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APEÚ SALVADOR, PA

68620-000
A maré sobe e a paisagem
da remota ilha de Apeú
Salvador muda, mas as
crianças não abdicam do
futebol no fim de tarde. Em
minutos, a maré voltará a
vazar e o pescador vai ter de
esperar a próxima preamar
para tirar o seu barco dali.
Estrelas do mar
POR HENRIQUE SKUJIS FOTOS DE MAURÍCIO DE PAIVA

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APEÚ SALVADOR, PA

Bel´em
Ape´u Salvador

68620-000 Em um banco de areia no meio do mar, Zeca Baratinha


POPULAÇÃO: 600 pessoas puxa a rede e conta os peixes fisgados. Ao somar apenas uma dúzia, con-
CASAS: 90 forma-se.“Vê este aqui?”, pergunta, com um sorriso surpreendente e apon-
CASAS COM LUZ tando para uma espécie pequena, achatada e de boca torta. “É o solha”, diz,
ELÉTRICA: 5 orgulhoso. Fica por vir a explicação da felicidade pela captura daquele pei-
LITROS DE DIESEL PARA O xe esquisito e sem peso sequer para um filé. O pescador enxuga o suor do
MOTOR VOLTAR A GERAR rosto cavado pelo sol e saca o cigarro de palha da boca. “É bom para desin-
ENERGIA: 1 000/mês char o umbigo do Ângelo, meu filho, que acabou de nascer.”
DEPENDENTES DA PESCA: Mantenho a feição de interrogação, mas, percebendo a subida da maré,
100% da população não interrompo a despesca do caboclo. Nos arredores de Apeú Salvador, a
IDADE NA QUAL AS mais setentrional e isolada ilha do estuário dos rios Gurupi e Piriá, no li-
CRIANÇAS DEBUTAM NA toral paraense, o repentino sobe-e-desce da maré dá as cartas. Pescadores
PESCA: 7 anos não podem vacilar. De seis em seis horas, a paisagem muda por completo.
TRABALHADORES NA Desavisados esfregam os olhos diante de barcos que se equilibram nas ma-
ROÇA: 3 famílias rolas escuras no exato ponto em que, horas antes, pescadores caminhavam
POSTO DE SAÚDE: 0 pela areia branca. Visto de longe, Baratinha parecia andar sobre as águas.
PARTEIRA: 1 De volta ao rancho na beira da praia, o pescador limpa o camurim re-
A chegada de grandes HORAS DE BARCO ATÉ A cém-pescado e passa os cuidados da fogueira à mulher, Nadir Viegas, uma
barcos com pesca de CIDADE MAIS PRÓXIMA: 5 morena de 30 anos, descendente da mais antiga família de Apeú. “Minha
arrastão vem esvaziando ESCOLA: 1 avó conheceu o seu Ulisses”, conta Nadir, lembrando-se de dona Josefa, que
a rede dos pescadores CRIANÇAS MATRICULADAS conviveu com Ulisses Tavares, patriarca da primeira família a desembarcar
artesanais de Apeú. Mas NA 1a SÉRIE: 55 na ilha no começo do século passado. Desde então, o local passou a atrair
a pesca em alto-mar CRIANÇA MATRICULADA viajantes que costumam navegar principalmente entre Belém, no Pará, e
ou em currais (à direita) NA 5a SÉRIE: 0 São Luís, no Maranhão. Quando o cheiro do camurim toma conta do ran-
ainda é farta e garante TELEFONE: 1 cho, Ângelo põe o pequeno rosto indígena para fora do mosquiteiro que
o sustento dos 600 IGREJAS: 2 cobre sua rede e esboça um choro. Sem deixar de enrolar mais um cigar-
moradores da ilha. BARES: 3 ro, Baratinha abraça a criança e consegue acalmá-la em seu colo.
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O rancho é uma casa suspensa, construída longe da vila e feita de madei- Às mulheres, cabe buscar marés, o peixe falha”, lamenta-se, antes
ra retirada de manguezais, abundantes na ilha. O conforto limita-se à rede água nos poços (acima), de externar o motivo da escassez. “Sem-
para dormir e à fogueira para as refeições. Com sotaque forte e embebido cuidar da casa e preparar pre tivemos rede cheia, mas, há dois ou
no vocabulário local, o ilhéu explica que a rústica construção funciona como a comida. Os homens que três anos, grandes barcos pesqueiros vin-
um posto avançado para a pesca – fica mais próximo do mar e serve aos que não suportam o forte dos do Maranhão passaram a fazer ar-
nasceram sem o dom de resistir ao inexpugnável balanço da maré. É im- balanço do mar, como rastão.” Experiente, Trezentos explica que
portante saber que Apeú, uma das mais isoladas e desconhecidas ilhas do Zeca Baratinha (acima, à esses barcos pertencem à Cooperativa
litoral brasileiro, se divide entre os que suportam e os que não suportam a direita), pescam na beira dos Pescadores Artesanais do Maranhão
forte maresia. Os que não agüentam, pescam em canoa a poucas milhas da e criam animais. À direita, (Copama), usam redes com pedras e fa-
praia ou com redes na beira, como Baratinha.“Não vamos de barco lá para Ângelo, filho de Baratinha, zem uma varredura extremamente pre-
fora. É só na rede”, diz, apontando para o mar, que cresce a cada minuto. se prepara para tomar o judicial à pesca artesanal. Naquele dia,
Nessa hora, Nadir faz pousar no chão o camurim assado e traz copos com xibé, uma mistura de água um sábado de agosto, Trezentos prepa-
xibé, uma onipresente mistura de água e grossos flocos de farinha de man- e farinha de mandioca. ra-se para visitar a vila. Ouviu falar de
dioca. Com todos já saciados, até mesmo Ângelo, Baratinha oferece três pe- uma festa para brindar a visita do can-
quenos ovos indecifráveis. “São de camaleão. Uma delícia!” didato à prefeitura de Viseu, município
Depois do almoço, visito o rancho de Trezentos, um caboclo magro e do qual Apeú faz parte. Resolvo acom-
otimista que divide seu tempo livre entre falar e rir. O apelido deve-se a panhá-lo na longa caminhada pela pancada – termo local para “praia”.
uma dívida contraída (e já saldada) no passado. Mantive distância da casa Na chegada à vila, salvas de rojão pipocam no céu azul. Os fogos não
para não ser picotado pelo vira-lata criado para esbanjar valentia na hora são para Trezentos – muito menos para mim ou para o fotógrafo Maurí-
de caçar porco selvagem, tatu, camaleão e até guará, formosa ave vermelha cio de Paiva. Dezenas de pessoas dirigem-se à praia para esperar a chega-
que colore o céu e os manguezais da região. “Sei que o Ibama não deixa, da do político que prometeu visitar a ilha às vésperas da eleição munici-
mas a carne é melhor que a de frango”, afirma o pescador. “Os filhotes são pal. Mas é alarme falso. Os barcos oscilantes ao longe não trazem a trupe
ainda mais saborosos.” A pesca, segundo ele, não anda bem. “Há quatro do candidato. “Eles ficaram presos na croa”, chuta, sem medo de errar, o
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bem e descem com peixes nas mãos ao mesmo


tempo que suas mulheres equilibram na cabeça
baldes de água retirada de poços comunitários.
São cerca de 600 pessoas vivendo em casas de
madeira ou de palha. Crianças brotam: ora jo-
gam futebol, ora correm, ora dirigem-se à única
escola, ora trabalham como gente grande. Como
elas conciliam trabalho e estudo? “Não conse-
guem”, lamenta a professora Nilce Maria Souza
Monteiro, de 28 anos. Para sua tristeza, os me-
ninos de Apeú debutam na pesca aos 7 anos. “Os
pais tiram os filhos da escola para levá-los ao
mar”, conta. “Só temos alunos suficientes para
turmas da 1a à 4a série. A tendência é o analfabe-
tismo.” A boa notícia, entoada pela professora,
vem do curso noturno de alfabetização. O cur-
so atraiu 26 alunos e se realiza graças à gentileza
de José Maria de Oliveira, o Tatu, de 33 anos. Es-
pécie de líder comunitário, ele permite uma liga-
ção entre as instalações elétricas da escola e o mo-
tor a diesel no fundo de sua casa. Apesar das de-
zenas de postes de luz devidamente instalados ao
longo das ruas e do enorme motor acomodado
em uma usina ao lado do campo de futebol, Apeú
vive no escuro há mais de quatro anos. Apenas
cinco das cerca de 90 casas têm o luxo da ilumi-
nação e da televisão. Manuel Nazareno Souza, de
37 anos, dono de uma das casas iluminadas, con-
ta que, em junho de 2000, a pedido dos ilhéus, a
prefeita substituiu o motor de 45 kVA (550 litros
de diesel/mês) por um de 114 kVA (mil litros de
diesel/mês). “Por três meses, conseguimos pagar
o óleo. Depois, sem ajuda da prefeitura, o motor
parou e a escuridão voltou.”
Manuel está entre os moradores que não se
encontraram em alto-mar. E, raridade, decidiu
se aventurar na roça. Durante um ano, desafiou
o solo pobre e transformou uma enorme por-
ção de mata fechada, a uma hora de caminha-
pescador Sabino da Silva Ferreira, referindo-se aos enormes bancos de Na única escola de Apeú, da por campos e manguezais, no centro da ilha, em uma produtiva plan-
areia branca que se formam no meio do oceano vazante. A caravana, ape- a briga é para segurar os tação de feijão e mandioca. Até dezembro, poderá ser auto-suficiente em
sar de manjar a região, ignora o tal movimento da maré: previsível, mas alunos enquanto os pais farinha, artigo de primeira necessidade no cardápio apeuense. Em sua
abrupto ao mesmo tempo. José dos Reis, o Zé Peixinho, de 53 anos, con- preferem que, logo aos casa de madeira, onde vive com mulher, sogros e seis filhos, a briga não
ta que, além de servir como relógio e regrar a vida, a força da maré “come 7 anos, eles debutem na é para saber quem prepara a comida, lava a louça ou vai buscar água no
a ilha pelas beiradas”. “Já nem sei quantas vezes precisei mudar o lugar da pesca. Das 55 crianças poço. “Isso é tarefa das mulheres”, diz Alex, de 12 anos, o único filho ho-
minha casa”, diz Zé Peixinho, que, como outros tantos antigos pescado- matriculadas no primeiro mem. “Eu e o pai cuidamos da roça e dos animais.” A discussão na famí-
res, perdeu parte da visão por causa da exposição sem cuidados ao sol. ano, nenhuma vai além lia Souza costuma ocorrer na hora de dividir a jarra de açaí com farinha.
“Em Apeú, as ruas mudam de lugar.” da 4a série. A desejada fruta, símbolo do Pará, chega à ilha por meio dos marreteiros,
No momento, a vila conta com quatro ruas paralelas de areia branca comerciantes que compram os peixes dos pescadores locais para vender
que forma um carpete pelando sob as palafitas. Pescadores descalços so- em cidades como Viseu e Bragança, no Pará. Também conhecidos como
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patrões, eles encabeçam o “aviamento”, uma curiosa relação social que, Por décadas, dona Josefa zes ao dia. “Seria fácil comprar gelo e vender peixe”, resume Flávio, de 40
no final das contas, sustenta a economia de Apeú. (acima, sentada na rede) anos, deitado na rede no segundo andar de seu rancho. O mesmo vento
Donos dos barcos de médio porte, com capacidade para 2 toneladas de foi a única parteira da marítimo que há anos enverga o rancho dos irmãos teima em apagar a
peixe, os marreteiros financiam os pescadores que suportam e peitam a ilha. Antes do derrame, lamparina a querosene que ilumina o encontro dos pescadores. “Deus que
maré. Do bolso deles, saem o óleo para mover o barco, a farinha para sus- passou seu conhecimento me defenda dessa idéia”, rebate Manuel Pinheiro da Silva, o Neco, de 58
tentar o caboclo durante as três semanas em alto-mar e o gelo para con- a Maria Salete Gonçalves, anos. “Pode ser o fim do nosso modo de vida.” Os apeuenses têm como
servar os peixes durante a jornada. Parte do lucro obtido na pescaria de- que, em julho, fez o parto exemplo vivo e presente o que ocorreu na vila de Ajuruteua: a estrada che-
volve as despesas bancadas pelo marreteiro. O restante é dividido em duas da própria neta (ao gou, trouxe o progresso e aumentou o comércio. “Mas os pescadores pas-
partes: uma delas é repartida entre o marreteiro e o encarregado do barco. fundo). Acima, à direita, saram a trabalhar como pedreiros, e suas mulheres foram contratadas
A outra é partilhada entre os três pescadores. Não há recibo, não há assi- Flávio Soares caminha como empregadas domésticas. Vale a pena?”, pergunta Baratinha, causan-
natura. Vale a palavra e a confiança recíproca. “O sistema extrapola seu ca- ao lado de seu rancho do silêncio na roda de discussão. j
ráter econômico e transforma-se numa relação de ajuda mútua entre pes- de dois andares.
cadores e patrões”, afirma a antropóloga Isabel Soares de Sousa, da Univer- O BÊ-Á-BÁ DE APEÚ
sidade Federal do Pará, que defendeu tese sobre o aviamento em Apeú. “O Pancada Praia
problema se dá quando a rede volta vazia e o pescador traz do mar uma Croa Banco de areia que se forma na maré vazante
dívida”, diz Mário Guerreiro, pesquisador do Sebrae, que planeja montar Maré Mar
uma cooperativa de pescadores na ilha. Maresia Balanço do mar
Esse olho grande sobre a vila mexe com os sentidos dos ilhéus. Recen- Mangal Manguezal
temente, chegou a utópica notícia da construção de uma ponte rodoviá- Rancho Casa de madeira construída na croa ou na beira do mar
ria entre Apeú e Viseu. Ninguém ali duvida que a obra mudaria para sem- Avoado Refeição rápida feita durante a pescaria
pre a história da ilha – para o bem e para o mal. Apoiados por outros pes- Xibé Água com farinha
cadores, os irmãos Soares, Flávio e João, torcem pela veracidade da notícia Falhar Faltar
com o mesmo afinco com que religiosamente se lançam ao mar três ve-
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