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VIEIRA, Alberto (2006),

Madeira. Da Terra às Tradições


Gastronómicas

COMO REFERENCIAR ESTE TEXTO:

VIEIRA, Alberto (2006), Madeira. Da Terra às Tradições Gastronómicas, Funchal, CEHA-Biblioteca


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MADEIRA
DA TERRA ÀS TRADIÇÕES GASTRONOMICAS

Dis-moi ce que tu manges, je te dirai ce que tu es


Jean Athelme Brillant-Savarin(1755-1826} Aforismes, 1825

Diz-me o que comes, dir-te-ei quem és (Provérbio alemão)

O universo só existe porque há vida, e tudo o que vive se alimenta.


O destino das nações depende da forma como elas se alimentam.
O prazer da mesa é de todas as idades, de todas as condições, de todos os países e de todos os dias; pode se
associar a todos os outros prazeres e sobra como último para consolar-nos da perda dos outros.
O Criador, ao obrigar o homem a comer para viver, convida-o com o apetite e recompensa-o com o prazer.
BRILLAT-SAVARIN. A Fisiologia do Gosto. Rio de Janeiro: Salamandra, 1989

Cada um é o que come, com quem come e como come.


A nacionalidade não é determinada pelo lugar onde se nasceu, mas pelos sabores e cheiros que nos
acompanham desde a infância.
LAURA ESQUIVEL, Intimas suculências (tratado filosófico da cozinha), Lisboa,1998

Ler é beber e comer. O espírito que não lê emagrece tal como o corpo que não come.
Lire, c'est boire et manger. L'esprit qui ne lit pas maigrit comme le corps qui ne mange pas.
(Victor Hugo[1802-1885],Faits et croyances, p.151, in Océan, Éd.Robert Laffont coll.
Bouquins)

Le besoin de créer est dans l'âme comme le besoin de manger dans le corps.
Christian Bobin (La folle allure, p. 26, Éditions Gallimard 1995)

ALBERTO VIEIRA
CEHA-MADEIRA
avieira@madinfo.pt
Os aforismos acima enunciados dão conta da importância que assume a alimentação na
vida da humanidade e a forma como ela condiciona o nosso modo de vida. Todavia a
forma como cada um de nós ou dos nossos antepassados se relaciona(va) com a
alimentação parte de diversas condicionantes resultantes da nossa cultura material, da
disponibilidade e expansão de culturas e das condições da terra, e, acima de tudo, dos
condicionantes civilizacionais, que quase sempre têm origem nas determinações e preceitos
religiosos. Aliás, a religião teve e ainda continua a ter um papel destacado na alimentação,
determinando a afirmação ou proibição de produtos.

A LITERATURA E A CULTURA GASTRONOMICA

Podemos afirmar que foi a França o berço da revolução ocidental da alimentação. São os
franceses que a partir do século XVIII se especializam na arte da cozinha, criando à volta
da mesa uma atitude distinta. A alimentação deixa de ser apenas uma necessidade para ser
tornar algo prazeroso, como nos afirma Jean Arthelme Brillat-Savarin (1755-1826) em a sua
Fisiologia do Gosto (1825). A gastronomia como forma de prazer tem em Roland Barthes
algumas das suas melhores expressões estruturalistas: Mythologies (1957), Systéme de la Mode
(1967). O turismo levou à valorização do chamado café francês, surgido em 1674, e do
restaurante moderno que surge também aí a partir do século XVIII.

Podemos ainda testemunhar a existência de uma literatura gastronómica, anterior a esta


exaltação do gosto, que hoje acabou por assumir uma posição relevante na sociedade. Por
outro lado a literatura universal regista a presença da gastronomia. O acto de comer e beber
é uma constante na trama literária, desde a poesia, teatro ou romance. A Literatura
universal regista de forma clara uma ligação entre o trama da criação literária e a
gastronomia.

O brasileiro José Bento Monteiro Lobato (1882-1948), um dos mais acérrimos defensores
da comida caipira, apresenta em 1941, em A Reforma da Natureza, algo de inovador. Apresenta
o livro como algo comestível, propondo-se a impressão em papel fabricado de trigo e o uso
de uma tinta inócua. Deste modo, O leitor vai lendo os livros e comendo as folhas. Leu uma, rasga e
come! Quando chega ao fim da leitura, está almoçado ou jantado. (...) O livro-pão! O pão-livro! Quem
souber ler lê o livro e depois o come; quem não souber come só, sem ler. Desse modo, o livro pode penetrar
em todas as casas, seja dos sábios, seja dos analfabetos.

A cada parte da estrutura do livro corresponderia uma situação do repasto gastronómico.


Parte-se da sopa, para a salada aos pratos de assado, arroz e tutu de feijão com torresmo,
concluindo-se com a sobremesa – manjar branco, pudim de laranja, doce de batata. Ao
índice ficava reservado o espaço do cafezinho e, certamente, o digestivo. E conclui: Dizem
que o livro é o pão do espírito. Porque não ser também pão do corpo? As vantagens seriam imensas.
Poderiam ser vendidos nas padarias e confeitarias, ou entregues de manhã pelas carrocinhas, juntamente
com o pão e o leite. Deste modo ficava resolvido o problema do analfabetismo:.. o livro pode ter
entrada em todas as casas, seja dos sábios, seja dos analfabetos.

No mesmo continente deparamo-nos com a ousadia da escritora mexicana Laura Esquivel,


que associa o romance à culinária. Assim em 1989 em água para chocolate, o trama do
romance está construído em torno da culinária, sendo cada capítulo iniciado por uma
receita invulgar. Aqui, o trama amoroso de Pedro e Titã, constrói-se em torno da
gastronomia, sendo o cozinhar um acto de amor, paixão e sensualidade. Entretanto em
Intimas suculências (Tratado filosófico da Cozinha) [1998], apresenta-nos estórias com sabores.

A literatura portuguesa não é tão arrojada na sua valorização da gastronomia, mas o comer
e o beber são uma constante no retrato da sociedade. Tenha-se em conta que Eça de
Queirós afirmava que a cozinha e adega exercem uma larga e directa influência sobre o homem e a
sociedade. Daqui resulta a assiduidade das referências gastronómicas no mesmo Eça em O
Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio, A Cidade e as Serrras e os Maias. Em Júlio Dinis, como
Ramalho Ortigão, temos, por exemplo, a exaltação da gastronomia do Alto Minho.

A RELIGIÃO E A ALIMENTAÇÃO

A religião, por força dos preceitos limitadores ou da valorização de alguns produtos e


bebidas no ritual religioso, foi responsável pela forma como se definem os hábitos
alimentares dos crentes, conduzindo à diferenciação de povos e espaços geográficos. A
religião ao mesmo tempo que promove a presença dos produtos no quotidiano dos crentes
pode também proibi-los. A presença dos cereais e da vinha na civilização ocidental cristã e
do arroz e chá no Oriente(China, Índia, Japão…) são resultado disso.

O Catolicismo é o mais tolerante de todos apenas estabelecendo o preceito do período


pascal, como de abstinência do consumo de carne. Posições distintas têm o judaísmo e o
Islamismo. O primeiro faz depender a dieta alimentar de um conjunto de regras
estabelecidas na lei Kashurt, de que se destaca a abstinência de comer carne de porco. Já
para o mundo islâmico as determinações são mais expressas, com o jejum no mês do
Ramadão e algumas limitações quanto ao tipo de alimentos. Assim existem três tipos de
alimentos: halal ou permitidos, Makruh, podem ser consumidos e Haram., os proibidos, em
que se destacam o álcool, carne de porco, macaco, cão, gato. A dos demais animais, a
exemplo do que sucedeu com os judeus, só pode ser consumida se o animal for morto de
acordo com as regras estabelecidas pela lei casher, de forma a minimizar o sofrimento do
animal.

As Religiões e filosofias orientais, assumem uma atitude semelhante na hora de definir o


cardápio. Todavia aqui a alimentação enquadra-se num ritual dominado pela vivência
espiritual. Noão será por acaso que Gandhi recomendava que bebe a tua comida e mastiga as
tuas bebidas. Em todas é evidente uma incidência na dieta vegetariana. Assim o hinduísmo
afirma a santidade dos animais, nomeadamente da vaca, de modo que não está permitido o
uso da carne na alimentação. O budismo não proíbe totalmente a carne, mas incentiva os
crentes a uma dieta vegetariana. Aliás, o próprio Buda havia determinado que os monges
deveriam abster-se de comer alguns tipos de carne: humanos, elefantes, cavalos, cachorros,
cobras, leões, tigres, porcos-do-mato e hienas

Hoje a dieta vegetariana é defendida por razões religiosas, no caso dos adventistas do
sétimo dia, budistas, os espíritas e os hindus, ou por razões filosóficas, como por exemplo
os Rosacrucianos da Fraternidade Rosacruz (Max Heindel). Por fim podemos salientar a
dieta macrobiótica que tema as suas bases no Taoismo e Zen Budismo, surgiu no séc.
XIX com um médico japonês, Sagen Ishizuka (1850-1910). No caso do
Taoísmo afirma-se o princípio de uma alimentação saudável para o corpo,
mente e espírito.A presença da carne é rara e mesmo assim a que se
apresenta é por vezes desadequada aos hábitos ocidentais. Assim o
consumo de carne de cachorro é aconselhado em face do frio intenso do
Inverno, pelo seu alto poder calórico. Por outro lado no processo de
purificação (Chai) os rituais determinam a abstinência da carne e produtos
lacteos. Estes rituais, quase só reservados aos mestres espirituais e aos
monges, antecedem alguns dias das cerimónias festivas mais importantes do
ano lunar.

O vinho é uma presença indelével no devir histórico da cristandade Ocidental e esta


comunhão perfeita que não pode ser ignorada. O vinho acompanhou os primeiros cristãos
nas catacumbas, expandiu-se com a Europa monástica e perseguiu a diáspora cristã além
oceano. A dupla presença no acto litúrgico e alimentação traçou-lhe o caminho e o
protagonismo. As ilhas atlânticas são exemplo disso. Mesmo em casos onde a cultura teria
dificuldades em se adaptar, como foi o caso de Cabo Verde, os europeus fizeram aí chegar
algumas cepas.

No princípio da ocupação as necessidades da alimentação e ritual cristão comandaram a


selecção das sementes que acompanharam os primeiros povoadores. Assim, o cereal
acompanhou os primeiros cavalos de cepas peninsulares no processo de transmigração dos
europeus. A fertilidade do solo, pelo estado virgem das terras e das cinzas fertilizadoras
resultantes das queimadas, fizeram elevar a produção a níveis inatingíveis, criando
excedentes que supriram as necessidades de mercados carentes, como foi o caso de Lisboa
e praças do norte de África. Segundo alguns autores eles foram a base do processo de
povoamento da Madeira, uma vez goradas as iniciativas de penetração no comércio do
produto no norte de África.

A afirmação da cana-de-açúcar é fruto da afirmação e expansão do budismo e islamismo.


Aliás, Buda (c.563-c.486) é considerado o “rei do Açúcar” e a região do Nepal onde nasceu
era terra de açúcar. Por outro lado no ano de 450 Buda autorizou aos seus súbditos a
bebida do suco da cana. Os monges budistas divulgaram o fabrico do açucare encorajaram
o consumo, que tem lugar em alguns rituais. Deste modo a expansão do budismo na Índia
e China, entre os séculos I-VI AC, favoreceu a expansão da cultura.

A expansão da cana-de-açúcar no Mediterrâneo persegue a expansão do Islão, entre os


sécs.VI-VIII. No mundo islâmico o doce assume um papel fundamental e na sua tradição
culinária é considerado o condimento fundamental. Para o mundo árabe o doce assume
um papel fundamental no relacionamento, sendo a representação de uma sadia relação e de
uma boa acolhida a qualquer forasteiro.

O consumidor preferencial das conservas e doçaria madeirense era a Casa Real portuguesa.
Foi D. Manuel quem divulgou as qualidades na Europa. Assim ficaram como o principal
presente, dentro e fora do reino, sendo o exemplo seguido por Vasco da Gama, que
também ofertou o xeque de Moçambique com conservas da ilha 1 . Os confeiteiros, que
fabricavam as conservas, eram pagos pela Fazenda Real. Sabemos que em 1513 Diogo de
Medina recebeu 8$000 réis pelo fabrico de 40 arrobas e conserva para o rei. Já em 1521
Inês Mendes recebeu 92$000 réis por 60 arrobas com o mesmo destino 2 . No período de
1501 a 1561 a Casa Real consumiu 1129 arrobas e 58 barris de açúcar em conservas e frutas
secas 3 .

1 . Confronte-se Sousa Viterbo, Artes e Indústrias Portuguesas - A Indústria Sacarina, II0 Série, Coimbra, 1910, pp. 10-11.
2 . Fernando Jasmins Pereira, Documentos sobre a Madeira no século XVI existentes no Corpo Cronológico, Vol. I, Lisboa, 1990, pp. 120, 168
3 . Informações recolhidas nos documentos publicados por Fernando Jasmins Pereira, Documentos sobre a Madeira no século XVI existentes no

Corpo Cronológico, Vol. I, Lisboa, 1990.


Também na Madeira o fenómeno religioso esteve presente. A mesa madeirense foi sempre
muito frugal, situação que era quebrada nos momentos festivos, nomeadamente no Natal,
Espírito Santo e festividades em honra dos diversos oragos das paróquias da ilha. É em
torno do calendário religioso que o madeirense estabelece os vários momentos que marcam
a sua gastronomia. Para ele o Natal é a festa, isto é o momento mais importante do ano da
vivência festiva quotidiana. A devoção religiosa mistura-se com os folguedos e as delícias
da mesa. A tradição anota mesmo um calendário para este ritual. A 8 de Dezembro faz-se o
bolo de mel. A 15 de Dezembro mata-se o porco de modo a que as linguiças e a carne de
vinho e alhos estejam prontas para o Natal. Neste dia no regresso da missa do galo prova-
se a carne. A mesa mantém-se farta de licores, doces e bolos para gáudio dos que estão e
dos visitantes. O caldo de galinha caseira e a carne assada com cuscuz completavam o
repasto natalício. É em torno desta quadra religiosa que o madeirense estabelece o
momento nobre da gastronomia. Para ele o Natal é a festa, isto é o momento mais
importante do ano da vivência quotidiana. A devoção religiosa mistura-se com os
folguedos e as delícias da mesa. Podemos estabelecer um calendário para este ritual. A 8 de
Dezembro faz-se o bolo de mel. A 15 de Dezembro mata-se o porco de modo a que as
linguiças e a carne de vinho e alhos estejam prontas para o Natal. Neste dia no regresso da
missa do galo prova-se a carne. A mesa mantém-se farta de licores, doces e bolos para
gáudio dos que estão e dos visitantes. O caldo de galinha caseira e a carne assada com
cuscus completavam o repasto natalício.

O calendário religioso e o ano agrícola estabeleciam o resto. Na Sexta-feira Santa é a


tradição do inhame cozido com bacalhau, no S. Martinho o atum salpresado. Hoje, todavia
este calendário gastronómico perdeu algumas das suas razões de ser. As actuais técnicas de
conservação dos produtos, a actual sociedade de consumo permitem que a disponibilidade
dos produtos e o seu consumo percam essa sazonalidade.

A GASTRONOMIA COMO EXPRESSÃO DE CULTURA, HISTÓRIA E


CIVILIZAÇÃO

A História da Humanidade, a partir do momento em que o homem adquiriu hábitos de


nomadismo houve necessidade de domesticar as plantas e a terra, surgindo a agricultura
como a actividade dominante da vida das populações. A agricultura, a expansão de culturas
e produtos tiveram grande impacto a partir do século XV, com a expansão europeia,
permitindo a globalização da actividade. culturas e alimentos.

O processo decorrente da expansão europeia, a partir do século XV, foi fundamental para a
evolução da cozinha europeia. Cedo o ocidental assimilou aquilo que foi encontrando.
Pimentos, feijão, mandioca, amendoim, chocolate, café, chá, baunilha, ananás, banana,
milho e batata chegam à mesa europeia. As ilhas, e de modo especial a Madeira foram os
viveiros de aclimatação aos solos europeus. A nossa variedade de frutos é resultado disso.
As ligações da ilha com outras regiões tiveram impacto directo na culinária.

A Madeira exerceu um papel fundamental na revolução da dieta alimentar ocorrida a partir


do século XV no Ocidente com a expansão europeia. A ilha, como a primeira área a
merecer uma ocupação efectiva e a provar o sucesso do empreendimento, adquiriu uma
posição particular na História da Alimentação. Foi a partir dela que o açúcar assumiu um
papel fundamental à mesa, como também a partir da ilha o europeu teve oportunidade de
saborear os frutos exóticos e as novas culturas, que rapidamente entraram na dieta
alimentar, como foi o caso do milho e batata. Tudo isto é corolário de um conjunto de
situações que define o entorno subjacente ao protagonismo madeirense na História do
mundo atlântico.

Os descobrimentos europeus não podem ser vistos apenas na perspectiva do encontro de


novas terras, novas gentes e culturas, pois a isto deverá associar-se o movimento de
migração humana, que arrastou consigo um universo envolvente de fauna, flora, tecnologia,
usos e tradições que tiveram um impacto evidente em todo o processo. Estamos perante
aquilo a que Pierre Chaunu define como desencravamento planetário, vinculado às
transformações operadas pela a expansão europeia do século XV, que retirou ao europeu a
ideia restrita de mundo e fez com que se avançasse paulatinamente para o que hoje
definimos como aldeia global. Os Descobrimentos foram também responsáveis pela
transformação e revolução ecológica, com impactos positivos ou negativos. Uma das
transformações fundamentais ocorreu ao nível alimentar com a descoberta de novos
produtos e condimentos que enriqueceram a dieta alimentar.

Foi o arquipélago madeirense o início da presença portuguesa no Atlântico, e o primeiro e


mais proveitoso resultado desta aventura. Vários são os factores que se conjugaram para
este protagonismo. A inexistência de população, em consonância com a extrema
necessidade de valorização para o avanço das navegações ao longo da costa africana,
favoreceu a rápida ocupação e crescimento económico da Madeira. Por isso, a afirmação
nos primeiros anos dos descobrimentos, foi evidente: porto de escala ou apoio para as
precárias embarcações quatrocentistas, que sulcavam o oceano; importante área económica,
fornecedora de cereais, vinho e açúcar; modelo económico, social e político para as demais
intervenções portuguesas no Atlântico.

A Madeira foi no século XV uma peça primordial no processo de expansão. A ilha,


considerada a primeira pedra da gesta descobridora dos portugueses no Atlântico, é o
marco referencial mais importante desta acção no século XV. De inicial área de ocupação,
passou a um entreposto imprescindível às viagens ao longo da costa africana e, depois, foi
modelo para todo o processo de ocupação atlântica, Por tudo isto a Madeira firmou nome
com letras douradas na História da expansão europeia no Atlântico. O Funchal foi, por
muito tempo, o principal ancoradouro do Atlântico que abriu as portas do mar oceano e
traçou caminho para as terras do Sul. Aí a abundância do cereal e vinho propiciavam ao
navegante o abastecimento seguro para a demorada viagem. Por isso, o madeirense não foi
apenas o cabouqueiro que transformou o rochedo e fez dele uma magnífica horta, também
se afirmou como o marinheiro, descobridor e comerciante. Deste modo algumas das
principais famílias da Madeira, enriquecidas com a cultura do açúcar, gastaram quase toda a
fortuna na gesta descobridora, ao serviço do infante D. Henrique, ao longo da costa
africana ou, de iniciativa particular, na direcção do Ocidente, correspondendo ao repto
lançado pelos textos e lendas medievais. A juntar a tudo isso temos o rápido progresso
social, resultado do porvir económico, que condicionou o aparecimento de uma
aristocracia terra tenente. Esta, imbuída do ideal cavalheiresco e do espírito de aventura,
embrenhou-se na defesa das praças marroquinas, na disputa pela posse das Canárias e
viagens de exploração e comércio ao longo da costa africana e, até mesmo, para Ocidente.

A valorização da Madeira na expansão europeia tem sido diversa. A historiografia nacional


considera-a um simples episódio de todo o processo e, em face da posição geográfica,
hesita no enquadramento, sendo levada, por vezes ao esquecimento. A europeia, ao invés,
não duvida em realçar a singularidade do processo. Vários são os factores que o
propiciaram, no momento de abertura do mundo atlântico, e que fizeram com que fosse,
no século XV, uma peça chave na afirmação da hegemonia portuguesa no Novo Mundo. O
Funchal foi uma encruzilhada de opções e meios que iam ao encontro da Europa em
expansão. Além disso é considerada a primeira pedra do projecto, que lançou Portugal para
os anais da História do oceano que abraça o litoral abrupto. O fundamento de tudo isto
está patente no protagonismo da ilha e gentes. Á função de porta-estandarte do Atlântico, a
Madeira associou outras, como “farol” Atlântico, o guia orientador e apoio às delongas
incursões oceânicas, sendo um espaço privilegiado de comunicações, contando a seu favor
com as vias traçadas no oceano que a circunda e as condições económicas internas,
propiciadas pelas culturas da cana sacarina e vinha. Uma e outras condições contribuíram
para que o isolamento definido pelo oceano fosse quebrado e se mantivesse um
permanente contacto com o velho continente europeu e o Novo Mundo.

A expansão atlântica revelou ao europeu um novo mundo, onde a flora e a fauna


dominaram a admiração dos protagonistas. A descoberta da nova realidade fez-se não só
pelo valor alimentar e económico, mas também científico, Sendo de destacar os estudos de
Garcia da Horta, Cristóvão da Costa, Duarte Barbosa. O processo de povoamento
implicava obrigatoriamente um processo de migração de plantas, animais e técnicas de
recolecção, cultivo e transformação destes. De acordo com João de Barros os portugueses
levavam “todas as sementes e plantas e outras coisas com quem esperava de povoar e assentar na terra” 4 .
O retorno foi igualmente rico e paulatinamente revolucionou o quotidiano europeu e
algumas das novas plantas entraram rapidamente nos hábitos das populações que cedo se
perdeu o rastro da origem passando a ser considerada como indígena. No processo foi
importante o papel de portugueses e espanhóis na troca de plantas entre o Novo e o Velho
Mundo. Dos quatro cantos do mundo o contributo para a valorização do património
natural foi evidente. No Oriente foram as especiarias que dinamizadora as rotas comerciais
e cobiça dos europeus. A América revelou-se pela variedade e exoticidade das plantas e
frutos, com valor alimentar, que contribuíram em África para colmatar a deficiência. O
processo de migração de plantas e culturas não foi pacífico, pois em muitos casos
provocou alterações catastróficas no quadro natural. Isto aconteceu em regiões e paisagens
sujeitas à violência de uma monocultura solicitada pelos mercados internacionais. Estão
neste caso a cana sacarina, o cacau, o café e o algodão.

As ilhas assumiram em todo este processo um papel fundamental ao assumiram o papel de


viveiros de aclimatação das plantas e culturas em movimento. A Madeira foi o viveiro de
aclimatação nos dois sentidos. Da Europa propiciou a transmigração da fauna e flora
identificada com a cultura ocidental. No retorno foram as plantas do Novo Mundo que
tiveram de novo passagem obrigatória pela ilha. A riqueza botânica do Funchal resulta
disso. O processo de imposição da chamada biota europeia, no dizer de Alfred Crosby 5 , foi
responsável por alguns dos primeiros e mais importantes problemas ecológicos.

A Madeira surge, nos alvores do século XV, como a primeira experiência de ocupação em
que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi, depois,
utilizado, em larga escala, noutras ilhas e no litoral africano e americano. O arquipélago foi
o centro de irradiação dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo
atlântico: os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses
aportaram. A par disso a ilha foi, nos alvores do século XV, a primeira experiência de
ocupação em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi
depois utilizado em larga escala noutras ilhas e no litoral africano e americano. O
arquipélago foi o centro de divergência dos sustentáculos da nova sociedade e economia do
mundo atlântico: primeiro os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras

4 Ásia, década I, p.552


5 Imperialismo Ecológico. A Expansão biológica da Europa: 900-1900, S. Paulo, 1993.
onde os portugueses aportaram. Madeira não se posiciona apenas nos anais da História
universal como a primeira área de ocupação atlântica, pioneira na cultura e divulgação do
açúcar ao Novo Mundo.

A expansão europeia não se resume apenas ao encontro e desencontro de Culturas, mas


também marca o início de um processo de transformação ou degradação do meio
ambiente. O europeu carrega consigo a fauna e flora do seu convívio e com valor
económico, que irão provocar profundas mudanças nos novos ecossistemas. Com isto
acontece que o espaço vivido e natureza se universalizam. Nos séculos XV e XVI foram as
viagens de descobrimento, enquanto no século XVIII sucederam as de exploração e
descoberta da natureza, comandadas por ingleses e franceses.

A GASTRONOMIA MADEIRENSE UMA HISTÓRIA POR CONTAR

Se fosse necessário caracterizar a culinária madeirense seríamos forçados a afirmar, que de


uma forma genérica, é em simultâneo rica e pobre. Parece um paradoxo, mas não é. Para
entendermos isto temos que ter em conta um conjunto de factores que condicionaram a
evolução ao longo dos séculos, através dos produtos que alimentam o cardápio e a
disponibilidade ou não de meios de conservação dos produtos alimentares. As dificuldades
na conservação dos produtos perecíveis obrigaram ao estabelecimento de regras no uso e
consumo. A maior parte dos produtos, como é o caso dos frutos, tinha uma durabilidade
limitada, sendo consumidos apenas na época de maturação. A sazonabilidade do quadro
vegetativo condicionava a forma de orientação do cardápio e obrigava o madeirense a estar
dependente dos condicionalismos do ciclo rural. Na mesa madeirense acresce ainda outro
factor significativo. A dificuldade, desde o século XV, em encontrar na ilha a garantia de
subsistência para a população, que obriga à extrema dependência do exterior. As crises de
subsistência foram uma constante na História da Madeira.

A Madeira estava situada numa posição estratégica fundamental para acolher as rotas de
migração de plantas e produtos. No século XV promoveu a expansão das culturas
europeias no mundo atlântico. E de novo a partir do século XVI a descoberta de novos
produtos e frutos com valor alimentar levou a que servisse de entreposto de expansão ao
velho continente. Dos inúmeros produtos que chegaram às ilhas dois há que se afirmaram
rapidamente na dieta alimentar. São eles a batata, o inhame e o milho, que no decurso da
segunda metade do século dezanove destronaram rapidamente a hegemonia dos cereais na
dieta alimentar. Em princípios do século XX é ainda visível a expansão dos produtos
hortícolas e dos tubérculos em desfavor dos cereais.

A batata é originária do Andes, sendo conhecida pelos europeus em 1539, mas foi a Irlanda
o principal centro difusor do tubérculo na Europa. A presença na Madeira está
documentada a partir de 1760, mas a generalização só aconteceu em princípios do século
XIX. A batata-doce, também oriunda da América do sul aparece na Madeira no século
XVII, sendo referenciada na década de setenta do século XVIII como o principal sustento
do camponês. Já a batata, dita semilha para o madeirense, só se generalizou no consumo
desde 1845 com a introdução de uma nova variedade de Demerara. Em 1842 o míldio
atacou a batata irlandesa, provocando uma das maiores mortandades na população da ilha.
O próprio governador, José Silvestre Ribeiro, testemunha a situação refere em 1847 que a
batata era “de há longos anos o alimento principal dos camponeses, e quando as colheitas eram
abundantes, viviam sofrivelmente” isto, porque além deste produto só tinham para comer “algum
inhame e pouco milho”
A crise da batata conduziu inevitavelmente a uma outra revolução alimentar com a plena
afirmação do milho O milho, sob a forma de pão ou de farinha, transformou-se
rapidamente na base da mesa madeirense na primeira metade do nosso século. O milho
introduzido cedo conquistou a mesa do madeirense, tornando-se, de parceria com a batata,
no sustento preferencial dos madeirenses.

O CARDAPIO MADEIRENSE
A ilha, terra de passagem de gentes assistiu também à movimentação e descoberta do
mundo animal e vegetal. A Madeira foi, na verdade, o espaço de passagem das plantas
do continente Europeu para o novo mundo e vice-versa. Da Europa chegaram os
cereais, a vinha e a cana-de-açúcar. Os dois primeiros por exigência da cultura cristã. A
América e a África revelaram-se aos europeus na sua exoticidade e variedade dos frutos.
Os descobrimentos peninsulares foram também a descoberta disso.
Aos poucos a mesa europeia tornava-se rica e variada. Cedo o ocidental assimilou
aquilo que foi encontrando. Pimentos, feijão, mandioca, amendoim, chocolate, café,
chá, baunilha, ananás, banana, milho e batata chegam à mesa europeia. As ilhas, e de
modo especial a Madeira são viveiro de aclimatação aos solos europeus. A nossa
variedade de frutos é resultado disso. A Banana é conhecida na ilha desde o século XVII
e outros mais frutos tropicais foram chegando e contribuíram paulatinamente para o
alargamento do cardápio. A mais antiga referência surge em 1687 no testemunho de
Hans Sloane, sendo repetido em 1689 por John Ovington. Paulatinamente impõe-se na
dieta alimentar tornando-se numa importante fonte de riqueza da ilha.

Por muito tempo alguns produtos foram identificados com determinadas regiões. A maça
apela-nos à grande metrópole de Nova York, enquanto o ananás nos recria as paradisíacas
ilhas do Havai. Mas tudo terá mudado a partir do século XVIII. A alimentação progrediu e
as ementas universalizaram-se. Os produtos perderam o selo de identidade de origem e
entraram definitivamente no quotidiano. A mesa do mundo ocidental é igual. As
divergências e exoticidade sucedem como resultado do confronto com outras culturas,
como o mundo árabe e as regiões orientais.
A Madeira está situada numa posição estratégica fundamental para acolher as rotas de
migração de plantas e produtos. No século XV foi a ilha que promoveu a expansão das
culturas europeias no mundo atlântico. E de novo a partir do século XVI a descoberta de
novos produtos e frutos com valor alimentar levou a que a ilha servisse de entreposto de
expansão dos mesmos no velho continente. Tudo isto acontece porque a ilha continua a
ser uma área charneira entre os dois mundos e dispunha de uma variedade de microclimas
propícios à fixação de novas plantas e sementes. Aliás, a singular condição levou a que nos
séculos XVIII e XIX a ilha se transformasse num viveiro de aclimatação de plantas. Dos
inúmeros produtos que chegaram às ilhas dois há que se afirmaram rapidamente na dieta
alimentar. São eles a batata, o inhame e o milho, que no decurso da segunda metade do
século dezanove destronaram rapidamente a hegemonia dos cereais na dieta alimentar. Em
princípios do século XX é ainda visível a expansão dos produtos hortícolas e dos
tubérculos em desfavor dos cereais. Em 1908 a produção média por hectare era de 15.000
quilos, dando a ilha vinte e cinco toneladas.
A batata é originária do Andes mas foi a Irlanda o principal centro difusor do tubérculo na
Europa. A presença na Madeira está documentada a partir de 1760, mas a generalização só
aconteceu em princípios do século XIX. A batata-doce, também oriunda da América do sul
aparece na Madeira no século XVII, sendo referenciada na década de setenta do século
XVIII como o principal sustento do camponês. Já a batata, dita semilha para o madeirense,
só se generalizou no consumo desde 1845 com a introdução de uma nova variedade de
Demerara. Em 1842 o míldio atacou a batata irlandesa, provocando uma das maiores
mortandades na população da ilha. O mais evidente é que a situação teve eco noutros
espaços europeus, como foi o caso da Madeira em 1846 e 1847. Tendo em conta que havia
adquirido um lugar dominante na alimentação é fácil de adivinhar as dificuldades daqui
resultantes. O próprio governador, José Silvestre Ribeiro, testemunha a situação refere em
1847 que a batata era “de há longos anos o alimento principal dos camponeses, e quando as colheitas
eram abundantes, viviam sofrivelmente” isto, porque além deste produto só tinham para comer
“algum inhame e pouco milho”
A crise da batata conduzirá inevitavelmente a uma outra revolução alimentar com a plena
afirmação do milho O Milho, na dieta popular. Sob a forma de pão ou de farinha,
transformou-se rapidamente na base da mesa madeirense na primeira metade do nosso
século. O milho introduzido cedo conquistou a mesa do madeirense, tornando-se, de
parceria com a batata, no sustento preferencial dos madeirenses. Em 1847 a ilha produzia
apenas vinte moios, tendo necessidade de importar o restante. Em 1841 a ilha importava
9000 moios de milho e 8000 de trigo, passando em 1852 para cerca de 10.000 de milho e
5500 de trigo. Já nas décadas de setenta e oitenta o milho era a base da alimentação das
populações mais pobres. Em Câmara de Lobos já em princípios do século o milho
dominava a dieta alimentar.

A culinária madeirense pode ser considerada de uma forma genérica rica e pobre. Parece
um paradoxo, mas não é. Para entendermos isto temos que ter em conta um conjunto de
factores que condicionaram a evolução ao longo dos séculos, através dos produtos que
alimentam o cardápio e dos meios de conservação. As dificuldades na conservação dos
produtos perecíveis obrigaram ao estabelecimento de regras no uso e consumo definindo
uma sazonalidade. A maior parte dos produtos, como é o caso dos frutos, tinha uma
durabilidade limitada, sendo consumidos apenas na época de maturação. A sazonabilidade
condicionou a forma de orientação do cardápio e obrigava o madeirense a estar dependente
dos condicionalismos do ciclo rural. Acresce ainda outro factor significativo na mesa
madeirense. A dificuldade, desde o século XV, em encontrar na ilha a garantia de
subsistência para a população, o que obriga à extrema dependência do exterior. As crises de
subsistência são uma constante na História da Madeira.
Os estrangeiros visitantes não se cansam de referir o contraste entre a mesa das famílias
distintas e a da maioria da população. Entre os primeiros estávamos perante a boa mesa
onde os excessos de comida eram frequentes. E as evidências aí estavam. A obesidade era
uma característica do grupo social e do clero. Rodolfo Schultze em 1864 chama a atenção
para o facto de os jovens das famílias mais importantes, entre os 10 e 14 anos, tinham a
tendência para o peso excessivo. A ideia é também corroborada pelos autores portugueses.
Assim, Eduardo Grande é peremptório em afirmar que o “regímen alimentar das classes menos
abastadas deste distrito” era pobríssimo, constando quase sempre de pão, mas de má
qualidade.
Mas isto parece ter sido o privilégio de um grupo restrito da sociedade, uma vez que de
acordo com John Ovington em 1689 a alimentação dos madeirenses era muito frugal,
referindo que os pobres no tempo da vindima comiam apenas de uvas e pão. Diz-nos
George Forster que “os camponeses são excepcionalmente sóbrios e frugais; a alimentação consiste em
pão, cebolas, vários tubérculos e pouca carne”. Na verdade, a alimentação consistia em vegetais
algum pão, inhame e castanha e os frutos da época.
Os forasteiros são os principais divulgadores da gastronomia. Habituados às laudas mesas
reprovam a frugalidade da mesa rural. O gáudio está no Funchal, nos salões das quintas ou
do Palácio do Governador. Em 1793 John Barrow saiu da ilha agradado com a mesa do
governador da ilha, D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho “a sua mesa é uma das mais variadas e
delicadas e em poucas partes do mundo se poderia apresentar coisa semelhante. Travessas esplêndidas
sustentam animais inteiros; ali deparei com um porquinho recheado rodeado de laranjas, uma lebre
armando um salto, faisões tentando levantar voo, ornados com a sua vistosa e flamejante plumagem”.
A mesa madeirense apresentava por vezes alguns pratos estranhos os forasteiros. No texto
editado por J. Payne em 1740 dá-se conta de”um prato de misturas, muito apreciado pelos naturais
composto de peras, passas, pão e ovos, tudo fervido ao mesmo tempo, com salsa e outras ervas aromáticas”.
Noutro prato misturava-se uvas com nozes, inhame cozido, a que se juntava uma massa
frita e melaço.

O VINHO MADEIRA NA GASTRONOMIA

Segundo Anatole France [1844-1924] refere em “Le Petit Pierre” o vinho Madeira
acompanha bolos secos e apenas “un doigt de vin de Madere anima les regards, fit sourire les levres. »
Já para Alfred Musset o Madeira caia bem com uma asa de perdiz 6 . Mas Proudhon queixa-
se que este vinho e outros europeus não está acessível a todo o povo 7 .Ao contrário do que
sucede hoje, em que o Madeira é conhecido apenas na culinária, a literatura do século XIX
e princípios do século XX revela-nos um vinho distinto que tinha lugar à mesa, sendo
apreciado pelas classes altas e cobiçado pelos pobres.

No mundo de expressão em língua inglesa o vinho Madeira assumiu desde o século XV um


papel destacado à mesa e nas tabernas, primeiro na Inglaterra e depois em todo o mundo
colonial britânico, desde o Atlântico ao, Indico. A documentação história é reveladora
desta posição dominante do mercado inglês. Para o quotidiano londrino a obra de
Shakespeare, nas diversas incidências valorativas do vinho madeirense, eram já o indício
seguro de que o vinho madeirense era uma constante no quotidiano.

A vida política inglesa no século XV foi pautada por várias disputas pela posse do ceptro
real, em que se envolveram os Lencastre, Yorks, Tudors e Angevins. Foi esta ambiência
sanguinolenta que fascinou a pena do dramaturgo, Shakespeare, que nos legou nas suas
peças uma visão impressionista dessa época. É neste contexto de violência que surgem as
primeiras referências ao vinho da Madeira, para muitos a única alegria do quotidiano. Mas o
vinho também se envolveu, através dos apreciadores, na conturbada conjuntura politica:
em 1478 Eduardo IV, rei de Inglaterra, ordenou a execução de Jorge Plantageneta, Duque
de Clarence, irmão do futuro rei Ricardo III (1483-85) por atentar contra a sua soberania;
de acordo com a lenda este preferiu morrer afogado numa pipa de malvasia. Um século
mais tarde Shakespeare ao dramatizar a vida de Ricardo III, irmão do malogrado duque,
retoma o acontecimento, retratando no cenário da Torre de Londres. O mesmo
dramaturgo coloca noutra peça—"Henrique IV"-coloca o herói desta e demais peças suas,
John Falstaff, a render a sua alma "por um copo de Madeira e uma perna fria de capão".
O Vinho Madeira chegou a este mercado a partir de meados do século XVII e cedo se
impôs o consumo nos meios aristocráticos. No século seguinte o processo de

6 . Titre Lettres de Dupuy et Cotonet / Alfred de Musset, in Revue des deux mondes, 1836
7 . Proudhon, Pierre-Joseph, Système des contradictions économiques ou philosophie de la misère, Paris : Librairie internationale, 1872
independência e o interesse manifesto de muitos dos presidentes fizeram com que o Vinho
Madeira se transformasse numa realidade indelével da sociedade e política americana.

Um dado evidente desta fugaz análise do vinho na escrita inglesa é a revelação de que o
Madeira não se resume apenas a deliciar as papilas gustativas dos apreciadores, pois
também surge com muita frequência em livros de culinária, como em tratados de medicina.
É, aliás, na voz dos romancistas e poetas que se encontram as maiores e mais elogiosas
referências ao Vinho Madeira. O Madeira não era um vinho comum ou para todos os
momentos, pois segundo Gabriel Furman 8 era apenas usado em ocasiões especiais, como o
nascimento de uma criança, um casamento ou funeral. Aliás, segundo Nathaniel Parker
Willis [1806-1867] em “Dashes at Life” (1845) era conhecido como “vinho de casamento”. O
Madeira acabava por assumir um lugar especial até mesmo junto dos abstémios. Assim
sucedia com Philip Hone 9 que nunca bebeu qualquer outra bebida espirituosa na vida a não
ser um ou dois cálices diários de vinho Madeira.

Algumas das publicações periódicas de prestígio, do século XIX e princípios do século XX,
insistem na referência frequente ao vinho Madeira o que demonstra mais uma vez que era
um dado referencial do quotidiano que não podia ser ignorado 10 . O panorama de
referências alarga-se a todo o tipo de publicações, que vai desde os tratados de culinária 11
aos manuais de bons costumes e etiqueta 12 , como aos tratados de medicina 13 . Neste último
caso dando razão a uma tradição de defesa das capacidades profiláticas do vinho.

Os cereais são componentes importantes da dieta alimentar. Da farinha de trigo nascem as


rosquilhas, bolo do caco e cuscus ou então o frangolho, isto é, uma papa feita com farinha
integral. Ao bolo do caco e cuscus aponta-se como uma reminiscência da presença mourisca
na ilha. Com o milho são também diversos os usos. O grão é consumido cozido, escaldado
ou estroçoado em sopa, enquanto com a farinha se faz uma papa que depois dá origem ao
conhecido milho frito, que acompanha muitos dos pratos da nossa gastronomia.

Mais rica é a doçaria. Em terra onde os canaviais adquiriram desusada importância na sua
História é natural a dominância da doçaria na culinária regional. Na memória de todos
persistem as receitas conventuais, pois que as demais se perderam. Nos conventos de Santa
Clara, Mercês e da Encarnação a doçaria é uma arte que ocupa de forma dedicada as freiras.
Os doces faziam-se em momentos festivos para consumo interno ou para retribuir os
benfeitores. Das suas mãos saíram os bolos de mel, talhadas, batatada, coscorões, arroz-
doce e queijadas. Cada doce tinha a sua época: a batatada pelo Natal, os coscorões no
Entrudo, as talhadas na Páscoa e no dia de Nossa Senhora da Encarnação.

De todos o que persiste e afirma-se como o rei da doçaria madeirense é o bolo de mel. Em
muitas das suas receitas junta-se quase sempre uma porção de vinho Madeira. Um das
receitas mais conhecidas é a das freiras do Convento da Encarnação. É também com vinho
Madeira que o mesmo deve ser servido. Aliás, o vinho Madeira é uma das melhores iguarias
para acompanhar a doçaria regional ou doutras paragens. A par disso o vinho adquiriu

8 . Antiquities of Long Island, N. York, 1874, p.160


9 . Philip Hone, The Diary of Philip Hone 1828-1851, vol. I, N. York, 1889.
10. Magazine of Domestic Economy(1927-39), The New england Magazine(1892), Putman`s Montly Magazine(1854), The Bay State

Montly(1885),Harpers New Montly Magazine(1852, 1854, 1878), New England Angale Review(1860), The Century Popular Quartely(1885), The
Living Age(1857), The Atlantic Montly(1884, 1872), Harpers New Magazine(1856), The New England Magazine(1900), The North American
Review(1824).
11 . Grace Clergue Harrison: Allied Cookery(1916),
12 . A Manual of Politeness(1837), Sophie Orne Johnson: A Manual of Etiquette(1873), Clara S. J. Bloomfield-Moore, Sensible Etiquette(1878),

William A. Alcott: The Young Housekeeper(1846)


13 . Edward Parrish, A Treatise on Pharmacy, Philadelphia, 1865p.819; H. Beasley, The Druggist General Receipt Book, Philadelphia, 1857,

p.193;Joseph H. Pulte, Homeopatic domestic Physician, N. York, 1856, p.52.


grande prestígio na arte de cozinhar dos grandes mestres da cozinha francesa, sendo um
dos ingredientes fundamentais nos mais variados pratos ou de molhos. A sua presença
alarga-se aos mais variados pratos de carne, mariscos e peixe. Foi a França que nos revelou
mais esta potencialidade e é para lá que se exportam as maiores quantidades de vinho
Madeira com este objectivo.

A tradição anota uma etiqueta do vinho que o faz acompanhar o quotidiano do


madeirense. O vinho bebe-se por diversos pretextos com solenidade. À mesa segue-se um
ritual. Como aperitivo oferece-se um sercial ou verdelho. Este último poderá ser servido
ainda com o boal junto com a sopa. A sobremesa, consoante o que se sirva poderá beber-
se um malvasia, sercial, boal e terrantez.
Shakespeare nas suas peças refere com assiduidade o vinho Madeira, sendo a mais célebre a
de Falstaff, o afamado beberrão que dizia vender a alma por uma taça de Madeira e uma
perna fria de capão. Esta simples referência denota que o vinho Madeira podia também
acompanhar os vários pratos de carne. Noutros casos, que nos retratam a ambiência dos
britânicos do outro lado do Atlântico dá-se conta do seu uso diário ao pequeno-almoço
com biscoitos. Aliás diz, a tradição que o conde de Torre Bela se conservou muitos anos
por ter bebido todos os dias em jejum um cálice de malvasia. Daqui resulta que o vinho da
ilha, tendo em conta as diversas variedades em que se pode encontrar no mercado, pode
ser consumido em qualquer momento pelos seus admiradores.

Um das questões pouco pacíficas prende-se com a utilização do vinho Madeira na culinária,
isto é, o célebre "Madeira Sauce", que encontramos em alguns países europeus,
nomeadamente a França. Note-se que esta situação acontece um pouco com todos os
vinhos, sem lhes retirar valor. Aliás, a culinária madeirense é ela própria usufrutuária desta
situação. Ao nível dos molhos temos o molho Madeira de vinho seco para acompanhar
carnes e o molho doce para acompanhar fruta e saladas. Nos pratos temos a considerar a
presença do mesmo no caldo de carne e carne assada na panela e rolo de carne. Mas é na
doçaria que o vinho é um componente essencial. Nos diversos bolos (bolo preto, da
família, de frutas de cerveja, da avó de noivos) pudins (de vinho madeira, de pão, de
bananas, de requeijão de pêros de água, gelado), broas, geleia de vinho rosquilhas, com
forte incidência de vinho Madeira.

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