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Tema geral:
A PALAVRA CRIADORA E A REDEÇÃO
Introdução
1. Na Quaresma do ano passado, estávamos no período de preparação do Sínodo dos Bispos sobre
a “Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja”. As Catequeses Quaresmais sobre o mistério da
Palavra revelada inseriram-se nessa preparação. O Sínodo realizou-se, e o seu eco chegou até nós
através de uma belíssima Mensagem dirigida pelos Padres Sinodais a todo o Povo de Deus. As
próprias propostas feitas pelo Sínodo ao Santo Padre, em ordem à redacção da Exortação
Apostólica, foram tornadas públicas, além de outros elementos, como as homilias do Santo Padre
e outras intervenções particularmente significativas, disponíveis nos meios de informação da
Santa Sé. Temos, assim, elementos suficientes para continuar a aprofundar o tema, dada a
importância decisiva da Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. E essa é a primeira
interpelação que o Sínodo nos lança: considerar a Palavra de Deus como elemento importante na
nossa conversão, na nossa fé, na nossa fidelidade expressa na vida, na missão da Igreja na
sociedade contemporânea, com particular relevância para o sentido novo de todas as coisas, e
especial incidência na exigência ética da vida de cada um de nós e na vida da sociedade como um
todo, numa circunstância particularmente problemática da nossa vida colectiva.
Na tradição bíblica, tanto do Antigo como do Novo Testamento, a Palavra de Deus aparece ligada a
três dimensões da vida cristã e, no fundo, da vida de todos os homens: antes de mais ela é uma
Palavra de revelação. Nela, Deus fala-nos e revela-Se; como Palavra, ela dirige-se à nossa
inteligência e permite-nos conhecer Quem Deus é e os desígnios de vida que tem para nós.
Depois, a Palavra manifestou-se como força criadora, eficaz, com poder de realizar aquilo que
anuncia: “Vós sabereis que Eu, Yahwé, disse e fiz” (Ez. 17,14); e finalmente a Palavra de Deus é
promessa, anuncia o que Deus fará pelo Seu Povo, até à plenitude escatológica. E porque a Palavra
de Deus é eficaz, realiza aquilo que anuncia, a palavra da promessa torna-se o fundamento
objectivo da esperança.
Este ano, no intervalo entre o Sínodo e a publicação, pelo Santo Padre, da Exortação Apostólica
que esperamos, tendo em conta os desafios de autenticidade cristã que se apresentam à Igreja
nesta sociedade complexa, em que vivemos, escolhi como fio condutor das Catequeses desta
Quaresma o segundo aspecto, isto é, o poder criador da Palavra, que tem de ser compreendida no
contexto mais vasto da eficácia sacramental da Igreja. Teremos de nos perguntar porque é que a
Palavra de Deus, que tão abundantemente escutamos, não é eficaz, produzindo em nós, na Igreja
a que pertencemos, a mensagem que anuncia. Porque é que a Palavra não nos mobiliza para um
ideal de humanidade, carregado de grandeza ética, que além de ser fermento para toda a
sociedade, seria o nosso caminho de santidade.
Ao contrário das cosmogonias antigas, a Bíblia explica a criação do mundo e do homem como
fruto eficaz da Palavra pronunciada por Deus. “Deus disse e fez-se” (Ps. 33,6-9). A Palavra criadora
é a fonte da inteligibilidade da criação, porque tudo é fruto da Palavra e esta é inteligível, é
reveladora dum sentido, manifesta o desígnio que presidiu à criação.
O próprio homem, enriquecido com o dinamismo da evolução progressiva, é fruto de uma Palavra
de Deus: “Façamos o homem à nossa Imagem!...” (Gen. 1,26). Criado à imagem de Deus, o homem
é um ser livre, com possibilidade de intervir na sua vida e no seu destino. A partir do acto criador,
a existência do homem sobre a terra transforma-se em história. Deus continua a ter um desígnio
para essa história, a Sua Palavra intervém na história, é, desde o início, uma palavra de salvação,
mas a eficácia criadora dessa Palavra pode encontrar a barreira na liberdade humana. Como diz a
Mensagem dos Padres Sinodais, “A Palavra divina também está na raiz da história humana. O
homem e a mulher, que são “imagem e semelhança de Deus” (Gén. 1,27) e que, por isso, levam
em si a marca divina, podem entrar em diálogo com o seu Criador ou podem afastar-se dele e
rejeitá-lo através do pecado. Então, a Palavra de Deus salva e julga, penetra na trama da história,
com o seu tecido de vicissitudes e eventos: “Observei a aflição do meu Povo no Egipto e ouvi o seu
grito… conheço os seus sofrimentos. Desci para o libertar do Egipto e o fazer sair desta terra para
uma terra bela e espaçosa…” (Ex. 3,7-8). Há, pois, uma presença divina nas vicissitudes humanas
que, mediante a acção do Senhor na história, são inseridas num desígnio mais alto, para que
“todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade (1Tim. 2,4)” .
Uma das características desta Palavra, que está na origem da criação e intervém na história, é a
sua eficácia. Ela realiza o que anuncia. O único obstáculo que pode encontrar, é a liberdade do
homem que recusa a Palavra e escolhe outros caminhos. E então a própria Palavra põe a nu o
pecado como recusa da liberdade humana. Na trama da história, a eficácia da palavra divina supõe
a fé como disponibilidade humilde para aceitar a acção salvífica de Deus. O Profeta Isaías exprime
esta profunda convicção com rara beleza profética: “Como a chuva e a neve descem dos céus e
não voltam para lá sem terem regado a terra, a terem fecundado e feito germinar para que dê a
semente ao semeador e o pão para alimento, assim a palavra que sai da minha boca não voltará
sem resultado, sem ter feito o que Eu queria, e realizado a sua missão” (Is. 55,10-11).
Esta Palavra de Deus que desceu à terra é o Verbo que encarnou, ficou em acção na história e
quando voltar, no fim dos tempos, para inaugurar os “novos céus e a nova terra”, os seus frutos de
salvação terão sido imensos no resgatar da humanidade. No caso de Cristo, a harmonia entre o
3. Na origem do ser das coisas, a Palavra de Deus é o fundamento sólido da própria realidade. O
Santo Padre Bento XVI, numa homilia durante o Sínodo, comentando o Salmo 118, diz: “A Palavra
de Deus é o fundamento de tudo, é a verdadeira realidade. E para sermos realistas, temos mesmo
que contar com esta realidade; temos que mudar a nossa ideia de que a matéria, as coisas sólidas
que se podem tocar seriam a realidade mais sólida, mais segura. No final do Sermão da Montanha,
o Senhor fala-nos das duas possibilidades de construção da casa da própria vida: na areia e na
rocha. Constrói na areia somente quem edifica nas coisas visíveis e tangíveis, no sucesso, na
carreira e no dinheiro. Aparentemente, estas são as verdadeiras realidades. Mas um dia tudo isto
passará. E assim todas estas coisas, que parecem a verdadeira realidade com a qual contar, são
realidades de segunda ordem. Quem constrói a própria vida sobre estas realidades, sobre a
matéria, sobre o sucesso e sobre tudo aquilo que se vê, edifica na areia. Somente a Palavra de
Deus é fundamento de toda a realidade, é estável como o céu e mais que o céu, é a realidade.
Portanto, temos que mudar o nosso conceito de realismo. Realista é quem reconhece na Palavra
de Deus, nesta realidade aparentemente tão frágil, o fundamento de tudo. Realista é aquele que
constrói a sua vida precisamente neste fundamento, que permanece. E assim estes primeiros
versículos do Salmo convidam-nos a descobrir o que é a realidade e a encontrar desde modo o
fundamento da nossa vida e como construir a vida” .
4. A Igreja é o lugar onde a Palavra de Deus continua a agir na história. Ela própria é um fruto da
Palavra, sobretudo da palavra apostólica. Neste Ano Paulino, somos chamados a redescobrir como
a palavra do Apóstolo gerou Igrejas, introduzindo, assim, uma novidade na sociedade daquele
tempo. A palavra apostólica prolonga no tempo a força criadora da Palavra de Jesus que
proclamou solenemente a perenidade da Sua Palavra: “O Céu e a Terra passarão, mas as minhas
palavras não hão-de passar” (Mt. 24,35). A palavra apostólica afirma-se na Igreja primitiva com
esta força, como potência de salvação. O crescimento da Igreja é identificado com a expressão da
Palavra: “E a Palavra do Senhor crescia; o número de discípulos aumentava em Jerusalém e uma
multidão de sacerdotes obedecia à fé” (Act. 6,7; cf. 12,24).
O segredo do crescimento da Igreja passa por esta certeza do poder eficaz da Palavra na Igreja.
Isso é absolutamente claro e seguro na acção sacramental da Igreja, pela qual torna actuante a
força transformadora da Páscoa de Jesus. A celebração dos sacramentos é um caso claro da
eficácia da palavra da Igreja. Quando a Igreja diz: “Isto é o Meu Corpo”, “recebe o Espírito Santo”,
“os teus pecados são-te perdoados”, a eficácia desta palavra é garantida pelo Espírito Santo e nem
sequer depende da santidade do ministro que a pronuncia. Mesmo pronunciada por um pecador,
em nome da Igreja, ela realiza aquilo que diz.
Mas a eficácia da Palavra, pronunciada e anunciada pela Igreja, realiza-se também no coração dos
cristãos, quando, na obediência da sua fé, eles deixam que a palavra realize neles o que anuncia. A
justiça e a santidade são fruto da Palavra. A Igreja, desde o princípio, acredita que a Palavra é viva
e eficaz: “Viva é a Palavra de Deus, eficaz e mais incisiva que uma espada de dois gumes” (Heb.
4,12). Referindo-se à presença dos cristãos na sociedade, São Paulo diz aos Filipenses: “No mundo,
vós brilhais como focos de luz, apresentando-lhe a Palavra de vida” (Fil. 2,15-16).
Permitir que a Palavra seja viva, eficaz e criadora na nossa vida, eis o segredo do crescimento e da
fidelidade da Igreja. Isso define a fé com que se escuta e acolhe a Palavra. Não pode ser uma fé
que seja só aceitação teórica, tem de ser abertura humilde e confiante à força da Palavra que nos
transformará o coração e mudará as nossas vidas.
A Fé e as Obras
5. Uma fé que aceita a Palavra, mas que não dá origem à concretização, nas nossas atitudes, dos
frutos de vida e de redenção que a Palavra anuncia, não é a fé que nos salva. O Apóstolo São Tiago
é claro a esse respeito, concretizando na caridade o fruto da palavra eficaz: “Para que serve, meus
irmãos, se alguém diz «tenho fé», se não tem obras? A fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou irmã
estão nus, se não têm com que se alimentar e um de entre vós lhe diz: ide em paz, aquecei-vos,
saciai-vos, sem lhes dar o que necessitam para o seu corpo, de que lhes serve? Acontece o mesmo
com a fé; se não tem as obras, está completamente morta! (Tiag. 2,14-17). Esta situação,
denunciada pelo Apóstolo, pode acontecer hoje: belíssimos discursos sobre a pobreza, que não
levam a nenhuma acção em favor dos pobres.
O que é esta fé sem as obras? Pode ser uma adesão intelectual à Palavra, mas falta-lhe a coragem
de exprimir em acções o que a Palavra sugere. É o caso em que a nossa vontade e a nossa
liberdade se tornaram obstáculo à eficácia da Palavra. Esta sugere atitudes, exige mudança e
generosidade. Acolher a Palavra é aceitar a sua exigência e empenhar a nossa vontade na
realização das acções que ela sugere. No seu ensinamento, Jesus alerta para o perigo de acolher a
Palavra sem a transformar em atitudes. É o sentido da Parábola do Semeador. Só num pequeno
grupo a semente dá fruto abundante. Nos outros casos, a Palavra foi acolhida mas ficou estéril (cf.
Mt. 13,3ss). “Não é dizendo “Senhor, Senhor”, que se entra no Reino dos Céus, mas fazendo a
Não há fé viva sem fidelidade, e esta não consiste em pensar sempre da mesma maneira,
aceitando o ensinamento da Palavra de Deus; a fidelidade situa-se no campo da caridade, da luta
pela justiça, pela vida, pela verdade. Na fidelidade, a fé torna-se acção, é força de transformação
do mundo. É por isso que nas obras da fé, naquela fé que deixa a Palavra realizar o seu fruto, nós
podemos escutar o Senhor, sentir o Seu Espírito em acção no mundo. É a força eloquente do
testemunho. Contemplando os frutos da Palavra, nós podemos chegar até ela, encontrando o
Senhor da Palavra, ou melhor, o Senhor que é Palavra.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
Introdução
1. Jesus ensina os seus discípulos a reconhecer aqueles que entraram na dinâmica do Reino dos
Céus, os verdadeiros ouvintes da Palavra, pelos seus frutos, isto é, pela mudança que a Palavra
realizou nas suas vidas. “Pelos frutos se conhece a árvore” (Mt. 12,33). Não é um convite a julgar
as pessoas, mas a identificar os frutos da Palavra de Deus e assim chegar, pelo louvor, ao Deus da
Palavra. Esse foi, em toda a história do Povo de Deus, um caminho seguro para reconhecer o
Senhor nas maravilhas que realizava em favor do Seu Povo. A história da humanidade passa,
assim, a estar semeada pela Palavra de Deus, não apenas porque ela foi pronunciada e poucos a
escutaram, mas sobretudo pelas maravilhas que ela realizou e que falam, mesmo àqueles que
nunca escutaram a Palavra pronunciada pelos Profetas. E porque as obras de Deus são fruto da
Sua Palavra, chegar a louvar o Senhor através dessas obras é outro caminho para escutar a
Palavra. As obras são outra linguagem em que se comunica aos homens a Palavra eterna de Deus.
Nesta Catequese, vamos percorrer as várias maravilhas de Deus, que, segundo a Sagrada Escritura,
são fruto da Palavra, e aprender a reconhecer nelas o Senhor e a Sua Palavra.
A criação
2. Segundo a Escritura, toda a criação é fruto da Palavra de Deus. Deus disse e fez-se. Foi
respondendo a essa Palavra eterna que passaram a existir o céu e a terra, a luz, o sol e a lua, a
infinita variedade de seres vivos, o homem, plenitude da criação. Os espíritos simples e abertos
podem, ao contemplar a beleza e a harmonia da criação, chegar ao seu Criador e reconhecer em
cada criatura a marca da Palavra que a criou. Este perscrutar da criação para adorar o Criador,
atravessa toda a história da salvação. Esse perscrutar da criação dá origem aos mais belos textos
da Escritura, como são os Salmos que descobrem aí o poder criador da Palavra “que vence o nada
e cria o ser”. O salmista canta: “Pela Palavra do Senhor foram criados os céus, pelo sopro da Sua
boca todo o seu exército (…) porque Ele falou e tudo foi feito, Ele mandou e tudo existe” (Ps. 33,6-
9). Tenho perante mim a Mensagem dos Padres Sinodais que refere: “Temos, assim, uma primeira
revelação «cósmica», que faz com que a criação se assemelhe a uma imensa página aberta diante
de toda a humanidade, que nela pode ler uma mensagem do Criador: «Os céus narram a glória de
Deus; a obra das Suas mãos o firmamento a anuncia. O dia ao dia comunica a mensagem e a noite
à noite transmite a notícia. Sem linguagem, sem palavras, sem que se ouça a sua voz, toda a terra
difunde o seu anúncio e até aos confins do mundo a sua mensagem» (Sl. 19,2-5)”[1].
Jesus, ao ensinar os discípulos, ensina-os a ler, nesta página aberta que é a criação, a bondade
providente de Deus. Convida-nos a contemplar as aves do Céu e os lírios do campo, cuja
abundância e beleza são fruto da providência de Deus (cf. Mt. 6,25ss).
É possível escutar a Palavra contemplando as suas obras 7 Catequese do 2.º Domingo da Quaresma
São Paulo não desculpa os pagãos de não conhecerem o Deus verdadeiro, pois Ele revela-se-lhes
na criação: “O que se pode conhecer de Deus é-lhes manifesto, porque Deus lho manifestou. O
que é invisível desde a criação do mundo, manifesta-se à inteligência através das suas obras, o seu
poder eterno e a sua divindade” (Rom. 1,19-20). Portanto, a criação é para os pagãos caminho de
revelação. E, na mesma Carta junta, num hino à sabedoria de Deus, a Criação e a Redenção: “O
abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis os Seus decretos e
incompreensíveis os seus caminhos! Quem, com efeito, alguma vez conheceu o pensamento do
Senhor? Quem alguma vez foi o seu conselheiro? (…) Porque tudo é d’Ele, por Ele e para Ele. A Ele
seja dada glória eternamente” (Rom. 11,33-36).
3. Esta página, que tem as dimensões do Universo, da revelação cósmica, fala-nos, antes de mais,
da grandeza infinita de Deus. O homem levou milénios a ter consciência da grandeza do seu
próprio planeta. A ciência moderna começou a levantar o véu sobre a grandiosidade do Universo
em cuja infinitude gira, como ponto perdido, o planeta que habitamos. Esta grandeza da criação é
cantada no Livro de Job (cf. Job. 38-41) e leva Job, diante dessa grandeza, a reconhecer a sua
pequenez de criatura. A grandiosidade da criação abre-nos para o mistério do Deus infinito,
criador e Senhor de toda a criação.
A grandeza da criação está ligada à sua beleza. Diz o Livro da Sabedoria “que a grandeza e a beleza
das criaturas fazem contemplar o Seu autor” (Sap. 13,5). A beleza é, certamente, a dimensão mais
eloquente da criação e abre-nos para a beleza de Deus, leva-nos mesmo a perceber que Deus é
beleza. Diz o mesmo Livro da Sabedoria que o Autor da beleza é que criou as coisas belas (cf. Sap.
13,3).
Conto-vos um facto da minha experiência pessoal que nunca mais esqueci. Um dia em que
regressava a Lisboa, o avião preparava-se para aterrar sobrevoando o rio e a cidade. Estava um
pôr-do-sol radioso de luz e de cor. O piloto do avião convidou-me para contemplar esse
espectáculo no “cockpit” do avião. Homem sensível, mistura de cientista e de artista, de pé, fez
um autêntico hino à maravilha da luz que, segundo ele, encerrava o segredo de todos os seres. E
rematou dizendo: perante esta beleza é difícil dizer que Deus não existe. A luz que encerra o
segredo de todos os seres. Pensei que a luz é, na natureza e na arte, uma expressão principal da
beleza; o meu pensamento voou até à liturgia pascal, àquele anúncio da luz, que inunda a nova
criação da luz definitiva, Cristo nosso Redentor.
Deus é beleza! É na beleza das criaturas que tocamos que elas são obra do criador, a beleza eterna
e a luz sem ocaso. Quem for sensível à beleza, descobrirá a beleza de Deus criador, na luz, na
grandeza de paisagens com horizonte infinito, na majestade das montanhas e na infinitude do
oceano, num sorriso de criança, na ternura de um gesto, na simplicidade de estender a mão ao
seu irmão.
É possível escutar a Palavra contemplando as suas obras 8 Catequese do 2.º Domingo da Quaresma
A História da Salvação
4. Na Bíblia a narração da criação aparece-nos como a primeira página de uma longa história, “o
primeiro acto do drama que, através de manifestações várias da bondade de Deus e da
infidelidade dos homens constitui a História da Salvação”[2]. A criação, mensagem universal de
revelação para todos os homens, alarga o horizonte da revelação e da história da salvação que
abraça toda a história humana. Esta universalidade, já presente na teologia de Israel, torna-se
clara na “nova criação” fruto da redenção de Jesus Cristo, Ele que é a plenitude da criação.
A história é o cenário da criatividade da Palavra e por isso esta encerra o segredo do sentido da
história e da sua interpretação. A mesma Palavra que criou o mundo origina acontecimentos em
favor do Povo de Deus. Ela é uma Palavra continuamente em acção, ela é acontecimento. É
através dos acontecimentos que Israel toma consciência do amor salvífico de Deus: a passagem do
Mar vermelho, o maná e as codornizes como alimento no deserto, a queda das muralhas de Jericó,
as diversas vitórias sobre o inimigo. O presente e o futuro de Israel dependem desta Palavra
criadora, os Profetas convidam o povo a ver Deus presente e em acção ao contemplarem as obras
que realiza através da Sua Palavra. E quando a história acontece só a partir da palavra humana de
homens que se recusam a escutar a Palavra de Deus, o povo entra no caminho da desgraça e da
derrota. A palavra dos profetas, se proclama a fidelidade de Deus, sempre presente na promessa
de novas intervenções no futuro para quem acredita no poder criador da Palavra, também
denuncia a infidelidade. A Palavra torna-se juízo e condenação; a Palavra de Deus é a consciência
de Israel, é a luz que indica o caminho da fé, da justiça e da paz, a força que suscita a esperança. A
profissão de fé do judeu crente e piedoso é a memória dos feitos que Deus, através da Sua Palavra
realizou em favor do Seu Povo. Não é um enunciar de verdades, mas o recordar das acções
salvíficas de Deus (cf. Deut. 4,9ss; 32ss; 26,5ss). É esta memória dos feitos salvíficos da Palavra que
deve levar os crentes de Israel à circuncisão do coração e a adorar a Deus Seu salvador (cf. Deut.
10,12ss).
Mas a expressão máxima da criatividade salvífica da Palavra acontecerá na plenitude dos tempos,
quando a própria Palavra eterna se torna carne e acontecimento decisivo da História da
humanidade. O que se passa em Maria, naquele dia em que o Anjo a visitou é a mais sublime
acção da Palavra de Deus em favor do Seu Povo, cujo horizonte é agora toda a humanidade. A
encarnação do Verbo no seio de Maria é o acontecimento revelador de Deus e do Seu amor. É um
acontecimento da história, carregado de sentido e gritante de revelação. Nunca mais se poderá
escutar Deus e conhecê-l’O sem ser a partir daquele Menino que foi gerado no seio de Maria pela
Palavra eterna de Deus. Maria é Mãe com toda a potencialidade feminina de maternidade, mas
ela concebeu por força da Palavra. O Anjo, que é o mensageiro de Deus, disse-lhe: “tu conceberás
e darás à luz um Filho” (Lc. 1,31). E Maria aceita, por obediência total à Palavra de Deus: “Eu sou a
Serva do Senhor; aconteça em mim o que a Tua Palavra anuncia” (Lc. 1,38). É impossível penetrar
neste mistério da concepção virginal de Jesus, se não a situarmos na história de um Povo
habituado a acreditar na Palavra de Deus e a vê-la fazer maravilhas. Nesta maternidade, fruto da
Palavra, realiza-se o encontro entre a acção da Palavra na criação e na história da salvação. O que
se passa em Maria tem a força do acto criador: Deus disse e aconteceu. Deus inaugura a nova
É possível escutar a Palavra contemplando as suas obras 9 Catequese do 2.º Domingo da Quaresma
criação. Mas a Palavra age em Maria ao ritmo da história da salvação. A Palavra será criadora se
for acolhida na obediência da fé. Aquele acontecimento será, para todo o sempre, fonte de
sentido para a Igreja, onde a Palavra exercerá o seu poder criador sempre que for acolhida na
obediência da fé.
É por isso que, para a Igreja, é possível chegar ao conhecimento de Deus e do Seu amor salvífico,
contemplando as obras de salvação que vai realizando em nós, na Igreja, na humanidade. Esta
acção da Palavra, no anúncio da Igreja, na acção sacramental, é obra de Jesus Cristo, a Palavra
encarnada, e realiza-se pela força do Seu Espírito que Ele comunica à Igreja.
5. Já referimos como a Igreja primitiva teve a alegria de ver a Igreja crescer, fruto da eficácia da
Palavra: a fecundidade da pregação apostólica, o nascer de comunidades, a paixão evangelizadora
dessas comunidades, a força da comunhão (koinonia), a esperança escatológica dos “novos céus e
nova terra”, chave da compreensão definitiva da história. Reconhecer essa acção da Palavra e do
Espírito é abrir-se ao conhecimento de Deus em Jesus Cristo, e à compreensão definitiva do
desígnio de salvação, mistério escondido desde séculos em Deus, e agora revelado aos crentes,
protagonistas dessa nova gesta maravilhosa da Palavra (cf. Rom. 12,25-26; Col. 1,26-27; Efs. 3,3-
12).
Este mergulhar em Deus, contemplando a acção da Sua Palavra e do Seu Espírito na Igreja e em
cada um de nós, é um caminho perene de louvor e de adoração. Supõe a purificação de um
coração crente, para não atribuir ao engenho humano aquilo que é iniciativa maravilhosa da graça.
Convida-nos continuamente a uma meditação sobre a Igreja, mas também sobre a vida de cada
um de nós. Pode ser mais importante que uma compreensão doutrinal o reconhecermos a acção
de Deus em momentos concretos da nossa vida, momentos em que Deus ouviu a nossa oração e
realizou o que lhe pedimos, circunstâncias em que Deus mudou o ritmo da nossa vida, nos
chamou, nos fortaleceu e conduziu, nos enviou como cooperadores na obra da salvação.
Por outro lado esta perspectiva faz-nos tomar consciência do drama do nosso pecado, ao não
acolhermos a Palavra na obediência da fé, não permitindo que ela realize em nós a obra da
salvação. Também na Igreja e em nós, a Palavra é juízo, põe a claro a diferença entre fidelidade e
infidelidade, é a fonte válida da dimensão ética da vida.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
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[1] Mensagem, nº 1
É possível escutar a Palavra contemplando as suas obras 10 Catequese do 2.º Domingo da Quaresma
“A encarnação da Palavra humaniza o homem”
Introdução
2. O Verbo eterno de Deus feito homem, revestiu-se de uma humanidade concreta, a nossa
humanidade, que guarda todas as potencialidades de grandeza e de dignidade, mas que está
enfraquecida, ferida pelo pecado, tornada incapaz de fazer frutificar plenamente todas as
capacidades com que foi criada. E segundo o Apóstolo Paulo, o homem marcado pelo pecado
arrastou a própria criação para essa caducidade: ela foi sujeita à vaidade, porque o homem, no seu
pecado a arrastou para isso, e espera ser liberta da escravatura da corrupção para entrar na
liberdade da glória dos filhos de Deus (cf. Rom. 8,20-22). O homem, a quem Deus entregou o
mandato de gerir a criação, arrastou-a para a sua própria caducidade. E disso temos sinais
contínuos e permanentes no mundo em que vivemos.
Foi esta humanidade que Cristo assumiu, humanidade a precisar de redenção e de libertação. Ele
não é pecador, mas assumiu uma humanidade pecadora. E fê-lo porque quis que a Sua
humanidade unida à humanidade de cada homem, se tornasse força de superação, isto é, de
redenção. Cristo não é apenas mais um homem, une-se a cada homem e a todos os homens, para
ser, na nossa dimensão humana, esse desafio de superação e de redenção. Na Sua encarnação, o
Verbo de Deus uniu-se a cada homem, para revelar e recuperar a grandeza e a dignidade do
homem. Recordemos este texto do Concílio: “Imagem de Deus invisível, Ele é o homem perfeito
que restaurou na descendência de Adão a semelhança divina, alterada desde o primeiro pecado.
Porque n’Ele a natureza humana foi assumida, não absorvida, por esse facto essa natureza foi
1
Redemptor Hominis, (RH), nº7
Esta união da humanidade de Jesus à humanidade de cada homem, faz com que, em Cristo, Filho
de Deus feito homem, se encerre o segredo do homem, o seu mistério, a sua garantia última de
realização plena. Diz o Concílio: “na realidade o mistério do homem só se esclarece
verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado”3.
Esta união da humanidade de cada homem à humanidade de Cristo radicaliza-se no cristão, que
toma consciência dela, que a assume no baptismo e sabe que tudo o que em si é humano só
encontrará a sua verdade plena, por estar enxertada na humanidade de Cristo que é força de
redenção e de uma plenitude ainda maior do que aquela que estava anunciada na criação. A
redenção não é só correcção do pecado, restituindo o homem à sua capacidade inicial. Esta é
potenciada no inaudito da generosidade divina, que Deus não regateia ao Seu próprio Filho. A
radicalização da união da nossa humanidade à humanidade de Cristo, realizada no baptismo,
adquire conscientemente o ritmo da redenção. Essa é a primeira coisa que aprendemos ao
contemplar a humanidade de Jesus: unida à d’Ele a nossa humanidade caminha para a plenitude
ao ritmo da redenção. Recordemos como o Apóstolo Paulo fala do baptismo: “Acaso ignorais que,
baptizados em Cristo Jesus, foi na Sua morte que fomos baptizados? Assim fomos sepultados com
Ele, pelo baptismo, na morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos para a glória do
Pai, vivamos também nós uma vida nova” (Rom. 6,3-4).
Que realismo e que profundidade! No baptismo a nossa humanidade foi enxertada na de Cristo,
na dimensão que O define como redentor: a oferta sacrificial e a vitória sobre a morte, anunciada
na maneira como Ele viveu a Sua morte.
A força recriadora da humanidade de Cristo, introduzida em nós quando Ele se une à nossa
humanidade, é, antes de mais, a sua dimensão de vítima, a sua imolação voluntária, exprimindo na
carne o amor primordial com que Deus criou o homem. Toda a vida humana de Jesus, desde o
nascimento até à morte, é marcada por esta dimensão de imolação voluntária. A condenação à
morte não é um percalço inesperado; é o ponto de chegada, a “sua hora”, de plena realização
2
Gaudium et Spes, nº 22; cf. RH, nº 13
3
Ibidem
4
RH, nº 10
A redenção acontece em nós, na nossa humanidade, adquirindo este ritmo de Jesus Cristo,
fazendo de tudo uma oferta, uma imolação, para a nossa redenção e para a redenção do mundo.
Sendo o mais radical e decisivo, é o dinamismo mais exigente e mais difícil que a humanidade de
Cristo introduz na nossa realidade humana. Exige que tudo o que é humano em nós seja vivido
com essa exigência de superação redentora. A nossa humanidade, o amor, a alegria ou a dor, só
encontrará a sua plenitude na humanidade de Jesus Cristo, como diz João Paulo II: “O homem que
quiser compreender-se a si mesmo profundamente (…), deve, com a sua inquietude, incerteza e
também fraqueza e pecaminosidade, com a sua vida e com a sua morte, aproximar-se de Cristo.
Deve, por assim dizer, entrar n’Ele com tudo o que é em si mesmo, deve apropriar-se e assimilar
toda a realidade da encarnação e da redenção para se encontrar a si mesmo. Se no homem se der
este processo profundo, então ele produz frutos, não só de adoração de Deus, mas também de
profunda maravilha perante si próprio”5.
A união à humanidade de Cristo introduz em toda a nossa vida humana uma dimensão pascal. A
principal afirmação do desejo de Jesus Cristo de unir a Sua humanidade à nossa é quando disse
aos discípulos: “tomai e comei, isto é o Meu Corpo entregue por vós”. Podemos celebrar com Ele a
Eucaristia, porque aceitámos viver a nossa vida com a exigência e o sentido da Sua humanidade.
5
Ibidem
Esta dimensão pascal da vida humana tende a exprimir-se em toda a nossa existência. É mais fácil
compreender, embora seja exigente, que o sofrimento e a morte podem ser oferecidos, com
Cristo, para a redenção da humanidade. Mas são também as realidades positivas da vida humana
que podem ser vividas, no Corpo de Cristo, com esta tensão de eternidade. A radicalidade da Cruz
de Cristo e o surpreendente horizonte de eternidade que nos abre na Sua ressurreição, podem
introduzir o dinamismo da imolação, da busca da plenitude na renúncia em dimensões da vida
humana a que não teria sentido renunciar na lógica do mundo. Os mártires entregaram a vida, as
virgens entregaram a Cristo toda a sua capacidade humana de amor, tantos renunciaram à
realização humana e aos triunfos do tempo presente para partirem pelo mundo, peregrinos do
Reino de Deus.
Estar unido ao Corpo de Cristo, morto e ressuscitado, introduz no nosso ritmo humano um grande
desassossego. Nunca mais poderemos conceber a realização humana apenas como o mundo a
concebe. Cristo tornou-nos, já na nossa vida presente, peregrinos do absoluto e da eternidade. “A
Igreja, que não cessa de contemplar todo o mistério de Cristo, sabe com a certeza da fé que a
redenção que se realizou na Cruz, restituiu definitivamente ao homem a dignidade e o sentido da
sua existência no mundo”6. Cristo é, verdadeiramente, o caminho da plenitude do homem.
Termino com um texto da Redemptor Hominis: “A única orientação do espírito, a única direcção
da inteligência, da vontade e do coração para nós é esta: na direcção de Cristo, redentor do
homem, na direcção de Cristo, redentor do mundo. Para Ele queremos olhar, porque só n’Ele,
Filho de Deus, está a salvação”7.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
6
Ibidem
7
RH, nº 7
Introdução
Este é um tema importante na nossa sociedade contemporânea. Passa por aí a orientação ética do
nosso viver em conjunto e os valores que inspiram a nossa sociedade. A sua grandeza ou
fragilidade giram à volta de uma cultura da vida, que é o pano de fundo e a compreensão
envolvente de decisões sectoriais, ao nível político e legislativo, no campo do Direito, e das opções
da liberdade individual, domínio da ética e da moral.
A compreensão da vida que domina o nosso ambiente cultural está cheia de contradições: se por
um lado a ciência lhe desdobra continuamente o horizonte maravilhoso, tanto na descoberta e
compreensão da biodiversidade, como no conhecimento da complexa maravilha do ser humano,
por outro permite agressões destruidoras nessa biodiversidade, e legaliza destruições da vida
humana, tanto no seu início no seio materno, como na fase terminal da existência terrena.
Proclamam-se, solenemente, os direitos do homem e a sua dignidade, mas pactua-se, tolera-se ou
promove-se mesmo a violação contínua desses direitos. Não se é capaz de integrar
harmonicamente na compreensão da vida, a sua grandeza e a sua precariedade e o sofrimento
aparece incompatível com uma certa compreensão da felicidade. Embora sabendo que o homem
é matéria e espírito, não se introduz na compreensão da vida as suas insondáveis potencialidades,
contidas como semente, como potência, no mais íntimo do mistério do homem, que nos abrem
para os horizontes do espírito, para a beleza, para a generosidade do amor, para a fé em Deus vivo
e fonte da vida, para a plenitude da vida.
Para nós cristãos esta visão cultural é indesligável da Palavra de Deus, que nos revela e nos
comunica a vida, que nos convida a enquadrar a nossa existência presente no horizonte alargado
da sua plenitude e da sua verdade definitiva. Só assim poderemos influenciar uma cultura da vida
comum a toda a sociedade.
2. O primeiro dado que a experiência nos comunica é que a vida tem uma fonte. Só um ser vivo
comunica a vida. Esta recebe-se sempre de alguém que a comunica, que a partilha. Ninguém vive a
partir de si mesmo e só para si mesmo. E a natureza também nos ensina que o processo dessa
comunicação é a mais bela e intensa expressão da própria vida.
A primeira verdade que a Palavra nos transmite é que Deus é a origem da vida: Ele é vivo e é a
fonte da vida. Isto diz-nos que acreditar em Deus e viver relação confiante com Ele é elemento
Ser vivo é, na Sagrada Escritura, o principal atributo de Deus. Josué disse aos Israelitas:
“Aproximais-vos e escutai a Palavra do Senhor vosso Deus. Assim reconhecereis que um Deus vivo
está no meio de vós” (Jos. 3,9-10). O homem, ser vivo, sabe que recebeu a vida de Deus e viver é
sentir-se atraído por essa fonte da vida: “A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando
irei contemplar a face de Deus?” (Sl. 42,3). O crente é um servo do Deus vivo (cf. Dan. 6,21), só
pode jurar pelo Deus vivo (cf. Juiz. 8,19). O israelita sabe que ser vivo é o atributo de que Deus
gosta mais: “Eu sou vivo e a glória de Yahwé enche toda a terra” (Nm. 14,21).Os seres vivos são,
pois, em toda a terra, a proclamação da glória de Deus.
Em Nosso Senhor Jesus Cristo está encerrado todo o mistério e todo o itinerário da vida. Como
Verbo eterno de Deus, Ele era vivo desde toda a eternidade (cf. Jo. 1,14). Ele é o Verbo da vida (cf.
1Jo. 1,1). Ele é, verdadeiramente, a fonte da vida: “Com efeito, como o Pai dispõe da vida, assim
concedeu ao Filho poder dispor da vida” (Jo. 5,26); “Ele era a vida de todos os seres e a vida era a
luz dos homens” (Jo. 1,4). Por isso, Ele a pode comunicar em abundância: “Eu vim para que as
minhas ovelhas tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo. 10,10). Porque esta plenitude de
vida se torna, em Cristo, plenitude de vida humana, para quem se une a Cristo pela fé e pelo
baptismo, Cristo é a fonte da vida, a garantia do seu aprofundamento contínuo, até atingirmos, no
Céu, a plenitude que está n’Ele. São Paulo exclamará: “Para mim viver é Cristo” (Fil. 1,21). Em
Cristo, a vida manifesta-se na sua qualidade de dom recebido e dom partilhado. Ele põe a claro o
seu dinamismo fundamental.
3. Tendo consciência de que recebeu de Deus a vida, o homem só a pode viver num contacto
contínuo com a sua fonte, percorrendo os caminhos que Deus lhe comunica pela Sua Palavra, e
propõe continuamente ao Seu Povo: “Eu coloco diante de vós os caminhos da vida e os caminhos
da morte” (Jer. 20,8); “Tu me ensinarás os caminhos da vida, diante da tua face, plenitude de
alegria; à tua direita delícias eternas” (Ps. 16,11). No caso de Cristo, já vimos que se afirma como
caminho e vida. Isto mostra-nos que ser fiel é viver. “O justo viverá pela sua fidelidade” (Há. 2,4),
diz o Profeta Habacuq. A mesma convicção proclamará São Paulo: “O justo viverá pela sua fé”
(Rom. 1,17).
Viver a vida como fidelidade é o fundamento das exigências morais na nossa caminhada. Antes de
mais reconhecermos que não somos senhores da vida, mas seus servidores. Reconhecer a sua
O pecado e a morte
4. A morte aparece como a destruição da vida. Para quem gosta de viver ela aparece como uma
desgraça. Os justos do Antigo Testamento, para quem a morada dos mortos não era vida
verdadeira, sofrem com o fim da existência terrena e pedem a Deus que os faça viver, porque na
morada dos mortos Ele não será louvado e, por isso, a vida não será participação na vida divina. A
pouco e pouco vai fazendo caminho a convicção de que a morte pode ser vida, se for oferecida.
Encontramos essa convicção no Livro dos Macabeus (cf. 2Mc. 7,23.36), mas sobretudo em Isaías,
no poema do Servo sofredor, anúncio do Messias. Em Cristo essa convicção torna-se verdade
definitiva, porque a morte de Cristo, vida oferecida por amor, não só é vida, mas revela-se como a
sua fonte definitiva.
Mas na Sagrada Escritura a primeira negação da vida é o pecado. Este aparece como a pretensão
de a autonomizar da sua fonte, vivê-la como se o homem dela fosse senhor, não apenas da sua,
mas da dos outros e de todas as outras expressões da vida. Foi esse o pecado de Adão: querer
viver a sua vida como se fosse senhor absoluto dela, desconhecendo Deus como sua fonte e os
caminhos de vida que o Senhor lhe tinha revelado (cf. Gen. 3). É por isso que na Sagrada Escritura
o pecado é chamado morte, conceito que não significa tanto o fim da vida, mas a sua adulteração,
uma traição à vida.
É sobretudo o Apóstolo Paulo que estabelece a relação entre o pecado e a morte; o pecado é uma
forma de morte, mais grave que a morte física, porque em Cristo esta afirma-se como expressão
de vida. Pelo pecado de Adão, a morte estendeu-se a toda a humanidade; pela morte de Cristo,
expressão máxima da vida como dom, a verdadeira vida é restituída a todos. É o mistério da
redenção que consiste na restituição ao homem da possibilidade de viver verdadeiramente.
Porque apesar do pecado e da morte que este significa, Deus não desiste da vida, quer que o
pecador volte a viver. Deus chama agora os homens à vida, não a partir do nada, mas a partir da
sua experiência de morte e de pecado que os tinha afastado da verdadeira vida. Encontramos essa
mensagem já nos Profetas: o anúncio da redenção é a firme decisão de Deus de recuperar para a
vida o pecador: “Por minha vida, oráculo do Senhor, não tenho prazer na morte do pecador, mas
no seu regresso, que o faça mudar de caminho para ter a vida. Voltai do vosso mau caminho.
Porque haveríeis de morrer, casa de Israel?” (Ez. 33,11).
Este regresso aos caminhos da vida tornou-se possível pela morte de Cristo. Ao viver a morte
como plenitude da vida, totalmente oferecida, Cristo venceu a morte que o pecado tinha
provocado. Segundo Paulo, Cristo venceu todos os inimigos, e o último inimigo a ser vencido foi a
morte (cf. 1Cor. 15,26). A redenção consiste no retomar os caminhos da vida e isso só é possível
em Cristo, que ao fazer-nos participar na Sua ressurreição, nos promete a plenitude da vida, corpo
5. Podemos perguntar-nos em que medida esta morte provocada pelo pecado, que se apresenta
como afastamento dos caminhos da vida, se confunde com a nossa morte, a morte física, que
marca o fim da nossa existência terrena, como a conhecemos. Dada a universalidade do pecado,
este atingiu a morte física de todos os homens, e torna difícil imaginar como seria a morte física
sem o pecado. Mas o que é certo na fé cristã é que Cristo venceu a morte, morrendo por amor e
restituiu à humanidade pecadora a possibilidade de retomar os verdadeiros caminhos da vida.
Todo o cristão pode vencer, vivendo em Cristo, o pecado e a morte. Isso não significa que deixe de
morrer, mas a sua morte pode tornar-se expressão e passagem decisiva para outros horizontes de
vida. E esta é a nova situação do homem perante a vida e perante a morte. Quem não venceu o
pecado, não vence a morte. E continua a haver muitos que morrem sob o signo do pecado. Para
eles a morte é fim, é drama ou fatalidade. Viver a morte sob o signo da vida, torna possível viver a
morte como oferta de amor, fazer dela um momento de entrega da vida a Deus; a morte é, então,
momento alto da confiança e do abandono, expressões nobres da obediência da fé. É expressão
decisiva da nossa união a Cristo e de morrer na morte de Cristo, esperando que ela seja, como a
d’Ele, passagem para a plenitude da vida. São Paulo resume toda essa densidade na expressão
“morrer para o Senhor”. Viver a nossa morte unidos à morte de Cristo, permite-nos dar-lhe
sentido, o mesmo da Sua morte: redenção do homem, a nossa redenção, esperança da
ressurreição. Morrer assim é experimentar a síntese entre o baptismo, a Eucaristia e a morte. A
nossa redenção consiste nisso: abrir-se definitivamente à vida em Deus.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
Introdução
Só o amor transforma o coração do homem. João Paulo II, na sua primeira Encíclica, escreveu: “O
homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua
vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se ele não se encontra com o amor,
se não o experimenta e se o não torna algo de seu, se nele não participa vivamente”[1].
Fomos criados assim: seres que podem amar e precisam de ser amados e que encontram aí o
segredo da sua vida. Criados à imagem de Deus, homem e mulher para serem um só, em
comunhão. A ausência do amor leva à alteração grave da identidade humana. A redenção só pode
consistir nisso: restituir ao homem a capacidade de amar e de ser amado, de viver com os outros
em comunhão. E daí a força transformadora de uma palavra de amor, que nos faz sentir que
somos amados e é um convite a responder-lhe generosamente. Uma palavra de amor é mais
transformadora que a palavra dirigida à inteligência. Esta alimenta o pensamento, conduz na
busca da verdade e na interpretação da realidade, mas não tem o impacto de uma palavra de
amor. Isto constitui a diferença, na comparação entre a sabedoria bíblica e a sabedoria grega,
entre a Palavra (dabar), que sem deixar de iluminar a inteligência, transmite a força criadora do
amor de Deus, e “vous”, a palavra que conduz a inteligência na busca da sabedoria. A “dabar”, o
“Verbo”, dirige-se ao coração onde se encerra o sentido do homem como ser espiritual.
Que a Sagrada Escritura é a Palavra de Deus e que Deus nos ama são lugares comuns na linguagem
crente. Mas será possível quando escutamos essa Palavra, no momento presente e na
circunstância concreta da nossa vida, escutá-la como Palavra amorosa, com a força surpreendente
e perturbadora de uma Palavra de amor?
2. A revelação ensina-nos que Deus é mais do que alguém que ama: “Ele é amor” (1Jo. 4,8). A
plenitude de Deus é-nos, assim, revelada como uma infinita voragem de amor. Se Deus fala, a Sua
Palavra comunica essa intensidade. Desde toda a eternidade, Deus pronunciou uma única Palavra,
o Seu Verbo, tão eterno como Deus, que nos será revelado como Seu Filho, no qual Deus se diz
totalmente, como amor infinito, desde a eternidade e para a eternidade. Este amor infinito de
Deus Pai pelo Seu Filho, ser-nos-á revelado como uma terceira pessoa divina, o Espírito Santo.
O Verbo eterno é a única Palavra de Deus. Só nela Deus se exprime, na intimidade do seu mistério
e no seu poder criador. Por essa Palavra, Ele criou todas as coisas, criou o homem para alargar a
sua comunhão. Só por essa Palavra o podia redimir, salvando-o, no gesto máximo de amor desse
Filho, em obediência à vontade do Pai, que renunciou à sua condição divina e se fez homem (cf.
Fil. 2,6).
A primeira condição para escutar a Sagrada Escritura como uma Palavra de amor de Deus, é
acreditar e perceber que Jesus Cristo é a única Palavra que Deus pronunciou, cuja mensagem de
amor divino se foi explicitando progressivamente através dos Profetas nas próprias palavras
humanas de Jesus e também nos acontecimentos que manifestaram a solicitude de Deus pelo Seu
Povo. Depois de Jesus Cristo, Palavra eterna de Deus, a Igreja percebeu que escutar o Antigo
Testamento era escutar as palavras de amor que Deus foi dirigindo à humanidade desde o início,
expressões da sua única Palavra eterna, Jesus Cristo. Como diz São João, desde o princípio é
verdade que aquele que escuta essa Palavra eterna, entra na voragem do amor divino: “Naquele
que guarda a Sua palavra, o amor de Deus atingiu verdadeiramente a sua perfeição” (1Jo. 2,5). É
por isso que a Eucaristia é o momento em que se escuta mais profundamente esse Verbo eterno
de Deus, porque aí nos sentimos verdadeiramente amados, por Deus e pelos irmãos, e
respondemos ao amor, fazendo da nossa vida dom a Deus, aos irmãos, a todos os homens, a todas
as causas do Reino de Deus.
Escutemos algumas dessas palavras de anúncio da salvação: “Os filhos de Israel gemiam na
servidão e ergueram até Deus o seu grito de socorro na sua servidão. Deus ouviu os seus gemidos,
e recordou-se da sua Aliança com Abraão, Isaac e Jacob. Deus viu os filhos de Israel e conheceu-
os” (Ex. 2,23-25). O coração de Deus foi tocado pela aflição do Seu Povo, e diz-lhe através de
Esta promessa de salvação há-de repetir-se, através de toda a história de Israel, Palavra de amor
sempre repetida, no realismo e na actualidade das circunstâncias, em todos os Profetas, até Jesus
Cristo. Isaías fala em nome de Deus: “Sou eu, o que professa a justiça, e me revelo grande para
salvar” (Is. 63,1). E Deus disse: “verdadeiramente este é o Meu Povo, filhos que não me renegarão.
E foi para eles um salvador. Em todas as suas aflições, não foi um mensageiro, nem um enviado
que os salvou, mas foi Ele em pessoa. Com a sua ternura, livrou-os do perigo” (Is. 63,8-9).
Mas é em Jesus Cristo, a encarnação da única Palavra de Deus, que esta urgência amorosa da
salvação se manifesta. É assim que o Anjo anuncia o Seu nascimento: “Anuncio-vos uma grande
alegria, que será a alegria de todo o Povo: hoje, na cidade de David nasceu para vós um Salvador,
que é o Cristo Senhor” (Lc. 2,11). Jesus sabe que essa é a razão de ser da Sua vida, Ele veio
procurar e salvar os que estavam perdidos (cf. Lc. 19,10). Ele é a manifestação do desejo de Deus
em salvar: “Deus amou tanto o mundo que entregou o Seu Filho único para que todo o homem
que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Seu Filho ao
mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele. Quem acredita n’Ele
não será condenado” (Jo. 3,15-18).
A Páscoa de Jesus é a Palavra de Deus decisiva para a salvação do mundo. Jesus sente a urgência,
própria de um grande amor, de ver consumado o Seu dom: “Desejei ardentemente comer esta
Páscoa convosco antes de sofrer”. Ele sabe que a Sua entrega é a Palavra decisiva da aliança
definitiva, “cálice da nova Aliança no Meu sangue” (Lc. 22,15.20). A salvação acontece em quem
escutar essa Palavra decisiva. Escutá-la supõe a fé em Jesus Cristo; é pela fé que chegamos à
salvação.
4. A Palavra de amor, quando é escutada, suscita a resposta adequada. Ao amor responde-se com
amor. No plano pessoal a resposta de amor exprime-se na fé que é, em si mesma, a primeira
experiência da caridade. Escutar Jesus Cristo é mergulhar n’Ele sem limites, aceitar a mudança que
Ele introduz na nossa vida, porque a salvação começa por ser uma experiência de vida nova,
conduzida pelo Espírito. A primeira resposta à escuta da Palavra é o desejo de conversão,
predispondo-se o crente a colaborar com a sua vontade, com a graça de Deus de quem se espera a
renovação interior. A conversão supõe o desejo e vontade pessoais, mas exprime-se na esperança
da conversão.
Simultâneo a este desejo de conversão, a escuta da Palavra onde reconhecemos o amor de Deus
por nós, é o louvor de Deus expresso em tudo o que fazemos, e assumido intensamente na oração
como expressão de comunhão com Ele. Ela é o primeiro sinal da conversão a acontecer.
Cristo deu à Sua Igreja o privilégio inaudito de falar em seu nome, quer quando proclama o Seu
Evangelho, quer quando fala para orientação dos fiéis em cada tempo e em todas as
circunstâncias. E isso exige que também a palavra da Igreja seja uma palavra de amor. É esta
exigência que garante a autenticidade da palavra da Igreja e, em última análise, a julga. A palavra
da Igreja deve levar aqueles que a escutam a sentirem-se amados por Deus.
Esta exigência exprime-se, antes de mais, na evangelização. Anunciar Jesus Cristo e o Seu
Evangelho é manifestação de amor a Ele e aos homens, porque acreditamos que o anúncio do
Evangelho é bom para eles, lhes abre um horizonte de vida novo. Evangelizar é uma urgência de
amor.
É também por isso que o dinamismo que une os cristãos é a caridade, é o mandamento novo:
amai-vos uns aos outros como Eu vos amei. A verdade da Igreja passa por aí; é assim que ela é fiel
ao Espírito Santo. Esta caridade fraterna exprime-se na imensa variedade de situações da vida das
pessoas e das comunidades: o acolhimento, o aconselhamento, a partilha de bens, a atenção ao
sofrimento e à solidão. É o vasto mundo da caridade, em que a caridade da Igreja se exprime
também em atitudes e que faz com que todos se sintam amados por Deus.
6. Uma concretização desta exigência da palavra da Igreja ser sempre palavra de amor é a
proclamação e a defesa da verdade, porque em Deus a verdade e o amor coincidem. Se nós
fossemos capazes de comunicar esta certeza de que a nossa defesa intransigente da verdade, que
recebemos da Palavra de Deus é uma exigência de amor, não entraríamos na polémica do simples
confronto de ideias ou das diversas compreensões possíveis da vida. A Igreja não comunica uma
teoria, mas a verdade em que acredita e que recebeu de Jesus Cristo. Fiel à Palavra de Deus e à
Tradição que recebeu dos Apóstolos, a Igreja não tem autoridade para adaptar a verdade ao sabor
das mudanças do tempo e das circunstâncias. Pensar que é amor por pessoas concretas em
circunstâncias precisas, alterar ou relativizar a Verdade, é ser infiel à sua missão. A Igreja sabe que
é chamada a sofrer pela verdade.
Verdade e amor exprimiu-os Deus numa só Palavra de amor, o Verbo eterno de Deus que nós
reconhecemos em Jesus Cristo. Só n’Ele podemos reconhecer o rosto da Palavra.
†JOSÉ, Cardeal-Patriarca
Introdução
1. Na nossa experiência de convívio humano, não é habitual nem espontâneo, identificar a palavra
e a pessoa. Estamos habituados a ouvir as palavras, que as pessoas proferem, escutamos o que
têm para nos dizer, mas a pessoa não se confunde com a sua palavra. No entanto a nossa
experiência humana também nos ensina que quando as palavras exprimem o mais íntimo de cada
um, a sua verdade interior, elas são mais interpelativas, constroem comunhão, fazem desabrochar
o amor e este é sempre entre pessoas.
Quando a pessoa se nos comunica pelas suas palavras, sentimos o desejo de lhe dar um rosto: os
que se amam trazem consigo a fotografia da pessoa amada; fixam em imagem, conseguida pelas
novas tecnologias, os momentos mais significativos duma relação e revê-las é ocasião de trazer à
memória, não apenas o que nos disseram, mas o rosto de quem o disse, porque o rosto comunica,
na sua expressão, a mensagem que se comunica. Quem escuta uma palavra que saiu do coração
de quem a disse e tocou o coração de quem a escutou, grita por um rosto. Os Padres Sinodais
lembraram-no à Igreja na sua Mensagem: “As palavras sem um rosto não são perfeitas, porque
não permitem que o encontro seja completo, como recordava Job, chegado ao fim do seu
dramático itinerário de busca: «conhecia-te por ouvir dizer; agora os meus olhos vêem-te» (Job.
42,5)”[1].
2. Também a Palavra de Deus, quando é escutada como Palavra de amor, grita por um rosto. O
Deus, tão vivo e amoroso na Sua Palavra, tem de ter um rosto. Querer contemplá-l’O é
consequência do acolhimento dessa Palavra.
Já no Antigo Testamento os crentes exprimem esse desejo. Moisés, o amigo de Deus, a quem a
Palavra de Deus mudou a vida e iluminou todos os caminhos que percorreu, num momento de
grande intensidade no Sinai, em que Deus lhe fala e, através dele, a todo o povo, ousa manifestar
esse desejo: “peço-te a graça de me deixares ver o Teu rosto”. Deus responde-lhe com ternura,
como que tendo pena de não poder satisfazer o seu desejo: “Tu não podes ver o meu rosto,
porque nenhum homem me pode ver e continuar vivo” (Ex. 34,18.20).
Este desejo surge com veemência nos grandes orantes de Israel, os salmistas. A oração é o
encontro pessoal e íntimo com Deus, onde se escuta a Sua Palavra de amor, como Palavra de vida.
Esse encontro suscita o desejo veemente de contemplar o rosto de Deus. “O meu coração diz-me:
procura o Seu rosto. É o Teu rosto, Yahwé, que eu procuro, não me escondas o Teu rosto” (Sl.
27,8).
Ver o rosto de Deus é, para o salmista, uma bênção e manifestação máxima da benevolência
3. “O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós e nós vimos a Sua glória” (Jo. 1,14). Este é o grande
mistério, o coração da fé cristã[2]. Já no texto do Êxodo que citámos, ver o rosto de Deus era
sinónimo de ver a Sua glória. Agora podemos contemplá-la na humanidade de Jesus Cristo. e
contemplar o rosto de Deus em Jesus Cristo continua a ser acolher a Palavra de Deus, porque Ele,
o Filho, é a Palavra eterna. Não se trata, apenas, de ver o rosto de Deus num rosto humano. É todo
o diálogo, o encontro entre o homem e Deus que se humanizou. A Palavra fez-se carne, isto é,
humanizou-se. Tudo o que é humano em Jesus, o Seu rosto, as Suas Palavras, os Seus gestos, a Sua
alegria e a Sua dor, a Sua consciência e a Sua vontade, são decisivos para esta nova escuta da
Palavra, para estabelecer definitivamente a comunhão dos homens com Deus, isto é, são decisivos
para a salvação.
Durante séculos, Deus falou por intermédio dos profetas, porque eles ofereciam a linguagem
humana à Palavra transcendente. Agora, que o Verbo se fez homem, fala directamente aos
homens, sem a mediação dos profetas, porque a humanidade de Jesus pronuncia a Palavra eterna
(cf. He. 1,1ss). Deus tornou-se mais próximo do homem.
A encarnação do Verbo deu um novo rosto e um novo dinamismo à nossa fé. Trata-se agora de
acreditar em Jesus, de reconhecer n’Ele a eterna Palavra de amor que Deus tem para nos dizer, de
descobrir no realismo da Sua humanidade a palavra e o rosto de Deus. Mas porque Ele é homem,
real e verdadeiro, trata-se de reconhecer n’Ele o verdadeiro rosto do homem como Deus o criou, à
Sua imagem e o destina à glória da visão face a face.
João Paulo II, referindo-se às dificuldades que os discípulos tiveram de reconhecer o Senhor
ressuscitado, escreve: “na realidade, por mais que se olhasse e tocasse o Seu corpo só a fé podia
penetrar plenamente no mistério daquele rosto (…). A Jesus só se chega verdadeiramente pelo
caminho da fé”[3].
A humanização de Deus em Jesus Cristo não dispensa a fé para chegar a contemplar o rosto de
Deus. Ele é a Palavra encarnada e à Palavra de Deus só se pode responder com a fé, que ganhou,
ela própria, a densidade da encarnação.
No diálogo com os Apóstolos, em Cesareia de Filipe, Jesus ao elogiar a fé de Pedro que reconheceu
5. O rosto de Cristo é um mistério, como o é o próprio Cristo. Não se trata aqui da sua aparência
física, cujos contornos se perderam na bruma do tempo. Trata-se de captar, na fé, sobretudo
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
--------------------------------------------------------------------------------
[2] Ibidem
[4] Ibidem, nº 20
[6] Ibidem, nº 24