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VIEIRA, Alberto (2002), Minorias Étnicas na Madeira. Escravos e Libertos, Funchal, CEHA-Biblioteca
Digital, disponível em: http://www.madeira-edu.pt/Portals/31/CEHA/bdigital/avieira/minorias.pdf, data
da visita: / /
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MINORIAS ÉTNICAS NA MADEIRA
ESCRAVOS E LIBERTOS
ALBERTO VIEIRA
CEHA- Madeira
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1
. Sobre os judeus na Madeira vide: FARINHA, Maria do Carmo Dias, "A Madeira nos arquivos da inquisição", in Actas do I
Colóquio Internacional de História da Madeira, vol.I, Funchal, 1990, pp.689-742, MELLO, José António Gonsalves de, Gente da
nação: cristãos-novos e judeus em Pernambuco, Recife: Fund. Joaquim Nabuco, Edit. Massangana, 1989, OLIVAL, Fernanda,
"Inquisição e a Madeira. visita de 1618", in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, vol. II, Funchal, 1990, 764-
818; IDEM, "A visita da Inquisição à Madeira em 1591-1592", in Actas. III Colóquio Internacional de História da Madeira,
Funchal, 1993, 493-520., NOVINSKY, Anita, Inquisição e Heresias na Ilha da Madeira, Actas do I Colóquio Internacional de
História da Madeira, Funchal, 1989, vol. II, NASCIMENTO, João Cabral do, Vestígios de Sangue Impuro ou Indiscrições dum
Anotador mal Humorado, AHM, vol.I, Funchal, 1931, 4-11.
2
. Sobre esta situação particular realçada pela historiografia norte-americana destacamos os seguintes estudos: GREENFIELD,
Sidney M, “Madeira and the Beginings of New World Sugar Cane Cultivation and Plantation Slavery: A Study in Constitution
Building”, in Vera RUBIN(ed.), Comprative Perspectives on Slvaery in New World Plantation Societies, N. York, 1977; W. D.
Phillips, JR, La Esclavitud desde la Época Romana hasta los inicios del comercio Transatlántico,Madrid, 1989, p.226
posições portuguesas trouxe os mouros. Estas, condições provocadas pelo protagonismo
dos madeirenses, conduziram à presença, desde o início do povoamento do arquipélago,
de minorias étnicas africanas e abriram as portas ao comércio de mão-de-obra escrava.
A permanência do movimento só se tornou possível porque na ilha foram criadas as
condições à sua demanda com a cultura e produção de cana-de-açúcar.
A cana sacarina chegou ao Mediterrâneo por mão dos árabes e expandiu-se no
espaço atlântico por via e iniciativa dos madeirenses. A cultura era muito exigente
quanto ao solo e à intervenção do homem. O ciclo vegetativo da cultura aliado à
morosidade das tarefas para a transformar em açúcar implicava a disponibilidade de
numerosa mão-de-obra, que para o produto final se tornar competitivo deveria barata,
que é o mesmo que dizer escrava. O movimento e trato de escravos, entre meados do
século XV e princípios do seguinte, ligam-se de forma directa à época de fulgor do
açúcar. A partir de meados do século XVI a concorrência de outras áreas açucareiras,
como S. Tomé e o Brasil, desviou a rota dos escravos. A presença escrava na Madeira
perdeu importância, deixando estes de ser uma preocupação para autoridades e naturais.
3
. cf. José G. Salvador, Os Cristãos-novos e o comércio no Atlântico meridional, S. Paulo, 1978, 149; António José Saraiva,
Inquisição e Cristãos Novos, Lisboa, 1994, 134-135.
4
. Vide Maria José Ferro Tavares, os judeus na época dos descobrimentos, Lisboa, 1995.
diáspora a novos mercados mais promissores como Pernambuco no Brasil. Para a
comunidade judaica a Madeira foi o primeiro alvo da expansão europeia donde
irradiaram para os quatro cantos do Novo Mundo, perseguindo o rasto do açúcar e do
tráfico dos escravos no espaço atlântico. Perante isto importa conhecer qual o papel que
estes assumiram neste primeiro poiso da diáspora atlântica. Até ao estabelecimento do
tribunal de inquisição em Portugal (1536) não é fácil identificar a comunidade judaica
na documentação, não obstante a sua presença fazer-se sentir em múltiplos domínios de
sociedade e economia portuguesa. Apenas com a instituição do tribunal do santo ofício
foi possível estabelecer o rasto do grupo convertido ou não ao Cristianismo5.
Certamente que procuravam iludir as suas crenças religiosas, apagando todo o rasto
possível.
A Madeira não foge à regra e a xenofobia foi uma das armas usadas para travar a
concorrência das sociedades mercantis estrangeiras. Na década de sessenta os judeus e
genoveses, porque monopolizavam o comércio do açúcar, foram o principal alvo dos
madeirenses. Em 1461 os funchalenses solicitaram ao infante D. Fernando que proibisse
a sua actividade como compradores de açúcar ou arrendatários dos direitos na ilha6. Esta
estreita ligação aos genoveses é constante no controle do comércio nos novos espaços
atlânticos, surgindo nas ilhas desde os inícios da ocupação. Difícil é encontrar o rasto da
sua presença, pois tal como nos diz José Gonçalves Salvador7 “muitos vão para as ilhas
e se acobertam sob a capa de cristãos”. Apenas a comparação antroponímica permite
algumas descobertas.
Os judeus estão envolvidos em todas as actividades, mas, como nos refere Maria
José Ferro Tavares, “a actividade mercantil e a ocupação principal”. E dentro destas
parece que tiveram uma predilecção especial pelos negócios baseados no açúcar, como
se confirma nas palavras de José Gonçalves Salvado8, que é peremptório em afirmar que
“os hebreus sefarditas aparecem identificados com as actividades ligadas ao açúcar
primeiro nas ilhas adjacentes a Portugal e depois nas demais possessões”.
A estratégia judaica para domínio do mercado açucareiro atlântico passou por
uma estreita aliança com os mercadores flamengos e italianos, nomeadamente os
genoveses. Disto fez-se denuncia nas Cortes de 1471-72, mas a situação continuou nos
decénios seguintes. No caso do comércio do açúcar da Madeira esta forma de actuação é
comum. Assim, quando o comércio do açúcar estava sujeito a um monopólio da Coroa
entregue a sociedades estes surgem aliados aos Leme, Lomellini e Marchione. Nas
transacções do açúcar com a Flandres foi uma sociedade entre os Leme e Abravanel que
o controlou. Já no caso das cidades italianas foram Moisés Latam e Guedelha Palaçam
que se associaram a B. Marchione.
O “livro de estimos do açúcar” do Funchal em 14949 comprova a presença de
judeus, como Isaac Abeacar, Moisés Benagaçam e David de Negro nas transacções
açucareiras, representados na ilha através de procuradores italianos como era o caso de
Dinis Sernige, Lucas César, Sisto Lomellini. Segundo o estudo de V. Rau para 1494, os
judeus junto com outros estrangeiros, dominados pelos genoveses, dominavam as
transacções açucareiras com 11.373 arrobas, o equivalente a 64% do total em causa10.
Esta posição não está longe da realidade desta e posterior centúria, uma vez que os
dados por nós apurados entre 1490 e 1550 apontam de novo para o total controlo dos
mercadores italianos com 80% das operações comerciais do açúcar madeirense11.
5
. Para a Madeira não existe estudo completo sobre a inquisição como é o caso de Paulo Braga, A Inquisição nos Açores, P.D., 1997.
6
. AHM, Vol. XV, 1972, 14-15, 3 de Agosto de 1461.
7
. Os cristãos novos e o comércio Atlântico Meridional, S. Paulo, 1978, 246.
8
. Os magnatas do Tráfico Negreiro, S. P., 1981, 87.
9
. Publ. V. Rau, O açúcar na Madeira, Funchal, 1962.
10
. Ob.cit., p. 24
11
. O Comércio Inter-Insular, Funchal, 1987, 130.
A par disso podemos considerar os problemas gerados pela prática e crença
religiosa. Os aferidores mais importantes da religiosidade madeirense são os
testemunhos exarados, primeiro nos diversos livros das visitações e depois nos
processos perante o Santo Ofício. A inquisição exercia a actividade na Madeira através
do tribunal de Lisboa, a quem pertencia todo o espaço atlântico. A acção do tribunal não
era permanente e fazia-se sentir através da presença dos inquisidores em visita. Na
Madeira e nos Açores realizaram-se três visitas: em 1575 por Marcos Teixeira, em
1591-93 por Jerónimo Teixeira Cabral e em 1618-19 por Francisco Cardoso Tornéo,
mas só é conhecida a documentação das duas últimas.
Nas ilhas foi evidente a conivência das autoridades com a presença da
comunidade judaica, resultando facilidades na sua fixação quando perseguidos no reino.
Para finais do século dezasseis foram arrolados 94 cristãos novos, mas em 1618 o
número não passou de 5, quando sabemos que em 1620 eram 58 os judeus que pagavam
a taxa. A presença da comunidade judaica era assim evidente. Os judeus,
maioritariamente comerciantes, estavam ligados ao sistema de trocas do mercado
insular, sendo os principais animadores do relacionamento e comércio a longa distância.
A criação do tribunal do Santo Ofício em Lisboa conduziu a que os judeus
avançassem no Atlântico à frente das perseguições: primeiro nas ilhas e depois no Bra-
sil. A diáspora atlântica obedeceu aos vectores da economia atlântica, deixando atrás um
rasto evidente na rede de negócios. O açúcar foi um dos principais móbeis da sua activi-
dade nas ilhas e no Brasil.
A incidência do comércio da Madeira no açúcar, pastel e vinho favoreceu os
contactos assíduos com os portos da Flandres e Inglaterra e favoreceu a presença de
uma importante comunidade, o que veio a avolumar as preocupações dos inquisidores.
As perseguições movidas pelo Santo Ofício levaram muitos dos judeus a refugiarem-se
nas ilhas Canárias, Cabo Verde, S. Tomé e, finalmente, o Brasil. Esta migração foi
ainda acelerada pela crise da produção açucareira madeirense. E de novo os judeus estão
ligados à produção açucareira12.
13
. O comércio com os principais mercados fornecedores existiu, desde o começo da ocupação do arquipélago, e foi em alguns
momentos fulgurante. Impossível é estabelecer com exactidão a quantidade de escravos envolvida. A deficiente disponibilidade
documental, para os séculos XV a XVII, não o permite. Carecemos dos registos de entrada da alfândega do Funchal e dos contratos
exarados nas actas notariais.
A partir de meados do século XV, são assíduas as referências a escravos canários na
ilha da Madeira, identificados como pastores e mestres de engenho14. Estranhamente, nos
testamentos do século XV, não encontramos nenhuma indicação que abonasse a presença
de qualquer escravo guanche. Para além dos dois que possuía o capitão Simão Gonçalves
da Câmara, sabe-se que João Esmeraldo, na Lombada da Ponta do Sol, era também
detentor de escravos desta origem, sem ser referido o número15. Cadamosto, na primeira
passagem pelo Funchal em 1455, fala-nos de um canário cristão que se dedicava a fazer
apostas sobre o arremesso de pedras16.
Nos anos de 1445 e 1446 estão documentadas diversas expedições às Canárias, que
contribuíram para o aumento da presa de escravos do arquipélago na Madeira. Em 1445
ambos os capitães da ilha - Tristão Vaz e Gonçalves Zarco - enviaram caravelas de
reconhecimento à costa africana, mas o fracasso da viagem levou-os a procurar garantia da
cobertura da despesa, buscando uma presa em La Gomera. Álvaro Fernandes fez dois
assaltos em La Gomera e em 1446 foi enviado por João Gonçalves Zarco, segundo Zurara
a intenção de realizar alguma presa. É a partir daqui que devemos situar a importância que
assumiram os escravos canários na sociedade madeirense.
O principal estigma deste grupo está nos fugitivos, que são apresentados como
violentos e ladrões. E mesmo entre os demais as relações não deveriam ser muito famosas,
uma vez que o senhorio da Madeira determinou em 148317 uma devassa, seguida de uma
ordem de expulsão em 149018. De acordo com este último documento todos os escravos
canarios, oriundos de Tenerife, La Palma, Gomera e Gran Canaria, exceptuando-se os
mestres de açúcar as mulheres e as crianças, deveriam ser expulsos do arquipélago. Mas o
infante considerou apenas os forros19. Em 150320 o problema ainda persistia, ordenando o
rei que todos eles fossem expulsos num prazo de dez meses. De novo a coroa retrocedeu
abrindo uma excepção para aqueles que eram mestres de açúcar e dois escravos do
capitão- Bastiam Rodrigues e Catarina-, por nunca terem sido pastores21.
Em síntese, as Canárias afirmaram-se no século XV como o principal fornecedor de
escravos, complementando com as presas dos assaltos à costa marroquina e viagens para
sul. Os canários foram na ilha pastores e mestres de engenho.
14
. Lothar SIEMENS y Liliana BARRETO, "Los esclavos aborigenes canarios en la isla de la Madera (1455-1505)", in A.E.A., nº 20, 1974,
111-143. Aqui utilizamos o termo canário para designar os escravos oriundos do arquipélago das Canárias, não obstante esse termo querer
significar os habitantes de Gran Canária. Mas segundo Gaspar FRUTUOSO (Ob. cit., livro primeiro, p. 73) "desta (Gran Canaria) tomaram o
nome geral de canários os habitadores das outras, ainda que também seus particulares nomes".
15
. Gaspar FRUTUOSO, Livro primeiro das Saudades da Terra. P. Delgada, 1979, 124.
16
. José Manuel GARCIA, Viagens dos descobrimentos, Lisboa, 1983, p. 86.
17
.A.H.M, vol.XV, pp.122-134.
18
.Ibidem, vol. XVI, pp.240-244
19
.Ibidem, vol.XVI, pp.260-265. A 4 de Dezembro de 1491 houve reunião extraordinária da câmara para
deliberar sobre o assunto. A ela assistiram o capitão do Funchal, Simäo Gonçalves da Câmara,
os oficiais concelhios e homens bons. Ao todo eram vinte e cinco, destes onze votaram a favor
da saída de todos, nove apenas dos forros e quatro à sua continuidade na ilha. Dos primeiros registe-
se a opinião de João de Freitas e Martim Lopes, que justificam a sua opção, por todos os canários, livres ou escravos, serem ladrões. Para
Mendo Afonso não era assim que se castigava tais atropelos, pois existia a forca como solução. Se consideramos que cada um dos presentes
pretendia defender os seus interesses, podemos concluir que catorze dos presentes eram proprietários de escravos canários
20
.Ibidem,vol.XVII, pp.440441.
21
.Ibidem, vol.XVII, pp.450-451
Os mouriscos surgem com maior incidência no Funchal e Ribeira Brava, áreas
donde eram provenientes os que mais se distinguiram nas guerras marroquinas. A presença
mourisca na Madeira circunscreve-se quase só ao século XVI, se exceptuarmos o caso da
referência isolada para o Funchal nos anos trinta do século XVII. Esta situação poderá ser
entendida como corolário das medidas restritivas à posse de escravos mouros,
estabelecidas pela coroa a partir 1597 ?22.
Os três grupos étnicos referenciados por Giulio Landi são os mais frequentes na
documentação disponível. No grupo dos escravos identificados, que representa apenas
31
. A.R.M., Documentos Avulsos, cx. 2, n 194
32
. Idem, C.M.F., t. 3, fl. 137 vo-138
18% do total, sendo destes 1% são mouriscos, 6% mulatos e 10% pretos. Os mouriscos
(84%) e mulatos (56%) surgem com maior evidência no século XVI, enquanto os pretos
(59%) dominam na centúria seguinte. Os mouriscos circunscrevem-se apenas a um
momento definido do século XVI (1516-1582), assumindo excepção o baptismo de um em
1639. A sua incidência é no período de 1539 a 1561. As dificuldades sentidas na
manutenção das praças africanas, mercê dos custos elevados das campanhas poderão estar
na origem disto. O madeirense não mais fez das praças africanas o campo para as
aventuras guerreiras e o saque de mouros deixou de ser uma realidade. Entretanto os
guanches, protegidos pelo papado e coroa de Castela, deixaram de ser presa fácil para os
aventureiros furtivos.
644
544
444
344
244
144
44
1530−40
1541−50
1551−60
1561−70
1571−80
1581−90
1591−00
1601−10
1611−20
1621−30
1631−40
1641−50
1651−60
1661−70
1671−80
1681−90
1691−00
O movimento dos nascimentos define-se por dois rumos distintos: primeiro a tendência
para a subida vertiginosa até à década de trinta do século XVII, quebrada por momentos de
descida entre 1551-70, 1581-90, 1601-10, 1621-30, a que se segue um crescimento,
contrariado apenas nas décadas de setenta e oitenta do século XVII. Esta fase de afirmação
da natalidade dos escravos coincide com o período de retorno da cana-de-açúcar na ilha,
enquanto o segundo momento está relacionado com a crise da segunda metade da centúria
setecentista, marcada pela concorrência do açúcar brasileiro e dificuldades no mercado
interno. Resta saber se a conjuntura está na origem deste crescimento dos escravos.
33
."Descrição da ilhas da Madeira", in A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981, p.92.
34
.A.R.M, C. M. F., livro de posturas
35
.A.R.M, C.M.F., nº.1397, fls.58-59.
36
. S. B. SCHWARTZ, ob. cit., 359-360.
O casamento, pelas limitações que impõe à plena intervenção do senhor,
dificilmente ganhava a adesão dos escravos. Deste modo o número de casamentos em que
ambos os cônjuges são de origem escrava é pouco significativo, não ultrapassando 1% do
total de actos realizados, que surgem com maior relevância para o século XVII. O mesmo
já não se poderá dizer dos enlaces mistos, em que a tendência era para a aproximação entre
antigos escravos, já forros, com os que ainda assumem esta condição. A estratégia do
casamento dos escravos encontrava-se nas mãos dos proprietários. O mesmo sucedia com
a sexualidade das escravas, pois era ele o factor determinante a este respeito.
O interesse dos libertos por uma relação matrimonial com os escravos está perfeitamente
definido ao período de 1571 a 1620. O incremento das relações mistas resulta não só das
assimetrias evolutivas do sexo dos escravos, mas também da conjuntura sócio-económica,
definida pela desvalorização da mão-de-obra escrava, mercê da crise açúcareira.
Ao estabelecer-se uma relação entre a condição social e étnica dos nubentes concluiu-
se pela tendência do preto ou do mulato para se unirem primeiro à mulher livre e, depois, à
liberta. A união ou casamento de uma escrava com um homem livre ou liberto era bem
vista pelo proprietário, pois as crianças nascidas deste enlace continuavam a ser
propriedade escravas. Todavia, em termos de sociabilidade, era um foco de
conflituosidade, contando com a oposição da sociedade por meio de normas de conduta
social.
De todos são os mouriscos que apresentam uma tendência mais endogâmica, pois
63% dos pares são constituídos no seu seio, enquanto nos negros a percentagem fica por
53% e nos mulatos não ultrapassa os 28%. Aliás os últimos preferem escolher o parceiro
entre a categoria designada de outros, usualmente europeus, que serviam como
trabalhadores. As mouriscas e mulatas saem, no entanto, do seu círculo étnico e integram-
se no grupo europeu, enquanto a negra não se afastava da sua etnia. É evidente ainda uma
tendência generalizada de opção pelo parceiro de um grupo étnico que não seja sinónimo
da condição de escravo, contrariado apenas pelos negros. O negro manifesta uma certa
aversão ao enlace com o mulato: dos 249 casais contabilizados apenas 14(6%) envolvem
estes.
Uma das grandes preocupações da sociedade madeirense prendia-se com o
relacionamento entre escravos, libertos e livres, ao nível matrimonial, convívio social e
habitacional e laboral. Isto resulta do espírito de solidariedade que existia entre eles e que
actuava como condicionante da sua conduta. Em 1546 refere-se a acção conjugada de
homens de soldada e trabalhadores com negros e mulatos, livres ou não, em roubos e
mortes. Não obstante este temor, bastante evidente nas posturas37, onde se lavrava a
proibição de amancebamento de escravos com livres. Os dados confirmam que este
relacionamento era frequente: em 611 situações de casamento ou relação sexual entre
escravos e livres. Nos registos paroquiais, surgem 228 envolvendo os dois grupos, sendo
de realçar que 145 casos (24%) resultam de casamento. No último caso temos 169 uniões
entre escravos e livres ou libertos. Situa-se entre 1571 e 1620 o período de maior
afirmação de tal relacionamento, mas é para 1651 a 1660 que se atinge o maior valor.
Embora as posturas falem de um relacionamento frequente em ambos os casos a
tendência foi para o relacionamento do homem livre, solteiro ou casado, com a escrava. No
período em causa as situações deste tipo rastreadas nos paroquiais representam 14%,
enquanto no inverso não ultrapassam os 12%.
O QUOTIDIANO. São várias as formas para reconstituir o quotidiano dos escravos. Nem
sempre a documentação nos possibilita esta descoberta, por isso o investigador procura
recolher todos os dados capazes de compor o puzzle, ou então a busca por via indirecta
aquilo que lhe foi negado. A presença dos escravos nos actos de casar e amar é resultado,
por um lado, das normas estatuídas pelos usos e costumes da sociedade e, por outro, da
maior ou menor disponibilidade de tempo na faina agrícola ou oficinal diárias. Daqui
poderá resultar uma relação directa entre os índices dos actos com ritmo do trabalho e,
mesmo, os poucos indícios reveladores do quotidiano. Caso a primeira relação não
aconteça é possível que estejamos perante uma situação em que o escravo se encontra à
margem do processo produtivo ou em que intervêm factores que nos são estranhos. A
morte de um escravo adulto não idoso, quando não assume a dimensão violenta ou se
surge como o resultado de uma epidemia, poderá ser considerada também um elemento
denunciador do elevado ritmo de trabalho, ou então das dificuldades no assegurar da
subsistência.
A análise em separado da situação nas freguesias de ambas as capitanias da ilha e de
algumas das paróquias com dados mais significativos, oferecem-nos alguns traços
particulares da sua evolução, que é como quem diz de outro quotidiano. Tais
especificidades são, necessariamente, resultado de diferentes condições sócio-económicas
de cada localidade, que estabelecem um ritmo de tempo diverso. No meio urbano,
dominado pelo Funchal o dia a dia pulsa de modo diferente que no rural. Entretanto na
capitania do Funchal, que englobava no seu perímetro a melhor área agrícola da Madeira, a
situação é obrigatoriamente diferente da de Machico.
A partir das variações mensais dos valores disponíveis nos doze meses do ano constata-
se uma maior subjugação do escravo das freguesias rurais ao ritmo da Natureza. Na
evolução dos baptismos da capitania do Funchal, compreendendo as Partes do Fundo,
apresenta uma maior variação. Neste caso a influência negativa é atribuída pela faina
agrícola dos meses de Fevereiro e Novembro.
Após a análise da evolução mensal da presença dos escravos nos registos paroquiais,
importa equacioná-la de acordo com as estações do ano e calendário agrícola. Aqui
constata-se a preferência dos escravos para o casamento no Outono (33%) e no Inverno
(27%) pelo que daí terá resultado uma maior actividade sexual nelas, que se repercutirá na
natalidade do ano seguinte. Aqui também e de acordo com o período de gestação, a maior
incidência é para as duas últimas estações do ano. Terminadas as colheitas o escravo
parece dispor de tempo disponível para casar e amar.
Depois importa saber qual a implicação que isso poderá assumir o calendário agrícola
no evoluir dos dois actos. Casos os escravos estejam comprometidos com a faina agrícola
seria natural que os casamentos tivessem lugar num momento de acalmia e não de intensa
actividade. os nubentes preferem os meses aquém das sementeiras (Janeiro/Março) e das
colheitas da cana-de-açúcar (Maio/Junho), cereais (Julho/Agosto) e vinho (Setembro) para
concretizar os casamentos. Apenas se verifica uma coincidência com a safra do açúcar,
devido a esta englobar um mês casamenteiro (Junho) ou, então, a situação poderá
significar a pouca importância que a cultura assumia na ilha no período de 1538 a 1700.
As condições orográficas da ilha não favoreciam o assíduo convívio social entre os
vários grupos sociais do campo, pelo que os momentos mais destacados da faina agrícola
eram, por vezes, propiciadores da sociabilidade. Não se perca de vista que, por exemplo,
quanto à safra viti-vinícola, a situação é diferente, pois é reduzido o número de enlaces
(5%) e de concepções (8%) que tiveram lugar.
38
. W. D. PHILLIPS Jr, La Esclavitud (...), Madrid, 1989, 10-12, 108, 147, 186/188; G. IRWIN,Africans abroad, N. York, 1977, 73, 139. Em
Portugal também sucede o mesmo como se poderá verificar pelos seguintes estudos: Vitorino Magalhães GODINHO, Os Descobrimentos e a
Economia Mundial, IV, Lisboa, 1989, 198-201; J. Romero de MAGALHÃES, Para o Estudo do Algarve Económico durante o século XVI,
Lisboa, 1970, 230; C. A. HAUSON, Economia e Sociedade no Portugal Barroco, Lisboa, 1986, 79.
39
. V. M. GODINHO, ob. cit., IV, 201; W. D. PHILLIPS Jr., ob. cit., 146, 186.
40
. Ibidem, 118, 146, 222-228.
41
. Esta opinião é corrobada por B. BENASSAR (Valladolid au siècle d'or (...), Paris, 1987) e Vitorino Magalhães GODINHO (ibidem, 198-
201), sendo o primeiro criticado por Luís FERNANDEZ MARTIN (Comediantes, esclavos y mouriscos en Valladolid. Siglos XVI y XVII,
Valladolid, 1988, 129.
42
. Livro Primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, 103.
43
. Ibidem, 260.
A crise da cultura da cana-de-açúcar no século XVI terá provocado uma profunda
mudança na situação da escravatura na Madeira, implicando a mudança de actividade e o
aumento das alforrias. O escravo transfere-se do campo para a cidade vindo alimentar o
numeroso grupo de serviçais das casas senhoriais e as oficinas. Mas é necessário ter em
consideração que ao lado dos escravos para o serviço da casa havia os livres, referenciados
como criados44.
O serviço doméstico era por norma uma atribuição dos escravos do sexo feminino, pois
os outros ocupavam-se nas tarefas agrícolas, artesanais ou, então, eram homens de soldada
ao serviço de outrem. À mulher estavam ainda reservadas outras tarefas, surgindo
vendeiras de fruta e lavadeiras. O exercício da actividade de venda de produtos agrícolas
no mercado local estava sujeito a inúmeras regulamentações, limitativas do exercício
doloso. Acusava-se os escravos de se dedicarem ao seu senhor e compradores, para seu
usufruto ou para amealharem a quantia necessária à alforria.
Os escravos do sexo masculino exerciam diversas tarefas nos mais variados sectores de
actividade, pois tanto poderiam ser artesãos como agricultores, almocreves e homens de
soldada. É constante a sua presença nos livros de receita e despesa de obras, como é o caso
da alfândega do Funchal. Os senhores usavam-nos também para os substituírem no serviço
de construção das fortificações, a que todo o cidadão deveria participar com um dia de
trabalho.
Acontece que a necessidade inicial da mão-de-obra escrava se liga de modo directo
com a pastorícia45 e agricultura. A safra açucareira, por um lado, a vivência pastoril dos
canarios46, por outro, fizeram com que fossem, os primeiros escravos na ilha, se
evidenciassem como pastores, agricultores e técnicos e nos serviços de engenho. A
documentação é prenhe em referências a esta intervenção dos escravos. Dos demais, para
além daqueles que referenciamos em separado, na safra do açúcar, apenas surgem cinco
com ofício, sendo dois almocreves, um alfaiate, um surrador e uma vendedeira47.
A actividade declarada para os libertos poderá elucidar-nos sobre aquela que exerciam
quando escravos, caso a alteração de estatuto social não conduzisse a mudança. Aqui, para
além do grupo comprometido com a safra do açúcar, surge uma multidão sem actividade
determinada, vivendo na condição de domésticos. Os libertos com ofício surgem com
maior frequência no Funchal, sendo quase nulos nas freguesias rurais.
Para o sexo masculino, o relacionamento através do casamento com os diversos
homens habilitados com um ofício, poderá ser um indício caracterizador da situação sócio-
profissional. Neste caso o relacionamento preferencial é com os trabalhadores, aliás já
testemunhado e regulamentado pelas posturas: do total de setenta e sete enlaces
matrimoniais, trinta e dois foram com trabalhadores, nove com homens do mar, sete com
almocreves, quatro com cantoneiros e sapateiros e três com lavradores.
Outro dado que poderá, ainda, apontar-se no sentido de uma possível identificação
sócio-profissional do escravo é o ofício do proprietário, pois segundo A. Franco Silva48,
por ele se conhece o do escravo. Aqui é, mais uma vez, evidente o carácter sumptuário do
escravo, pois os donos situam-se maioritariamente no sector de serviços (82%). O escravo
estaria ligado aos serviços não produtivos da casa dos membros do clero (24%), dos
oficiais das companhias de ordenanças (19%) e dos funcionários das instituições régias e
locais (16%). O grupo de agricultores (3%) é reduzido.
44
. Eles surgem com assídua frequência nos registos de crismas da freguesia da Sé, A.N.T.T., Cabido e Sé do Funchal, nº 36.
45
. Na ilha do Pico (Açores) os escravos não podiam ser pastores, Arquivo dos Açores, XII, 404-445, alvará de 3 de Junho de 1511.
46
. Sobre as actividades pastoris dos escravos é extensa a bibliografia em Canárias: Manuel LOBO CABRERA, La Esclavitud en Las
Canarias Orientales (...), 239; idem, "Los galegos en Canarias (...)", 217; idem, "Los indigenas trás de la conquista (...)", 241-243; Eduardo
AZNAR VALLEJO, La Integración de las islas Canarias en la Corona de Castilla, La Laguna, 1983, 200-204; Manuela MARRERO, La
Esclavitud en Tenerife (...), Santa Cruz de Tenerife, 1968, 93-109.
47
. A.R.M., Câmara Municipal de Machico, nº 109, 86 vo., 9 de Maio de 1696, João de Castro, almocreve do capitão Manuel Barbosa.
48
. La Esclavitud en Sevilla (...), Sevilha, 1979, 194
É necessário ter em atenção que os dados usados surgem, preferencialmente, a partir de
meados do século XVI, momento em que o açúcar deixa de ter importância na agricultura
e comércio madeirenses. Esta conjuntura sócio-económica da ilha deverá ter pesado nisso.
A partir de então o escravo alheia-se do sector produtivo, passando a reforçar o grupo de
serviçais das principais famílias, tal como o testemunham alguns estrangeiros que nos
visitam.
A historiografia europeia e americana insistem no facto de que a estrutura fundiária
madeirense, nos séculos XV e XVI, era resultado disso. Todavia isto parece partir de um
pressuposto falso: a cultura açucareira não admitia no seu seio mais que mão-de-obra
escrava. Com isso pretendia-se estabelecer uma visão reducionista da sociedade e força de
trabalho na ilha. A ideia fascinou alguns historiógrafos madeirenses. Foi, de acordo com
isso, que se fez coincidir a mancha da escravatura com a das áreas de maior colheita de
açúcar, mesmo sem dados que o testemunhassem. Estávamos perante uma associação
insofismável, que nem os dados documentais poderiam refutar.
Com isto ignorou-se a realidade histórica mas também as especificidades próprias do
arquipélago. A Madeira, mercê da configuração geográfica, foi definida por uma paisagem
agrária específica, diferente dos grandes espaços continentais. O excessivo parcelamento
das áreas agrícolas (poios), única forma de aproveitamento do solo arável disponível, e a
disseminação na vertente sul e norte, condicionaram o sistema de arroteamento e posse de
terras. As iniciais concessões de terreno foram-se dividindo de acordo com o progresso da
população e as experiências agrícolas. A primeira exploração extensiva propiciou ao
aproveitamento intensivo do solo, baseada nos poios construídos pelos proprietários,
arrendatários ou meeiros. Deste modo é difícil, senão impossível, falarmos da grande
propriedade de canaviais, se nos situamos ao mesmo nível do mundo americano. No caso
americano uma plantação de canaviais encontra-se indissociavelmente ligada a um
complexo industrial - o engenho -para a sua transformação, o que não sucede na Madeira.
Aqui são muitos os proprietários de canaviais mas poucos os de engenho. Esta diferente
estrutura da faina açucareira condicionou outra forma de posicionamento do escravo.
No caso da exploração agrícola madeirense torna-se necessário distinguir dois grupos
de proprietários: os que haviam entregue as terras a foreiros ou arrendatários e os
proprietários plenos. Esta dupla posse da terra marcou de modo evidente a actividade
agrícola e favoreceu o aparecimento e afirmação do contrato de colonia, a partir de finais
do século XVI. Por outro lado a extensão reduzida dos canaviais não obrigava à existência
de um engenho para a transformação da cana, tão pouco um grupo numeroso de escravos.
No início os engenhos de moer cana foram um dos privilégios dos capitães do donatário
e só muito mais tarde começaram a surgir engenhos de particulares. Deste modo a posição
dos escravos na estrutura agrária madeirense deverá ser equacionada de acordo com esta
estrutura e processo evolutivo do sistema de propriedade na ilha. Se é certo que na
exploração directa ou no arrendamento se estabelece uma posição clara para o escravo, o
mesmo não se poderá dizer com o contrato de colonia.
A par da ligação do escravo à fase de cultivo e amanho dos canaviais também se pode
atestar a presença dele nas diversas tarefas ligadas à laboração do engenho. O regimento
dos alealdadores de 150149 refere o serviço especializado, aí diz-se que os mestres e
lealdadores que fizessem açúcar quebrado sujeitavam-se a severas penas e, numa alusão
clara à presença deles, ordena-se que, caso eles fossem cativos, a coima correria pelo
proprietário. O serviço dos escravos poderia assumir duas situações distintas: ajudante dos
oficiais da safra, ou os mesmos operários especializados. Em 148250, numa demanda sobre
a qualidade do açúcar "temperado", depõem perante a vereação do Funchal os mestres de
49
. Ibidem, t. 1, fls. 83vo-94, regimento de 27 de Março, in ibidem, nº 246, 412-413.
50
. A.R.M., C.M.F., nº 1297, fl. 45, vereação de 20 de Abril de 1482.
açúcar, Vaz e André Afonso: o primeiro referia que, por ter estado ausente nas Canárias,
um homem, seu cativo, havia temperado o açúcar, enquanto o segundo, também fora da
ilha, havia entregue o mesmo trabalho a um moço que o servia de soldada.
Na Madeira, a exemplo do que sucedeu nas Canárias51, a mão-de-obra utilizada nos
engenhos era mista, sendo composta por escravos, libertos e livres, os quais executavam
tarefas diferenciadas, sendo os serviços pagos em dinheiro ou açúcar52. Neste grupo de
escravos integram-se aqueles pertenciam ao proprietário do engenho mas também outros
que serviam a troco de uma soldada. No Brasil estávamos perante uma mão-de-obra mista,
mas acontece que os escravos dominavam estes serviços. Eles tanto podiam ser pertença
do proprietário do engenho de canaviais, ou de nutrem, que os alugava.
53
.Gaspar FRUTUOSO, Livro segundo das Saudades da Terra, p.141.
54
. C. R. BOXER, Relações Raciais no Império Colonial Português. 1415-1825, Porto, 1977, 32.
55
. Ditos Portugueses Dignos de Memória, Lisboa, s/d, nº 1459, p. 486.
56
.A.R.M.,C.M.F., nº.1307,fls.50-59.
57
. "Descrição da Ilha da Madeira", ibidem, 92.
58
."Uma viagem às ilhas da Madeira...", in A Madeira Vista porEestrangeiros, p.161
degredo ou de morte tornavam-se igualmente prejudiciais para o mesmo, pois implicavam
uma dupla perda. O senhor perdia o valor pago na compra e privado dos seus serviços. É
por isso que não entendemos a atitude de João Rodrigues Castelhano, ao aprovar a pena de
enforcamento para cinco dos escravos que lhe mataram o feitor59. Diferente foi a atitude de
Diogo Leitão que preferiu pagar cinco mil réis pelo perdão régio a ver-se privado do seu
escravo, Diogo, degredado em Cabo Verde por haver ferido um homem, pois como refere
"nada dele servido tinha porquanto o criara de pequeno e tinha gasto muita de sua
fazenda"60.
69
. A.R.M., Juízo dos resíduos e Capelas. tombo fls. 386-388v., Funchal 21 Junho 1658.
70
. A.R.M., Capelas, maço 137, nº 10, Fajã da Ovelha, 11 Setembro 1696.
71
. Ibidem, maço 17, nº 10, Ribeira Brava, 15 Janeiro 1683.
72
. A.R.M., Juízo dos resíduos e Capelas, tombo fls. 350vº.-353, Câmara de Lobos, 2 Outubro de 1676.
73
. A Restauração de Portugal e o Convento de Encarnação, 1940, 39.
74
. Constituições Sinodaes do Bispado do Funchal, Lisboa, 1597, título I, Constituição primeira, p. 3-4.
Em todos eles é patente o recurso à protecção do hospital da Misericórdia e o
reconhecimento da obra caritativa do mesmo. Os encargos e legados são estabelecidos,
maioritariamente, para a instituição. Muitos reclamavam os préstimos religiosos da
instituição ao pretenderem enterrar-se na capela e lhe concederem também encargos de
missa.
Um dos aspectos de particular significado na cerimónia fúnebre dos escravos e libertos
é o local de enterramento. É evidente a preferência por determinados templos e neles de
certas capelas. No Funchal, a par da capela da Misericórdia, temos as igrejas da Sé e Nossa
Senhora do Calhau. Neste último templo havia uma confraria de Nossa Senhora do rosário
dos pretos, que deveria estar na origem insistente preferência por este templo.
A par do ritual de enterramento, havia a escolha do espaço onde "repousava" o morto.
De acordo com as informações colhidas nos registos de óbitos só os libertos podiam ser
sepultados dentro da Igreja. Os escravos eram, de um modo geral, enterrados na cova
pertencente à fábrica da igreja, local para onde iam todos aqueles que não tinham meios
para pagar a sepultura. Mas para alguns, a quem o senhor reconhece os seus préstimos, há
lugar na cova do mesmo. Assim sucedeu com Leanor, preta, forra de Gaspar Nunes, com
Lourenço e Marta ambos da Tabua.
Em 1580 o cabido da Sé do Funchal manifestou-se contra os frades do convento de S.
Francisco por eles consentirem maior número de enterramentos na capela, angariando os
consequentes legados. A conclusão do litígio só teve lugar em 161575 com as Constituições
Sinodais de D. Frei Lourenço de Távora: nelas se ordenava aos curas e vigários que não
consentissem enterrar "menores e escravos fora de suas igrejas e cemitérios ou hermidas
anexas, em especial no convento de S. Francisco e mais igrejas de religiosos e religiosas".
Esta determinação testemunha que muitos dos escravos preferiam as sepulturas das capelas
dos conventos e que aí eram enterrados fora delas.
Outro aspecto de particular interesse na devoção dos escravos foi o aparecimento das
suas confrarias. Trata-se de instituições de assistência na vida e na morte, cujo início e
afirmação foi resultado da influência dos franciscanos e dominicanos. O culto a Nossa
Senhora do Rosário encontra-se ligado à tradição dominicana, tendo surgido em Portugal
na segunda metade do século XV, a partir da Igreja de S. Domingos em Lisboa. Todavia, a
assimilação deste culto pelos negros da capital, através da confraria de Nossa Senhora do
Rosário, ter-se-ia iniciado em data incerta.
O culto a Nossa Senhora do Rosário expandiu-se a todo o espaço atlântico, tendo
expressão nas ilhas e Américas. Na Madeira, não obstante as ausências dos dominicanos, o
culto do Rosário teve forte implantação, existindo a confraria respectiva nas freguesias da
Sé, Nossa Senhora do Calhau, E. da Calheta, Ribeira Brava, Santo António, São Martinho,
Tabua, Porto Santo, Machico e São Vicente. Além disso deparamo-nos, a partir do século
XVII, com algumas capelas particulares em que o orago é Nossa Senhora do Rosário. Elas
existiram em São Vicente, Machico, S. Roque, Santa Cruz, São Jorge e Campanário.
A devoção de escravos e libertos não se resumia apenas à confraria de Nossa
Senhora do Rosário. A prova destá na freguesia da Sé com Maria Afonso, preta, e Isabel
Dias, mulata, que estabeleceram encargos nestas e noutras, como a de Santiago Maior,
Reis Magos, das Chagas, Nossa Senhora do Populo, Candelaria, São Bartolomeu, São
José e São Diogo. Mas é evidente a acentuada preferência por Nossa Senhora do Rosário.
A primeira ao estabelecer o valor de legados às confrarias privilegia a do Rosário a quem
concede 300 reis e um sobrado, enquanto a segunda doou uma loja e fez um encargo de
duas missas no altar da Sé com a mesma invocação.
75
. A.N.T.T., Cabido da Sé do Funchal, Maço 11, nº 3.
O altar de Nossa Senhora do Rosário da Sé do Funchal era alvo de uma devoção
especial pelos libertos e escravos. Em 160876 Maria das Neves, mulata forra, foi sepultada,
a seu pedido, defronte do referido altar. Por outro lado é de referir que nas três situações
em que aparecem legados para a confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Prestos, da
freguesia de Nossa Senhora do Calhau, os intervenientes não declaram qualquer situação
étnica o que poderá ser um indício de que nas citadas confrarias havia lugar para livres,
libertos e escravos.
A confraria não se resumia apenas à função religiosa, pois a ela também estavam
associados outros interesses de ordem social. No caso dos negros a de Nossa Senhora do
Rosário ainda providenciava o necessário apoio social aos irmãos e os meios exigidos pela
alforria. Na Madeira não conhecemos nenhum caso de libertação por esta via, mas
sabemos que em 162277 Catarina Gonçalves entregou à mesma quinze mil réis com tal
objectivo.
O culto do Nossa Senhora das Neves, comum nos escravos, não desfrutou de grande
aceitação na Madeira, uma vez que apenas está documentada a existência de uma capela
em S. Gonçalo, dedicada a este orago, mandada construir no século XVI por João Afonso
Mealheiro e a sua mulher Catarina de Sá: nenhum dos dois é referenciado como possuidor
de escravos, nem encontrámos qualquer alusão por parte dos escravos a este culto.
76
. A.R.M., Paroquiais - Óbitos-Sé, nº 73, fls. 40vº
77
. A.R.M., Paroquiais. Óbitos-Sé. Nº 73, fls. 143, registo de 8 de Setembro.
78
.confronte-se o estudo de Danilo Fernandes,
O escravo é parte integrante da sociedade madeirense, não existindo qualquer
separação ou delimitação espácio-social. O mundo do escravo entrecruzava-se com o do
livre. A dimensão reduzida do arquipélago, associada à forma de estruturação da
sociedade e economia fizeram com que esta simbiose se concretizasse em pleno. Os
regimentos régios, as posturas municipais, insistiam na necessidade de controlo, no
acanhado espaço de convívio, do escravo, no sentido de evitar qualquer situação
propiciadora da revolta. Estamos perante um processo de assimilação forçada, que deixa
pouca margem de expressão à cultura dominada. Perante isto, o escravo estava
amarrado ao quotidiano do senhor e só se poderia desprender-se dele em condições
especiais e mediante o seu consentimento. O escravo só existe em relação ao
proprietário, pois era ele quem lhe atribuía posição na estrutura social. Desde o nome,
que o identifica, à profissão, que ocupa, no dia a dia, e ao cumprimento dos preceitos
religiosos, a figura do proprietário é omnipresente. Com as escravas a ligação é mais
estreita, servindo muitas vezes de concubinas.
Há aqui uma questão fundamental que tem sido preterida pelos estudiosos e
defensores das aportações africanas à cultura madeirense. A Africa foi e continua a ser
um mosaico de culturas. Por isso, defender a aportação africana implica a busca desta
diversidade cultural, que é como quem diz, da origem geográfica e étnica dos escravos
que vieram para a Madeira. A Costa da Guiné, um dos principais mercados fornecedor
de escravos para a Madeira, é, também, como sabemos, um autêntico mosaico de
culturas e etnias79. Esta ideia é tida em conta por todos os estudiosos da cultura negra às
regiões aonde chegaram os africanos. Somente entre nós este tipo de comportamento é
esquecido80. Por tudo isto, podemos afirmar que estamos perante um campo ainda em
aberto a aguardar um tratamento cuidado pelos investigadores. Por exemplo, o
alargamento da investigação ao período final da permanência do fenómeno na ilha
poderá propiciar-nos novos dados capazes de justificarem o desenvolvimento dos rastos
e testemunhar, ainda hoje, a sua presença na sociedade madeirense.
Às possíveis reminiscências da presença dos escravos na ilha podemos ainda
colocar outras questões. A evolução da escravatura desde o século XV até à sua
abolição não foi unilinear e não é entendida por muitos. Na Madeira é evidente a
incidência nos primeiros cem anos de ocupação, até que foi chegado o momento da
maior procura pelo mercado americano. Para os eruditos esta realidade é ignorada,
sendo a escravatura negra ou mourisca uma constante da História da ilha.
Há ainda muito a fazer e a repensar sobre o contributo cultural da população
escrava à sociedade e cultura madeirenses. A sua definição e permeabilidade às
influências externas devem ser feitas num correcto enquadramento histórico. Só assim
estaremos em condições de afirmar que o actual folclore madeirense é a manifestação
sincrética de múltiplas influências e da evolução no tempo. Definir uma e outra situação
é tarefa do investigador, a quem se depara um vasto campo a desbravar. Tudo se
misturou, por uma poção mágica, dando origem às múltiplas manifestações das danças e
cantares que ritmaram as tarefas agrícolas, e ficaram a evidenciar a transbordante
alegria do íncola nas festas populares e de homenagem aos oragos e santos da sua
devoção.
79
. São muitos os estudos feitos, confronte-se: Artur Ramos, As Culturas Negras no Mundo Novo, S. Paulo, 1979(1 edição em 1937);
Philip Curtin, Atlantic Slave Trade, Madison, 1969; Basil Davidson, Revelando a velha Africa, Lisboa, 1977; idem, À descoberta do
passado de África , Lisboa, 1981; idem, Os Africanos. Uma introdução à sua História, Lisboa, 1981.
80
. Tenha-se em conta o que foi dito e feito para outras áreas: Roger Bastide, African Civilisation in the New World, N. York, 1971;
idem, Las Americas Negras, Madrid, 1969; Artur Ramos, O Folclore negro no Brasil, 1ª edição, 1935; Eugene D. Genovese, Roll,
Jordan roll. The World the slave made, N. York, 1974; Daniel C. Littlefield, Race and slaves, Baton Rouge, 1981; Sterling Stuckey,
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