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Vamos ser Escritores

Imagem retirada do site: http://dadosemcomum.wordpress.com/

O tempo corre, esgota-se, esfuma-se,


transforma-se numa dor de estômago,
num latejar da cabeça, num suor frio.
As pessoas nunca estão realmente
bem onde estão, nem às horas que
estão, e sabem-no e gostam. Porque a
viajem do 'aqui' para o 'ali', do 'agora'
para o 'depois', é algo que lhes activa
a circulação do corpo e areja a mente, por isso sentem-se bem mudando; mudam de
roupa, de mobílias, de carro, de corte de cabelo, de casa. Assim, como é de esperar,
neste contexto moderno, as pessoas que se movem mais 'ganham' às que se movem
menos, é quase como jogar à apanhada. Mover ou mexer mais, procurar ou criar mais,
no seio da nossa modernidade, não passam tudo de sinónimos de produtividade. Há
pois que produzir, que engarrafar qualquer coisa que saía de nós, nem que seja apenas
a nossa capacidade de trabalho (que qualquer dia até é medida em joules).

Finalmente, para encher as prateleiras das nossas estantes, os discos dos nossos
computadores, as caixas dos nossos correios e até a memória dos nossos telemóveis,
há também que produzir livros, enciclopédias, brochuras, folhetos, blogs, pdf's e mais
um cem número de outros formatos de apresentação de texto, incluindo as tão
famosas SMS's. No entanto o livro é sempre aquele que apela verdadeiramente ao
tradicionalismo intelectual e é ele o único que satisfaz a necessidade de prestígio dos
mais puritanos e intelectuais. Conclusão: toda a gente tem que escrever um livro!
Mesmo aquelas pessoas que o mundo ficaria melhor se ninguém chegasse a saber o
que lhes passa pela cabeça. Quem não sabe fazer mais nada, torna-se escritor, já
houve quem tivesse dito... Na verdade, quem quer ser famoso ou ter o mínimo de
prestígio só possui três opções; ou grava um CD, ou participa numa novela (vida real
ou não...), ou então, por último, escreve um livro! Qual é a opção mais fácil? Escrever
um livro, óbvio! Isto por duas razões; Primeiro porque os critérios modernos de
avaliação artística não existem, e se existem não são artísticos mas sim económicos;
Segundo porque o mais certo é que ninguém vá ler o livro, portanto, o prestígio de ter
escrito um livro atinge o seu climax quando este aparece nas prateleiras das livrarias
ou é anunciado num telejornal ou surge a adornar as páginas dum curriculum vitae.
Este homem não é um homem qualquer! Este homem escreveu um livro.

Não é só importante escrever livros, também é importante ler livros. O homem culto e
moderno vê o livro como o tal objecto sagrado de salvação, o único que o pode salvar
da 'burrice eterna'. Para esse homem, o mundo natural, o mundo humano, todas as
infinitas e distintas formas em que os pensamentos se materializam no seio do
universo cultural e artístico, não passam de pó, de diversão humana, de ‘nada’! Não
alimenta a massa cinzenta; na sociedade moderna, só quem lê muitos livros é que
cuida da sua inteligência. É como se todas as sementinhas deste planeta tivessem
necessitado de um regadorzinho de plástico para chegarem a ser árvores robustas.
Jamais se acredita nas nuvens, ou na chuva, portanto a massa cinzenta não se rega, a
não ser que tenhamos dinheiro para comprar um livrinho todos os meses… Seja a lê-
los, seja a escrevê-los, parece que quem mexe com os livros é sempre pessoa superior!
E quando os livros que já se escreveu são muitos e se é mais do que um 'zé ninguém'
na arte da literatura, a disputa muda de contexto e passa então a ser sinónimo de
intelectualidade e de superioridade literária a quantidade de páginas e o número de
citações.

É nos meios académicos da modernidade que se inicia o culto da citação; como


haveríamos nós de justificar as nossas palavras? Senão com as palavras de outros?! O
que no fundo só faz algum sentido se as palavras de uns, forem realmente mais
valiosas que as doutros! E são? Claro que são!... As palavras têm o prestígio de quem
as profere, de quem as escreve. Portanto, se eu estiver a escrever um livro e precisar
de dar crédito e prestígio às minhas palavras, é fácil, sirvo-me do prestígio do
pensamento alheio e faço uso duma citaçãozinha que só me fica bem. Não há
necessidade alguma dum pensamento lógico, coerente, auto-suficiente, viril o
necessário para se bastar a si próprio. Para os intelectuais modernos, quanto mais
citações melhor. Se as citações totalizarem mais de cinquenta por cento do conteúdo
da obra literária, então perfeito, porque pode ser a maior idiotice jamais escrita, mas
ninguém duvidará da sua fundamentação. É pois, mais do que suficiente para a nossa
modernidade, um pensamento do género 'eco', um estilo inspirado no papel químico;
onde o escritor faz de conta que tem uma cabeça, mas na verdade possuí apenas uma
bola oca, onde as palavras que leu ou ouviu algures, se amontoam em camadas e se
organizam por dossiers. Num dia qualquer, quando o escritor põe os dedos à boca,
provoca o vómito e elas voltam a sair pelas suas mãos e se fixam novamente na folha
de papel...

Miguel Sagres

http://lobosovelhas.blogspot.com/

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