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Porto Alegre - RS
2009
Marcia Eliza Servio Lisboa
Porto Alegre - RS
2009
Lisboa, Márcia Eliza Servio
Violências e mulheres em situação de prostituição na
perspectiva da saúde coletiva: relato de experiência na atenção
básica / Márcia Eliza Servio Lisboa. – – Porto Alegre, 2009.
45 f.
Este trabalho é sobre nossa caminhada de10 anos trabalhando com mulheres em
situação de prostituição no âmbito de Programa DST/AIDS em município de médio porte
no Rio Grande do Sul. Através da sistematização e apresentação das falas destas mulheres,
busca pensar as múltiplas formas de violências que vivenciam em suas interações com
serviços de saúde e que papel os trabalhadores de saúde exercem nestes processos. Dentro
do que é proposto pelo SUS buscamos pensar formas de construir modos de enfrentamento
singulares e coletivos a tais situações de exclusão e opressão. Estratégias que possam ser
compartilhadas e multiplicadas, objetivando maior autonomia e potência pessoal no
sentido de promoção da saúde e auto-cuidado, e que possam ser utilizadas na possível
elaboração de novas políticas públicas e de saúde voltadas às mulheres em situação de
prostituição.
ABSTRACT
This research is about our way of 10 years working with women living prostitution
situation in the ambit of Programme DST/AIDS, in medium-sized municipality in Rio
Grande do Sul. Through systematization and pr esentation of personal statements of these
women, this work aims to think the multiple forms of violence that they experience in their
interactions with health services and also what role the health workers play in these
processes. According to what is given by SU S, we have the purpose of thinking ways to
construct singular and collective approaches to these exclusion and oppression situations.
Strategies which can be shared and multiplied, aiming more autonomy and personal
empowerment in the sense of health and welfare promotion. Therefore can be applied to
possible construction of new health public policies targeted women living in prostitution
situation.
1 INTRODUÇÃO 06
2 DO PERCURSO 08
3 DAS VIOLÊNCIAS 12
6 DISCUSSÃO 38
CONSIDERAÇÕES FINAIS 40
Referências 43
1 INTRODUÇÃO
2 DO PERCURSO
No decorrer de duas décadas atuando em saúde pública, numa caminhada na qual nem
sempre tivemos consciência das questões da saúde coletiva, foram inúmeras as oportunidades
para mudar a posição acerca de uma infinidade de assuntos. Trabalhando nos primeiros anos
de saúde pública em atendimentos ambulatoriais em saúde mental, individuais e grupais com
um olhar essencialmente clínico, voltado a queixas pontuais. Nosso primeiro contato com
doente de AIDS foi em 1993 e era grande o preconceito e resistência que se podia constatar
mesmo dentro dos serviços de saúde naquela altura, e o convívio com aquela pessoa vivendo
com AIDS despertou-nos uma série de ques tionamentos. Falava-se oficialmente, nos
documentos que recebíamos do Ministério da Saúde, por exemplo, em populações de
comportamento de risco: homossexuais, usuários de drogas e prostitutas. Já trabalhávamos
com ´excluídos´, os doentes mentais, os loucos. Eram tempos de ardorosa luta
antimanicomial, não que ela tenha acabado ou ar refecido, apenas já consolidou seu espaço
reinvindicatório.
Quando da criação de um projeto que organizasse a distribuição de preservativos nas
casas de prostituição, tivemos os primeiros contatos com a prostituição. A prostituição em
casas, abrigada, posto que não havia na época mulheres trabalhando na rua de forma regular.
Na altura não nos parecia demasiado diferente trabalhar com essas mulheres em situação de
prostituição, considerando o trabalho anterior com outros ´excluídos´, os chamados doentes
mentais. Tal acontecia porque tínhamos um olhar mais linear, mas logo percebemos que
havia mais diferenças do que semelhanças, e que os atravessamentos eram completamente
outros. Gradualmente portanto, através do contato continuado e do convívio com essas
mulheres, foi possível perceber formas de exclusão, segregação, agressão, dominação que nos
pareceram tão intensas, humilhantes, acachapantes e principalmente silenciosas, que nos fez
perceber a distância entre o instituído - o que tínhamos a oferecer em termos de serviço de
saúde e de assistência social, bem como a maneira como eram disponibilizados, e o
demandado por esta população.
O modelo de intervenção que utilizamos inicialmente, limitado a orientar quanto às
formas de proteção, contágio, oferecendo insumos de proteção contra DST/HIV/AIDS teve
curta duração. Logo ficou evidente que havia mais a aprender do que a ensinar, e que uma
combinação de forças e saberes seria mais profícua, dentro da visão da saúde coletiva em
9
Tivemos sempre excelente relação com as pessoas proprietárias e gerentes das casas, e
com as mulheres que lá trabalhavam. Elas verbalizavam sentimentos de valorização pessoal
em função de nosso trabalho de campo. Em 2005, por razões administrativas optamos por
suspender este trabalho e tivemos então que confiar na força do vínculo que havia sido
estabelecido para que as mulheres viessem então até a unidade básica de saúde em busca de
insumos ou simplesmente para conversarem. O lado positivo é que muitas delas que não
gostavam de ir à unidade básica de saúde forçaram a si mesmas e acabaram enfrentando e
assumindo tal atitude como um direito seu à informação e atendimento, o que foi um ganho
importante para muitas destas mulheres. O lado negativo é que as mulheres que trabalhavam
nas casas “escondidas da família” e que só eram acessadas por nós durante as visitas,
desapareceram do nosso “radar” e também foi negativo porque ficamos sabendo da realidade
das casas apenas através dos relatos de quem nos procurava, isto é, não verificávamos
pessoalmente o andamento da dinâmica das casas. Isto acabou tendo um peso importante
porque perdemos a possibilidade de acompanhar neste intervalo de tempo que durou a
suspensão das visitas em meados de 2005, o grande “boom” do crack nesta população.
Retornando ao que denominamos lado positivo da suspensão de nosso trabalho de
campo, as falas das mulheres que chegavam até nós após passarem pela recepção, sala de
espera e outros usuários que ali aguardavam, com freqüência apontavam para situações de
discriminação e/ou agressões não verbais. O que foi o despoletador de nosso processo de
conscientização para as questões de violências cometidos nos e pelos serviços de saúde.
Talvez seja mais apurado dizer que foi uma agudização desta conscientização a respeito da
iatrogenia social que já estava latente em nosso entendimento, possivelmente a espera de ser
mostrada com mais especificidade. Outra conseqüência deste nosso processo foi a mudança
da forma como nos referíamos a esta clientela. Em trabalhos anteriores utilizávamos a
expressão profissionais do sexo (LISBOA, 2003) e hoje optamos por falar em mulheres em
situação de prostituição porque entendemos que houve de nossa parte, um deslizamento do
olhar que estava mais centrado na inserção laboral e econômica destas mulheres para os
aspectos cotidianos da vida e dos cuidados em saúde por elas demandados e que estão para
além do âmbito de sua “atividade de ganha pão”
O referido processo de vivências e aprendizado levou-nos a repensar as formas e a
importância do nosso papel enquanto trabal hadores de saúde, que “somos sujeitos que
sujeitam em certas situações, e somos sujeitos que se sujeitam em outras” (MERHY, 2007, p.
12). A importância de es tabelecer contatos e vínculos objetivando a qualificação do
cuidado, promoção da saúde e autonomia das mulheres em situação de prostituição que
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utilizam os serviços de saúde. Cabe reforçar que o foco aqui direcionado a esta população é
válido a todas pessoas que utilizem os serviços de saúde. No dizer de José Ricardo Ayres:
Este trabalho representa a tentativa de situar recortes pontuais num contexto maior e
mais geral de violências contra mulheres em situação de prostituição em suas múltiplas
interfaces com serviços de saúde. Esperamos que possa contribuir de algum modo para a
construção de modos singulares e coletivos de enfrentamento às - por vezes pouco visíveis -
violências contra as mulheres em situação de prostituição que interagem com os serviços de
saúde.
12
3. DAS VIOLÊNCIAS
Falar sobre violência implica abordar temas diversos e intricados entre si que não se
esgotam numa análise superficial. É fácil cair na tentação de buscar formas simplificadas e
simplistas. Faz-se necessário considerar um a grande complexidade de variáveis de ordem
histórica, social, política, econômica, psicoa fetivas, entre outros, como contornos das
violências. Além disso, percebe-se que cada abordagem ao tema da violência
necessariamente traz um pouco dos parâmetros da disciplina que faz o estudo. Assim, as
concepções históricas, filosóficas, jurídicas ou de saúde acerca da violência tendem a ser
visões parciais do problema, se tomadas is oladamente, tendo a interdisciplinaridade e a
intersetorialidade como permanente desafio.
Presente em todos os momentos da historicidade humana, a violência sempre gerou
uma preocupação em entender sua natureza, e sua essência, a fim de “atenuá-la, preveni-la e
eliminá-la da convivência social“ (MINAYO,1994, p. 7). Essa autora ainda assinala a
dificuldade em conceituar a violência por representar um fenômeno vivido e, portanto,
investido quase sempre de importantes doses de emoção por parte das pessoas envolvidas.
Circunstância que certamente inclui os trabalhadores de saúde que acolhem as pessoas que
sofreram algum tipo de violência, mas que também podem ser perpetradores de outras formas
de agressão. Uma olhada superficial nos conteúdos divulgados pelos meios de comunicação
deixa claro que a visão contemporânea da violência privilegia os aspectos de transgressão,
delinqüência, talvez pelo impacto público e visibilidade maiores do que outras formas de
violência como a fome, o assédio e afrontas diários que ocorrem nas casas, empresas.
A violência se dá no âmbito social, das relações, e afeta direta ou indiretamente a
saúde individual e coletiva. Reconhece-se portanto a violência como temática pertinente a
ser estudada dentro do campo da saúde pública, “convidando a repensar práticas e políticas a
elas vinculadas na contemporaneidade“ (GOMES,1997, p.93). Consideramos o impacto que
a violência causa na qualidade de vida das pessoas, além de lesões, sejam físicas ou psíquicas,
e também, a importância de se trabalhar com um conceito ampliado de saúde que cconsidera
os aspectos de promoção à saúde, numa visão coletiva que contempla a participação e
construção do ambiente social.
13
O uso intencional de força física ou poder, real ou como ameaça, contra si mesmo,
outra pessoa, ou contra um grupo ou comunidade, que resulte em, ou resultou, ou
tem uma alta probabilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, mau
desenvolvimento ou privação (WHO/OMS, 2002).
Para além da visibilidade dos efeitos da violência física estrita tais como lesões,
fraturas, que se dão pela a ção direta de indivíduos ou grupos contra outros indivíduos ou
grupos em roubos, assaltos, estupros, homicídios, atentados armados, lidamos também com a
violência simbólica. Os efeitos desta modalidade de violência nem sempre são facilmente
visíveis num primeiro momento e se estabelecem num nível relacional, mediante
reconhecimento e utilização de símbolos de autoridade e poder, Entram aqui as agressões
verbais, humilhações, assédio, discriminação, práticas de sujeitamento que instrumentalizam
estratégias de dominação, de poder. Um efeito perverso de tais estratégias é o progressivo
empobrecimento de recursos materiais e simbólicos que acontece aos marginalizados,
excluídos, realimentando um círculo de exclusão e vulnerabilidades diversas.
Jean-Marie Domenach (1981) defende a idéia que a violência é tão antiga quanto o
próprio mundo, mas sublinha o fato de que não parecia representar um problema filosófico
para os antigos, que se limitavam a registrar o fato em si. Diz ele ainda:
Deste texto publicado há quase duas décadas, mas ainda mais antigo em sua gênese,
gostaríamos de pinçar os aspectos de autoritarismo e poder, características atribuídas pela
autora aos modos de organização e funcionamento dos serviços de saúde, e a passividade
feminina determinada socialmente. É razoável afirmar que neste intervalo de tempo algumas
coisas mudaram. A participação e o controle soci al se vão construindo a cada dia nas relações
entre usuários e serviços de saúde, e também a referida submissão feminina determinada
socialmente vai sofrendo modificações em seu contorno. Entretanto, o tom geral do texto não
soa excessivamente anacrônico, encontra ecos significativos em nossos ouvidos
contemporâneos.
O controle social, a exigência pela qualidade dos serviços em saúde, passa pelo auto-
reconhecimento dos usuários como cidadãos portadores de direitos. Ora, num contexto social
e cultural em que as mulheres que se prostituem não sejam consideradas cidadãs plenas, ou
seja, que ainda possam ser vistas como párias, as distorções nos processos de atenção
possivelmente serão mais comuns. Em saúde pública a formulação de políticas, implantação,
implementação e avaliação das ações passa necessariamente pelo conhecimento da magnitude
do problema a ser enfrentado, quando a população alvo é “invisível”, a magnitude dos
agravos, ou mesmo estimativas, tornam-se mais difíceis de elaborar.
Consideramos que o fato das mulheres prostitutas terem sido consideradas como grupo
de risco logo no começo dos trabalhos sobre HIV/AIDS trouxe visibilidade a várias outras
vulnerabilidades desta população. Contudo, não foi a melhor maneira posto que também
contribuiu para aumentar o preconceito mesmo nos serviços de saúde.
O Ministério da Saúde através da Norma Técnica sobre Prevenção e Tratamento dos
Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes (BRASIL, 2002)
fez com que os serviços de saúde se organizassem em torno do tema, estabelecendo rotinas
de quimioprofilaxia com anti-retrovirais para HIV, anticoncepção de emergência e
monitoramento para DST e hepatites virais. A iniciativa é excelente, sem dúvida, mas quais
seriam as chances reais de uma mulher que trabalha com prostituição ser acolhida numa
unidade básica de saúde, por exemplo, com a queixa de que sofreu violência sexual. Ouvimos
muitas vezes depoimentos de mulheres que sofreram abuso sexual, foram espancadas, e que
foram para casa se curar e não buscaram atendimento em serviços de saúde. O municipio
onde trabalho convive com a sazonalidade da pesca. No verão é grande o afluxo de
pescadores dos mais diversos locais, e se multiplicam relatos nos quais um homem aborda
uma mulher para um programa, convida-a ao barco onde está morando e uma vez dentro do
barco ela descobre que há lá mais cinco homens. Os relatos variam em número de homens
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Pensemos nas idas e vindas, nas trilhas que compõem o mapa, e que de algum modo
delineiam as tantas identidades da mulher em situação de prostituição, remetendo-nos à
figura de um mosaico, composto de milhares de pedacinhos, em vez de uma única lisa,
homogênea e brilhante fotografia. Como construir um serviço que se pretende integral de
modo a contemplar o maior número possível das necessidades dessas pessoas? Como fica a
conhecida expressão: cada caso é um caso? Ao justificar a utilização do plural no começo do
texto, falávamos do cuidado em assinalar as múltiplas formas como se dão as violências.
Falávamos das mulheres em situação de prostituição e seus modos próprios de exposição às
violências em diferentes momentos de suas trajetórias de vida, inclusive na interação com os
serviços de saúde, numa tentativa de fazer emergir recortes de situações pontuais de
violências que ilustrem nossa idéia.
Das frases mais freqüentes que ouvimos dessas mulheres, com pequenas variações,
estão: “é o único trabalho que me dá dinheiro suficiente, de modo rápido e sem horário fixo”.
Nesta frase estão contidas em resumo várias outras derivações que dizem respeito à
possibilidade do próprio sustento e dos filhos, com a maior autonomia possível. Isto diz de
um sentido de independência e insubmissão ao instituído, mas sempre são questões em aberto
o alcance e a consistência desta autonomia.
Dizíamos em outro capítulo que violências são exercícios de subjugação que
instrumentalizam estratégias de dominação, levando ao enfraquecimento dos recursos internos
dos submetidos com efeitos como despersonalização e submissão total.
Pela natureza e circunstâncias em que acontecem suas práticas, as mulheres em
situação de prostituição são constantemente expostas a todas as modalidades de violências
citadas. Consideramos prostituição, neste trabalho, a troca consciente e continuada de favores
sexuais por dinheiro, bens ou proteção. Se trabalham nas ruas, casas ou clubes, as mulheres
estão vulneráveis a espancamentos, estupros, extorsão, humilhações e abusos por parte de
clientes, parceiros ou policiais. Entretanto, são antes de tudo mulheres, cidadãs, integradas em
redes familiares, participando da vida escolar dos filhos, das rotinas de compras em
supermercado, com aluguel, contas de água e eletricidade para pagar e que utilizam em
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algum momento os serviços de saúde pública. Ali elas fazem clínica, pegam
anticoncepcionais, preservativos, levam os filhos para vacinar, a mãe para consultar.
Muito tem sido escrito a respeito do papel da mulher como guardiã da família
(COSTA, 1989); das “quebras” e perdas que se dão nas situações de mulheres/meninas que se
prostituem antes de compreenderem exatamente o que lhes está acontecendo (DIMENSTEIN,
1993); das mulheres que escolhem de forma consciente a prostituição entre outras alternativas
de trabalho (ROBERTS, 1996). O tom geral desses trabalhos é que, rompido o padrão
esperado do “natural” papel da mulher - ligada à casa, ao lar - , ela é passível de ser apontada
como transgressora com as mais diversas conseqüências. Diz-nos Carla De Meis:
O habitat natural da mulher é visto como sendo a “casa”, de forma que, mesmo
quando ela transgride o seu papel de mãe e vira puta, ela continua presa ao mundo
doméstico e à natureza. As funções femininas constroem-se em cima de dois pólos:
a “cama” e a “mesa”. Os papéis “naturais” da mulher consistem, respectivamente
em “dar prazer ao homem” e ser “mãe”. A mulh er “direita”, ou seja, a mulher do lar,
tem como papel a contenção de seus instintos “maléficos” (sexuais), qualificando-a
portanto para a maternidade, salvaguardando assim a honra da família e
possibilitando a reprodução de uma nova geração. Trata-se da mulher da “mesa”. A
mulher insubmissa possui em si o germe da desordem, entretanto continua, mesmo
que na “rua”, reproduzindo a “casa”, espaço feminino por definição. A puta é
“cama“. Cabe a ela suprir os desejos e as fantasias dos homens, que não podem ser
satisfeitos pela mãe, visto esta ser santa (virgem, como a virgem Maria, mãe de
Jesus) e ter abdicado de sua sexualidade para gerir o lar (MEIS, 2001, p. 271).
A referida insubmissão por parte das mulheres que trabalham com prostituição é, no
entanto, relativa. Cada mulher constitui seu entorno de acordo com suas possibilidades.
Algumas, por exemplo, estabelecem uma separação entre as atribuições do trabalho daquelas
de esposa e mãe, estabelecendo um tipo de vida dupla, dissociadas entre si. Já outras
compartilham o conhecimento sobre seu trabalho com a família e amigos, ainda que
mantendo em separado os “momentos” de tr abalho. Um exemplo pode tornar mais claro o
que dizemos: conhecemos uma mulher que não gostava de trabalhar dentro do município,
mesmo sua família e amigos sabendo de sua atividade, ela ia diariamente para um município
vizinho com sua bolsa contendo roupas de trabalho que ela então utilizava e trocava quando
voltava para casa. Comentava que esta separação “física” propiciada pela roupa “específica” e
pela distância entre o local de trabalho e a casa, ajudava a lidar melhor com a prostituição.
Tais formas de organização pessoal - entre outras tantas - sugerem também o estabelecimento
de diferentes modos de interação com as instituições, neste caso, serviços de saúde.
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O autor propõe ainda que as vulnerabilid ades devem ser pensadas a partir da
articulação de três aspectos: individual, social e programático. O aspecto individual implica a
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Pela própria natureza do trabalho das mulheres que se prostituem, seja em casas ou nas
ruas, os elementos de segurança pessoal e de saúde são muitas vezes tensionados ao máximo.
Em termos de saúde física apresentam riscos aumentados em adquirir DST/HIV/Aids e outras
doenças por inúmeros fatores além da incógnita sanitária representada pelos inúmeros
parceiros sexuais. Lesões internas por impacto, contágio de doenças de pele e outras. De outro
lado, o aspecto emocional vai sendo paulatinamente fragilizado pelas exposições e vivências
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sociais, nas quais podem ser alvos de palavras jocosas, situações de humilhação e
discriminação, enfim, situações que digam que não são pessoas dignas de se misturarem ao
contexto social “normal” .
Tivemos oportunidade de ouvir o relato de uma mulher que, na altura de tal conversa,
contava com cinco meses de atividade na prostituição e se mostrava genuinamente animada
com o fato de ter conseguido – o que ela considerava – um bom dinheiro neste período. Os
clientes nesta época eram essencialmente ex-vizinhos da pequena comunidade onde vivia
anteriormente. Segundo ela, todos souberam da novidade que ela havia deixado a família e
estava “disponível” numa determinada casa de prostituição. Após este primeiro contato, foi
possível acompanhar as mudanças quando esta mulher comparecia ao serviço para conversar,
pegar preservativos. A novidade passou, os ex -vizinhos sumiram, seu preço por programa
teve que baixar, a clientela já era outra que muitas vezes a fazia ficar “ tapada de nojo” e
ainda teve seu acesso à antiga comunidade vedado pela família e conhecidos. Sua mãe, irmãs,
cunhadas, as mulheres essencialmente, cortaram efetivamente suas visitas lá, falando com ela
apenas em seu local de trabalho. O processo de tomada de consciência de sua nova posição
na sociedade e o que isto implicava em termos de perdas familiares, novos modos de
relacionamento com sua identidade antiga e cons trução de formas alternativas de estar em
sociedade mostrou ser bastante difícil e dolorido para esta mulher. Quando a idéia que
alimentara sobre uma “vida mais livre e fácil” mostrou-se não muito realista, precisou de
ajuda para enfrentar as situações negativas que lhe iam surgindo. Relatos como este não são
incomuns, com algumas variações nos detalhes.
Quando estas mulheres que vivem numa situação de prostituição estão vinculadas a
um serviço onde os profissionais estão atentos e disponíveis para a escuta e para realizar
acompanhamento efetivo, tais momentos e processos destas mulheres podem ser identificados
e trabalhados no sentido de dar suporte e ajudar a construir alternativas de enfrentamento ou
apontar novos caminhos, se for seu desejo.
Enfim, significa dizer que sim, mulheres em situação de prostituição apresentam
maiores vulnerabilidades, que poderão ser minimizadas ou enfrentadas de forma efetiva se
houver disponibilidade por parte dos profissionais de saúde que estejam atentos aos aspectos
da integralidade, respeitando os desejos e limitações destas pessoas.
Em trabalho anterior sobre vulnerabilidades das mulheres frente às DST/HIV/AIDS,
não exclusivamente das que trabalham como prostitutas, dizíamos:
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fluíram com facilidade e os resultados da pesquisa, para além do que era proposto: ter notícias
de como estas mulheres viam o novo insumo e saber um pouco de como eram em termos de
perfil, foram mais esclarecedores do que imaginávamos a princípio. Para citar um exemplo,
num dos quartos em que estivemos durante as entrevistas havia uma pequena mesa coberta
por mais de vinte miniaturas de vidro e resina, representando anjinhos e bichinhos variados.
De maneira espontânea, a entrevistada apont ou-os e comentou que o lote inteiro havia
custado menos de cinquenta reais e que havi am sido adquiridos de uma conhecida sua que
estava liquidando o estoque de uma loja de presentes. Logo a seguir relatou que estava muito
preocupada naqueles dias porque alugara um a casa em outro município, onde viviam seus
dois filhos com uma babá, e o aluguel estava dois meses atrasado. No primeiro momento as
duas declarações pareceram contraditórias, se alguém tem dívidas e dispõe de pouco dinheiro,
dificilmente se esperaria que gastasse com objetos de decoração não essenciais. Certamente a
idéia do que seja essencial é muito singular e naquele episódio dava uma idéia do
funcionamento da linha de tempo em que funcionava aquela mulher. Dito de outro modo,
naquele momento ela achava que precisava comprar e manter junto de si aqueles objetos, a
questão do aluguel e dos filhos seria resolvida depois, num outro momento.
Isto ajudou nossa compreensão acerca das dificuldades que tínhamos e ainda temos
em relação ao comparecimento destas mulheres às consultas agendadas. Para citar um
exemplo, num dia em particular estavam marcadas seis consultas com ginecologista e apenas
uma das mulheres que havia solicitado o atendimento compareceu ao serviço. Alguns colegas
do serviço criticaram a idéia de continuarmos mantendo o agendamento para esta população,
porquanto os horários poderiam ter sido “aproveitados” por quem valorize efetivamente o
atendimento. Falamos aqui de eqüidade que, em nosso entendimento, está para além da
igualdade no acesso aos serviços de saúde porque está vinculada, entre outros fatores, às
necessidades da população e suas peculiraidades. O episódio citado não foi um fato isolado,
embora os números variem, mas nos faz pensar que é importante que se leve em consideração
questões como esta da linha de tempo quando pensarmos em planejamento de ações de
prevenção e atenção em saúde voltados às mulheres em situação de prostituição.
A vitimização da mulher que vive da prostituição também foi uma outra visão que
desconstruimos no decorrer deste tempo de trabalho. A quase totalidade das mulheres com
quem temos conversado confirma que optam por continuar na prostituição porque ganham ali
o que não ganhariam em outro lugar. Muitas delas já tiveram empregos regulares “ com
carteira assinada” e desistiram para voltar aos programas. Conseguem manter a casa, filhos,
e, às vezes, um parceiro cronicamente desempregado.
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Uma mulher com cerca de 50 anos contou que mesmo hoje com casa própria,
automóvel e uma pensão de um “ antigo ex-marido”, não abre mão dos programas. Justifica
que gosta de ter sempre o dinheiro “ali, no bolso” e é o suficiente para se manter como gosta,
a pensão vai indo toda para o “pé-de-meia para quando não der mais para rodar por aí”. Há
tempos ela compareceu ao serviço trazendo uma irmã que estava de visita em sua casa, a irmã
tem 50 anos e também trabalhou sempre na prostituição. Ela brincou e disse que ensinara à
irmã mais moça tudo o que sabia do ofício, e depois das poucas dificuldades do começo, não é
difícil acostumar e “ignorar o que têm de aturar para ganhar algum”. Tais mulheres, assim
como outras tantas, não são pessoas vitimizadas e inviabilizadas, mas são sim discriminadas,
ocorre que elas construiram modos de lidar e conviver com tais situações adversas.
Entretanto, as maneiras de enfrentar as ag ressões sociais ou mesmo violências físicas, são
tantas quantas são as pessoas que as vivenciam.
Podemos visualizar mais claramente este ponto citando a fala de uma mulher de 25
anos que numa das vezes em que foi pegar preservativos, sentou-se pesadamente, suspirou e
disse que não tinha vontade mais de se arrumar, sentia-se “gorda e atirada”, mas não
conseguia reagir. Limitava-se ultimamente, segundo ela, a “tirar a roupa, deitar, abrir as
pernas, levantar, vestir-se e esperar o próximo”. Falou num único fôlego, como se narrasse a
seqüência de um filme rodando em loop infinito. Nestas situações tendem a se fechar e se
manter circulando apenas entre seu próprio grupo de trabalho, colegas que trabalham na
mesma casa, diminuindo consideravelmente o stress do enfrentamento de situações sociais
que possam considerar adversas.
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Os princípios e diretrizes do SUS apontam para uma idéia de saúde como resultante
dos processos de interação humana, produto da vida em sociedade e não apenas uma ausência
de doenças. Daí o entendimento de que o modelo biomédico centrado no atendimento e no
binômio saúde-doença está esgotado.
As mudanças das políticas públicas de saúde, embora lentas, têm ocorrido no Brasil
no sentido que é expressamente declarado o direito à universalidade, à eqüidade e à
integralidade do cuidado, pela lei 8080/90 que institui o Sistema Único de Saúde. Assim
considerado, o SUS pode ser entendido como a proposição mais democrática e abrangente
de saúde já sistematizada no país. Na prática, entretanto, nem sempre os serviços de saúde se
organizam conforme o preconizad o pela lei. Variáveis sociais, econômicas e políticas são
apenas alguns dos atravessamentos que fazem com que nem sempre os princípios do SUS
sejam contemplados. Ainda convivemos com a idéia que o SUS é um sistema para pobres, e
que, quem pode, acaba optando por planos de saúde privados.
O Prof. Eugenio Mendes dizia em entrevista de 2005:
Ainda que se busque fazer com que a atenção básica se consolide como um conjunto
de ações de saúde que contemplem a promoção, a prevenção, o diagnóstico, o tratamento e a
reabilitação, para indivíduos, famílias e comunidades, ainda está presente a noção de que
significa um serviço de baixas complexidade e tecnologia. Merhy (1992) já sinalizava para a
importância de trabalhar ações de promoção e proteção à vida e à saúde com custos
equilibrados e viáveis, dentro da perspectiva da saúde coletiva, respeitando o direito à saúde
por todos os cidadãos, providos pelo Estado. Trata-se de trabalhar visando obter o máximo da
capacidade cuidadora dos trabalhadores de saúde, na defesa da vida individual e coletiva.
Ainda segundo Merhy (1998), dos desafios que se colocam na perspectiva da saúde coletiva
estão a utilização de tecnologias duras (as que estão inscritas em máquinas e instrumentos),
em detrimento de tecnologias leve-duras (definidas pelo conhecimento técnico) e leves (as
tecnologias das relações) para o cuidado ao usuário.
Entendendo-se, portanto, que as tecnologias leves, relacionais, podem gerar, dentro
dos serviços de saúde um tipo de iatrogenia social, ou seja, trazer prejuízos sociais,
emocionais e de identidade aos usuários. Para citar um exemplo de situação que mais de uma
vez testemunhamos, com alguma variação, um a mulher prostituta chega ao balcão de
recepção da Unidade de Saúde para agendar consulta e é questionada em alto e bom som por
uma funcionária sobre suas práticas de trabalho. Acontecem também discriminações e
agressões verbais dentro dos serviços por parte de profissionais técnicos.
Merhy, em importante contribuição ao tema dos cuidados, ainda diz:
Devemos ficar atentos, então, neste tipo de processo, a pelo menos duas questões
básicas: a de que todo profissional de Saúde, independentemente do papel que
desempenha como produtor de atos de Saúde, é sempre um operador do cuidado,
isto é, sempre atua clinicamente, e como tal deveria ser capacitado, pelo menos,
para atuar no terreno específico das tecnologias leves, modos de produzir
acolhimento, responsabilizações e vínculos; e, ao ser identificado como o
responsável pelo projeto terapêutico, estará sempre sendo um operador do
cuidado, ao mesmo tempo que um administrador das relações com os vários
núcleos de saberes profissionais que atuam nesta intervenção, ocupando um
papel de mediador na gestão dos processos multiprofissionais e disciplinares que
permitem agir em saúde (MERHY,1998, p. 10-11).
embora, ainda que refira dor intensa, enfim, situações nada incomuns para quem vive o
cotidiano dos serviços de saúde.
Em nosso percurso de trabalho, houve várias conversas, em momentos e
circunstâncias diversos, a respeito da viabilidade e benefícios de se ter profissionais em
horários diferenciados na unidade básica para atendimento a mulheres em situação de
prostituição. Serviços que deveriam contemplar vários aspectos, não apenas a “dupla
imbatível” representada por consulta & exames - posto que usuários e trabalhadores de saúde
compartilham em alguma medida do imaginário que associa qualidade da atenção com
exames, procedimentos de alta complexidade, medicamentos, mas também serviços de saúde
mental, odontológico e assistência social.
Os vários aspectos da ge stão, especialmente os custos, foram e são sempre barreiras
importantes, mas também houve como argumento que estabelecer horários assim específicos
seria fazermos um tipo de segregação de tais usuárias, separando-as dos demais. Podemos
dizer que é um argumento válido e se tomado sozinho, fora do contexto, dá a idéia de que
fazíamos efetivamente uma proposta segregadora. Entretanto, os horários propostos se davam
no terceiro turno, horário em que a maioria das trabalhadoras do sexo está em atividade, não a
dormir. Também é o horário que costumam ch egar ao município, quando oriundas de algum
local vizinho, ou seja, seria um horário e ponto de convergência. Além disto, o fato de que,
nos horários “normais”, muitas delas em sala de espera foram alvo de piadas, olhares e
distanciamento físico nos bancos, e isto não apenas pelos demais usuários com quem
compartilhavam a sala de espera.
Dizíamos anteriormente que o convívio continuado com a realidade dessas mulheres
nos fez perceber aspectos mais “silenciosos”, menos visíveis, de exclusão, segregação que
em nosso entendimento lhes vai diminuindo até a vontade de reagir ou se fazer ouvir.
Importante sinalizar que tivemos muitos momentos de identificação parcial com alguns
aspectos das falas que expressavam impotência e um misto de conformismo e revolta, porque
também nós trabalhadores de saúde sentimo-nos muitas vezes excluídos ou desempoderados
em nosso próprio trabalho quando não somo s ouvidos ou considerados como sujeitos
pensantes e potentes, seja por nossos pares ou pelas instituições onde estamos inseridos, por
exemplo. Mais adiante retomaremos as questões de processo de trabalho, tendo como
referência o trabalho de Merhy (2007) que nos fala da liberdade máxima do profissional de
saúde na sua relação de trabalho com a pessoa que está diante de si no contexto dos serviços
de saúde. Em outras palavras, sempre é possível resgatarmos ou constituirmos nossa própria
potência enquanto trabalhadores de saúde, utilizando nossas bagagens pessoais e profissionais
29
no processo relacional que estabelecemos com as pessoas que cotidianamente são acolhidas
pelos serviços.
Nossa observação ao longo de dez anos nas práticas com mulheres em situação de
prostituição sugere que há uma dualidade conflitante entre o comportamento exteriorizado
como “afrontamento rebelde”, muitas vezes utilizado como forma de enfrentamento diante de
contexto social hostil, e o que é efetivamente sentido por essas mulheres. Ouvimos com
freqüência frases como: “já nem ligo mais para o que me dizem ou fazem” que são
desmentidas pelos olhos e pela maneira de falar, dando a perceber que os processos de
negar/controlar o sentimento de humilhação e rejeição não são assim eficazes. A expressão
dualidade, acima mencionada, talvez não seja muito precisa, posto que são dois momentos de
um mesmo processo: se percebem que são alvos de olhares, cochichos, seja por parte dos
demais usuários ou por parte de algum dos profissionais do serviço de saúde, é razoável que
reajam com o que imaginam que seja a atitude esperada: “tá olhando o quê? Nunca viu?”.
Temos observado situações em que mantêm uma atitude estóica e indiferente - na aparência -
em sala de espera repleta de olhos curiosos e dedos acusadores. Tais comportamentos e
reações são construídos ao longo de anos de enfrentamento de situações similares, obviamente
não apenas dentro dos serviços de saúde. Os comportamentos dos trabalhadores de saúde
também são construídos e, portanto, atravessados por convenções sociais, culturais, então
podem ser modificados a partir do seu desejo em efetivamente constituir práticas na direção
da humanização do atendimento e da promoção da saúde no sentido mais amplo.
Ocasionalmente nos surpreendemos tentando imaginar qual seria nossa própria reação, se
estivéssemos na posição de algumas das mulheres de quem ouvimos os relatos.
Segundo José Ricardo Ayres:
podemos dizer que a vida em sociedade é que oferece para nós, seres racionais,
as referências objetivas pelas quais orientamos nossos projetos de felicidade. Daí
a importância de entendermos a humanização em sua inexorável politicidade e
sociabilidade e, por conseguinte, em suas importantes implicações institucionais.
A problemática de que trata a humanização não se restringe ao plano das
relações pessoais entre terapeutas e pacientes, embora chegue até ele. Não se
detém em arranjos técnicos ou gerência das instituições, embora dependa deles.
Trata-se de um projeto existencial de caráter político, trata-se de uma proposta
para a ´pólis´ (AYRES,2006,p. 53-54).
Entendemos que é sempre possível no aqui e agora dos serviços de saúde pôr em
prática esta flexibilização no atendimento, enquanto pensamos as possibilidades e
necessidades de implementeção de políticas de saúde voltadas às demandas das mulheres em
situação de prostituição:
Temos consciência que tal entendimento acerca das parcerias e construções coletivas
não se constitui exatamente em novidade, mas a intenção foi expressar um pouco do nosso
processo de mudança vivenciado neste tempo de trabalho.
Os autores Passos & Benevides (2006) nos dizem que
Para mudar o social, é necessário pensar na questão do poder, pois o poder ocupa
espaço central na dinâmica social. Significa pensar em como a forma de implementar uma
ação estratégica de saúde pode produzir um certo deslocamento de poder favorável à
resolução do problema, ou seja, reformatar ou estabelecer novas políticas de saúde. Tais
processos tendem a ser lentos, mas são por vezes acelerados pelo impacto de eventos como,
por exemplo, a epidemia da AIDS nos anos 80, que forçou uma reação rápida em termos de
planejamento de ações de prevenção e atenção, e que tornou visíveis populações como as
mulheres em situação de prostituição.
Nossas práticas de trabalho com mulheres em situação de prostituição foram se
modificando a partir das experiências e aprendizados, e podemos dizer que hoje privilegiam
um modo relacional e interativo que potencializa um diálogo construtivo/constitutivo na
direção da autonomia e empoderamento destas mulheres. Com freqüência nos emocionamos e
solidarizamos com as situações que nos chegam no cotidiano e entendemos que isto, longe de
comprometer a qualidade e objetividade do cuidado, aproxima nossas práticas da dimensão
humana, realizando o que Merhy (2007) chama de trabalho vivo em ato. Nossos objetivos são
basicamente acolher a fala das mulheres em situação de prostituição num processo de escuta
ativa, participativa e com disponibilidade de tempo e atenção, e, então, buscar possíveis
encaminhamentos ao que é demandado. Acreditamos que abrir espaço para que estas
mulheres expressem suas dificuldades em lidar com as violências e situações de agressão e
opressão, viabiliza a conscientização a respeito de seu momento de vida e as potenciais
mudanças que poderão construir a partir dali.
Nosso trabalho cotidiano não tem formato rigidamente fixado e acontece segundo
nossa disponibilidade de horários na unidade de saúde e de acordo com as peculiaridades das
36
o respeito pelo tempo de resposta das pessoas que buscam os serviços de saúde. Passa
também pela articulação e consolidação da rede, monitoramento e avaliação dos serviços e
outros tantos aspectos que fazem parte dos contornos da saúde coletiva.
Dizíamos que muitas das normas técnicas propostas pelo Ministério da Saúde são
limitadas ao “preto e branco” de rotinas de procedimento. Defendemos, portanto, que os
modos de levar a cabo tais procedimentos sejam através de um formato relacional
humanizado, de diálogo e interação com as mulheres em situação de prostituição que faça,
efetivamente, a diferença nos resultados que buscamos: autonomia, poder sobre si,
sensibilização para o auto-cuidado e bem estar geral dentro das possibilidades e do contexto
destas mulheres, e, também, potencial para a implementação de mudanças de estilo de vida se
for o que desejarem.
38
6. DISCUSSÃO
grupos, e que pode ocorrer sem que haja necessidade de que as pessoas participem
de ações políticas coletivas. Influenciando esta formulação encontramos uma
perspectiva filosófica individualista que tende a ignorar a influência dos fatores
sociais e estruturais; uma visão que fragmenta a condição humana no momento em
que desconecta, artificialmente, o comportamento dos homens do contexto
sociopolítico em que encontram-se inseridos (CARVALHO,2004, p.1090).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossas práticas de trabalho e modos de acolher e apreender os sentidos das falas das
mulheres em situação de prostituição ao longo de dez anos foram gradativamente convergindo
no sentido de acreditar que, mais premente do que elaborar e implementar políticas de saúde
direcionadas a esta população, devemos sim, enquanto trabalhadores de saúde repensar nossas
práticas cotidianas de trabalho. Em outras palavras, é importante que consigamos olhar estas
mulheres para além do formato de sua inserção laboral, posto que não são apenas a profissão
que têm.
O tempo dedicado à preparação e elaboração deste trabalho foi como um balanço do
que foi feito e quais caminhos foram percorridos e de que maneira. Foi também um tempo de
conectar reflexões esparsas que há algum tempo vinham se configurando em nossa mente.
Podemos tomar como exemplo exatamente a questão da pertinência da elaboração de políticas
de saúde direcionadas às mulheres em situação de prostituição e suas demandas diferenciadas
e vulnerabilidades aumentadas para vários agravos e situações de risco. Consideremos que o
Ministério da Saúde já possui uma políticas de saúde voltadas para mulheres, que há ações
específicas para mulheres negras, que mulheres lésbicas também reivindicam seu quinhão de
atendimento diferenciado, e que, a continuar a progressiva segmentação destas populações,
podemos chegar a uma indesejada fragmentação de ações e normas. É quase um paradoxo à
situação que desejamos quant o ao atendimento que contemple sim as singularidades, mas
com um olhar integral e não fragmentador. Encontrar o equilíbrio entre estes pontos poderá se
tornar um desafio semelhante ao que enfrentamos diante da pergunta de uma agente
comunitária de saúde: “estou com o caso de uma menina de 12 anos que está se prostituindo
para pagar o crack que está consumindo, está com comportamento violento e um tanto
confusa e desorientada. Para onde levo? Conselho Tutelar? CAPS AD? CAPS I? Programa
DST/AIDS?” Em nosso entendimento, a pergunta foi sobre qual aspecto da menina seria
priorizado, se o fato dela ser “de menor”, ou “drogada”, ou estar se prostituindo. Entendemos
que a resposta esteja em qual destes serviços, ou outros, neste momento atende melhor às
necessidades, demandas e desejos da menina. Porque é isto que ela é: uma menina que está
usando drogas, se prostituindo, apresentando comportamentos violentos, mas uma menina, a
qual devemos conhecer melhor antes de decidir pelos encaminhamentos.
Ainda sobre a humanização, durante conversa com colegas de trabalho lá por meados
de 2005, ouvimos de uma pessoa da área de enfermagem esta fala, que citamos de memória:
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“se é preciso que o Ministério da Saúde promova toda esta produção e cursinhos de como
sermos humanos no atendimento, acho que tem qualquer coisa errada com a gente ou com o
SUS. Acho que isto deveria ser óbvio: tratar todo mundo com respeito e atenção” . Na altura
este comentário desencadeou uma enxurrada de argumentos com grande alarido, contra e a
favor da explicitação do que entendemos como atendimento humanizado no âmbito do SUS,
ou pelo menos o que o Ministério da Saúde preconiza como tal. Mas ficou a pergunta que
entendemos pertinente: será que há algo errado conosco, profissionais de saúde, que
precisamos da produção de textos e mais textos explicando como realizarmos um
atendimento humanizado e respeitoso? Certamente nunca é demais sermos lembrados disto.
Na etapa de finalização deste relato de experiência, convidamos amigos, que também
são profissionais de saúde, a opinarem livremente sobre ele. Os resultados foram além do que
esperávamos e mais uma vez nos mobilizamos emocionalmente, o que foi uma constante no
decorrer da elaboração deste trabalho. Citamos particularmente duas amigas que trabalham
junto a pessoas com problemas quanto ao uso de drogas. Ambas ressaltaram as semelhanças
das dificuldades que relatamos, como a questão de “linha de tempo” e que dificulta o
“compasso” entre usuários e serviços, com suas experiências de trabalho. Falaram também
dos obstáculos institucionais, nos próprios serviços de saúde, que decorrem do
“reconhecimento” da exclusão social dos usuários. Ainda sinalizaram para o fato, ou o que
entendem como um fato, de que esta popul ação com que trabalham também está numa
“situação” de uso, e portanto, estas pessoas es tão “para além do uso e dos modos de uso,
da(s) droga(s) que utilizam”, ou seja, elas “não são apenas as drogas que utilizam”.
Resolvemos incorporar essas falas neste trabalho porque as consideramos ilustrativas
de elementos que entendemos serem fundamentais na construção do SUS que queremos:
houve produção teórica a partir de um fazer cotidiano; esta prática pôde ser revisitada com um
olhar amadurecido ao longo de vinte anos de práticas; outros trabalhadores puderam ver o
escrito e usarem como parte de suas próprias reflexões acerca das suas práticas em saúde.
Além de produzir conhecimentos, convidar a refletir sobre o fazer em saúde, a discussão
proporcionou/propiciou vínculos importantes em vários níveis. Isto também é rede que gera
cuidado, apoio, novos saberes e fazeres a partir das trocas e construções coletivas.
Outra reflexão importante que retomamos a partir das leituras para este trabalho foi a
questão de sermos capazes – no âmbito singular e/ou coletivo – de construir estratégias que
sejam pontes para viabilizar mudanças administrativas e políticas que levem à qualificação e
valorização dos profissionais no atendimento e ações de promoção da saúde junto a esta
população. Os profissionais de saúde possuem, efetivamente, graus de liberdade em seu
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processo de trabalho, no contato com usuários, nos modos de articulação e expressão junto a
seus pares, aos gestores e a instituição onde estão inseridos O trabalho de formiguinha faz
diferença e não podemos pensar, ou permitir que nos façam pensar, que não seja importante
fator de construção destas pontes.
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