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VIEIRA, Alberto (1999), Da Festa ao fim do Ano, Funchal, CEHA-Biblioteca Digital, disponível em:
http://www.madeira-edu.pt/Portals/31/CEHA/bdigital/avieira/ festas.pdf, data da visita: / /
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Da Festa ao Fim do Ano
Para o madeirense a época mais festiva é sem dúvida a que abrange o Natal e Fim de Ano.
Deste modo o Natal é apenas designado de AFesta@, isto é, como que a querer dizer que o grande
momento festivo acontece sempre em Dezembro. Deste modo na ilha as festividades religiosas do
nascimento de Cristo aliam-se Bs profanas que marcam a mudança do ano. Neste último caso a
tradiçno local alia-se B alheia, expressa na presença habitual de milhares de turistas.
Em qualquer dos casos o espectáculo, as tradiçtes que o envolvem, inebriam-nos num misto
de luz e cor. As iluminaçtes públicas, o fogo de artifício sno as evidLncias deste folguedo que
assume sempre um carácter colectivo de catarse para residentes e forasteiros.
Esta folia que no nosso século foi apropriada pelas festas da cidade acontecem pela
congregaçno do turismo com a vivLncia local. Para o madeirense a grande evidencia foi sempre o
Natal, mas paulatinamente o fim-de-ano foi-se impondo deixando de ser só para os turistas. A
tradiçno do fogo de artifício aliado Bs diversas manifestaçtes que assinalavam o momento com o
cortejo, contribuíram para esta mudança de atitude.
A afirmaçno plena desta manifestaçno festiva deverá ser dos anos trinta, uma vez que em
1932 foi criada uma Comissno das festas da cidade que tinha por missno coordenar todas as suas
actividades de diversno. A partir daqui os festejos, apoiados pelos comerciantes da cidade,
ganharam uma nova dimensno. A manifestaçno espontânea de populares e hotéis no lançamento do
fogo de artifício, que já em 1911 era usual, passa a estar subordinada a esta estrutura que
paulatinamente a transformou no maior cartaz turístico da cidade. Por outro lado os festejos
passaram a contar com um momento solene no dia 30 ou 31 que constava sempre da recita ou
concerto no teatro e de um cortejo folclórico regional pelas ruas da cidade.
O colorido da luz ganha cada vez mais adeptos e em 1938 houve mesmo uma Amarcha
luminosa@. Estava aberto o caminho para a plena afirmaçno das lâmpadas que passam a abrilhantar
os espaços públicos, a iluminar as árvores e a definir o contorno dos edifícios públicos e igrejas.
Mais tarde o avanço tecnológico permitiu a estilizaçno figurativa que atinge no presente o clímax.
Os festejos do fim do ano, que estno agora sob a alçada da Secretaria Regional do Turismo e
Cultura, sno o corolário das múltiplas vivLncias do passado em que o madeirense se mistura com o
forasteiro. Deste modo o historial do fogo de artifício do fim do ano, das iluminaçtes e as tradiçtes
natalícias locais nno sno fenómenos isolados e enquadram-se no fenómeno turístico que marcou a
vida da ilha a partir do século XVIII.
O NATAL MADEIRENSE
O TURISMO E OS INGLESES
A vivLncia do réveillon deve estar associada B presença inglesa na ilha. A eles associa-se o
colorido do fogo de artifício a partir do século XVIII, nno obstante esta manifestaçno estar já
associada aos grandes momentos festivos da vida dos madeirenses.
O Funchal do século dezoito era um dos paradeiros habituais de doentes da tísica pulmonar,
cientistas e funcionários da Coroa britânica em trânsito de e para as Colónias. Durante a curta
estância na ilha alojavam-se em casas de compatrícios ou de famílias madeirenses proprietárias de
quintas, que disponibilizavam quartos. Estes forasteiros, na sua maioria britânicos, no seu meio
recreavam as tradiçtes de origem, ocupando parte do seu tempo em saraus dançantes nos diversos
casinos, clubes e casas particulares. A passagem do ano era um dos momentos mais celebrados e,
embora sejam raras as notícias sobre a forma da sua realizaçno sabemos que existiram desde o
século XVIII.
Já no decurso do século XIX a assiduidade da presença dos forasteiros ingleses é cada vez
mais evidente e levou B criaçno das primeiras unidades hoteleiras. Todavia, nesta época nno eram
as festas do fim do ano que chamavam a atençno dos turistas. Aliás, parece que nos inícios da
segunda metade do século a crise do vinho havia provocado a debandada de muitos ingleses,
apagando-se certamente o colorido dos saraus e dos foguetes da noite de fim de ano e terá sido o
banqueiro Jono José Rodrigues Leitno, natural de Ponte de Barca, quem decidiu reaver a tradiçno
inglesa. Particulares, hotéis e comerciantes de fogo aliam-se para fazer reviver esta manifestaçno. E
a tradiçno nno mais se perder por força dos populares, hotéis e casinos que teimaram em animar a
passagem do ano. Assim sucedia em princípios do século, sendo de salientar a iniciativa do Reid=s
Hotel em animar este momento para os seus turistas com o tno proclamado fogo que desde 1922
passou a ser lançado do ilhéu.
Note-se que o descobrimento do Atlântico aconteceu em dois momentos. O primeiro, que
decorre até ao século XV conduziu B revelaçno de novos espaços agrícolas, mercados, rotas e
portos comerciais. Já no segundo, a partir do século XVIII, o europeu partiu B procura do quadro
natural do mundo Atlântico e do desfrute das belezas e clima com a definiçno de ilhas e espaços
litorais como health resorts e hotéis. Na verdade, o homem do século dezoito perdeu o medo do
mundo circundante e fez dele o motivo de experiLncia, deleite e estudo. Estes dois momentos
marcaram uma atitude distinta do europeu e tiveram reflexos evidentes na produçno literária que
envolve o processo. A par disso a opçno dos viajantes, que dno forma ao Grand Tour europeu da
época moderna, é diferente daqueles que primeiro sulcaram o oceano B procura de ilhas e portos de
abrigo. Da primeira já temos conhecimento quase suficiente, enquanto a segunda ainda se mantLm
no quase total esquecimento. Contribuir para a alteraçno deste estado de coisas chamando a atençno
dos investigadores para este inovador domínio é o objectivo que nos persegue agora.
No século XVIII as ilhas assumiram um novo papel no mundo europeu. Assim de espaços
económicos passam também a contribuir para alívio e cura de doenças. O mundo rural perde
importância em favor da área em torno do Funchal, que se transforma num hospital para a cura da
tísica pulmonar ou de quarentena na passagem do calor tórrido das colónias para os dias frios e
nebulosos da vetusta cidade de Londres. O debate das potencialidades terapLuticas da climatologia
propiciou um grupo numeroso de estudos e gerou uma escala frequente de estudiosos. As estâncias
de cura surgiram primeiro na bacia mediterrânica europeia e depois expandiram-se no século XVIII
até B Madeira e só na centúria seguinte chegaram Bs Canárias. As intermináveis filas de
aristocratas, escritores, cientistas que desembarcavam no calhau e iam encosta fora B procura do ar
benfazejo das ilhas foi um retrato comum da Madeira no século XIX.
Dos visitantes da ilha merecem especial atençno trLs grupos distintos: invalids (=doentes),
viajantes, turistas e cientistas. Enquanto os primeiros fugiam ao inverno europeu e encontravam na
temperatura amena o alívio das maleitas, os demais vinham atraídos pelo gosto de aventura, de
novas emoçtes, da procura do pitoresco e do conhecimento e descobrimento dos infindáveis
segredos do mundo natural. O viajante diferencia-se do turista pelo aparato e intençtes que o
perseguem. Ele é um andarilho que percorre todos os recantos na ânsia de descobrir os aspectos
mais pitorescos. Na bagagem constava sempre um caderno de notas e um lápis. Através da escrita e
desenho ele regista as impresstes do que vL. Daqui resultou uma prolixa literatura de viagens, que
se tornou numa fonte fundamental para o conhecimento da sociedade oitocentista das ilhas.
O turista ao invés é pouco andarilho, preferindo a bonomia das quintas, e egoísta guardando
para si todas as impresstes da viagem. Deste modo o testemunho da sua presença é documentado
apenas pelos registos de entrada dos vapores na alfândega, das noticias dos jornais diárias e dos
"títulos de residLncia", pois o mais transformou-se em pó.
A presença de viajantes e "invalids" na ilha conduziu obrigatoriamente B criaçno de
infraestruturas de apoio. Se num primeiro se socorriam da hospitalidade dos insulares, num
segundo momento a cada vez mais maior afluLncia de forasteiros obrigou B montagem de uma
estrutura hoteleira de apoio. Aos primeiros as portas eram franqueadas por carta de recomendaçno.
A isto juntou-se a publicidade através da literatura de viagens e guias. Os guias forneciam as
informaçtes indispensáveis para a instalaçno no Funchal e viagem no interior, acompanhados de
breves apontamentos sobre a História, costumes, fauna e flora.
A Madeira firmou-se, partir da segunda metade do século dezoito, como estância para o
turismo terapLutico, mercL das entno consideradas qualidades profiláticas do clima na cura da
tuberculose, o que cativou a atençno de novos forasteiros. Aliás, a ilha foi considerada por alguns
como a primeira e principal estância de cura e convalescença da Europa. Note-se que no período de
1834 a 1852 a média anual de Invalid's oscilava entre os 300 e 400, na sua maioria ingleses. Em
1859 construiu-se o primeiro sanatório. O último investimento neste campo foi dos alemnes que em
1903 através do principie Frederik Charles de Hohenlohe Oehringen constituiu a Companhia dos
Sanatórios da Madeira. Da sua polémica iniciativa resultou apenas o imóvel do actual Hospital dos
Marmeleiros.
Nno temos dados seguros quanto ao desenvolvimento da hotelaria nas ilhas, pois os dados
disponíveis sno avulsos. Os Hotéis sno referenciados em meados do século XIX mas desde os
inícios do século XV que estas cidades portuárias de activo movimento de forasteiro deveriam
possuir estalagens. A documentaçno oficial faz eco desta realidade como se poderá provar pelas
posturas e actas da vereaçno dos municípios servidos de portos. No caso da Madeira assinala-se em
1850 a existLncia de dois hotéis (the London Hotel e Yate's Hotel Family) a que se juntaram outros
dez em 1889. Em princípios do século XX a capacidade hoteleira havia aumentado, sendo doze os
hotéis em funcionamento que poderiam hospedar cerca de oitocentos visitantes. A preocupaçno
destes visitantes em conhecer o interior da ilha, nomeadamente a encosta norte levou ao
lançamento de uma rede de estalagens que tem a sua expressno visível em S. Vicente, Rabaçal,
Boaventura, Seixal, Santana e Santa Cruz.
A ilha dispte ainda hoje de uma unidade hoteleira de luxo que remonta a esta época. O
Reid's Hotel foi construído em 1891 pela família Reid e teve o nome de New Reid's Hotel, para se
diferenciar dos outros (The Royal Edimburgh Hotel, Hotel Santa Clara, Miles Hotel, Hotel Monte e
German Hotel) que já explorava. William Reid fixou-se no Funchal em 1844 dedicando-se de
parceria com W. Wilkinson a montar um serviço de apoio aos inúmeros visitantes que chegavam B
ilha para um período de repouso ou na busca desesperada das qualidades terapLuticas que o clima
da cidade propiciava. Os seus filhos, William e Alfred, deram continuidade B obra. Tenha-se ainda
em conta um conjunto de melhoramentos que tiveram lugar no Funchal para usufruto dos
forasteiros. Assim, desde 1848 com José Silvestre Ribeiro temos o delinear de um moderno sistema
viário, a que se juntaram novos meios de locomoçno: em 1891 o Comboio do Monte, em 1896 o
Carro Americano e finalmente o automóvel em 1904.
A partir de finais do século XIX o turismo, tal como hoje o entendemos, dava os primeiros
passos. E foi como corolário disso que se estabeleceram as primeiras infra-estruturas hoteleiras e
que o turismo passou a ser uma actividade organizada e com uma funçno relevante na economia.
Deste momento ainda persiste na ilha da Madeira uma unidade hoteleira: Hotel Reids. E mais uma
vez o inglLs é o protagonista principal. Este momento de afluLncia de estrangeiros coincide ainda
com a época de euforia da CiLncia nas Academias e Universidades europeias. Desde finais do
século XVII as expediçtes científicas tornaram-se comuns e a Madeira (Funchal) ou Tenerife
(Santa Cruz de Tenerife e Puerto de La Cruz) foram portos de escala, para ingleses, franceses e
alemns.
O FIM DO ANO
Podeis imaginar o que será a Noite de São Silvestre no Funchal, a sua animação, o
carácter dessa festa nocturna, e a grandiosidade do seu fogo de artifício?
Não, leitor. Por maior que seja o vosso poder visionário, por mais completas que sejam
a vossa imaginação e até sugestão, não fareis ideia do espectáculo, e ficareis sempre muito
aquém da realidade.
Imaginai um cataclismo tremendo, um vulcão que entrasse repentinamente em
actividade, e que incendiasse toda a baía, toda a cidade, e toda a parte das serranias que se
vêem do Funchal. Não há sítio onde não haja fogo. Não há pedaço de céu onde não haja lume,
janelas onde não cintilem faúlhas, telhados que não jorrem cinzas incandescentes, largos e
esplanadas onde não haja estoiros e ribombos fragorosos, casas que não pareçam pastos de
chamas, navios que não faísquem mil luzes e reflexos, como se estivessem em labaredas,
montanhas donde não se despenhem cataratas gigantescas de fogo, como se fosse lava
vulcânica, corrente e avassaladora, e serras donde não se elevem colossais jactos inflamados,
assombrosos fogachos de matérias incandescentes e explosivas, e formidáveis chamas
tragicamente coloridas e intensas.
É noite de Ano Novo. A cidade está em festa. Não há janela sem iluminação, porta que
não esteja aberta, mesa que não esteja família que não esteja contente.
Pobres e ricos, todos acorrem às ruas, aos restaurantes, aos hotéis, às casas dos seus
amigos, às esplanadas dos seus jardins, às torres das suas casas, aos terraços das suas
varandas, aos cumes dos seus telhados, aos cais, aos navios fundeados na baía, aos barquitos
de vela e de remos, aos miradouros públicos, e a todos lugares donde a visibilidade e os
horizontes sejam vastos e agradáveis.
A característica canja de galinha, manjar imprescindível esta madeirense, passa
fumegante a todas as mãos e a todas as mesas, servida em chávenas finas, ou em tigelas
graciosas. Os célebres e dulcíssimos bolos de mel de cana, abundam por toda a parte e
constituem uma verdadeira tentação para as crianças e adultos.
As salas e as ruas estão cheias de odores capitosos. Todos têm as suas Iguarias
confortantes e saborosas. Até os mais desprotegidos têm a sua mesa lauta, mercê da
generosidade espontâneas pessoas mais abastadas.
Abrem-se garrafas de variados espumantes. Estralejam rolhas de pressão. Saboreiam-
se preciosos e perfumados vinhos leira. Ouve-se um vozear geral. Ecoam risadas, fazem-se
amistosos, formulam-se votos de felicidade, confessam-se, desejos e aspirações. Toda a gente
fala, come com apetite, bebe e ri em simpática comunicabilidade e alegria. As ruas passam
penosamente os carros de bois, circulam com dificuldade os automóveis, move-se uma massa
compacta, e ininterrupta de gente.
Vai principiar o número culminante da festa. Anuncia-se o começo do fogo de artifício,
por uma largada colossal de muitas centenas de balões gigantes, de várias cores. O céu
principia a coalhar-se de fogos que se movem. Há qualquer coisa de grandioso e solene no
momento. Existe um sentimento de expectativa em toda a gente. Há silêncio, admiração e
surpresa. Lá longe, num e noutro ponto, eis alguns balões que se incendeiam e se desfazem em
labaredas. Outros atingem alturas enormes, tornam-se quase invisíveis, e flanam airosamente
na atmosfera.
Sucede-se nova largada de balões. As pintas de luz multiplicam-se. O céu torna-se
rubro, afogueado, pletórico de fogachos, e como que movediço, instável e dançante.
O estrondear espantoso e inesperado de uma grandiosa salva de morteiros estremece
tudo e todos, e ecoa repetidamente, em varias gradações de som, desde as encostas próximas,
até às mais recuadas e distantes. Um calafrio prolongado percorre o sistema nervoso das
pessoas. A loucura começa.
Lá em baixo na baía, declara-se uma batalha naval Os navios de excursão e de escala,
engrinaldados e ornamentados por bandeiras, flâmulas e festões de luzes de inúmeras cores,
alvejam-se uns aos outros por meio de jactos artificiosos de Bengala, tal como monstros
flamívomos. As numerosas embarcações pequenas que vogam no porto em todas as direcções,
seguem-lhes o exemplo. Há fogos cruzados, fogos que se perdem nas águas, fogos que atingem
as alturas e que tingem o céu e o mar.
Em volta, numa ascensão potente e vertiginosa, os foguetes sobem ao ar, lançados de
todos os pontos altos que rodeiam o Funchal. Os busca-pés assobiam raivosos como se fossem
serpentes assanhadas. Cada vez em maior número, os morteiros estoiram atroadoramente
nos ares. O seu eco infernal e prolongado parece o estrepitoso desabar das serras, do casario,
e de toda a Ilha, sobre a e sobre o mar.
O Castelo do Pico está a arder. Há fogo no Pico dos Bar, no Pico de S. Martinho, no
Balcão da Montanha, na levada Santa Luzia. O fogo da terra pega-se ao céu. Tudo arde.
Tudo a, tudo se despedaça, desfaz e pulveriza, como se fosse uma ira colossal, a semear lume
em toda a volta, a salpicar luzes de todas as cores, e a jorrar jactos de cinza e brasas, em
todas as direcções.
As serras, os bairros da cidade, o mar e o céu mudam constantemente de cor,
iluminados pela feéria de luminosidade e pela contínua e grandiosa das mutações, as quais
vão do vermelho intenso ao verde pálido, ao azul eléctrico, à poalha de oiro, uva de prata.
Rasga-se uma cascata, subitamente, lá no alto. Aí vem uma te de lava incandescente,
descendo a encosta, ameaçando erigir a cidade e despenhar-se nas águas da baía. Outras as
sucedem-se. Outras torrentes descem em diferentes das montanhas.
A violência do estrondear ininterrupto, à maneira de bombardeamento de guerra,
sistemático e contínuo, rivaliza com a idade dramática do clarão geral, que tudo ilumina,
desde o mar e a cidade, até às mais pequenas particularidades das montanhas.
E como se isto não fosse bastante, ainda há a juntar a cooperação particular de toda a
gente. E assim, não há postigo, janela, mirante, ou telhado, onde não se queimem fósforos de
cor, valverdes, estalinhos, bombas e foguetes minúsculos. Não há largo, quintal, clareira,
terraço ou jardim, onde não se queimem foguetões de lágrimas e onde não haja fiadas de
balões e de lâmpadas
Depois da apoteose final, em que, a cidade do Funchal, à maneira da antiga Pompeia
dos seus últimos dias, parece viver a sua hora derradeira de trágico-festivo cataclismo,
começa a debandada do povo.
A fumarada e o cheiro a pólvora, que enchem os ares, vão-se dissipando pouco a pouco
com o frescor da madrugada. As ruas movimentam-se de novo, por algumas horas. O transito
é extraordinário. A festa continua. Para muitos só acaba de manhã, depois de longas e fartas
ceias de despedida.
É assim a noite de S. Silvestre no Funchal. É assim que os Madeirenses se despedem do
ano que acaba e festejam o ano que começa.
Nesta noite de final de ano toda a cidade foge para o Casino, para os hotéis, para os
pontos altos. O Oceano é um formigueiro de pequenas luzes imóveis e, da Pontinha ao Reid's,
milhares de lâmpadas coloridas debruam o litoral da Ilha, até onde a vista se perde. Onde
está a cidade de ontem que se espreguiçava ao sol em requebros indolentes?
Durante todo o dia o Funchal em festa transfigurou-se, e as próprias árvores, que se
recortam agora na sombra e na atmosfera quase tropical, parecem cantar no céu os hinos
duma inesperada Primavera.
...Meia noite. A grande féerie vai começar. Das montanhas vão desaguar no Oceano
rios luminosos e vivos. José Pedro e Ricardo olham a sua volta e ouvem e vêem uma espantosa
sinfonia de cores, de lâmpadas que circundam todos os carreiros, todas as estradas, todos os
vales. Lá em cima, nos pontos mais altos, o Pico da Cruz e o Pico dos Barcelos estão
desenhados a rubro, numa profusão de cores que estonteia. Para o Oriente, para o Ocidente,
para onde quer que se voltem, tudo refulge em clarões de vitória.
Meia noite. Ricardo faz um sinal a José Pedro, que virava as costas à Ilha; *olha a
terra+, diz num orgulho de madeirense. De facto, toda a Madeira é um grito de fogo que sobe
para o céu triunfalmente. Das montanhas que limitam o horizonte, pela encosta, nas
povoações, nas vilas, nos povoados, desde onde pode divisar-se ao olhar humano, sobem no ar
peças de fogo de artifício que desenham no espaço jardins surpreendentes.
São flores prateadas e douradas que irrompem de toda a parte e que vem morrer em
lumes cintilantes no Oceano. Lá em baixo, na baía, não param um minuto as sereias dos
paquetes, que lançam agora, no céu, os seus holofotes potentes. Longe, do outro lado da
montanha, José Pedro adivinha os jardins do Reid's, braseiro magnífico latejando em mil
vibrações luminosas. No ponto mais alto da serra surgem festões prodigiosos que se
projectam no espaço, como se saíssem duma cratera subitamente aberta. Não há nenhuma
casa, nenhuma aldeia que não vibre em convulsões supremas. E na própria Sé, envolta num
manto luminoso, a sua cruz recorta-se dominando a cidade numa sugestão de paz e de
glória. No relógio luminoso da Montanha I937 já desapareceu. O novo ano inscreve-se,
numa apoteose de luz, dominando a ilha. Riscam-se no céu parques luxuriantes, jardins
suspensos de sonho; e o fogo crepita sobre a cidade, despenha-se no Atlântico, comunga com
o Mar, numa união fecunda, eterna como a própria Vida.
A pouco e pouco extinguem-se as últimas crateras luminosas pela serra. Exausto do
espectáculo estranho, José Pedro olha agora para as Desertas, que mal se distinguem ao
longe, fita o céu negro e hermético. Não diz, porém, uma palavra e é Ricardo quem
interrompe o seu silencio:
CO milagre do fogo...
José Pedro pensa; vê, pela última vez que ainda morrem na encosta, ouve ainda as
sereias dos navios ancorados no porto, adivinha as danças e musica na cidade. E apenas
responde:
- Diz-se que na passagem do ano se deve manifestar um desejo novo, um desejo íntimo.
Foi o que eu fiz.