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NA MADEIRA
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BREVIARIO DA VINHA
E DO VINHO
NA MADEIRA
Titulo BREVIARIO DA VINIIA E DO VINHO NA MADEIRA
Autor
Depdslto Legal
BREVIÁRIO DA VINHA
E DO VINHO
NA MADEIRA
2.a edição
Perfuma e alegra o solo um vinho histórico, produ.to
de castas primitivas, sangue de raça a perpetuar na ilha
o nome de Portugal. Foi este vinho companheiro dos
colonos na rota da descoberta; postou-se de guarda h
porta de suas casas, de braços abertos, numa ramada
acolhedora a parentes, amigos e vizinhos; dá-lhe vida
no trabalho; vibra-lhe na alma em festas de família e
todos os anos se renova no barril ou quartola para o
aquecer no Inverno, estugar-lhe o passo nas romarias
do Verão, firmar promessas, selar contratos, fechar
negócios e ser providência económica no seu lar.
11
desse movimento de troca com o exterior, surgindo nos séculos XVIII e
XIX como a única fonte de receita da região e a moeda de troca as manu-
facturas e mantimentos de importação. De acordo com a manifestação
expressa pelas autoridades madeirenses na primeira metade do século XIX,
este era a única bandeira que o ilhéu podia acenar e despertar a atenção
das embarcações que sulcavam os mares madeirenses.
A conturbada conjuntura politica da primeira metade do século XIX,
aliada ao aparecimento do oídio (1852) e a fiíoxera (1872), conduziram a
uma situação de crise na produção e comércio do vinho madeirense, com
implicações sociais e económicas imprevisíveis; desde a década de trinta
a miséria, a fome e a emigração foram os epítetos mais badalados para
definir a situação da ilha.
Até à necessária e completa reconversão da viticultura madeirense,
e m curso, a vinha e o vinho viveram momentos difíceis e de concorrência
de outros produtos, como a cana-de-açúcar. Todavia, a permanente solici-
tação do preferencial mercado europeu pressionou a necessária reconversão
e aumento da qualidade. O consumidor, a politica comunitária e o empenho
das autoridades locais propiciam uma nova era para o comércio e consumo
do vinho da Madeira. Tal como no século XVI a conjuntura permitiu a
sua expansão, uma vez que este adquiriu u m estatuto preferencial nas expor-
tações da ilha. Além disso, como produto único e disfrutando de uma
tradição mais que secular no mercado mundial, está e m condições de reas-
sumir a sua posição cimeira no mercado externo madeirense; as tentativas
de falsificação feitas pelos americanos ou soviéticos foram rejeitadas pelos
habituais consumidores e mereceram a reprovação das organizações inter-
nacionais, situação que comprova a sua posição preferencial na economia
da ilha n o contexto europeu.
Pariindo dessa desmesurada valorização da vinha e do vinho na actual
conjuntura económica madeirense, propomos ao longo de dezanove temas
uma reflexão, e m termos de breviário, sobre alguns aspectos relacionados
com este produto, que poderão contribuir para a definição de u m a correcta
e actual política vitivinícola. Por aqui passarão palavras e conceitos comuns
aos enólogos, viticultores e historiadores, com u m tratamento di;ferente,
marcado pelo devir da realidade histórica; assim, falaremos de aguar-
dente, alambique, baldeação, balseira, borracho, comércio, crise, direilos,
estufas, lagar, latadas, mercadores, mercados, produção, pro teccionismo,
roda (vinho de), vindima, vinificação, viticultura.
4. ~ u r n e m~ r a ~ ~ ~ ~ r certos o a vindima.
t a n dpara
Erircilo de Carnara de Lobos.
MADEIRA
5. ROtulos antigos
i Aguardente
2 Arquivo Nacional da Torre do Tombo [= ANTT], Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal [= PJRFFI,
n." 942,El. 96.
ANTT, PJRFF, n.O 761,foi. 196-197.
6. Vinificagáo no armazem de Cosrart. Gordon & Co. ISRO
produzidos na ilha. Mas desde esse momento, marcado de profundas alte-
rações político-institucionais em que se vive na ilha, uma profunda crise
do comércio do vinho -os stocks de vinho eram elevados e pouca a
exportação - começaram a surgir entraves a sua entrada, conduzindo a
limitação do seu uso e depois a sua proibição.
O ano de 1821 marca a viragem do domínio do grande comércio
das aguardentes de França, sob controlo do mercador inglês, para o dos
proprietários de fábricas de destilação contínua, apostados no escoamento
do vinho em armazém e, mais propriamente, do vinho de baixa qualidade
do norte da ilha; a tecnologia francesa havia chegado a ilha e os madei-
renses estavam já preparados para fabricar a sua aguardente com qualidade
semelhante à francesa. Assim, nesse ano4, em petição as cortes solici-
tava-se a proibição da entrada desta aguardente, pois as da terra eram
«de qualidade e quilates superiores a todas as aguardentes conhecidas»,
não podendo de modo algum «ser igualadas em bondade por outra alguma
conhecida)), uma vez que «operam tanto no concerto e trato dos nossos
vinhos, em uma medida dada, quando produz o dobro da aguardente de
França, além do benefício, que resulta a sua natureza homogénea)).
Que razões conduziram a esta mudança?
A resposta a esta questão evidencia-se por dois aspectos particu-
lares da conjuntura vintista; por um lado temos a estagnação do comércio
do vinho, a partir de 1814, de modo que as colheitas de 1819, 1820 e
1821 se mantiveram estagnadas nos armazéns, sem comprador, e isto
de tal modo que em 1821 permaneciam retidas 20 000 pipas - em face
disto, a queima de grande parte deste vinho surge como uma solução
de improviso, capaz de relançar esse negócio -, por outro lado, temos
a divulgação e aperfeiçoamento dos alambiques de destilação contínua,
que passam a produzir aguardente de boa qualidade e mais adequada
ao trato do vinho local.
Em 1823' os comerciantes e proprietários do Funchal, em repre-
sentação conjunta, justificavam de forma evidente essa viragem: «Já
ninguém duvida que os novos alambiques destilam com os nossos vinhos
aguardente de superior qualidade, tanto para consumo de vinhos novos,
como velhos, enquanto guardado de um para outro ano, capaz de rivalizar
com a melhor, que aqui nos tem vindo de França, desta verdade estão
todos convencidos, até as casas de comércio estrangeiras da maior inteli-
gência, dignidade e respeito».
4 Arquivo Regional da Madeira [= ARM], Câmara Municipal do Funchal [=CMFJ, t. 15, fls. 100 v-104
e 263-264.
5 ARM, CMF, t. 15, fi. 129 v.
7. M P q b de rodar. Século X M .
20
2 Alambique
N.0"6,p.4;57,p.4;81,p.4;85,p.4.
') ARM, CMF,1. 15, fls. 24-26.
10 ANTT, PJRFF, n.O 105, I'l. 105; i 1 . O 763, fls. 146 v-147.
Severiano de Freitas Ferraz, com «um maquinismo de alambique
de destilação contínua, no qual afiançava melhores resultados do que o
dos últimos inventos de França existentes neste país» lançou mãos,
em 1826, a um complexo de destilação com «cinco perfeitos aparelhos
de destilação contínua habilmente dirigidos e com toda a vigilância
e exactidão » ".
A partir de 1826, generalizou-se o uso dos alambiques, que se espa-
lharam a toda a ilha, isto de tal modo que em 1828 Frederico Castro
Novo havia montado no Funchal uma oficina para construção de alambi-
ques novos ou conserto de velhos. Assim, em meados do século XIX
temos treze alambiques, situando-se três no Funchal e em Santa Cruz,
um em Ponta do Sol, um no Porto Moniz, um em Ponta Delgada, três
em São Vicente, dois em São Jorge e um no Faial, que ferviam, em média,
sete a oito mil pipas de vinho.
A distribuição geográfica dos alambiques pelas Areas produtoras
de vinho é muito esclarecedora; a vertente sul, onde se produziam os
melhores vinhos, apresentava apenas cinco, sendo três no Funchal
e os outros dois em áreas onde se produziam os melhores vinhos do sul:
Santa Cruz e Ponta do Sol. Na vertente norte, área de produção dos
vinhos de baixa qualidade, temos oito alambiques, destacando-se três em
São Vicente e dois em São Jorge, zonas de maior produção desta área.
Assim se confirma que a luta em prol da qualidade e boa reputação do
vinho, enquadrada em determinados momentos de crise, passava pela des-
tilação dos vinhos baixos do norte e para tal com a instalação de Fábricas
de destilação contínua.
11 Arquivo Histórico Ultramarino [= AHUI, Madeira e Porto Santo, n.O 9480; Defensor da Liberdade,
n.O 2, p. 4.
13. Borracheiros. Chegada ao Funchal.
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15. Borracheiros.
postura que proibia a entrada de vinhos do norte nas partes do sul.
Mas de pouco valeu tal medida pois que a mesma não coibiu tal
prática, ao invés esta generalizou-se, de tal modo que, em 1768 13, o
governador e capitão general da ilha, António de Sá Pereira, lamentava
a Martinho de Mel10 e Castro a inexistência de vinho puro e de qualidade
na ilha, sendo sua intenção colmatar essa lacuna com medidas de rigoroso
controlo do seu transporte ou baldeação. Assim, por edital, proíbe-se a
exportação, até Maio, dos vinhos do Porto da Cruz, Faial, Arco de
São Jorge, Seixal, Porto Moniz, São Vicente, Ponta Delgada, Santana,
São Jorge, Machico, Ponta do Pargo, Serra d'Água. Entretanto, aos vinhedos
das melhores áreas - Câmara de Lobos, Canhas, Calheta, Arco da Calheta,
Fajã da Ovelha - estipula-se a proibição da sua baldeação com os das
terras atrás referidas 14.
Nos anos de 1785 a 1786 estas medidas foram reforçadas com
a obrigatoriedade de manter encascado o vinho do norte até Janeiro e,
todo o que daí saísse antes dessa data, deveria ser portador da respectiva
guia passada pelo juiz do lugar ou comandante do distrito; o vinho do
norte só poderia ser movimentado no sul a partir de Maio. Também se
ordenou, pelo edital de 27 de Fevereiro de 178816, o arranque ou
enxertia das cerejeiras pretas, usadas na coloração do vinho. Contra esta
medida manifestaram-se Manuel Acciaouli e o cónego Pedro Nicolau
Acciaouli, tendo-se gerado acesa polémica que, mercê da teimosia do cónego,
o levou a prisão. Mas mesmo assim, esta iniciativa repressiva não foi
suficiente para demover a pertinácia de alguns viticultores, urna vez que
em 181917 surge idêntica situação. Com determinação e afinco se
bateram os governantes e capitães generais António de Sá Pereira e Diogo
Forjaz Coutinho, mas foram incapazes de demover certos viticultores desta
prática fraudulenta e lucrativa.
O vinho da ilha rivalizava então com qualquer vinho europeu ou insular
e apresentava-se como o afamado rubinéctar da mesa do colonialista
europeu. Açores e Canárias, regiões de elevada produção de vinho, mas
de inferior qualidade, procuravam tirar partido desta situação por meio
da baldeação do seu vinho com o da Madeira, ou a venda do seu
vinho com o rótulo do Madeira.
Estamos em finais do século XVIII, o vinho d a Madeira não chegava
para a procura desmesurada, daí o recurso, quer a vinho de fraca quali-
34
5 1 Borracho
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a moléstia das vinhas não fez mais do que-
uma crise, porque mais cedo ma mp2s
havíamos de passar devida a oriuas?
èxta de A. Wwves,p u b P U b i i u m o a . ~ ~9n 0 2 p
7 Crise
27 Veja-se D. João da Câmara LEME,Apontamentos para o Estudo da Crise Agricola no Distrito do Funchal,
Funchal, 1879; Idem, Uma Crise Agrícola, Um Caminho Aéreo e Uma Sociedade Anónima, Funchal, 1876.
45
Em face das diversas crises de subconsumo, apontava-se a tendência
monopolista inglesa desse tráfego e com as crises de produção dava-se
atenção as formas como se correlacionavam as diversas forças sociais
na área da produção vitícola. Aqui, afirmava-se que o contrato de colonia,
o morgadio, eram um forte entrave ao desenvolvimento económico da ilha.
A conjuntura vintista, dominada por uma forte Crise de subconsumo, foi
muito fértil em análises e na apresentação de soluções. Tal como podemos
constatar nas páginas do Patriota F ~ n c h a l e n s e ~ ~ .
Contra este movimento se manifestava, em meados do século XIX,
António Correia Herédia: «Há quatrocentos anos que este país é vítima
de grandes absurdos e que ninguém deu por eles senão quando se acabou
o vinho e o oidium tickevi é que ficou responsável por todos esses erros,
que pobre coitado, para ter alguma coisa de bom apenas fez conhecer
a quem até agora os deixara passar sem reparar! Assim, por exemplo:
- Acabou-se o vinho? - Reforme-se o contrato de colonia! - Acabou-se
o vinho? - Liberte-se a terra! - Acabou-se o vinho? - Reforme-se a pauta
da Alfândega! Não é lógico e chega a parecer absurdo.
A falta de vinho pode ser uma razão mais para que se tome algumas
dessas medidas, mas de por si, não é, não pode ser fundamento bastante
para que o governo, que deve subordinar aos princípios económicos todas
as providências desta ordem, adopte sem repugnância, nem reflexão tudo
quanto por esta forma se lhe reclama».
Em conclusão, podemos afirmar que a crise vinícola, da segunda
metade do século XIXI se insere num âmbito mais lato, no período de
declínio do ciclo do vinho, o qual se iniciara em 1815 com uma forte
crise comercial, que, a partir de 1837, conduziu a uma prolongada
crise de produção.
8 Direitos sobre o vinho
Donativo
Décimo ou finto
35 Veja-se, Correio da Madeira, n.oS 103-110 e 115, pp. 1-5; Gazeta da Madeira, n.O 60.
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cimento ao Erário Régio, aguardando a devida autorização para a sua
entrada em vigor. Enquanto tardava a homologação pelo Erário Régio,
a Alfândega cobrava os referidos direitos, «enquanto não houver nada
em contrário», ou a saída sob fiança de 4000 reis por pipa. Muitas vezes..
demorava a vinda dessa homologação, causando transtornos à adminis-
tração alfandegária, razão pela qual se clamava pela fixação de um direito
de saída por período de quatro anos, como sucedeu em Outubro de
1799; mantendo-se a luta por um direito fixo, este só foi estabelecido
pela pauta de 1837.
Até 1776, o direito de saída era um quantitativo fixo e invariável,
passando desde então a ser taxado anualmlente, consoante a qualidade
do «molhado». Em 156736,lança-se o direito de 1 % ou, como então se
refere, «certa cousa por almude no que se vender». Em 1647 (?) passou
para 400 réis por pipa, a que se adicionou,'em 1669 um cruzado, como
tributo imposto para as despesas da guerra. Em 1776 era taxado em 4200
réis, passando em 1779 para valores variáveis, consoante a qualidade do
vinho molhado e que se mantinha por quatro anos: 4000 r6is para o vinho
de embarque, 8000 réis para a malvasia, 5000 réis para a aguardente e
1200 réis para o vinagre. Em 1802 mantém-se o direito fixo de 5000 réis
por pipa e pretende-se diminuir estes direitos, sobrecarregando-se os
géneros manufacturados estrangeiros, mas a 9 de Outubro, estes são aumen-
tados em 1200 réis por pipa, com justificação de se arrecadar para
desentulhar e construir as muralhas as ribeiras, de modo a evitar-se as
acções devastadoras dos aluviões, como o de 1803.
Em 1808 37, os direitos tornam a ser lançados de modo separado,
consoante a qualidade do molhado: vimho seco, 50 réis; malvasia,
100 réis; aguardente-da-terra, 600 réis; vinagre, 2000 réis. No entanto, a
classe mercantil mantém a sua intenção de facilitar o comércio do vinho,
fazendo retirar os direitos de saída, ou argumentando a favor da definição
de um direito fixo de 5000 réis-por pipa. Se no último não foram aten-
didos, mantendo-se o sistema em uso, no primei0 tiveram acolhimento
da Junta, que compensou essa descida com o aumento em 10 % dos direitos
de importação de fazendas de luxo. Assim, os direitos sobre o vinho bai-
xaram de 8700 réis para 5000 réis.
A partir de 1821, estabeleceu-se uma diferença entre o vinho expor-
tado para os portos do reino, colónias e es.trangeiro; os primeiros estavam
isentos, ou apenas pagavam metade da soma 'atribuída ao estrangeiro.
No entanto, para evitar qualquer subterfúgio, apenas tinha acesso a tal
regime o mercador que apresentasse a certidão e guia da alfândega do
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38 Ob. cit., p. 6.
No período que decorre de 1805 a 1882 podemos ter uma ideia do número
de estufas em laboração, mercê da existência dos livros do manifesto das
estufas3'. Se nos primeiros dez anos, mercê da discussão acesa sobre a
sua utilidade ou não e das medidas proibitivas, não houve uma afirmação
destas, no período consequente, refreados os ânimos, temos um forte
impulso (1817-1819), mas momentâneo, pois a crise do comércio do vinho
e a ma sina das estufas, conduzem a uma quebra acentuada a partir
de 1832. Desde então manteve-se uma certa estabilidade, alterada com
um saldo isolado em 1838. Somente a partir de 1845 se confirma a ten-
dência ascendente, que culmina com o máximo valor atingido em 1851.
No entanto, a crise de 1852 foi fatal, conduzindo a uma quebra acentuada
a partir de 1860.
A partir de 1794, a estufa passou a ser uma área privilegiada do
complexo vitivinícola do mercador da urbe. E estas começaram a surgir
de modo indiscriminado por toda a cidade, nos recintos dos armazéns.
De pouco valeu, em 1802-1803, a proibição da sua construção no recinto
da cidade, pois o mercador nacional ou estrangeiro pôde suplantar
a pretensão do juiz do povo, que militava pelas condições de salubridade
do meio urbano.
O grosso das estufas situava-se em pleno centro do burgo e eixos
de maior atracção e animação comercial, em redor do porto. Na freguesia
da Sé surgem, entre 1839-1840, quinze estufas, enquanto na de São Pedro
temos nove; nota-se uma forte concentração das estufas no Beco das
Aranhas, de São Paulo e área ribeirinha ao mar, pelo lado da Pontinha
e sobranceira a Ribeira de São João. No termo da cidade, as estufas
localizavam-se em Santa Luzia (Caminho da Torrinha e Torreão) e
Santa Maria (Rua dos Balcões, Rua Bela de São Tiago, Rochinha). E de
referir o facto de apenas se referenciarem duas estufas fora da área do
Funchal, mais precisamente em Santa Cruz, no ano de 1849.
Tendo-se desenvolvido numa ambiência agitada, a estufa manter-
-se-a por todo o século XIX como o principal pomo de discórdia da opinião
pública madeirense, ou antes, como motivo de recurso para definir a crise
do comércio do vinho. O ilhéu que sempre viu com maus olhos o seu
aparecimento, atribuía-lhe as culpas da crise que viveu a partir do segundo
quartel do século XIX; estas foram as principais vítimas nesses momentos
de crise, como em 1819, 1821, 1851-1865.
Particularmente interessante é a opinião e decisão das autoridades
locais, como a vereação funchalense, que concorda com a sua proibição,
em 23 de Agosto de 1802 e 6 de Novembro de 1803, ou aponta os efeitos
Noticia Histórico-Militar sobre a Ilha de Porto Santo, Funchal, 1933, pp. 94-95.
A. A. SARMENTO,
65
Aliás o lagar no meio vitivinícola definia, em certa medida, a impor-
tância do vitivinicultor medindo-se a sua importância pela sua posse ou
não; só teria o seu lagar quem possuísse bons hectares de vinha e aí
fruísse de algumas dezenas de pipas de vinho. O pequeno produtor, por
norma, estava obrigado a fazer o seu vinho no lagar dos vitivinicultores
mais abastados que o possuíam, mantendo-se em algumas regiões do norte
a obrigatoriedade de pagamento de um direito pelo uso do lagar, defi-
nido numa determinada quantia (em barril). Este uso materializava a
manutenção de um antigo direito da economia senhorial: a lagaragem.
Com o andar dos tempos aperfeiçoou-se a tecnologia do lagar e
avançou-se com novos processos de feitura do vinho, generalizados ao
nível dos grandes produtores ou casas de exportação. A.primeira evolução
deu-se com o aparecimento dos lagares de cimento, seguindo-se a prensa
manual ou mecânica. H. Bento de Gouveia documenta essa evolução43,
em princípios do nosso século, na zona de Ponta Delgada e São Vicente:
«E há 44 lagares em actividade construídos de cimento, assim como as
tinas. Os de madeira de til feitas de ripas arcaizavam-se e aproveitavam-se
as tábuas. O cimento conferiu aos lagares uma eternidade que a madeira
não podia dar. E, de facto, a substituição desta por aquele trouxe vanta-
gens ao lavrador. Pois os lagares de madeira, todos os anos, por altura
das colheitas, tinham de ser calafetados. Através das juntas das tábuas,
com o batuque das repisas e no ardor ainda maior de tirar do bagaço
a água-pé, as pranchas davam de si e o mosto começava a pingar.
As tiras apertadas por arcos de ferro também se desconjuntavam. Deixou,
portanto, de haver a preocupação do conserto, semanas antes das vin-
dimas, além de que era outra durabilidade.
Introduziu-se, há muitos anos, a prensa no lagar, mas no norte
da ilha não vingou o moderno aperfeiçoamento da técnica no espremer
das uvas».
Na actualidade generalizou-se o uso da prensa e da máquina de
moer uvas, sendo poucos os viticultores que conservam o velho lagar de
vara. Estes guardam-se apenas em algumas casas como preciosa recor-
dação dos seus avoengos. Mas hoje é raro, ou quase impossível, encontrar
na ilha um lagar de madeira, pois a geração do cimento destronou-os;
estes, quando existem, são apenas peças de museu.
66
11 Latadas
71
H&-de nlln encontrar cepas viçosa
em panes do terreno transplantadar
jd mosrrando seus frutos pmpinosas
por mdos da natureza agriculmda:
fard que destas pawas viços?
fiquem as terras brevemente inçadas
porque fardo nos sdculos vindouroj
o prazer das nações, OS Seus tesouroS.
(Pnwcisa,P~ul.4táBDXNA 8 ybsmNcsro$
Lisboa, 1 8 0 6 . ~ k . ~ t m k a x p m e I s J a v )
44. Tnruporte de pipa com .coma*. 1842
76
A vinha, desde o século XV, chegara a todas as frentes de arrotea-
mento, mas as condições do solo, clima e a forma de expressão da
agricultura madeirense definiram as áreas e os momentos de afirmação;
se numa primeira fase esta surge como o traço dominante da urbe e de
toda a vertente sul, numa segunda afirma-se como a cultura, por exce-
lência, da vertente norte. Assim, de acordo com os dados disponíveis para
1787, a capitania de Machico apresentava-se com mais de metade da pro-
dução, sendo tal valor resultante da safra de São Vicente, Ponta Delgada
e Porto da Cruz. Essa destacada situação da região vitícola da vertente
norte saiu reforçada, em 1821, com o aparecimento dos alambiques que
passaram a consumir grandes quantidades do vinho aí produzido. Todavia,
era na vertente sul, dominada pelas áreas de Santo António, São Roque,
Câmara de Lobos, Estreito e Ponta do Sol, que se produzia o vinho de
superior qualidade utilizado nas exportações.
A importância económica de um produto é aferida pela congregação
dos valores de produção e exportação. Enquanto os primeiros atestam
da dimensão que o produto adquire na vivência quotidiana do meio rural,
os segundos definem idêntica situação para o meio urbano e relaciona-
mento com o exterior. Entre ambos estabelece-se uma relação de
interdependência que define, em última análise, a pujança económica do
produto; as mudanças numa destas esferas repercutem-se na outra. Deste
modo, terá sido o aumento da procura do nosso vinho que em conso-
nância com a crise de produção açucareira, contribuíram para o rápido
avanço, nos séculos XVI e XVII, da viticultura madeirense. Note-se que,
de 1650 a 1676, quintuplicou a produção, de modo que no último quartel
do século atingem-se as 20 000 pipas, passando para 35 000 em 1756.
A conjuntura da segunda metade do século XVIII, por se apresentar
favorável à exportação do vinho, condicionou uma subida vertiginosa, entre
1781-1801, dos valores de produção, atingindo-se entre 1801-1825 o cômputo
mais elevado. Nesse período, segundo a documentação disponivel, a pro-
dução oscilava entre as 50 e as 20 mil pipas de vinho.
As alterações do mercado, a partir da década de 30 do século XIX,
condicionaram, de forma violenta, a produção. Assim, desde 1837, demar-
ca-se o início da crise de produção que se acentua a partir de 1850; em
1855 produziram-se apenas 30 pipas, situação que atesta o desmesurado
abandono a que estavam votadas as vinhas.
Estas oscilações da produção tornam-se mais explícitas se ponde-
rarmos a evoluçáo do preço: entre 1810 e 1817, uma subida vertiginosa
do preço da pipa de vinho, atingindo-se em 1813 o valor mais elevado.
Esta situação é deveras espectacular se considerarmos que a safra de
1812 tinha sido das melhores na história do vinho da ilha. Todavia, a
estagnação do vinho nos armazéns, desde 1820, define uma quebra em
flecha do seu preço, a partir de 1823, que culmina em 1833-1934 com
um valor igual ao registado em 1583.
O regime de exploração agrícola assentava no contrato de colonia.
As terras eram entregues aos colonos que cuidavam de as tomar produ-
tivas mediante o pagamento ao senhor de um quantitativo da produção
de vinho. A este sistema aliava-se a vinculação das terras que surge,
no período de 1819-1834, com grande destaque na área entre o Funchal
e o Campanário, onde atinge cerca de 50 % dos vinhedos. Destes vín-
culos sobressaem, em Câmara de Lobos, o do Visconde de Torre Bela,
o de Joáo Carvalhal, o de Ayres de Ornelas e Vasconcelos e o de
D. João da Câmara.
Por fim, note-se a presença estrangeira na produção, que ao con-
trário do que sucede com o comércio, é quase nula e só aparece no Funchal.
Este mercador colocava todo o seu empenho na fase de vinificação e comer-
cialização do vinho no mercado externo.
80
51. Vindima em Câmara dc Lobos. 1880.
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na rala de pmvss do M.dcLi Wine Caapmy. I M .
TROVAS A VINDLMA
92
-a 25 de Setembro .. . nas freguesias de Machico,
Estreito de Câmara de ~ o b o s ,
Santana;
-a 1 de Outubro . . . . . nas freguesias de São Vicente e
a malvasia, .por ser este vin-
donho o que mais custa a
sazonar..
Em provisão de 1819'' referia-se a necessidade de haver três ins-
pectores por freguesia para fiscalizarem o cumprimento deste regulamento,
estabelecendo o momento exacto para a apanha da uva. Posteriormente,
tivemos novo regulamento de 16 de Maio de 1813", que se encontrava
em uso em 1839. Mas com o andar dos tempos estas medidas benéficas
e necessárias a produção do vinho de qualidade foram votadas ao esqueci-
mento, deixando-se campo aberto para o produtor proceder ii sua vindima
consoante os seus desejos e interesses. A cada viticultor passou a ser
delegada a responsabilidade da apanha da uva, no momento considerado
oportuno, e poucos são os que aguardam que as uvas se encontrem bem
sazonadas para proceder a sua apanha; hoje apenas é prática comum a
data imposta pelas casas compradoras do vinho e uvas das diversas castas.
97
64. Armarem de Cossuii. Gordon & C<>
OS três sistemas
(D. Joho DA C ~ M A RLEME,
A
de trutamento d o vinho, p. 6 )
19 Viticultura madeirense
59 ~ ' j l de
e Madère. Étude Géographique, Lisboa, 1940, pp. 62-63.
105
da segunda metade deste último século a vinha conquistou, em definitivo,
O solo da ilha, substituindo os canaviais do Funchal e zonas limítrofes,
ocupando as clareiras entáo abertas no norte: Ponta Delgada, Porto da
Cruz, São Vicente.
Os trigais e canaviais davam assim lugar as latadas e balseiras;
a vinha tornava-se na cultura exclusiva do colono madeirense, a qual este
cede todo o seu engenho e arte. O vinho conquistou o primeiro lugar
na actividade econbmica da ilha, mantendo-o por mais de três séculos.
O ilhéu, desde o ultimo quartel do século XVI, dedicou-se por exclusivo
à cultura, tirando dela o necessário para o seu sustento diário e o suple-
mento para manter uma vida de luxo, sumptuosos palácios e igrejas.
Na primeira metade do século XIX a área de vinha atingia 50 %
do solo cultivado, sendo em 1845 e 1865 de apenas 19 % (2500 h).
Mas, em 1872, com a acção da filoxera esta sofreu uma forte retracção,
de tal modo que no último quartel do século apresentava valores muito
baixos. A acção de reconversão e o incentivo dado então, na primeira
metade do século, fizeram com que esta área aumentasse todavia
sem nunca ter atingido o espaço anteriormente perdido, pois que na
actualidade ainda representa 8 % da área cultivada (248 km2) e, apenas
2,5 % da superfície total da ilha (782 km2), com particular incidência
na faixa sul.
A cultura da vinha na ilha faz-se, desde o século XV, em latadas,
armadas sobranceiras aos passeios, terreiros, veredas ou em poios cons-
truídos encosta acima a partir do litoral. Entretanto, em algumas áreas
do norte da ilha predominou, por muito tempo, a vinha de pé ou as bal-
seiras, mas desde o terceiro quartel do século XIX afirmou-se a latada,
que hoje vem sendo substituída pela vinha aramada, em locais onde se
torna possível a sua mecanização
A faina vitícola estende-se por todo o ano agrícola, obrigando o viti-
cultor madeirense a uma acção constante de cuidados. Mas, sem dúvida,
o período de maior actividade situa-se na época da vindima, que decorre
de Agosto a Outubro. De Janeiro a Julho as tarefas e cuidados assíduos
com a vinha surgem espaçadamente, de acordo com o ciclo vegetativo
da vinha: em Janeiro poda-se, cava-se e aduba-se; de Maio a Julho sulfa-
ta-se, esfolha-se e enxofra-se.
O viticultor madeirense transformou as suas vinhas num jardim
e a elas se dedica o ano inteiro, acompanhando passo a passo o evoluir
da videira, o florescer, crescimento e amadurecimento do cacho, do
qual extrairá o vinho.
Até o terceiro quartel do século XIX a cultura da vinha com as
castas europeias atrás referidas fazia-se por produtor directo; desconhe-
cia-se então o uso de cavalos de enxertia e da cepa que produzia o vinho
afamado se retiravam os bacelos para a renovação e alargamento da vinha.
Mas em 1872, com a propagação da filoxera, tomou-se necessário substi-
tuir estes bacelos por cavalos de enxertia de vinha americana mais
resistente. Assim, em todas as áreas infestadas pelo insecto vimos
afirmar-se a vinha americana como cavalo para enxertia ou, então, como
produtor directo. O ujacquezn, nherbemont~,acaninghamx, uvinho ameri-
cano*, substituíram as afamadas castas europeias, tardando a verdadeira
reconversão da vinha.
A viticultura madeirense diferencia-se da açoriana e das demais
pelas particularidades especificadas, resultantes da influência das condi-
ções agroclimáticas. O ilhéu em ambas as partes recebeu o ensinamento
rotineiro e tradicional da Terra-Mãe mas de acordo com as possibi-
lidades ou impulsos da natureza recriou-o i sua imagem e semelhança.
Com engenho, suor e arte se define a viticultura madeirense faltan-
do-lhe apenas, ontem como hoje, a sua adesão plena as inovações e evo-
lução dos conhecimentos agrovitícòlas; o viticultor madeirense adquiriu
a arte, mas teima em manter-se estanque, averso ao progresso, as inova-
ções, mesmo que em seu proveito; são hábitos e tradições legadas pelos
avoengos que a ciência hodiema não tem capacidade para destronar.
109
ADENDA
[APRESENTAÇAO I ..................................................................... 11
1. AGUARDENTE ........................................................................ 15
2. ALAMBIQUE .......................................................... 23
BALSEIRA ............................................................................ 33
BORRACHO ........................................................................... 37
COMERCIO ........................................................................... 39
CRISE ................................................................................ 43
LAGAR ............................................................................... 65
LATADAS ............................................................................. 67
MERCADORES ........................................................................ 69
MERCADOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
PROTECCIONISMO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
RODA. VINHO DE ..................................................................... 87
VINDIMA ............................................................................. 91
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
~ N D I C EDAS ILUSTRAÇ~ES
DAS FOTOGRAFIAS
PROVENIÊNCIA
MUSEU DE PHOTOGRAPHIA VICENTES :
Gravuras n.OS 2, 10, 13, 14, 15, 17, 18, 19, 26, 27, 29. 31, 39, 42, 43,
45, 46, 47, 50, 52, 54, 55, 63, 64, 65, 67, 68, 70, 72.
JOSÉ DE SAINZ-TRUEVA :
Gravura n.O 53.