menos para mim ou para o fotógrafo Maurí-
de caçar porco selvagem, tatu, camaleão e até guará, formosa ave vermelha cio de Paiva. Dezenas de pessoas dirigem-se à praia para esperar a chega-
que colore o céu e os manguezais da região. “Sei que o Ibama não deixa, da do político que prometeu visitar a ilha às vésperas da eleição munici-
mas a carne é melhor que a de frango”, afirma o pescador. “Os filhotes são pal. Mas é alarme falso. Os barcos oscilantes ao longe não trazem a trupe
ainda mais saborosos.” A pesca, segundo ele, não anda bem. “Há quatro do candidato. “Eles ficaram presos na croa”, chuta, sem medo de errar, o
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patrões, eles encabeçam o “aviamento”, uma curiosa relação social que, Por décadas, dona Josefa zes ao dia. “Seria fácil comprar gelo e vender peixe”, resume Flávio, de 40
no final das contas, sustenta a economia de Apeú. (acima, sentada na rede) anos, deitado na rede no segundo andar de seu rancho. O mesmo vento
Donos dos barcos de médio porte, com capacidade para 2 toneladas de foi a única parteira da marítimo que há anos enverga o rancho dos irmãos teima em apagar a
peixe, os marreteiros financiam os pescadores que suportam e peitam a ilha. Antes do derrame, lamparina a querosene que ilumina o encontro dos pescadores. “Deus que
maré. Do bolso deles, saem o óleo para mover o barco, a farinha para sus- passou seu conhecimento me defenda dessa idéia”, rebate Manuel Pinheiro da Silva, o Neco, de 58
tentar o caboclo durante as três semanas em alto-mar e o gelo para con- a Maria Salete Gonçalves, anos. “Pode ser o fim do nosso modo de vida.” Os apeuenses têm como
servar os peixes durante a jornada. Parte do lucro obtido na pescaria de- que, em julho, fez o parto exemplo vivo e presente o que ocorreu na vila de Ajuruteua: a estrada che-
volve as despesas bancadas pelo marreteiro. O restante é dividido em duas da própria neta (ao gou, trouxe o progresso e aumentou o comércio. “Mas os pescadores pas-
partes: uma delas é repartida entre o marreteiro e o encarregado do barco. fundo). Acima, à direita, saram a trabalhar como pedreiros, e suas mulheres foram contratadas
A outra é partilhada entre os três pescadores. Não há recibo, não há assi- Flávio Soares caminha como empregadas domésticas. Vale a pena?”, pergunta Baratinha, causan-
natura. Vale a palavra e a confiança recíproca. “O sistema extrapola seu ca- ao lado de seu rancho do silêncio na roda de discussão. j
ráter econômico e transforma-se numa relação de ajuda mútua entre pes- de dois andares.
cadores e patrões”, afirma a antropóloga Isabel Soares de Sousa, da Univer- O BÊ-Á-BÁ DE APEÚ
sidade Federal do Pará, que defendeu tese sobre o aviamento em Apeú. “O Pancada Praia
problema se dá quando a rede volta vazia e o pescador traz do mar uma Croa Banco de areia que se forma na maré vazante
dívida”, diz Mário Guerreiro, pesquisador do Sebrae, que planeja montar Maré Mar
uma cooperativa de pescadores na ilha. Maresia Balanço do mar
Esse olho grande sobre a vila mexe com os sentidos dos ilhéus. Recen- Mangal Manguezal
temente, chegou a utópica notícia da construção de uma ponte rodoviá- Rancho Casa de madeira construída na croa ou na beira do mar
ria entre Apeú e Viseu. Ninguém ali duvida que a obra mudaria para sem- Avoado Refeição rápida feita durante a pescaria
pre a história da ilha – para o bem e para o mal. Apoiados por outros pes- Xibé Água com farinha
cadores, os irmãos Soares, Flávio e João, torcem pela veracidade da notícia Falhar Faltar
com o mesmo afinco com que religiosamente se lançam ao mar três ve-
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