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valter a. rodrigues*
Resumo: Este texto propõe uma leitura do ethos norte-americano, hoje expandido
para todas as regiões industrializadas do planeta (o universo global), a partir de
algumas pontuações de sua produção cinematográfica em dois blocos de tempo: os
musicais dos anos 50 e os filmes emergentes a partir, principalmente, dos anos 70,
que têm na violência seu foco principal.
Abertura
O pensamento que aqui se move tem vários tempos. Sua marcação rítmica segue,
às vezes, Rodgers-Hart, Gershwin ou Cole Porter, outras adere ao rock de
aspirações libertárias dos anos 70, outras ainda ao rock industrial de Trent Reznor
(da banda Nine Inch Nails) e ao death metal de Marilyn Manson, dos anos 90. As
imagens que o afetam são as de uma América representada nas telas de cinema,
dos grandes musicais dos anos 50 aos violentos road movies dos anos 70/90. De
The Band Wagon (A roda da fortuna) a Natural Born Killers (Assassinos por natureza), a
pergunta que nos percorre é sempre a mesma: o que é ser “americano”? Como são
compostas suas representações do si-mesmo, como essas representações se
transformam no fluxo do tempo e das mudanças sociais e culturais da segunda
metade do século XX? O que justifica sua hegemonia, a ponto de a América deixar
de ser um espaço geográfico para tornar-se um modo de vida e um estilo capaz de
penetrar e redimensionar todos os outros modos de vida e de linguagem do
planeta, como podemos reconhecer hoje no caráter hegemônico e irradiante do
processo que identificamos como globalização?
Longe de pretendermos ser conclusivos, mas tão-somente caminhar no
fragmentário e no indicial, o que construímos aqui são alguns recortes que,
pensamos, podem funcionar como sugestões de pesquisas mais aprofundadas e
transversais sobre o papel dos media na produção da subjetividade
contemporânea.
Como optamos por um modo de apresentação que oscila entre o ensaístico e o
narrativo-ficcional, assinalamos, só, alguns pontos de pertinência a outros
pensamentos, que funcionam aqui como marcas, como signagens que fornecem
alguns pontos de articulação discursiva. Assim, este texto inscreve-se como um
exercício de cartografia que busca pensar, a partir dos modos de produção da
indústria cinematográfica norte-americana, o papel da indústria cultural de massa
na modelização dos modos de sentir, pensar, agir e representar-se daqueles que
são por ela afetados. Cartografia, no sentido que Deleuze/Guattari dão a esse
termo, e que é retomado por Suely Rolnik em seu Cartografia sentimental, como
leitura dos processos de transformação das paisagens psicossociais.
1º movimento (Rodgers & Hart; Schwartz & Dietz; Cole Porter; Gershwin,
Rhapsody in Blue; Bernstein & Sondheim, West Side Story; Ornette Coleman,
Skies of America.)
Foi a leitura de Virilio (1993) que nos levou a buscar reconhecer, no grande musical
americano dos anos 50, mais que o entertainment. Cantando na chuva (ficção sobre a
revolução da passagem do filme mudo ao sonoro), Meias de seda (Ninotchka,
desterritorializando do ethos moscovita e tornando-se americana), A roda da fortuna
(a migração da bailarina clássica para o show bizz), Quando os deuses amam (a musa
do Olimpo transformando-se em estrela da Broadway), e outros tantos: Cinderela
em Paris, Sinfonia de Paris (no contraponto Europa/América do pós-guerra, por que
tantos filmes em Paris?), High Society (o WASP atravessado pelo jazz de
Armstrong), fazem do espetáculo o resultado necessário dos planos, táticas e
tecnologias de guerra que os antecederam. Pois há mais que o entertainment na
construção de um certo estilo deslizante/bailarino nos sapateados de Fred Astaire,
no eterno acrobático/sorridente de Gene Kelly, nas longas pernas de Cyd Charisse
ou na transformação dos sete irmãos de bárbaros do campo em magníficos
bailarinos e suaves gentlemen citadinos (Sete noivas para sete irmãos), da intelectual
existencialista em top model (Audrey Hepburn em Cinderela em Paris), da bailarina
clássica em dançarina do show bizz (Cyd Charisse em A roda da fortuna), ou da musa
Terpsícore (Rita Hayworth em Quando os deuses amam) em top star.
Todos atendem a um princípio, todos estão envolvidos em um projeto maior, mais
político, mais radicalmente significativo: tornarem-se americanos. Não se trata (não
mais) de manter o moral dos soldados no front, mas de construir a América para e
nos americanos, para e nos não-americanos. O bom motivo: a guerra acabou, os
americanos são os grandes vencedores/beneficiados, trata-se agora de consolidar
uma posição e avançar.
Fala-se, e muito, de dominação cultural, da expansão imperialista norte-americana
no Ocidente do pós-guerra. Um paralelismo, menos claro, menos explícito, à
expansão econômica sobre a Europa desvastada e sobre o resto da América não-
industrializada. Tarefa não dos financistas de Wall Street, mas da difusa indústria
cultural e da máquina publicitária, encarregadas de difundir coca-cola & way of life.
Mas, afinal, quais os vetores dessa expansão? Basta a assimilação de uma língua,
de um produto, de um estilo, para fazer do desejo uma peça de não-resistência?
Quem são, como agem os personagens convocados a atrair multidões para o olho
da tela cinematográfica?
Acompanho Fred Astaire e Cyd Charisse em sua volta pelo parque (The Band
Wagon [A roda da fortuna]). Acabam de discutir sua impossibilidade enquanto
parceiros. Um não suporta o corpo do outro, um é a impossibilidade do outro. O
que começa como um quase-conflito de gerações – um one-man-show em
decadência e uma bailarina clássica em ascensão se confrontam na possibilidade de
trabalharem juntos: "vi todos os seus filmes quando era pequena", "não se fazem
mais bailarinas como antigamente" antecipam o abismo e encobrem "você que é
famoso não irá me aceitar", "você é bela demais, você é jovem demais, você é alta
demais para mim..." – transforma-se em um passeio silencioso pelo parque. Não se
tocam, caminham até uma orquestra e alguns casais que – na “naturalidade” dos
musicais – fazem do parque o espaço da música e da dança. Não conversam;
andam, olham. É algo sutilmente que o passo ganha ritmo, integra-se à música. É
algo sutilmente que os corpos, ao se afastarem, retornam já em movimento de
dança, e se determinam.
"Dancing in the Dark" prepara a mudança, materializada em uma nova e sutil
aliança. Agora, embora unidos, deverão enfrentar o "para que se juntam". Na
mudança que para ambos se anuncia intromete-se o anacronismo da proposta em
que estão engajados: um espetáculo suntuoso, grandiloqüente, que se propõe como
um Fausto moderno; o autor do projeto, com sua carreira fundada na
representação de clássicos gregos (à americana, naturalmente, o que vale dizer, o
mais excessivo e explícito possível) procura migrar para o que atrai públicos (o
espetáculo musical), mas resistindo a abandonar o formato que já conhece; daí,
uma "tragédia musicada", com efeitos especiais proliferantes em bombas de
fumaça, aparições de demônios, conflitos morais etc. Não só o agora-novo-casal,
mas toda a companhia se ressente, embora sem opor resistência ao projeto, já que
os financiadores o haviam aprovado. Com a estréia, vem o fracasso, a retirada dos
financiadores, a ausência generalizada dos convidados na grande festa pós-
espetáculo. Aparentemente, o fim. Cada um se desgarra do outro, não se olham,
não se procuram. Mas...
É necessário que algo fracasse para que a vitalidade possa ser extensivamente
afirmada. O grupo está reunido num dos quartos do hotel, todos comemoram – o
quê? – o fato de terem se conhecido, de estarem juntos, mesmo que o espetáculo
não continue. Ali, fora da situação de trabalho, podem ser si-mesmos. E o que são:
mais alegres, menos formatados, mais dispostos à interação. Abandonam a
hierarquia, convidam o astro (sir Astaire) para misturar-se. Este pode mostrar o
que o espetáculo não permitia: sua verve. Sem o espetáculo – pois tudo indica que
não haverá outra noite sobre o palco –, desterritorializados, todos podem expor
suas performances.
É o momento da eficácia dos grandes musicais: é feita uma proposta, todos
aceitam, em seguida convidam o diretor – ensimesmado em sua falta de tino –, que
adere prontamente e, sem financiamento, quase sem ensaio, desmancham o
espetáculo anterior, preservando dele só o nome, e partem em tournée pelo país. O
recurso é sempre o mesmo: o trem que avança sem cessar, os nomes dos estados
que emergem na tela, do trem para o espectador, sugerindo um mapeamento
intensivo, com flashs das atividades, do "curso do tempo" apresentado
fragmentariamente. Algo semelhante a uma campanha de guerra na qual, um a
um, os territórios são irremediavelmente conquistados (a imagem de sucesso &
show bizz).
A consagração fica reservada para o grand finale, com uma peça mais longa, que
marca o espírito da época, intensiva e extensivamente trabalhada em outro registro
por Hitchcock, e que – como observa Rolnik (1990) – é uma das principais marcas
da subjetividade contemporânea: a suspeição. Só que, aqui, a suspeição é leit-motiv,
é o campo de fundo onde se dá a resolução do quase-conflito em happy end. Seu
personagem: o detetive solitário (o homem desencantado contemporâneo), cercado
de ameaças, de pessoas que surgem de qualquer lugar, que caem em seus braços
como a mocinha assustada, da qual ele nada sabe senão que-está-assustada-e-é-
bela, e que o implica numa rede onde o risco é sempre o da morte. A morte é uma
bela mulher (a femme fatale, a mesma que representa a mocinha assustada, fusão do
grande enigma da inocência e da sedução), com quem o homem solitário (o no
land's man) deverá se enfrentar, superando-a, para emergir do outro lado ("The Girl
Hunt Ballet"), salvando a si e à inocência (mesmo quando esta for culpada, o que
ele não irá, e nem deseja, jamais, saber). A salvação de si traduz-se na constituição
de um território onde não importa a história, já que, para constituí-lo, é necessário
perdê-la. É dessa forma que a suspeição (que remete sempre ao antes) torna-se ao
mesmo tempo marca e princípio de constituição. O que importa é não a verdade (a
suposta verdade), mas o plano de consistência que as linhas produzidas por gestos,
multiplicidades de encontros e afetos desenham. Daí não haver conflito, ou o fato
de que todo conflito encontre no happy end sua resolução. That's Entertainment.
Planos de imanência, nenhum plano de transcendência. Afinal, seriam os planos de
transcendência, com sua única entrada (aquela única) e nenhuma saída (por
desnecessária), uma resposta? A questão talvez não esteja nesse ou... ou... em que
se debatem os ideais e as ideologias, como restos de uma Europa romântica que a
América jamais cessa de recuperar para desmanchar.
O ponto de viragem entre a exaltação triunfalista do american way dos musicais dos
anos 50 e a inquietação quanto aos efeitos dessa exaltação, já no início dos anos 60,
talvez esteja em West Side Story (1961). Distantes do glamour dos belos cenários, os
becos pobres da zona oeste de New York são atravessados pelo confronto entre
jovens americanos e porto-riquenhos numa reconstituição do romance de Romeu e
Julieta que deve muito ao jazz, mas também à provocação jovem do rock. West Side
antecipa o fim do sonho dos anos dourados, que jamais cessara de se acabar,
abrindo-se para os vitalizantes anos 60, que encontrarão sua dead line na
enunciação “Dream is over” por uma das mais influentes vozes da geração paz-e-
amor, John Lennon, assassinado por um fã em 1980. O “pôr-se a caminho” dos
anos 50 ganha uma outra tradução, povoada de reversões que aprofundam o
nomadismo e abrem alguns buracos negros no corpo liso da “América in
progress”.
É notável que, mesmo os grandes musicais, se lidos dessa perspectiva de "pôr-se a
caminho", "deixar-se alterar", aproximam-se da expressiva vertente do cinema
americano representada pelos road movies. Com seu marco em Easy Rider (Sem
destino, 1969), os road movies expõem o que a América tem de mais singular: platôs
de intensidade contínua, fluxos de desterritorialização que só são apreensíveis por
recorte (da mesma maneira como hoje não cessamos de fazer mapas de um mundo
que só faz alterar-se). Apreender a América é um exercício de cartografia que,
desde o princípio, precisa desfazer-se da idéia de história como pensada na cultura
ocidental européia. Um movimento que, na América, se faz para o Oeste (e nesse
sentido, o western clássico é também "road movie"), como desbravamento, como
possibilidade constitutiva, afeito a toda espécie de multiplicidade. Assim é com
Thelma e Louise (1991), road movie (feminista?) que tanto inaugura como faz uma
passagem perturbadora para os anos 90. A diferença está na leitura desses
processos de desterritorialização: triunfalista nos western e nos musicais, onde o
grande sonho americano se sobrepõe como imagem totalitária, molar, e aberto ao
finito ilimitado como em Thelma e Louise e Easy Rider, onde o sonho torna-se o
limite, mas embute seus devires como pura possibilidade. Devires que, na
destruição das motos (Easy Rider), ou na imagem do carro suspenso no abismo
(Thelma e Louise), fazem cristalizar, em um mesmo instante, liberdade e finitude.
I have a dream, eu tenho um sonho. Haverá expressão mais americana? Luther King
utilizou-a para significar sua utopia de um lugar para suas "crianças". Esse lugar é,
primeiramente, dar conhecimento de si. Esse conhecimento de si tem por princípio
o individuar-se, o destacar-se de um fundo onde todos se assemelham, mesmo que
ao preço do nenhum reconhecimento. O que reverbera, o que não deixa de se
reconstituir sem cessar desde os pioneiros. Ela não abandona sequer o mundo dos
homeless, proliferantes no coração do Primeiro Mundo, pondo em evidência que
essas diferenciações que separam países na retórica política de há muito não são
mais geográficas. A individuação desarticula a ordem, expõe um rosto pouco
glamouroso, que nem mesmo Hollywood pode evitar. Esses sonhos, adiados em
sua realização, assumem sua face mais violenta, menos idealizada, pouco possível
de ser contida em fronteiras artificiais. Mesmo que explodam racismos das mais
variadas espécies, mesmo que novas formas de fascismos e outros nacionalismos
se manifestem, torna-se mais e mais difícil depositar precisamente no outro,
diferenciado por cor ou origem, a fonte dos desconfortos.
Se a escória não pode ser eliminada, nem sequer ignorada, resta reintegrá-la.
Contra o risco da dissolução, resta o sonho. Se a ação faz mais que despentear os
cabelos, se o herói-modelo pode envolver-se em escândalos que dissolvem os
limites público-privado (Kennedy, Clinton), se, afinal, só podemos ser humanos,
demasiado humanos (Nietzsche), que a escória salve a América (e o mundo).
Independence Day, Armageddon – esses filmes patrióticos da globalização – são
sinalizações de um retorno, um acionamento de novos mecanismos da reversão.
Não temos mais só WASPs, mas índios, negros, bêbados, cocainômanos e suas
difusas competências. Contemos com eles. Embalemos o romance de Liv Tyler na
música de seu papá, façamos de seu papá-perfurador-de-buracos a última
esperança. Oremos por ele. RIP. O que quer que nos convença de que A estrada
perdida é mero acidente, não uma marca insistente inscrita em nossos corações.
Serão eles diversos dos mais idealizados heróis dos grandes musicais? Não haverá,
em vez de pura diferença, pura repetição, da qual a tarefa mais árdua está em
extrair pequenas diferenças?
Referências Bibliográficas
Filmes
An American in Paris / Sinfonia de Paris (Vincent Minelli, 1951)
Down to Heart / Quando os deuses amam (Alexander Hall, 1947)
Funny Face / Cinderela em Paris (Stanley Donen, 1957)
High Society / Alta sociedade (Charles Walters, 1956)
Seven Brides for Seven Brothers / Sete noivas para sete irmãos (Stanley Donen, 1954)
Silk Stockings / Meias de seda (Rouben Mamoulian, 1957)
Singin’ in the Rain / Cantando na chuva (Stanley Donen, 1952)
The Band Wagon / A roda da fortuna (Vincent Minelli, 1953)
West Side Story / Amor, sublime amor (Robert Wise, 1961)
Notas
* Texto publicado nos Cadernos de Pós-Graduação / Instituto de Artes da
Unicamp, Ano 4, Volume 4, no. 2, 2000, p. 73-82.
** Psicanalista e analista institucional; Professor de Psicologia na Faculdade de
Comunicação Social Cásper Líbero.