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MADEIRA
DA TERRA ÀS TRADIÇÕES GASTRONOMICAS
Ler é beber e comer. O espírito que não lê emagrece tal como o corpo que não come.
Lire, c'est boire et manger. L'esprit qui ne lit pas maigrit comme le corps qui ne mange pas.
(Victor Hugo[1802-1885],Faits et croyances, p.151, in Océan, Éd.Robert Laffont coll.
Bouquins)
Le besoin de créer est dans l'âme comme le besoin de manger dans le corps.
Christian Bobin (La folle allure, p. 26, Éditions Gallimard 1995)
ALBERTO VIEIRA
CEHA-MADEIRA
avieira@madinfo.pt
Os aforismos acima enunciados dão conta da importância que assume a alimentação na
vida da humanidade e a forma como ela condiciona o nosso modo de vida. Todavia a
forma como cada um de nós ou dos nossos antepassados se relaciona(va) com a
alimentação parte de diversas condicionantes resultantes da nossa cultura material, da
disponibilidade e expansão de culturas e das condições da terra, e, acima de tudo, dos
condicionantes civilizacionais, que quase sempre têm origem nas determinações e preceitos
religiosos. Aliás, a religião teve e ainda continua a ter um papel destacado na alimentação,
determinando a afirmação ou proibição de produtos.
Podemos afirmar que foi a França o berço da revolução ocidental da alimentação. São os
franceses que a partir do século XVIII se especializam na arte da cozinha, criando à volta
da mesa uma atitude distinta. A alimentação deixa de ser apenas uma necessidade para ser
tornar algo prazeroso, como nos afirma Jean Arthelme Brillat-Savarin (1755-1826) em a sua
Fisiologia do Gosto (1825). A gastronomia como forma de prazer tem em Roland Barthes
algumas das suas melhores expressões estruturalistas: Mythologies (1957), Systéme de la Mode
(1967). O turismo levou à valorização do chamado café francês, surgido em 1674, e do
restaurante moderno que surge também aí a partir do século XVIII.
O brasileiro José Bento Monteiro Lobato (1882-1948), um dos mais acérrimos defensores
da comida caipira, apresenta em 1941, em A Reforma da Natureza, algo de inovador. Apresenta
o livro como algo comestível, propondo-se a impressão em papel fabricado de trigo e o uso
de uma tinta inócua. Deste modo, O leitor vai lendo os livros e comendo as folhas. Leu uma, rasga e
come! Quando chega ao fim da leitura, está almoçado ou jantado. (...) O livro-pão! O pão-livro! Quem
souber ler lê o livro e depois o come; quem não souber come só, sem ler. Desse modo, o livro pode penetrar
em todas as casas, seja dos sábios, seja dos analfabetos.
A literatura portuguesa não é tão arrojada na sua valorização da gastronomia, mas o comer
e o beber são uma constante no retrato da sociedade. Tenha-se em conta que Eça de
Queirós afirmava que a cozinha e adega exercem uma larga e directa influência sobre o homem e a
sociedade. Daqui resulta a assiduidade das referências gastronómicas no mesmo Eça em O
Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio, A Cidade e as Serrras e os Maias. Em Júlio Dinis, como
Ramalho Ortigão, temos, por exemplo, a exaltação da gastronomia do Alto Minho.
A RELIGIÃO E A ALIMENTAÇÃO
Hoje a dieta vegetariana é defendida por razões religiosas, no caso dos adventistas do
sétimo dia, budistas, os espíritas e os hindus, ou por razões filosóficas, como por exemplo
os Rosacrucianos da Fraternidade Rosacruz (Max Heindel). Por fim podemos salientar a
dieta macrobiótica que tema as suas bases no Taoismo e Zen Budismo, surgiu no séc.
XIX com um médico japonês, Sagen Ishizuka (1850-1910). No caso do
Taoísmo afirma-se o princípio de uma alimentação saudável para o corpo,
mente e espírito.A presença da carne é rara e mesmo assim a que se
apresenta é por vezes desadequada aos hábitos ocidentais. Assim o
consumo de carne de cachorro é aconselhado em face do frio intenso do
Inverno, pelo seu alto poder calórico. Por outro lado no processo de
purificação (Chai) os rituais determinam a abstinência da carne e produtos
lacteos. Estes rituais, quase só reservados aos mestres espirituais e aos
monges, antecedem alguns dias das cerimónias festivas mais importantes do
ano lunar.
O consumidor preferencial das conservas e doçaria madeirense era a Casa Real portuguesa.
Foi D. Manuel quem divulgou as qualidades na Europa. Assim ficaram como o principal
presente, dentro e fora do reino, sendo o exemplo seguido por Vasco da Gama, que
também ofertou o xeque de Moçambique com conservas da ilha 1 . Os confeiteiros, que
fabricavam as conservas, eram pagos pela Fazenda Real. Sabemos que em 1513 Diogo de
Medina recebeu 8$000 réis pelo fabrico de 40 arrobas e conserva para o rei. Já em 1521
Inês Mendes recebeu 92$000 réis por 60 arrobas com o mesmo destino 2 . No período de
1501 a 1561 a Casa Real consumiu 1129 arrobas e 58 barris de açúcar em conservas e frutas
secas 3 .
1 . Confronte-se Sousa Viterbo, Artes e Indústrias Portuguesas - A Indústria Sacarina, II0 Série, Coimbra, 1910, pp. 10-11.
2 . Fernando Jasmins Pereira, Documentos sobre a Madeira no século XVI existentes no Corpo Cronológico, Vol. I, Lisboa, 1990, pp. 120, 168
3 . Informações recolhidas nos documentos publicados por Fernando Jasmins Pereira, Documentos sobre a Madeira no século XVI existentes no
O processo decorrente da expansão europeia, a partir do século XV, foi fundamental para a
evolução da cozinha europeia. Cedo o ocidental assimilou aquilo que foi encontrando.
Pimentos, feijão, mandioca, amendoim, chocolate, café, chá, baunilha, ananás, banana,
milho e batata chegam à mesa europeia. As ilhas, e de modo especial a Madeira foram os
viveiros de aclimatação aos solos europeus. A nossa variedade de frutos é resultado disso.
As ligações da ilha com outras regiões tiveram impacto directo na culinária.
A Madeira surge, nos alvores do século XV, como a primeira experiência de ocupação em
que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi, depois,
utilizado, em larga escala, noutras ilhas e no litoral africano e americano. O arquipélago foi
o centro de irradiação dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo
atlântico: os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses
aportaram. A par disso a ilha foi, nos alvores do século XV, a primeira experiência de
ocupação em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi
depois utilizado em larga escala noutras ilhas e no litoral africano e americano. O
arquipélago foi o centro de divergência dos sustentáculos da nova sociedade e economia do
mundo atlântico: primeiro os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras
A Madeira estava situada numa posição estratégica fundamental para acolher as rotas de
migração de plantas e produtos. No século XV promoveu a expansão das culturas
europeias no mundo atlântico. E de novo a partir do século XVI a descoberta de novos
produtos e frutos com valor alimentar levou a que servisse de entreposto de expansão ao
velho continente. Dos inúmeros produtos que chegaram às ilhas dois há que se afirmaram
rapidamente na dieta alimentar. São eles a batata, o inhame e o milho, que no decurso da
segunda metade do século dezanove destronaram rapidamente a hegemonia dos cereais na
dieta alimentar. Em princípios do século XX é ainda visível a expansão dos produtos
hortícolas e dos tubérculos em desfavor dos cereais.
A batata é originária do Andes, sendo conhecida pelos europeus em 1539, mas foi a Irlanda
o principal centro difusor do tubérculo na Europa. A presença na Madeira está
documentada a partir de 1760, mas a generalização só aconteceu em princípios do século
XIX. A batata-doce, também oriunda da América do sul aparece na Madeira no século
XVII, sendo referenciada na década de setenta do século XVIII como o principal sustento
do camponês. Já a batata, dita semilha para o madeirense, só se generalizou no consumo
desde 1845 com a introdução de uma nova variedade de Demerara. Em 1842 o míldio
atacou a batata irlandesa, provocando uma das maiores mortandades na população da ilha.
O próprio governador, José Silvestre Ribeiro, testemunha a situação refere em 1847 que a
batata era “de há longos anos o alimento principal dos camponeses, e quando as colheitas eram
abundantes, viviam sofrivelmente” isto, porque além deste produto só tinham para comer “algum
inhame e pouco milho”
A crise da batata conduziu inevitavelmente a uma outra revolução alimentar com a plena
afirmação do milho O milho, sob a forma de pão ou de farinha, transformou-se
rapidamente na base da mesa madeirense na primeira metade do nosso século. O milho
introduzido cedo conquistou a mesa do madeirense, tornando-se, de parceria com a batata,
no sustento preferencial dos madeirenses.
O CARDAPIO MADEIRENSE
A ilha, terra de passagem de gentes assistiu também à movimentação e descoberta do
mundo animal e vegetal. A Madeira foi, na verdade, o espaço de passagem das plantas
do continente Europeu para o novo mundo e vice-versa. Da Europa chegaram os
cereais, a vinha e a cana-de-açúcar. Os dois primeiros por exigência da cultura cristã. A
América e a África revelaram-se aos europeus na sua exoticidade e variedade dos frutos.
Os descobrimentos peninsulares foram também a descoberta disso.
Aos poucos a mesa europeia tornava-se rica e variada. Cedo o ocidental assimilou
aquilo que foi encontrando. Pimentos, feijão, mandioca, amendoim, chocolate, café,
chá, baunilha, ananás, banana, milho e batata chegam à mesa europeia. As ilhas, e de
modo especial a Madeira são viveiro de aclimatação aos solos europeus. A nossa
variedade de frutos é resultado disso. A Banana é conhecida na ilha desde o século XVII
e outros mais frutos tropicais foram chegando e contribuíram paulatinamente para o
alargamento do cardápio. A mais antiga referência surge em 1687 no testemunho de
Hans Sloane, sendo repetido em 1689 por John Ovington. Paulatinamente impõe-se na
dieta alimentar tornando-se numa importante fonte de riqueza da ilha.
Por muito tempo alguns produtos foram identificados com determinadas regiões. A maça
apela-nos à grande metrópole de Nova York, enquanto o ananás nos recria as paradisíacas
ilhas do Havai. Mas tudo terá mudado a partir do século XVIII. A alimentação progrediu e
as ementas universalizaram-se. Os produtos perderam o selo de identidade de origem e
entraram definitivamente no quotidiano. A mesa do mundo ocidental é igual. As
divergências e exoticidade sucedem como resultado do confronto com outras culturas,
como o mundo árabe e as regiões orientais.
A Madeira está situada numa posição estratégica fundamental para acolher as rotas de
migração de plantas e produtos. No século XV foi a ilha que promoveu a expansão das
culturas europeias no mundo atlântico. E de novo a partir do século XVI a descoberta de
novos produtos e frutos com valor alimentar levou a que a ilha servisse de entreposto de
expansão dos mesmos no velho continente. Tudo isto acontece porque a ilha continua a
ser uma área charneira entre os dois mundos e dispunha de uma variedade de microclimas
propícios à fixação de novas plantas e sementes. Aliás, a singular condição levou a que nos
séculos XVIII e XIX a ilha se transformasse num viveiro de aclimatação de plantas. Dos
inúmeros produtos que chegaram às ilhas dois há que se afirmaram rapidamente na dieta
alimentar. São eles a batata, o inhame e o milho, que no decurso da segunda metade do
século dezanove destronaram rapidamente a hegemonia dos cereais na dieta alimentar. Em
princípios do século XX é ainda visível a expansão dos produtos hortícolas e dos
tubérculos em desfavor dos cereais. Em 1908 a produção média por hectare era de 15.000
quilos, dando a ilha vinte e cinco toneladas.
A batata é originária do Andes mas foi a Irlanda o principal centro difusor do tubérculo na
Europa. A presença na Madeira está documentada a partir de 1760, mas a generalização só
aconteceu em princípios do século XIX. A batata-doce, também oriunda da América do sul
aparece na Madeira no século XVII, sendo referenciada na década de setenta do século
XVIII como o principal sustento do camponês. Já a batata, dita semilha para o madeirense,
só se generalizou no consumo desde 1845 com a introdução de uma nova variedade de
Demerara. Em 1842 o míldio atacou a batata irlandesa, provocando uma das maiores
mortandades na população da ilha. O mais evidente é que a situação teve eco noutros
espaços europeus, como foi o caso da Madeira em 1846 e 1847. Tendo em conta que havia
adquirido um lugar dominante na alimentação é fácil de adivinhar as dificuldades daqui
resultantes. O próprio governador, José Silvestre Ribeiro, testemunha a situação refere em
1847 que a batata era “de há longos anos o alimento principal dos camponeses, e quando as colheitas
eram abundantes, viviam sofrivelmente” isto, porque além deste produto só tinham para comer
“algum inhame e pouco milho”
A crise da batata conduzirá inevitavelmente a uma outra revolução alimentar com a plena
afirmação do milho O Milho, na dieta popular. Sob a forma de pão ou de farinha,
transformou-se rapidamente na base da mesa madeirense na primeira metade do nosso
século. O milho introduzido cedo conquistou a mesa do madeirense, tornando-se, de
parceria com a batata, no sustento preferencial dos madeirenses. Em 1847 a ilha produzia
apenas vinte moios, tendo necessidade de importar o restante. Em 1841 a ilha importava
9000 moios de milho e 8000 de trigo, passando em 1852 para cerca de 10.000 de milho e
5500 de trigo. Já nas décadas de setenta e oitenta o milho era a base da alimentação das
populações mais pobres. Em Câmara de Lobos já em princípios do século o milho
dominava a dieta alimentar.
A culinária madeirense pode ser considerada de uma forma genérica rica e pobre. Parece
um paradoxo, mas não é. Para entendermos isto temos que ter em conta um conjunto de
factores que condicionaram a evolução ao longo dos séculos, através dos produtos que
alimentam o cardápio e dos meios de conservação. As dificuldades na conservação dos
produtos perecíveis obrigaram ao estabelecimento de regras no uso e consumo definindo
uma sazonalidade. A maior parte dos produtos, como é o caso dos frutos, tinha uma
durabilidade limitada, sendo consumidos apenas na época de maturação. A sazonabilidade
condicionou a forma de orientação do cardápio e obrigava o madeirense a estar dependente
dos condicionalismos do ciclo rural. Acresce ainda outro factor significativo na mesa
madeirense. A dificuldade, desde o século XV, em encontrar na ilha a garantia de
subsistência para a população, o que obriga à extrema dependência do exterior. As crises de
subsistência são uma constante na História da Madeira.
Os estrangeiros visitantes não se cansam de referir o contraste entre a mesa das famílias
distintas e a da maioria da população. Entre os primeiros estávamos perante a boa mesa
onde os excessos de comida eram frequentes. E as evidências aí estavam. A obesidade era
uma característica do grupo social e do clero. Rodolfo Schultze em 1864 chama a atenção
para o facto de os jovens das famílias mais importantes, entre os 10 e 14 anos, tinham a
tendência para o peso excessivo. A ideia é também corroborada pelos autores portugueses.
Assim, Eduardo Grande é peremptório em afirmar que o “regímen alimentar das classes menos
abastadas deste distrito” era pobríssimo, constando quase sempre de pão, mas de má
qualidade.
Mas isto parece ter sido o privilégio de um grupo restrito da sociedade, uma vez que de
acordo com John Ovington em 1689 a alimentação dos madeirenses era muito frugal,
referindo que os pobres no tempo da vindima comiam apenas de uvas e pão. Diz-nos
George Forster que “os camponeses são excepcionalmente sóbrios e frugais; a alimentação consiste em
pão, cebolas, vários tubérculos e pouca carne”. Na verdade, a alimentação consistia em vegetais
algum pão, inhame e castanha e os frutos da época.
Os forasteiros são os principais divulgadores da gastronomia. Habituados às laudas mesas
reprovam a frugalidade da mesa rural. O gáudio está no Funchal, nos salões das quintas ou
do Palácio do Governador. Em 1793 John Barrow saiu da ilha agradado com a mesa do
governador da ilha, D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho “a sua mesa é uma das mais variadas e
delicadas e em poucas partes do mundo se poderia apresentar coisa semelhante. Travessas esplêndidas
sustentam animais inteiros; ali deparei com um porquinho recheado rodeado de laranjas, uma lebre
armando um salto, faisões tentando levantar voo, ornados com a sua vistosa e flamejante plumagem”.
A mesa madeirense apresentava por vezes alguns pratos estranhos os forasteiros. No texto
editado por J. Payne em 1740 dá-se conta de”um prato de misturas, muito apreciado pelos naturais
composto de peras, passas, pão e ovos, tudo fervido ao mesmo tempo, com salsa e outras ervas aromáticas”.
Noutro prato misturava-se uvas com nozes, inhame cozido, a que se juntava uma massa
frita e melaço.
Segundo Anatole France [1844-1924] refere em “Le Petit Pierre” o vinho Madeira
acompanha bolos secos e apenas “un doigt de vin de Madere anima les regards, fit sourire les levres. »
Já para Alfred Musset o Madeira caia bem com uma asa de perdiz 6 . Mas Proudhon queixa-
se que este vinho e outros europeus não está acessível a todo o povo 7 .Ao contrário do que
sucede hoje, em que o Madeira é conhecido apenas na culinária, a literatura do século XIX
e princípios do século XX revela-nos um vinho distinto que tinha lugar à mesa, sendo
apreciado pelas classes altas e cobiçado pelos pobres.
A vida política inglesa no século XV foi pautada por várias disputas pela posse do ceptro
real, em que se envolveram os Lencastre, Yorks, Tudors e Angevins. Foi esta ambiência
sanguinolenta que fascinou a pena do dramaturgo, Shakespeare, que nos legou nas suas
peças uma visão impressionista dessa época. É neste contexto de violência que surgem as
primeiras referências ao vinho da Madeira, para muitos a única alegria do quotidiano. Mas o
vinho também se envolveu, através dos apreciadores, na conturbada conjuntura politica:
em 1478 Eduardo IV, rei de Inglaterra, ordenou a execução de Jorge Plantageneta, Duque
de Clarence, irmão do futuro rei Ricardo III (1483-85) por atentar contra a sua soberania;
de acordo com a lenda este preferiu morrer afogado numa pipa de malvasia. Um século
mais tarde Shakespeare ao dramatizar a vida de Ricardo III, irmão do malogrado duque,
retoma o acontecimento, retratando no cenário da Torre de Londres. O mesmo
dramaturgo coloca noutra peça—"Henrique IV"-coloca o herói desta e demais peças suas,
John Falstaff, a render a sua alma "por um copo de Madeira e uma perna fria de capão".
O Vinho Madeira chegou a este mercado a partir de meados do século XVII e cedo se
impôs o consumo nos meios aristocráticos. No século seguinte o processo de
6 . Titre Lettres de Dupuy et Cotonet / Alfred de Musset, in Revue des deux mondes, 1836
7 . Proudhon, Pierre-Joseph, Système des contradictions économiques ou philosophie de la misère, Paris : Librairie internationale, 1872
independência e o interesse manifesto de muitos dos presidentes fizeram com que o Vinho
Madeira se transformasse numa realidade indelével da sociedade e política americana.
Um dado evidente desta fugaz análise do vinho na escrita inglesa é a revelação de que o
Madeira não se resume apenas a deliciar as papilas gustativas dos apreciadores, pois
também surge com muita frequência em livros de culinária, como em tratados de medicina.
É, aliás, na voz dos romancistas e poetas que se encontram as maiores e mais elogiosas
referências ao Vinho Madeira. O Madeira não era um vinho comum ou para todos os
momentos, pois segundo Gabriel Furman 8 era apenas usado em ocasiões especiais, como o
nascimento de uma criança, um casamento ou funeral. Aliás, segundo Nathaniel Parker
Willis [1806-1867] em “Dashes at Life” (1845) era conhecido como “vinho de casamento”. O
Madeira acabava por assumir um lugar especial até mesmo junto dos abstémios. Assim
sucedia com Philip Hone 9 que nunca bebeu qualquer outra bebida espirituosa na vida a não
ser um ou dois cálices diários de vinho Madeira.
Algumas das publicações periódicas de prestígio, do século XIX e princípios do século XX,
insistem na referência frequente ao vinho Madeira o que demonstra mais uma vez que era
um dado referencial do quotidiano que não podia ser ignorado 10 . O panorama de
referências alarga-se a todo o tipo de publicações, que vai desde os tratados de culinária 11
aos manuais de bons costumes e etiqueta 12 , como aos tratados de medicina 13 . Neste último
caso dando razão a uma tradição de defesa das capacidades profiláticas do vinho.
Mais rica é a doçaria. Em terra onde os canaviais adquiriram desusada importância na sua
História é natural a dominância da doçaria na culinária regional. Na memória de todos
persistem as receitas conventuais, pois que as demais se perderam. Nos conventos de Santa
Clara, Mercês e da Encarnação a doçaria é uma arte que ocupa de forma dedicada as freiras.
Os doces faziam-se em momentos festivos para consumo interno ou para retribuir os
benfeitores. Das suas mãos saíram os bolos de mel, talhadas, batatada, coscorões, arroz-
doce e queijadas. Cada doce tinha a sua época: a batatada pelo Natal, os coscorões no
Entrudo, as talhadas na Páscoa e no dia de Nossa Senhora da Encarnação.
De todos o que persiste e afirma-se como o rei da doçaria madeirense é o bolo de mel. Em
muitas das suas receitas junta-se quase sempre uma porção de vinho Madeira. Um das
receitas mais conhecidas é a das freiras do Convento da Encarnação. É também com vinho
Madeira que o mesmo deve ser servido. Aliás, o vinho Madeira é uma das melhores iguarias
para acompanhar a doçaria regional ou doutras paragens. A par disso o vinho adquiriu
Montly(1885),Harpers New Montly Magazine(1852, 1854, 1878), New England Angale Review(1860), The Century Popular Quartely(1885), The
Living Age(1857), The Atlantic Montly(1884, 1872), Harpers New Magazine(1856), The New England Magazine(1900), The North American
Review(1824).
11 . Grace Clergue Harrison: Allied Cookery(1916),
12 . A Manual of Politeness(1837), Sophie Orne Johnson: A Manual of Etiquette(1873), Clara S. J. Bloomfield-Moore, Sensible Etiquette(1878),
Um das questões pouco pacíficas prende-se com a utilização do vinho Madeira na culinária,
isto é, o célebre "Madeira Sauce", que encontramos em alguns países europeus,
nomeadamente a França. Note-se que esta situação acontece um pouco com todos os
vinhos, sem lhes retirar valor. Aliás, a culinária madeirense é ela própria usufrutuária desta
situação. Ao nível dos molhos temos o molho Madeira de vinho seco para acompanhar
carnes e o molho doce para acompanhar fruta e saladas. Nos pratos temos a considerar a
presença do mesmo no caldo de carne e carne assada na panela e rolo de carne. Mas é na
doçaria que o vinho é um componente essencial. Nos diversos bolos (bolo preto, da
família, de frutas de cerveja, da avó de noivos) pudins (de vinho madeira, de pão, de
bananas, de requeijão de pêros de água, gelado), broas, geleia de vinho rosquilhas, com
forte incidência de vinho Madeira.