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R O D R I G U E S
S U B J E T I V I D A D E
PROGRAMAÇÃO TELEVISIVA E MERCADO
V O L U M E I
S U B J E T I V I D A D E
PROGRAMAÇÃO TELEVISIVA E MERCADO
b
A pesquisa e a redação final desta dissertação de
Mestrado foram realizadas com o apoio do Centro
Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade de
Comunicação Social Cásper Líbero
c
BANCA EXAMINADORA
d
Certas conversações duram tanto tempo, que não sabemos
mais se ainda fazem parte da guerra ou já da paz. É
verdade que a filosofia é inseparável de uma cólera contra a
época, mas também de uma serenidade que ela nos assegura.
Contudo, a filosofia não é uma potência. As religiões, os
Estados, o capitalismo, a ciência, o direito, a opinião, a
televisão são potências, mas não a filosofia. A filosofia pode
ter grandes batalhas interiores (idealismo-realismo etc.),
mas são batalhas risíveis. Não sendo uma potência, a
filosofia não pode empreender uma batalha contra as
potências; em compensação, trava contra elas uma guerra
sem batalha, uma guerra de guerrilha. Não pode falar com
elas, nada tem a lhes dizer, nada a comunicar, e apenas
mantém conversações. Como as potências não se contentam
em ser exteriores, mas também passam por cada um de nós,
é cada um de nós que, graças à filosofia, encontra-se
incessantemente em conversações e em guerrilha consigo
mesmo.
Gilles Deleuze, Conversações 1972-1990
e
DEDICATÓRIA E AGRADECIMENTOS
Para Marília, filha querida e sentido de
mundo: mar e ilha, continente e
conteúdo.
Para Márcia, querida e fiel amiga, pelas
trocas intensas e vitais propiciadoras de
muitos devires.
Para Berenice, companheira e
interlocutora brilhante, cujas finas e
precisas observações sobre história, arte,
estética e televisão me impulsionaram em
minhas articulações.
Para Lilian, amiga sempre presente, que
me acompanhou desde os primeiros
movimentos deste trabalho.
Para Célia Regina, psicanalista, que tem
me acompanhado tanto nos momentos
críticos como nos felizes, ajudando-me a
trabalhar minhas inquietações perante as
novas perguntas que a vida suscita.
Para os professores e colegas da Pós-
Graduação e da Graduação, com os quais
tenho encontrado como fazer avançar o
pensamento, e, em especial, Clóvis de
Barros Fo., Cristina Giácomo e Antonio
Carlos Rocha, pelo apoio e cooperação.
Para Mitsuru, coordenador da Pós-
Graduação, colega e amigo com quem
não cesso de descobrir o valor da amizade
e do respeito mútuo.
Para os queridos companheiros do Usina
– Grupo de [Es]Tudos, pelas
conversações vitalizantes e inspiradoras.
Para meus alunos, motivo primeiro e
final deste trabalho, e, em especial,
Alexandre, Donato e Fernanda, parceiros
de trabalho na Líbero e amigos calorosos.
IN MEMORIAM: para meus pais, Sebastião e Matilde; para meu avô Manoel,
exemplo de dignidade e ética; para meu mestre de infância João Brandão, que me
transmitiu o amor aos livros; para meu saudoso amigo de juventude José Eduardo
Gramani, músico, compositor e musicólogo, que me ensinou a ouvir e amar a
música, permanente a(fe)tivadora de meus movimentos.
f
S U M Á R I O
APRESENTAÇÃO ......................................................................................... 3
Formação e docência ....................................................................................... 5
Pesquisa ............................................................................................................ 14
Projeto: Leitura e Escrita ................................................................................ 18
INTRODUÇÃO .............................................................................................. 30
Percursos .......................................................................................................... 32
g
Corpo, técnica e mídia .................................................................................... 227
Dispositivos técnicos, espaço e conectividade humana .............................. 232
Mundanidade e domesticidade ...................................................................... 252
O plano diagramático ..................................................................................... 267
Qualidade na TV
h
R E S U M O
Os estudos do campo comunicacional encontram nos critérios de objetividade e
nos modelos da razão seus principais referentes, com suas tradicionais
oposições corpo-alma, razão-emoção, objetivo-subjetivo, indivíduo-sociedade.
Neste trabalho é proposto um outro modelo, construído a partir dos
pensamentos da Desrazão, ou do Fora. Para a construção desse modelo, é feito
um percurso pelas idéias de homem que surgem na Modernidade, objetivadas
por alguns pensadores que privilegiaram o corpo, as paixões e o desejo em sua
leitura da constituição da forma-Homem (Espinosa, Sade, Nietzsche...), para os
quais o pensamento, longe de se opor aos afetos, se constrói a partir deles. Com
esses referentes, são feitas aproximações ao pensamento de Foucault, Deleuze,
Guattari, Lévy e Maturana, com vistas à elaboração de um plano diagramático
com o qual são lidas, na Parte I, as relações do corpo com os dispositivos
técnicos e as imagens e mensagens que se efetuam a partir deles. Na Parte II, a
partir dos debates sobre a censura e a liberdade de expressão, é feito um
percurso pelos modos de produção de homogênese social e a maneira como as
heterogêneses que o atravessam são ora apropriadas pela parte homogênea, ora
produzem transformações em seu campo. Com esses elementos, são ensaiadas
algumas leituras da atual programação televisiva brasileira e as formas como
ela atua como agenciadora de modos de subjetivação dominantes.
O objetivo do trabalho é o de contribuir para os estudos do processo das
mensagens e para uma melhor compreensão de como ocorrem as mediações,
assim como seus impasses éticos e estéticos.
R É S U M É
1
En nous servant de la pensée de Foucault, Deleuze, Guattari, Lévy et Maturana,
nous proposons un plan diagramatique pour la lecture des relations entre le
corps et les dispositifs techniques, les images et les messages que sont énoncées a
partir d'eux (Primière Partie). Dans la Deuxième Partie, a partir des débats sur la
censure et la liberté d'expression, nous faisons un compte-rendu des modalités de
production de l'homogénèse sociale et la manière selon laquelle les heterogénèses
qui la traversent sont tantôt appropriées par la partie homogène, tantôt
produisent des transformations dans son champ. Avec ces éléments, nous
proposons quelques lectures de la production télévisuelle contemporaine
brésilienne et les formes de subjectivation dominantes qu'elle produit.
L'objectif de ce mémoire est de contribuer por les études de le processus de
messages et pour une meilleure compréhension des mediations et ses
problèmes d'ordre éthique et esthétique.
A B S T R A C T
The main references used in communicational field studies are the criterions of
objectivity and models of reason, with their traditional oppositions such as body-
soul, reason-emotion, objective-subjective, person-society. Other model, built from
Unreason-thought and Outside-thought, is proposed in this dissertation. This
model is based on ideas which took shape during the modern age, constructed by
philosophers that concentrated on the body, passions and desire to read the
constitution of shape-Man (Spinoza, Sade, Nietzsche...). According to those
philosophers, thought is built from affections and is not at all opposed to them.
With these references, approaches to the thought of Foucault, Deleuze, Guattari,
Lévy and Maturana are made in order to develop a diagrammatic plan. In Part I of
the plan, the relations of the body and technical gadgets and the images and
messages derived from them are reflected upon. In Part II, from debates on
censorship and freedom of speech, a path is taken considering the means used to
produce social homogenesis and the manner which the various heterogenesis that
cross it are at times appropriated by the homogeneous part and at times instigate
changes in the field. With these elements, some readings of today's brazilian
television programming and the way it promotes dominant modes of
subjetivaction are attempted. The objective of this dissertation is to contribute to
the studies of message process and to better understand the process of mediations
and its ethical and aesthetics deadlocks.
2
APRESENTAÇÃO
4
FORMAÇÃO E DOCÊNCIA
5
Por essa razão, assumir a disciplina Psicologia em um curso de
graduação em Comunicação Social implicou, de imediato, ter de
responder a demandas de conteúdos para mim bastante problemáticos.
Boa parte das correntes e técnicas psicológicas já submetidas à crítica
em meus percursos e escolhas, entre as quais muitas reconhecidas como
insuficientes e/ou inconsistentes para a apreensão da complexidade
humana, quando não de disposição explicitamente manipuladora,
ressurgiam como curriculares na graduação em Comunicação, como,
por exemplo, as de orientação behaviorista, centradas no modelo
estímulo-resposta, as derivadas dos modelos funcionalistas da
psicologia social norte-americana, as teorias motivacionais
“humanistas”, como a de Allport ou Maslow, ou até mesmo algumas
conceituações derivadas da psicanálise redutivamente adaptadas e
diluídas como “psicologias do eu” pelo revisionismo psicanalítico,1 com
suas inevitáveis deformações conceituais, principalmente em relação às
noções de pulsão, desejo e inconsciente. A essas se agregavam as
psicotecnologias de moda, como a análise transacional, as práticas de
sensibilização derivadas do caldo contracultural californiano (ainda
hoje utilizadas por alguns professores como recurso “motivacional” em
sala de aula) e a posterior PNL (programação neurolinguística), cujo
sucesso é diretamente proporcional às suas simplificações.2
1 Não cabe, nos limites deste trabalho, uma discussão desse revisionismo (embora ela
esteja subjacente nas argumentações aqui apresentadas) promovido principalmente,
mas não só, pelas correntes psicológicas e psicanalíticas norte-americanas. Uma leitura
pormenorizada do revisionismo como movimento de amnésia progressiva que encobre
as descobertas mais radicais de Freud foi feita pelo frankfurtiano Russell Jacoby em
Amnésia social: uma crítica à psicologia conformista, de Adler a Laing (1977). É contra
essa progressão revisionista que se insurge também Jacques Lacan, com sua
proposição de um “retorno a Freud”, que imprimiu rumos novos ao movimento
psicanalítico. Aliás, todo revisionismo tende a tomar campos de pensamento ou
prática como sistemas fechados, daí a tendência de propor-lhes correções e não
rearticulações conceituais.
2 Uma discussão mais detalhada dessas psicotecnologias e a potência que suas
6
Após alguns esforços iniciais de adaptação das aulas a esses conteúdos,
e à medida que pude implicar-me mais consistentemente com as
correntes teóricas da Comunicação, efetuei, no decorrer dos anos,
ajustes expressivos no programa da disciplina, de forma a assegurar um
mínimo de banalização e um máximo possível de consistência naquilo
que me era possível transmitir aos alunos.
Assim, mais que informação – que ocorre freqüentemente com as
propostas de apresentação, a título de “introdução”, de resumos
simplificadores das principais correntes psicológicas (Skinner, Gestalt,
Freud, Jung etc.), em nome de uma “liberdade de escolha”, por parte do
aluno, daquelas por ele consideradas mais adequadas ou atraentes, o
que é sempre uma ilusão –, passei a privilegiar, apesar da curta duração
da disciplina nos cursos, a formação de campos compreensivos que
permitissem aos alunos situarem a si mesmos e à sua área de escolha
profissional no contexto da afetividade e da produção humanas, com
seus limites, suas possibilidades e sua processualidade. Os
investimentos nesse tipo de formação dos alunos, com ênfase na inter-
relação ética e subjetividade,3 tenho realizado, em sua maior parte, na
Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero.
Essas observações são necessárias na medida em que o presente
trabalho resulta, ainda que parcialmente (já que não voltado
especificamente para a Publicidade), desse esforço de fazer
atravessamentos de um campo a outro sem o recurso à simplificação
banalizadora e constitui-se como um ensaio de formalização,
3 Que opera, muitas vezes, como uma contrademanda em relação às expectativas dos
próprios alunos, o que me leva a continuamente problematizar, contextualizar ou
justificar minha prática. As Notas e Obras de Referência indicadas neste trabalho,
algumas delas, embora constituindo seu suporte, não diretamente utilizadas na
análise final, expõem essas problematizações e contextualizações e visam ir
articulando os conceitos, à medida que surgem como necessários, com contextos e
práticas que configuram nossa atual cultura – da qual o dispositivo televisivo
constitui-se como um dos planos –, assim como, ainda que parcialmente, a um
mapeamento bibliográfico relativo aos temas aqui tratados. O recurso às Notas para a
definição de conceitos foi a estratégia que encontrei para não interromper
constantemente o fluxo do texto, buscando assegurar-lhe, assim, maior legibilidade.
7
sistematização e organização de conceitos que, trabalhados no decorrer
dos anos de docência, me parecem necessários e enriquecedores ao
profissional da Comunicação para uma atuação mais consistente e ética,
principalmente no momento presente, no qual os discursos mais
entusiásticos com a “nova ordem mundial” construída no decorrer dos
anos 90 tanto se exacerbam como começam a expor suas fraturas.
Ao falar de ética e subjetividade, parto de um princípio
norteador: assim como não me parece possível pensar em éticas
particulares que seriam adequadas a cada campo de atividade
profissional (com as inevitáveis confusões entre ética e deontologia4),
também não me parece possível pensar que haveria “psicologias”
específicas mais adequadas a cada campo da atividade humana – uma
psicologia do consumidor, uma psicologia do trabalhador, ou do
educando, cada uma delas com seus próprios referentes conceituais e
suas práticas –, na medida em que isso nos forçaria a pensar que,
afetivamente, o homem teria de ser abordado em conformidade com
seu dever-ser em cada campo da atividade a partir de referentes
8
teóricos específicos a cada um desses campos, de forma a produzir sua
reiterada adaptação às expectativas e demandas desses campos.
Tais investimentos, longe de permitirem uma melhor
compreensão sobre o homem e como sua subjetividade se produz, são,
com graus variados de eficácia, eles próprios dispositivos de produção de
subjetividade,5 pois intervêm, dão contornos e põem limites aos
processos de subjetivação e, muito mais intensivamente, procuram
barrar os de singularização. Este é um dos campos problemáticos no
qual nossas teorias e práticas não cessam de nos colocar, e que nos
forçam a continuamente verificar os pressupostos e as escolhas que nos
movem, pois, como observou Guattari, em uma interlocução realizada
em 19826 com trabalhadores sociais brasileiros, nunca deixamos de estar
implicados, queiramos ou não, com a produção de subjetividade. Disse
ele nesse encontro:
9
“Aquilo que se convencionou chamar de ‘trabalhador social’ – jornalistas,
psicólogos de todo tipo, assistentes sociais, educadores, animadores, gente
que desenvolve qualquer tipo de trabalho pedagógico ou cultural em
comunidades de periferia, em conjuntos habitacionais etc. – atua de alguma
maneira na produção de subjetividade. Mas, também, quem não trabalha
na produção social da subjetividade? Não vejo inconveniente nisso, mesmo
porque é inevitável nesta altura dos acontecimentos. (...)
7 Isto é, a psicanálise, da qual derivo alguns dos conceitos aqui apresentados, não
10
simples depositárias ou canais de transmissão de um saber científico, só
por isso já fizeram uma opção reacionária. Seja qual for sua inocência ou
boa vontade, elas ocupam efetivamente uma posição de reforço dos
sistemas de produção de subjetividade dominante” (Guattari & Rolnik,
1986: 29).
11
“agenciamentos coletivos de enunciação”8 bastante hegemônicos, dos
quais as psicotecnologias que atualmente propõem o contínuo
aggiornamento do eu para fazer frente às demandas do mercado são
dispositivos bastante significativos.9
Ora, falar de ética e subjetividade não é uma “escolha” possível
entre tantas outras. Ao contrário, não é possível falar de uma sem outra;
elas são indissociáveis, determinam-se, indiferenciam-se. Nas múltiplas
maneiras como construímos nossa existência, nada nos move mais
fortemente que a procura de nosso próprio bem e o evitamento de
nosso próprio mal, e em graus variados de implicação,
comprometimento e positividade, também daqueles com quem
estabelecemos nossas relações de intercorporeidade e intersubjetividade
e, mais extensivamente, do mundo que nos acolhe e nos dá sustentação,
no qual atuamos e afirmamos nossa existência. São essas
determinações, suas exigências e os problemas que suas contradições
me colocam que procuro manter presente, seja na relação com meus
alunos, seja nos movimentos que foram construindo a forma e a direção
deste trabalho.
Assim – como definição provisória –, a proposição que procuro
desenhar aqui é a de que, como ser afetivo, o homem constitui-se e ao
12
seu psiquismo em afetação com os corpos e os objetos que encontra e as
demandas do mundo, sendo na afirmação de sua potência de existir e
de agir e nos impasses propostos a ele por tal in-sistência que sua
subjetividade e sua ex-sistência se configuram, se significam, levando-o
a responder com maior ou menor intensidade àquilo que a ele se
presenta.10 A compreensão das especificidades de suas respostas nos
contextos em que elas ocorrem, assim como das dimensões de sua
afetividade ativadas nesses contextos11 é um dos propósitos que movem
minhas práticas docentes e, neste trabalho, a pergunta pela maneira
como essa afetividade compõe com os dispositivos técnicos em geral e
com o dispositivo televisivo em particular seus planos e seus
diagramas.
13
PESQUISA
14
Mobilizado por essa pesquisa (na qual permaneci até 1993), que
envolvia grande volume de leituras e participação em seminários, com
privilégio para pesquisadores do novo espaço público mediático, como
Dominique Wolton (1992: 28-46) e Jean-Marc Ferry (1992: 13-27),
desenvolvi outro projeto, pessoal, no qual me propunha a investigar, em
um campo que me era mais próprio, o da Psicanálise e Análise
Institucional, o papel da mídia na modelização das subjetividades,
tomando como ponto de partida o momento em que, envolvido pelo
ideário positivista do “Brasil Grande” e do “milagre”, o quase-cidadão
brasileiro dos anos 70 foi convocado a deslocar suas aspirações de
cidadania para o desejo de consumo. Propunha-me acompanhar os
desdobramentos desse processo até os anos 90.
Nomeei essa pesquisa como “Cultura psicológica no Brasil (1970-
1990): mídia e subjetividade”. Projeto ambicioso, na medida em que
procurava estabelecer um paralelo entre os desenvolvimentos da
cultura psicológica brasileira, que se expressou tanto em uma expansão
das práticas psicoterápicas voltadas para o segmento das classes médias
mais diferenciadas nos anos 70, envolvidas com o cultivo de si e de suas
relações intersubjetivas, quanto por uma crescente produção mediática
que privilegiava o tema “comportamento” em sua pauta.
Recentemente, em 2000, como professor ligado à Coordenadoria de
Publicidade e Propaganda e pesquisador do Centro Interdisciplinar de
Pesquisa da FCSCL, retomei e delimitei essa pesquisa, com a proposta
do projeto “Representações do Corpo, da Intimidade e dos Papéis
Sociais na Produção Publicitária Brasileira dos anos 70”, para a qual o
mapeamento e articulação dos conceitos trabalhados nesta Dissertação
procura fornecer as balizas teóricas e metodológicas.
Embora, em 1993, meu projeto envolvesse tanto a mídia impressa
– em particular, as seções, nos jornais, sobre comportamento, revistas
como Cláudia, Carícia, Nova etc., voltadas para o público feminino, e
15
Playboy, Fairplay, EleEla etc., para o público masculino – como a
eletrônica, à medida que fui buscando delimitar a pesquisa, passei, com
maior ênfase, a dirigir o foco para o papel da televisão nesse processo
de modelização, dada sua extensa penetração junto aos mais variados
públicos, propondo-me a analisar de que maneira os conteúdos
veiculados em telenovelas, programas jornalísticos e de entrevistas e
filmetes publicitários estabeleciam entre si fluxos de conversações, de
forma a compor um campo de realidade assimilável pelo telespectador.
Dessa pesquisa resultou um pequeno ensaio, “O toque da mídia:
subjetividade no espaço público mediático”, publicado em 1993 na
revista comunicação&política (Ano XIII, no. 22-25: 47-56), do CBELA. O
texto deixou abertas várias perguntas sobre os rumos da programação
televisiva brasileira, com especial atenção à “ameaça” que começava a
se configurar de deslocamento da hegemonia da Rede Globo e seu
Padrão de Qualidade face à ascensão dos canais de programação mais
popular, particularmente o SBT. Destaco minha indagação nesse texto:
16
pela Rede Globo? Ou, em uma hipótese talvez mais cruel, o processo
de apartação social crescente da sociedade brasileira teria chegado a
um limite que exigiria uma reformulação estética capaz de introduzir
na tele-realidade parte da realidade negada, como forma de evitar uma
ruptura e uma dissolução do social? Mesmo que ao preço de essa
massa apartada só poder ser apresentada com uma voz que reitera sua
condição marginal?” (Rodrigues, in comunicação&política, 1993: 51-52).
17
PROJETO: LEITURA E ESCRITA
18
sinais de um fantasmático retorno da censura –, quanto pela posterior
(13 de novembro) liminar do Juiz Siro Darlan, da 1a. Vara da Infância e
Adolescência, através do Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro,
vetando a participação de menores de 18 anos no elenco da novela Laços
de Família, da Rede Globo. Além desse veto, a liminar estabeleceu que a
“novela das 8” – tradicional horário da Rede Globo para novelas
“adultas” – só poderia ser exibida no horário das 21 horas.
Essa intervenção provocou, como era de se esperar, uma acirrada
polêmica, promovida inicialmente pela própria Rede Globo, que inseriu
em seu noticiário uma campanha “pública” contra a medida,
envolvendo seu staff jornalístico e artístico.
Aderindo – ou criticando – a essa campanha, profissionais do
jornalismo impresso, principalmente críticos de colunas especializadas,
representantes do governo, ONGs como a TVer e o próprio público
reabriram o debate sobre a qualidade da programação televisiva de
rede aberta no país, que estava arrefecido, provavelmente por um efeito
de saturação produzido pela própria programação, que, apesar das
críticas de setores mais informados da sociedade, vinha (e vem) se
mantendo inalterável na disputa cerrada por audiência com
apresentações que privilegiam a superexposição do corpo, seja em sua
vertente sexual, seja em sua vertente policial/violenta, que colocam no
centro dos debates a “crise de valores” que configura nosso ethos atual.
Não sou espectador usual, como boa parte dos que lhes fazem a
crítica mais “informada”, dos programas de cunho
popular/popularesco que têm mobilizado protestos de parte da
sociedade civil quanto à qualidade da programação televisiva.
Eventualmente, passeando com o controle remoto pelos canais, deparo-
me com programas como os de Ratinho, Faustão, Sílvio Santos, Gugu
Liberato, Sérgio Mallandro, Juliana Gimenez, Monique Evans etc., que
se propõem como “de entretenimento”, e outros, como os de jornalismo
19
policial, de cunho paranóico/moralizante, que exploram de modo
sensacionalista a violência urbana para reivindicar, legitimando-a, uma
ação mais efetiva e, podemos dizer, truculenta, da polícia. Esses
programas têm seu contraponto em outros que, assumindo uma
postura “informativa” e de “orientação”, procuram divulgar e debater a
sexualidade, a violência, o comportamento, a vida afetiva, o trabalho
etc. com o convite a inúmeros especialistas (psicoterapeutas,
pedagogos, médicos, astrólogos...), como o de Sílvia Poppovic
(Bandeirantes), o Programa Livre, de Babi (SBT), Saúde Feminina (Rede
Mulher) e outros, assim como os ficcionais produzidos pela
teledramaturgia, que reinvestem temas parecidos em suas tramas. A
estes, mesmo quando em franca oposição, juntam-se os programas
produzidos por grupos e setores religiosos os mais diversos, com
predominância dos evangélicos neopentecostais (Fala que Eu Te Escuto
[Record]) e os das correntes carismáticas do catolicismo. Todos esses
programas, com sua interpenetração de estilos e temas, compartilham o
mesmo campo de batalha: o da audiência. Os breaks publicitários, que se
distribuem e se concentram nessa programação conforme as variações
do Ibope e os perfis de público fornecidos por institutos de pesquisa,
promovem, por sua vez, os ideais de alegria, realização e bem-estar do
consumo.
Perante tal quadro, compartilho, nos passeios por essas tantas
formas de aproximação à complexidade do cenário atual efetuadas pela
televisão de rede aberta, a opinião da sociedade civil sobre a qualidade
da programação televisiva, que faz dos telespectadores reféns da
escolha não do melhor, mas do menos pior. Nesta breve e ligeira
avaliação da programação, coloco também no pólo do “pior” a
proliferação de “bobagens” que marcam os programas populares de
auditório, em especial a cultura das “pegadinhas” e dos “testes de
fidelidade”, que – este é um dos aspectos da atual programação
20
televisiva que trabalho aqui – simulam,13 com seu caráter invasivo e
derrisório, as invasões reais dos limites corporais e da privacidade
efetivados pela violência cotidiana das ruas, do trabalho, das relações
intersubjetivas.
Por outro lado, se o propósito é analisar a produção e
modelização de subjetividade promovida pela rede aberta de televisão,
móvel principal deste trabalho, não há como negar ou evitar esses
programas, privilegiando, na análise, somente telenovelas, noticiários e
peças publicitárias, de produção mais sofisticada e consumidos por um
público mais amplo e genérico, por mais atraentes como objeto de estudo
possam parecer, se postos em comparação com o caráter mais imediatista,
improvisado e de um excesso estético que resvala para o grand guignol dos
programas de auditório populares. Daí tomá-los aqui como meu principal
foco, balizando-os com referências a essas outras formatações da atual
programação televisiva, incluindo, quando oportuno, comentários a um
outro produto bastante presente na programação – a exibição de filmes
produzidos originalmente para o cinema, que concorre com os
consumidos em videocassetes, já bastante popularizados, e com a ascensão
do mais recente DVD.
Os argumentos que associam a “degradação do gosto” promovida
crescentemente pela televisão ao fato de, desde a implantação do Plano
Real, em 1994, ter ocorrido um crescimento expressivo do público
consumidor de televisão, principalmente com o acesso das camadas
sociais excluídas da educação formal e de pequeno poder aquisitivo ao
mercado dos eletroeletrônicos e sua subseqüente inclusão como audiência,
o que teria forçado as emissoras a um maior investimento em produtos
21
adequados ao gosto desse público,14 se parecem razoáveis a um primeiro
olhar, talvez não resistam a uma avaliação mais crítica.
Em primeiro lugar, a audiência desses programas está distante
de ser exclusiva dessas camadas da população mais desfavorecidas
social e economicamente, além de ser forçoso reconhecer que, de há
muito, o acesso à educação formal deixou de ser evidência e garantia de
um maior capital cultural (poderíamos até mesmo perguntar se alguma
vez cumpriu, por si só, esse papel). Indo um pouco além, quanto à
“degradação do gosto” promovida em nome de uma demanda dessa
massa emergente, a apreciação estética está intrinsecamente associada à
dimensão ética na qual constituímos os limites e possibilidades de
nossa afetividade e de nosso psiquismo, o que não necessariamente
coincide com o estrato socioeconômico ao qual pertencemos. Há, além
disso, um reacionarismo bastante resistente a alterações nas avaliações
que fazemos dos níveis de cultura e sua qualidade.15 Talvez seja mais
produtivo e, sem dúvida, mais instigante perguntarmos se aquilo que é
apresentado como de gosto popular não nasce de uma concepção
antecedente, isto é, construída antes que a expressão da voz desse
“popular” possa se formular, e que funcionaria como ordenadora,
modalizadora e moduladora dessa expressão, modelizando-a à medida que
ela se faz emergente. Algo que noções de preconceito, de manipulação ou
14
O caderno Mais!, da Folha de S.Paulo, dedicou toda uma edição ao tema, “A cultura
de massas emergente” (12.04.1998), reunindo textos, com enfoques diversos, de
Teixeira Coelho, Sérgio Miceli, Luiz Tatit, Jorge de Cunha Lima etc., além de
apresentar dados estatísticos interessantes: 6,3 milhões de lares adquiriram sua
primeira TV entre 94 e 97; 82,4% dos domicílios tinham TV em cores no final de 97 e,
em 93, só 50,1%; o gosto por programas de auditório caiu de 64% (em 94) para 57%
(97) nas classes A/B e subiu de 75% para 77% nas classes D/E.
15 Guattari aponta criticamente os critérios que qualificam hierarquicamente a cultura
22
de ideologia, mesmo que nos forneçam um ponto de partida, não nos
permitem compreender mais profundamente seus mecanismos
constitutivos. Essa é a razão de minha opção por privilegiar, aqui,
conceitos como “subjetivação”, “produção de subjetividade” como mais
amplos e imanentes que o de ideologia (embora não deixando de ter as
formações ideológicas em meu horizonte). Como indica Guattari,
23
quais estavam até há pouco barrados (como aparelhos de CD,
videocassetes, videogames etc.), assim como de outros pequenos
dispositivos de comunicação, como telefones fixos e celulares, é tão
significativo como via de inclusão na ordem da pós-modernidade
desses segmentos da população quanto as linguagens e produtos
culturais dos quais os dispositivos são “vias de passagem e acesso”.
Portanto, eles são capazes de produzir efeitos tão potentes quanto a
exposição àquilo que permitem aceder.
Assim, de imediato e grosso modo, se podemos reconhecer que os
programas populares funcionam intensivamente como dispositivos de
inclusão e agregação de segmentos da população até recentemente
excluídos da fruição da cultura de massa e de consumo dominantes,
mobilizando, para essa inclusão, modos próprios de semiotização e de
subjetivação que atuam como agentes de captura e performatização de
desejos e aspirações até em desintensificados em suas existências, torna-
se necessário perguntar pela maneira como os dispositivos técnicos, em
sua materialidade, afetam, por sua vez, os corpos com eles postos em
contato e interação. Essa é razão de eu não trabalhar restrito à conexão
Mídia (Comunicação) e Subjetividade, como sugerem a expressão
Psicologia da Comunicação ou a conexão Psicologia e Comunicação,
mas sim estabelecendo uma conectividade (que é processual) entre
Corpo, Técnica16 e Mídia. Com tal estratégia, foi-me possível manter,
entre os planos aqui desenhados, e quando necessário fazê-las, as
articulações implicadas na conexão Comunicação e Mercado.
16
A utilização do termo “técnica” (do grego τεχνη [tekhné], que, passando para o latim
ars, artis, deu origem ao português arte) para intermediar a relação corpo-mídia
comporta, conforme seu uso permite, vários sentidos. Embora privilegiando o termo para
indicar a “relação do corpo com a máquina, com o dispositivo técnico” (não o
distinguindo, portanto, do termo tecnologia para indicar o conjunto de dispositivos
técnicos disponíveis, como é mais freqüente nos debates contemporâneos sobre os
efeitos do avanço tecnológico nas transformações humanas e de trabalho), emprego-o
também como “saber fazer” e “saber fazendo” (“saber fazer com a máquina”, por
exemplo) e como “artifício”, isto é, para indicar as estratégias – simulações – a que
recorremos para esse fazer.
24
Para dar maior sustentação aos meus argumentos, balizando-os
com as posições do público telespectador, recorri a uma pesquisa
recentemente realizada, “Valores Sociais e Meios de Comunicação de
Massa” (ANEXO), cujos levantamentos de campo deram-se entre junho e
julho de 1997, realizada pela Retrato Consultoria e Marketing com o
apoio da Unesco. Os resultados dessa pesquisa foram utilizados pelo
Governo Federal (cf. Observatório da Imprensa, no. 99, 05.10.2000) como
principal fundamento da Portaria 796, de 12.09.2000. Realizada em duas
fases, uma qualitativa e outra quantitativa, a pesquisa, bastante
abrangente, consistiu:
25
2. “A fase quantitativa, realizada pelo Ibope, consistiu num estudo entre
a população das regiões brasileiras do Norte, Centro-Oeste, Nordeste,
Sul e Sudeste (junto a municípios em condições de capital, periferia e
interior, com contingentes eleitorais de até 20 mil eleitores, mais de 20 a
100 mil e mais de 100 mil eleitores), segmentada entre pessoas com
idades a partir de 30 anos, de ambos os sexos, pertencentes às classes
socioeconômicas A/B, C, D e E (critério Abipeme), pais ou
responsáveis por crianças e/ou adolescentes, na faixa etária de 8 a 17
anos. Nesta etapa, foram realizadas 2.000 entrevistas, entre 24 e 29 de
julho de 1997.” (Observatório da Imprensa, no. 99, 05.10.2000,
www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/qtv051020001.htm).17
26
medida em que, da amostra total, apenas 8% dos espectadores
pesquisados pensam que “o governo deveria ter um grupo de pessoas
para assistir a toda programação e dar sua opinião a respeito”, contra
50% dos que pensam que “a sociedade deveria ter um local para onde
ligar/reclamar caso se sentisse ofendida/descontente com determinado
programa/tema/cena” (resposta que indica uma aspiração democrática
dos pesquisados de maior participação e poder decisório, como
cidadãos, naquilo que lhes é dado a consumir) e 43% dos que pensam
que “deveriam existir ONGs influentes que cuidassem da análise de
programação de TV e mantivessem contato tanto com as reclamações
da população como pudessem falar diretamente com o governo”
(resposta que reconhece o caráter representativo mais efetivo das ONGs
e as legitima) (tver.zip.net/pesquisas.htm)
É da análise dos resultados dessas duas pesquisas, somada às
leituras resultantes de minha exposição aos programas
populares/popularescos da rede aberta mais informações e
comentários coletados em jornais e revistas, que este trabalho se
sustenta em seu aspecto pragmático. A partir desses dados, e aliando-os
a um breve percurso pela história recente das transformações do
dispositivo televisivo e seu público a partir do Plano Real, trabalho aqui
com os referentes teóricos que me permitem estabelecer, com eles,
minhas conversações.
Para a apresentação desses referentes teóricos – que se compõem
em vários níveis, em vários estratos, cada um com suas próprias
complexidades – expostos mais longamente na INTRODUÇÃO –
TRANSVERSALIZAÇÕES: BALIZAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS (percursos
por alguns momentos do pensamento que emerge dos movimentos da
Modernidade, com o objetivo de estabelecer as balizas para a
construção do plano diagramático no qual serão desenvolvidas as
leituras subseqüentes), desdobrados na PARTE I – DE UM MUNDO A
27
OUTRO, CAPÍTULO 1 – DENTRO (no qual destaco algumas construções do
pensamento psiquiátrico e psicanalítico relativo à psicose) e CAPÍTULO 2
– DENTRO-FORA (articulação dos conceitos com vistas a compor o plano
diagramático cujos balizas foram apresentadas na INTRODUÇÃO, para a
leitura dos agenciamentos de subjetivação que podem ser reconhecidos
nas produções da mídia televisiva), e retomados, alguns deles, na PARTE
II – DE UM MUNDO A OUTRO [MESMO] MUNDO, CAPÍTULO 3 – FORA (no
qual discuto, em outro plano, alguns impasses políticos e éticos
relativos à censura e à liberdade de expressão), recorri a algumas
articulações resultantes de minha experiência na clínica da psicose, na
medida em que foi principalmente essa experiência que me levou a
buscar indícios e conceitos os mais diversos e a colocá-los em relação de
proximidade de forma a constituir o plano no qual as idéias aqui
expostas pudessem se validar. São esses conceitos e articulações que
faço confluir para o CAPÍTULO 4 – FORA-DENTRO,19 no qual me dedico à
leitura dos modos de apresentação e estruturação mais freqüentes na
programação televisiva de rede aberta atual, para, finalmente, em
CONCLUSÃO – MUNDOS POSSÍVEIS,20 numa revisão e atualização das
leituras que proponho sobre a ética e a subjetividade, ensaiar algumas
considerações sobre o estado-de-arte da mídia televisiva e seus
impasses como agente de inclusão, procurando formular algumas
alguns psicanalistas formados nas vias abertas por Jacques Lacan. Como o
pensamento se constitui por atravessamentos, lutas, rupturas, planos, toda proposta
de compreensão de um acontecimento, de um campo, é finita e sustenta, de modo
finito, sua efetividade. Sendo o plano de consistência formado pelos conceitos que
utilizamos sempre finito, ele se mantém aberto à formação de outros planos de
consistência que desfazem ou rearticulam o anterior, na medida em que estamos
sempre na processualidade de nossos fazeres e de nossas técnicas (artifícios) ao
definirmos nossos recortes.
28
hipóteses prospectivas sobre as possibilidades de emergência e
sustentação de espaços para a multiplicidade e diversidade de
expressões da potência humana de existir, agir, pensar e produzir real
social.
29
INTRODUÇÃO
TRANSVERSALIZAÇÕES:
BALIZAS TEÓRICAS E
METODOLÓGICAS
Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não
sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que
imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso
próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa
ignorância e que transforma um no outro. É só desse modo que somos
determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para
depois ou, antes, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita
e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação
geralmente apontada sobre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio.
Falamos, pois, de ciência, mas de uma maneira que, infelizmente,
sentimos não ser científica. (Deleuze, 1988: 18).
... as boas maneira de ler hoje é chegar a tratar um livro como se escuta
um disco, como se olha um filme ou um programa de televisão, como se é
tocado por uma canção: todo tratamento do livro que exigisse um respeito
especial, uma atenção de outra espécie, vem de uma outra era e condena
definitivamente o livro. Não há nenhuma questão de dificuldade nem de
compreensão: os conceitos são exatamente como sons, cores ou imagens,
são intensidades que convém a você ou não, que passam ou não passam.
“Pop” filosofia. Não há nada a compreender, nada a interpretar.
(Deleuze & Parnet, Dialogues)
31
PERCURSOS
32
trabalho científico –, deveria estar submetido a um bom controle, por parte
do investigador, do próprio objeto, pode mostrar-se extremamente rica, tanto
pelas aberturas nos processos de pensamento que ela pode induzir quanto,
às vezes, pelos bloqueios que ela pode produzir ou equívocos em que pode
nos lançar, nos obrigando a rever nossos pressupostos, ou até mesmo a
abandoná-los, se eles deixam de nos servir. Afinal, um trabalho intelectual ou
de investigação demanda a implicação daquele que o realiza, e não
avançaríamos caso fechássemos os olhos para aqueles momentos em que
tudo nos convida a tomar uma direção diversa da que havíamos
privilegiado, sob o risco de não podermos mais constituir um território no
qual possamos nos reconhecer e nos fazermos reconhecer por nossos pares.
Essa exigência parece tornar-se maior quando nos aventuramos,
deliberadamente ou não, por campos que não pertencem aos lugares de onde
originariamente partimos ou que estamos acostumados a freqüentar. É
particularmente nas aventuras pelo novo que atalhos e buracos negros
parecem sempre mais tentadores, e mais ainda quando ocorre de o próprio
contexto que nos fornece o fundo de onde emergimos ser para nós
relativamente novo e pouco explorado.
Tais são as condições em que este trabalho se realiza. Como indiquei
na APRESENTAÇÃO, a entrada nos debates sobre o campo comunicacional
ocorreu, para mim, a princípio, como acaso: ter iniciado, em 1991, atividades
docentes em uma escola de Comunicação, com a disciplina Psicologia, algo
que, até o momento em que a proposta surgiu, não fazia parte dos interesses
que eu priorizava. Até então, meus interesses haviam me levado a freqüentar
campos mais assemelhados entre si: a instituição psiquiátrica, a clínica
psicológica individual, a psicanálise, e, um pouco mais tarde, a análise
institucional e as questões dela decorrentes, sobre a vida afetiva e a dinâmica
das instituições.
Nesses percursos, intervinham outros, ligados a algumas paixões
pessoais: o cinema, a música, a literatura, a filosofia. E, bastante determinado
33
pela época em que minha formação desenhou-se – a era dos militares no
poder e os subseqüentes esforços de redemocratização do país –, a política,
os poderes, as relações de força e suas conseqüências. Inevitavelmente, ao
ocupar-me do campo comunicacional, foram esses determinantes anteriores
de formação, somados à participação na pesquisa para o CBELA, que
convoquei para compor um quadro compreensivo no qual eu pudesse situar-
me e dar direção às minhas leituras.
A escolha do tema deste trabalho ocorre, ainda, em um momento em
que minhas principais preocupações dirigem-se, agregando-se às anteriores,
para os campos da ética e da estética, que, como os da ética e da
subjetividade, penso serem indissociáveis, atravessados um pelo outro. Por
estar produzindo neste tempo polarizado pela globalização, pelas tecnologias
biológicas e informáticas e pelos fluxos de transformação acelerada do
campo social, é nesse contexto que busco meus referenciais éticos e estéticos.
Uma busca que é resultante desses percursos, nos quais,
gradativamente, distanciei-me do debate clínico das categorias psicológicas
para pensá-las em contextos mais amplos, os das condições históricas,
culturais, políticas e sociais de seu aparecimento e sustentação, assim como
do mundo que as acolheu e as consagrou como práticas. É a partir de um
olhar para esse mundo, suas transformações, suas riquezas e suas condições
adversas, ensaiando dele uma cartografia,2 que procuro aqui novos desenhos,
novas configurações, novas possibilidades de apreensão da existência, e, por
conseguinte, novas práticas. Práticas que têm nos devires seu motor, na
34
potencialização dos recursos humanos sua esperança, constituindo formas,
enfim, de resistir ao presente.
Resistir ao presente não é simplesmente opor-lhe forças, mas buscar
nele linhas de fuga,3 desenhar novos campos de possíveis, investir devires e
estilísticas de existência.
Para isso é necessário, primeiro, reconhecer as relações de força que
configuram e dão sentido e materialidade ao presente. Um reconhecimento
que não é só de um exterior – essa ilusão da neutralidade do cientista que
observa e analisa o acontecimento –, mas também, e principalmente, da
maneira como esse exterior se dobra – carregando matérias do mundo – para
nós e se desdobra de nós para o mundo, implicando-nos, qualquer que seja
nossa vontade, com o acontecimento, sendo nesse movimento fora-
dentro/dentro-fora4 que cada dobra se redobra, constitui zonas de
intensidade com seus diferenciais, seus pequenos territórios e suas pequenas
percepções que se conectam a outras, constituindo isso que podemos
conceber como espaço humano vivível, seja pelas ações, criações e idéias dos
homens, seja pelos produtos que delas resultam.5 É desses reconhecimentos
3
Abrir linhas de fuga é o contrário de “fugir de”, como ocorre no escapismo niilista ou na
oposição sistemática que nos coloca ideologicamente contra alguma coisa (proposições do
tipo “a televisão é ruim, manipula as consciências; não a liguemos mais, lutemos contra
ela”). Ao contrário, “é o mundo que foge de si mesmo por essa linha, ele se desmancha e vai
traçando um devir – devir do campo social: processos que se desencadeiam; variações
infinitesimais; rupturas que se operam imperceptivelmente; mutações irremediáveis”
(Rolnik, 1989: 48).
4 Um Fora que não é simplesmente o exterior entendido como mundo objetivo, mas as forças
nômades que o percorrem, que o atravessam; um Dentro que não é simplesmente o interior
entendido como mundo subjetivo, mas como modos de relação com o Fora, isto é, com as
forças que se dobram para Dentro, seja como passagens Dentro-Fora/Fora-Dentro
(subjetivação), seja como enclausuramento do Fora no Dentro (loucura) (ver Pelbart, 1989).
5 A noção de dobra (e as dela derivadas desdobra, redobra) – alçada à posição de um conceito
35
que podem advir novas proposições, novos enunciados... talvez uma nova
est(ética).
É dessa perspectiva de dobra, redobra e desdobra, em que o dentro e o
fora não cessam de se freqüentar e se reinventar, que procuro construir
referentes conceituais e apreender, nos limites deste trabalho, algumas
implicações ético-estético-políticas do fazer comunicacional em sua potência
de agenciamento de subjetividades contemporâneas.6
de um e outro, mas um “terceiro” pensamento, atravessado, por sua vez, por muitos outros:
“El Anti-Edipo lo escribimos a dúo. Como cada uno de nosotros era varios, en total ya
éramos muchos. Aqui hemos utilizado a todo lo que nos unía, desde lo más próximo a lo
más lejano. Hemos distribuído hábiles seudónimos para que nadie sea reconocible. Por qué
hemos conservado nuestros nombres? Por rutina, únicamente por rutina. Para hacernos
nosotros también irreconocibles. Para hacer imperceptible, no a nosotros, sino todo lo que
nos hace actuar, experimentar, pensar. Y además porque es agradable hablar como todo el
mundo y decir el sol sale, cuando todos sabemos que es una manera de hablar. No llegar al
punto de ya no decir yo, sino a ese punto en el que ya no tiene ninguna importancia decirlo
o no decirlo. Ya no somos nosotros mismos. Cada uno reconocerá los suyos. Nos han
ayudado, aspirado, multiplicado”. (Deleuze & Guattari, Rizoma, 1988: 9). Uma maneira
singular de produção de pensamento, que jamais é linear, que avança para o mais distante
para indicar o mais próximo, que aproxima campos múltiplos e absolutamente diversos,
produzindo deles novos conceitos, bastante diferente, portanto, da mais emblemática à qual
estamos acostumados na produção que reconhecemos como científica. Ao referir-me a esses
autores aqui não aspiro a uma fidelidade ou à apreensão da pureza, da verdade do conceito,
tal como eles o formulam. Muito mais freqüentemente, penso tê-los entendido mal, ou só
apreendido uma pequena parte do que disseram, ou ainda estar olhando para outro ponto
luminoso que não o que eles parecem indicar, o que me força a continuamente voltar a eles,
ou mais simplesmente aventurar-me pelas minhas próprias articulações para só depois
perguntar se elas conversam ou não com essas idéias que as acionaram.
6 É importante frisar: “de” subjetividades, e não “da” subjetividade contemporânea. Embora
36
TRANSVERSALIZAÇÕES: BALIZAS
TEÓRICAS E METODOLÓGICAS
linguagem. Trato desses termos mais à frente nesta INTRODUÇÃO, ao justificar a presença de
Nietzsche entre meus referentes conceituais.
37
acontecimentos culturais, sociais e políticos de que participei e participo
como humano e como cidadão, sejam das afetações que me atravessam em
meu contato com matérias e linguagens do mundo as mais variadas.
IDÉIAS DE HOMEM
NA CONTEMPORANEIDADE
38
possibilidade de se interferir nas cadeias do DNA e alterá-las – não cessam
de nos surpreender com formulações e descobertas que ameaçam de
dissolução muitos dos pressupostos que dirigiram nossas ações, práticas e
pensamentos no decorrer dos séculos XIX e XX, lançando-nos num fluxo de
elucubrações que deslumbram, como as ficções científicas que alimentaram
durante décadas nosso imaginário, aberturas para mundos possíveis tão
abomináveis como fascinantes.
Esse mundo administrado, mapeado, estratificado e controlado por
saberes múltiplos que se propõem objetivar-se mais e mais, em confluência
para um princípio único e comum, não cessa de esbarrar, entretanto, em
quadros bastante trágicos e assustadores. Populações extensas do planeta em
processo crescente de miserabilização (“os excluídos da globalização”);
conflitos territoriais, religiosos, étnicos (“os resistentes da identidade”);
ataques terroristas (“os inimigos do estratificado”); proliferação de atos
violentos no espaço urbano (“os resultantes marginais e residuais da tensão
ordem/desordem”); crise do trabalho (“os sacrificados da obsolescência”);
crise e desagregação das relações intersubjetivas (“os desterritorializados da
socialidade e da afetividade”) propõem desafios inesperados à razão
triunfante e abrem espaço para derivas surpreendentes da subjetividade.
Dessa diversidade em tensão, a mídia, como “central de distribuição
de sentidos e valores” (Rolnik, 1989), é a superfície privilegiada na qual
racionalidade triunfante e irracionalidade – ordem e caos – compõem o
espetáculo desse mundo ruidoso atravessado por fluxos contínuos que, indo
sem cessar de um pólo a outro, criam nódulos de aderência, pólos
intermediários/parciais com seus próprios vetores, os quais, se não sabemos
para onde se dirigem (e nos dirigem), não nos arriscamos a não acompanhar,
em esforços de evitamento de uma ameaça difusa que paira sobre nós, a de
sermos capturados pelo que nos excede, a de perdermos nossas referências –
cognitivas, semióticas, estéticas, afetivas... –, de nos tornarmos, enfim, um
nada girando no próprio vazio.
39
Se, perante os produtos da mídia , experimentamos esse sentimento de
estarmos sendo arrastados muitas vezes para um indeterminado difuso,
também nos damos conta de que as medidas protetoras em relação à deriva
vêm da própria mídia e sua loquacidade, que, expondo esses fluxos e
fazendo deles suas extrações, não cessa de indicar tendências, de desenhar
aqui e ali pequenas territórios com seus sucessos, com seus estilos, com suas
estratégias, com seus slogans que se oferecem como superfícies de aderência
às aspirações identitárias, sinalizando, enfim, o que o mundo/mercado
espera de nós a cada momento, esse dever-ser com o qual, candidatos
ansiosos a um lugar nele, devemos compor nossas objetivações. Essa é, pelo
menos, a advertência que ela própria nos faz, em seu papel social de
atualização, expondo e reiterando quotidianamente sua potência de nos
antecipar o saber que precisamos saber. Um “precisar saber” que é condição
para se estar com um outro de forma inteligível, ou, mais ainda, para
configurar o próprio lugar no mundo, desenhando-se como um sujeito
comunicativo, permanentemente “ligado”, visível e disponível às demandas,
pronto – pró-ativo – para a ação.
Da deriva das subjetividades, do colapso da idéia do indivíduo
autônomo e livre capaz de escolhas e de gestão da própria vida, da
desintensificação de pensamentos e movimentos que supõem uma longa
preparação (sinalizando a “crise” da psicanálise, da filosofia, dos
movimentos criadores em um mundo pragmático dependente de resultados
imediatos), a mídia não cessa, enfim, de extrair e inventar um sujeito possível
e mutante cuja principal atribuição de liberdade é, como instância final,
negativa: a de não poder deixar de estar presente aos produtos que ela própria
nos oferece e a de não poder deixar de se comunicar, isto é, a de não poder
deixar de estar agenciado pelos campos de enunciação dominantes dos quais
a mídia se faz porta-voz. Assim, a mídia constrói, para cada um de nós, tanto
um campo de visibilidade quanto um campo de enunciação propostos como
comuns, indicando a forma como devemos estabelecer, entre um e outro,
40
relações de implicação, reconhecimento, significação, determinando, enfim, o
que deve e pode ser aceito como verdade na comunidade humana à qual
pertencemos. Tal é o poder da mídia, enquanto “central de distribuição de
sentidos e valores”. Se nessa invenção reconhecemos que, com freqüência, ela
é perversa,9 é necessário reconhecer também que há suficientes demandas
desejantes para sustentá-la nessa posição, garantindo-lhe, assim, sua própria
legitimidade.
Face a tal quadro, não é de surpreender que, nos debates cotidianos,
quando os temas são mídia e mercado global – e as transformações que se
operam, com sua expansão e hegemonia, nas condições de existência e de
trabalho –, os estados de alma sejam bastante conflitantes: manifestações
entusiásticas de uns com as novas possibilidades do fazer, do tornar visível e do
mercadizar misturam-se com inquietações de outros, que destacam a
manipulação, os excessos e a sujeição de consciências promovidos por uma
mídia excessivamente determinada pelo mercado e seus corolários: a
competitividade, a violência, o consumismo (de objetos e de corpos)... que
acabam por levar, em seu limite, a uma banalização do Mal. Entre “integrados”
e “apocalípticos” e seus confrontos, o sentimento que permanece como resíduo
é de que o pensamento encontra nesses debates poucas condições para avançar,
incitados que somos a tomar partido de um ou outro lado.
É nesse “entre” – um campo articulado por relações de forças – que
busco construir minhas linhas de fuga, procurando pensar o dispositivo
comunicacional numa “terceira via” que me permita reconhecer sua
operatividade no agenciamento da subjetividade, cujo resultante final seria
esse “sujeito possível” da comunicação.
Para criar as condições de realização desse propósito, um percurso
pelas concepções de homem que fundamentam nossa história recente se faz
necessária.
9Perversidade que será necessário reconhecer na maneira como ela se estrutura e estabelece
com seu consumidor/receptor relações de implicação e significância.
41
A um primeiro olhar, o que podemos reconhecer como subjacentes a
esses debates que opõem razão triunfante e irracionalidade, ordem e caos,
ação “negativa” ou “positiva”, principalmente quando caminhamos por
problematizações éticas, são perguntas muito antigas: como o homem se
constitui em relação à ordem do mundo, como assegura sua existência, como
formula seus desejos, quais suas estratégias para realizá-los, como
experimenta seus dramas e seus impasses, como os atravessa, como os faz
funcionar para si. Basta avançarmos um pouco mais, e nos deparamos com
outras questões que percorrem a história do pensamento, que emergem e
pulsam aqui e ali, como se se quisesse indicar que é sempre isso que se trata
de compreender, embora se sabendo de antemão que as respostas serão
sempre vagas ou necessariamente construídas como ficções: a origem e
destino do homem e, como decorrência, sua natureza, seu sentido, suas
motivações, seus prazeres, suas buscas por felicidade.
Ora, quando nos dispomos a pensar os acontecimentos do
pensamento e das práticas que fundam nosso presente, vemos que a
concepção de homem enquanto sujeito no cenário do mundo que atua nele
com sua consciência, ora em implicação com o mundo, ora na posição de
recuo daquele que observa e compreende, ora em conflito com as matérias
que lhe chegam do exterior, é não só bastante diversa conforme os momentos
em que ela ocorre como também vai se delineando e se complexificando à
medida que o homem amplia seu contato com outros mundos e vê serem
colocadas em xeque suas posições, sejam as de harmonia, sejam as de
separação, superioridade e domínio em relação à Natureza (império em um
império), condição que marca sua entrada na Modernidade.
Alguns acontecimentos determinam essa entrada, como a revolução
de Copérnico (1473-1543) na astronomia, que afirma o heliocentrismo no
lugar do geocentrismo (deslocando, com isso, a concepção teocêntrica de
mundo da Escolástica), revolução mais tarde desenvolvida por Galileo
Galilei (1564-1642), verdadeira ruptura que marca a Renascença e o
42
florescimento das artes e das ciências que irão colocar o homem em perspectiva
no mundo (humanismo, antropocentrismo), recompondo-o da perda de sua
determinação exclusivamente divina.10 São esses acontecimentos – marcados
por inquietações quanto ao caos e às possibilidades de reordenamento do
mundo – que abrem espaço para as formas de subjetivação que constróem o
homem moderno e constituem a noção do que somos nós.11
Para entendermos, entretanto, a extensão dessas mutações, é
necessário que se faça uma distinção entre, pelo menos, duas maneiras de se
fazer história, isto é, de ler esses acontecimentos. A mais corrente
(particularmente como senso comum ou como historiografia “oficial”) – e
menos sustentável – é marcada pelas idéias de evolução e de progresso, de
acordo com as quais o homem (conceito imutável, sustentado por uma noção
de natureza humana também imutável, embora adaptativa) teria caminhado
em progressão civilizatória das cavernas à era da informática, tendendo-se a
evitar as noções de ruptura e de caos a favor das de ordem e de
desenvolvimento. Embora a historiografia propriamente dita já tenha
abandonado, de há muito, essa perspectiva, nós a reencontramos comumente
nas tentativas de se historiar campos específicos de saberes e práticas de
surgimento mais recente (principalmente a partir do século XIX, quando se
organizam e se estruturam as Ciências Humanas como campos de saber que
têm o homem como seu objeto [Foucault, s/d]), naquilo que me parece ser
mais um esforço desnecessário de autolegitimação de pretensões
investigação de figuras que veiculam uma visão negativa do caos – com seu horror às
margens, tanto geográficas como humanas – produzidas entre os séculos XVI e XIX (Santa
Tereza D’Ávila, Cervantes e seu Don Quixote, Ignácio de Loyola, Mesmer, Lutero,
românticos, iluministas e liberais, com seus debates sobre as separações do público e do
privado).
43
universalistas, de afirmação da própria positividade por remissão
continuada a um passado no qual não só o homem como o representamos
hoje já estaria presente como também suas práticas, ainda que em potência,
ainda que não plenamente configuradas como na atualidade (daí a idéia de
“progresso”, em que o novo, caminhando por lutas, revisões e superações,
aprende com o velho e o substitui de uma maneira necessariamente melhor).12
Da outra maneira de ler esses acontecimentos, que abriga várias
tendências que conversam entre si,13 destaco a realizada, mais radicalmente,
por Michel Foucault, que, em sua arqueologia do saber (As palavras e as coisas,
de 1966), questiona a noção de sujeito presente na racionalidade do
pensamento moderno e a idéia de Ciências Humanas dela originada,
concluindo polemicamente que
diversos, como Philippe Ariès (1978), Jean Dulemeau (1990); Aline Rousselle (1984), ou as
filosofias da diferença, com Blanchot, Derrida, Deleuze etc.
44
apareceram, se por algum acontecimento de que podemos, quando muito,
pressentir a possibilidade, mas de que não conhecemos de momento ainda
nem a forma nem a promessa, se desvanecessem, como sucedeu na viragem
do século XVII ao solo do pensamento clássico – então pode-se apostar que o
homem se desvaneceria, como à beira do mar um rosto de areia”. (Foucault,
s/d: 502).
(1986 [com Guattari]; 1989; 1997a; 1997b), Pelbart (1989), Roberto Machado (1990; 2000),
Birman (2000; 2001) etc.
45
ondulatória da luz (e não corpuscular, como era até então entendido16) e
formula uma nova teoria da visão, definindo o olho “como instrumento óptico e a
visão como formação de uma pintura (pictura) que representa a imagem das
coisas (imago rerum) na superfície côncava da retina, independentemente do
observador” (Chaui, 1999: 47), de conseqüências inestimáveis para o pensamento,
particularmente o de Espinosa, que era, no seu trabalho cotidiano, um polidor de
lentes17 –; sejam os desenvolvimentos de dispositivos técnicos como a máquina a
vapor, por Watts, no século XVIII, que redimensionam a concepção do trabalho e
sua organização, ou ainda os desenvolvimentos da arquitetura e das artes na
Renascença, com a invenção da perspectiva e de inúmeras e engenhosas
máquinas (por exemplo, as de Da Vinci), assim como o pensamento que se
desenvolve durante o Barroco (em particular, de interesse neste trabalho, o de
Leibniz [1646-1716]), observamos articulações conceituais que, como observam
Deleuze & Guattari (1992), surgem dessas condições de reinscrição do homem na
ordem do mundo, em determinados lugar e tempo, e que permanecem
associadas a determinadas figuras que se constituem como “personagens
conceituais” (como, por exemplo, os conceitos formulados por Descartes no
século XVII, que carregam indelevelmente sua assinatura18 e autorizam a pensar e
a trabalhar a partir de seu método, o “cartesiano”, e que só poderiam emergir
16 “A luz, demonstrara Kepler, é uma realidade energética (uma força e não um corpo) com a
capacidade para lançar-se de sua fonte até um ponto distante ao infinito, segundo um
número infinito de retas, cada uma das quais chamada raio luminoso.” (Chaui, 1999: 59). Na
realidade, será a partir da descoberta de Kepler que Huygens irá propor a teoria ondulatória
de sua propagação, ao recusar a natureza corpuscular da luz (“uma matéria vinda do objeto
até nós como uma flecha ou uma bala”).
17 Mais à frente, quando me referir ao lugar de Espinosa neste trabalho, procurarei explicitar
Guattari, tomando-os, por sua vez, e aos conceitos por eles criados, como também
“personagens conceituais”. São essas assinaturas, e não nossa designação como “discípulos”,
“seguidores”, que marcam os percursos que fazemos na produção de pensamento. Não a
fidelidade, a adesão monolítica ou a reprodução deste ou daquele autor, desta ou daquela
corrente, mas, sim, o que, atravessados por eles, somos levados a pensar a partir das marcas
que eles nos deixam. Pensadores e pensamentos que atuam como amigos, como
intercessores, dizia Deleuze (1992).
46
com ele e naquele momento, não antes19). A uma pretensão totalizante da história
da filosofia de definir o pensamento ora como a-histórico, como a-temporal, e,
como tal, universal, ora, em contrapartida, numa linha evolutiva, em progresso,
com os conceitos associados a essências, mostram-nos Deleuze & Guattari que é
sempre necessário retornar às condições de aparecimento dos pensamentos, dos
conceitos e suas circunstâncias, e suas ligações aos acontecimentos e aos
personagens que os criam e lhes dão sustentação. Criação de mundo e de real
social é o que não cessa de se investir.
Fazer esse retorno, ou compreender-lhe o sentido, entretanto, não é
simples. Depois da intensiva partição dos saberes operada no decorrer do
século XIX e que se prolongou pelo século XX, arrastando modos de
organização e distribuição dos poderes em relação aos quais os saberes
constituíram-se como dispositivos estratégicos (Foucault, 1977b), nas
investigações e reflexões contemporâneas, principalmente após a Segunda
Guerra Mundial, mais e mais se passou a reconhecer a necessidade de se
estabelecer conversações entre campos diversos de conhecimento na
abordagem de um objeto ou de um tema. Da estrita separação das disciplinas
operada no decorrer do século XIX, segundo a qual a recomendação era a de
que cada um, em seu campo de especialidade, procurasse aprofundar suas
pesquisas e questões o máximo possível nesse campo e só nele, assistimos
gradativamente o recurso à interdisciplinaridade como forma de proteção em
relação tanto às inevitáveis limitações na produção de saberes específicos
quanto a uma progressiva perversão20 do conhecimento que a recomendação
inicial instaurara.
19 “Muitos problemas surgem sob os olhos alucinados de um velho que veria confrontarem-
se todas as espécies de conceitos filosóficos e de personagens conceituais. E de início os
conceitos são e permanecem assinados, substância de Aristóteles, cogito de Descartes,
mônada de Leibniz, condição de Kant, potência de Schelling, duração de Bergson... Mas
também alguns exigem uma palavra extraordinária, às vezes bárbara ou chocante, que deve
designá-los, ao passo que outros se contentam com uma palavra corrente muito comum, que
se enche de harmônicos tão longínquos que podem passar despercebidos a um ouvido não
filosófico.” (Deleuze & Guattari, 1992: 16)
20 Perversão, na medida em que a excessiva especialização determina um movimento
47
Alguns campos de conhecimento ensaiaram com ênfase essa visitação
a terras estrangeiras, e com mais liberdade quanto menos “humana” sua
área, como podemos constatar em algumas produções intelectuais e
investigativas atualmente em curso na física e na biologia, que hoje nos
fornecem instrumentos consistentes para nossas reflexões sobre a ontologia e
a ética (como as dos biólogos Varela [Costa [org.], 1992: 73-97; Maturana &
Varela, 1994] e Maturana [1999; www.pnc.com.au/~lfell/in.html],atualmente
também voltados para a epistemologia e as ciências cognitivas, ou as do
sociólogo, filósofo das ciências e engenheiro de informática Pierre Lévy
[1993; 1995; 1996; 1997; 1998; 1999; Costa [org.], 1992: 51-71), apesar de alguns
segmentos mais “especialistas” da pesquisa biológica e genética – as
biotecnologias – acenarem, às vezes, com a possibilidade de emergência de
um “abominável mundo novo”, quando procuram justificar e orientar suas
produções a partir de enfoques extremamente reducionistas da ação humana,
tendendo a indicá-la como determinada exclusivamente pela genética ou
pelo processo evolucionário.21
fechamento algo purista do especialista em seu campo, tomando-o não como parte no
conjunto dos saberes, mas como todo. Tomo perversão, aqui, portanto, não como “desvio em
relação a uma norma”, mas em sentido similar ao de perversão na psicanálise: no perverso,
pulsões parciais são convocadas a dar conta de toda a dimensão da sexualidade, como
ocorre no fetichismo, fazendo delas “especializações totalizantes da expressão sexual” e não
em transitividade com a sexualidade genital – da sexualidade perversa polimorfa infantil
para a sexualidade adulta (Freud, OC, 1981j: 1.169-1.237). A organização do conhecimento
em campos específicos e relativamente autônomos de saberes, que se consolida a partir do
século XIX, decorre de um longo processo de separação, especificação, classificação e
hierarquização dos saberes que acompanhou o desencantamento do mundo. Se, de um lado,
essa delimitação de campos permitiu maiores aprofundamentos, acabou, entre outras
conseqüências, por constituir o que reconhecemos hoje como razão instrumental, um saber
fazer que dispensa o conhecimento dos campos de implicação desse saber e desse fazer.
Nesse sentido, a utilização de um mesmo conceito – perversão – para designar esferas à
primeira vista tão diversas da experiência humana (organização sexual e relação com o
saber) talvez não soe arbitrária. Mais à frente – ver item “A Experiência Extrema”, nesta
INTRODUÇÃO – será necessário ampliar e especificar melhor essa idéia de perversão.
21 Numa espécie de “darwinismo social” do qual não escapa nem mesmo o atávico confronto
48
Em contrapartida, nas Ciências Humanas, se a interdisciplinaridade já
conquistou um espaço de reconhecimento e validade para a formação de
campos mais compreensivos sobre a complexidade humana, a resistência à
transdisciplinaridade, e mais ainda à transversalidade – salvo entre alguns
pensadores mais próximos à filosofia (como os “pensadores do Fora”) e os
que trabalham com os paradigmas da complexidade, como Edgar Morin,
Prigogine, Stengers – foi sempre maior, provavelmente em função da relativa
juventude dessas Ciências.
Não raro, por exemplo, encontramos ainda grandes embates entre os
que privilegiam o estudo do campo social e político e os que privilegiam o
estudo do individual e do psíquico. Os termos “objetivo” e “subjetivo” são,
nesses casos, sobre-adjetivados sob uma aura de suspeita que não cessa de
indicar, aqui e ali, imprecisões, ilusões, não-cientificidades. Os esforços,
principalmente na primeira metade do século XX, retomados nos anos 60-70,
de aproximações entre marxismo – considerado a priori como pertencente ao
campo objetivo do econômico e do político – e psicanálise – também a priori
como pertencente ao campo não-científico e impreciso da subjetividade –,
mobilizados pelos freudomarxistas, entre os quais Wilhelm Reich, Gèza
Rohéim, Erich Fromm, René Lourau e Herbert Marcuse inscrevem-se como
os mais conhecidos e importantes, animaram detratores dos dois campos. As
produções de inspiração freudomarxistas, se insuflaram sopros de vida nos
impasses mortais em que cada um desses campos de produção de saber,
quando isolados em suas práticas, não cessam de esbarrar,22 não puderam,
à sociologia e à política, como ainda às vezes ocorre quando se tenta "explicar", com
referentes derivados da psicologia ou da psicanálise, o comportamento social e político de
indivíduos (alguns exemplos encontrados em matérias de jornais: uma psicóloga explicando
acidentes no trabalho como expressões de uma agressão inconsciente do trabalhador em
relação ao patrão/pai; um psicanalista explicando atos de terrorismo homicida/suicida
como resultantes da depressão de seus agentes...). Como bem indicou Reich (A aplicação da
psicanálise à investigação social, in Althusser et alii, 1976: 70), "podemos concluir que a
aplicação, consciente ou inconsciente, do materialismo dialético ao domínio da psicologia
49
entretanto, desfazer alguns limites aparentemente irredutíveis entre
indivíduo e sociedade, aspirações individuais e vontade coletiva,
representados, quase que invariavelmente, em oposição e conflito.23
Além dos freudomarxistas, outros autores têm ensaiado suas leituras
do campo social e psíquico de uma forma que, em graus diversos, mantém as
noções de separação e conflito entre indivíduo e sociedade, entre o velho e o
novo, entre moral e novos costumes, entre a civilização e as pulsões, entre os
processos de transformação social e subjetiva e os impasses aparentemente
irresolúveis entre tradição e ruptura. Algumas vezes, nesses ensaios que
buscam ser de compreensão de uma época, a aceleração tecnológica é
apontada como ultrapassando a competência emocional humana de se
ajustar a ela, levando o homem à própria alienação em um presente estático e
estásico. Se não nos é difícil constatar e até mesmo concordar com esse
impasse entre aceleração tecnológica e competência emocional para assimilá-
la – na PARTE I, CAPÍTULO 2 – DENTRO-FORA, recorro com freqüência aos
argumentos que buscam confirmá-lo –, o tom às vezes amargo das
argumentações e denúncias, embora nos convidem à reflexão, apontam para
becos sem saída, ou para soluções utópicas, já que desenhadas em um porvir:
a necessidade de uma reforma profunda, ora dos espíritos, ora da sociedade,
quando não de uma desaceleração dos avanços tecnológicos, como condições
necessárias e antecedentes para que possamos agir. Os muitos discursos sobre a
necessidade de um “retorno à ética”,24 de um resgate do “humano” que
proteja o homem dos fascínios de um mundo em desencantamento que não
a dissolução desses limites, não escapou a alguns equívocos derivados dessa oposição, como
veremos mais à frente
24 A “moda” da ética merece um olhar cuidadoso. Esse “retorno”, conforme argumenta
Chaui (1998), supõe que pré-exista uma ética que está à nossa espera, bastando que
tenhamos boa vontade (já que seríamos portadores de livre-arbítrio) em exercitá-la, o que
recusa sua dimensão não-normativa, processual, instituinte e intersubjetiva, assim como
ignora os problemas colocados ao livre-arbítrio por pensadores como Espinosa ou Nietzsche.
50
cessa de tentar refazer uma suposta unidade perdida,25 ou, quando avaliadas
instituições sociais, a indicação – como limitadores ou esvaziadores de
qualquer possibilidade de ação imediata – do comportamento dos políticos,
do niilismo da juventude, da desesperança perante um futuro sombrio de
não-trabalho frente ao avanço tecnológico, parecem estar penetrados da
nostalgia de um passado idealizado, construído com matérias de sonho, que
se assemelha à idealização da infância como um estado perdido de inocência
e felicidade. As projeções de um porvir balizado por essa idealização, e que
só se realizará caso tais e tais medidas forem tomadas, parecem deixar pouco
espaço para as ações do presente, para a experiência dos acontecimentos do
mundo e seus devires (vivemos uma “progressiva atrofia da experiência”,
como já havia indicado Benjamin [1975b: 37] nos primeiros anos do século
XX). Discursos que encontram na impotência das próprias palavras seu
motor abrem espaço mais para retornos conservadores do que aberturas para
mundos possíveis, quando não acabam por alimentar e confirmar, mesmo
quando contra seus propósitos, a razão cínica26 dominante no cenário atual.27
25 Como, por exemplo, com o fortalecimento das religiões que prometem a salvação, das
práticas místicas e esotéricas, das terapias espiritualistas e de “energização”, das correntes
naturalistas que investem uma “pureza originária” etc.
26 A razão cínica, analisada pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk em Kritik der zynischen
51
Assim, ao abordarmos o estado de arte da mídia televisiva brasileira
hoje, que, em sua aderência estrita ao mercado é freqüentemente alvo
privilegiado de discursos “humanistas” ou irados sobre a alienação e a
captura dos homens pela banalização da existência que ela promove, é
necessário evitarmos as aspirações à unicidade, à totalização de nossas
opiniões, e nos acercarmos com uma certa delicadeza e ludicidade daquilo
que se nos presenta. Ludicidade que não implica falta de seriedade, mas sim,
muito mais, uma prudência: a de evitarmos sermos capturados pela sedução
das forças reativas tão fortemente presentes na moral de ressentimento e na
razão cínica que permeiam nossa cultura. Para compreender o sentido de sua
eficácia, de seu poder de agenciamento, é necessário procurá-la não só em
Brasil, os artigos do psicanalista Jurandir Freire Costa (que conta, entre suas referências
teóricas, com Sloterdijk e Zizec) publicados em jornais (em São Paulo, na FSP, Mais!) estão,
boa parte deles, pautados numa reiterada explicitação e crítica dessa razão cínica em nosso
cenário sociocultural. A ética e o espelho da cultura (1994), coletânea que reúne artigos
publicados anteriormente em vários jornais, oferece um quadro exemplar dessa sua
produção. Significativa também, a título de exemplo, foi sua polêmica, na transição dos anos
80/90, sobre a “Lei de Gérson” (“o importante é tirar vantagem em tudo”, derivada de uma
campanha publicitária dos cigarros Vila Rica da qual Gérson, jogador de futebol, participou).
Mais recentemente (Morte a crédito, FSP, Mais!, 05.09.1999, 3), Freire Costa estabeleceu uma
relação de responsabilidade e cumplicidade entre os usuários de drogas das classes média e
alta, que supririam seu vazio de existência consumindo-as, e o estado crítico dos assassinatos
cotidianos da população marginal envolvida com o tráfico: “Os primeiros se apegam à vida,
prolongando ‘os prazeres e os dias’, em um ritual regado a sangue de jovens pobres,
tornados ‘bandidos traficantes’; os segundos consomem suas breves existências a serviço do
desvario de quem perdeu a razão de viver. Os ricos empenham as vidas, e os pobres, as
mortes. (...) Moralismo piegas, dirão os porta-vozes da cultura do cinismo, esses mesmos que
tentam ridicularizar qualquer anseio ou iniciativa em prol de um mundo mais justo”. No
cinema nacional, o filme Cronicamente inviável (1999), de Sérgio Bianchi, faz uma breve e
contundente exposição das contradições da razão cínica em nosso país. Felicidade (1998), de
Todd Solondz, de forma mais contundente e corrosiva que o mais bem-sucedido
comercialmente Beleza americana (Mendes, 1999), expõe esse ethos na cultura norte-americana.
Embora possamos questionar o caráter algo culpabilizante dessas abordagens, que nos
devolvem ao limbo dos conflitos morais e de seus impasses, elas não deixam de expor um
estado da cultura de difícil – quando não impossível – ultrapassagem.
27 Esse, aliás, é o efeito produzido tanto por programas televisivos explicitamente
sensacionalistas (o extinto Aqui e Agora, da SBT; Cidade Alerta, da Record, ou Linha Direta, da
Rede Globo, com suas “simulações” dramatizadas), construídos a partir da exposição e
denúncia da violência cotidiana, como por telejornais diários das emissoras, principalmente
quando ocorre algum escândalo social ou político. Expressões como a cunhada pelo
jornalista Bóris Casoy em seu jornal diário (Rede Record), “Isto é uma vergonha”, ao
comentar crises políticas e institucionais, inscrevem-se na ambigüidade desse quadro. Na
PARTE II, CAPÍTULO 4 – FORA-DENTRO, será analisada mais detalhadamente a maneira como
esse efeito se constrói.
52
suas linguagens e proposições, mas também no homem que as acolhe e com
elas constrói seus referentes cotidianos.28Além disso, é sempre interessante
termos em vista que mesmo de quadros que se apresentam como os mais
atrozes nos é possível retirar momentos muitas vezes criativos que escapam à
“degradação geral”, e, mesmo desta, reconhecer alguns efeitos integradores
para aqueles que dela participam.29
Para isso, é necessário que operemos tanto um recuo para um
momento “pré-ciências humanas” como um avanço para outro, “pós-ciências
humanas” (considerando, seguindo Foucault [s/d], que as Ciências
Humanas, acompanhadas pela moral que prescreve valores e normas
garantidores do funcionamento das sociedades fundadas na homogênese
[ver PARTE II, CAPÍTULO 3 - FORA], resistem ainda como portadoras de uma
concepção prévia, relativamente fechada e consolidada, embora recente e
finita, sobre “o que somos”).
Não deixo de estar na tensão entre esse “pré” e esse “pós” – que
anuncia uma dissolução dos pressupostos das Ciências Humanas que
constituem meu próprio campo de atividade –, ao acompanhar as margens
do que, em nossa cultura, se reconhece como “humano”; nessas margens,
28 É freqüente, por exemplo, que alguns setores mais informados e cultos da sociedade
reconheçam e apoiem as lutas pelos direitos humanos dos excluídos e dos marginais;
entretanto, também com freqüência, basta que se estabeleça uma relação de maior
proximidade com esses excluídos, proximidade que vai da simples circunstância de ter de
compartilhar com eles os mesmos espaços públicos - o das ruas, o das filas, ou o “espaço
público mediático”... - até a situação extrema de ver-se envolvido em um corpo a corpo
violento com um deles - um assalto, um seqüestro... - para que essas forças reativas se
manifestem, desfazendo os discursos das belas almas. Uma outra posição, não menos pior e
tampouco rara, pode derivar da estrita "defesa dos excluídos": a de colocar, de antemão, todo
e qualquer "garantido" sob suspeita.
29 Contra a opinião relativamente generalizada de que pouco podemos esperar da televisão
comercial de rede aberta, insurge-se Arlindo Machado com seu A televisão levada a sério
(2000), assim como artigos publicados por Gabriel Priolli e por Renato Janine Ribeiro, entre
outros, na coluna semanal de crítica no caderno Telejornal, do OESP, que, volta e meia,
abordando telenovelas e programas populares, indicam seu papel mobilizador de algumas
transformações expressivas dos costumes e das mentalidades, na medida em que, ao propor
temas polêmicos como homossexualidade, racismo, aborto etc., produzem algumas
flexibilizações das atitudes, dos valores e opiniões, já pelo simples fato de abri-los ao debate.
Enfim, não é só da alienação e da manipulação de seu público que a mídia televisiva se
sustenta, como muitos pretendem fazer crer.
53
nesses limites, o que busco é sempre o plano30 no qual os conceitos que
alimentam minhas referências buscam sua consistência. Esse plano – um
plano de imanência (Deleuze & Guattari, 1992: 49–79) –, no qual os
componentes que o organizam são postos em conexão por relações de
proximidade ou vizinhança, é o que indico, aqui, de maneira mais
apropriada para os propósitos deste trabalho, como plano diagramático.
FUNDAMENTOS DO
PLANO DIAGRAMÁTICO
A concepção mais corrente e dominante que se tem do homem é a de
um indivíduo que, posto em interação com o meio, faz suas escolhas,
constrói seus sonhos, projeta sua vida de uma maneira que tende ora à
adaptação, ora ao conflito com esse meio, resultando desses movimentos seu
maior ou menor sucesso na existência. Se caminharmos pela concepção
sociológica durkheimiana, poderíamos pensar que o homem, na medida em
que nasce em um meio que lhe pré-existe, tem como melhor opção o esforço
por buscar nele suas melhores condições de existência, procurando adaptar-
se ao ethos do mundo que o acolhe.31 Sabemos que Durkheim (1858-1917)
considerava, como seu objeto privilegiado, as grandes representações
coletivas, binárias, sobrecodificadas, o que, em suma, nos levaria a tomar
como critério para a abordagem do homem, unificado e totalizado como
indivíduo, pensá-lo como necessariamente depositário dessas representações e
30 Escolho aqui trabalhar com planos, e não com campos. Entendo que um campo é constituído
por vários planos, cada um com seu nível de intensidade e consistência. Assim, um campo –
por exemplo, o campo comunicacional – se constitui e se organiza no entrecruzamento e/ou
sobreposição de planos que, embora diversos quanto ao seu grau de participação em sua
construção, sempre que alterados, determinam alterações nesse campo. Mais ainda: todo
plano em processo de constituição intervém na dinâmica dos demais planos que organizam
um campo. É dessa maneira que podemos não só entender a mutabilidade social como
desenhar, dessa mutabilidade, uma cartografia.
31 Refiro-me genericamente, sem recorrer diretamente aos seus textos, a Durkheim como um
dos mais influentes pensadores do saber sociológico que privilegia a idéia de normal, de
normatividade como “maior freqüência estatística de um dado fenômeno no campo social”.
54
sobrecodificações, compreendendo estatisticamente sua normatividade,
assim como a decorrente necessidade de regulação, exclusão ou
marginalização dos desvios apresentados por alguns em relação a essa
normatividade.
Quando nos referimos ao “sujeito possível” da comunicação enquanto
aquele que se faz apto a colocar-se em agenciamento com os fluxos de
imagens e de enunciados que constituem seu campo, vemos que não é outra
a idéia de público ou, mais recente, a de audiência – portadora de um gosto e
de uma vontade que, por se expressar em termos de média ou maioria,
estaria expressando uma “identidade” ou pertinência a uma representação
coletiva ou a um modo de funcionamento do social –, da qual nos valemos
quando pensamos os processos de recepção das mensagens produzidas pelos
meios de comunicação de massa, ou quando definimos públicos-alvo para
determinados produtos.32
Um outro sociólogo, contemporâneo de Durkheim, compreendeu,
entretanto, de outra maneira essas concepções. Gabriel Tarde (1843-1904)
“objeta que las representaciones colectivas suponen lo que hay que explicar,
a saber, ‘la similitud de millones de hombres’. De ahí que Tarde se interesase
más por el mundo del detalle, o de lo infinitesimal: las pequeñas imitaciones,
oposiciones e invenciones, que constituyen toda una materia
subrepresentativa. (...) Los durkheimianos respondieron que eso era
psicologia o interpsicologia, no sociologia. Pero eso sólo es cierto en
apariencia, em una primera aproximación: una microimitación parece ir de
un individuo a otro. Ahora bien, al mismo tiempo, y a un nivel más
profundo, está relacionada com un flujo o una onda, y no con el individuo.
La imitación es la propagación de un flujo; la oposición es la binarización, el
estabelecimiento de una binaridad de los flujos; la invención es una
55
conjugación o una conexión de diversos flujos. Y ¿qué es un flujo según
Tarde? Es creencia o deseo (los dos aspectos de todo agenciamiento), un flujo
siempre es de creencia y de deseo. Las creencias y los deseos son la base de
toda sociedad, porque son flujos, y como tales ‘quantificables’, verdaderas
cantidades sociales, mientras que las sensaciones son cualitativas, y la
representaciones, simples resultantes. La imitación, la oposición, la
invención infinitesimales son, pues, como cuantos de flujos que indican una
propagación, una binarización o una conjugación de creencias y de deseos.
De ahí la importancia de la estadística, a condición de que se ocupe de los máximos, y
no sólo de la zona ‘estacionária’ de las representaciones. Pues, finalmente, la
diferencia no se establece entre lo social y lo individual (o lo interindividual), sino
entre el dominio molar de las representaciones, ya sean colectivas o individuales, y el
dominio molecular de las creencias y de los deseos, en el que la distinción entre lo
social y lo individual carece de sentido, puesto que los flujos ya no son atribuibles a
indivíduos ni sobrecodificables por significantes coletivos [grifo nosso]. Mientras
que las representaciones definen ya grandes conjuntos, o segmentos
determinados en una línea, las creencias y los deseos son flujos expresados
en cuantos, que se crean, se agotan o mutan, y que se suman, se substraen o
se combinan”. (Deleuze & Guattari, 1933 Micropolítica y segmentaridad,
1988: 223).
33
Para maior facilidade de indicação da referência bibliográfica, as obras de Freud citadas
serão indicadas: OC [Obras Completas], seguida da data da edição utilizada + letra e páginas,
conforme ordenado na BIBLIOGRAFIA GERAL.
56
a televisão sem que tenhamos de ceder à tentação de modelos interpretativos
redutores de nosso objeto às representações coletivas que hegemonicamente
seriam determinantes da adesão a este ou aquele conteúdo ou padrão
estético? Ou, ainda, como evitarmos a noção que separa indivíduo e
sociedade, o confronto entre o desejo individual – e suas formações
imaginárias – e as representações apresentadas como coletivas nos debates
correntes, quando o tema é o “gosto do público”? Ou, ainda, como
trabalharmos sem que confundamos, como costuma ocorrer freqüentemente
em nossos discursos, duas noções que não cessam de se alternar, como se
estivessem se referindo a uma mesma instância, que é a de indivíduo e a de
sujeito?34
A composição de um plano diagramático que nos permita movermo-
nos por essas diferenciações/variações é o que procuro ensaiar aqui. Para
desenhá-lo, é necessário comentar com maior detalhe as escolhas conceituais
indicadas mais genericamente até o momento.
57
Tenho procurado sinalizar uma escolha de pensar a subjetividade em
um registro que seria antecedente e exterior tanto ao de uma psicologia
individual como expressão de uma natureza humana representada em
separação, conflito, oposição ou adaptação em relação ao campo no qual ela
se constitui, quanto como resultante de uma determinação ideológica, que
estabeleceria uma distância entre o que se faz e a “falsa consciência” que se
tem desse fazer (cf. Nota 26). Não se trata de negar, em absoluto, que existam
uma psicologia individual ou um crivo ideológico como determinantes de
nossas ações e de nossas escolhas de vida, mas sim de compreender como
um e outro se constituem e se configuram, tomando-os como resultantes ou
extratos de processos que os excedem e lhes são antecedentes. Como
algumas observações e citações já sugeriram, a subjetividade é abordada aqui
como continuamente produzida num campo conforme condições específicas,
uma produção de natureza industrial (maquínica) que faz da subjetividade
um artifício e não expressão de uma natureza humana que variaria, ainda
que se preservando em seu fundo, conforme as condições materiais e sócio-
históricas de existência. Se há uma natureza humana, teríamos, ao contrário,
de reconhecê-la como pura variação, o que implicaria dizer que não há
natureza pura, só pura diferença, sendo o artifício a diferença nela mesma
(Rolnik, 1989: 34). Esta proposição nos leva à que lhe precede: quando
pensamos o homem em sua posição de desejo, este seria não a expressão de
uma força “natural”, “instintiva” que emerge dele como expressão de sua
natureza, mas a própria construção desse artifício, ao mesmo tempo
energético (produção de intensidades) e semiótico (produção de sentidos). O
desejo é assim a própria criação de mundo, de real social e, o que somos
(nossa “identidade”), o território (de um finito ilimitado) que resulta dessa
criação. É dessa perspectiva que procuro compreender, de um lado, a
subjetividade como modelizada por n dispositivos sociotécnicos e, de outro,
sua mutabilidade, em cujo limite encontramo-nos com as estratégias de
singularização, para além das malhas de poder constituídas por esses
58
dispositivos. Para compreender o que isso significa, e como ocorre essa
produção, é necessário, entretanto, especificar primeiro do que se trata
quando falamos de subjetividade.
Não busco essa especificidade na Psicologia ou na Psicanálise, mas
sim entre os que tenho identificado como pensadores do Fora. Embora Freud
tenha sido o primeiro a construir uma estratégia para se trabalhar com o
Fora, ao “descobrir” (seria melhor dizer “inventar”) o inconsciente como
instância individual, inscrevendo-o em uma topologia (id [es ⇒ isso], ego [Ich
⇒ eu] e superego [Über-Ich ⇒ sobre-eu ou para-além-do-eu]35), para os
propósitos deste trabalho a via que escolho parece-me mais produtiva e
preserva-me de imprimir em minhas leituras uma direção que caminharia,
quase que inevitavelmente, para uma redução psicologizante. Assim,
procurarei seguir Deleuze (1988b) e ao diagrama que ele propõe, derivando-o
do pensamento de Foucault36 que, como vimos, indicou ser o homem, tal
como o pensamos, uma invenção ainda recente que estaria já em vias de
desaparição. “O homem tal como o pensamos”, é importante reiterar, seja
como um ser com sua consciência, com sua psicologia, com sua identidade,
com suas características individuais e seus valores que faz suas escolhas
conforme lhe permitem sua liberdade e seu conhecimento do mundo que o
cerca (o homem como ser de razão), seja como susceptível de ser atravessado
35 As expressões entre colchetes indicam a maneira como utilizo esses termos aqui, mais fiéis
à língua de Freud, o alemão; uma escolha cujas razões serão especificadas no decorrer do
trabalho.
36 Um diagrama, portanto, que não foi proposto por Foucault, mas que resulta da leitura que
faz Deleuze de sua obra, acompanhando os três grandes momentos de seu pensamento: a
arqueologia do saber (que caminha da História da loucura, de 1961, até As palavras e as coisas,
de 1966, momento de sua articulação, posteriormente formalizada em A arqueologia do saber,
de 1969) , a genealogia do poder (apresentada em Vigiar e punir, de 1975, e que vai até
História da sexualidade I, A vontade de saber, de 1976), a subjetivação (em História da
sexualidade III, O cuidado de si, de 1984). Como observa Pelbart (1989: 129), “muitos
foucaultianos chegaram a se perguntar se o livro de Deleuze era mesmo uma análise sobre
Foucault, ou se apenas usava Foucault para trabalhar uma problemática que pertencia,
afinal, ao próprio Deleuze”. Face à densidade da leitura de Deleuze, recorro à síntese mais
simplificada dele feita por Pelbart, cuja problemática principal é a loucura, acrescentando-
lhe meus próprios comentários, de forma a aproximá-lo de minha própria problemática: o
“sujeito” da comunicação, a ser buscado e apreendido no corpo imerso no campo de
visibilidade criado pela mídia televisiva.
59
por determinações inconscientes, conforme a psicanálise nos permite
compreender, derivadas de suas experiências afetivas passadas que se
atualizam no presente sob a forma de manifestações sintomáticas ou
formações identitárias. O que não implica dizer que estas formas de
apreensão do homem não sejam possíveis ou não indiquem determinações
de ações e de construções imaginárias, mas apenas que não são eficientes
para a realização do que é proposto aqui.
O Diagrama de Foucault
Na perspectiva desenhada por Foucault no curso de sua obra,
retomada por Deleuze em 1986, dois anos após a morte do filósofo, a
subjetividade seria resultante da complexa articulação de três diferentes
planos: o do Saber, o do Poder e o do Fora. Vejamos, resumidamente, como
Foucault caracteriza cada um desses três planos, para verificarmos depois
como eles se imbricam.
O plano do Saber é formado por duas formas exteriores entre si: o Ver
e o Falar, o visível e o enunciável, a luz e a linguagem. Entre as coisas e as
palavras – entendidas não como referente e significante, como ocorre nas
ciências da linguagem, mas como campo de visibilidade e campo dos
enunciado – não há continuidade, mas sim hiato, heterogeneidade,
irredutibilidade, dessemelhança. Assim, falar não é ver, ver não é falar.
60
é ser falado. E, entretanto, ainda, o limite próprio que separa cada uma é
também o limite comum que relaciona uma à outra e que teria duas faces
assimétricas, fala cega e visão muda. Foucault está singularmente próximo
ao cinema contemporâneo”37 (Deleuze, 1988b: 74).
“cada formação histórica vê e faz ver tudo o que ela pode, em função de suas
condições de visibilidade, da mesma forma que ela diz tudo o que ela pode,
em função de suas condições de enunciação” (Pelbart, 1989: 131).
O Falar, por sua vez, não diz respeito somente às palavras, frases ou
proposições,
37 Os leitores de Deleuze conhecem sua profunda admiração pelo cinema. Esta observação, à
qual ele não dá continuidade no texto sobre Foucault, nos levaria imediatamente às duas
obras que ele produziu a partir do cinema, Imagem-movimento (1985) e Imagem-tempo (1990).
Embora faça muitas referências ao cinema, não cheguei a utilizar essas obras em minhas
leituras, salvo uma ou outra referência, por não ser, o foco deste trabalho, a imagem
cinematográfica, mas sim a relação do corpo com a imagem e os dispositivos técnicos que
permitem sua presentação. A observação, entretanto, não deixa de indicar um caminho para
minhas leituras, quando me dedicar ao campo de visibilidade criado pelo dispositivo
televisivo e o campo de enunciados que ele produz.
61
Há, portanto, também um regime do enunciável, o possível de ser
enunciado em tais e tais condições, de forma que entre o procedimento
enunciativo e o processo da visibilidade, exteriores um ao outro, não há
correspondência, continuidade, causalidade ou simbolização, mas sim
disjunção, guerra, entrelaçamento.
Compreende-se por que estar em um campo de visibilidade e
formular enunciados nesse campo não supõe uma correspondência unívoca
entre as palavras e as coisas. O enunciado jamais contém o visível, nem o
visível sugere o enunciável, mesmo que eles se cruzem, mesmo que se
atravessem como “incisões do discurso na forma das coisas”: palavras que
voam como flechas em direção a um alvo (palavras que ferem), imagens que
caem no meio das palavras e as calam...
O Saber é a combinatória desses dois estratos disjuntivos do Ver e do
Falar, “e a tarefa do arqueólogo foucaultiano será fazer um arquivo
audiovisual desses estratos enquanto formações históricas” (Pelbart, 1989:
132). Deixemos por ora o Saber e vejamos como se constitui o Poder.
Foi indicado um hiato entre o Ver e o Falar, uma exterioridade aos
campos da visibilidade e dos enunciados, traduzida em disjunções, guerras,
entrelaçamentos. Essa exterioridade é um intervalo efetivo entre os dois campos,
um não-lugar (um entre-estratos), espaço de atualização das relações de força. É
nesse não-lugar que se aloja o diagrama do Poder. Diagrama que deve ser
entendido como um conjunto de relações de força que impõe aos dispositivos
concretos existentes em um campo de visibilidade modos determinados de
funcionamento, ao mesmo tempo exterior e imanente a eles.
Para uma melhor compreensão dessa imanência, vejamos como ela é
pensada por Foucault em Vigiar e punir (1977b). É nessa obra que ele
identifica o Panopticon de Bentham como o dispositivo princeps das
sociedades disciplinares. Como projeto arquitetônico das prisões, o
Panopticon é um dispositivo concreto de disciplinarização dos presos: uma
torre de vigia central em torno da qual se distribuem as celas, de uma forma
62
tal que cada preso, em sua cela, seja permanentemente visível a um
observador que ocupe o topo da torre. Como esse observador não pode ser
visto pelos presos em suas celas, a própria torre passa a ter uma função
disciplinar. Para além desse dispositivo concreto, o Panopticon é um modo
de funcionamento do poder, uma máquina abstrata que impõe uma conduta x
a uma multiplicidade humana y, determinando visibilidades na prisão, na
escola, no hospital, na fábrica, objetivando a disciplinarização dos corpos. O
que temos portanto são formas de organização do espaço e regulação dos
modos de agir e estabelecer relações com o outro nesse espaço. Ao mesmo
tempo, essa máquina atravessa o campo dos enunciados (do que é
enunciável em determinado campo de visibilidade), constituindo-se como
uma estratégia exterior aos estratos do saber, mas imanentes a eles, pois essa
estratégia só existe como efetiva na medida em que é atualizada nas formas
do saber segundo as duas formas disjuntivas de Ver e Falar. Hoje, com o
desenvolvimento tecnológico, os dispositivos, embora derivem desse modelo
disciplinar, são outros e mais sofisticados: a senha de acesso; o controle dos
fluxos de circulação de pessoas por câmeras e instrumentos de
reconhecimento de voz; a investigação genética que se configura como um
biopoder; a homogeneização mediática etc., como nos indica Deleuze (Post
Scriptum sobre as sociedades de controle, 1992).
O Poder, assim, como estratégia, como conjunto de relações de forças,
é o exercício do não estratificado sobre as estratificações, distinto mas
pressuposto nelas: “Ver e Falar já estão sempre tomados nas relações de
Poder que eles supõem e atualizam”. Não nos é difícil concluir, dessa
condição do Poder como estratégia, que o diagrama, em si, é instável, sendo
as formações estratificadas que lhe dão a estabilidade, pois relações de força
são sempre móveis e efêmeras. Podemos compreender, assim, que a
cristalização das instituições, sua sustentação sob formas de poder que se
personificam e se hierarquizam (embora não se possua um poder, pois o
poder é o que se exerce – sendo o poder de afetar uma função da força –, ele
63
se encarna nas formas concretas do saber, das quais as instituições são os
meios: educar, corrigir, treinar...), assegurando o domínio e controle do
estratificado sobre o não-estratificado, são formas de estabilização/
cristalização das relações de forças. O Poder deixa, enquanto entificado, de
ser um não-lugar para configurar-se ele próprio como lugar(es)
irredutível(is) em um campo da visibilidade. Poderíamos pensar que sua
espetacularização, suas formas de ritualização e afirmação ostensiva, o
esforço de redução das linguagens e da significação a determinantes comuns
e hegemônicos, como os promovidos pela mídia, atendem aos esforços de
manutenção do Poder – em si, como diagrama, instável – estabilizado em
uma posição irredutível.
Resta-nos o Fora, tal como pensado por Foucault. Se o Poder é o
conjunto das relações de força num exterior, o Fora é o para além do exterior,
o exterior absoluto habitado por forças nômades, em relação às quais tenta-se
produzir barreiras protetoras. O Fora é assim o não-estratificado, o sem
forma, o espaço do devir e das forças nômades e selvagens, de onde surgem
os diagramas.
64
inconsciente freudiano (o Dentro) aos fluxos de crenças e desejos que
atravessam o social (o Fora), como formulado por Tarde.
Como foi dito acima, a subjetividade é a articulação complexa desses
três planos. Antes de apresentarmos como se dá essa articulação, cabe aqui
uma observação sobre o movimento da obra de Foucault. Apesar de ter
investigado, em História da loucura, a maneira como se construiu o saber
psiquiátrico sobre a loucura, paralelamente às condições sociais e jurídicas
que determinaram o confinamento dos loucos a partir do século XVII, o
objeto de Foucault, nesse momento, era o saber, não a subjetividade. Ao
anunciar, polemicamente, a “morte do homem”, o que fez, efetivamente, foi
situar-se à distância do humanismo e de seu objeto, o sujeito, perguntando
pelo que determinou, na história do pensamento, que o homem fosse erigido
a essa condição de objeto de investigação e intervenção, de forma a se
produzir sobre ele um saber. Foi, assim, de sua pergunta pelo saber que
Foucault construiu sua investigação sobre como ele se articula, qual sua
episteme, fazendo-a confluir para o nascimento das Ciências Humanas como
“produção de saber sobre o homem”, exposto no final de sua obra As palavras
e as coisas, de 1966. Aparentemente, Foucault fechava, nessa obra, seu campo
de investigação, tanto que A arqueologia do saber, de 1969, consistia,
basicamente, numa formalização dessas idéias. É desse impasse que, em
seguida, pergunta pelo poder em seu enlace com o saber, propondo sua
genealogia em Vigiar e punir, de 1975. Foucault só irá trabalhar os modos de
subjetivação em sua última obra, O cuidado de si, de 1984. Até A vontade de
saber, de 1976, o que ele investiga são ainda as formas do poder e suas
relações com o saber, perguntando, nessa obra, pela maneira como elas
incidem sobre a sexualidade e a produzem ao produzir sobre ela uma
discursividade, um saber sobre o sexo e suas práticas. Um de seus alvos de
combate, nessa obra, pelo menos como ponto de partida, é a psicanálise e sua
hipótese repressiva da sexualidade como condição de nascimento da cultura.
Ao demonstrar que a sexualidade, longe de ser reprimida pela ordem da
65
cultura, é incitada a se produzir de determinada forma pela trama de
discursos que a configuram desta e daquela maneira, chega a um outro
impasse, mergulhando em um silêncio que dura oito anos. Um impasse
compreensível: desde as grandes transformações dos costumes dos anos 60, a
sexualidade estivera na base dos movimentos de liberação. A hipótese
“produtiva” formulada por Foucault, no lugar da repressiva, indicava,
entretanto, que a sexualidade, agora “liberada”, não deixara, por isso, de
constituir-se nas malhas do saber e do poder. Em 1984, pouco antes de sua
trágica morte, e após 8 anos de silêncio 38 publica O uso dos prazeres e O
cuidado de si, que, bastante distintos do primeiro volume, escapam de seu
projeto inicial, ao iniciar a escrita de História da sexualidade ainda nos registros
do saber e do poder.39 Comentando a obra de Foucault e o livro que escreveu
sobre ele, Deleuze indica o quanto ela caminhou não em progresso, mas por
crises e rupturas:
38 “O que aconteceu durante o silêncio bastante longo que se seguiu a A vontade de saber?
Talvez Foucault tenha percebido um certo equívoco ligado a esse livro: não estava ele preso
nas relações de poder? Ele faz, a si mesmo, a seguinte objeção: ‘Aqui estamos, como sempre
incapazes de ultrapassar a linha, de passar para o outro lado... Sempre a mesma escolha, do
lado do poder, do que ele diz ou faz dizer...’ (Deleuze, 1988: 101).
39 É oportuno lembrar que, em 1984, o sonho dos anos 60/70 que indicara a liberdade sexual
como estratégia de se furtar ao poder já mostrara claramente suas fissuras, com a “liberação” já
plenamente reapropriada pelas tramas do saber e do poder dominantes. Nessa época, já muito
pouco de “revolucionário” ou “libertário” podia ser reconhecido nas expressões correntes de um
sexo “livre de repressões”, o que quer que isso possa significar. Anteriormente, Lacan indicara,
em seus seminários, que os corpos “liberados” dos anos 60/70 não passavam de atualizações da
histeria do século XIX: em vez de falar pelo sintoma o impossível de ser enunciado, o corpo
passara a falar pelo sexo. Além disso, já no início dos anos 80, a descoberta do vírus da aids
começava a gerar pânico e abria espaço para uma retomada moralizante nos discursos sobre o
sexo. Retomarei a problemática da “liberação” em outros momentos deste trabalho, de forma a ir
tecendo as necessárias aproximações às formas insistentes de visibilização e de enunciação do
sexual na atual programação televisiva.
66
saber, e o que o força a descobrir os ‘modos de subjetivação’ fora das malhas
do poder” (Deleuze, Rachar as coisas, rachar as palavras, 1992: 105-106).
40 Essa obra resultou de uma série de conferências proferidas em 1973, na PUC do Rio de
Janeiro. Reconhece-se, em sua fala, o movimento que já o leva para a genealogia do poder.
Voltando-se para os gregos, .propõe, por exemplo, uma leitura do Édipo que se contrapõe à
leitura feita por Freud, demonstrando que, na tragédia Édipo-Rei, trata-se da imbricação
entre poder e desejo de saber, e não, como lera Freud, do desejo tal como vivido na novela
familiar (desejo incestuoso pela mãe e desejo de assassinato do pai, que barraria sua
satisfação). Sua leitura, de certa forma, desautoriza essa atualização da tragédia no viés
interpretativo proposto por Freud.
67
recentes da história do Ocidente: os séculos XVII, XVIII e XIX. Em O cuidado de
si, volta-se consistentemente para os gregos, descobrindo neles a invenção da
subjetivação como “estilística de existência”.41 Uma subjetividade-artista,
podemos dizer, bastante diversa da subjetividade conforme pensada pela razão,
centrada na polarização subjetivo/objetivo, que é, de uma maneira ou outra,
cultivada pelas psicologias, o que acaba por estabelecer a direção adaptativa que
elas tomam, de efeitos “invalidadores” da expressão singular, já que, dessa
perspectiva, tornam-se impotentes para seu reconhecimento.
Vejamos, finalmente, de que maneira Foucault situa a subjetivação na
articulação dos três planos. Para melhor compreensão e visualização dessa
articulação, reproduzo na seqüência o diagrama gráfico proposto por
Deleuze, ao qual nomeou “diagrama de Foucault” (Deleuze, 1988b: 128).
41 A expressão “estilística (ou “estética”) da existência” tem se tornado comum entre alguns
autores voltados para o debate da subjetividade contemporânea, principalmente aqueles
que, de uma forma ou outra, acompanharam com amorosa dedicação esse trabalho final de
Foucault (1984b). No Brasil, encontramos a expressão em Joel Birman (2000; 2001); Jurandir
Freire Costa (Tempo Social, 7(1-2), 1995: 121-138); Suely Rolnik (Uma insólita viagem à
subjetividade: fronteiras com a ética e a cultura. In LINS, 1997b. p. 25-34.); Roberto Machado
(2000), entre outros. Birman propõe, em sua releitura da psicanálise contemporânea (Birman,
2000) e em sua aproximação da psicanálise à obra de Foucault (Birman, 2001), que a prática
psicanalítica poderá sustentar sua atualidade na medida em que se tornar competente e se
flexibilizar para reencontrar as formas de expressão das manifestações psíquicas
anteriormente circunscritas em quadros sintomáticos (neuroses, histeria, psicose etc.) como
vias de construção de estilísticas da existência e não mais, em estrita aderência ao texto
freudiano, como sintomatologias. Com essa expressão, que envolve o “cuidado e o saber de
si”, no sentido de trabalho consigo mesmo em busca de excelenciação, trata-se de tomar a
vida como obra de arte, buscando reconhecer, da existência, as estratégias de singularização
(Rolnik & Guattari, 1986) que permitem uma positividade na práxis do viver. Um percurso
que encontramos já nos pré-socráticos, por exemplo em Epicuro (Gual & Acosta, 1974), e que
irá constituir-se progressivamente – acompanhando os movimentos da desrazão para sua
sujeição, pela racionalidade, no enclausuramento da loucura – como campo problemático
com Espinosa, Sade, Nietzsche e, posteriormente, com Foucault. Essa perspectiva ético-
estética aproxima-se da formulada por Michel Onfray em A escultura de si; a moral estética
(1995), de inspiração nietzscheana. Embora sendo outra a perspectiva do biólogo Humberto
Maturana, seu conceito de autopoiesis e suas proposições éticas derivadas da compreensão do
organismo vivo encontram-se com as estratégias de singularização desses demais autores,
ou com as vozes de auto-referência de Felix Guattari (1992), como procurarei articular no
desenvolvimento deste trabalho.
68
1 1
2 2
3 4 3
42Ignorar essa bifurcação implica considerar que o que é visto e o que é enunciado sobre o
que é visto estabelece-se numa relação de correspondência, efetuando-se uma imbricação
saber e poder como formação de sistemas unívocos de verdade.
69
força para dentro da fissura, separando, nos estratos, as visibilidades e os
enunciados. A subjetividade é assim definida como
“os gregos teriam inventado o sujeito dobrando o Fora, curvando a força sem
que ela deixasse de ser força. Eles a trouxeram para si. A existência estética, o
cuidado de si, a regra facultativa do homem livre, tudo isso que Foucault
analisa em seus últimos livros, trata da mesma questão: da relação de forças
consigo, do poder de se afetar a si mesmo, do afeto de si para si (no sentido
espinosano) (...) Assim, o sujeito do qual falamos é um recurvamento sobre si
da força solta e nômade, e que se cristaliza numa dobra” (Pelbart, 1989: 135-
136).
70
enquanto as forças referem-se ao não-estratificado, ao que é, ainda sem
forma, exterior aos estratos. A forma, como diferenciação, poderíamos dizer,
resulta ou está na própria dobra, mas a força é o próprio recurvar, o próprio
criar a dobra. Trata-se, aqui, da força como um poder de ser afetado, de uma
sensibilidade.
Se a subjetivação se constitui do fazer recurvar sobre si as forças, do
fazer passar por si as forças, numa relação de si para si, podemos
compreender por que não podemos derivar a subjetividade de uma
“natureza” humana (por exemplo, do fato de ser o homem, por definição, um
animal racional – por uma maior especialização do cérebro, por exemplo,
quando o colocamos em comparação com os demais seres vivos e, por isso,
capaz de produzir cultura – ou, como propõem as religiões, por ter uma alma
que o distinguiria das demais espécies...). Mais: não sendo um “dado
natural”, único e comum a todos,43 a subjetividade não se constitui
“naturalmente”, mas de um esforço, de uma violência necessária – como
vontade de potência, assim a entende Nietzsche – no dobrar sobre si as
forças; é nesse sentido que não podemos falar em uma natureza humana que
varia (de pessoa a pessoa, o que justificaria as diferenças psicológicas entre
um e outro, como variações em torno de uma mesma natureza), mas sim
dessa própria natureza como uma pura variação (da relação de si para si). A
possibilidade de pensarmos a diversidade humana, as múltiplas formas de
expressão subjetiva encontra nessa maneira como se dobra o Fora um ponto
de articulação. Na subjetivação, trata-se, ,diz Deleuze,
43Comum, no sentido de semiotizável de uma mesma forma, como, por exemplo, às vezes é
sugerido para se definir a prática comunicacional: comunicar como tornar “comum”
determinadas representações, tornando-as assimiláveis objetivamente por um determinado
conjunto humano que compartilharia valores e formas de apreensão do mundo semelhantes.
Representações que, com a globalização entendida como princípio único, seriam
virtualmente estendidas, assimiláveis em sua similitude, a toda a humanidade.
71
modos de existência, segundo regras facultativas, capazes de resistir ao
poder bem como se furtar ao saber, mesmo se o saber tenta penetrá-los e o
poder tenta apropriar-se deles. Mas os modos de existência ou possibilidades
de vida não cessam de se recriar, e surgem novos” (Deleuze, Rachar as
coisas, rachar as palavras, 1992: 116).
Esse sujeito que se constitui pela dobra do Fora não fala mais pelos
outros, ou em nome dos outros, ou a partir de valores universais, ou das
instituições, e sim em nome de sua própria competência e situação. O que
não quer dizer que se trata de falar em próprio nome, na primeira pessoa do
singular, mas sim da possibilidade de nomear as potências impessoais, físicas
e mentais com as quais nos deparamos, enfrentamos e combatemos, e das
quais só nos damos conta no meio do combate. Um combate, é necessário
frisar, que se estabelece com as forças do Fora. Ao desenhar dessa forma o
sujeito, ou melhor, o si, Foucault nos indica, ao mesmo tempo, o que é e como
se dá o pensamento, colocando-o ao lado da subjetivação, como uma espécie
de duplo da dobra, logo, como também se constituindo nesse mesmo
movimento de relação com o Fora no qual se constitui a subjetividade.44
44Colocar o pensamento do lado da subjetivação implica uma ruptura radical com a maneira
como a tradição “localiza” o pensamento: como atividade da razão objetiva que deve
superar os entraves da apreensão subjetiva – imaginária – da realidade. Essa ruptura será
melhor compreendida mais à frente, com Espinosa.
72
Há entretanto, um risco. Estabelecer uma relação com o Fora é sempre
uma forma de remodelar a subjetividade e abrir o pensamento, a um só tempo.
É nesse limite que nos expomos ao colapso da invaginação: a loucura. Algo que
o senso comum apreende, de alguma forma, ao se referir àquele que
enlouquece: “Pensou demais, entrou em órbita, foi para o espaço, pirou45”.
45 No dicionário Aurélio, pirar, de origem cigana, significa “fugir, dar o fora, sair para fora”.
73
panóptico; sentir-se um número, controlado, planejado, manipulado sugere a
incorporação de um plano rizomático tornado pestilento, que pulveriza e
multiplica as formas de controle, como, por exemplo, as possibilitadas pelas
redes informáticas. Claro que, como o plano do Poder é a zona estratégica
das relações de forças, um espaço de combate, dificilmente se incorpora um
diagrama puro (há diagramas perversos, despóticos, disciplinares...). Pode-
se, por exemplo, passar de um estado persecutório (ser vigiado) para um
estado despótico (vigiar, controlar, submeter), como ocorre em muitos
delírios de conteúdo político que acometem o sujeito na loucura. No plano
do Saber, com a dissolução do dique subjetivo que separava os estratos em
visibilidades e enunciados, o que era um espaço de guerra, entre-choques,
entrelaçamentos, passa a ser de mútua diluição: as palavras viram coisas,
corpos, matéria sonora; os objetos viram signos, a disposição dos objetos
num espaço pode se configurar como um enunciado persecutório. A
desarticulação do campo da visibilidade, que comportava complexos
multissensoriais, mistura-se com sons, palavras, frases, pode tornar-se
anímico.46 Artaud (1984), por exemplo, que decompunha as palavras até só
restar delas fragmentos ruidosos, reivindicava, em sua fala poética e sua
subversão estética (mas também em sua desrazão/loucura), uma palavra que
fosse física, que se efetuasse em profundidade nos corpos, que não planasse
só na superfície fluida e imaterial do sentido, uma densidade, enfim, que
superasse o hiato entre Ver e Falar. Muitas das criações poéticas
contemporâneas evocam, em sua busca da palavra sensível, da matéria
sonora, essa dimensão da loucura em que as formas dos estratos se diluem.
Se a loucura irrompe na diluição do hiato, da zona intermediária entre
Ver e Falar, pensar é, por sua vez, instalar-se nesse interstício, nessa
disjunção, de forma a inventar, no cruzamento entre um estrato (o Saber), um
46Como, por exemplo, é investido em ficções cinematográficas de terror, nos quais os objetos
ganham vida, “agem” intencionalmente, obedecem a comandos verbais ou os emitem, isto é,
passam a existir no plano dos enunciados e não mais das coisas, constituindo-se como
duplos ficcionais de formas de delírio.
74
diagrama (o Poder) e o Fora, um novo entrelaçamento entre Ver e Falar. São
esses novos entrelaçamentos que também não cessam de ser investidos pela
criação literária e artística, em suas múltiplas manifestações (esculturais,
pictóricas, musicais...). Assim, se escrever, pensar, criar formas de expressão
artística pertencem, como duplicações das dobras, às estratégias de
singularização, elas não deixam de ser, ao mesmo tempo, estratégias para
não enlouquecer na relação com o Fora. Como já havia dito Foucault, em um
texto agregado na segunda edição, de 1972, de História da loucura (1978), a
loucura é ausência de obra. Por sua vez, a desrazão confinada na loucura ou
na obra remete aos pensadores do Fora. Nietzsche enlouquecendo ao
suspender a escrita, em viagem por Turim; Sade na prisão, clamando por
papel e tinta para dar curso à sua atividade escritural, estratégia para não
sucumbir à solidão e não consumir-se no ódio aos seus algozes; Schreber
escrevendo seus delírios e buscando sair, pela escrita, da loucura; Ligia Clark
compondo seus objetos relacionais e propondo-os como terapêuticos e
ativadores de um corpo vibrátil sensível às forças do Fora (Rolnik, O corpo
vibrátil de Lígia Clark, FSP, Mais!, 30.04.2000, p. 14-15). Diferença a marcar,
entre Loucura e Desrazão:
75
exige uma implicação maior de si para aceder ao que se propõe, o temor a
tudo o que excede, a aderência a toda e qualquer forma de proposição
identitária – que faz o sucesso dos manuais de auto-ajuda – expressam um
esforço de desintensificação dessas forças não-ligadas, experimentadas como
ameaçadoras e desestabilizantes. “Seja claro, seja simples, seja direto, seja
mais comunicativo, seja razoável” – estratégias, aliás, de produção do
“sujeito” da comunicação – são as recomendações que não cessam de se opor
a quaisquer esforços de se estabelecer relações com essas forças, esforços
esses que surgem ao interlocutor como vagos, imprecisos, “viajantes”,
desarrazoados. Poderíamos dizer que pensar e inventar, em vez de serem
ativados pela aparente liberdade atualmente reinante, é representado como
muito perigoso nestes tempos de recomposição acelerada dos diagramas do
Poder, em que as formas de expressão e os referentes identitários conhecidos
se desfazem rapidamente e cedem lugar a outros que, por sua vez, também
terão uma vida muito curta.47 Manter-se continuamente atenta às mutações
desses referentes, ao que é “in” ou “out” em cada momento, é uma das
responsabilidades/serviços que a mídia assume perante seus
receptores/usuários.
Esta é, em linhas muito gerais, a “ficção teórica” de Foucault, que
habilmente Deleuze sintetiza em seu diagrama. Entretanto, se com o
diagrama podemos compreender como se articula a subjetividade, retirando
dele uma primeira compreensão de como se produz o “sujeito possível” da
comunicação, não temos ainda como identificar mais claramente seus
componentes (os afetos, o desejo, as paixões, as forças ativas e reativas que a
47Em Toxicômanos da identidade, Rolnik (in Lins [org.], 1997a. p. 19-24) oferece uma breve
cartografia dessas aderências identitárias invocadas como protetoras em relações às forças
do Fora). Invertendo as leituras mais usuais que se faz, por exemplo, do consumo
contemporâneo de drogas (legais ou ilegais, derivadas da indústria farmacêutica ou do
tráfico), Rolnik mostra que, longe de serem aberturas para o Fora, para o ilimitado, as drogas
funcionam como desintensificações das forças do Fora, como medidas protetoras em relação
ao ilimitado. Ao risco da loucura na relação com o Fora, contrapõem-se pequenas loucuras
artificiais que determinam novas aderências identitárias (as do corpo drogado, por exemplo,
como corpo esquizo-experimental). Voltarei a esta questão na PARTE I, CAPÍTULO 2 – DENTRO-
FORA.
76
habitam), embora o próprio Foucault nos indique alguns caminhos. Não é
fortuito, por exemplo, que Foucault chegue à subjetivação ao se ocupar da
sexualidade e que, para pensá-la, não lhe tenha sido suficiente limitar-se aos
movimentos da Modernidade, como fizera em relação ao Saber e ao Poder,
obrigando-se a um recuo até os gregos. Também não é fortuito que, para
pensar a genealogia do Poder, em Vigiar e punir, ele inicie com o momento
em que entram em declínio, como estratégias de visibilização do poder (não
como diagrama, mas pelos meios de exercê-lo), as formas de suplício dos
corpos em praça pública.48 Foucault apresenta um poder que
progressivamente deixa de visibilizar-se pela ação direta sobre os corpos sob
os olhos da multidão, característico das sociedades de soberania, e caminha,
numa longa mutação, para sua disciplinarização (da violência real e direta
para uma violência simbólica), colocando-os em campos de visibilidade
conforme determinados regimes de luz – definidores, por sua vez, nas
relações claro-escuro, dos limites entre o público e o privado – e submetendo-
os a regimes específicos de enunciados, imbricação que permite produzir um
saber sobre os corpos (médico, psicológico, pedagógico, jurídico...) que os
torna, em princípio, governáveis. Uma disciplinarização racional, diversa,
portanto, das que a antecedem historicamente, que inscreviam os corpos, nas
separações entre mundo sagrado e mundo profano, em estrita obediência a
uma ordem divina, sob outros regimes de luz e de linguagem e conforme
outros diagramas de poder.49
48 Foucault abre seu livro com uma minuciosa descrição do suplício de Damien, um popular
que ousara atacar o rei com uma pequena faca – visando chamar sua atenção para a
existência dos miseráveis –, sendo, por isso, condenado à lenta e supliciante execução
perante os olhos da multidão.
49 Guattari (A produção da subjetividade, in Parente [org.], 1993) mostra que, se a produção
77
Foucault produz um pensamento voltado para a compreensão do
presente em um campo ao qual pertencem Deleuze e muitos outros
pensadores e criadores que se colocaram numa relação com o Fora, alguns
atravessando para a loucura, como Sade, Holderlin, Artaud, Nietzsche,
outros ocupando-se de pensá-los, como Bataille, Klossowski, Blanchot,
Derrida,50, autores que constituem toda uma linhagem marginal e
indeterminada quanto ao pertencimento a escolas e que irão colocar, cada um a
seu modo, o pensamento da desrazão em confronto com o da razão tal como
formulada na Modernidade. Destes autores, Sade, que em sua produção
literária inscreve o sexo no enlace com o poder e a morte, é uma referência
fundamental na construção, por Foucault, da história da loucura e da
arqueologia do saber;51 Nietzsche, pensador das forças e das intensidades, “o
primeiro a aproximar a tarefa filosófica de uma reflexão sobre a linguagem”
(Machado, 2000: 115), fornece-lhe os fundamentos da genealogia do poder. Sade
e Nietzsche são escritores que marcam profundamente também o pensamento
de Bataille e Klossowski, e Nietzsche, principalmente, o de Deleuze. Por essa e
principalmente a partir de suas obras mais recentes, recentemente lançadas no Brasil, Mal de
arquivo; uma impressão freudiana e Estados-de-alma da psicanálise. As idéias contidas nessas obras
foram apresentadas no primeiro encontro dos Estados Gerais da Psicanálise, organizado pelo
psicanalista René Majors em parceria com Derrida e ocorrido em Paris, em 2000 (o nome do
encontro remete à convocação dos Estados Gerais que culminou com a Revolução Burguesa
de 1789). Os psicanalistas brasileiros associados a esse movimento têm participado ativamente
de muitos debates que buscam “resistir ao presente”, como o ocorrido em Porto Alegre
simultaneamente ao encontro de Davos/Suíça no início de 2001, que teve como tema a
globalização. Parte das comunicações e trocas de textos ocorrem via internet (informações
sobre suas produções estão disponíveis no site www.etatsgeneraux.psychanalyse.net/). Os
Estados Gerais abrigam psicanalistas das mais variadas tendências, contrariamente ao que
ocorreu até meados dos anos 90, de relativo fechamento dos grupos em guetos. Nessas obras,
Derrida tem se ocupado das leituras de Freud sobre o problema do Mal, valendo-se de seu
pensamento para debater as formas de violência e crueldade hoje vigentes em todos os lugares
do planeta. O nazismo e o fascismo ainda são as referências que não cessam de retornar nesses
debates (ver PARTE II, CAPÍTULO 3 – FORA).
51 Foucault situa Sade no nascimento do romance moderno, indicando-o como um de seus
marcos, “pelo fato de, em seu projeto de dizer tudo, de transgredir os interditos e ir ao
extremo do possível, ter feito a linguagem repetir exaustivamente, em forma de pastiche
contestador, irônico, profanador, aniquilador, esterilizante, as falas acumuladas, o que foi
dito antes dele, sobretudo pela filosofia do século XVIII, sobre Deus, o homem, a alma, o
corpo, o sexo... com o objetivo de transgredi-lo” (Machado, 2000: 71).
78
outras razões, expostas na seqüência, recorro a eles nesta INTRODUÇÃO,
tomando-os como componentes das balizas teóricas que dão direção às análises
propostas. Para uma melhor compreensão das afetações e das paixões que
ocorrem no campo da visibilidade, recorro ainda a Espinosa, de presença
determinante entre os pensadores do Fora, particularmente em Deleuze e na
esquizoanálise por ele proposta com Guattari.
São, portanto, esses pensadores “clássicos” que fornecem os elementos
para uma conceituação necessária à construção do plano diagramático com o
qual procuro cartografar o plano de realidade constituído pela televisão como
dispositivo privilegiado de produção de subjetividade. Optei por apresentá-los
de modo o mais abrangente possível nos limites deste trabalho, principalmente
Espinosa e Sade, mesmo não me valendo de todos os componentes de seu
pensamento aqui expostos para as análises subseqüentes. Dispensar alguns
desses componentes não permitiria uma apreensão minimamente
compreensível dos conceitos que extraio deles. Comentarei Nietzsche mais
brevemente, na medida em que seus principais conceitos estão bastante visíveis
já em Foucault, Deleuze, Guattari, aos quais recorro no desenvolvimento dos
capítulos.
Numa primeira aproximação, podemos dizer que, partindo de uma
positividade do desejo e das paixões - em posição diversa e contrária, portanto,
à de seus contemporâneos - os três procuraram responder, mesmo que por
caminhos radicalmente diversos, a uma inquietação humana fundamental: o
que produz nosso bem, isto é, o que permite que afirmemos nossa potência
de existir e de pensar em ato. Privilegiando as paixões, afetos e desejos
como vias de acesso à razão, contrariamente à idéia da sujeição e controle
daqueles por esta, como é corrente entre os que forneceram os
fundamentos da razão ocidental (como Descartes, para quem “o caminho
é o da ‘purificação da alma’: dos erros, dos sentidos, das paixões” [Matos,
Imagens sem objeto, in Novaes [org.], 2001: 17]), esses três autores
propõem, como um dos planos articuladores de seu pensar, o
79
questionamento das noções normativas de Bem e Mal que dão fundamento
à moral, movendo seu pensamento pelos estratos do Saber e diagramas do
Poder que configuram seu tempo. Foram também os que mais
radicalmente formularam idéias de felicidade e liberdade que podem ser
consistentemente confrontadas com as promovidas pela moral utilitária
derivada, entre outros autores, de Bentham (1974: 7-74), bastante
presentes no ethos contemporâneo voltado para um bem-estar
relativamente “livre de sofrimentos e inquietações morais”,52 que é, como
veremos, reiteradamente afirmado pela mídia em geral.53
Finalmente, por estar discutindo o papel do dispositivo televisivo
brasileiro de rede aberta na modelização das subjetividades em um momento
em que podemos esperar por alterações significativas nos modos de
produção desse dispositivo, a partir da adoção da tecnologia digital na
52 Em Narcisismo em tempos sombrios, Freire Costa (1988: 151-174), como em outros de seus
textos (1989; 1994) faz uma análise dessa construção de um bem-estar “livre de inquietações
morais”.
53 Refiro-me, entre outras manifestações, à espetacularização da política e da notícia e ao fato de
80
transmissão,54 e por pertencer a este tempo polarizado pela globalização e
pelas tecnologias informáticas, não poderia deixar de ter em meu horizonte,
como um dos pólos para o desenvolvimento das análises, os debates
promovidos por Pierre Lévy55 sobre a cibercultura, principalmente os que se
referem à potencialidade democrática das redes informáticas como meio de
comunicação resistente aos monopólios, à homogeneização, à
unidimensionalidade e unidirecionalidade – característicos dos meios de
comunicação de massa dominantes – e às possibilidades de invenção de
novas formas de sensibilidade e de socialidade que colocariam em nosso
horizonte a possibilidade de “excluir a exclusão”,56 e não, como ocorre hoje,
54 O que irá, inevitavelmente, afetar tanto a grade de programação das redes como os modos
usuais de recepção, alterando conseqüentemente a maneira como ocorre hoje a luta
concorrencial pela audiência (Vieira, A repetição nos programas televisuais, Líbero, Ano III,
vol. 3, no.6: 82; Machado, Entrevista com..., Novos Olhares, Ano II, no. 5, 2000: 22-30)
55 Dos pensadores da cibercultura, Lévy é o que mais consistentemente estabelece
81
pelos mecanismos próprios aos nossos modos de produção e consumo,
“incluir [progressivamente] os excluídos”. Ao ideal de visibilidade panóptica
dos corpos promovido pela mídia televisiva como forma de presentação,
legitimação e inserção social, marcados por um ideal único de felicidade e bem-
estar, a opacidade dos sujeitos usuários da internet, conforme pensada por
Lévy (Lévy & Authier, 1995; Lévy, 1996; 1998; 1999), figura-se como a
invenção de novos espaços de liberdade e, conseqüentemente, de novas e
outras possibilidades de elaboração da experiência e de novas estratégias de
subjetivação. É de Lévy que derivo os componentes finais do plano
diagramático, que serão apresentados na conclusão da PARTE I, CAPÍTULO 2 –
DENTRO-FORA.
Para estabelecer mais claramente a diferença entre os pensadores a
serem comentados e o princípio da razão e da moral utilitária dominantes
em nossos modos de apreensão e produção de realidade, percorrerei
brevemente dois importantes momentos da razão na Modernidade
ocidental.
57A idéia sugerida em 1966 por Foucault (s/d), de uma mutação da noção de homem
prevalecente no decorrer do século XX encontra nessa idéia de “Novo Renascimento” uma
possível direção.
82
medicina, pela indústria farmacêutica, pelas psicoterapias e pela indústria de
entretenimento, como ocorre com a depressão, uma de nossas “doenças fin-de-
siècle”58
83
“A partir do Renascimento, a melancolia torna-se a mais temida de
todas as doenças, por uma peculiaridade: é, segundo Ficino, uma doença da
imaginação [grifo nosso]. Os delírios melancólicos são os mais cruéis e
ultrapassam em intensidade as dores físicas, porque todo o sofrimento é
sentido pela alma, e aumenta quando o agente a toca diretamente, sem a
intermediação do corpo. Não constituindo mais uma ‘blindagem’, a alma fica
entregue ao delírio [grifo nosso]: ‘Ao indivíduo resta (como opinam os
platônicos) o império da fantasia que se esvai ou da fantástica razão no
próprio homem [...], a qual, abalada pelo ódio ou pelo temor, com ela arrasta,
qual longo cortejo, tristes imagens’. (...) Ora, uma fratura irremediável na
harmonia do cosmos (em parte herdada do mundo antigo) ‘passa a ser
reelaborada e reinventada na cultura do Renascimento. No início de nossa
Modernidade se afirma um divórcio trágico entre o homem e a natureza’. (...)
ao longo do itinerário de uma genealogia do sujeito moderno, se encontra
sempre a melancolia.” (O. Matos, Imagens sem objeto, in Novaes [org.], 2001:
17)
84
“A Ciência Moderna, particularmente na expressão cartesiana,
procurará ocultar, e por vezes esquecer, os componentes trágicos dessa
ruptura entre o homem e a natureza, sob o signo de uma ‘metafísica da
separação’. (...) Em Descartes, a intervenção divina, resolvida e exposta no
ato criador, abrirá o espaço a uma razão mundana, cada vez mais poderosa,
sempre mais autônoma, apta a funcionar utilizando a fé como caução, e
encontrando, na relação com a transcendência, a premissa indispensável à
ciência e ao próprio agir. Mas a melancolia, que trabalha com constância – o
mais das vezes clandestinamente – contra a linearidade deste projeto, é um
‘ao revés’ latente, escondido, da razão clássica, um ‘negativo sem função’
que faz obstáculo – por mostrar a sua dimensão efêmera – à ascensão triunfal
do novo saber, da técnica. A tragédia da perda da harmonia com o cosmos, a
tragédia do afastamento e da distância divina – aprofundada e acentuada
pela opacidade da matéria corpórea – deixa na melancolia uma marca
ineludível, encontra na ‘patologia’ atrabiliar um resíduo ameaçador e
resistente (...) A angústia melancólica encontra seu fundamento ontológico
na desarmonia preestabelecida entre a materialidade dos corpos e a imaterial
transcendência da alma. O otimismo da imanência se altera com o
pessimismo da transcendência.” (O. Matos, Imagens sem objeto, in Novaes
[org.], 2001: 19)
85
ordem em seus mecanismos e ordena os movimentos das paixões humanas,
aprisionadas entre o mundo, a experiência vivida e a Razão. Ordenando-lhes
os movimentos e abordando-as como desvios, corrupções e como obstáculos
a seu acesso, a razão dispensa-se de compreender-lhes o fundamento,
ocupando-se de fazê-las retornar ao bom curso do mundo, das normas da
linguagem e das ações razoáveis. Por sua vez, o homem, mergulhado em
suas paixões e movido por elas, constrói e habita um universo imaginário
que só a Razão pode iluminar e libertar. O que ele perde nessa separação –
distanciando-se deles – é, assim, seu olhar e a imagem que este lhe permite
ter do mundo. Dessa imagem, só pode produzir suas representações. As
formas da razão elaboradas a partir daí só farão intensificar essa separação,
marcando a transição da desrazão (ilimitada em sua relação com o Fora) para
a loucura e seu confinamento.
Experimentando sua existência em um mundo gerido conforme esse
modelo – melancólico, aflito, romântico, prisioneiro de formações
imaginárias, caminhando de representação em representação, de conflito em
conflito, de tutela em tutela, com seu desejo sem objeto em um mundo cada
vez mais opaco e técnico que multiplica feericamente suas imagens que ele
olha sem ver, sem fruí-las, sem compreendê-las, alienando-se, assim, da
própria experiência – e aspirando à felicidade, esse é o homem que Freud (OC,
1981), Nietzsche, Benjamin (1975a; 1975b), Marx reencontram na transição do
século XIX para o século XX.
60Como homem do século XIX, é também na tensão prazer/desprazer que Freud inicia e dá
continuidade ao movimento do campo psicanalítico. A afirmação por ele reiterada em
86
normas e a delegação dos problemas relativos à gestão da existência ou da
vida pública às instâncias competentes para legislá-las (“propiciar prazeres e
evitar dores constituem os objetivos que o legislador tem em vista...”
[Bentham, 1974: Cap. IV, 23]) são uma condição necessária,61 sendo que “a
missão dos governantes consiste em promover a felicidade da sociedade,
punindo e recompensando” (Cap. VII, 25).
Em relação à ética privada, argumenta Bentham, a legislação não deve
interferir, salvo quando houver conflito entre esta e aquela:
de “tutela”, é, conforme ele nos indica em sua análise da formação da família burguesa
brasileira no século XIX – que foi ordenada não tanto pela política ou pela polícia, mas muito
mais pela Higiene Pública, construtora, conforme os modelos europeus, dos ideais de corpo
e de civilidade burguesas e, conseqüentemente, dos diferenciais de classe social em um país
que recém-saía da desordem da condição colonial –, tanto um “conforto” como uma
armadilha, na medida em que nos leva a um sentimento de impotência perante problemas
que, se menos dependentes dessa tutela, seríamos mais competentes para resolver. Além
disso, no caso do Brasil, em nome da higiene, da saúde e da boa conduta, exerceu-se um sutil
controle sociopolítico das populações e sua diversidade, designando-se o lugar dos mais
pobres, dos negros, dos índios, dos “caipiras”, dos “paraíbas”, dos libertinos etc. como
inferiores menos por questões explicitamente ideológicas e “racistas” (um dos motivos de
nosso racismo ser mais cordial, menos explícito e violento que o dos norte-americanos, por
exemplo) e mais por seu estado mais “precário” de corpo e de conduta, que demandariam
correção e vigilância. “Educação para todos”, com graus diversos de investimento conforme
o grupo social a que se dirige, mote de todos os governos jamais efetivamente realizado,
legitima essas distinções. Outras negociações derivadas desse controle serão discutidas na
PARTE II, CAPÍTULO 3 – FORA. Uma leitura da construção dessas normas no mundo europeu
foi realizada por Donzelot (1980). A atuação do psicoterapeuta marroquino Mony Elkaïm
(1990; 1998a; 1998b) junto às populações carentes do Bronx e migrantes, que visa restituir
àqueles com quem trabalha a competência de gestão das próprias vidas, propõe, como
principal estratégia, uma quebra das “tutelas” que os mantém fragilizados e que, apesar
disso, eles próprios demandam. As proposições de Lévy caminham também nessa direção.
87
“Quanto à ética geral, a felicidade de um homem dependerá, em
primeiro lugar, daqueles setores de seu comportamento acerca dos quais
ninguém, exceto ele mesmo, tem interesse; em segundo lugar, dependerá
daqueles setores do seu comportamento que possam afetar a felicidade de
outros que o rodeiam” (Cap. XVII, 70).
“em casos em que a pessoa está em perigo, por que não se deveria sancionar
como obrigação de qualquer pessoa salvar uma outra do mal ou do dano,
88
quando isto pode ser feito sem prejudicar a primeira, bem como abster-se de
prejudicar os outros [grifo nosso]?” (Cap. XVII, 74)
89
psicotecnologias atuais, faz eco a essas proposições de Bentham: a utopia Walden
II (“uma ficção científica no campo das ciências sociais”), na qual é acentuado o
contraste entre uma sociedade previamente planejada e a do laissez-faire, com
vistas a mostrar como uma “boa vida” seria possível.64
Para especificar melhor esse tipo de moral com vistas à felicidade
associada à utilidade no contexto brasileiro (associando-a ao “mundo
ordenado” do mecanicismo), e para fazer a passagem aos argumentos
subseqüentes, recorro, como ponto de partida, a um pequeno exemplo
histórico, familiar aos que acompanharam as campanhas de propaganda
governamental dos anos 70 brasileiros.
Trata-se de uma peça de propaganda característica do ideário do
“Brasil Grande”, bastante veiculada, na época, em cartazes, outdoors e
revistas. Em primeiro plano, um homem franzino, operário, portando um
capacete sobre a cabeça, olha para frente “sem ver”. Seu rosto, marcado por
sua condição de homem pobre (magro, sulcado), expressa estupefação: a
boca entreaberta, num sorriso que procura simular-se, os olhos abertos que
parecem nada fixar, como se recebessem a imagem sem, entretanto,
compreendê-la ou assimilá-la. Em segundo plano, um homem jovem, de
aparência saudável, personificando um engenheiro, tem uma das mãos
Elas esperam encontrar um jantar. Descobrem, em vez disso, que está na hora de uma lição
de autocontrole: devem ficar em pé durante cinco minutos diante de uma terrina fumegante
de sopa. A tarefa é aceita como um problema de aritmética. Qualquer reclamação ou
lamentação é uma resposta errada. Em vez disso, as crianças começam logo a se ocupar para
evitar a infelicidade durante a demora. Uma delas pode fazer uma piada a respeito.
Encorajamos o senso de humor como uma boa forma de não tomar um aborrecimento a sério. [grifo
nosso] (...) Outra poderá começar uma canção com muitos versos. As demais juntar-se-ão
sem demora, pois aprenderam que é uma boa maneira de passar o tempo” (Skinner, 1974:
111). Penso que o texto é auto-explicativo: fazer “passar o tempo”, ou sujeitar os corpos à
arbitrariedade da regra, supõe sempre criar condições para fazer da existência algo tão
somente suportável, mas não necessariamente vivível.
90
apoiada no ombro do operário e a outra, braços estendidos, indicando a
direção do olhar, aponta para frente, para o horizonte. Seu olhar é bem
focado, expressa determinação e “visão”: captura a paisagem, fixa-a e mostra
o que é preciso ver. O que a peça ilustra são os dois Brasis daquele momento:
um subdesenvolvido, estagnado em seu presente, o outro projetando-se para
o futuro. Um Brasil que “sabia” qual a direção a ser tomada, outro que
precisava ser guiado e ensinado. Se o olhar do homem jovem parece capturar
a paisagem, tendo-a bem consciente em si, o do outro parece simplesmente
recebê-la, melancolicamente, sem ainda percebê-la bem. Deve, assim,
configurar seu olhar, e, conseqüentemente, sua ação, na direção do que o
outro aponta.
Uma representação notável, capaz de sintetizar não só o projeto
positivista de Ordem e Progresso dos militares em consonância com o
“milagre brasileiro”, mas também as relações entre saber e poder, entre o
dominador que sabe e o dominado que não sabe, mas pode ser ensinado,
desde que siga dócil e obedientemente, sem revolta, os rumos indicados pelo
que sabe. Uma dominação que não expõe qualquer tipo de violência, ao
contrário, que se faz aceitar, passiva e pacificamente, como promessa de um
melhor futuro, de um maior bem-estar, na medida em que a obediência
supõe a possibilidade de um dia poder ocupar uma posição mais próxima
daquele que orienta.65 Uma idéia de direção, de projeto educativo do
governo contra o caos e a favor da ordem, de evitamento de qualquer revolta
ou qualquer crítica por parte daquele que não sabia e devia aprender. Essa
concepção positivista de um projeto de país promovido pelos militares no
poder está presente na maior parte das peças de propaganda governamental
do período66 e surge como cristalização de vários dispositivos institucionais
91
que se aproximam do que Althusser (1976) chamou de “aparelhos
ideológicos de Estado”: no trabalho, ordenando as relações patrão/
empregado; na escola, as relações professor/aluno; no hospital, as relações
médico/paciente; no Estado/sociedade, as relações governante/ governado
etc. O saber justifica o poder e o legitima, tornando-se seu dispositivo
estratégico.
A construção dessa cultura de bem-estar que mimou as classes médias
no decorrer dos anos 70, longe de ter se extinguido com o fim do governo
militar, só fez acentuar-se com a crescente cultura de consumo dos anos
subseqüentes e a progressiva sujeição das esferas da vida privada às regras
do mercado, que traduz felicidade e liberdade como acesso aos bens de
consumo postos à disposição da população (nomeada genericamente como
“consumidores”) e amplamente proclamados e promovidos pelos meios de
comunicação de massa. Nas sociedades de controle que sucedem as
sociedades disciplinares (Deleuze, Post Scriptum sobre as sociedades de
controle, 1992: 219) ou na atual “cultura da vigilância” (Machado, in Novaes
(org.), 2001: 91-108), a posse dos códigos e das senhas de acesso às regras do
mercado passa a ser a garantia da própria inclusão nele. Os programas
televisivos de auditório populares são, em parte, fornecedores/produtores
desses códigos e senhas aos que aspiram a essa inclusão, como veremos na
PARTE II, CAPÍTULO 4 – FORA-DENTRO.
Há algumas questões que podemos propor a essa representação de
duas formas de olhar, uma ativa e outra passiva, que oferece os contornos,
por sua vez, de dois tipos de sujeito e os critérios de verdade dela derivados.
São questões que nos permitem abordá-la, mais que como formações
ideológicas (evocando a infraestrutura e a superestrutura), como modos
correntes de produção de subjetividade que colocam essas duas formas
(ativa/passiva) tanto em oposição e exclusão como em complementaridade.
Elas derivam, em primeiro lugar, da tradição sustentada pela razão e pelas
religiões ocidentais, que se estabelece a partir da relação de determinação e
92
superioridade do espírito sobre o corpo, ou da razão sobre as emoções, ou do
olhar que vê sobre o que percebe, ou da verdade sobre as ilusões, ou do
objetivo sobre o subjetivo, ou da normalidade sobre a loucura, que,
negativizando-as, bem ou mal, legitimam e autorizam as formações de poder
que as regulam. Segundo essa concepção, o espírito, a idéia, o olhar, a
verdade, a objetividade, a normatividade iluminam as sombras do corpo, das
emoções, das sensações, das ilusões, da subjetividade, do desatino e, como
tais, devem dirigi-las, quando não controlá-las e contê-las.
Essas concepções centradas na razão que percebe, reconhece, controla
e supera as emoções e as paixões podem ser compreendidas, como veremos
na seqüência, a partir dos desenvolvimentos da óptica – como teoria da visão
– no século XVII, diversa tanto daquela que dá fundamento ao pensamento
grego como da que lhe é subseqüente, que surge no século X da era cristã,
com a Escolástica, e se estende para a Renascença.
O Conatus Espinosano67
Ora, é exatamente contra essa tradição que se insurge Espinosa (1632-
1677)– o filósofo que era também polidor de lentes e, como homem de seu
tempo, interessado pela óptica –, ao desfazer as relações de subordinação
espírito-corpo, e, mais ainda, a separação Deus-homem-Natureza,68 ou, na
67 O termo “espinosano/a” é utilizado por Chaui (1999) para indicar a expressão do próprio
pensamento do filósofo, suas idéias e seu discurso. “Espinosismo” e “espinosista” são
utilizados, respectivamente, para indicar as críticas e as imagens pejorativas relativas a sua
obra e a referência feita por alguns autores a outros para indicar sua suposta filiação a
Espinosa ou, ainda, para caracterizar sua obra como doutrina. Com exceção de alguns poucos
leitores, quando se fala em Espinosa as referências tendem a passar mais pelo que se
produziu como “espinosismo”, como, por exemplo, a leitura dele feita por Hegel. Sua
identificação ora como panteísta, ora como deísta, ora como ateu, inscrevem-se nessa
tendência.
68 Partindo da formulação Deus sive Natura (Deus, ou seja, Natureza), Espinosa entende o homem
como parte imanente da Natureza “que possui a peculiaridade de não ser apenas parte e sim
capaz de tomar parte na atividade da própria Natureza. [A Natureza] é a expressão imanente de
uma atividade absolutamente infinita ou a Substância, una e única, unidade infinitamente
complexa constituída por infinitos atributos infinitos, isto é, por infinitas ordens de realidade
diferenciadas, unificadas pela potência infinita de autoprodução e de produção de todas as
coisas. Na medida em que a Substância é a unidade imanente e ativa de seus infinitos atributos
93
mesma vertente, sujeito-objeto. Seu pensamento, singular e tributário do
conjunto de acontecimentos que constituem o quadro cultural holandês do
século XVII, com sua efervescência política, religiosa, cultural e mercantil, irá
encontrar um campo fértil de desenvolvimento tanto nos debates teológicos e
políticos propiciados por uma rara liberdade de expressão e de confronto de
idéias presentes nesse momento holandês69 como na óptica kepleriana e na
pintura que ela influencia, como a de Vermeer e a de Rembrandt.
Para melhor dimensionarmos essa revolução do pensamento
espinosano, cuja ética encontra na óptica suas bases geométricas, é
interessante acompanharmos a cuidadosa discussão sobre essa construção
apresentada por Marilena Chaui em A nervura do real (1999),70 na medida em
uma tarefa difícil, para não dizer impossível, já que se pode incorrer em simplificações cujo
efeito seria não apreender a importância de seu pensamento e as razões de sua retomada no
século XX. Por esse motivo, dedico-lhe um segmento bastante extenso. Como sua linguagem
torna-se muitas vezes pouco legível hoje, para esboçar uma exposição, mesmo que em linhas
gerais, recorri à obra Nervura do real (para as bases geométricas de sua filosofia, derivadas da
óptica kepleriana) e ao ensaio “Paixão, ação e liberdade em Espinosa” (FSP, Mais!,
20.08.2000: 15-19, indicado no texto como “Chaui, Paixão...: página”), de Marilena Chaui, que
serão comentados no curso da exposição; ainda como referência, foram selecionados textos
de Cadernos Espinosanos I (1, 2, 3) (1996) e o Tratado de correção do intelecto, do próprio filósofo
(1973: 47-76). A essas leituras soma-se a de Deleuze (1975), à qual recorro na PARTE I,
94
que nos será também útil para uma melhor compreensão dos argumentos
apresentados para o desenvolvimento das leituras do processo perceptivo e
imaginativo do corpo em afetação com a imagem-técnica (prefiro utilizar este
termo, ou imagem-máquina [Parente [org.], 1993] e não o mais corrente
imagem/realidade virtual71) e com outros corpos (PARTE I, CAPÍTULO 2 –
DENTRO-FORA), assim como os fundamentos para sua afirmação do desejo como
potência de produção de real e não só como falta, como carência, do qual não
escapamos quando abordamos o desejo na condição de refém da representação.
Como argumenta Chaui (1999: 47-48), dos gregos até o século X, a
teoria de visão prevalecente estava fundada “na idéia do raio visual emitido
pelo olho, que, com ele, ia até as coisas, apalpava-as, trazia-as para si para
conduzi-las à alma”. Após o século X, ocorre uma modificação na teoria, com
o raio visual emitido pelo olho sendo substituído pelo raio luminoso emitido
pela própria coisa e recebido pelo olho. Ambas as teorias são
geometricamente estabelecidas de modo semelhante, e em ambas são
conhecidas as leis da reflexão, o fenômeno da refração, a construção de
imagens especulares. Ambas, também, consideram o raio como retilíneo,
perpendicular à retina, sem que sofra refração interna no cristalino, afirmando-se
assim a existência de um “raio principal”, responsável pelo centro da visão
ou pela visão correta. Os demais raios, nesse sentido, são entendidos como
obstáculos à boa visão ou responsáveis pelas ilusões visuais.72 Nas duas
concepções, de forma mais decisiva que essas semelhanças geométricas,
CAPÍTULO 2 – DENTRO-FORA. Mesmo com tais cuidados, não pude evitar algumas
simplificações, que, de qualquer forma, não comprometem os propósitos que me levam a
incluí-lo como uma das referências de base para a leitura do estado de arte da mídia
televisiva, que, conforme os argumentos que Espinosa me permite construir, na relação
corpo-técnica-média atua não-somente produzindo representações da realidade, mas a
realidade ela-mesma: “realidades de corpos” e seus correspondentes psíquicos.
71 Para evitar a confusão com o virtual como o formula Lévy, que deriva o termo conforme
seu uso no pensamento medieval, em sua vertente aristotélica: de virtus (virtude) e vis
(força, potência).
72 Quando atualmente se argumenta que a visão periférica é capturável pelos estímulos
subliminares sem que estes passem à consciência, entende-se a visão central como consciente
e a periférica como inconsciente ou subconsciente (cf. Calazans, 1992). Esta concepção,
mesmo que informada pela nova óptica, preserva, em seu viés interpretativo, a concepção do
raio visual retilíneo da óptica grega ou do raio luminoso da óptica do medievo.
95
sempre pesou mais a do raio visual que a do raio luminoso, particularmente
para a idéia de consciência: o raio visual, concebido como um órganon, seria
“um instrumento de que dispõe o olho para sentir o que se encontra fora de
nós, e como um fluxo externo que obedece às leis de propagação da luz”. Nas
duas concepções, ignora-se a função óptica do cristalino, que
96
(48), o que, em última instância, opera um deslocamento do
antropocentrismo que dá suporte ao humanismo renascentista.73
Uma das descobertas de Kepler, ao estudar o dióptrico esférico da
câmara escura, refere-se à distorção visual como característica proeminente
do olho, corrigida ou aumentada com o artifício das lentes. Nas duas teorias
anteriores, afirmava-se que um único raio emanava do olho ou da coisa,
produzindo a visão correta, geometricamente determinada, por não sofrer
nenhuma refração ao penetrar o olho, sendo as ilusões visuais, as deceptio
visus, efeitos de reflexão no exterior (no espelho, por exemplo), ou de
refração (na água, por exemplo). Daí a idéia de que é o homem, capaz de
razão, que, pondo-se em perspectiva em relação ao mundo, o apreende e
evita suas ilusões. Kepler, ao contrário, na medida em que trata o olho como
dispositivo óptico, demonstra que a refração interna é causa da visão correta,
podendo, assim ser alterado o tratamento dado às lentes, que, de produtoras
de ilusão, passam a ser instrumentos físicos para melhorar ou corrigir a visão.74
73 Quando se fala da “revolução copernicana” provocada por Freud, no final do século XIX,
com sua descoberta do inconsciente, o que se procura reiterar é o deslocamento radical que
ele opera em relação a essa idéia do homem como centro, como “ser da razão e da
consciência”. Havendo o inconsciente (um saber do insabido), na perspectiva freudiana o
sujeito passa a ser ex-centrado em relação a si mesmo.
74 Vale perguntar o que produzem, dessa perspectiva posta por Kepler, as lentes das câmeras
97
O que se embaralha com essa nova concepção, ainda segundo Chaui (50), “é
a antiga separação entre o natural (o correto) e o artificial (o distorcido ou
ilusório), ou, em outras palavras, o natural agora distorce e o artificial
corrige, invalidando a distinção clássica entre arte e natureza”. Com isso,
imersão, com a formação de uma espécie de zona intermediária desintensificada entre o olho e
a imagem, o que poderia justificar a maior tolerância do espectador a variações de qualidade
dos produtos televisivos, se comparada à expectativa mais exigente manifestada frente aos
produtos cinematográficos, o que, provavelmente, produz efeitos diversos, como resultantes
da exposição a um ou outro.
75 Chaui (1999: 18) propõe, para a tradução deste título, Tratado da emenda do intelecto
98
homem que se dirige ao mundo com seu olhar, o aproxima de si e o conhece
(o raio visual) quanto da tradição medieval de um raio luminoso que vai das
coisas para o olho e o ilumina (o raio luminoso e a idéia de Deus que ele
carrega, como lux, e sua recepção pelo homem como lumen76), para
compreender um campo luminoso – um campo de visibilidade – no qual
tanto as coisas quanto aquele que as olha constituem-se em um mesmo plano
de imanência (no sentido indicado anteriormente, de desfazer a distinção
sujeito-objeto).
“A luz é o que se deixa ver ao fazer ver: para o pintor, o quadro expõe
a presença daquilo que se deixa ver por si mesmo; para o filósofo, o ser que é
causa de si, e por isso existe de si, em si e por si, é o ser concebido para si
mesmo” (55).
99
“Na teoria do conhecimento, ela significa que Espinosa afasta a
milenar metáfora do conhecimento como iluminação, em que a luz é um
terceiro termo vindo do exterior para ligar o sujeito espectador e o objeto a
ser conhecido, iluminando ambos. (...) Espinosa subverte tanto a noética da
Escola como a teoria cartesiana da verdade enquanto correspondência entre
idéia e ideado. A verdade, demonstra ele, não carece de nada que lhe seja
extrínseco para ser conhecida, porque a idéia verdadeira é norma e índice de
si mesma. (...) Isso significa também que concebe o intelecto humano não
como recipiente da luz do intelecto agente, nem como lugar das idéias inatas,
mas como força inata para o verdadeiro [grifo nosso]. (...) Em nosso intelecto
jamais encontraremos a causa do erro e do falso, e se ele não distorce idéia
nenhuma é porque o intelecto finito é capaz de refletir igualmente todos os
raios luminosos, isto é, de conhecer as coisas exatamente como o intelecto
infinito de Deus as conhece.”
77“Graças à teoria da luz e do olho, Kepler distinguira imagem (imago) e figura (pictura),
considerando a ‘primeira de grandeza diversa e proporção inadequada em relação à figura’,
esta sendo a realidade material e externa apreendida pela mente a partir da pictura projetada
no fundo do olho. Em outras palavras, a imagem é produto da visão segundo as cores, a
posição, a distância e a força do objeto visto; a figura, produto geométrico da luz que, em si
mesma, é geométrica” (Chaui, 1999: 58).
100
contém de falso [grifo nosso]. Em suma, como Kepler, Espinosa afirma a
necessidade, naturalidade e verdade da imago qua imago, desde que a mente
não a confunda com a idea, confusão que é causa do erro e do falso. A
imagem representa os corpos externos segundo as disposições de nosso corpo ao
ser afetado por eles [grifo nosso]; a idéia conhece a essência singular de seu
ideado porque nossa mente, por sua própria força interna, a produz ou
concebe. A imagem indica a potência do olho, a força ou virtude do imaginar; a idéia
exprime a irradiação da luz, o verdadeiro que se manifesta a si mesmo [grifo nosso].
O primeiro é especular (replicatio); a segunda, especulativa (explicatio)”
(Chaui, 1999: 58).
78O que pode ser posto em correspondência com o conceito de autopoiesis de Maturana,
indicado na Nota 41. Mais à frente, nesta INTRODUÇÃO, e na PARTE I, CAPÍTULO 2 – DENTRO-
FORA, o bloqueio a essa processualidade do corpo, que caminha do menos diferenciado para
o mais diferenciado na relação com outros corpos, será retomada para uma compreensão do
corpo como constitutivamente perverso (Sade; Klossowski [1985]; Deleuze [1972]) – o que
permitirá uma melhor apreensão da qualificação dada por Freud do corpo (e da
sexualidade) infantil como “perverso polimorfo” – assim como da dimensão construtiva
101
Vejamos de que maneira tais demonstrações afetam a compreensão da
ação humana e permitem a Espinosa formular sua concepção de felicidade
(alegria) e liberdade, e, em contrapartida, do que causa a infelicidade
(tristeza) e a servidão humanas. 79
Espinosa recorre a um conceito caro aos seiscentistas, o de conatus
(“esforço”), dando-lhe um sentido próprio e original. Afirma que corpo e
alma são conatus, definindo-o, por sua vez, como “esforço para se conservar,
ou perseverar, na existência”. Ao definir corpo e alma como conatus,
Espinosa os toma como potências de existir e agir internamente que são
indestrutíveis, isto é, como vida. Ora, como a essência humana é “corpo e
alma”, ele conclui que nela não pode existir a morte. A morte é o que sempre
vem do exterior, não pertencendo à causalidade interna enquanto conatus.
É enquanto conatus, portanto, que Espinosa formula a idéia de desejo
como potência de existir, agir e pensar em ato: no corpo, o conatus se chama
apetite, e na alma, desejo. Assim, a essência do homem é desejo, consciência do
forças que se forma no encontro dos corpos, cada um deles procurando exercer a própria
força, o que resultaria em um estado de guerra total (homem no estado natural), assim como
com a idéia de que o homem esforça-se por perseverar na existência (conatus, esforço de
autoconservação). Em Hobbes (1979), a regulação desse estado de choque e de guerra dos
corpos, de modo a evitar sua destruição generalizada, demanda um poder maior, Leviatã,
figura que fundamenta e justifica o absolutismo que, contrariamente ao pensamento de seu
tempo, Hobbes faz derivar não do direito divino, mas do próprio pacto social (homem no
estado social, artificial). Não podemos compreender os movimentos do nascimento do Estado
moderno e a idéia de liberdade que o fundamenta – o pacto social assumido em conjunto
pelos cidadãos (aliás, pacto que cria o cidadão) – sem passarmos por Hobbes, apesar de o
Estado moderno ter encontrado não nesse filósofo, mas sim, com maior ênfase, no
liberalismo de Locke sua solução. Espinosa tomará direção diversa da de Hobbes, como
veremos na seqüência. Freud, leitor de Hobbes e Espinosa, irá caminhar mais com o
primeiro do que com o segundo (seu Totem e tabu é hobbesiano: é Hobbes quem lhe fornece a
inspiração para formular o mito do nascimento da cultura e do pacto social como um acordo
entre irmãos após o assassinato do chefe da horda, pacto esse que operaria por
internalização da Lei [interdição do assassinato e do incesto]). Deleuze & Guattari, por sua
vez, em sua leitura crítica da psicanálise, da qual derivam sua proposição de uma
esquizoanálise (1973), caminham mais próximos a Espinosa. Embora um olhar para o estado
atual da humanidade (com ações que, negando o pacto/vínculo social, tendem a uma
crueldade que afirma “o Mal pelo Mal”) nos convide mais a acompanhar Hobbes, as
proposições de Espinosa nos permitem abrir, a esse presente, linhas de fuga, um dos
motores da pragmática esquizoanalítica.
102
que no corpo é apetite. Somos apetite corporal e desejo psíquico. Ora, sendo
expressões de nosso conatus, afecções e afetos
103
“Nosso ser é definido pela intensidade maior ou menor da força para
existir – no caso do corpo, da força maior ou menor para afetar outros corpos e
ser afetado por eles; no caso da alma, da força maior ou menor para pensar. A
variação da intensidade da potência para existir depende da qualidade de
nossos apetites e desejos e, portanto, da maneira como nos relacionamos com
as forças externas, sempre mais numerosas e mais poderosas do que a nossa.
A força do desejo aumenta ou diminui conforme a natureza do desejado, e a
intensidade do desejo aumenta ou diminui conforme este seja ou não
conseguido, havendo ou não satisfação” (Chaui, Paixão...: 17).
104
“a necessidade natural do apetite e do desejo de objetos para sua satisfação, a
força das causas externas maior que do que a nossa e a vida imaginária, que
nos dirige cegamente ao mundo, esperando encontrar satisfação no consumo
e apropriação das imagens das coisas, dos outros e de nós mesmos” (Chaui,
Paixão...: 17).
ações sobre o corpo – disciplina por vigilância, ortopedia, exercícios, ginásticas – visam
docilizá-lo, domesticá-lo, reduzir-lhe as forças que porventura possam resistir ao regramento
e às normas sociais, de forma que sua potência possa ser direcionada para o útil, para o
trabalho e para a obediência (Foucault, 1977b). Teríamos assim um corpo que tem como
condição de sua atividade o fato de ser dócil e, como tal, educável. Um bom exemplo está no
controle da atividade sexual das populações, que, conforme argumenta Foucault (1977a),
visa produzir determinadas formas de expressão da sexualidade, normatizando-as, e não
reprimir sua expressão. Também o controle estrito da atividade sexual do trabalhador
visando “aumentar” sua produtividade – identificado e combatido por Reich em 1920, o que
o levou a formular sua terapêutica, seus modelos teóricos e sua militância centrados na
liberação da sexualidade “natural e saudável” [potência orgástica] como condição para a
105
Ao afirmar que a alma é idéia de seu corpo e idéia de si a partir da
idéia de seu corpo, Espinosa, contrariamente a essa tradição, afirma que a um
corpo passivo corresponde uma alma passiva, a um corpo ativo corresponde uma
alma ativa, não podendo haver, portanto, relação hierárquica entre eles. “A
alma vale e pode o que pode seu corpo, o corpo vale e pode o que vale e
pode sua alma” (Chaui, Paixão...: 18).82
É com essa demonstração que Espinosa contrapõe seus argumentos à
idéia de livre-arbítrio, cara à tradição, entendido como a capacidade da
vontade e da razão para dominar as paixões do corpo, fazendo assim
escolhas entre contrários. Ora, diz ele, a vontade movida pela razão ou por
uma idéia verdadeira nada pode contra uma paixão; só uma paixão mais
forte e contrária pode alterar ou vencer outra paixão. Se a razão e a idéia
verdadeira, por si sós, não vencem uma paixão, o voluntarismo e o
intelectualismo terão de ser reconhecidos em sua impotência no controle das
retirada do homem da miséria emocional que o impedia de lutar por sua liberdade – deriva
dessa concepção corpo passivo/alma ativa, corpo ativo/alma passiva. Nesse quadro, se
podemos indicar um equívoco em Reich, ele estaria em sua concepção da sexualidade como
“natural”, logo, reprimida e não produzida por tramas de discursos, procedimentos e saberes e
as conseqüentes atividades imaginativas que estes agenciam. Ao ir diretamente ao corpo,
trabalhando suas “couraças” musculares que constrangeriam as atividades vegetativa e
pulsativa “naturais”, ele dispensou o minucioso trabalho com a atividade imaginativa
proposto por Freud (o trabalho, enfim, com a alma como idéia do corpo e idéia da idéia do
corpo), que confronta o sujeito falante com seus fantasmas, isto é, com as idéias inadequadas
que se formam em seus encontros com outros corpos e que ele carrega como “verdades”
derivadas de sua experiência (ainda que imaginariamente) vivida.
82 Em nossa atual cultura, os corpos parecem muito ativos e suas almas muito passivas (se
considerarmos que a atividade da alma está em sua potência para pensar, conhecer e agir em
ato e em liberdade), o que confirmaria a tradição. A contrapartida estaria naqueles que se
dedicam predominantemente à atividade intelectual e expõem um corpo muitas vezes
passivo, pouco dado a práticas e a ações efetivas. Entretanto, nos primeiros, deparamo-nos
com uma atividade corporal que é, na realidade, uma passividade, com a correspondente
passividade da alma, pois ambas são determinadas por causalidades externas e por fins
(exercitar-se para ter um corpo saudável, estar pronto para a ação quando se a demanda ou
para atender a um padrão corporal definido como desejável; um cultivo não de si para si,
mas como correspondência a padrões externos a si). Por sua vez, a atividade intelectual,
muitas vezes, parece prescindir ou dissociar-se das vivências, ações do corpo e suas
afetações, ou constituir-se também somente movida por fins. Assim, os corpos em constante
movimento, que se apresentam ativos, não necessariamente o são na realidade, mas só
imaginariamente, daí a freqüente passividade de alma que expressam, o mesmo valendo
para almas que se apresentam como muito ativas, sem o serem efetivamente. A atividade dos
corpos e das almas é dada sempre por sua potência de afetar e serem afetados nos encontros
com outros corpos e outras almas, daí derivando suas disposições e sua maior ou menor
potência para agir e pensar.
106
paixões e na direção das ações humanas. Seria, aliás, dessa impotência que
teriam sido derivadas a moral ascética dirigida por fins e valores como
paradigmas externos a serem obedecidos pelos humanos, ou, mais
profundamente ainda, a representação antropomórfica de Deus como
divindade transcendente, onipotente e onisciente agindo movido por fins
externos, bons, verdadeiros e justos em si mesmos.
Compreende-se a razão de Espinosa ter sido alvo de ataques e
execrações, quando ainda vivo, e das deformações de seu pensamento nos
séculos seguintes promovidas pelo espinosismo. Como justificativa para
esses ataques, os argumentos mais freqüentes eram os de que, caso tais idéias
fossem verdadeiras, o homem, sem regras ou moral que o dirigissem, se
entregaria a seus vícios e a corrupção imperaria na terra. Ademais, como se
compreenderia a servidão humana, essa vontade de servir e obedecer que
pode ser reconhecida nas ações humanas?83
83Sobre essa vontade de obedecer (uma servidão voluntária que expressa um enfeitiçamento
de muitos “pelo nome de um, de quem não deve temer o poderio, pois ele é só, nem amar as
qualidades, pois é desumano e feroz para com eles”), Étienne la Boétie produziu um belo
texto, Discurso da servidão voluntária, que entregou às mãos de seu amigo Montaigne, que,
entretanto, não o publicou por razões políticas (pretendia publicá-lo como parte de seus
Ensaios, mas foi antecipado por uma facção de huguenotes, que o publicou como um
panfleto). Desconhece-se a data correta da produção do texto, que Montaigne indica como
sendo 1544, quando La Boétie contava 18 anos, mas que provavelmente é de 1552 ou 1553. A
intenção de Montaigne, confundindo as datas, era proteger o amigo, então jurista e
parlamentar, de ser associado a acontecimentos políticos da época, como o Massacre de São
Bartolomeu ou a revolta de La Gabelle. O manuscrito original, escrito em francês arcaico,
perdeu-se, mas foram feitas duas cópias, entregues por Montaigne a amigos (De Mesmes e
Dupuy). Surgem edições no século XVI, inclusive uma em latim, que apresentam
adulterações expressivas, quando confrontadas com a cópia de De Mesmes, reencontrada no
século XIX e publicada em 1853 por Z. Payen. A edição dos huguenotes, de 1574, coloca o
texto ao lado de vários panfletos tiranicidas produzidos na época com fins políticos contra o
rei; o texto é republicado, pelo mesmo grupo, em 1576, com o título “O Contra Um”, ambas
as edições apresentando-se bastante adulteradas. No século XVIII o Discurso volta a ser
utilizado como panfleto político por Marat. Surgem outras edições no século XIX, também
bastante deformadas para atender ao “espírito da época” (a de Charles Teste, nos indica o
tradutor brasileiro, é exemplar de uma dupla “incapacidade histórica” do século XIX: tanto o
de ler e ouvir discursos que o contradigam como para reconhecer o estatuto do destinatário
do discurso, o que resulta em traições que adaptam os textos às suas “verdades”). A
tradução brasileira, por Laymert Garcia dos Santos (1982) recorreu à cópia de De Mesmes,
cuja edição foi estabelecida por Pierre Leonard, e contém também a versão de Teste. É
notável, nesses percursos de textos fundamentais da filosofia, o fato de serem muitas vezes
deformados por leitores os mais diversos, conforme os interesses de um tempo e um lugar.
O de La Boétie, absolutamente singular em seu século (no qual, inaugurando a
107
O fato de as paixões serem expressões da natureza humana e de bom e
mau dependerem da qualidade de nosso próprio desejo e não de
determinações que o transcendem não significa que seus efeitos sejam
positivos. Espinosa, ele próprio um racionalista, não toma o partido da
paixão e do desejo contra a razão, o que faz é tão-somente reconhecê-los em
sua naturalidade, desfazendo a idéia de sua origem como corrupção de seus
destinos, presente na idéia de pecado original.
Qualquer que seja a disposição de um corpo ao ser afetado, o que ele
busca é potencializar-se nessa afetação, isto é, o que ele procura é construir os
meios que lhe permitam perseverar na existência, quer determinado por
imago (atividade imaginativa dos corpos, que leva às idéias inadequadas),
quer determinado por pictura (atividade ideativa, que leva às idéias
adequadas, ou razão). Assim, uma paixão pode aumentar imaginariamente a
intensidade de um conatus e diminuí-la realmente. É desse aumento imaginário
de força que nasce a servidão humana.
“A servidão não resulta dos afetos, mas das paixões. Resulta da força
de algumas delas sobre outras. Passividade significa ser determinado a
existir, desejar, pensar a partir das imagens exteriores que operam como
causas de nossos apetites e afetos. A servidão é o momento em que a força
interna do conatus, tendo-se tornado excessivamente enfraquecida sob a ação
das forças externas, submete-se a elas imaginando submetê-las. Ilusão de
108
força na fraqueza interior extrema, a servidão é deixar-se habitar pela
exterioridade [grifo nosso].” 84 (Chaui, Paixão...: 18)
84 Quando dizemos que a atual sociedade de consumo nos aliena e nos induz ao erro ou à
busca ansiosa de resultados em nossas escolhas, encontramos neste argumento um de seus
fundamentos. Encontramos profusamente esse “aumento imaginário” de conatus em muitos
agenciamentos de consumo, com a apresentação de objetos que acenam com a promessa de
um “aumento de potência” para seus usuários. Os de carros são exemplares, como também a
crescente sofisticação de dispositivos informáticos, que geram a rápida obsolescência dos
que os antecedem (embora jamais cheguemos a utilizar a maior parte de seus recursos),
assim como o de um sem-número de pequenos produtos do varejo de conveniência, como
anabolizantes, energizadores, vitaminas etc. (os mais diretamente associados a “aumento de
potência”, mas não só eles). No consumo geral de bens e de imagens nas sociedades atuais
de consumo dificilmente escapamos desses mecanismos, por mais “conscientes” como
consumidores possamos ser. Boa parte das estratégias do marketing (como a obsolescência
programada de produtos) sustentam-se desses mecanismos. Deixar-se habitar pela
exterioridade é radicalmente diverso de pôr-se em relação com o exterior, com o Fora, como
foi exposto no item “O diagrama de Foucault”; na leitura do diagrama, vimos que ser
tomado, invadido pela exterioridade resulta no colapso da invaginação subjetiva, sendo que,
no pleno colapso da invaginação, encontramos a loucura. É possível que a aderência ansiosa
aos objetos e suas imagens propostos para consumo (incluindo a imagem de nós mesmos,
como também consumíveis), se entendida como aumento imaginário de nosso conatus,
constitua-se como a estratégia prínceps que nossa cultura (a qual chamamos “de consumo”)
elegeu para manter uma relação com o Fora sem enlouquecer. O que nos levaria a supor que
os objetos que não cessamos de escolher como desejáveis e com os quais compomos nosso
pareser funcionariam como espécies de protetores “psíquicos” em relação as forças não-
ligadas e o desmedido de sua turbulência. Afinal, o consumo tem suas formas excessivas,
que se manifestam, paradoxalmente, em períodos de desestabilização e de insegurança, seja
interna, seja do exterior. É esse lugar de proteção, de sutura do que é intolerável que sugiro
ser configurador do consumo que Kubrick, no final de De olhos bem fechados (1999), indica
como a alternativa buscada por seus personagens (ver Nota 122).
85 Em “El estadio del espejo como formador de la función del yo tal como se nos revela en la
109
homem não só não reconhece as forças externas – poderes – que o dominam,
como chega a se identificar com elas e a desejá-las.86 Dela derivam tanto a
carência insaciável que busca realizar fora de si, num outro que só existe
imaginariamente, a satisfação do próprio apetite e desejo, o que pode levar à
própria autodestruição, como pode tornar cada um contrário a todos os
outros, em uma luta movida pelo ódio e pelo medo, que vê na destruição do
outro a via de acesso para a satisfação dos próprios apetites e desejos.
outra. Essa imagem ortopédica de si mesmo marcará, com sua estrutura rígida, todo seu
desenvolvimento psíquico e mental.
86
Grosso modo, quando ocorre de um sujeito depositar imaginariamente em um determinado
objeto, posição social ou cargo profissional sua condição prévia de realização, entendida esta
não só como poder de exercer sua força sobre um outro, mas também como uma condição
de “liberdade” (concebida como “fazer o que se quer” sem ter de prestar contas a um outro,
comum ao “ideal” adolescente, mas não só), torna-se possível compreender, com Espinosa,
em particular em seu Tratado de correção do intelecto (1973), que essa busca imaginária de
potencialização (imaginária também porque a posição de poder propõe outros problemas,
não previstos quando se a imagina de uma posição externa a ele) opera ao mesmo tempo
uma despotencialização das forças que poderiam levá-lo, por causalidade interna, à
possibilidade de sua realização como humano, isto é, à máxima afirmação – conforme as
próprias forças – de seu conatus como potência de agir e pensar. Podemos dizer que,
atravessado pelo imaginário do poder, as tramas, os artifícios, as estratégias que cada um
encontra para exercer sua potência e as vias que elege para efetivá-las, se expressam seu
conatus naquele momento, constituem por sua vez, como efeito de um desejo de auto-
asseguramento, formas imaginariamente construídas de realidade em posição de exclusão
de quaisquer outras.
110
que se realizam conforme os contextos em que as forças afetam umas as
outras... – sendo eles os reais instituintes da sociabilidade. A cidade – como
campo aberto de visibilidade – é, assim, o lugar onde o homem realiza sua
liberdade, por ser nela que ele obedece à lei comum,87 e não na solidão,
condição na qual ele só pode obedecer às próprias paixões.
O que podemos extrair de suas proposições é que, se a potência do
corpo é a de afetar e de ser afetado em seus encontros com outros corpos, o
que constitui sua atividade imaginativa, e que é no reconhecimento do que o
causa (o afeto de si para si; a dobra das forças para si) que ele pode aceder à
razão, sua captura nos encontros que se organizam como relações de forças já
previamente instituídas e cristalizadas, perante as quais se é mais
freqüentemente passivo por serem em maior número e mais fortes que ele, se
não o impedem de perseverar em sua existência e de buscar afirmar sua
potência de ser e existir, o levam a fazê-lo só imaginariamente, induzindo-o ao
erro, tão mais fortemente quanto mais enfaticamente indicadas, a anteriori, pela
norma moral, como boas ou ruins, como alegres ou tristes, mantendo-o
cristalizado na passividade da atividade imaginativa do corpo gerada nesses
encontros.88 Ora, sabemos, por experiência, que, num primeiro momento, o
que pode nos aparecer como causa de alegria pode às vezes nos trazer tristeza;
da mesma forma, o que avaliamos como causa de tristeza pode às vezes
resultar em uma alegria maior. O conhecimento do que nos causa só pode
como devendo alegrá-lo, se não se entristece com aquilo que deveria entristecê-lo, se não
deseja o que lhe é indicado normativamente como melhor, o que pode concluir é que o erro
só pode estar nele e sua dissonância em relação aos demais que aderem ao que é posto como
“normal”. Esse é um caminho comum dos grupos aderidos a uma regulação que lhes é
externa e da exclusão e sofrimento psíquico daquele que neles não se integra. Quando indico
ser condição da ideologia da cultura do bem-estar “estar livre de inquietações éticas ou
morais”, esta é uma das vias para se compreender seu funcionamento e sua eficácia.
111
advir da experiência dos encontros e não da qualidade das coisas nelas
mesmas.
Isso nos leva à pergunta pela ética. Se estamos marcados pela
passividade nas relações de forças, se a maior parte do tempo formamos
idéias inadequadas das causas inadequadas de nosso apetite e desejo, se a
razão não pode dominar as paixões, se somos, enfim, heterônomos e
constituídos por afetos e desejos, como seria possível a ética, que supõe seres
autônomos e racionais? Mais: se Espinosa não atribui mais os vícios e os
erros a uma corrupção da liberdade de vontade dos homens, isto é, de seu
livre-arbítrio, que lhe permitiria escolher livre e racionalmente pelo que é
melhor para si e para o outro, como agir eticamente nos laços que formamos
com o outro em nossos encontros, como realizar nesses encontros nossa
liberdade de existir, pensar e agir?
Esses laços, claro, se formam não sob o regime de um conhecimento
verdadeiro e adequado do outro, mas na atividade imaginativa, que se
origina, como vimos, das afecções do corpo, tanto as que ele produz em
outros corpos quanto as que os outros corpos produzem nele, sendo as
imagens dessas afecções que são conhecidas pela alma, através das idéias
imaginativas. Estas idéias são, assim, o conhecimento dos corpos exteriores
não por sua essência, mas pela maneira como nos afetam e são afetados por
nosso corpo. Sendo próprio de nossa alma estabelecer relações e produzir
teorias, e já que desconhece, das afecções, a causa/essência das imagens, ela
passará a conceber a realidade a partir desse sistema de afecções, colocando-
se como centro dessa realidade imaginada.
112
parcial” (Fornazari, Da perversidade à impotência, in Cadernos Espinosanos I
[2]: 161-162}
113
Positividade da imaginação, positividade das paixões. Sendo as
paixões independentes de nossa vontade, só podemos começar nosso
caminho em direção à liberdade – o que significa nos reconhecermos como
uma singularidade que é parte de um todo (para Espinosa, o infinito que é
Deus) – não através da negação de nossas paixões, mas do confronto entre
elas mesmas, deixando-nos vencer pelas que nos são positivas, isto é, as que
aumentam realmente o conatus. Para se realizar isso, Espinosa não oferece
um modelo, mesmo porque seria contrário a toda sua demonstração. Sua
ética é não-normativa e não poderia propor-se, no embate das consciências,
como um novo modelo ou uma nova moral sem invalidar-se. Por outro lado,
sua ética emerge do próprio processo de sua construção, isto é, da própria
atividade de conhecer ativamente90 a que Espinosa se entrega, o que implica
passagens, na alma, da idéia do corpo para a idéia da idéia do corpo, do
replicatio (especular) para o explicatio (especulativo91), transformando, assim,
as paixões em afetos e em ações, buscando das primeiras suas causas
internas, isto é, no poder de afetar a si mesmo, no afeto de si para si.92 Assim
se constrói a alegria do agir, do pensar e do existir em ato, no encontro da
justa medida (ratio, razão) de nossos desejos e paixões. Algo que não se faz
solitária e individualmente, mas sim nos encontros dos amigos,93 no movimento
homem se torna livre, isto é, conhece a si próprio enquanto modo da natureza divina’“
(Fornazari, op. cit., 162-163). Esse terceiro gênero corresponderia ao que Foucault indica
como dobra das forças para si, relação das forças consigo, afeto de si para si, e que em
Nietzsche traduz-se como sensibilidade, vontade de potência, poder de ser afetado.
90 A construção dos argumentos em seu Tratado de correção do intelecto (1973) é, nesse sentido,
exemplar, autorizando-nos a reconhecer seu pensamento como uma filosofia prática não por
prescrever regras, mas por construir-se, ela mesma, como uma prática rigorosa.
91 A especulação filosófica é tratada, às vezes com razão, de modo pejorativo, como puro
relação com outros, que se afetam, conversam, negociam e estabelecem suas próprias regras
114
dos afetos que dão fundamento e direção ao agir e pensar. Assim, a ética só
se realiza na intercorporeidade e na intersubjetividade, ao mesmo tempo
singular e coletiva.94 A política, em sua dimensão ética, só o é como
quando ele parte da idéia do que causa um corpo. Seu trabalho “direto” com as couraças do
corpo era não só, muito mais propriamente, com a imagem de corpo inteiro – o eu –, como ele
supunha que essas couraças – “de caráter” – impediam o livre fluxo de energia libidinal,
que, em vez de ser utilizada para manter a couraça, se liberaria como potência orgástica,
disponível para ser vivida com outro corpo na relação sexual. Potente em si, o corpo poderia,
livre das couraças, expressar-se pulsativa e orgasticamente no encontro com outro corpo.
Acompanhando Espinosa, vemos que as intensidades do corpo resultam das afetações no
encontro com outros corpos, sendo mais intensas quanto maior a força e a direção dessa
afetação (atração, repulsa, indiferença). Elas não estão ali antes (as intensidades, em si
mesmas, não existem em forma e substância), disponíveis como energia a ser liberada; pois
sua “energética” é intercorpórea, intersubjetiva, relacional, e é nesse entre-corpos que nos
fazemos desejantes, ao efetuarmos as intensidades exteriorizando-as, expressivamente, como
desejo. Ao abraçar a hipótese repressiva de Freud (a repressão da libido como causa da
neurose), como foi afirmado anteriormente, faltou a Reich a dimensão do desejo como idéia,
na alma, da idéia do corpo, do desejo, portanto, como artíficio (corpo-intensidade-língua
[expressão]). Ao propor a naturalidade do desejo, Reich buscou um corpo originário que
experimentaria suas próprias forças em conexão com a natureza e o cosmos (os orgones).
Entende-se, assim, a razão de sua ruptura com Freud e o destino de suas propostas. Ao
entender o corpo “encouraçado” como contendo um corpo verdadeiro/originário, e não
como resultante da atividade imaginativa do corpo no encontro com outros corpos (embora
reconhecendo inicialmente esse corpo como construído na história de suas experiências
afetivas), Reich fez de sua descoberta o móvel de um combate ideológico, de confronto
direto de forças no estratificado, propondo um outro modelo de vida que deveria substituir o
que reconhecia como limitante e repressor. Assim, embora partindo de leituras consistentes
(sua leitura do fascismo e do que o sustenta é brilhante) e ter avançado em profundidade nas
causas da servidão humana, acabou por propor uma nova ideologia, uma nova moral
normativa, investindo com seu trabalho não uma expressividade dos corpos em sua
intercorporeidade, mas sim a produção de um outro corpo (corpo glorioso), que caminharia
para a "revolução sexual" e, conseqüentemente, para a construção de uma nova sociedade.
Exemplar desse seu projeto é a construção de uma máquina – autêntica máquina paranóica-
perversa-celibatária...-persecutória –, o acumulador orgônico, à qual submetia os pacientes
mais severamente resistentes às técnicas terapêuticas de manipulação direta do corpo,
visando desfazer suas couraças por “bombardeio” energético. Já nos Estados Unidos, Reich,
perseguido pelo macarthismo e condenado pela FDA por prática ilegal de medicina e por
contestar as decisões judiciárias, morre solitário e sem amigos na prisão, em 1956. Será
resgatado, nos anos 60/70, como um dos ideólogos da revolução sexual, sendo suas práticas
recuperadas por muitas psicoterapias “libertárias”, centradas quase que exclusivamente no
trabalho corporal, que acentuam mais seus equívocos que seus acertos. Associados à cultura
da espontaneidade, emergente nos movimentos da liberação, esses equívocos irão se
amplificar e assumir uma forma cristalizada, particularmente ao serem associados também à
sexologia, confluindo para a cultura do corpo “liberado”, idealizado como eternamente
jovem e saudável (com suas próprias máquinas celibatárias “ativadoras”, como os gadgets
modeladores da forma, os pequenos objetos dos sex shops, os potencializadores energéticos)
promovida – como “efeito residual da revolução sexual” – de uma maneira modelizadora e
115
construção do conatus coletivo, que os homens, em sua ação instituinte dos e
nos laços sociais que estabelecem em seus encontros e que constituem a vida
da cidade, não cessam de inventar e reinventar. São esses laços – laços de
desejo – que Espinosa nos indica como a causa eficiente de uma democracia
efetiva.
Podemos compreender, a partir da noção de desejo como força do
conatus individual e coletivo em Espinosa, o que leva nossa cultura não só a
culpabilizar o desejo, debilitando-o, como reduzi-lo, quase que
invariavelmente, ao desejo sexual como fome do outro. Se considerarmos a
perspectiva moral derivada da tradição judaico-cristã, claro, podemos
formular uma compreensão dessa redução, derivando-a da noção de pecado
original. Contrariamente às religiões primitivas, que faziam uma distinção
entre tempo profano (que é o mundo descontínuo do trabalho e dos
interditos da morte e da sexualidade) e o tempo sagrado (mundo dionisíaco e
contínuo das festas e das transgressões, da violação, dos excessos, da
violência que excede o mundo profano sem o destruir, no qual o erotismo é o
domínio da transgressão, da vitória sobre o interdito), o cristianismo,
principalmente, fundou-se sobre um horror à transgressão, desconhecendo-
lhe o caráter sagrado, e tornou absoluto o interdito, rejeitando a impureza e
expulsando o “diabo” do mundo divino. Ao perder seu caráter sagrado com
o cristianismo, o erotismo tornou-se impuro, imundo, uma imundície da qual
era preciso libertar o mundo.
quase sempre degradada pela mídia, o que acaba por sujeitar os corpos (e as subjetividades)
a uma nova tirania: a do orgasmo e das técnicas.para alcançá-lo
116
Por esse motivo, redução ao sexual e culpabilização compõem um
mesmo campo no qual é posto a girar o desejo em nossa cultura. A liberação
e a subseqüente banalização do sexo como o testemunhamos hoje, de um
lado plenamente dissociado do sagrado e da transgressão que ele ocupava
antes do cristianismo, de outro em ruptura com as prescrições morais da
religião, talvez advenha ainda dessa redução e culpabilização persistente do
desejo, e não de sua superação.
Vejamos por quê. É verdadeiro que, nos encontros dos corpos e suas
afetações, nenhum é mais intenso e implica maior mistura de corpos que o
sexual, nenhum implica maior atravessamento dos limites que, no viver
social, são postos ao contato de um corpo e outro (o outro atravessamento é
violência, como agressão física a um corpo), nenhum desfaz mais os laços
sociais constituídos pelo trabalho. Por essa razão, o sexo, experiência intensa,
foi, no tempo que antecede nossa cultura judaico-cristã, associado ao excesso,
ao deslimite, à morte (ainda chamamos o orgasmo de “pequena morte”) e
experimentado como uma transgressão que o colocava no campo do sagrado.
Nos movimentos de liberação política e dos costumes dos anos 60, em
oposição à tradição familiar cristã e sob império da razão, a sexualidade
afastou-se dessa densidade do erotismo para fazer o sexo ocupar um lugar
determinante e central, afirmando-o coletiva e positivamente contra sua
culpabilização e sua redução ao laço matrimonial; para a mulher,
principalmente, e com o advento da pílula anticoncepcional, tratava-se de
liberar-se do jugo masculino para afirmar a liberdade de decidir sobre o
próprio corpo e seu prazer, fazendo fugir a regulação social a que a moral a
submetia na posição de procriadora. Nesse primeiro movimento, desfazer os
laços entre sexo e afetividade (entendida, conforme a ideologia do amor
romântico e marital, como aprisionamento ao jogo de dominação homem-
mulher, sexo forte-sexo frágil, poder-dependência até então cultivados na
cultura) surgiu como estratégico. A afirmação do desejo sexual como
“natural” e instintivo e, como tal, “saudável” e indistinto do apetite corporal,
117
se foi a via de legitimação da nova liberdade, abriu-se ao mesmo tempo para
uma reapropriação científica do sexo, principalmente do sexo feminino, em
direção contrária à realizada no século XIX, que justificava seu controle fosse
em nome da Higiene, fosse como garantia de sustentação da família nuclear e
das leis de progenitura que asseguravam a transmissão da herança. A
necessidade da mulher de conhecer o próprio corpo, aceitar sua naturalidade
e educar-se para o prazer – o que lhe fora até então negado – só fizeram
fortalecer a sexologia e os discursos de normatização do sexo, lançando-se
para um segundo plano a problemática já por si mais difusa e não
cientificizável da afetividade.95 O sexo deixa assim de ser transgressivo para
ser integrado como atividade legítima nos vínculos sociais, e, de certa forma,
a afetividade, com todos os riscos de uma nova redução ao casal com que ela
acenava, passa a ocupar o seu lugar, como o que deveria ser evitado para não
perturbar a liberdade de múltiplas escolhas de parceiros. De certa forma, é o
afeto que passa a se tornar tabu, como ocorre nas práticas do swing nos anos
60/70 ou na aceitação de que o parceiro tenha experiências conjugais e extra-
conjugais, com a condição de que não se envolva afetiva e emocionalmente
com o outro.
Vimos que o afeto, na dimensão relacional espinosana, é inseparável
dos processos de transformação de si e do outro, e, por conseguinte, da
socialidade. Com o recuo da importância do cuidado com a afetividade a
favor do desempenho sexual nos encontros, não há hoje desordem maior nas
relações entre parceiros que a afetiva. Quando é ela que insiste, assistimos a
recuos para relações tão ou mais opressivas que aquelas de que a afirmação
da liberdade sexual pretendera se livrar. Se a liberação sexual permitiu
desfazer os laços que determinavam desigualmente os lugares do homem e
95A contrapartida dessa naturalização do sexo é oferecida, em um tom bastante irônico, por
Bruckner e Finkielkraut (1977) e por um sem-número de psicanalistas, mais atentos às
tramas do desejo e da subjetividade. Sibony (1991), por exemplo, contra a simplificação da
sedução, tão valorizada em nossos tempos, indica a dimensão de horror que ela comporta:
“Muitos.não gostam que os seduzamos, que os confrontemos com os seus limites: a sedução
é a vontade de ser invadido por algo que, no fundo, está relacionado com nós mesmos”.
118
da mulher um em relação ao outro e na sociedade, não permitiu, por sua vez,
a passagem dessa desigualdade para o que ela barra, o reconhecimento da
diferença, do absolutamente outro suposto no laço intersubjetivo e
intercorpóreo; uma relação, enfim, de alteridade. Ora, fora da alteridade, a
direção indicada por Espinosa remete muito mais a um recuo egóico-
narcísico (não ser afetável) e à consumação de um corpo em outro, uma fome
do outro enquanto tão-somente aquele que é posto como objeto de uma
satisfação que, desconhecendo a própria demanda desejante, raramente se
realiza, caminhando para uma busca ansiosa que coloca em seu horizonte a
autodestruição. Vimos, com ele, que a violência contra o outro tem a mesma
origem.
Ao pensar o erotismo, Bataille (1968) identificou três tipos: o erotismo
dos corpos, violação do ser do parceiro que leva à morte, ao assassinato;
erotismo dos corações, fusão dos corpos dos amantes pela paixão; erotismo
sagrado, fusão ilimitada dos seres para além da realidade imediata. Na
normatização atual, predomina o primeiro erotismo, o dos corpos, sobre o
qual alguns produções cinematográficas nos oferecem matéria para reflexão
(O império dos sentidos, de Oshima [1976], por exemplo). Como hoje a
sexualidade oscila num movimento seco e pendular de um dever-ser entre
apreensão cientificizante e presentação mediática, que ora a reinveste em
recuo para o casal na versão romântica, ora a expõe como desordem do
desejo associada à violência, o mais freqüentemente como corporeidade
fechada em si mesma que conflui para sua apreensão banalizada no registro
da pornografia, um percurso pelo ilimitado sadeano – império de uma
imaginação na qual sexo, violência e morte formam um só campo
transgressivo – pode nos fornecer algumas compreensões de seus impasses,
assim como o que ficou elidido na liberação sexual, elisão que, de certa
forma, define o lugar que o corpo passou a ocupar em nossa cultura.
119
A Experiência Extrema
Se Espinosa nos leva à ética e à liberdade pela alegria do agir, pensar e
conhecer em ato, formulando-as a céu aberto na cidade, espaço dos raios
luminosos onde ocorrem os encontros dos corpos, Sade (1740-1814), um século
depois, retoma Espinosa fazendo-o caminhar por um outro campo de
visibilidade, o dos espaços delimitados, ordenados, protegidos e fechados: a
prisão, a alcova, o convento, os subterrâneos, o castelo e – como procurarei
compreender aqui o que o motiva, acompanhando o destino reservado ao
homem Sade em seu tempo – o manicômio.
É dessa diferença entre os “espaços abertos” de Espinosa e os “espaços
fechados” de Sade, que se configuram como campos de visibilidade diversos,
que procurarei compreender tanto a irredutível distância entre o discurso de
um e outro como os pontos em que eles estabelecem suas relações de
proximidade e conversação.
Leitor de Espinosa e de Hobbes, e aproximando-os das concepções
materialistas do homem de La Mettrie (autor, em 1748, de L’homme-machine) e
do sistema da Natureza (O sistema da natureza ou as leis do mundo físico e do mundo
moral, escrito em 1770) do enciclopedista Holbach (1723-1789), assim como de
Voltaire, de Rousseau etc., Sade retoma alguns dos temas caros ao filósofo
holandês – as paixões e desejos como próprios da natureza do homem, não
subjugáveis pela razão; a impossibilidade da moral e da lei externas na
determinação dos corpos e suas paixões; a fragilidade da virtude como escolha
antecipada do bem, virtude essa que se invalida e leva à destruição do virtuoso
no encontro com as forças externas, em maior número e mais potentes que ela.96
120
Entretanto, pela condição singular em que produz sua obra, dirige-a para a
afirmação do Mal absoluto associado ao sexo e à violência,97 afirmação que vai
ao encontro das inquietações contemporâneas quanto ao crescimento da
violência e da crueldade, no Mal pelo Mal, sejam as promovidas por indivíduos
ou grupos fechados (quadrilhas, “tribos”) que atuam no espaço urbano, seja no
enlace sexo e violência contra o outro, ou até mesmo as de organizações
terroristas nômades que dão o contorno dos atuais confrontos políticos, nas
quais não se torna mais possível identificar claramente, em termos de
organizações nacionais e de formações ideológicas, onde está, quem é, ou, mais
ainda, o que é o inimigo.
atravessa o coração. Sade conclui ser essa a resposta de Deus aos esforços de Justine para a
preservação da própria virtude. Sua irmã, ao contrário, escolhendo o caminho do vício,
entregara-se a toda espécie de orgias, cometera muitos crimes e acumulara grande fortuna.
O triste destino de Justine leva Juliette a arrepender-se de seus crimes e internar-se como
noviça em um convento carmelita. Essa versão é, toda ela, uma novela moral e violenta que,
narrada por uma pessoa virtuosa, recorre a uma linguagem metafórica que jamais cede ao
obsceno. A segunda versão não apresenta grandes transformações, salvo a inclusão de mais
cenas e diálogos. Na última versão (cujo subtítulo é As prosperidades do vício), ao contrário,
centrada na história de Juliette, irmã de Justine, o discurso é sustentado pelos próprios
libertinos, assumindo uma linguagem crua que faz do obsceno seu maior trunfo. Nessa
versão, Sade narra as atividades de Juliette na Sociedade dos Amigos do Crime (cujos
estatutos podem ser entendidos como uma paródia de O contrato social, de Rousseau), uma
associação de 400 libertinos que se espalham pelo mundo e procuram realizar o crime
perfeito. Como o crime perfeito não existe (como jamais se chega à saciedade a cada crime
realizado), desencadeiam uma progressão de assassinatos de grande ferocidade que os
coloca na perspectiva de destruição de toda a Humanidade. Ativando-os e justificando-os,
proferem discursos que afirmam a inevitabilidade do Mal, o Mal que, expressão da natureza,
seria o único Bem, supremo e absoluto. No final desse romance, Juliette acolhe Justine, como
na primeira versão, mas seu objetivo é outro: realizar aquilo que os libertinos que a
seviciaram não conseguiram realizar: corromper sua virtude. No castelo, os libertinos
deliberam sobre a sorte de Justine. Decidem lançá-la na tempestade. Caso fosse poupada
pela Natureza, a deixariam partir. Justine é expulsa do castelo, e tão logo mergulha na
tempestade é atingida por um raio, que a atravessa da boca à vagina. Juliette e seu grupo
atiram-se furiosamente sobre o belo corpo agora desfigurado (isto é, que deixou de ser
Figura da virtude) de Justine, realizando sobre ele sua orgia. Um triunfo e, ao mesmo tempo,
uma derrota, por só poder triunfar na morte. Justine e Juliette, personagens fascinantes, são
emblemáticas na obra de Sade, tendo sido interpretadas (Klossowski, 1985) como personas do
próprio escritor, expressões de sua ambígua posição entre o Bem e o Mal (mais uma
ambigüidade que um conflito, já que para Sade trata-se de afirmar o Bem ali onde a própria
força pode afirmar-se; argumentando, conforme a Natureza, ser no Mal que ela se efetiva,
trata-se de afirmar o Mal como absoluto Bem).
97 Uma provável resposta de Sade ao lugar designado a um e outro pela tradição cristã como
interditos absolutos; para formulá-la, ele reinventa a orgia das religiões primitivas e seus
espaços de transgressão como retorno do homem à Natureza.
121
A condição singular de Sade é dada tanto por sua trajetória pessoal como
pela pulsão escritural que se lhe impõe na prisão. Sade foi prisioneiro e vítima
de três regimes: da monarquia, da república emergente com a revolução
Burguesa de 1789 e do império de Napoleão. Como muitos nobres de seu
tempo, Sade era um libertino que, autorizado pela legitimidade que sua posição
superior na hierarquia dos poderes lhe conferia, agia livremente, impondo seu
desejo em suas atividades libertinas; entretanto, casado com uma burguesa –
pela usual aliança de interesses título nobre-poder econômico –, é perseguido
pela sogra que, ciosa das próprias virtudes e desejando preservar o bom título
recém-conquistado por sua família, de posse de uma lettre de cachet98 põe no
encalço do genro a polícia dos costumes,99 que o prende, em 1777, por suas
atividades libertinas; na Bastilha, enquanto inutilmente se revolta e não mede
esforços para ser libertado, inicia sua atividade escritural100; sai da Bastilha com
a Revolução, e entusiasmado com a nova liberdade, integra-se a ela, ao lado dos
jacobinos, participando ativamente das assembléias populares, sendo nomeado,
pela qualidade de seus discursos e suas lúcidas posições a favor de uma
democracia popular,101 secretário de uma seção em Picques; entretanto, pelos
livros que publica clandestinamente, por sua oposição ao assassinato do rei Luís
98 Documento obtido junto ao rei que autorizava pessoas influentes e de prestígio na corte a
mandar prender quem quer que as incomodasse, sem necessidade de julgamento. Seu
caráter era, portanto, absolutamente arbitrário.
99 No século XVIII francês, a função da polícia era de regulação e vigilância dos costumes.
122
XVI e por dar fuga, em sua jurisdição, a nobres condenados à guilhotina, é preso
como traidor da Revolução e encerrado em uma cela em Picpus, cuja janela está
voltada para o pátio onde a guilhotina não cessa de funcionar – o que o
exaspera102 –, enquanto aguarda a própria execução (Sade escapa dessa
condenação à morte com a queda de Robespierre); novamente livre e já sem
fortuna, continua escrevendo ativamente, publicando romances e montando
peças de teatro. Endivida-se, é continuamente ameaçado de prisão, chega a ser
recolhido como indigente por um hospital público, mas recupera-se, retomando
sua produção escritural. Entretanto, sob Napoleão, é novamente preso em 1801
– por seus livros e por ter ofendido, em uma peça, a imperatriz Josephina, ao
chamá-la de grande prostituta da França –, não mais por questões políticas, mas
para sua “regeneração moral”, sendo encaminhado para o Hospício de
Charenton, onde irá permanecer até a morte, em 1814.103 No período em que
permanece em Charenton, escreve e encena peças de teatro com os outros
pacientes, sendo o primeiro, pode-se dizer, a defender a função terapêutica do
teatro e das artes em hospícios. Ao todo, passa 27 anos de sua vida confinado,
quando não escondendo-se de seus perseguidores.
É a partir dessa condição de prisioneiro de três Ordens (monarquia,
república, império) que Sade assume posições diversas e paradoxais: ao
mesmo tempo em que denuncia o poder e a corrupção, desenhando
personagens/figuras de poder libertinos – nobres, padres, juristas,
102 Sade opõe-se radicalmente à pena de morte e não suporta as execuções promovidas pelo
Estado. Em sua cela, sofre com o ruído incessante da guilhotina e o odor exalado pelos
corpos acumulados sob sua janela. Sade considerava mais legítima a ação de alguém que,
ofendido por um crime, buscasse vingá-lo naquele que o cometera do que essa mesma ação
quando realizada pelo Estado, que, fundado na racionalidade, não poderia atuar de maneira
passional, assumindo para si essa vingança.
103 Da prisão pelos costumes à reclusão por “loucura”, passando, no intermédio, pela
perseguição política, a trajetória de Sade será repetida por muitos outros “desviantes” da
história. Kauffman (2000), no filme Os contos proibidos do marquês de Sade, registrando esse
período vivido por Sade em Charenton, constrói seu perfil como o de um paladino da
liberdade de expressão; entretanto, por algumas simplificações e por falsear alguns de seus
dados biográficos, constrói uma imagem quase “simpática” de Sade (figurando-o, em alguns
momentos, como sedutor, à maneira de Don Juan ou Casanova), o que acaba por retirar-lhe
a força agressiva, evitando com isso as questões mais cruciais que sua obra propõe ao
abordarmos a violência e a destrutividade humanas.
123
financistas – e demonstrando a impossibilidade da ação virtuosa em um
mundo corrompido, constrói, nas falas desses personagens, longas
demonstrações filosóficas sobre a naturalidade e inevitabilidade do Mal, já
que expressão da natureza humana, afirmando a legitimidade do que ele
próprio denuncia. Como narrador, distancia-se, observa e denuncia a
corrupção; através de seus personagens, argumenta, enfaticamente, serem
legítimos e expressão da própria natureza os atos e desejos libertinos, que
nenhuma força ou argumento moral pode impedir de se efetuarem nas
vítimas que eles elegem para corromper. Para o libertino sadeano não pode
haver limite ao seu desejo, só a experiência dos excessos e seu caráter
dispendioso (toda a fortuna de seus personagens libertinos é investida na
promoção de orgias, sendo para isso que a acumulam; seus corpos devem
também ir até o limite de suas forças, quando não ultrapassá-las para que se
renovem104). As vítimas, por sua vez, não têm como sair de sua posição: é
enquanto vítimas e sujeitadas, e com a amplificação de seu sofrimento até a
morte, que servem ao gozo libertino. Essa relação libertinos-vítimas constitui
propriamente o sistema de Sade, exposto detalhadamente em Os 120 dias de
Sodoma e retomado nas obras seguintes.
Em suma, escrevendo por e contra si mesmo, como libertino e homem
identificado ao poder e, ao mesmo tempo, como vítima dos poderes
instituídos, Sade expõe plenamente seu sistema, em toda sua violência, e o
justifica; no mesmo movimento, procura dirigir seu discurso para a
104 O caráter dispendioso das orgias pode ser entendido como uma forma de potlach – gasto
improdutivo e suntuário nas festas primitivas–, conforme estudado por Mauss (apud Bataille,
1968; 1974; 1975), no qual o poder e o prazer a ele associado se expressam não pelo que se
pode produzir e acumular, reter, mas pelas quantidades que se pode perder. Aqui está um
dos fundamentos da heterogênese de Sade, que irá se estender, em seu sistema, às perdas
corporais (esperma, sangue, excrementos, forças) e aos crimes, tão mais significativos quanto
maior a quantidade de corpos destruídos. Sade parece explicitar, com esses gastos
improdutivos e suntuários, sua crítica não só aos regramentos da moral cristã como às
sociedades fundadas na homogênese nascentes, cujo ponto de articulação é a utilidade. Mais
que uma crítica, compõe delas sua “outra cena”, isto é, o que a elas subjaz, os elementos
sobre os quais elas se fundam para em seguida excluí-los do próprio campo. Comentando o
assassinato do rei pelo Terror, Sade diz: “uma nação que se funda pelo assassinato se
perpetuará pelo assassinato”.
124
construção do homem integral e soberano, solitário, sem outrem e sem
Outro.105 Por esse sistema que se visibiliza e caminha de paradoxo em
paradoxo, expondo suas razões e as consagrando, Sade tem sido
continuamente retomado como objeto de leituras que, ora destacando um
aspecto de sua obra, ora outro, apresentam dele percepções multifacetadas e
diversas.106 Se no século XIX foi violentamente atacado por moralistas que
viam nele (isto é, em seus textos107) um risco incomensurável, ataques que o
desenhavam como criminoso e sanguinário, à semelhança de seus
personagens,108 no meio artístico e literário seus textos – por sua insurreição
ético-estética – influenciaram um sem-número de escritores e artistas:
Apollinaire, Baudelaire, Dostoievski, os brasileiros Machado de Assis e
Álvares de Azevedo...; no século XX, Antonin Artaud e seu teatro da
crueldade; os surrealistas, que viam em seus textos a máxima expressão de
um espírito livre; o cinema do surrealista Luís Buñuel, que imprimiu em seus
105 Isto é, fora da alteridade e sem lei simbólica além da do próprio desejo, que se faz, ele
próprio, Lei. Esse movimento de Sade coloca-o no caminho da subjetivação, entre a servidão,
no sentido de “deixar-se habitar pela exterioridade” e o “dobrar as forças para si” numa
relação com o Fora
106 Em 1996, visando o desenvolvimento de um projeto de pesquisa sobre as instituições e o
por sua família e pela polícia de costumes. Tem-se notícia de sua intensa atividade escritural
graças ao extremo cuidado de Sade, que registrava e classificava toda sua produção – com
indicação de títulos, temas, datas e páginas – em cadernos e cartas.
108 Embora não existindo, em nenhum registro de sua época, quaisquer referências a esses
crimes hediondos que ele teria cometido, a imaginação dos séculos XVIII e XIX parece ter
sido ilimitada ao se referir a Sade. Efetivamente, seus crimes resumiram-se à prática de
sodomia, considerada passível de pena de morte no século XVIII; ataques a uma mendiga,
Rose Keller, que deixaram nela escoriações e hematomas, custando a Sade um processo (nas
petições à Justiça encaminhadas por Sade ele argumentava ser surpreendente que o mesmo
governo que condenava diariamente multidões à fome e à miséria processasse um membro
de uma das melhores famílias da França por ter se divertido com uma mendiga – vítima
desse governo, portanto – durante uma noite); promoção de orgias com grupos de homens e
mulheres em seu castelo ou em bordéis, sendo utilizado constantemente um afrodisíaco
irritante das mucosas e do aparelho digestivo, a cantárida; após uma dessas orgias, algumas
mulheres apresentaram graves disfunções digestivas acompanhadas de sangramento,
produzidas provavelmente pela ingestão de uma dose excessiva de cantárida; após o
atendimento médico, Sade foi processado por tentativa de envenenamento. Em suma, a
condenação moral de Sade deriva mais de sua obra que de suas ações.
125
filmes, desde L’Age D’Or, a indelével marca demolidora de instituições que
caracteriza o texto de Sade.
Nas ciências, a “resolução” dos conflitos que sua leitura mobilizou no
século XIX foi dada, de certa forma, por Kraft-Ebing, que, ao abordá-lo em
sua “doença mental”, como uma psicopatia de absoluta perversidade,
reduziu as obras de Sade a um extenso manual de aberrações sexuais a serem
estudadas, compreendidas e controladas pela Higiene e pela Psiquiatria,
transformando-o no primeiro personagem da história a ter seu nome
utilizado negativamente para designar uma doença, o sadismo.109 É ocupando
esse lugar da loucura, enquanto representante de uma perversão, que Sade
passa à história psiquiátrica. No século XX, será lido seriamente por filósofos
e pensadores os mais diversos, como Simone de Beauvoir, Bataille (1968;
1974), Blanchot, Lacan (que buscou em Sade os fundamentos da ética
psicanalítica [Kant com Sade, 1980; 1988]), Klossowski (1985), Barthes (1979),
Foucault (s/d; 1978), Deleuze (1973) etc.110
Essa dicotomia na aproximação a Sade (imoral ou louco para uns,
gênio criador e fonte de pensamento para outros) é freqüente em relação à
desrazão/loucura, como foi indicado por Starobinski (psiquiatra e crítico de
arte), em uma entrevista radiofônica a Jacques Adout (Les raisons de la folie,
1979, apud Pelbart, 1989: 13-14):
109 Seguido por Sacher-Masoch (escritor bastante popular e celebrado no século XIX como
narrador de costumes identificados como folclóricos), cujo nome e obra sugeriram a
invenção de outro termo, o masoquismo, utilizado equivocadamente, segundo Deleuze (1973),
em complementaridade ao de sadismo.
110 Filósofos que Pasolini, ao realizar Saló (1975) – adaptação de Os 120 dias de Sodoma que
desloca os personagens do castelo de Silling, cenário das orgias, para a república de Saló
projetada em 1945 pelo fascismo italiano, quando os rumos da guerra colocaram fim ao
sonho de Mussolini de uma Itália unificada sob seu regime –, indicou como referências
bibliográficas na abertura dos créditos de seu filme, momento único no cinema,
provavelmente para indicar a pertinência de sua leitura de Sade a esses pensamentos e para
pontuar as dificuldades de acesso que a própria obra coloca, ou talvez mais ainda, para
advertir o espectador que ali, em suas cenas cruas, tratava-se de operações da linguagem e
do pensamento no entrelaçamento do corpo com o poder. Saló surge como uma resposta de
Pasolini a alguns de seus críticos, que diziam ter ele abandonado suas proposições políticas a
favor da ludicidade erótica presente em seus filmes anteriores, Decameron e Contos de
Canterbury.
126
“existiriam hoje dois enfoques correntes, distintos e irreconciliáveis sobre a
loucura: o clínico e o cultural. Segundo ele, de um lado estariam os
psiquiatras e terapeutas ocupados exclusivamente com o sofrimento
psíquico, de outro os estudiosos fascinados pela loucura, interessados tão
somente naqueles aspectos que confluem com nossa modernidade cultural,
poética e filosófica. É inegável [comenta Pelbart]: os que convivem com os
loucos reais consideram a loucura antes de mais nada como dor e ruína; os
que vivem distantes dela – fisicamente ao menos – são os que mantêm acesa
a chama de um imaginário ancestral sobre a insensatez. Para os primeiros a
produção psicótica é sintoma patológico; para os últimos é vanguarda
cultural e estética, quando não política, como no caso dos surrealistas. (...)
Sofrimento psíquico e subversão estética, é entre esses dois pólos
incompatíveis que oscila nossa visão da loucura”.
127
referem. (...) Regra geral o carrasco não emprega a linguagem da violência
que exerce em nome de um poder estabelecido, emprega a do poder, que
aparentemente o desculpa, o justifica e lhe dá uma razão de ser. O violento é
levado a calar-se, a instalar-se na sua covardia. Por seu lado, o espírito da
covardia é porta aberta para a violência. Na medida em que o homem é
ávido de castigar, a função do carrasco legal representa uma facilidade: o
carrasco fala aos seus semelhantes a linguagem do Estado. E se as paixões o
dominam, o silêncio em que se compraz dá-lhe o único prazer que lhe
convém”. (Bataille, 1968: 168-169)111
111 Uma dissociação entre a violência e seu discurso que encontramos facilmente nas
justificativas para os crimes de guerra ou para as ações do Estado contra aqueles que ele
pune, que raramente são explicitadas, já que realizadas em nome de um Bem maior.
128
homem moral a que a linguagem pertence. A linguagem fundamenta o castigo,
mas só a linguagem lhe pode contestar o fundamento.112 As cartas de Sade
preso mostram-no encarniçado na sua defesa, quer para afirmar a pouca
gravidade dos atos de que o acusavam, quer para acentuar a vaidade do
motivo dado ao castigo entre os que o rodeiam, o que devia, parece, corrigi-lo,
mas o que acabava, pelo contrário, por corrompê-lo”113 (Bataille, 1968: 171).
112 Em seus dossiês sobre as prisões, Foucault sempre indicou a absoluta necessidade de se
ouvir o que os presos tinham a dizer, e não só o que se diz sobre eles. A mesma posição está
nele presente em relação à loucura ou qualquer outra forma de exclusão (ver Foucault, 1989;
Deleuze, 1992).
113 Em uma das cartas à sua esposa, de novembro de 1783, Sade escreve: “Você diz que
minha maneira de pensar não pode ser aprovada. O que me importa? Bem louco é quem
adota a maneira de pensar dos outros! Ela é fruto de minhas reflexões, deve-se à minha
existência, à minha organização; não sou senhor de mudá-la, e, se fosse, não o faria. Essa
maneira de pensar que você reprova é o único consolo de minha vida. Ela alivia todas as
minhas penas na prisão e constitui todos os meus prazeres no mundo; apego-me mais a ela
que à vida. Não foi minha maneira de pensar que me desgraçou, foi a dos outros. O homem
sensato que despreza os preconceitos dos tolos necessariamente torna-se inimigo dos tolos;
que se fie nisso e caçoe destes. Um viajante segue numa bela estrada por onde espalharam
armadilhas; cai numa delas. A quem culpa, ao viajante ou ao celerado que a armou? Logo,
se, como você diz, colocam minha liberdade a preço do sacrifício de meus princípios ou
gostos, podemos nos dizer um eterno adeus, pois antes deles sacrificaria mil vidas e mil
liberdades se as tivesse. Tais princípios e gostos são levados por mim ao fanatismo, e este é
obra das perseguições de meus tiranos. Quanto mais me atormentarem, mais enraizarão
meus princípios no peito” (Sade, 1991: 345). O que Sade afirma é que a exclusão cria o
excluído e suas ações como excluído, o que não cessamos de constatar hoje na disposição
violenta e marginal dos que são isolados da sociedade nas prisões.
129
sadismo seria uma das expressões mais extremas. Um sadismo, importante
destacar, que não foi inventado por Sade, mas sim intensiva e
minuciosamente exposto em sua obra, conforme testemunhado por ele em
seu tempo e investigado no curso da história dos povos.114
O caminho que a idéia da violência contra o outro como maldade nos
aponta é o da perversidade, que se indica com freqüência como específica de
determinados corpos/almas identificados como “perversos” (indiferenciando-
se perversão, psicopatia ou sociopatia), identificação que é depositada como
traço, como caráter resultante de uma mal-formação moral de que um outro
seria portador, o que autoriza, àquele que a indica em outro, a excluir de si
mesmo a possibilidade de reconhecer-se também “mau”, também atravessado
pela perversidade.115 Uma idéia que os argumentos de Bataille contestam, ao
denunciar a violência presente e negada no homem e sua linguagem moral,
linguagem encoberta pelo discurso das instituições. Assim, é quase sempre de
uma posição de exterioridade que se aborda o problema do Mal e de sua
efetuação no exterior como ato violento atravessado por fria crueldade.
Este, entretanto, é um dos campos problemáticos para a reflexão
psicanalítica e filosófica sobre a perversão. Da identificação, por Freud, do
corpo e da sexualidade infantis em uma dimensão perversa polimorfa, e de
seus estudos sobre a perversão como constitutiva da sexualidade humana,
autores os mais diversos não cessam de debater o Mal como intrínseco, como
uma disposição profunda do homem que ultrapassa a contingência das
condições adversas de vida na sociedade. O que se busca, nesses debates, é o
Mal em sua positividade, isto é, não como falta ou como ausência do Bem.
Quando a perversidade aparece associada a atos sexuais, os problemas se
114 Sade busca sempre sustentar seus argumentos mostrando que práticas condenadas em
uma sociedade são comuns em outras. Ele faz uma história que é sempre relativista,
procurando mostrar de que maneira a crueldade se expressa em muitas culturas, extraindo
desses exemplos as “provas” de sua naturalidade.
115 Enriquez (1990), indo além da identificação imediata da perversidade como ação
criminosa e violenta contra um outro, indica que poucos representam melhor o perverso
contemporâneo do que o tecnocrata que decide o destino das populações manipulando
números na distância de seu gabinete.
130
complexificam: não se trata, simplesmente, de reconhecer um desejo pelo
outro que se realiza no prazer de provocar-lhe dor, que usualmente
identificamos como sadismo. Na perversidade, mundo sem outrem, não se
trata de uma maneira particular de desejar o outro, mas, muito mais, de uma
ausência de desejo do outro (ausência de desejo do desejo do outro), da
expressão de um desejo de desejar em absoluta solidão. O perverso é, assim, o
tirano de um mundo sem outrem, sem objeto de desejo, sendo sua vítima,
portanto, não seu objeto, mas sim seu pretexto para a perversidade.116 Há,
portanto, um caráter irredutível da perversidade, que, ao se manifestar, não
cabe em qualquer argumento racional que a coloque em comparação a uma
“normalidade” ideada. Por exemplo, Vignoles (1991) procura estabelecer
distinções entre a “maldade”, como má vontade ou intenção consciente de
fazer o mal, e a perversidade como constitutiva, como “disposição natural”
humana a fazer o mal, expondo todas as dificuldades para essa
diferenciação.117
linguagem, 289-309; Michel Tournier e o mundo sem outrem, 311-330; textos incluídos como
apêndices em Lógica do sentido (1974), no qual são trabalhados os paradoxos lógicos de Lewis
Carroll (Alice no país das maravilhas e Do outro lado do espelho) a partir do pensamento dos
estóicos. Vignoles retoma essas demonstrações em A perversidade (1991).
117 Vignoles lê, por exemplo, a maldade infantil presente nos romances-rosa de Condessa de
Ségur, que contrapunha as "boas crianças" e as "más crianças" como "crianças bem-educadas"
e "crianças mal-educadas". Segundo essa lógica, "a criança má é alguém com quem se é mau;
o maldoso é 'filho da infelicidade', filho da maldade de outrem. E a maldade é vingança,
reação de ressentimento à frustração (de amor ou de bondade)" (Vignoles, 1991: 20). É essa
lógica que opera ainda hoje: perante alguém "mau", busca-se seus antecedentes: como eram
seus pais, em quais condições de existência ocorreu sua formação. "Não seria preciso",
pergunta Vignoles, "explicar a maldade em si mesma como um efeito da perversidade? (...)
As 'boas crianças' da Condessa, aliás, são perversas, 'masoquistas' quando se denunciam
para não deixar um culpado ser punido, 'sádicas' quando, por exemplo, as meninas-modelo
exploram a sensibilidade animal de suas caras mamães para organizar, em nome da
bondade, uma expedição punitiva na casa do guarda que, fazendo seu trabalho ou agindo
conforme o que pensa ser seu dever, matou uma 'mamãe-ouriço' e jogou os 'bebês-ouriços'
em um charco (...) A ação maldosa é voluntária, mas a disposição que torna maldosa, a
perversidade que é causa de um desencadeamento de atos tanto estúpidos quanto maldosos,
é involuntária. (...) A perversidade é aqui mais fundamental que a maldade, porque está
psicologicamente aquém do bem e do mal voluntários da moral. É por isso que a
perversidade revela-se com rompantes nos comportamentos infantis que ainda não estão
assumidos pela consciência como condutas morais ou imorais". (Vignoles, 1991: 21).
131
Lacan, mais próximo a Hegel e a Kant do que a Espinosa e a Sade (apesar
de encontrar nestes a ética da psicanálise), e fiel a Freud,118 formulou, por sua
vez, uma idéia que indica uma relação dialética entre perversão e neurose: a da
neurose como o negativo da perversão. Com tal formulação, Lacan indicava que
o perverso realiza aquilo que o neurótico sonha, fantasia, representa; à ausência
de culpa do perverso pelos atos que realiza, corresponderia, em contrapartida, a
culpa neurótica, que não advém dos atos realizados, mas sim, ao contrário, de
todos os atos que o neurótico deixa de realizar, mas não de fantasiar119 (ou
“fantasmar”120). Com essa leitura, Lacan, retomando a indiferenciação
118 Freud não fazia distinções qualitativas entre o homem considerado “normal” e o neurótico, o
psicótico ou o perverso, mas sim quantitativas: reconhecia no homem, universalmente, as mesmas
pulsões e a mesma matriz constitutiva, indicando, entre uns e outros, diferenças de grau quanto
à prevalência de tais e quais pulsões. Nos EUA, país em que a psicanálise penetrou
consideravelmente mesmo que ao preço de sua banalização, tal indiferenciação foi rapidamente
recusada, pois ela se opõe frontalmente à representação de si mesmo que o norte-americano se
faz (autônomo, dominante, afirmativo, self-made). A idéia de uma esfera autônoma e saudável do
eu que escaparia às determinações inconscientes forneceu a base das psicologias do eu (como a
humanista-motivacional de Maslow ou a da pessoa de Carl Rogers) e acabou por contaminar o
pensamento psicanalítico nesse país (bastante influenciado por Heinz Hartmann, Anna Freud,
Karen Horney etc.), esvaziando-o de seus componentes problemáticos. Um eu autônomo, vale
dizer, não afetável nos encontros de corpos, que encontra nas regras da simpatia e igualdade
(como identidade) da moral utilitária um dos componentes garantidores do vínculo social
(“quem está comigo, é meu amigo; quem não está comigo, está contra mim”). Provavelmente por
essa representação de si mesmo pelos norte-americanos, boa parte de sua produção imaginária,
se não deixa de representar o Mal – o cinema hollywoodiano talvez seja o que mais cultiva a
construção de personagens perversos em suas narrativas, como serial killers, monstros fantásticos
ou líderes e cientistas delirantes que ameaçam a humanidade etc. –, o faz para afirmar a vitória
final do Bem, confirmação de sua própria supremacia política e moral como “povo eleito”
(paranoicamente aderida à idéia do eu autônomo). Dessa idéia de si deriva a estupefação e a
resposta unívoca da população norte-americana por retaliação e vingança frente ao ataque real de
que foram vítimas em 11.09.2001. A imagem real das torres do World Trade Center ruindo – um
inesperado triunfo do Mal – tornou as ficcionais insuportáveis: no dia imediatamente seguinte ao
atentado, os tecnothrillers foram suspensos nos cinemas e na televisão norte-americanos. “Esta
nação não admite ser atacada por ninguém”, havia declarado George Bush no dia do atentado.
Depois do ataque real, nem mesmo imaginariamente, poderíamos completar.
119 Dessa leitura de Lacan, podemos aproximar as da filosofia que identificam o homem da
moral voltada para fins característica do universo burguês como homem de “má consciência”
(Nietzsche, Max Scheller...); na ficção, os personagens de Nélson Rodrigues, em eterno conflito
entre o desejo, a lei e sua transgressão, expressam a “outra cena” dessa “má consciência”: todo
conservador, todo reacionário seria um libertino que não realiza o que imagina, daí sua força
reativa contra toda “imoralidade”; quando cede aos seus desejos, abre um espaço incontrolável
de dissolução e degradação moral que atinge a ele mesmo e aos que lhe são próximos.
120 Em francês diz-se fantasme, traduzido como fantasma; assim, reserva-se fantasia para designar
132
qualitativa121 entre perversão e neurose, mantém aberta a negatividade. Uma
negatividade que não estaria do lado da perversão, mas sim da neurose,
expondo o fundo do qual ela emerge e sobre o qual se constitui.122
Trata-se, entretanto, de buscar a positividade da perversão, se quisermos
reconhecê-la, “para além do bem e do mal”, em sua efetuação na relação dos
corpos com outros corpos. Para isso, Sade, na maneira como constrói seus
textos, apresenta-se como via luminosa e estratégica. Na leitura apresentada
aqui, procuro primeiro as condições para reconhecer Sade não como figura
negativa (“perverso”, “sádico”, “obsceno”, “pornográfico”), mas sim em sua
positividade, como um escritor que, em seu projeto de inventariar o amplo
espectro das paixões humanas, levou a investigação123 das relações do corpo
com a linguagem a uma radicalidade única e inaugural na literatura.
121 Indiferenciação que, como veremos em Nietzsche, demanda uma outra compreensão do
que significa qualitativo.
122 Kubrick, em De olhos bem fechados (1999), faz seu personagem Bill mergulhar nos fluxos de
desejo e suas territorialidades perversas que pulsam na cidade, em busca do que sua
consciência não consegue mais evitar após ouvir de sua mulher Alice uma fantasia erótica
que ameaça desfazer o território existencial que até então lhes permitia se reconhecerem e se
manterem como casal. Ao testemunhar manifestações de perversidade as mais diversas, que
culminam em um assassinato que Bill não pode denunciar sem pôr em risco a si mesmo e
sua família, ele se desespera face à impossibilidade de viver apartado delas. Em um último
movimento encobridor dessa experiência, num esforço de resgate e retorno ao território
anteriormente habitado, resta o “gozar a vida”, o "continuar vivendo": na véspera do Natal,
Bill e Alice dirigem-se a uma megastore e se entregam ao consumo. À ainda vacilação de Bill
(“Como esquecer?”), Alice responde: “Shopping and fucking!”
123 Investigação num sentido próximo ao que entendemos na ciência. Sade não cessa de agir
133
Percorrendo os textos de Sade, percebemos sem grande dificuldade que a
obscenidade e a perversidade, neles, nunca tem como ponto de partida os
corpos em si, mas sempre a linguagem. Explicando melhor: a obscenidade não
está no fato de ele descrever os corpos ou a relação sexual em suas variações,
mas na linguagem que ele evoca para ativá-los, justificar essa ativação e lhes dar
sentido. Hábil escritor, Sade não poupa adjetivos quando se trata de oferecer
minuciosas descrições que exaltam do corpo sua beleza, seu frescor, sua
integridade. Da perspectiva libertina, quanto mais belos e inocentes os corpos
de suas vítimas, maior o desejo de corrompê-los. Sade também não poupa
palavras para descrever o corpo degradado, corrompido, extraindo dele
diferenciais (singularidades) que funcionam como fascinantes atratores para o
desejo libertino. Para ativar todos os corpos, não só é necessária determinada
linguagem – a blasfêmia, o deboche, as longas demonstrações raciocinantes
sobre a perversidade como expressão da natureza e a desqualificação dos
valores morais cristãos – como é pela crescente exaltação da linguagem que os
corpos atingem, por sua vez, um estado de exaltação nervosa que será
apaziguado na orgia.124 É a linguagem, portanto, que captura os corpos e
mobiliza suas paixões, ativando-os e expondo deles sua perversidade, a qual
Sade procura demonstrar como sendo constitutiva, expressão no homem dos
movimentos da própria Natureza que os princípios morais e a linguagem das
belas almas procuram dominar, evitar e encobrir. Na estrutura de seus
Não são coisas ou estados de coisas, mas acontecimentos.[...] Não são agentes ou pacientes,
mas resultados de ações e paixões, 'impassíveis' – impassíveis resultados". Na seqüência,
veremos como esses incorporais (em seu texto, “espíritos animais”) são trabalhados por
Sade. O caráter repetitivo dos textos sadeanos, apontado por alguns críticos como monótono,
pode ser lido, assim, como um procedimento que atende a esse seu singular espírito
investigativo que busca a diferença, enquanto aquilo que varia, na repetição. Os 120 dias de
Sodoma, por exemplo, construído em quatro partes – paixões simples, complexas, criminosas
e assassinas – é composto de 600 narrativas (à maneira do Decameron, de Bocaccio), 150 para
cada tipo de paixão, que progridem com pequenas e quase imperceptíveis variações de uma
para outra. Da mesma forma é construída a inesgotável progressão dos corpos nas orgias.
Uma progressão que não significa "ir em progresso": "(...) o que queremos dizer por 'crescer',
'diminuir', 'avermelhar', 'verdejar', 'ser cortado' etc., é de uma outra natureza: não mais
estados de coisas ou misturas no fundo dos corpos, mas acontecimentos incorporais na
superfície, que resultam destas misturas" (Deleuze, 1974: 7).
124 É também como excitação nervosa que os corpos respondem ao excesso de imagens e de
134
romances – construídos como longas narrativas ou, mais comumente, como
diálogos penetrados por reflexões filosóficas – o corpo e o sexo são sempre
apresentados como aqueles de que se fala e que são tanto desconstruídos
(descodificados125) como ativados e recodificados pelo discurso. Mesmo quando
são montadas cenas de orgia, tudo é ordenado, comentado, indicado,
explicitado, instruído e relatado por um dos personagens. Não há, portanto,
desregramento dos corpos e das paixões em Sade, mas sempre sua absoluta
sujeição à linguagem, não havendo paixão ou ação do corpo que não possa e
não deva ser simulada antes pela linguagem. Como observa Klossowski (apud
Deleuze, 1974: 290), não há obsceno em si: “o obsceno não é a intrusão do corpo
na linguagem, mas sua comum reflexão e o ato de linguagem que fabrica um
corpo para o espírito, o ato pelo qual a linguagem assim se ultrapassa a si
mesma, refletindo um corpo”.
Nessa reflexão corpo-linguagem, há duas funções da linguagem que
caminham paralelamente, às vezes se separando, outras se entrelaçando. A
primeira é ordenadora, consignativa, designativa, imperativa, configurando o campo
dos enunciados em estratos altamente hierarquizados e instituídos; a segunda é
expressiva e configura-se, em seu excesso, numa dimensão ético-estética que
emerge, atravessa e ultrapassa a hierarquização ordenadora e designativa para
afirmar uma pura diferença: o desejo libertino. São essas duas funções que
conferem ao texto sadeano seu duplo movimento intensivo, regramento estrito e
opressivo, desregramento alegre e libertário. Ambas se alternam no sistema que
Sade constrói em Os 120 dias de Sodoma, com a primeira predominando no
desenho do campo de visibilidade e do campo de enunciação que constróem o
cenário conforme diagramas que fornecem as condições para que a ação
perversa se efetue e se sustente.
Os acontecimentos de Os 120 dias se dão em um castelo isolado, de
difícil ou quase impossível acesso, no qual se organiza uma verdadeira
125
Do francês décodés, derivado de décodification, termo utilizado por Deleuze & Guattari para
indicar “código – de sistema semiótico, de fluxo social ou material – desmanchado”, diverso
de “decodificado”, que indica “código analisado, apreendido, traduzido em outro código”.
135
autarquia social, com rígida organização hierárquica. Há vários espaços no
castelo, cada um com uma função específica e também hierarquizada nas
passagens de um para outro, que confluem para um salão no qual se
organiza um sarau. O cenário assemelha-se ao de um teatro, com lugares e
direitos de acesso à palavra pré-definidos para cada participante. Todas as
regras que compõem a cena devem ser estritamente obedecidas. Sade
constrói sempre personagens, indicando que se trata de atores atuando em um
teatro (mesmo em outros livros, nos quais os acontecimentos se dão em
espaços não previamente montados como um teatro – o convento, o castelo, o
território de um senhor...), dividindo-os em atores que discursam e atuam e
atores que atuam. Classifica-os, recorrendo, para isso, a figuras, convocadas a
representar os vários estratos que organizam um campo social. O padre, o
nobre, o jurista, o financista (designações que remetem às instituições que os
legitimam), são identificados como libertinos, e, como tais, atores que atuam e
discursam justificando-se e valendo-se, para isso, da razão filosófica. São
unidos por uma singular aliança: para celebrar sua associação e
compromisso, cada um toma a filha de outro como esposa, com a condição
de que elas possam ser mantidas no circuito de trocas entre eles. Sade ataca a
nuclearidade familiar e a privacidade de seus membros, colocando todos os
que a compõem (esposa e filhos) numa ciranda na qual o incesto torna-se,
para o libertino, o delito mais legítimo e prazeroso. Os libertinos são assim
soberanos, senhores em seu campo, de forma que nos encontramos, com eles,
no coração do imaginário do poder, cujo discurso, negado nas instituições é,
no castelo ou na alcova, exposto à plena luz.
Em seguida, na hierarquia, há os atores que atuam, os contratados,
classificados em vários segmentos: a) as narradoras, cortesãs que, narrando
suas experiências passadas com outros libertinos, atuam pela narrativa, sob as
ordens dos libertinos, fornecendo os limites para a efetuação no exterior, na
ações sobre os corpos das vítimas, de suas paixões. Isto é, sua função é
sustentar, no sarau, a atividade imaginativa dos corpos dos libertinos. Essas
136
paixões mobilizadas pelas narrativas serão, em seguida, realizadas nos corpos
passivos das vítimas, e dentro dos limites fornecidos pelas narrativas.
Sempre que esses limites são ultrapassados, isto é, que outras paixões não
indicadas pela narrativa insistem em se realizar, elas são autorizadas, mas
deverão se efetuar fora da cena e seu agente será ridicularizado,
transformando-se em alvo de deboche, por não ter domínio das próprias
paixões. Este é um dos sentidos do deboche em Sade: a desautorização entre
iguais, uma provocação que não cessa de ameaçar o infrator da perda de sua
condição de “igual”, quando não da própria vida, caso ele não se sustente no
jogo, sendo a paixão que excede as regras parte constitutiva desse jogo, não
sua transgressão. As narradoras não “filosofam”, isto é, não justificam
racionalmente o que narram, mantendo suas falas no limite do imaginário,
como produtoras de matérias de expressão que permitem as intensidades
mobilizadas pelas narrativas se efetuarem.126 Em seguida, há b) os que não
126 Temos aqui, bem desenhada por Sade, uma das funções da produção imaginária
enquanto proposta para consumo aos públicos. Sejam os produtos da literatura, das artes, do
teatro, do cinema como atividades criadoras, sejam os produções industriais mais
diretamente ligadas à mobilização de públicos para seu consumo, como o cinema industrial
e as narrativas ficcionais televisivas, eles fornecem matérias de expressão para a
exteriorização e efetuação de afetos dos que os consomem, dispondo-se, com menor
freqüência, ao pensamento (o que não significa que não se possa pensar e agir a partir dessa
produção, mas sim que sua recepção, sendo afetiva, não requer, como condição necessária e
precedente, o pensamento). Lendo 120 dias, Barthes (1979) indica o quanto de cinema há em
Sade, não só em suas montagens de cenas congeladas, mas também em suas indicações do
que deve ficar "fora de cena" (o obsceno, deixado para a imaginação do leitor), e que só é
anunciado por gritos e ruídos, mas não descrito (mostrado): é nesse “fora de cena” que,
como vimos, podem ser mobilizadas as paixões não suportadas pela narrativa. Uma dupla
afetação pode, portanto, derivar das narrativas: na cena, uma mais diretamente ordenadora e
determinante; fora da cena, outra oculta e invisível, mobilizada pelas atividades
imaginativas do corpo que excedem as narrativas. Se as primeiras garantem o
funcionamento da orgia coletiva, legitimando a sociedade que se forma com ela, as segundas
atendem aos movimentos singulares que emergem em uns e outros, consentidas e de certa
forma incitadas, mesmo que ao preço de sua ridicularização. O que Sade parece querer
indicar aqui é que, por mais que se procure controlar a atividade imaginativa dos corpos, ela
sempre excede esse controle. Um excesso que não pertence ao mundo organizado, embora
seja imanente a ele, e que deve ser mantido fora de cena, de forma a não perturbar a ordem
das coisas (ver PARTE II, CAPÍTULO 3 – FORA). Em Histoire de Juliette, essa estrutura se mantém,
com algumas diferenças significativas: na orgia coletiva não há mais a participação de
vítimas, que são buscadas sempre fora do espaço da Sociedade; a orgia ocorre em eventos
periódicos promovidos pela Sociedade dos Amigos do Crime, acompanhada por grandes
banquetes. Se não são permitidas manifestações de desagrado no espaço comum – todos
devem aceitar os desejos de todos –, para os que se retiram para os espaços privados as
137
falam, só atuam: os fodedores, que também assumem a função de carrascos e
guardas, devendo executar ações em estrita obediência às ordens dos
libertinos, não devendo ser, portanto, movidos pelas próprias paixões e sim
pelas paixões dos que os comandam;127 c) as preceptoras, mulheres do povo
com deformações físicas e morais (isto é, já corrompidas de corpo e alma, não
estando marcadas por quaisquer virtudes que indiquem nelas uma escolha
moral, o que as leva a simplesmente cumprir prontamente o que lhes é
ordenado), que devem cuidar das vítimas e vigiá-las, fazendo-as obedecer
estritamente às regras definidas a cada momento, quaisquer que sejam.
Finalmente, o terceiro conjunto de personagens, os raptados ou
seqüestrados: as vítimas, que, como figuras, indicam o alvo principal dos
libertinos, ou seja, a virtude como escolha antecipada do bom e do Bem; as
vítimas são jovens virtuosos que, filhos da nobreza e da alta burguesia,
receberam a melhor educação possível nos colégios religiosos e possuem
corpos perfeitos, sem doenças ou marcas. São raptados desses colégios ou da
casa de suas famílias e transformados em objetos para o exercício do desejo
dos libertinos.128 No curso do romance, eles serão acuados, aterrorizados,
ameaçados, ludibriados, levados à traição de seus parceiros e obrigados a
seu argumento é sempre o de ter cumprido ordens no exercício de sua função, eximindo-se
de uma posição de vontade ou desejo. É a essa figura subalterna que esses atores de Sade
remetem. As reencontramos com freqüência nos julgamentos de crimes de guerra, como o de
Nuremberg. No Brasil, no julgamento dos crimes de tortura do governo militar, ou, mais
recentemente, da chacina do Carandiru, em São Paulo, foram os argumentos de
cumprimento do dever os utilizados em própria defesa pelos acusados.
128 Funcionam, como já foi dito sobre a perversidade, como pretextos para a ação, não sendo,
nenhum deles, tomado, em si, como objeto de desejo. Eles não são, portanto, individualizados,
personificados. Ou melhor, parte-se de sua individualização (sua origem, sua formação, sua
identidade, sua imagem de corpo inteiro) para dissolvê-la, restituindo os corpos ao próprio
silêncio.
138
ceder, de preferência sem consentimento, aos assédios dos libertinos. Nesse
percurso, o que se objetiva é desconstruir neles suas virtudes. No teatro cruel
montado para eles, no qual qualquer desobediência pode ser punida
desmedidamente, não há saída: mesmo quando eles se deixam seduzir e
aceitam o assédio, são rapidamente deslocados dessa posição e devolvidos ao
lugar de vítimas. Seu destino é sempre a morte, contra a qual eles devem
lutar, buscando adiá-la sem sucesso (daí as seduções e traições a que são
movidos), na medida em que o que os salvaria da morte, por tirá-los da
posição de vítimas, seria a plena extinção, neles, da virtude transmitida pela
educação moral e religiosa, isto é, tornarem-se, eles próprios, ativos e
também libertinos.129 Não é difícil reconhecer, nessa rígida organização, seu
caráter paródico: as referências de Sade são as instituições, as idéias e as
formas de exercício de poder de seu tempo, que ele flexiona em seus
romances, construindo o que indico como sua “outra cena”.
Relativamente a essa primeira função da linguagem que seu sistema
explicita, o texto sadeano surge como via para reconhecer de que maneira as
instituições inscrevem os corpos, seja pelo discurso, seja pela ação direta, e os
determinam em seus movimentos desejantes, levando-os a compor,
preservar, desejar e reproduzir, em suas associações e conexões com outros
corpos, os próprios movimentos constitutivos das instituições sem que os
reconheçam mais como algo que lhes chega de um exterior e os inscreve, o
129Uma das hipóteses que movem minhas leituras de Sade, a verificar em outro lugar, e que
só deixo esboçada aqui: tratar-se-ia, em seu projeto, não da destruição da pessoa virtuosa,
mas sim da condição de vítima em que essa causalidade externa a instaura. Penso que é nesse
sentido que se torna possível ler o projeto sadeano como busca de construção do homem
integral e soberano, retomado mais tarde por Nietzsche. Para isso, teríamos de pensar sua
“escolha do Mal absoluto” como estratégia de passagem para um “além-do-homem”, um
devir que, embora não realizado por Sade, é posto por ele como possibilidade: o de cada um
reconhecer em si o que causa a violência para só então ultrapassá-la (isto é, dobrar para si as
forças do Fora). A distinção entre os termos sádico e sadeano visa, assim, indicar uma
irredutível diferença entre as ações sádicas e o projeto sadeano. É nesse sentido que
podemos entender a ética psicanalítica como sadeana, na aproximação Sade/Kant que faz
Lacan (1988; Kant com Sade, in Lacan, 1972), estabelecendo um paralelismo entre o
imperativo categórico kantiano (“você pode porque deve”) e o imperativo sadeano
(“goze!”): como o gozo é inconsciente, na análise trata-se de continuamente restituir o
analisando ao seu enigma: ele efetivamente quer para si o que deseja?
139
que os leva a formulá-los como próprio desejo. Movimentos nos quais a
diferença, como um absoluto e irredutível outro, comumente não encontra
condições de reconhecimento ou de abertura para o outro.
É segundo essas funções ordenadoras da linguagem (como atos
internos à palavra e como relações imanentes dos enunciados com os atos,
denominados por Austin “pressupostos implícitos ou não discursivos”, cf.
Deleuze & Guattari, 1988: 83), que atravessam os corpos inscritos por
dispositivos institucionais os mais diversos, que o texto sadeano serve-me
como suporte para reconhecer algumas construções das cenas operadas pelos
programas televisivos, cuja “perversidade ou pornografia tendencial”130 é
140
mais ou menos visível conforme seu menor ou maior nível de elaboração
formal.
Em relação a esse caráter “institucional” do texto sadeano, Deleuze
afirmou que o discurso de Sade é o próprio discurso das instituições,
contrariamente ao de Sacher-Masoch, que seria o dos contratos,131 não
havendo, na ordem desses dois discursos, complementaridade possível, do
tipo senhor/escravo, opressor/oprimido. Embora possa se reconhecer uma
disposição masoquista no sadismo e uma disposição sádica no
masoquismo,132 elas têm funções diferentes em um e outro, já que pertencem
a registros diferentes, um ao institucional e outro ao contratual. O sádico e o
masoquista, em seus respectivos registros, são ambos senhores, ambos
tão-somente, sustentar seu contrato inicial? – e, quando falam, ambos propõem não se verem
mais, rompendo nesse momento o contrato. Essa decisão final re-significa o “pornográfico”
do título, que, longe de indicar o “para que se encontravam” – a relação sexual –, explicita-
se como recusa de habitar o território formado no plano de consistência de seus encontros,
ou, mais precisamente, como intransitividade entre o contrato que os constituíra como casal, o
qual buscavam assegurar pela repetição dos encontros (mesmo dia, mesma hora, mesmo
lugar, mesmo fazer), e a diferença introduzida, em cada um, pelo território formado nos
movimentos de simulação das intensidades mobilizadas em seus repetidos encontros, que já
haviam desmanchado o contrato inicial. A associação corrente e direta da pornografia às
cenas de “sexo explícito” no cinema assume dimensões polêmicas quando estas surgem em
alguns filmes não pertencentes à vertente do cinema pornô, como O império dos sentidos, de
Nagisa Oshima (1976), Romance, de Catherine Breillat (1999), Intimidade, de Patrice Chereau
(2001) etc. Perante esses filmes, cuja narrativa é atravessada por sentimentos de angústia e de
dissolução associados ao desejo, qualificá-los como “pornográficos” é uma forma de
denegação dos afetos que eles mobilizam, deslocando-se o que efetivamente é percebido
como obsceno em sua linguagem, em sua narrativa – que mobiliza afetos desterritorializados,
não-significáveis na experiência – para a “obscenidade” das cenas que, num filme pornô, são
aceitas como “naturais” e até mesmo atraentes/excitantes.
131 Essas duas formas discursivas são o ponto de partida para Deleuze (1973) indicar a
prazer exclusivamente em provocar dor em outro, e o masoquista como aquele que retira
submissamente seu prazer da dor que outro lhe provoca, no teatro sadeano o libertino sádico
sujeita-se às mesmas penas que impõe a suas vítimas (ser também chicoteado, sodomizado,
violentado), com a diferença de que o faz alegremente, retirando das próprias dores seu
prazer; em contrapartida, sua vítima não deve retirar quaisquer prazeres das sevícias a que é
submetida. Por sua vez, no teatro masoquista, longe de ser submisso ao seu opressor, é o
masoquista quem o comanda, mantendo-o em suspensão e na impossibilidade de extrair, de
suas ações, o próprio prazer. São relações, portanto, sempre assimétricas.
141
afirmam seu conatus conforme podem, imaginariamente, suas almas e seus
corpos.
Por essa especificidade de suas posições de desejo (agressão sádica,
suspensão masoquista), ambos permitem pensar o problema da alteridade
como o primeiro a ser colocado no horizonte humano, na medida em ambos
procuram sustentar seu próprio desejo sem que o outro, enquanto desejante,
encontre nele qualquer possibilidade de afirmação de si ou de
consentimento, ou, mesmo, de furtar-se ao desejo imperativo do outro.
Afetar sem ser afetado no encontro de corpos, tal parece ser a prerrogativa da
afirmação soberana de um desejo de desejar que, ao encontrar o outro, busca
rapidamente efetuar-se em seu corpo.
Se há, entretanto, uma função imperativa da linguagem sadeana na
relação com o exterior que, sem grandes dificuldades, podemos reconhecer
como despótica e sádica, a função expressiva da linguagem em seus textos é de
outra ordem e cumpre outro percurso, que nos leva a sua proposição ético-
estética.133 Para chegar a ela, trata-se de compreender, primeiro, o que visa Sade
com o recurso à pornografia e à violência em seus textos, ou melhor, a função
que ambas assumem neles.
No século XVIII francês, a pornografia não é exclusiva de Sade. Sua
produção literária inscreve-se, em primeiro lugar, na corrente da farta
literatura libertina do período, literatura essa que funcionou como
máquina de guerra para a difusão dos ideais libertários da Ilustração.
133 Proposição sempre difícil de apreender, uma dificuldade que continuamente retorna
perante produções artísticas que ultrapassam o limite do assimilável pelo senso comum
moral, provocando respostas similares às produzidas pelo texto sadeano. O fotógrafo norte-
americano Mapplethorpe, por exemplo, foi alvo de muitos protestos e processos por expor
fotos consideradas obscenas, principalmente por seu forte conteúdo homossexual. Em Fotos
proibidas (2000), o cineasta Frank Pierson, em estilo semi-documental, relata o processo a que
foi submetida uma galeria de arte em Cincinati (EUA) e as perseguições a seu diretor,
introduzindo na narrativa depoimentos de autoridades locais e nacionais, além de
comentários do próprio Mapplethorpe sobre seu trabalho – que afirmava buscar na
pantomima dos corpos sua inocência – e análises, por críticos de arte, dos valores estéticos
das fotos. O filme insere-se nos debates sobre a liberdade de expressão, direito inalienável
garantido pela Constituição norte-americana, e os limites a ela impostos pela moralidade de
grupos formadores de opinião.
142
Como diz Rouanet (O desejo libertino entre o Iluminismo e o
Contrailuminismo, in Novaes [org.], 1990: 167-168),
143
dimensão erótica raramente encontra expressão. Foi essa dimensão que
Bataille (com História do olho, Madame Edwarda) e Klossowski (com Roberte ce
soir) procuraram reinserir na literatura.
134 Essa crítica se expressa, sinteticamente, no panfleto “Franceses, um esforço a mais para
serdes republicanos”, inserida no romance de 1795, A filosofia na alcova (s/d), momento em
que Sade inscreve em seu texto referências explícitas ao momento político no qual transcorre
a narrativa. No panfleto, que um dos personagens leva para a alcova e lê para seus parceiros
de orgia, Sade argumenta que uma nação democrática fundada na igualdade, liberdade e
fraternidade deve ter um mínimo de leis, na medida em que a própria sociedade, sob tais
princípios, se concertaria (autogestão?) e haveria poucos crimes a serem regulados ou
punidos. Em um mundo no qual todos se reconhecessem criminosos (já que seria essa a
condição de todos como iguais, posto que a crueldade é a expressão da própria natureza
humana que a fragilidade moral não deseja reconhecer) não haveria fortes e fracos nem
opressores e oprimidos, mas sim reconhecimento da força de uns por outros. Seus
argumentos são provocadores e paradoxais: pergunta pela legitimidade do pacto social, o
qual prescreve que tanto o detentor de riquezas e propriedades como o miserável, que nada
tem, devem validar e aceitar, em condição de igualdade, o direito e o respeito pela
propriedade privada; ora, continua, a única forma de legitimar tal pacto seria não punir o
miserável quando este rouba, na medida em que este só estaria procurando assegurar seu
direito à propriedade, legitimando para si mesmo o pacto; por sua vez, o que é roubado
deveria ser punido por não ter defendido um direito que ele reconhecera como válido e
legítimo, sendo maior infrator, portanto, que o ladrão, que só estaria procurando validar o
que assinara. Todos os seus argumentos – sobre a moral, os costumes, a liberdade dos
homens e das mulheres, o direito das crianças etc. – buscam apontar contradições no pacto
social que, se não corrigidas prontamente, o ameaçariam de dissolução. Paterman (1993)
afirma que o contrato social definiu, paralelamente à divisão do trabalho, uma também
rígida divisão sexual, lendo em Sade, particularmente nas suas inversões (cenas de
casamento em que os homens vestem-se como mulheres, por exemplo), ou nas práticas
sodomitas abundantes em seus romances, esforços de dissolução dessa divisão (o privilégio
dado à sodomia por Sade não expressa uma possível pulsão “homossexual”, mas sim a
recusa sistemática da função reprodutora do sexo, além, claro, de um desafio às leis de seu
tempo, que criminalizavam a sodomia). A filosofia na alcova, “paidéia” e teatro sadeano no
qual cenas de orgia alternam-se com longas digressões filosóficas sobre seus temas correntes,
é o único romance não violento, o mais “alegre” e “libertário” de Sade, no qual a “vítima”
(uma adolescente de 15 anos entregue aos “preceptores imorais” por seu pai para ser
educada nos princípios libertinos) sai, desde o início, de sua posição de vítima por recusar as
virtudes que a formaram e por aderir à felicidade no prazer que seus preceptores lhe
ensinam, chegando mesmo a superá-los. A presença do panfleto no romance não cessa de
provocar seus leitores, assumindo, como observa Lefort, dimensões diferentes se lido
isoladamente ou no fluxo dos diálogos: ao interromper esse fluxo para apresentar o panfleto,
Sade abre uma comunicação entre a alcova e o espaço das ruas, sugerindo que sua erotologia
144
como máquina de guerra para sua própria filosofia,135 Sade, ao colocar em
primeiro plano o tema da corrupção como resultante da civilização e da
moral e, ao mesmo tempo, como expressão de um desejo natural do homem
que a nova liberdade deveria legitimar, leva o pensamento da Ilustração aos
seus limites de contradição e dissolução (cf. Lefort, Sade: o desejo de saber e
o desejo de corromper, in Novaes [org.], 1990: 247-260). Para Foucault, como
já vimos (Nota 50), a obra de Sade é “um pastiche transgressivo, irônico,
profanador, contestador, exaustivo, da filosofia e do romance do século XVIII
que, por um processo de reduplicação, apaga, aniquila, esteriliza a
linguagem” (Machado, 2000: 114).
Posição paradoxal, para a qual Sade parece não oferecer saída: se, de
um lado, a educação moral e religiosa é apresentada como fator de corrupção
e fragilização dos corpos, devendo portanto ser neles desconstruída, liberar
os corpos desse fator implica reconhecê-los em sua própria natureza
corrompida, o que acaba por legitimar a corrupção como expressão de um
desejo soberano que a moral e as leis não podem coibir. O que marca a
diferença entre as duas formas de corrupção é sua força. A primeira,
derivada da moral, é fraca, oportunista, sujeitada, traiçoeira e sempre
dependente dos poderes; a segunda, expressão da própria natureza, é
soberana e afirmativa, o que justifica que alguns de seus leitores (como
Rouanet e Lefort) identifiquem nessa diferenciação uma passagem da
historiador Robert Darnton não tenha feito nenhuma referência a Sade entre os autores
libertinos que comenta.
145
sujeição do corpo ao despotismo que o oprime para a afirmação soberana
desse mesmo despotismo por um eu-déspota na relação com o próprio corpo
e com outros corpos. Seria pensável uma corrupção que atuasse como
contracorrupção?, pergunta Lefort (Sade: o desejo de saber e o desejo de
corromper, in Novaes [org.], 1990: 260). A resposta é dada, de certa forma,
pelo próprio Sade: diz ele que só um desejo soberano e afirmativo poderia
confrontar um outro desejo soberano e afirmativo e estabelecer com ele um
jogo de forças ou de cordialidade. Em seus romances os libertinos, enquanto
iguais, são sempre extremamente cordiais e elegantes uns com os outros,
sempre encantados com as singularidades de seus vícios, prontificando-se a
alegremente satisfazê-los quando são demandados a isso. No interior da
Sociedade dos Amigos do Crime, a violência jamais é consentida entre seus
membros, que, como iguais, devem se respeitar e satisfazer sem recusa as
demandas singulares de prazer de uns e outros, vivendo sua democracia
conforme os princípios expostos no panfleto “Franceses, um esforço a
mais...”
146
Se é possível aceitar como verdadeiro o propósito de reconhecer
reiteradamente o Mal em si mesmo para ultrapassá-lo, que Bataille (1968)
indica ser o de Sade, teríamos de concluir ser nessa proposição que ele
procurava também implicar o leitor. Trata-se, então, de compreender melhor
o que significaria, para ele, a “ultrapassagem do Mal”. Estaria ela tão
somente no confronto e reconhecimento de forças que, por serem
equivalentes (todos se reconhecendo como criminosos), se afirmariam uma
perante a outra e, nessa afirmação, poderiam estabelecer entre si suas
regulações, resultando disso uma Ordem relativamente estável?
136 A filosofia na alcova: “Suponho Eugénie bem curada dos erros religiosos para não estar
persuadida no íntimo de que tudo o que burla os objetos de piedade dos tolos não pode ter
nenhuma espécie de conseqüência. Essas fantasias sacrílegas só devem excitar os mais jovens, a
quem toda ruptura de freio resulta em gozo. É uma espécie de pequena vindita que inflama a
imaginação e talvez divirta por alguns instantes; mas tais volúpias depois se tornam insípidas e
frias a quem teve tempo de instruir-se e convencer-se da nulidade desses objetos, cuja débil
representação são os ídolos que ridicularizamos. Aos olhos do filósofo, profanar relíquias,
imagens de santos, hóstia ou crucifixo não é mais que a degradação de uma imagem pagã.
Consagradas essas bugigangas execráveis ao desprezo, é preciso abandoná-las e aí esquecê-las.
Disso tudo só é bom conservar a blasfêmia; não por ter mais realidade, pois em não havendo
147
denunciado o despotismo dos homens de poder e ter defendido a glória de um
mundo onde todos fossem senhores e soberanos, Sade faz um seu personagem
libertino indagar: “o que seria de nosso prazer se não existissem esses
miseráveis para podermos oprimir e violentar? Só existimos porque eles
existem”. Isto é, o que seria da força se ela não pudesse se exercer sobre um
outro mais fraco, impotente para defender-se? Esse mundo de Sade, que oscila
entre transgressão e ausência de interditos, entre desejo de profanação do
sagrado e inexistência de um sagrado a profanar, é segundo Foucault, o da
morte de Deus que inaugura a modernidade.
mais Deus de nada adianta insultar seu nome, mas porque é essencial pronunciar palavras fortes
ou sujas na embriaguez do prazer, e as da blasfêmia servem bem à imaginação” (Sade, 1982: 43).
148
força transgressiva, podem ocupar nas produções da cultura (produções
que Freud entendia como advindas da sublimação das pulsões sexuais e
agressivas). Se há uma insaciabilidade que marca sejam as relações de
poder, sejam os movimentos de ir cegamente ao mundo e ao outro em
busca de satisfação, sejam as aspirações de consumo, como fazer dessa
insaciabilidade algo além de uma consumação continuada de si e do
mundo? O que seria, nessa insaciabilidade, a afirmação da diferença?
137Dessa diferença homem nobre-homem burguês poderíamos pensar o lugar (ou melhor, o
não-lugar) que o libertino passa a ocupar na nova ordem social: recalcado (seqüestrado) pela
virtude burguesa, ele passa a ser tanto negativizado na figura do perverso (“degenerado
moral”), como positivado na figura idealizada do sedutor amoroso ao qual as mulheres não
deixariam de ceder, figura que aterroriza a instituição familiar. No século XIX, a literatura irá
trabalhar essa dupla condição na figura do vampiro, ao mesmo tempo monstruoso e
fascinante, perverso e romântico.
149
homogeneização do campo social torna-se condição de funcionamento e
de regulação. Essa produção de homogênese irá operar-se pela exclusão
de toda heterogênese138 que possa manifestar-se e emergir do campo
social, daí encontrar nos processos de disciplinarização, classificação e
diferenciação de grupos e indivíduos a possibilidade de legislar sobre
tudo que não seja útil para sua realização.
150
social, seja a proposta pela sociedade homogênica como trabalho
útil/produtivo, seja a que supõe a própria produção do vínculo social, posto
que os corpos sadeanos são sempre solitários, em processo de auto-
engendramento, como era o próprio corpo de Sade na prisão.140 Trata-se de
alcançar um plus de força, que excede, ultrapassa e recusa a que lhes seria
demandada no campo social, e que não serve a ele. Mas trata-se também de
chegar, com esse plus de força, ao ponto da própria dissolução, da própria
desintegração. Foucault mostra que, ao lado de Hölderlin e de
Chateaubriand, Sade introduz a morte na literatura moderna:
140No lugar do vínculo social, Sade introduz uma relação de cumplicidade, seja entre os
pares-personagens de seus romances, seja com o leitor. Uma cumplicidade que ocorre numa
pura exterioridade de um em relação ao outro, em pura descontinuidade, em puro contato
de si a si como efeitos de superfície. Os corpos, embora se misturem, não se articulam uns
com os outros, suas intensidades duram na duração dos discursos, e o que os move é o fato
de compartilharem uma mesma atividade imaginativa, proposta como hegemônica, comum
a todos. Nessa cumplicidade não há outrem: os que ele designa como seus parceiros não
diferem dos que designa como vítimas. Quer com uns, quer com outros, não há mundo
possível, já que é sempre outrem quem porta um mundo possível.
151
de Investigações fisiológicas sobre vida e a morte] rompe com a concepção
clássica da morte: ‘Colocar a morte como coextensiva da vida, fazer dela o
resultado de mortes paralelas e, sobretudo, tomar como modelo a ‘morte
violenta’ em vez da ‘morte natural’” (Machado, 2000: 56)
152
ouvinte (aquele que participa da orgia) ou o leitor, mas sim, estabelecendo
uma relação de cumplicidade, tão somente colocá-lo em seu fluxo, afetando-o
e desordenando-o corporalmente (“corrompendo-o”), sendo a tarefa da orgia
reordená-lo, devolvê-lo à sua ordem “natural”, ou, mais propriamente, às
suas puras singularidades. Aqui se manifesta a desrazão de Sade tornada
obra, em seu movimento de colocar sua fala numa relação com o exterior,
com o Fora: se são as palavras e as idéias que excitam e mobilizam os corpos,
retirando-os de suas suspensões, é sempre delas a liberdade e a invenção de
novas articulações no interstício entre o Ver e o Falar. Essa liberdade é a de
um poder dizer, de um “eu falo”142 expressivo que porta uma linguagem
desarrazoada que não cessa de romper (e a ele retornar) o limite da
linguagem consentida pelo homem moral, que encobre a violência que a
sustenta, como observara Bataille (1968). Nesse sentido, a ultrapassagem do
142 Sade-escritor fala a fala dos libertinos, como indicou Bataille, mesmo quando ludibria o
leitor identificando-se como comentador que denuncia essa fala. Quando acusado por
publicar Justine, por exemplo, nega reiteradamente a autoria dessa “obra infame”. Estratégia,
de um lado, para livrar-se das acusações e continuar escrevendo clandestinamente, de outro,
expressão de sua relação com o próprio texto. Esse “eu falo” (a forma de soberania em Sade),
que Foucault identifica como o pivô da literatura moderna, é a maneira como a linguagem se
coloca em xeque e, com ela, o pensamento, daí sua proximidade com a loucura (La pensée
du dehors, Critique, 1966, apud Pelbart, 1989: 116): há uma aparente coincidência entre o
objeto da proposição (o fato de que eu falo) e a proposição que a enuncia (eu digo que eu
falo), coincidência que só seria possível se existisse um discurso prévio que pudesse servir
de suporte ao enunciado proposto, que lhe fosse anterior e exterior. Poderíamos até mesmo
dizer que ele existe nos textos de Sade – os autores dos quais parte, os que admira ou critica,
ou aqueles a se refere em seus textos, por exemplo, quando um libertino recomenda a outro
a leitura de Espinosa... Entretanto, ao fazê-los passar por sua fala, não se trata mais de um
discurso prévio, mas já de uma flexão (dobra) desses outros discursos em seu próprio
discurso. “O ‘eu falo’ moderno se resume à sua própria enunciação, nele coincidem
enunciado e enunciação de tal modo que, ao me calar, o próprio discurso se apaga. Em torno
do ‘eu falo’ – o deserto. Aparece, no ‘eu falo’, esse vazio que o rodeia, e em direção ao qual
ele se dirige. Nada mais pode limitar o movimento sem conteúdo dessa palavra que se
alastra em direção ao seu exterior, para fora de si mesma. Nessa mobilidade infinita
dispersa-se o sujeito dessa fala, os valores que ela possa veicular e acumular, a verdade.
Enfim, não é mais discurso e comunicação de um sentido, mas o desdobramento da
linguagem em seu ser bruto, pura exterioridade desdobrada. O discurso, sistema de
representações sustentado por um sujeito que enuncia uma verdade, cede lugar à linguagem
em seu caráter mais próprio, que é o do alastramento indefinido, para fora de si e num
espaço nu” (Pelbart, 1989: 116-117). Eis um sentido para o “deserto humano” que Sade cria
com a extinção que ele promove dos corpos (corpos-linguagem), um despovoamento da
humanidade, por assassinato, promovido pelos libertinos falantes em seus romances. “O
assassinato como uma das belas-artes”, tema que irá se multiplicar na literatura a partir do
século XIX.
153
Mal é a ultrapassagem dos limites da linguagem (buscar a coincidência da
palavra com a coisa, com o que ela nomeia; a coincidência do falar e do agir),
fazer fugir sua função ordenadora para encontrar dela sua expressividade,
num esforço que seria o de toda ficção, conforme Foucault o indica: mostrar
quão invisível é a invisibilidade do visível. Para tornar isso possível, é
necessário transgredir a interdição da linguagem:
“mecanismo através do qual uma fala contém o que ela diz e o código
necessário para entender esse dito. Não se trata de uma linguagem cifrada
que necessitasse de um código exterior a ela para decifrá-la corretamente.
Não é a comunicação codificada de um significado oculto e proibido.
Foucault está falando de uma palavra redobrada sobre si mesma numa
linguagem que ele batizou de estruturalmente esotérica. Os sentidos que essa
fala libera são menos importantes do que a ‘fuga incontrolável... em direção
a um centro obscuro’, interior a essa fala. Diferente das três primeiras
modalidades de transgressão, essa última não consiste no código, sentido ou
154
matéria verbal, mas no jogo que se instala entre fala e língua” (Pelbart, 1989:
113-114).143
143 Essa quarta modalidade é a trabalhada por Freud. Ela aparece como “uma fala que se
enrola sobre si mesma, dizendo sob aquilo que ela diz outra coisa, cujo único código possível
é ao mesmo tempo ela própria: linguagem esotérica, digamos, pois ela detém sua língua no
interior de uma palavra que não diz outra coisa, finalmente, a não ser essa implicação”
(Foucault, apud Pelbart, 1989: 114). A essa palavra Lacan chamou “palavra plena”, em
contraponto ao discurso vazio das falas cotidianas que supõem uma comunicação unívoca.
144 Sua interpretação inicial de Sade levara-o a formular a idéia de uma consciência infortunada
(“um desejo absoluto determinado pelo objeto absoluto [Deus: fundo da alma]” [1985: 10]), lendo
o sadismo como descrença. O tema da descrença ou da “perda de Deus” como determinantes da
violência é freqüente, em particular entre os grupos religiosos, sendo evocado também em
discursos veiculados pela mídia perante atos não justificáveis racionalmente, concorrendo com o
da loucura entendida como irracionalidade ou insanidade. Entretanto, a idéia da “morte de
155
por Deleuze (1974),145 de um paralelismo do corpo e da linguagem, com
reflexão de um plano no outro:
Deus” como ruptura com a lei simbólica, que levou Lacan a afirmar “Deus é inconsciente”,
indicando que não haveria uma correspondência entre a crença (consciente) e a lei simbólica
inconsciente, não levaria à conclusão de que, sem Deus, tudo seria permitido, mas sim ao seu
contrário: sem Deus, nada seria permitido, pois não haveria mais transgressão possível (se
pensarmos na relação dialética do desejo com a Lei). A partir dessa leitura, a negação e os
desafios a Deus, presentes no deboche libertino, nos obrigariam a pensar a consciência de Sade
como construída sobre um interdito: ao censurar Deus, a consciência tocaria no objeto absoluto,
extraindo dele o desejo absoluto, sem atingir, entretanto, a persistência desse desejo. Tratar-se-ia,
então, de tomar o desejo como imortalidade renegada, na qual a consciência de Sade não poderia
mais se reconhecer, experimentando-a na extensão de sua aflição, como parece ocorrer com os
libertinos de Histoire de Juliette.
145 A discussão feita por Deleuze parte da obra filosófica e literária de Klossowski, e não
diretamente de Sade. Klossowski, por sua vez, produz uma literatura que deve muito a
Sade, como também, fortemente, a Nietzsche. O que ele desenvolve, portanto, mescla esses
dois autores, buscando em Nietzsche o que, de certa forma, estaria latente em Sade. A
compreensão da função expressiva da linguagem em Sade, sua afirmação das singularidades
e das intensidades puras, realiza-se mais plenamente com Nietzsche, no Anti-Cristo e na voz
de Zaratustra como homem soberano. Nos argumentos a seguir, já estamos, portanto,
caminhando para Nietzsche.
156
suspensão que marca cada momento da diferença, esta imobilização que marca
cada momento da queda” (Deleuze, 1974: 289-290).
157
ao exercício da linguagem. Efetivamente, só se torna possível ler Sade
quando suas narrativas deixam de ser mobilizadoras de nossas próprias
paixões, momento em que recuamos dos conteúdos do texto para seu
movimento, para sua operatividade. Ora, é nessa apatia que encontramos a
distinção feita por Klossowski entre projeto sadeano (superação/
ultrapassagem das paixões ⇒ assunção ético-estética) e sadismo (frieza ou
ausência das paixões ⇒ ação sádica). O que implica a superação do eu, um
eu que só é dissoluto por já ter sido dissolvido.
158
silogismo disjuntivo –, uma dimensão teológica que resta por compreender.
Ora, diz Klossowski, a única garantia da identidade do eu e de sua base
substancial, a integridade do corpo, é Deus. Não conservamos o eu sem ter
de guardar também Deus.
159
lo conforme as novas exigências que lhe são feitas.147 Com essas transformações,
são os processos de homogeneização anteriormente organizados que tanto são
postos em questão como ora atuam reativamente, opondo-se às heterogêneses
cujas emergências não cessam de insistir como pólos de articulação de
singularidades e de construção de novas sociabilidades que resultam dos
encontros de corpos, ora as atravessam, despotencializam suas forças e as
recuperam, mobilizando sobre elas os dispositivos de poder que lhe são
próprios. Essas reterritorializações podem produzir, das heterogêneses,
territorialidades perversas, paranóicas, neuróticas, esquizofrênicas, muitas delas
de tonalidades microfascistas.148 É, portanto, nessa mesma tensão homogênese/
heterogênese149 já presente nos textos de Sade que hoje vemos desenharem-se
novos paradigmas, sejam eles sociais, estéticos, afetivos, éticos, assim como suas
cristalizações.
Sade, entretanto, no sadismo de seus personagens, não nos permite
vislumbrar o que resultaria do silêncio puro dos corpos que procura
produzir com sua linguagem impura. O que faz é tocar continuamente seu
limite, mas tão-somente para devolvê-los aos maquinismos de um corpo
celibatário-glorioso que avança, cristalizado, de destruição em destruição.
indicando-nos, portanto, os impasses de duas vias, a da afirmação da
Heterogênese Social”.
160
liberdade do indivíduo como entidade abstrata, anônima e “livre” na
tensão com os dispositivos institucionais que a regulam e fazem dessa
liberdade a condição de sua sujeição, e a afirmação soberana de uma
vontade de potência que é necessário ainda compreender.
O “Além-do-Homem” Nietzscheano
Rodrigues Torres Filho (Nietzsche, 1983: 228) formas mais precisas do que o usual “super-
homem” para traduzir o Übermensch nietzschiano [reproduzo a nota na íntegra]: “’além-do-
homem – por Übermensch, termo de origem medieval, calcado sobre o adjetivo
übermenschliches (sobre-humano), no sentido inicial de ‘sobrenatural’ – em latim humanus,
homo, etimologicamente: o nascido da terra (de humus), cf.: ‘mas se sacrificam à terra, para
que a terra um dia se torne do além-do-homem (§ 4). Firmado pela tradição literária (Goethe,
Herder) e renovado radicalmente por Nietzsche: ser humano, que transpõe os limites do
humano. Na falta de uma forma como, por ex., ‘sobre-homem (como em francês surhomme),
não há equivalente adequado em português, mas este próprio § 4 do Zaratustra dá o contexto
e a direção em que deve ser lida a palavra – ‘travessia, passar, atravessar’. Para ‘travessia’, o
texto traz apenas a preposição Hinüber, como que solta no ar; Übergang (de übergehen, passar
sobre) está em simetria com Untergang (de untergehen, ir abaixo, declinar, sucumbir, que se
usa também para o acaso dos astros) – numa tradução analítica, se diria: uma ‘ida-por-sobre’
161
vias de singularização e nas estilísticas de existência ligadas a essa
causalidade interna, o que podemos entender efetivamente como liberdade
soberana, da qual Sade constitui o pivô perturbador.
Propondo uma filosofia afirmativa do homem soberano que se opõe aos
mecanismos que buscam conter o exercício de sua própria força – sendo-lhe
absolutamente estranho que se proponha a uma força que ela não se exerça,
Nietzsche faz sua crítica da moral do escravo, marcada pelo ressentimento,
propondo, para isso, uma “transvaloração de todos os valores”. Por exemplo,
opondo-se à idéia de "simpatia" contida na formulação utilitarista de Bentham
sobre a felicidade e a “boa vida”, assim se manifesta Nietzsche em seu aforismo
"Moda moral de uma sociedade mercantil":
e uma ‘ida-abaixo’, para atravessar, hinübergehen. Todos estes jogos com über (sobre, por
sobre, para além) são demarcatórios quanto ao sentido do prefixo em Über-mensch”.
162
ocorrer muito superficialmente, quando não se torna uma tirânica usurpação
e remodelamento – ou formando a partir de si mesmo algo que o outro vê
com prazer, digamos um belo, tranqüilo jardim fechado em si mesmo, que
tem altos muros contra tempestades e a poeira das estradas, mas também um
portão hospitaleiro”. (Aurora, § 174, OI, 1983: 176).
163
O “Homem Soberano” de Nietzsche, que ele apresenta em seu Zaratustra
como Übermensch (um “para-além-do-homem”), não é aquele que se coloca
acima ou à parte das relações das forças com as outras forças, isolando-se,
portanto, do campo de forças e lutas que dão a materialidade do campo social,
nem aquele que as combate, em oposição e confronto com elas, mas, muito
mais, aquele que faz voltar as forças para si mesmo, que se deixa atravessar por
elas, reconhecendo-as e trabalhando-as de forma a fazer delas a própria força.
Como amor fati, as introduz em sua filosofia (uma “filosofia do martelo”,
experimentando sua violência como construtora do próprio pensar), faz delas
suas próprias estratégias de singularização, suas próprias estilísticas de
existência. Homem, enfim, que – acompanhando os percursos de Espinosa e
Sade até Nietzsche – podemos chamar de ético em seu agir e conhecer.
“Atravessar”, “atravessamento”, “ser atravessado”, “deixar-se
atravessar”, que venho utilizando para indicar a processualidade que marca
os processos de subjetivação, assumem, assim, seu pleno sentido nesse
tornar-se ético que é a posição daquele que não recusa a si mesmo ou ao
mundo em seus percursos, mas nem por isso cede a si mesmo e ao mundo
nesses percursos, sujeitando seus movimentos e seu desejo aos acenos de
felicidade ou às seduções que o assediam, ou às suas sedições, interna ou
externamente. Resistir ao presente, abrir nele linhas de fuga, tais são as vias
para a afirmação do conatus.
Esse é o plus de força que Nietzsche indica como vontade de potência.
Mas o que é a força em Nietzsche? É uma relação com outra força. Em si,
uma força não tem realidade, pois essa realidade é sua diferença com outra
força que lhe é exterior. Essa diferença é sua qualidade. Cada força só se define
pela distância que a separa de outra força, de forma que uma força só pode
ser pensada numa pluralidade de forças. Voltamos assim ao Fora
apresentado no diagrama de Foucault: o Fora é essa pluralidade de forças.
Fora que, em Nietzsche, chama-se Caos. O Caos nietzscheano é o devir,
164
enquanto turbilhão de forças em guerra e sujeitas à metamorfose constante.
Klossowski, lendo Nietzsche, incluiu nesse Caos o conjunto das intensidades,
165
P A R T E I
DE UM MUNDO
A O U T R O
Mesmo se fôssemos loucos o bastante para considerarmos
verdadeiras todas as nossas opiniões, não gostaríamos, porém, que
elas fossem a únicas a existir; ignoro por que razão a hegemonia e
a onipotência da verdade seriam desejáveis; já me bastaria que ela
possuísse um grande poder. Mas ela deve poder lutar e ter um
adversário, devemos poder descansar dela de tempos em tempos na
não-verdade – senão ela se tornará tediosa para nós, sem força
nem gosto, e nos tornará assim também.
(Friedrich Nietzsche, Aurora, # 507, 1880-81)
167
O homem contemporâneo vive a experiência do mundo, de
suas formações imaginárias, como drama individual, como
sofrimento interior, e demanda, para aquilo que reconhece
como limites à própria existência, uma resolução. Confrontado
com as imagens do mundo, sejam as das ruas e as de seus
semelhantes, sejam as produzidas pelos meios de comunicação
de massa, vive seus próprios que-fazeres como um desconcerto
próprio, o qual procura resolver procurando atender às
demandas do mundo, ora compondo com elas seus desejos, ora
experimentando-os como um desajuste às vezes irremediável,
às vezes como loucura.
Nesta PARTE I, procuro acompanhar-lhe o movimento,
caminhando, num primeiro momento, das questões interiores
vividas como clivagem e suas buscas de resposta sob a tutela de
um especialista, para, num segundo momento, perguntar pelas
maneiras como ele se dirige para o exterior, como realiza sua
experiência da mundanidade, em conexão com as imagens do
mundo e os dispositivos técnicos que fazem dele produtor e
consumidor de realidade, muitas vezes buscando nessa
realidade outras tutelas. De um mundo a outro, procuro
identificar os modos de subjetivação e de objetivação que se
processam na afetação dos corpos em seus encontros com
outros corpos, humanos e não-humanos, e, nessas afetações,
como o homem imagina, produzindo idéias de si, do outro e do
mundo.
168
CAPÍTULO 1
D E N T R O
Para quando teus anjos alcançarem a capacidade do espanto.
(frase inscrita em um quadro pintado por um paciente
diagnosticado como esquizofrênico)
170
MEMÓRIAS E REGISTROS DE UMA
VIDA EXPERIMENTAL
1 Utilizo os termos alma e psique, anímico e psíquico conforme soem mais convenientes no
texto, sem, portanto, diferenciá-los. Os próprios textos de Freud também não faziam essa
distinção, na medida em que, em grego, psiqué = alma. A adoção preferencial dos termos
psique, psíquico ocorreu nas traduções de seu texto para o inglês, por James Strachey, e para
a versão brasileira, que deriva não do original alemão, mas da tradução inglesa. Freud, aliás,
escrevia conforme os termos apareciam na linguagem comum. Assim, utilizava Ich = eu e Es
= isso, que na tradução inglesa foram transpostos, ambos substantivados, para Ego e Id. Para
o termo Über-Ich, prefiro utilizar a forma “além-do-eu” ou “para-além-do-eu”, como já
indicado para o Über-Mensch de Nietzsche, e não Super-Ego ou Super-Eu, como ficou
consagrado no jargão psicanalítico. Há vantagens nessa opção: a possibilidade de pensar a
cultura e a civilização não como instâncias opressivas ou repressivas, que impõem limites ao
desejo humano, mas sim como instâncias externas com as quais cada homem tem de
estabelecer suas conexões, suas linguagens e seus sistemas explicativos, constituindo os que-
fazeres que lhe permitem ex-sistir.
171
dirigindo minhas leituras para esses e os demais autores que hoje privilegio.
Assim, nos primeiros anos de minha prática clinica, não foram essas leituras
que me deram fundamento e direção, mas, ao contrário, foram os
questionamentos que essa prática determinava, à medida que me deixava
afetar, na relação de intercorporeidade e de intersubjetividade, por pessoas
que, em suas trajetórias de vida, haviam se transformado em pacientes
psiquiátricos diagnosticados como psicóticos,2 que me levaram a elas.
Curiosidade, infinidades de questões e muita prudência marcaram essas
primeiras experiências, as quais só depois, no encontro com esses autores,
pude re-significar e constituir delas um quadro mais compreensivo para
direcionar minha prática. Os relatos apresentados aqui expõem, portanto, um
percurso até eles, e não sua “aplicação”.
Esta exposição torna-se, por outro lado, necessária, na medida em que,
para o desenvolvimento de minhas análises, não estou privilegiando as
articulações correntes sobre Psicologia e Comunicação, optando por referências
teóricas e práticas outras que, como expus na APRESENTAÇÃO e INTRODUÇÃO,
foram e continuam sendo, para mim, potencializadoras dos movimentos do
pensamento. No decorrer desta exposição, para a qual seleciono, das
experiências, aquelas em que dispositivos técnicos de registro e transmissão
172
entraram como coadjuvantes, procurarei destacar alguns conceitos que me
permitirão, na seqüência, indicar como as escolhas teóricas apresentadas na
INTRODUÇÃO podem ser pragmaticamente direcionadas, além de me permitirem
um ensaio de compreensão sobre as relações intersubjetivas, em suas múltiplas
dimensões (cultural, social, estética, cognitiva, interpessoal, de trabalho), que
hoje se apresentam sob o princípio de uma aparente dissolução (e/ou reversão)
dos limites privado/público promovida, em consonância com outros
dispositivos institucionais-técnicos, pelos programas televisivos que privilegiam
a visibilização da intimidade por meio de reinvestimentos – que podemos
qualificar como perversos, por razões ainda a justificar – dos processos de
mutação da subjetividade contemporânea.
A opção por relatos sobre a psicose, e não por manifestações do
comportamento humano qualificadas como “normais” atende também a
algumas necessidades estratégicas, entre elas, a de buscar o fundo sobre o
qual a “normalidade” se configura e se visibiliza.
Primeiro, a psicose, ou, genericamente, a loucura (que podemos
chamar, mais apropriadamente, desrazão), tem se constituído, desde longo
tempo, seja para a produção teórica, seja para a clínica, uma espécie de
“buraco negro” mais evitado que privilegiado. Resistente à captura por
modelos teóricos aplicáveis às sintomatologias neuróticas ou aos critérios
qualificativos da normalidade, e quase sempre impermeável a intervenções
curativas, a loucura, desde os grandes confinamentos dos séculos XVII a sua
medicalização em fins do século XVIII (Foucault, 1978), tem sido mapeada e
classificada, legitimando a existência e sustentação dos espaços para sua
exclusão (o manicômio, a prisão, o extermínio),3 cujo objetivo sempre foi
mais de isolamento do “louco”/“desviante” como medida protecionista em
173
relação à parte “saudável” da sociedade do que estratégia
terapêutica/corretiva eficaz.
Apesar dos avanços progressivos, particularmente após a II Guerra,
para uma percepção mais humanística do louco e da loucura, e das
experiências de intervenções terapêuticas sem recurso ao confinamento
(hospitais-dia), o louco (e sua loucura) apresenta-se, ainda hoje, para o senso
comum, como corpo estranho no social, e é enquanto tal que é representado
pela mídia.
Este segundo aspecto da concepção da loucura foi também
significativo para que eu a escolhesse como ponto de partida e de articulação.
Na impossibilidade de se encontrar justificativas para atos aparentemente
imotivados, particularmente os de resultados violentos (garotos que atacam
mortalmente colegas de escola, nos Estados Unidos e no Japão; o estudante
de medicina que matou pessoas durante a exibição do filme Clube da luta
[Fincher, 1999], em um shopping center de São Paulo; crimes hediondos
cometidos por pessoas até então reconhecidas como pacíficas), recorre-se ao
argumento da loucura como recurso e esforço explicativo para o que,
efetivamente, apresenta-se como inapreensível pela razão.4 Em relação à
4 Quando digo razão, refiro-me aos sistemas explicativos que se organizam a partir do que
Maturana (1999: 248-249) chamou de caminho da objetividade sem parênteses (ontologias
transcendentes), no qual “o observador, implícita ou explicitamente, assume que a existência
acontece independentemente do que ele ou ela faz, que as coisas existem
independentemente de se ele ou ela as conhece, e que ele ou ela pode conhecê-las, ou pode
saber delas, ou pode saber sobre elas através da percepção ou da razão. Nesse caminho o
observador faz referência a entidades tais como matéria, energia, mente, consciência, idéias... ou
Deus, como seu argumento último para validar – e, conseqüentemente, para aceitar – uma
reformulação de sua práxis de viver com outros elementos de sua práxis de viver como uma
explicação de algum outro aspecto de sua práxis de viver. (...) Assim, esse caminho
explicativo é constitutivamente cego (ou surdo) à participação do observador na constituição
do que ele ou ela aceita como uma explicação. (...) ...devido à sua forma de constituição, esse
caminho explicativo necessariamente leva o observador a requerer um único domínio de
realidade – um universo, um referente transcendente – como a fonte última de validação
para as explicações que ele ou ela aceita e, como conseqüência, para a contínua tentativa de
explicar todos os aspectos de sua práxis de viver reduzindo-os a esse referente. Finalmente,
nesse caminho explicativo, a aceitação, por parte de diferentes observadores, de diferentes
tipos de entidades independentes como a fonte definitiva de validação de suas explicações
constitutivamente os leva a validar, com o seu próprio comportamento, universos,
realidades ou domínios de explicações objetivas não só diferentes, mas necessária e
mutuamente exclusivos, como a única e última realidade. Portanto, nesse caminho
174
sexualidade o desconcerto não é menor, mobilizando desde argumentos
morais, que reivindicam uma retomada dos costumes postos em dissolução
pelo “excesso” de liberdade, até a simples e imediata estupefação perante
algumas formas incomuns, “aberrantes”, “perversas”, de satisfação sexual.
Perante esses atos violentos e essas formas de expressão que escapam à
norma, muitas vezes produtos cinematográficos e, com mais freqüência, os
da mídia televisiva são evocados como seus possíveis provocadores ou
desencadeadores, o que dá ocasião para debates intermináveis sobre os
efeitos perniciosos (ou não) da exposição de crianças e adolescentes a
determinados programas televisivos e a filmes e desenhos animados exibidos
pela televisão. Nesses debates, o conflito de opiniões prevalece.5
Como será exposto nos relatos a seguir, realmente algumas pessoas
diagnosticadas como psicóticas – que se costuma representar como alienadas
da realidade – são não só bastante afetadas por produtos mediáticos os mais
diversos, particularmente os audiovisuais, como muitas análises de delírios
registrados no século XIX e início do XX, relatados pela literatura
especializada, fazem referências a experiências delirantes nas quais imagens
se apresentavam aos pacientes ora como lanterna mágica, ora como
fantasmagorias bidimensionais projetadas em uma tela (Kraepelin, apud
Canetti, 1983; Tausk, 1977). Esses registros tornam-se tão mais significativos
se considerarmos que ocorreram em um momento em que as tecnologias de
reprodução de imagens em movimento eram nascentes ou ainda não haviam
se constituído solidamente como indústria. Se essa associação
explicativo, uma explicação implica, operacionalmente, uma asserção implícita feita pelo
observador que explica, segundo a qual ele ou ela tem um acesso privilegiado a uma
realidade objetiva e independente, e que é essa realidade objetiva que atribui validade a suas
explicações. (...) Nesse caminho explicativo, um apelo ao conhecimento equivale a uma
petição de obediência”. Temos configurado, aqui, o critério de objetividade da ciência ou, na
Comunicação, o da objetividade jornalística. O outro sentido para razão é o dado por
Espinosa (cf. apresentado na INTRODUÇÃO), que coincide, em sua maior parte, com o que
Maturana chama de caminho da objetividade entre parênteses.
5 Como pode ser observado na apresentação dos resultados da pesquisa realizada pela
Unesco (ANEXO), ela própria podendo ser entendida como um esforço de mensuração dos
efeitos sociais e subjetivos, tais como representados por adultos com filhos, da programação
televisiva sobre o comportamento dos jovens.
175
delírio/imagens (que, como foi discutido na INTRODUÇÃO, está ligada às
construções conceituais que se operaram no decorrer dos séculos XVI e XVII)
produzidas por dispositivos técnicos não nos autoriza a estabelecer conexões
causais lógicas e imediatas entre, por exemplo, atos imotivados
violentos/comportamentos sexuais incomuns e exposição a imagens
violentas/superexposição do corpo no cinema e na tevê, convida-nos, pelo
menos, a refletir sobre a extensão e intensidade dessas conexões e,
principalmente, sobre a potência de afetação subjetiva que tais dispositivos e
suas imagens possam ter. Sobre essa associação delírio/imagens projetadas
em uma tela, Deleuze & Guattari (1973: 283) aventam que “es posible que el
cine pueda captar el movimiento de la locura, precisamente porque no es
analítico ni regresivo: explora um campo global de coexistência”, hipótese
que abre duas perspectivas que se operam simultaneamente a partir de uma
mesma condição: a de que o cinema (e também a televisão, com suas
especificidades), como um dos principais dispositivos técnicos da cultura de
massa, constitui um plano privilegiado para a compreensão das catexias6
sociais num dado momento social e histórico, funcionando, assim, se não
como interpretante, como um plano diagramático que tem visibilizado os
fluxos de crenças e desejos presentes nas mutações da subjetividade
contemporânea das últimas décadas, assim como os recortes que destacam e
constróem, dessas mutações, sua forma dominante. Assim, um filme pode
ser tomado tanto como texto que nos fornece quadros compreensivos sobre
como se produz a percepção da realidade, como funcionar, ele próprio, como
6 Catexia é um termo bastante utilizado por Freud, aparecendo já desde seus primeiros textos
como um conceito econômico (energético), para designar o fato de uma determinada energia
psíquica se encontrar ligada a uma representação ou grupo de representações, a uma parte
do corpo, a um objeto etc. Do original alemão Besetzung, é também traduzido como
investimento ou carga. Deriva do verbo alemão besetzen, que tem vários sentidos: na
linguagem militar, refere-se a ocupar um lugar, uma cidade, um país, ou mesmo assediá-lo
sem ocupá-lo. Na linguagem financeira, à colocação de capital em uma empresa. Como esse
é o sentido mais corrente da palavra investimento, catexia permite estabelecer um diferencial,
por mais que suas correspondências não possam ser evitadas. Por outro lado, se pensarmos
nas formas de produção de “corpos e desejos para o mercado” hoje correntes, a
indiferenciação chega a ser oportuna. Por esse motivo, utilizarei aqui os dois termos,
conforme o contexto.
176
produtor dessa realidade, dado o caráter afetivo de sua recepção.7 Nesse
sentido, o cinema industrial norte-americano – sempre atento ao mercado e
capturando seus públicos imediata e facilmente com proposições de sempre
novas invenções técnicas, e por sua permanência, hegemonia e quase
indiferença às várias correntes cinematográficas que surgiram no decorrer do
século XX (neo-realismo italiano, nouvelle vague francesa, free-cinema
inglês, Escola de Nova York, cinema novo alemão, cinema novo brasileiro
etc.) – pode nos oferecer matérias até mais significativas para a leitura desses
quadros do que o cinema de autor (ou de arte), de linguagem mais elaborada
e crítica, com temas como a incomunicabilidade (Antonioni), a realidade
social proletária (De Sica, Visconti), a experiência política e existencial (Scola,
Godard), o intimismo cotidiano (Blier, Tavernier), ou os mais recentes, que
perguntam pelos rumos da relação sexual e amorosa (Chéreau, Breillat,
Fonteyne) etc.8
Além disso, o cinema industrial expressa uma das características
marcantes da cultura norte-americana fundada na liberdade de expressão,
que tem sido a de continuamente desfazer seus próprios limites e fronteiras,
abrindo-se para os fluxos desterritorializados de desejo que pulsam e
atravessam o campo social, e, com a mesma intensidade, reinvestir esses
fluxos em territorialidades conservadoras, moralizantes, puritanas, quando
não claramente perversas e fascistas. Nesses processos, o cinema não só
representação, é o que não cessamos de afirmar. Por outro lado, se seguirmos Espinosa, a
realidade, tal como a construímos, é determinada, nos encontros de corpos, pela maneira
como esses corpos imaginam a si mesmos e ao outro nos encontros, concebendo, a partir daí,
a idéia do que os causa. Porque o corpo não sabe que, quando olha a imagem, ele imagina,
supõe que o erro e o falso estejam na imagem, quando na realidade ela é, como imagem,
verdadeira (imago qua imago), estando o erro e o falso na idéia que faz do que o causa,
concebendo o que percebe (idea) como verdadeiro. É isso que nos indica também Maturana,
com o caminho da objetividade sem parênteses, pelo qual concebemos a realidade como
dada, única e verdadeira.
8
Considerando essa perspectiva, recorro a vários filmes do atual cinema industrial norte-
americano para exemplificar conceitos e, com menor freqüência, a alguns filmes europeus e
brasileiros, mesmo porque, no consumo doméstico (programação televisiva, videocassetes,
DVDs), são eles os mais privilegiados pelo telespectador médio.
177
encontra farta matéria de expressão como tem funcionado como um de seus
agenciadores.
Caminhando nos fluxos e contrafluxos desses movimentos de
transformações sociais e culturais e suas muitas reapropriações pela cultura
dominante, o período em que as experiências aqui relatadas ocorreram –
anos 70 e 80, além de algumas mais recentes, na década de 90 – foi de
intensivo questionamento e invenção de modelos teórico-práticos na
abordagem da loucura, que caminharam dos critérios de objetividade
médico-psiquiátricos tradicionais para a apreensão da complexidade das
disposições subjetivas em condições sócio-históricas determinadas, sendo
essa apreensão a principal determinadora de uma busca continuada pela
construção de novos paradigmas.
Assim, os relatos aqui apresentados são marcados por momentos
diversos dessa busca de modelos, e, inevitavelmente, limitados conforme as
escolhas que fiz em cada momento. A essas escolhas determinantes das
intervenções e compreensões efetuadas em cada momento, introduzirei,
sempre que possível, comentários e conceitos que visam atualizá-las.
178
sempre posteriormente, e, mesmo assim, limitada ao atendimento de pessoas
com manifestações neuróticas ou com distúrbios comportamentais.9 O
trabalho com a psicose ficava reservado, quase que invariavelmente, para a
intervenção psiquiátrica, por envolver prescrições medicamentosas e por
serem sua etiologia e sintomatologia entendidas como de base endógena e
neurológica. Quando o psicólogo participava desse trabalho, era como
auxiliar do psiquiatra nas práticas de diagnóstico diferencial, raramente
como psicoterapeuta. Atualmente, com a emergência de novos paradigmas
clínicos e o advento dos hospitais-dia, esse quadro flexibilizou-se
sensivelmente.
A oportunidade de enveredar-me por esse campo teve como ponto
de partida um convite, em 1974, para integrar a equipe de um hospital
psiquiátrico, por parte de um meu professor que pertencia à diretoria da
instituição e para o qual, em nossas conversações, eu manifestava com
freqüência meu desejo de trabalhar com a psicose, formulando sobre sua
manifestação algumas idéias mais inspiradas que fundamentadas, derivadas
de Reich e algumas leituras de Laing e de Cooper, em relação às quais ele se
mostrava quase sempre cético, embora interessado. Foi com o objetivo de
propiciar-me uma aprendizagem e uma verificação de meus pressupostos que
seu convite se formulou.
Tratava-se de hospital psiquiátrico feminino (já extinto), de estrutura
bastante tradicional e precária (isto é, manutenção das pacientes em reclusão
por períodos máximos de 3 meses, seguidos de um pequeno intervalo e uma
nova internação por igual período – conforme as regras do INSS –, com
predominância de tratamento medicamentoso e, quando considerado
necessário, eletrochoqueterapia, havendo um mínimo de intervenção
179
psicoterapêutica). O hospital abrigava pacientes das mais diversas
procedências, a maior parte das classes C, D e E, e, no amplo espectro
nosográfico da psiquiatria, muitas diagnosticadas como “histéricas” e
“esquizofrênicas”, que se misturavam, no espaço hospitalar, a algumas
drogadictas.
CORPO-ESPAÇO
O primeiro encontro com pessoas em situação hospitalar é sempre
perturbador. Elas estão e não estão ali, afetivamente alienadas de si e do mundo,
o que, de certa forma, também aliena aquele que chega do exterior,
independentemente de como constrói suas atividades e pensamentos nesse
exterior. Qualquer que seja sua disposição para a ação, quaisquer que sejam as
idéias que o movem, não há muito a fazer ou como saber fazer, de imediato.10
Resta a alternativa de olhar e deixar-se afetar pelo que se presenta e trabalhar
com essas afetações. As ações nascem daí.
Tendo ingressado para trabalhar no setor de terapia ocupacional
recém-criado pelo hospital, e ensaiando meus primeiros passos como
psicoterapeuta, surpreendia-me, no contato cotidiano com essas pacientes, a
freqüência com que mensagens, linguagens e slogans veiculados pela televisão,
pelo rádio e por outdoors faziam-se presentes em suas falas, sob a forma de
curtas expressões verbais que se misturavam com os conteúdos das falas e dos
delírios de auto-referência.11 Essas falas não eram levadas em conta pelo corpo
clínico do hospital, sendo consideradas geralmente como sem sentido, efeitos
fala permeada por auto-recriminações, slogans como “mas o mundo quer você... o mundo
quer você” (de uma campanha da Credicard, do início dos anos 90). Outro bom exemplo: as
falas do personagem construído por Dustin Hoffmann no filme Rain Man (Barry Levinson,
1988).
180
residuais do estado psíquico conturbado das pacientes ou como estereotipias. É
interessante observar que, não só falas, mas também gestos e produções como
pintura, desenhos etc. do psicótico não são considerados material de interesse
para o olhar da psiquiatria clássica/hospitalar tradicional na apreensão de sua
problemática.12 Equivaleriam, grosso modo, a falas de uma criança (infans, a que
não fala, a que nada tem a dizer de importância, na medida em que, argumenta-
se, não alcançou ainda o domínio da razão) das quais não se reconhece valor
senão como formas expressivas de balbucio, ou, mais precisamente, no caso do
“louco”, como simples estereotipias ou atividades não-significativas.
Essas referências apareciam nas falas das pacientes, freqüentemente,
sob a forma de ritornelos13 – refrões –, acompanhadas de movimentos
corporais (geralmente constritos, em função da sedação medicamentosa), e
181
com tal insistência que muitas vezes sentia-me tentado a buscar relações mais
significativas entre essas suas falas repetitivas e o que as agenciava.
Entretanto, como, em contrapartida, é freqüente que essas expressões
produzidas pela mídia – principalmente slogans publicitários ou apelativos
(como o atual “galera”, dirigido ao público jovem ou às torcidas de futebol) –
sejam amplamente incorporados na fala cotidiana da maioria das pessoas, a
presença desses ritornelos na fala das pacientes poderia estar apenas indicando
que, apesar de reclusas, elas pertenciam à mesma ordem de mundo à qual todos
pertencemos.14 Em face de tais considerações, minha atenção, na época,
deslocou-se para outros acontecimentos no cotidiano do hospital.
Nas primeiras semanas de trabalho, buscando recursos para
realizá-lo, muitas vezes propunha atividades bastante simples, a serem
realizadas com as pacientes agrupadas em mesas distribuídas em um
salão, como pintura ou pequenos trabalhos em argila, observando-as
enquanto trabalhavam e entabulando conversas com uma e outra. Essas
atividades são próprias e comuns da terapia ocupacional. Logo,
entretanto, introduziu-se um diferencial na maneira de realizar essas
atividades. Estabelecida uma parceria com uma das psiquiatras do
hospital, também recém-contratada, que vinha de uma experiência
anterior em Engenho de Dentro, com Nise da Silveira (psiquiatra
junguiana que organizou e coordenou o Museu do Inconsciente),
ensaiamos, em conjunto, a estruturação de um ensaio de “comunidade
terapêutica” em uma das alas do hospital, aberta às pacientes que
quisessem ou pudessem participar. Para isso, foi negociada com a direção
a abertura de um dos pátios, para atividades ao ar livre. Até então, a
maior parte do tempo as pacientes ficavam reclusas, com raras saídas para
tomar sol. As atividades passaram a ser coletivas, foram introduzidos
182
novos materiais de trabalho, como sucatas, organização de um mural para
comunicação entre as pacientes e exposição de trabalhos, uma pequena
biblioteca e utilização de música para entretenimento e trabalhos com os
ritmos corporais.
O agir é mobilizador de novas ações, tanto das nossas como
daqueles que afetamos e que nos afetam. Das forças e seus resultados
retiramos sempre novas forças. Dessas atividades derivamos ensaios de
terapia familiar, grupos operativos e de discussão dos problemas
cotidianos do dia-a-dia hospitalar, as próprias pacientes sendo incitadas a
propor soluções, além da abertura de espaço para a participação de
estudantes que se propunham a trabalhar como voluntários ou estagiários,
o que provocou uma revitalização expressiva na vida interna do hospital,
com remissão de quadros sintomáticos (ou a emergência de produções
delirantes com outros coloridos e tonalidades) e inevitáveis, crescentes e
severos conflitos com o quadro funcional e a direção que, inquieta com a
“desordem” instaurada, volta e meia impedia a abertura dos pátios,
suspendia ou estabelecia restrições às atividades em curso; após intensos
seis meses de muitas negociações, o setor experimental que havíamos
criado foi extinto e a equipe desfeita.
Essas práticas, inventadas no dia-a-dia com recursos os mais
inesperados, tiveram, para mim, como principal efeito, uma
“descolonização” do olhar para a loucura e um esboço de compreensão de
suas políticas.
CORPO-DISPOSITIVO TÉCNICO
Tendo já iniciado atendimentos em consultório, passei a fazer
acompanhamentos terapêuticos, ainda em cooperação com a mesma
psiquiatra, de pacientes egressos de instituições psiquiátricas. Uma paciente
fez retornar expressivamente à minha atenção a presença, já observada no
hospital, de conteúdos produzidos pela mídia na fala do psicótico. Essa
183
paciente – a quem chamarei, aqui, A(fe)tivada, para indicar que ela era tanto
afetada pelos acontecimentos quanto determinada, em suas ações, por eles –
fora internada aos 22 anos por ter tentado apunhalar seu ginecologista, um
dia após comparecer a uma consulta de rotina. O argumento de um possível
assédio por parte do médico que tivesse motivado sua agressão foi
rapidamente descartado como improvável. A agressão foi sem conseqüências
para o médico – pouco mais que um arranhão – mas dramática para
A(fe)tivada: custou-lhe uma passagem por um hospital psiquiátrico e um
diagnóstico estigmatizante: esquizofrenia paranóica. Após a internação, foi-
me encaminhada pela psiquiatra com quem eu trabalhava, para dar
continuidade psicoterapêutica ao tratamento.
Desde o início de nossos encontros, A(fe)tivada advertiu-me que não
tentasse abordá-la corporalmente, relembrando sua ação agressiva no
encontro com o ginecologista. Para corroborar a ameaça, mostrou-me um
pequeno punhal que carregava na bolsa. Passei a trabalhar com essa
possibilidade de um ataque por parte dela, tomando-o como definidor dos
limites de nossa relação.
Da passagem pelo hospital, e bastante inspirado por minhas leituras,
na época, de Laing e de Cooper – que se inscrevem entre os pioneiros do
movimento antimanicomial (ao lado de Franco Basaglia, Jean Oury, Félix
Guattari etc.) e, em parte por causa da obra Psiquiatria e antipsiquiatria, de
Cooper (1973), eram chamados “antipsiquiatras” –, considerava que o
psicótico só se disporia a submeter-se a um tratamento psicoterapêutico caso
o terapeuta conseguisse estabelecer com ele uma relação de confiança. Talvez
demasiadamente simples, à primeira vista, essa condição, mas que se
complexifica se levarmos em conta o que implica efetivamente “uma relação
de confiança” no enquadre terapêutico, que atualmente defino como
constituição de um plano de consistência que permite às ações se realizarem
e serem reconhecidas pelos que estão implicados – isto é, que ocupam seus
lugares – nesse plano. Sua dimensão é fundamentalmente ética.
184
Tanto Laing como Cooper indicavam que o surto psicótico, ao
irromper em uma pessoa, equivaleria a uma “viagem”15 por seus fantasmas,
pelo próprio interior, pelos desmanchamentos das duplas mensagens e
duplos vínculos (double bind,16 conceito desenvolvido por Gregory Bateson
[apud Cooper, 1973: 62]) recebidos no decorrer de sua vida afetiva,
principalmente a familiar. Centrando, portanto, seu trabalho na dissolução
desses nós afetivos e emocionais, recomendavam que o terapeuta deveria ser
uma presença discreta, não-coercitiva, segura e amiga que acompanha o
paciente em sua travessia, dando-lhe suporte e interferindo só quando
necessário (risco de desagregação ou de morte, por exemplo). Ao mesmo
tempo, essa presença jamais deveria ser neutra, mas, sim, intensa e implicada
com os movimentos do outro, de uma forma tal que o próprio terapeuta
estaria fazendo, nessa implicação, sua própria travessia.
Por sua vez, Freud considerava que o psicótico não era
psicanalisável, em função de uma sua suposta incapacidade de estabelecer
uma relação transferencial com o analista – relação na qual o analista deve
suspender o próprio desejo, em posição de neutralidade, fazendo-se tela para
15 Algo equivalente às “viagens” com drogas, de muito prestígio na época como expansivas
da consciência, que motivaram as experiências terapêuticas de Timothy Leary com as
“viagens alucinógenas acompanhadas” ativadas pelo LSD. As experimentações com drogas
simulam, com suas alterações sensoriais, de percepção e consciência, um corpo esquizo-
experimental.
16 Resumidamente: em um relacionamento intenso, no qual sinta ser vital que discrimine
claramente que mensagem está sendo emitida, o indivíduo é posto em uma situação na qual
o outro expressa duas ordens de mensagens, sendo uma negadora da outra. Podem ser
gestos que se contradigam (convidar para uma aproximação e cruzar os braços, por
exemplo), dissociação entre conteúdo da fala e expressão etc. O indivíduo vê-se
impossibilitado de comentar a mensagem, de forma a discriminar qual das ordens está
sendo emitida, isto é, torna-se incapaz de fazer uma declaração metacomunicativa. É
interessante observarmos que bind, em inglês, significa: • s. coisa que liga, fita, liga, ligadura
f.; laço m.; broto, talo m. • v. (pret. e p. p. bound) ligar, juntar, amarrar, segurar; ligar, colar;
obrigar, reter, refrear; vincular, constranger, obrigar; comprometer; colocar atadura ou
bandagem; encadernar; debruar, orlar; fechar, firmar (negócio, mediante sinal); obrigar-se,
comprometer-se; aglutinar-se, aglomerar-se; comprometer-se por contrato ou escrita. A
tradução brasileira para o termo, “vínculo”, embora sugira, de imediato, “relação
intersubjetiva”, pode se desdobrar também para relações “não-humanas”, como a que se
estabelece com o dispositivo televisivo e os signos e mensagens que ele emite, muitas vezes
em franca oposição.
185
as projeções afetivas do analisando –, e por tomar as palavras como coisas.17
A única experiência com o discurso psicótico relatada por Freud, não em
relação direta com o paciente, está em seu trabalho de 1910 sobre a
esquizofrenia paranóica conhecido como “caso Schreber” (Freud, OC, 1981g:
1487-1528), tendo desenvolvido sua análise a partir do livro de Daniel Paul
Schreber, Memórias de um doente dos nervos (1984), internado aos 40 anos
(1884) após ser nomeado para um alto cargo público (Senatspräsident) em seu
condado. Freud limitou-se estritamente ao texto de Schreber que, além de
evidentes qualidades literárias, constitui-se como um dos raros relatos
pessoais que expõe minuciosamente o processo de um delírio. Fiel ao próprio
método – trabalhar estritamente com o discurso do analisando, prescindindo
de informações externas a ele – Freud não fez quaisquer referências (salvo as
fornecidas pelo próprio livro, que não incluem informações sobre a infância
do autor)18 ao pai de Schreber (1842-1911), Daniel Gottlieb Moritz Schreber
(1815-1907), prestigiado e influente médico e educador social em seu tempo,
preocupado com a saúde fisica e a formação sistemática do corpo das
crianças através da ginástica, da medicina preventiva, da higiene etc.
Entusiasta da ginástica e da correção ortopédica, inventou engenhosos e
constritivos aparelhos para a correção da postura e para ginástica, aos quais
chamou de Pangymnasticon, e um sistema geral pedagógico, que abrigava
figura pública bastante respeitada em seu tempo, e seu prestígio como educador eminente
manteve-se após sua morte. Quaisquer referências a ele que pudessem desaboná-lo
provavelmente foram evitadas por Freud.
186
várias prescrições de práticas corporais para o fortalecimento do caráter
(recomendava, por exemplo, que os bebês, a partir dos três meses, só deviam
ser lavados com água fria, de forma a fortalecê-los física e moralmente desde
a mais tenra idade),19 cujo sadismo se ocultava sob seus propósitos
reformadores e filantrópicos.20 Esses aparelhos e práticas eram testados, em
primeiro lugar, em seus próprios filhos. Estudos posteriores da análise feita
por Freud (Baumeyer et alii, 1972), associadas à leitura de livros e
documentos produzidos pelo médico e educador social acrescidos de dados
biográficos, permitiram estabelecer paralelos entre os delírios de Schreber e
os controles corporais praticados por seu pai,21 resultando em novas
compreensões sobre os elementos que teriam fornecido matérias de
expressão para a produção de seu delírio.22 Contrariamente, portanto, à
percepção, pela psiquiatria clássica, dos delírios como “sem sentido”, a
19 Recomendações e práticas desse tipo – uma paixão pela ortopedia – eram relativamente
comuns na sociedade disciplinar do século XIX, visando a disciplinarização moral via
controle e vigilância do corpo, cf. Foucault (1977b). Uma de suas variantes atuais, a cultura
fisica (body building), que floresceu no decorrer dos anos 1980 e é bastante privilegiada pela
publicidade e por programas televisivos que expõem corpos masculinos e femininos
musculosos, seminus e “rígido-dançantes” como “eróticos”, tem suas origens no cultivo do
controle “positivo” – auto-governo ativo – característico da ética puritana do corpo que se
desenvolveu intensivamente, a partir de 1830, nos Estados Unidos da América, como reação
á figura byroniana magra, pálida e frágil do homem romântico (cf. Courtine, Os
stakhonovistas do narcisismo, in Sant’Anna, 1995: 90).
20 Muitas das atitudes educativas as mais aparentemente absurdas dos pais em relação aos
filhos são, quase que invariavelmente, “para seu próprio bem”. O pai de Schreber, por
exemplo, procurou demonstrar que a rígida disciplina a que submetia seus filhos, exigindo-
lhes “estrita obediência”, salvara a vida de um deles (provavelmente o próprio presidente
Schereber) durante uma doença prolongada que exigira extremos cuidados. A criança
seguira cuidadosamente todas as recomendações do tratamento, curando-se, por já estar
habituada a obedecer (Baumeyer et alii, 1972: 211).
21 Centrados na figura do pai, que é transformado na figura superior de Deus, os delírios de
Schreber relatam como ele foi fecundado, pelo ânus, pelos raios do Deus solar; a degradação
e reconstituição de seus órgãos internos; seu destino de criação de uma nova humanidade,
com a gestação e geração de homúnculos, além de muitos “milagres divinos”
experimentados por ele em seu corpo, como alterações de calor e frio sem causas externas.
22 As análises de Freud levaram-no a formular, como uma de suas hipóteses, que a paranóia
187
releitura do “caso Schreber” expõe o fundo social, cultural e político sobre o
qual eles se constroem.
Melanie Klein, contemporânea de Freud, por sua vez, dedicou-se ao
estudo e análise da psicose a partir de seu trabalho com crianças, um
trabalho de extrema importância para os desenvolvimentos subseqüentes
nesse campo, definindo estágios diferentes daqueles descritos por Freud na
estruturação do psiquismo e na formação do eu23 e introduzindo, no vínculo
terapêutico, um forte envolvimento emocional, no qual o analista deveria
ocupar um lugar central, na medida em que, remetendo todas as fantasias,
ações e falas do analisando à sua figura, tornava possível construir as
condições transferenciais do trabalho, estabelecidas numa forte relação
continente/conteúdo. No trabalho com crianças, utilizava objetos e
brinquedos que eram manipulados e postos em conexão por elas, conexões
estas interpretadas por Klein no processo terapêutico. Na interpretação,
oferecia, para as ações da criança, uma linguagem que as significava, que
lhes dava sentido no contexto dos laços familiares e das fantasias edípicas
sobre esses laços, terrritorializando-os.24
Posteriormente, Lacan reintroduz a análise da psicose no campo
psicanalítico pela via das operações da linguagem, “esquizofrenizando o
campo do inconsciente”, como observam Deleuze & Guattari (1974), na
medida em que, abandonando o sentido, passa a trabalhar a palavra
enquanto significante que desliza (o significante apresenta um sujeito para
outro significante, sendo seu sentido sempre barrado), mas sem, entretanto,
fazer fugir o campo da linguagem do registro da representação, além de, em
última instância, operar a restituição do sujeito falante à cena da novela
garagem. Klein interpreta: papai entra e sai na mamãe, interpretação que, ao fechar o sentido
na tríade edípica, assimila o brincar com elaborações da já pressuposta fantasia infantil
sobre o ato sexual. Ao se interpretar, o que se faz, efetivamente, é criar um sentido, oferecer
um território para aquilo que está se processando no brincar.
188
familiar.25 Explicando melhor, trata-se, no campo transferencial constituído
com o psicótico,26 de reconstituir com ele uma função simbólica pela qual ele
possa significar-se, constituir uma imagem de si (um “eu”), operação,
entretanto, só tornada possível por sua reinstauração em uma dimensão mais
próxima da do neurótico, marcada por um “retorno” a Édipo e ao desejo
como falta (lugar da Lei simbólica).
Serão Deleuze & Guattari (1973; 1988), partindo da esquizofrenia
como processo (e não da entidade clínica, que é queda, cisão e paralisação do
processo) e de uma crítica à redução familiarista promovida pela psicanálise,
que irão introduzir outras relações entre linguagem, corpo, máquina,
inconsciente, desejo, “desumanizando”, podemos dizer, essas relações
enquanto atribuíveis a um “sujeito”27 ou a uma determinação no triângulo
edípico (a família sagrada Pai, Mãe, Filho) para reencontrá-las no socius. O
que fazem, grosso modo, é historicizar e politizar o campo do inconsciente,
reconhecendo, nos dispositivos institucionais, técnicos, lingüísticos, estéticos,
conforme as condições sócio-históricas em que eles se organizam, sua
potência maquínica de agenciamento de subjetivação. Longe de estar
determinado pelo núcleo familiar e sua novela, o inconsciente passa a ser
lido como um fluxo que, vindo do socius, a atravessa e a excede (no sentido
indicado em Tarde, na INTRODUÇÃO). Constituem, a partir daí, uma
pragmática esquizoanalítica, na qual não se trata mais de compreender ou de
interpretar o que o analisando apresenta, mas, sim, de constituir, com ele,
estratégias de vida que “sirvam” à sua existência (no sentido espinosano de
conatus como “perseveração na existência”).
25 Alvo de uma das principais críticas de Deleuze & Guattari ao lacanismo francês,
desenvolvida no Cap. 2 – Psicoanalisis y familiarismo: la sagrada familia, de El antiedipo;
capitalismo y esquizofrenia I (1973: 57-142).
26 Que Lacan, diferentemente de Freud, não chamava mais “neutra”, tratando-a como um
189
É essa construção de estratégias, ainda que intuitivamente, que já se
insinua no trabalho com A(fe)tivada. Perante a problemática que ela trazia
para meu campo, uma aproximação que não fosse penetrada de um interesse
excessivo, humanístico ou “piedoso” (freqüente com “doentes mentais”),
associada a uma presença discreta embora firme, parecia-me a postura mais
adequada de sustentação da relação terapêutica que iniciávamos. Uma
relação, em primeiro lugar, ética, de reconhecimento da problemática que
trazia aquela paciente à minha presença e, claro, prudente, buscando
apreender o que é primeiro numa relação ética: no encontro de dois corpos, o
que se estabelece é uma relação de forças e uma distância que dá sua
diferença,
28 Resposta que, singularmente, não deixa de reconhecer, mesmo que sob a forma de
“delírio” (idéia inadequada produzida como efeito, nela, da imagem do que se lhe presenta:
atividade imaginativa do corpo) e de estrita auto-referência (retorno sobre si das forças
mobilizadas nessa afetação), uma das estratégias das mensagens produzidas pelos meios de
comunicação de massa: a de customização, de personalização da mensagem, que constrói a
ilusão de que o emissor se dirige diretamente a um sujeito específico.
190
chegavam do nada29 e, enquanto palavras e sinais esvaziados de sentido,
afetavam seu corpo e pensamento, como que lhe dando ordens, interferindo
em seu cotidiano e inspirando-lhe sentimentos persecutórios, em relação aos
quais protegia-se formulando suas explicações e perguntas.30 Sua postura
corporal, de gestos constritos e voltados para o próprio corpo, sugeria
efetivamente uma posição acuada e defensiva.31
Em relação ao caráter imperativo da linguagem (que vimos mais
longamente com Sade, na INTRODUÇÃO, reconhecido por A(fe)tivada como
mensagens sem sentido emitidas pelos dispositivos mediáticos ou outros
corpos/pessoas e que lhe davam ordens), é interessante atentarmos para a
observação de Deleuze & Guattari, (Postulados de la lingüística, 1988, 81-
116), no item “1. El lenguage sería informativo y comunicativo” (81-90), sobre
29 “... o que quer que nos aconteça, acontece-nos como uma experiência que vivemos como
tendo surgido do nada. Em geral não nos damos conta disso porque normalmente
amalgamamos a experiência com a explicação da experiência na explicação da experiência.”
(Maturana, 1999: 245); “... consideremos um campo de experiência tomado como mundo
real, não mais com relação a um eu, mas com relação a um simples ‘há...’. Há, nesse
momento, um mundo calmo e repousante. Surge de repente um rosto assustado que olha
alguma coisa fora do campo. Outrem não aparece aqui como um sujeito, nem como um
objeto mas, o que é muito diferente, como um mundo possível, como a possibilidade de um
mundo assustador.” (Deleuze & Guattari, 1992: 28)
30 A elaboração de sistemas explicativos “totais”, que buscam estabelecer conexões entre a
forças, bastante presente nos “psicóticos”, Wilhelm Reich declarou: (...) o primeiro contato
com a irracionalidade humana foi para mim um choque tremendo. Parece incrível que tenha
sobrevivido sem tornar-me um doente mental. Como se, repentinamente, percebesse a
nulidade científica, o absurdo biológico e o caráter socialmente nocivo das idéias e
instituições que até o momento pareciam naturais e evidentes. Trata-se de uma espécie de
experiência de ‘fim de mundo’ que é muito freqüente nos esquizofrênicos. Gosto de pensar
que a esquizofrenia vai geralmente acompanhada de um relâmpago de lucidez a respeito da
irracionalidade dos processos sociais e políticos e sobretudo da educação das crianças” (apud
Landa, Os marionetes, o papagaio eletrônico e os astros indomáveis, in Novaes (org.), 1990:
389).
191
os aspectos consignativos da linguagem, que predominam e se sobrepõem à
sua função informativa, comunicativa ou expressiva:32
32 Observação que nos será útil não só quando discutirmos a demanda – presente na
Constituição de 1988 – de que a televisão deveria ser, além de uma oferta de entretenimento,
informativa e “educativa”, mas também quando nos dedicarmos à análise de alguns
programas televisivos.
33 O argumento, ainda que de forma inacabada, que procurei sustentar no texto O toque da
mídia foi de que o dispositivo televisivo brasileiro precisou, em primeiro lugar, constituir-se
como marcador simbólico no campo social para que pudesse ocupar o lugar de referenciador
privilegiado da realidade para aqueles que se expõem a ele. Com tal argumento, buscava,
nesse texto, elementos similares aos identificados por Christian Metz (1980) em relação ao
cinema; a leitura de Metz é fundamentada em Lacan.
192
própria realidade dada como imediata, sendo com essa realidade assim
percebida que ela procurava estabelecer suas conexões.34
Na época, o que me permitia pensar a televisão, o cinema ou a
instituição publicitária como campos simbólicos constituídos para cada
sujeito que se expunha a esses produtos – de forma que ele pudesse dizer:
isto é cinema, isto é televisão, isto é publicidade, isto é, tais dispositivos
produzem representações da realidade, não a realidade ela mesma35 –, era
muito pouco, e de forma mais intuitiva (por experiência, enquanto também
fruidor de seus produtos) do que fundamentado em um modelo teórico bem
definido (a referência a Lacan é posterior). Trabalhando mais próximo a
Wilhelm Reich, à bioenergética de Alexander Lowen e à Gestalterapia do
norte-americano Fritz Perls,36 associando-os à “antipsiquiatria” de Laing e
193
Cooper, privilegiava, na ação terapêutica, a reorganização corporal de meus
pacientes, de forma que eles pudessem colocar-se no mundo de um modo
mais afetivo e menos defensivo na relação com outros corpos.37 A linguagem,
por conseqüência, não era trabalhada em um viés interpretativo. Apreendia
as falas de meus pacientes em um registro “existencial”, isto é, como dizeres
da experiência tal como vivida por eles, e assim as aceitava. Não havia
chegado ainda à psicanálise – enquanto, grosso modo, “cura pela linguagem” –
na vertente aberta por Lacan, que foi o introdutor, nesse campo, do conceito
de simbólico em sua posição constitutiva e estruturante em relação ao real e
ao imaginário, e Deleuze & Guattari não passavam, ainda, de produtores de
idéias provocadoras – o que, na época, já era suficiente para mobilizar-me
questões – em meu horizonte intelectual.
Entre as perguntas que A(fe)tivada se fazia estava a de como os
emissores sabiam a seu respeito o suficiente para produzirem aquelas
mensagens feitas para-ela, sendo essa questão que fornecia a matéria-prima
para seu “delírio persecutório”. A hipótese (sistema explicativo [Maturana,
1999]) que ela apresentou em nossos primeiros encontros foi a de sua plena
visibilidade no cenário do mundo,38 de forma que todos podiam saber o que
que a visibilidade dos indivíduos e a opacidade dos poderes é uma das estratégias de
disciplinarização: o panoptismo. Hipótese interessante, também, para reconhecermos a
forma geral de controle político que surge com o Estado moderno: quanto mais centralizado
o poder no Estado, ainda que administrado por redes descentralizadas de poder
disseminadas no corpo social (no Estado moderno, a centralização, na realidade, nunca é
194
ocorria com ela, bastando para isso que estivesse presente, fosse em sua casa,
frente ao aparelho de televisão, fosse na rua, passando por um outdoor ou
cruzando com uma pessoa.
À medida que nosso trabalho avançava, ela começou a delinear um
território existencial um pouco mais flexível e, por isso, mais estável – se
considerarmos a estabilidade não como relativa a “sistemas abertos ao
equilíbrio”, mas como “sistemas abertos longe do equilíbrio, ou seja, em
mudança” (Elkaïm, 1990: 14) –, introduzindo nele uma certa temporalidade
(vale dizer, uma dimensão subjetiva atravessada pelo acontecimento e pelo
acaso) e recuando parcialmente da idéia de sua captura imediata pelo que se
presentava a ela. Isto é, embora mantendo a idéia de que aquilo que vinha do
mundo era para-ela, introduziu uma primeira mediação, o que fez sua
pergunta deslocar-se para outra: se sua visibilidade não era tão plena e
imediata, quem estaria informando as agências de notícias e de publicidade,
além das pessoas que encontrava no seu dia-a-dia, sobre o que ela sentia ou
desejava?
Nesse segundo momento, A(fe)tivada já ensaiava a construção de um
território com alguma organização, buscando constituir-se em um plano de
consistência um pouco mais estável, como foi observado acima (cf. Rolnik,
1989: 27).39 A suposição, que passou a ser sustentadora do vínculo
efetiva [ver PARTE II, CAPÍTULO 3 – FORA]), mais ele se torna opaco, enquanto os indivíduos
tornam-se ou sentem-se mais e mais visíveis. Podemos compreender essa relação
opacidade/transparência com o Panopticon de Jeremy Bentham, tal como exposto por
Foucault (1977b) em sua genealogia das sociedades disciplinares (para o poder, trata-se de
“ver sem ser visto”; o presidente Médici, por exemplo, um dos mais autoritários dos
militares que assumiram o governo nos anos 70, exercitava sua “opacidade” apresentando-
se publicamente com roupas civis, emocionando-se com a vitória do Brasil na Copa etc.).
Lévy (1995) trabalha essas relações de opacidade/transparência ao discutir o caráter
democrático de seu sistema Árvores de Conhecimentos© e das comunicações nas redes
telemáticas, em oposição aos modelos mais totalitários de gerenciamento vigentes e em
mutação no campo social. O tema do controle e da visibilidade encontra-se também em
Deleuze (1992: 219-226), no texto “Post Scriptum sobre as sociedades de controle”. Para os
propósitos deste trabalho, é importante deixar registrado, por ora, que a “plena visibilidade”
(entre aspas, na medida em que é necessário compreender seu limite) é um componente dos
mais privilegiados pela programação televisiva atual.
39 O paradigma que assumo aqui, proposto por Deleuze & Guattari (1973: 293-305) trabalha a
195
terapêutico, foi a de que seria eu o informante, na medida em que a mim ela
dava a saber sobre suas fantasias e inquietações. As sessões passaram a se
constituir como um espaço de jogo que demandava estratégias de um e outro
em torno dessa suposição. De uma sessão para outra, o que ela buscava
estabelecer era sempre a relação entre o que ocorrera na sessão anterior e as
mensagens que a mídia passara a emitir desde então. Em minha posição, eu
nem confirmava nem negava suas suposições. Trabalhava com elas, fazia
delas o motor do trabalho, aguardando os desenvolvimentos que essa nova
hipótese provocaria.
Um incidente (jogo do Acaso) pôs fim a essa dinâmica, precipitando o
trabalho em outra direção e definindo-lhe outra configuração. Eu dividia o
consultório com outro colega, e nossa sala de espera servia a mais dois outros
consultórios. Procurávamos manter os horários bem administrados, para que
cada um pudesse manter os próprios compromissos com os pacientes o mais
regularmente possível. Um dia, por razões externas ao nosso pacto, meu
colega avançou demasiadamente sua sessão, “invadindo” meu horário. Tão
logo liberou a sala, entrei com minha paciente, que já se mostrava inquieta,
habitando seu recém-conquistado território mais estável e tendo de
compartilhar a sala de espera com outras pessoas, cujas presenças lhe eram
ainda ameaçadoras. Tão logo iniciada a sessão, ouvimos um pequeno ruído,
vindo de um cubo de madeira em um canto da sala. Ela precipitou-se para
ele, descobrindo, sob seu fundo vazado, um gravador que acabara de se
desligar.
196
A presença do gravador na sala deu materialidade ao que até então
fora um jogo. Nenhum argumento poderia demovê-la da nova suposição: a
de que eu gravava as sessões para divulgá-las em seguida. Era eu, com
certeza, como ela supunha, o agente das informações a seu respeito obtidas
pela mídia.
É interessante observar que – à parte essa associação mais imediata de
registro e transmissão elaborada por A(fe)tivada –, gravadores, câmeras e
outros dispositivos de registro e transmissão podem funcionar tanto como
inibidores de expressão para muitas pessoas, podendo ocupar, em casos
extremos, o lugar de objetos persecutórios para alguns, como funcionar como
ativadores da expressão para outros. Victor Tausk, um discípulo de Freud,
produziu um interessante trabalho sobre as “máquinas de influenciar” e sua
relação com a esquizofrenia, “De la gênesis del aparato de influencia durante
la esquizofrenia” (Tausk, 1977: 169-207).
Acompanhar brevemente o percurso de Tausk pode nos ser
interessante aqui, tanto para compreender o silêncio que se instaurou em
torno a suas idéias quanto por sua importância para os argumentos aqui
apresentados e a direção dada ao trabalho com A(fe)tivada.
Victor Tausk, nascido em Zsilina (Eslováquia) em 1879, forma-se
advogado em 1903 e casa-se em 1901 com Martha Frisch. Em 1905 muda-se
para Viena e aí se separa de sua esposa, passando a viver precariamente e se
dedicando à escrita de peças de teatro. Em busca de novos horizontes, muda-
se para Berlim, onde exerce o ofício de jornalista, mesma atividade do pai.
Em 1907 é internado, por um período de 25 dias, momento em que
experimenta o que identifica como “uma cisão entre vontade e consciência”.
De volta a Viena, encontra, em 1909, o grupo de Freud. Começa seus estudos
de medicina e liga seu destino ao dos membros da sociedade organizada em
torno do fundador da psicanálise. Em 1912, torna-se amante de Lou Andreas-
Salomé, mulher que, além de pensadora expressiva, tornou-se emblemática
197
no movimento intelectual europeu pelos homens com os quais se envolveu: o
próprio Freud, o filósofo Nietzsche, o poeta Rilke...
Tausk freqüenta o grupo analítico e não inspira muita confiança no
rigoroso mestre, que não vê com bons olhos suas atitudes e seu excessivo
interesse pela psicose. Demanda, em 1919, ser analisado por Freud, que o
recusa e o encaminha para outra discípula e analisanda sua, Helene Deustch,
que havia analisado anteriormente a irmã menor de Tausk, cujo nome
significava “Nada”. A resistência de Tausk em analisar-se com Helene
Deustch, isto é, ocupar o lugar de Nada – o que faz por três meses –, leva
Freud, em março de 1919, a sugerir a Helene que abandone a análise de
Tausk. Em julho Tausk precipita-se no suicídio, o que praticamente o
expurga da história do movimento psicanalítico.
Tausk oferece-nos uma breve descrição dos efeitos produzidos pelas
máquinas de influenciar presentes no delírio psicótico, “una máquina de
naturaleza mística” (1977: 170). Considerando que seu texto foi publicado em
1919, nos primórdios da tecnologia de produção de imagens em movimento
que deu fundamento material ao cinema, é-nos difícil ignorar as analogias
entre sua descrição e o dispositivo cinematográfico e suas possibilidades de
afetação, assim como à emergência e rápida penetração posterior do
dispositivo televisivo na cultura de massa:
198
“3. El aparato produce actos motrices en el cuerpo del enfermo, erecciones,
poluciones. Estas últimas generalmente están destinadas a privarlo de su
potencia viril y a debilitarlo. También este efecto puede ser producido
sea por sugestión, sea con la ayuda de corrientes atmosféricas, eléctricas,
magnéticas o rayos X.
“4. El aparato produce sensaciones, algunas de las cuales no pueden ser
descritas por el enfermo porque le son completamente extrañas,
mientras que otras son percibidas como corrientes eléctricas, magnéticas
o atmosféricas.
“5. El aparato también es responsable de otros fenómenos somáticos del
enfermo: erupciones cutáneas, forúnculos y otros procesos mórbidos.40
“(...) La manipulación del aparato es en sí oscura: no es frecuente que el
enfermo se represente con claridad el modo de emplearlo. Se aprietan
botones, se accionan las palancas, se hacen girar las manivelas. Muchas veces
el enfermo está ligado al aparato por hilos invisibles que lo conducen a su
cama y en estos casos únicamente está bajo su influencia cuando está
acostado. Apesar de eso es evidente que una buena cantidad de enfermos se queja de
todos estos rigores sin atribuirlos a la acción de una máquina”. (Tausk, 1977: 171-
172)
40 É interessante compararmos esses efeitos das máquinas de influenciar relatados por Tausk
com as seguintes observações do crítico de arte e professor de filosofia alemão Boris Groys
(Deuses escravizados: a guinada metafísica de Hollywood, FSP, Mais!, 03.06.2001: 4-11)
sobre os filmes produzidos pela indústria cinematográfica norte-americana atual: “Muitos
filmes da atualidade evidenciam essa repulsiva e indigna figura do autor que sobreviveu à
morte e tem de perpetuar indefinidamente sua feia existência. Claro que todo autor é um
vampiro que, mesmo após a sua morte, isto é, mesmo após sua derrota definitiva na luta
pela vida, se sustenta do sangue vivo dos leitores, espectadores e comentaristas – do tempo
de vida deles, de sua atenção, de sua imaginação, que o autor manipula habilmente. Mas são
sobretudo os filmes de tais vampiros que bebem sem cessar o sangue de quem freqüenta os
cinemas. Os filmes lhes sugam as forças vitais, as paixões, para continuarem a cintilar –
ainda quando os espectadores cujo sangue foi sugado de há muito já morreram. Assim é que
a máquina da indústria cinematográfica mantém-se em funcionamento pelo fato de sugar e
consumir a força vital dos espectadores. Eis porque essa máquina é tão imortal e indigna
quanto qualquer outra máquina. As máquinas são como deuses: são indignas porque são
imortais”. Esses comentários de Groys, que caracterizam o cinema como uma potente
máquina de influenciar, buscam em Metrópolis (Fritz Lang, 1927) seu ponto de articulação e
em Matrix (Larry & Andy Wachowski, 2000), lido por ele como um filme sobre a própria
indústria cinematográfica, sua referência atual. Retomarei suas idéias no CAPÍTULO 2 –
DENTRO-FORA.
199
Uma discussão mais aprofundada da máquina em sua relação com
produtividade inconsciente é apresentada no CAPÍTULO 2 – DENTRO-FORA, no
qual procurarei expor e debater de forma mais compreensiva esta afirmação
final do texto de Tausk:
41 Aqui temos um dos possíveis motivos do desinteresse de Freud pelas idéias de Tausk e,
provavelmente, de sua exclusão da história do movimento psicanalítico: a psicanálise
trabalha com relatos do analisando, tomando-os como resultantes de processos psíquicos
internos e, como tal, interpretando-os. Nesse sentido, mesmo partindo da singularidade da
experiência do sujeito em sua novela familiar, releva-se pouco a realidade vivida, mas sim
como o analisando a faz passar pela linguagem. Daí o privilégio da representação na
psicanálise. Há, ainda, a proposição de um universalismo estrutural, comum a todos os
sujeitos, qualquer que seja seu lugar de origem ou o contexto sociocultural em que ele vive.
É o que ocorre com a afirmação do universalismo do Complexo de Édipo. Os psicanalistas
que buscaram delimitar contornos culturais para relativizar tal universalismo, como Karen
Horney, raramente foram bem-sucedidos. Por isso, embora Freud se dirija para as questões
da cultura e da civilização (por ex., em El malestar en la cultura [OC, 1981b. p. 3.017-3.068]) –
mesmo que tardiamente, na medida em que só o faz após fundamentar muito bem o edifício
teórico da psicanálise –, expressa um acentuado desinteresse pelas produções técnicas e
culturais de seu tempo e seus efeitos sobre o psiquismo. Privilegia uma proto-história, daí
seu maior interesse pela arqueologia e pela história antiga.
200
eram muito importantes e deveriam vir à luz, influenciando também outras
pessoas. Assim, ela deslocava-se da posição de ser vista, influenciada e
controlada para outra, a de ver, influenciar e, por que não?, também
controlar.42
Passou a levar-me textos que escrevia, parábolas sobre lobos,
cordeiros e pastores ocupando um mesmo campo. Nas sessões, parecia mais
vitalizada (seu rosto tendia, antes, mais para a frieza ou indiferença, quando
não dava lugar a uma expressão acuada de medo) e muitas vezes agia de
modo eroticamente provocador. Movia-se pela sala, aproximava-se de mim,
afastava-se rindo, ficava ruborizada. Ao mesmo tempo, passou a frisar com
ênfase a ameaça de repetir comigo o gesto que culminara em sua internação:
mostrava-me o punhal, assegurando-me que, se me aproximasse dela, poderia
matar-me. Essa ameaça, que surgira tensa em nosso primeiro contato, retornava
agora se expressando de forma lúdica, como parte do jogo e do vínculo que
havíamos construído. Não é fortuito que um maior domínio do corpo e de suas
mobilizações tenha operado esse retorno de forma mais modulada.43 No vínculo
que havíamos estabelecido, o que efetivamente retornava para ela, agora com a
possibilidade de trabalhar sua emergência, era a dimensão relacional da
sexualidade no seu contato com o outro, aspecto da afetividade bastante
problemático quando a experiência do corpo próprio é fragmentária e frágil,
42 Temos aqui uma outra manifestação da paranóia como pólo no socius (não exclusiva,
portanto, da paranóia como entidade clínica): sendo uma relação com a verdade, de um
lado, fabula-se a respeito da verdade e o poder de dominação a que se está sujeito (estado
persecutório), fabulação que encontra ressonância em dispositivos institucionais como a
mídia e suas manipulações, sociedades secretas ou em agências de informação
governamentais (como a CIA e a KGB, na Guerra Fria). De outro, é a própria verdade e o
desejo de seu poder que emerge como possibilidade: líderes políticos, religiosos, ditadores,
grupos de exclusão étnica, ou, mais modestamente, mas não menos enfáticos, produtores de
conhecimento rigidamente aderidos aos próprios pressupostos, às próprias verdades. Para
A(fe)tivada, por outro lado, tratava-se de uma alternância que, se a retirava da posição
anterior de sujeitada, não a colocava necessariamente no pólo oposto, de “sujeitadora”.
Atravessando-a, outros fluxos trabalhavam nela uma flexibilização.
43 Na relação de forças, seja as internas, seja as de fora, ocorre uma flexibilização, não
havendo mais necessidade de opor fortemente forças àquelas que a atravessam. A oposição
está presente, ainda que menor, daí essa atitude mais sedutora, que demanda e recusa uma
ação, traduzida pela “erotização” que emerge na relação de um corpo com outro.
201
demandando intensos esforços contra qualquer afetação de forma a manter a
própria coesão.
Após uma sessão em que suas atitudes de provocação erótica foram
mais intensas, ela deixou de ir ao consultório. Enviou-me uma carta, na qual
assumia um tom profético, retomando suas parábolas sobre lobos, cordeiros
e pastores e uma possível resolução de seus confrontos, e deixou-me sem
notícias por algum tempo. Alguns meses após, procurou-me, sem aviso, em
meu novo endereço, para pagar algumas sessões que ficara devendo.
Conversamos brevemente, ela informou-me ter estado “ocupada”, e não fez
menção ao período anterior, evitando uma tentativa minha de perguntar-lhe.
Passado, seu evitamento sugeriu. A partir dessa breve visita, não tive mais
notícias dela.
A entrada em cena do gravador, que funcionou como objeto
relacional – “transicional” (isto é, como mediador para a passagem de
intensidades e sua expressão no contato intersubjetivo) e “transacional” (isto
é, como “mediador” nas negociações do que ocorre nesse contato) –, é
significativa para uma melhor compreensão dos dispositivos técnicos, ao
serem postos em relação com o corpo. O dispositivo não é simplesmente algo
que potencializa a ação de um corpo amplificando-a (como no caso do braço
e da alavanca, ou do microfone que amplifica a voz, ou do telefone e do rádio
que a transmitem à distância), ele a altera, seja como via de passagem, seja
como suporte para construção de matérias de expressão, assim como,
assumindo uma leitura espinosana, afeta a atividade imaginativa do corpo,
como idéia do corpo, alterando concomitantemente a realidade subjetiva
(psíquica), como idéia da idéia do corpo.44 Não se trata de constituir-se
44Não só o dispositivo técnico, claro. O dispositivo lingüístico, uma imagem, o encontro com
outro corpo (humano ou não) etc. são propiciadores disso que Guatari chamou heterogênese,
“se considerarmos que a diferença que se produz como efeito das composições que vão se
formando é disparadora de um devir. Em outras palavras, heterogênese no sentido de que a
gênese do devir é sempre uma diferença e que o devir é sempre um devir-outro. (Rolnik,
Pensamento, corpo e devir..., Cadernos de Subjetividade, V. 1, n..2, set/fev 1993: 243). Este
conceito de heterogênese aproxima-se e ao mesmo tempo é diverso daquele que indiquei na
apresentação de Sade (INTRODUÇÃO), que remete ao que fica excluído dos modos de
202
enquanto um outro indivíduo (essa idéia de “mudança” que muitas vezes
nos representamos), mas de devir-outro, pois sempre se estabelece uma
relação servomaquínica corpo-máquina, com novas conexões e subjetivações,
mais facilmente compreensível, para ficarmos em dois exemplos banais
dados por Guattari, quando dirigimos um carro ou quando ouvimos música
por meio de um walkman:
organização social e das relações configurados por homogênese. (Na PARTE II, CAPÍTULO 3 –
FORA será retomada essa dupla noção de heterogênese em contraponto à de homogênese
social.)
203
No caso de A(fe)tivada, é possível concluir que a entrada do gravador
mediando nossa relação determinou-a em outro lugar, designando tanto seu
corpo-para-si como seu corpo em relação ao meu em uma dimensão
relacional na qual o gravador funcionava como ponto de articulação e
passagem, abrindo espaço para a composição de uma nova territorialidade e
uma nova possibilidade de subjetivação, na qual o que poderia ter se
operado como bloqueio ou estase – se você grava, nada mais vou dizer
(posição paranóica) – constituiu-se, tomando outra direção, como
possibilidade de novos agenciamentos, em outro lugar, com outros corpos.
CORPO-TEMPO, CORPO-IMAGEM
Por muito tempo, pouco tive para pensar sobre essa experiência clínica
para mim tão importante e, sob vários aspectos, de risco (sempre pode
ocorrer uma precipitação de processos desagregadores, pouco
“administráveis” em consultório). Não por acaso, e com mais freqüência, a
clínica da psicose ocorre, preferencialmente, quando fora dos muros do
hospital psiquiátrico tradicional, em hospitais-dia, envolvendo equipes
terapêuticas, o que garante um melhor controle do processo e uma maior
eficácia nas intervenções. Na época (1976), esse tipo de trabalho não era
ainda realizado em São Paulo.45 Afastei-me da clínica da psicose em
consultório ao encaminhar-me, no final dos anos 70, para a psicanálise e só
posteriormente, nos anos 90, fiz alguns retornos pontuais a ela, optando,
então, por realizar esse trabalho em hospitais-dia articulados ao movimento
antimanicomial.
204
Novamente, em um deles, pude reconhecer que dispositivos técnicos
de registro e transmissão podem funcionar como agenciadores de
subjetivação e, como tais, serem utilizados como instrumentos terapêuticos.
As experiências ligadas ao movimento antimanicomial muitas vezes
utilizam-se de dispositivos comunicacionais em seus trabalhos, sendo bem
expressiva a do Hospital Anchieta, em Santos (SP), que, após uma
intervenção do governo estadual, foi ocupado por terapeutas e pacientes,
sendo criado ali o Grupo Tantan, que manteve, por longo tempo, uma rádio
livre no hospital, a Rádio Tantan, cuja programação era toda construída e
sustentada pelos pacientes, que se auto-identificavam como “Loucutores”,
com resultados terapêuticos expressivos.
Participei, em 1992, de um trabalho em equipe desenvolvido em um
hospital-dia do Centro de Assistência Psicossocial (CAPS, São Paulo) – no
qual está sediada a Associação Franco Basaglia, grupo de estudos, pesquisas
e militância do movimento antimanicomial – cujo ponto de articulação e
convergência foi uma experiência com vídeo. A experiência nasceu de uma
proposta, por um videomaker, de organizar um curso de vídeo, a ser
ministrado a terapeutas, pacientes e seus familiares. Em aulas semanais,
aprenderíamos a manipular a câmera, a produzir roteiros e, como trabalho
final, produziríamos um vídeo-documentário. A equipe clínica, pacientes e
alguns de seus familiares envolveram-se entusiasmados com o projeto, com
graus variados de participação, formando um grupo de aproximadamente 20
pessoas. As intervenções terapêuticas ocorriam como moderações que
garantiam a manutenção do envolvimento, sendo que todos podiam
concorrer igualmente, indiferentemente de sua posição hierárquica, pela
chance de manipular a câmera. Esta estava conectada a um monitor, de
forma que podíamos ver, simultaneamente, o resultado de nossas operações.
Outra atividade programada era a exibição de vídeos para todo o grupo,
seguida de discussões. Retiro meus dois exemplos dessas duas situações.
205
O primeiro ocorreu durante a exibição de um vídeo de Bill Viola, no
qual ele fixa a câmera e aguarda os movimentos da paisagem – o movimento
das dunas do deserto, que, à medida que o contemplamos, pelo olho da
câmera, produz-se um efeito de pulverização da imagem; um bisão na
pastagem, de movimentos quase imperceptíveis, cuja contemplação nos
oferece outra dimensão do animal, em particular a de seu olho e seus lentos
movimentos, bem espaçados temporalmente, de abri-los e fechá-los, que
produz claramente uma inversão na relação espectador/imagem,
experimentando-se a sensação de que é a imagem que nos olha, e não nós
que a olhamos;46 a câmera fixa perante uma pia, com uma torneira que pinga:
acompanhamos a formação da pequena bolha d’água, sua tensão e distensão,
até o momento em que ela se separa da torneira e cai. O efeito produzido
sobre o grupo, relatado pela maioria, foi de uma ampliação do sentido de
duração do tempo, acompanhada de um sentimento crescente de angústia,
com resolução final numa sensação de relaxamento.
Temos, nessas descrições, o que podemos identificar como
propriamente contemplação, imersão na imagem, o contrário, portanto, do
efeito provocado pelo fluxo das imagens do videoclipe, que se encadeiam
variadas e velozes, produzindo, com mais freqüência, excitação
proprioceptiva, perceptiva e psíquica, acompanhada por dificuldade de
retenção das imagens (o que se percebe, mais propriamente, como imagem, é,
fragmentariamente, o seu fluxo, o que não deixa de constituir-se como uma
nova percepção, determinando um corpo que precisa estar sempre em ação,
em movimento)47 e, conseqüentemente, dispersão. A resposta mais notável,
46 Podemos dizer que, na relação com a imagem, é isso o que também ocorre, embora
preservemos, mais comumente, a noção de que somos nós que a olhamos. Forma-se, na
realidade, um plano imanente olho-imagem que é a própria percepção. (Ver, na
INTRODUÇÃO, a discussão sobre o campo luminoso na óptica kepleriana.)
47 Na classificação de filmes feita pelos distribuidores, os de “ação” indicam sucessões de
movimentos, explosões, colisões nos quais quase nada efetivamente acontece. De todos os
acontecimentos, os personagens propostos como figuras centrais da trama saem
invariavelmente intactos, prontos para mais ações, emergindo de um fundo no qual outros
corpos não cessam de desaparecer. Interessante proposição, de ações a-significativas nas
quais só um corpo – o do herói – parece efetivamente agir. No videoclipe, as imagens
206
por sua simplicidade, foi a de Contemplador, que entrara em uma crise que o
levara a abandonar todas as suas atividades, mergulhando num mutismo e
numa indiferença resistentes a qualquer afetação. Chegada sua vez,
Contemplador fala, surpreendendo os que contavam com seu usual
mutismo, com um tom reflexivo e pausado: “Aquela torneira estava
pingando, é preciso que alguém a conserte”.
No dia seguinte, não aparece no hospital. Procurada a família, esta
informa que ele havia retornado ao seu trabalho, como o fazia diariamente
antes do surto. Sua atividade profissional era a de encanador.
Se é desnecessário comentar o efeito mobilizador e reorganizador do
território existencial desse paciente, que pôde reconstituir-se no plano de
imanência olho/torneira pingando/imagem, território tornado possível pela
formação de um plano de consistência no qual ele pôde re-significar-se
(Rolnik, 1990), é a própria formação desse plano de imanência que é
necessário compreender. Um plano no qual o silêncio e a duração, neste caso
propiciadores das condições para a imersão na imagem, provavelmente
entraram como componentes fundamentais para a articulação de um tempo
lógico48 que permitiu a saída de Contemplador da posição estásica49 em que
se encontrava.
também se sucedem, sugerem situações fantásticas, alucinantes, mas sem resolução em uma
situação seguinte; elas estão ali como marcadoras de uma pulsação, e se extinguem com a
música. O que filmes de ação ou videoclipes parecem sugerir é que, embora se experimente
os fluxos desterritorializados, não se sabe o que fazer com eles, que linhas de fuga eles
abrem, o que eles produzem, qual sua processualidade.
48 Refiro-me aqui ao tempo lógico tal como formulado por Lacan que, diversamente do
tempo cronológico como regulador externo das ações cotidianas, é um tempo outro,
“inconsciente”, que compreende, por sua vez, três momentos: momento de olhar, momento
de compreender, momento de concluir, não necessariamente lineares ou seqüenciais.
49 Estase da libido é uma noção ligada à economia psíquica introduzida por Freud já em seus
primeiros escritos, indicando que a libido, ao não encontrar caminho para sua descarga,
acumula-se sobre formações intrapsíquicas; essa energia (intensidade mobilizada não-
simulada em matéria de expressão, não podendo efetuar-se em afetação com um outro
corpo), não fica simplesmente “acumulada” ou retida, na medida em que encontra sua via
de expressão na formação do sintoma (que decorre da atividade imaginativa do corpo).
Inicialmente, Freud trata a noção de forma bastante englobante, referindo-se a neuroses ou a
estados de comportamento não necessariamente patológicos, como ocorre na sublimação ou
na transformação da tensão atual em atividade, resultando na obtenção de um objeto
satisfatório. Mais tarde, 1914, em Introduccion al narcisismo (OC, 1981e: 2.017-2.033), estende a
207
Para avançarmos um pouco mais, para outra das dimensões nas quais
a afetividade se constrói, é interessante acompanharmos o segundo exemplo.
Nomeio os personagens deste exemplo como Filho, Pai e Mãe.50 Trata-se de
um jovem, estudante universitário, que, até sua imersão num estado
esquizofrênico, não apresentara sinais evidentes de uma “disposição” à
psicose. A crise, de acordo com o relato de Pai, ocorre em um momento em
que este, profissional liberal e fiel provedor das necessidades materiais da
família, é surpreendido pelo seqüestro das poupanças individuais
promovido pelo governo Collor, primeiro ato oficial da nova equipe
econômica constituída pelo presidente recém-empossado. De uma posição
até então relativamente confortável, Pai salta para outra, de redução
expressiva de recursos financeiros. Liberal em suas idéias e orgulhoso de
poder dar à família o conforto necessário para não exigi-los enquanto
também provedores, Pai reluta muito em chamar Filho e Mãe para uma
redefinição das despesas. Estes, aparentemente indiferentes à nova situação,
mantêm suas demandas e gastos. Após vários adiamentos, é no momento em
que ele aborda Filho para uma conversa planejada como amigável,
rapidamente transformada em confronto permeado por acusações mútuas,
que a crise deste se manifesta.
Ao estabelecer os novos limites, Pai surpreende-se com a reação
desmedida de Filho. Este lhe diz: “Como você espera que, após tantos anos
me garantindo que enquanto estudasse eu não precisaria trabalhar, eu saia
noção para o mecanismo das psicoses, como estase da libido investida sobre o eu, isto é,
como libido narcísica. Essa estase se manifesta na hipocondria, por exemplo (investimento
libidinal de órgãos), ou, visto numa perspectiva econômica, no delírio como tentativa de
recolocação da energia libidinal em um mundo exterior recentemente formado.
50 Escolho Pai, Filho, Mãe para identificar meus personagens por tratar-se, neste relato, do
208
agora procurando emprego e consiga um que me pague o suficiente para
ajudá-lo?” Na tensão que se estabelece entre os dois, Filho ameaça agredi-lo.
Irritado por não conseguir se fazer ouvir, Pai protege-se do ataque e se retira,
chamando por Mãe para que resolva a situação. No caminho para o trabalho,
reflete sobre a injustiça da situação, critica-se por ter deixado que Mãe
mimasse tanto Filho e planeja tomar medidas mais firmes a partir desse
momento. Afinal, é necessário que Filho o reconheça em seu lugar de
autoridade enquanto Pai. Ao chegar ao trabalho, é surpreendido por um
telefonema de Mãe. Filho trancara-se em seu próprio quarto e, pelo barulho,
provavelmente havia quebrado todos os móveis. Pai volta para casa
rapidamente, disposto a uma interferência mais radical nos desmandos de
Filho, e encontra uma cena que irá definir seus passos futuros. Arrombada a
porta do quarto, depara-se com Filho encolhido em um canto, mergulhado
em fezes e urina. Filho perdera todo o controle das funções corporais, isto é:
não anda, não controla os esfíncteres, não fala, não olha. Nesse momento tem
início sua via crucis por consultórios e hospitais psiquiátricos.
De hospital em hospital, reitera-se um diagnóstico – esquizofrenia,
numa forma tardia de autismo – e consagra-se o saber classificador da
doença. Pai sempre olhara com respeito o conhecimento científico
sustentador do saber médico, adquirido em anos de estudos e pesquisa,
colocando-o em uma posição de superioridade e, num grau bastante
significativo, quase que incontestável, assim como sua crença em Deus.
Entretanto, movido por sentimentos de culpa e de um ainda difuso sentido
de responsabilidade pelo acontecimento, e bastante desorientado, busca cada
médico como aquele capaz de dar-lhe a última palavra; e a última palavra
encontra-se com a primeira: todos confirmam o diagnóstico, receitam os
mesmos medicamentos ou similares, recomendam a mesma estratégia – a
internação – e, cuidadosamente alguns, abruptos outros, procuram desfazer
suas esperanças: esquizofrenia não tem cura, o que se pode fazer é tão-
somente manter o paciente em alguns limiares suportáveis para ele mesmo e,
209
principalmente, para seus familiares. Todos, também, procuram desfazer
nele seus sentimentos de responsabilidade/culpa: trata-se de uma doença de
causa interna não-conhecida, não havendo, portanto, causalidade externa
para sua eclosão; ela acabaria por se manifestar em um momento ou outro, e
a idade de Filho, 20 anos, é bastante sensível a surtos psicóticos. O máximo
que os sucessivos tratamentos obtêm é a restituição da capacidade, algo
restrita, de movimentos e uma recuperação do controle esfincteriano pelo
Filho. Fala e olhar continuam ausentes.
É por acaso que um dia lhe recomendam procurar um hospital-dia
público. Sua primeira visita o surpreende: ao entrar no hospital – cujas
portas, externas e internas, são mantidas abertas –, logo no saguão, não é
capaz de reconhecer quem é profissional, quem é paciente. O atendimento do
médico também é totalmente outro. Sem preocupar-se com a definição de um
diagnóstico, convida Pai e Filho para se integrarem ao cotidiano do hospital.
Pai logo descobre que sua participação é fundamental para o tratamento.
Reticente e observador no início, aos poucos ele se deixa absorver pela rotina
do hospital-dia, passa a participar de grupos terapêuticos e de discussão,
reconhece que em muitas situações mostra-se inclusive competente para
atuar terapeuticamente. Filho melhora quase imperceptivelmente e com
lentidão, agrupando-se às vezes com outros pacientes. O que se altera
significativamente é a ansiedade de Pai por resultados imediatos. Ele
compreende que há um processo a ser cumprido, e procura fazer sua parte.
É nessa condição de participantes que Pai e Filho se encontram no
curso de vídeo. É notável que, embora estejam sempre próximos fisicamente
um de outro, mantêm uma discreta distância: não se olham, não se falam,
agem como se fossem estranhos.
Em uma das aulas em que o videomaker ensina a manipulação da
câmera, um outro paciente apropria-se dela e, insistentemente, procura
surpreender Filho sob seu foco. Filho foge, esconde-se sob uma mesa, o
outro o persegue. Pai observa inquieto a movimentação, mas não interfere.
210
Nesse momento ele já “sabe” e aceita o que determinou a crise de Filho: o
fato de ele, Pai, não ter conseguido se sustentar em seu lugar quando, no
confronto com Filho, retirou-se de seu campo, solicitando que Mãe
ocupasse e sustentasse uma posição que era exclusivamente sua. Sabe
inclusive – pelo menos teoricamente, em seu contato com lacanianos – o
nome que essa supressão, de ordem simbólica, encontra na psicanálise:
forclusão. A forclusão é do Nome do Pai, enquanto função ordenadora
que designa ao pai um lugar, o de referente simbólico constitutivo da
identidade de Filho. Sabe, portanto, que interferências protetoras de nada
adiantariam, já que não é nesse lugar que é demandado, mas sim em sua
função paterna, aquela que permitiria a reinclusão de Filho na ordem
simbólica da cultura e da linguagem (cf. Lacan).
Filho furta-se de ser focado pelo outro e, num gesto surpreendente por
sua agilidade, apropria-se da câmera. Começa a movê-la lentamente, e todos
podemos ver a direção de seu olhar pelas imagens que a câmera registra no
monitor: ele olha espaços vazios, evitando os corpos que o ocupam. Ora focaliza
a janela, ora a parede, ora o espaço entre dois corpos. Repentinamente, seu
controle da câmera parece escapar-lhe e ele a focaliza em uma pessoa; a imagem
vacila, ele se surpreende, depois ri e desloca novamente a câmera para um
espaço não ocupado. Isso se transforma em um jogo, em um exercício lúdico
que ele ensaia várias vezes. Vira a câmera para seu rosto, que aparece desfocado
no monitor. Repete esse movimento várias vezes, refazendo sempre a seqüência
espaços vazios/outros corpos/rosto próprio. Ensaia aproximações a Pai, que
parece visivelmente emocionado. Na retomada de cada seqüência, Filho inclui
Pai em seu campo de olhar com maior freqüência e intensidade, até o momento
em que abandona a câmera, dirige-se ao Pai e o abraça.
A partir desse acontecimento alteram-se significativamente a
participação de Filho nas atividades cotidianas do hospital-dia e sua
relação com Pai. Isso não significou um retorno de Filho à “normalidade”
(o que nem sempre ocorre nesses trabalhos), e sim uma abertura para que
211
ele pudesse definir algumas estratégias para sua existência cotidiana,
derivadas, provavelmente, do jogo expressivo que fez com a câmera: mais
que espaços vazios/espaços preenchidos, função mais propriamente
designativa numa topologia, os movimentos estabeleceram conexões entre
vazios/corpos/vazios entre corpos/corpos entre si. Construiu assim um
espaço, não mais estático, no qual ele próprio pôde se localizar na sua
relação com outros corpos. A partir daí, começa a não mais depender
estritamente de Pai para dirigir-se ao hospital-dia, valendo-se do
transporte público quando Pai não podia acompanhá-lo.
Não chegamos à realização do projeto final, proposto por um dos
pacientes (o mesmo que introduzira Filho no jogo): um vídeo-documentário
a ser realizado na Av. Paulista (São Paulo) e dirigido por pacientes do
hospital, construído a partir de uma pergunta dirigida aos transeuntes: “O
que é a loucura?” Como na maioria dos projetos desse tipo desenvolvidos em
instituições mantidas pelo Estado, os recursos materiais são mínimos. Um
defeito na câmera, impossível de ser consertado, interrompeu nosso trabalho.
Tempos depois, encontrei-me com Filho na Av. Paulista (São Paulo),
entre torcedores que voltavam de um jogo de futebol, o que me levou a
pensar que, de alguma maneira, ele avançara para uma maior
autonomização em sua mobilidade cotidiana.
CORPO-LINGUAGEM
Nem sempre essa relação dispositivos técnicos-subjetividade ocorre
positivada como nos casos aqui descritos. Um outro paciente, alcoólatra, a
quem chamo aqui de Não-Agenciado, que fora afastado do trabalho por
quase ter provocado um acidente de grandes proporções – deliberadamente
ou não, era a pergunta –, apresentava, entre outros sintomas, reações
extremamente agressivas e incontroláveis frente à televisão, bastando, para
isso, que as imagens apresentassem movimentos mais intensos e velozes, não
necessariamente agressivas. Nesses momentos, conforme relatado por sua
212
esposa, era preciso que fosse contido para que não quebrasse o aparelho de
televisão e outros objetos da casa. Ele insistia na necessidade de fazer
desaparecer aqueles homens e objetos muito pequenos que apareciam na tela
em velocidades variáveis e que o perturbavam, pois poderiam vir sobre ele.
É interessante observar que os alcoólatras, em uma análise que já foi definida
como uma “antropologia patológica” que deles faz Canetti (1983), deliram,
em primeiro lugar, populações sobre o próprio corpo.51 Canetti é, de certa
forma, precursor de Deleuze & Guattari (Massa e poder é de 1960) ao
reconhecer, nas formas expressivas humanas das quais o delírio é parte, a
dimensão sócio-histórico-política que lhes dá materialidade, fazendo fugir,
assim, a redução psicologizante dessas manifestações.
213
Não-Agenciado efetivamente representava risco concreto, tanto para si
mesmo como para os outros, em seu trabalho e nas relações intersubjetivas, na
medida em que resistia a ser agenciado52 por pulsações rítmicas as mais
diversas: visuais, quando perante a televisão e sua velocidade de apresentação
de imagens; auditivas, quando exposto a músicas de ritmos excitantes, ou em
situação de trabalho, em sua relação com as máquinas e seus ruídos;
proprioceptivas, também em sua relação de trabalho, lidando com altos fornos e
suas vibrações. A todas essas situações, opunha forças, respondendo agressiva e
destrutivamente. A conexão dessas respostas com o consumo de álcool não era
imediata ou evidente, já que elas ocorriam não só em momentos em que não
estava alcoolizado, como, nesses momentos de explosão agressiva, uma dose de
álcool exercia sobre ele um efeito tranqüilizador.
No consultório, perante mim, sustentava uma fala bastante pausada,
quase monótona, e seus gestos acompanhavam esse ritmo da fala, como se
esta construísse para ele um território habitável e seguro. Apresentava-se
como pessoa tranqüila, que não gostava de festas e agitações. Se pudesse,
retornaria para o campo, de onde viera, longe do trânsito e da cidade, e
sonhava com essa possibilidade de dar-se outra vida. Algo que, por outro
lado, não lhe parecia mais possível, já que pressionado a retornar brevemente
ao trabalho e por ter construído sua vida de forma bastante atravessada pelas
demandas e necessidades urbanas.
Vivia assim um difícil impasse, no qual seu alcoolismo ocupava um
lugar central, por atuar ao mesmo tempo como desagregador – de sua relação
com o próprio corpo (imagem de si) e com o exterior – e como protetor – do
próprio corpo em relação às forças vindas do exterior. Um impasse comum
não só ao alcoolismo, mas a toda drogadição.
52É essa resistência que procuro destacar ao escolher o nome Não-Agenciado para designá-
lo. Deixar-se agenciar é, grosso modo, “fazer corpo” para o que vem de um exterior. Se esse
“fazer corpo” pode indicar uma flexibilização, uma disposição a deixar-se alterar, pode, da
mesma forma, operar-se uma sujeição, principalmente quando são excedidos os limites de
suportabilidade daquele que é capturado pela mutabilidade desse exterior.
214
O consumo de álcool ou de drogas tem vários tempos no corpo. No
início, recorre-se a eles por motivos vários: por curiosidade, para “relaxar”, para
integrar-se em um grupo, para expandir os próprios limites sensoriais e de
consciência; em suma, motivações que confluem para o movimento (ainda que
imaginário) de construir para si um corpo mais potente em suas afetações,
embora o que esteja operando efetivamente, desde o início, seja um esforço para
construir defesas protetoras das próprias forças – uma “identidade” – em
relação às forças externas. O segundo tempo do corpo drogado é o de seu
funcionamento, que estabelece uma relação maquínica com o que consome:
estado de dependência. O terceiro tempo é o da impossibilidade de ativar-se com
a qual o corpo se depara na ausência das drogas, experimentada como risco de
desagregação: síndrome de abstinência. A droga já se dobrou sobre o corpo, já o
constituiu outro, impedindo-o de retomar-se em seu tempo anterior, que deixou
de existir com seus mecanismos próprios de ativação, daí quaisquer esforços de
reversão desse modo de funcionamento serem vividos com grande sofrimento.
As dificuldades que se apresentam quando se tenta reverter os quadros de
dependência de drogas são, por essas razões, dramáticas, da mesma forma como
são geralmente pouco efetivos os esforços racionais para conter seu consumo.
Não só as drogas químicas produzem tais efeitos: práticas corporais
como body building (que não podem ser interrompidas sob o risco de um colapso
de toda a estrutura muscular), uso de anabolizantes, implantação de próteses
corretivas as mais diversas (como as de silicone), além de um sem-número de
hábitos de consumo que, ao serem assimilados aos modos de funcionamento e
constituição corporal, desfazem o corpo anterior, dificilmente são revertidos
sem riscos. Como observa Maturana (1999: 275), nas ordens de realidade nas
quais nos constituímos como organismos vivos, não há alteração em uma
coordenação de ações – interações corporais – que não implique em alterações
corporais na ordem de nossa fisiologia.
215
TRANS
216
sentido, suas metáforas, sua função mediadora – a favor do investimento nos
atravessamentos possíveis de serem realizados pelos pacientes se justifica
como escolha estratégica em um campo de possibilidades limitadas se
assumidos procedimentos mais correntes. Na cena psicoterápica da psicose,
muitos esforços de se atuar privilegiando diretamente, via linguagem, o viés
interpretativo, a produção ou o esvaziamento de sentido, redundam em
fracasso. Como observa Octave Mannoni, em “A linguagem esquizofrênica”
(1992: 139-151):
217
Aquilo que parece sem sentido, portanto, no discurso do psicótico, é
redimensionado por Mannoni como “recusa do sentido”, o que em absoluto
nos dispensa de ouvir o que se ordena em sua fala, reconhecendo, dela, sua
operatividade. Ao mesmo tempo, é também em sua operatividade na relação
com os objetos do mundo – entre os quais os dispositivos técnicos, ou,
melhor dito, maquínicos, surgem como privilegiados – que o psicótico
constitui seu corpo, seus ritmos, seus atravessamentos. É a partir dessa dupla
operatividade em que linguagem e objetos, como coisas, operam
constitutivamente o campo no qual o psicótico encontra-se imerso que o
trabalho terapêutico torna-se possível, como esforço para devolver a esses
seres excluídos da cotidianidade das relações interpessoais e do trabalho a
competência para se reinserirem na ordem simbólica, ética e relacional que
nos designa, enquanto organismos vivos, como seres sociais e humanos.
Resta agora perguntar se esses processos são tão diversos entre
aqueles considerados “normais”, que, constituídos, em sua organização do
eu, enquanto portadores de uma “identidade” que os protege de serem
atravessados tão intensamente por essas relações com a linguagem e os
objetos – o que os leva a aceitá-los, linguagem e objetos, como dados, como
reais, como verdade –, estabelecem suas relações consigo mesmo, com o outro
e com os objetos de uma maneira que tendemos a reconhecer como mais
adaptada, integrada e não-disruptiva; não raramente – uma das hipóteses a
ser verificada aqui –, uma aparência de adaptação e integração que, por
encontrar ressonância nos modos contemporâneos de produção da cultura,
garante-lhes um plano mínimo de consistência no qual preservam seus
territórios existenciais de uma maneira estável, ainda que, muitas vezes, só
precariamente.53
53
Anzieu, em O Eu-pele (1993), analisa uma transformação que vem se operando nas últimas
décadas e que tende a se tornar mais e mais visível na prática clínica: contrariamente ao que
se observava no século XIX e primeiras décadas do século XX, período em que Freud
estabeleceu as bases do pensamento psicanalítico, cada vez mais as manifestações
sintomáticas neuroticamente estruturadas cedem lugar, nas falas de seus analisandos, para
expressões de sentimentos de difusão ou supressão afetiva e de estados emocionais e
218
corporais vividos como fragmentários que se assemelham àqueles identificados como
próprios das posições perversa e/ou psicótica. Dessas manifestações, Anzieu extrai um novo
conceito de eu, a que chama eu-pele, ou envelope (invólucro) corporal, de caráter finito e
mais flexível, que é vivido com freqüência pelas pessoas como frágil e constantemente
ameaçado de se desfazer. Principalmente entre usuários de drogas, é comum a afirmação de
que buscam “anestesiar-se”, perder o corpo ou ultrapassá-lo. “Vou explodir” ou “vou
desabar”, “estou ficando louco” são expressões que costumam acompanhar as viagens de
drogas. É em direção semelhante que caminham também as articulações de Rolnik, em
“Toxicômanos da identidade: subjetividade em tempo de globalização” (Lins [org.], 1997: 19-
24), ao identificar, como forma manifesta de resistência às derivas e transformações da vida,
uma tendência a se aderir ao sintoma como prerrogativa de identidade (“sou depressivo”;
“sou afetivamente bipolar”; “sou compulsivo sexual”; “sou dependente de drogas”...).
Anatrella, em O sexo esquecido (1992), mantendo-se fiel ao modelo psicanalítico da
estruturação do eu, apresenta análises instigantes dos efeitos deletérios sobre a experiência
do corpo e da sexualidade provocados pelas transformações da cultura a partir dos anos
60/70 e pelas imagens e discursos sobre o corpo e o sexo “liberados” produzidos pelos
meios de comunicação de massa. Perante aquilo que se lhes presenta, os sujeitos muitas
vezes invalidam ou denegam sua própria forma de sentir e viver a favor do que lhes surge
como tendencial, como uma nova normalidade à qual devem adaptar-se, mesmo que muitas
vezes ao preço de se distanciarem da própria experiência vivida, o que pode determinar
neles algumas formações sintomáticas (depressão, ansiedade, irritabilidade constante etc.),
que acabam tendo de ser socorridas pelas medicalizações disponíveis no mercado.
219
CAPÍTULO 2
DENTRO-FORA
Se falta enxofre à nossa vida, quer dizer, se lhe falta uma magia
constante, é porque nos apraz contemplar nossos atos e nos perdermos
em considerações sobre as formas sonhadas de nossos atos, ao invés de
sermos impulsionados por eles. (...) Todas as nossas idéias sobre a vida
têm de ser revistas numa época em que nada mais adere à vida. E esta
penosa cisão é motivo para as coisas se vingarem, e a poesia que não
está mais em nós e que não conseguimos mais encontrar nas coisas
reaparece de repente, pelo lado mau das coisas; e nunca se viu tantos
crimes, cuja gratuita estranheza só se explica por nossa impotência em
possuir a vida. (Antonin Artaud, O teatro e seu duplo, 1984: 17)
221
INTRODUÇÃO:
A PSICOSE COMO REFERÊNCIA
1 Mais do que “em presença”, portanto. Isso é mais visível quando se trata de câmeras
fotográficas e de vídeo, ou de gravadores e microfones, em que a simples presença é já
presentação, isto é, o corpo, perante tais dispositivos, altera-se nessa presença. Por essa razão,
podemos dizer que não há, na presença de um corpo a qualquer desses dispositivos,
“naturalidade” possível de registro. É provável que efeitos parecidos ocorram na recepção, se
considerarmos a relação corpo-dispositivo-imagem/mensagem. A tendência, nos últimos anos,
de uma bem-sucedida, em termos de audiência, abertura à participação mais “ativa” do público
em programas televisivos (dos que demandam a participação do público por voto aos
programas de auditório com jogos, quiz shows, reality shows) pode ser uma forma de
materialização e de concretização prática de processos já presentes na aparente unilateralidade
do fluxo emissão-recepção.
222
sua reclusão e sua exclusão. Assim, Basaglia colocou seu acento nas questões
políticas e institucionais, tornando-se polêmico por ter fechado hospitais
psiquiátricos na Itália, devolvendo o “louco” e sua problemática à sociedade
que os excluíra; Laing e Cooper passaram a trabalhar com a dinâmica familiar,
com os duplos vínculos e as estruturas familiares psicotizantes, restituindo o
“louco” e a responsabilidade por sua “loucura” à família (em Laing & Esterson
[1972] pode ser encontrado um quadro expressivo dos procedimentos
terapêuticos utilizados nessa restituição); o argentino Alfredo Moffatt (1975),
em um trabalho de “descolonização ideológica” bastante similar ao proposto no
Brasil por Paulo Freire na educação de analfabetos adultos, construiu uma
comunidade (Comunidad Popular Peña Carlos Gardel) para o exercício de uma
psiquiatria social construída a partir de e com o povo, centrada no resgate de
mitos, músicas e costumes populares, visando formar organizações de base que,
através do resgate da cultura popular, chegassem a uma “redistribuição da
loucura”; finalmente, Felix Guattari, que iniciou suas atividades na Clínica La
Borde (França), dirigida por Jean Oury, e principalmente a partir de seu
encontro com Gilles Deleuze, em 1972, engajou-se em uma militância bastante
implicada com movimentos de minorias, realizando intervenções micropolíticas
efetivas (como a organização de rádios livres, que propunha uma apropriação
coletiva da voz dessa mídia, como resistência aos seus efeitos modelizantes) e
fazendo-se autor de uma farta produção teórica e de debates com grupos
minoritários os mais variados em várias partes do mundo: de mulheres, de
homossexuais, de negros, de escolas alternativas, de hospitais-dia, de
movimentos de intervenção em prisões etc., buscando, se não a “salvação do
louco”, o reconhecimento do campo problemático do desejo que a “loucura”
mantém aberto, e, a partir desse reconhecimento, a construção de estratégias de
potencialização e vitalização dos “inconscientes que protestam” (Guattari &
Rolnik, 1986: 11) no campo social, afirmando eticamente2 as posições de desejo
2Eticamente, na medida em que não se trata de afirmar que toda posição de desejo é produtiva
no sentido de “produzir um bem” (muitas vezes posições de desejo levam a movimentos
extremamente destrutivos, como podemos observar na formação de grupos neonazistas que
recusam e atacam no outro toda diferença), mas sim de assumir uma posição extramoral
223
como forças produtivas e transformadoras, em oposição à sua qualificação
normativa e moral como “desviantes” (o que justificaria seu controle e
domesticação). O livro-manifesto (ao mesmo tempo de proposição teórica)
desse movimento foi El Anti-edipo; capitalismo y esquizofrenia I (1974), escrito
com Gilles Deleuze e lançado na França em 1972. Obra de vocação polêmica,
questiona as noções do inconsciente que o apresentam ora como figurativo,
como se fosse um “teatro” interior (Freud, Jung), ora como estrutural –
“estruturado como uma linguagem” (Lacan) –, para reconhecê-lo, em sua
dimensão sócio-histórica, enquanto maquínico, como um lugar e uma força de
produção no socius. Argumenta Guattari (1988: 9-10):
perante sua emergência, acompanhando-lhe os movimentos e o que deles advém, como forças
ativas, enquanto possibilidade de expansão de vida, enquanto construção de mundos possíveis,
enquanto produção de sociedade, ou, contrariamente, a mobilização de forças reativas, que
agem no sentido de pura destruição de si mesmo e do outro. O que não é pouco: tanto a
tradição judaico-cristã como o privilégio da razão sobre as emoções que fundam nosso modo de
viver social tendem a culpabilizar o desejo e a representá-lo como caos (cf. Rolnik, 1989: 40;
Guattari & Rolnik, 1986), justificando sua repressão e controle; em direção oposta, as ideologias
libertárias (como as da contracultura vigentes a partir dos 60) tenderam a “naturalizar” o desejo,
como energia em estado bruto que, se liberada, nos liberaria, também, do sofrimento e das
neuroses (como defendia Reich, em relação à sexualidade e ao orgasmo), construindo, com isso,
imaginários de libertação que atualmente sustentam parte do ethos pós-moderno do “tudo
poder dizer ou fazer” como ideal de liberdade individual (cf. Zizec, O super-ego pós-moderno,
FSP, Mais!, 23.05.1999: 5-7). Aqui, trata-se de reconhecer, em primeiro lugar, o desejo em suas
conexões enquanto potência de produção de real social, assim como, regra de prudência
fundamental, avaliar seus “limiares de desencantamento possíveis”, isto é, aqueles momentos
de mobilização das forças reativas à sua expressão que o redirecionam como força destrutiva
(cf. Rolnik, 1989: 71). É nesse sentido, mesmo que com referenciais teóricos mais “clássicos”
derivados da ortodoxia psicanalítica, que caminham os comentários de Anatrella (1992: 1-7)
sobre os efeitos contemporâneos da liberação sexual e do corpo nos anos 60 e seus equívocos.
224
petrificado num discurso institucionalizado, mas, ao contrário, voltado para o
futuro, um inconsciente cuja trama não seria senão o próprio possível, o
possível à flor da linguagem, mas também o possível à flor da pele, à flor do
socius, à flor do cosmos... Por que colar-lhe esta etiqueta de ‘inconsciente
maquínico’? Simplesmente para sublinhar que está povoado não somente de
imagens e de palavras, mas também de todas as espécies de maquinismos que
o conduzem a produzir e reproduzir estas imagens e estas palavras”.
3 Esquizofrenia é um termo criado por Bleuler (1911) a partir do grego σχίζω, “fender, clivar”, e
φρήν, “espírito”, para indicar o sintoma básico dessa forma de psicose: a Spaltung, isto é, a
dissociação. Clinicamente, manifesta-se de formas diversas e dessemelhantes, com algumas
características comuns: incoerência de ação, pensamento e afetividade (discordância,
dissociação, desagregação); afastamento da realidade, operando-se um dobrar-se sobre si
mesmo, com predominância de vida interior entregue a produções fantasmáticas; e uma
atividade delirante relativamente acentuada e mal sistematizada. Quando atinge estágios
crônicos, observa-se, em graus variados, uma deterioração intelectual e afetiva, o que justificou
sua designação, por Kraepelin, de “demência precoce”. Esse processo de cronificação, é
importante indicar, é observado em condições de confinamento, e, de certa forma, criado pelo
próprio confinamento. O que nos interessa do termo é menos sua qualificação clínica, mas o fato
de, como já o reconhecia Freud, a Spaltung ser um processo próprio do inconsciente, que se
expressa pela subsistência, lado a lado, de agrupamentos de representações independentes
umas das outras. Quando Deleuze & Guattari propuseram o termo “Esquizoanálise” para
designar sua prática (em substituição a “Psicanálise”), pensaram “esquizo” como fluxos (de
representações, de afetos, de componentes estéticos, cognitivos etc.) que atravessam o campo
social e capturam territórios existenciais (individuais e coletivos), afetando-os, desfazendo-os,
transformando-os. A análise desses fluxos, o reconhecimento dos processos históricos, sociais,
culturais por eles agenciados e, com aqueles por eles afetados (que os experimentam como
desestabilização da existência e perda de referências etc.), a constituição de estratégias de
subjetivação que permitam a formação de territórios próprios e uma maior maleabilidade na
relação com as forças mobilizadas pelos processos de mudança é uma das marcas de seu
trabalho.
225
instituídos, resistem a eles. A novidade introduzida por Deleuze & Guattari em
relação à psicanálise criada por Freud foi perguntar pelo que somos, e como
somos, não a partir da neurose (que Freud – escrevendo “contra si mesmo”, isto é,
de um lado fiel à tradição que o inscrevia como homem do século XIX, de outro
questionando essa tradição e testando-lhe as margens – via como inevitável, no
confronto das pulsões que demandam satisfação com as restrições e exigências da
cultura), mas sim a partir da psicose, e, da compreensão de seu processo, propor
alternativas aos modos de vida que consagramos e que não cessam de entrar em
crise desde os anos 50.
Não se trata aqui de apresentar, mesmo que resumidamente, as teses
de Deleuze & Guattari, mesmo porque isso seria impossível,4 e sim indicar que
é principalmente a partir de suas proposições que movo minhas leituras. Por
isso, à medida que o texto o exige, tenho procurado introduzir novos conceitos,
ou retornar aos já expostos, necessários para sua compreensão.
Trata-se agora de caminhar dos relatos do CAPÍTULO 1 – DENTRO para
um esforço de compreensão das relações do homem comum, cotidiano, com a
técnica, os dispositivos comunicacionais que dela nascem, as formas de
comunicação por eles permitidas e fomentadas e as produções imaginárias e
subjetivas por eles agenciadas.
4 Seu trabalho, mais que a construção de um modelo teórico imediatamente aplicável, caminhou
mais no sentido de investir aberturas do pensamento que nos permitem rever e re-significar
conceitos e redimensionar práticas. Um pensamento voltado para estratégias possíveis de
transformação – portanto, não só de compreensão e interpretação do quadro atual – que se
coloca na vertente das filosofias práticas, como a espinosana e a nietzscheana, seus dois grandes
referentes.
226
CORPO, TÉCNICA E MÍDIA
227
tanto opiniões que demonizam a televisão, destacando seus efeitos nocivos,
quanto outras que procuram minimizar esses efeitos, destacando, por
exemplo, seu caráter catártico ou até mesmo educativo e, portanto, não
incitador de passagens a atos.6 Entre os que se colocam no primeiro pólo estão
os que a apontam como responsável pela incitação da violência,
banalizando-a por privilegiá-la em excesso, contabilizando-se, por exemplo,
o número de crimes e assassinatos a que é exposta uma criança enquanto
assiste a desenhos animados ou a filmes, o que a levaria a uma percepção
“crescimento pessoal”, para o estar ou, mais freqüentemente, parecer bem. Corpo potente, em
princípio, para o consumo de si e dos objetos (cf. Freire Costa, 1989; 1991; Courtine, Os
stakhonivistas do narcisismo, in Sant’Anna, 1995: 81-114; Guattari & Rolnik, 1986; ver também
Rodrigues, 1993).
6 Catarse e passagem a ato são dois termos bastante presentes na teoria psicanalítica,
principalmente nos primeiros textos de Freud, sobre a histeria. Catarse designa uma espécie de
“purgação”, de “purificação” de afetos patogênicos. Em nosso caso, a exposição a cenas
violentas, por exemplo, permitiria ao espectador evocar ou mesmo reviver acontecimentos
traumáticos a que os afetos mobilizados pudessem estar ligados e ab-reagi-los, isto é, libertar-se
deles por uma descarga emocional que os impediria de se tornarem patogênicos. O conceito foi
utilizado por Aristóteles, na Poética, para designar o efeito provocado no espectador pela
tragédia: “A tragédia é a imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão,
em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas
partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que,
suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação das paixões” (Aristóteles, 1979: VI,
27: 245). Freud retira sua noção de “complexo de Édipo” a partir do efeito catártico produzido
no público pela tragédia Édipo-Rei, de Sófocles. Os esforços das pesquisas realizadas pelo Lapic,
da ECA/USP, por exemplo, tendem a sinalizar e privilegiar o caráter catártico e educativo da
programação televisiva. Entretanto, pode-se objetar que a espetacularização da violência, do
drama, do destino dos personagens corrente nas produções ficcionais e de noticiário
contemporâneas as distancia radicalmente dessa dimensão da tragédia exposta por Aristóteles.
Passagem a ato é a forma utilizada na França para traduzir o termo alemão agieren utilizado por
Freud, que em inglês recebeu a forma acting out. Tanto a tradução francesa (derivada do jargão
psiquiátrico) quanto a inglesa são problemáticas, por não corresponderem à ambigüidade que
Freud imprimiu a seu uso (agir fora da relação transferencial, negando-a, como também agir
fora do contexto da análise, em vez de trabalhar e elaborar os afetos verbalizando-os), embora
tenham sido consagrados na linguagem psicanalítica corrente, designando, ambos, ações que
apresentam um caráter impulsivo, que rompem relativamente com os sistemas de motivação
habituais de um indivíduo e que são mais ou menos isoláveis no decurso de suas atividades
cotidianas, tomando muitas vezes uma forma auto ou hetero-agressiva. O jovem estudante de
medicina, sextanista, que atirou em pessoas em um cinema paulistano em 1999, durante a
exibição do filme Clube da luta (Fight Club, David Fincher, 1999), conforme a perspectiva
psiquiátrica, teria feito, mobilizado pelas cenas violentas do filme, uma “passagem a ato”. O
interessante é que o filme, em sua maior parte, sugere muito mais a idéia de lidar com as forças
que oprimem o sujeito voltando-as para si mesmo – esse o sentido do clube da luta –, e não para
o exterior, salvo nas seqüências finais, com a correspondente reação do personagem principal
contra elas, ao se dar conta da fúria guerreira e destrutiva que desencadeara.
228
distorcida e banalizada da agressividade e da morte provocada a um outro,7
ou como responsável pela dissolução dos costumes e valores familiares, pela
insistência com que são exibidos temas adultos relativos à sexualidade em
horários impróprios.8 Há opiniões, ainda, que fazem separações entre o real e
o ficcional, aceitando que imagens carregadas de violência ou de referências
sexuais sejam consumidas em filmes, mas não em telenovelas ou noticiários
(cf. ANEXO).
229
Não me parece, entretanto, que possamos nos afastar muito dos
impasses da problemática moral nesses debates, em relação à qual o conflito de
opiniões nos arrasta para becos sem saída, como já foi observado na
INTRODUÇÃO. Para “becos sem saída”, as respostas geralmente dizem respeito
mais ao que “deve ser reformado” para que funcione bem, nem sempre ao que
deve ser compreendido (ou transformado) desse funcionamento. Em outro
capítulo (PARTE II, CAPÍTULO 3 – FORA), no qual me estenderei um pouco mais na
análise da pesquisa realizada pela Unesco e dos efeitos produzidos pela
Portaria 796, procuro formular algumas questões sobre esses impasses, de
forma a redirecioná-los para o debate sobre as implicações éticas da atual
produção televisiva brasileira.
O que me parece mais significativo, neste momento, é aquilo que as
experiências que relatei me informam, convidando-me a deslocar as usuais
considerações sobre os efeitos da recepção do conteúdo da programação
televisiva para a forma como atuam, na recepção, a forma e estrutura de sua
apresentação, além de, principalmente, para a própria sofisticação técnica dos
dispositivos de recepção que a materializam de uma forma que se propõe mais
e mais aperfeiçoada e “real”, com amplificação de efeitos sonoros e graus de
resolução da imagem que prometem imersões das mais expressivas e
surpreendentes, reforçando, conforme observa Anatrella (1992: 24-33), o
crescente privilégio, nas últimas décadas, de uma “psicologia sensorial” em
detrimento de uma “psicologia racional”.9
9 De acordo com Anatrella (1992), à medida que cores, sons e imagens ocupam o primeiro plano
do que é oferecido para a fruição sensorial, associados a um incitamento, na ordem da cultura,
ao cultivo do corpo “saudável” e do “sexo liberado”, constrói-se tanto uma necessidade
crescente de uma maior intensidade de estímulos para a ativação do corpo, de forma a fazê-lo
vibrar, balançar-se ou alterar-se, como é provocada uma cisão entre corpo e corporeidade e
entre sexo (como gênero e como atividade) e sexualidade (relacional e intersubjetiva). O que
podemos observar na ordem da cultura é um abandono progressivo da palavra e da elaboração
da experiência pelo pensar ativo a favor da sensação corporal imediata (centrada em
quantidade e intensidade de estímulos, por saturação, na direção contrária, portanto, ao cultivo
do corpo sensível e suas afecções, ao qual Rolnik [1989] chamou de “vibrátil”), de encontros
fortuitos que se mostram impotentes para se constituírem numa dimensão intersubjetiva e de
demandas de satisfação também imediata do que é posto como desejo. Permanece-se na
atividade imaginativa do corpo, no jogo de imagens que se formam no encontro dos corpos.
Nesse contexto, em vez de afirmar-se, tanto o corpo estaria sendo negado em sua potência como
também o sexo, ao serem vividos desconectados da sexualidade e sua dimensão relacional,
230
Se o caminho que escolho parte do reconhecimento de ser inegável
que o dispositivo televisivo (assim como outros dispositivos técnicos)
produz efeitos subjetivos, resta perguntar de que maneira esses efeitos se
conjugam na produção de planos de realidade e como reconhecer sua
produtividade e suas modelizações, para, em outro momento, verificar a
possibilidade de formular estratégias eficientes para abrir linhas de fuga10 a
por reconhecimento e aceitação dos acontecimentos e mutações do campo social (assim como
ocorre com muitos outros dispositivos institucionais que se propõem como “ligados” nos
acontecimentos, nas tendências), a mídia opera opondo-lhes forças, buscando ir sempre “um
pouco mais além” em seus formatos próprios já consagrados de uma maneira tal que acaba por
despotencializar a força desses acontecimentos e mutações. Como bem o disse Deleuze (1992:
198), em entrevista ao Libération, de 22.09.1988, quando perguntado sobre a maneira como a
mídia, em geral, capta o acontecimento: “Não creio que a mídia tenha muitos recursos ou
vocação para captar um acontecimento. Primeiro, ela mostra com freqüência o começo ou o fim,
ao passo que um acontecimento, mesmo breve, mesmo instantâneo, se prolonga. Segundo, eles
querem o espetacular, enquanto o acontecimento é inseparável de tempos mortos. Isto nem
mesmo quer dizer que haja tempos mortos antes e depois do acontecimento; o tempo morto está
no acontecimento. Por exemplo, o instante do acidente mais brutal se confunde com a
imensidão do tempo vazio onde o vemos advir, nós, espectadores do que ainda não é, imersos
num longuíssimo suspense. O acontecimento mais ordinário faz de nós um vidente, ao passo
que a mídia nos transforma em simples olheiros passivos, no pior dos casos em voyeurs.
Groethuysen dizia que todo acontecimento está por assim dizer num tempo em que nada se
passa. Ignora-se a louca espera que existe no mais inesperado acontecimento. É a arte, não a
mídia, que pode captar o acontecimento [grifo nosso]: por exemplo, o cinema capta o acontecimento,
com Ozu, com Antonioni”.
231
essas modelizações.11 Um percurso pelas relações do corpo com os
dispositivos técnicos na constituição do espaço humano permitirá uma
melhor delimitação do campo problemático que procuro abrir aqui.
11
Uma das estratégias da modelização é operar por mecanismos de repetição, na qual são
embutidas pequenas variações, e por auto-referenciação. Limitando-nos à televisão e seus
programas de auditório, por exemplo, as “popozudas” de hoje são reconhecidas como
sucessoras das discretas “chacretes” do passado, só que mais “ousadas”, o que sugere que nada
mudou, que as tendências de agora estavam em germe no passado, só tendo “evoluído”, já que
livres da censura. No desenvolvimento de um mesmo programa, os quadros se sucedem, sem
intensificações ou variações. Não há, na “produtividade” da mídia televisiva, salvo algumas
exceções (ver as produções da televisão destacadas por Arlindo Machado [2000], e algumas
minisséries de produção recente, como Auto da Compadecida [1999], Os Maias [2001], ambas da
Globo), passagens, transições, mas proposições que alternam entre dois termos, em suma,
“início” e “fim”, como não há, para aquele que a consome, percepção de como se processam as
alterações, somente comparações entre “antes” e “agora”, “agora e “imediatamente depois”.
Talvez advenha daí a “crise de criatividade” que se observa nas redes, para as quais concorrer
por audiência é fazer a mesma coisa, o similar, só que de forma mais ou menos “ousada” ou em
maior quantidade, o que é sempre algo que progride, com pequenas variações, para o mesmo,
para a redundância, ora para a fórmula bem-sucedida do passado, ora para a do atual
concorrente, infinitamente. Para o telespectador a situação não é diversa. Podemos dizer que, se
não há “criatividade” na produção, ela também não ocorre na recepção. O espectador fiel desses
programas, por mais contrafeito se mostre, não deixa de ceder à promessa da próxima atração
que acaba por restituí-lo, invariavelmente, ao mesmo e suas redundâncias. Aparentemente, não
há procura de uma outra via, apenas demandas em relação a uma mesma via e sua
variabilidade em termos de mais ou menos exposição de corpos, mais ou menos ousadia, mais
ou menos violência (cf. respostas à pesquisa [ANEXO]). Evidência disso é a não-consideração,
pela maioria dos telespectadores, de programas mantidos pela rede pública – como TV Cultura,
TVE etc. –, que oferece efetivamente alternativas diferenciadas à programação de televisão
diária de rede aberta, mas que demanda o exercício de outras formas de percepção e recepção,
outros tempos e ritmos. A televisão criou seus consumidores para celebrá-la e para celebrá-los, e
mesmo quando ela apresenta programas que expõem seus mecanismos de captura, como No
Limite, o faz celebrando a si mesma como auto-reprodutora e a seu espectador como
consumidor cativo desses mecanismos de auto-reprodução. (Ver PARTE II, CAPÍTULO 4 – FORA-
DENTRO.)
232
primeiro lugar, para fins bélicos12 – colocou-os de modo crescente em concorrência
– alterando-os –, com os espaços mais socializados e presenciais das salas de
concerto, de teatro, dos museus.13
12 Com o fim da guerra, os EUA, como grandes vencedores, contavam com tecnologias de
vigilância estratégica como câmeras, rastreadores e captadores de sinais visuais e sonoros etc.
que foram prontamente reinvestidos na indústria cinematográfica e de entretenimento, o que
garantiu sua expressiva expansão no pós-guerra. Segundo Virilio, não se trata, simplesmente,
de “deslocamento, reaproveitamento, reinvestimento” de tecnologia: guerra e cinema seriam,
mesmo, indissociáveis. Ele observa que “antes de serem instrumentos de destruição, as armas
são instrumentos de percepção, ou seja, estimulantes que provocam fenômenos químicos e
neurológicos sobre órgãos do sentido e o sistema nervoso central, afetando as reações e a
identificação e diferenciação dos objetos percebidos” (Virilio, 1993: 12). Assim, “o cinema entra
para a categoria das armas a partir do momento em que está apto a criar surpresa técnica ou
psicológica” (idem.: 15). A propaganda nazista utilizou-o profusamente, chegando mesmo a
organizar eventos monumentais, como o Congresso de Nuremberg, para serem filmados e
divulgados em toda a Alemanha. No texto America: no man’s land, no land’s man – composição
em 15 movimentos e 1 ethos (Cadernos da Pós-Graduação, IAR, Unicamp, Ano 4, v. 4, no. 2, 2000: 73-
82), foram essas análises de Virilio que me inspiraram a construir uma leitura da dimensão
política e subjetiva da expansão e dominação cultural norte-americana no pós-guerra a partir do
show bizz e do cinema de entretenimento, fazendo um percurso – sustentado por uma mesma
pergunta: “o que é ser ou tornar-se americano?” – dos musicais dos anos 50 aos filmes ultra-
violentos dos anos 80-90.
13
Por exemplo, a partir de uma iniciativa do museu Guggenheim, de Nova York, torna-se agora
possível acessar, via internet, obras pictóricas às quais só se poderia ter acesso, até
recentemente, caso houvesse disponibilidade para uma visita in loco ao prestigiado museu
nova-iorquino. Claro, há uma enorme diferença entre a fruição de uma obra de arte quando se a
tem presente e a tornada possível por seu acesso como imagem via computador, diferença que
tem sido alvo de muitos debates sobre os simulacros do mundo, como os promovidos por
Baudrillard, ou, para citarmos um clássico de 1936, sobre a perda da aura da obra de arte com o
advento das técnicas de reprodução, no texto de Walter Benjamin (1975a. p. 9-34). As “ilusões”
de presença multiplicam-se com os dispositivos técnicos e vêm se intensificando desde o
aparecimento da fotografia, podendo alcançar dimensões altamente fetichizadas, como ocorre
quando nos satisfazemos com a contemplação da foto de uma pessoa como substitutiva de sua
presença física. Essa possibilidade humana de satisfação “fantasmática”, na própria imagem, é
amplamente explorada pelos meios de comunicação de massa e pode se sobrepor à experiência
vivida, dominando-a a um ponto tal que, para muitas pessoas, ela chega a ser experimentada
como mais intensa que o próprio vivido, como ocorre com muitos espectadores de cinema ou
com pessoas que acompanham telenovelas e carregam seus temas e situações para seu
cotidiano, tomando-os como referenciadores de suas experiências. Os que fazem a crítica dessas
operações substitutivas implementadas pelos meios de comunicação de massa apontam a
substituição redutora das produções imaginativas singulares pelo consumo de um imaginário
pré-dado (como argumenta, por exemplo, Maria Rita Kehl em “Imaginar e pensar”, texto
publicado em Novaes [org.], 2001). Alguns dos debates mais recentes sobre as novas
sociabilidades tornadas possíveis pela internet, em particular os promovidos por Pierre Lévy,
procuram, por sua vez, escapar dessa qualificação que opõe experiência vivida e realização
fantasmática, indicando, em seu lugar, a construção de formas novas de sociabilidade que
seriam propiciadoras de auto-invenção e, nesse sentido, tão enriquecedoras quanto as formas
não mass-mediadas de construção imaginativa. O que Lévy anuncia, entretanto, é uma era pós-
mídia, na qual haveria ruptura com as formas unidirecionais das presentações mediáticas
monopolistas hoje vigentes.
233
Não nos é difícil reconhecer as interinfluências entre esses dispositivos e os
espaços de sua disponibilização que não cessam de se apresentar como objetos de
desejo às comunidades humanas. A cada momento que surge uma nova tecnologia
– com seus novos dispositivos –, surgem também aqueles que anunciam o declínio
ou o desaparecimento da que a antecede. Foi assim com relação ao cinema, quando
surgiu a televisão. Entretanto, provavelmente a tecnologia da indústria
cinematográfica não teria se desenvolvido até o estágio atual, no qual é amplificada
a sensação, do espectador, de imersão absoluta em som e imagem (telas
expandidas, dispositivos de projeção sofisticados, sistemas surround de som que
garantem a experiência de intensidades sonoras sem perda de precisão etc.)14 se o
aparecimento da televisão não tivesse, de alguma forma, levado ao fechamento
de muitas salas de exibição de filmes, principalmente nos subúrbios e nas
cidades interioranas.15 Em contrapartida, o desenvolvimento de aparelhos de
televisão para recepção de sinais digitais anuncia-os, com sua maior qualidade
14 Penso que um dos filmes que marcaram a entrada das produções cinematográficas nessa era de
“efeitos especiais” que visam capturar o espectador pela multiplicação de imagens fascinantes tenha
sido Guerra nas estrelas [George Lucas, Star Wars], de 1977. Até essa época, o cinema propunha mais
freqüentemente produzir “ilusões de realidade”: a técnica era ocultada de forma a fornecer a ilusão
ao espectador de que o que ele via estava efetivamente ocorrendo, era verdadeiro, daí seu fascínio,
autorizando-nos a lê-lo com conceitos como “identificação”, “representação”, “significante
imaginário” (Metz, 1980). Ora, o efeito especial, ostensivamente exposto, à medida que passa a ser
assimilado, em si mesmo, como produto pelo público, inaugura a era do making of, do “veja como foi
feito”. A técnica exposta, desconstruída, torna-se, ela própria, espetáculo tão atraente quanto o que
ela produz. A crescente espetacularização da realidade encontra aí seu fundamento: não importa só
o fazer, mas o saber fazer no jogo de cena que constitui a exposição do político, do acontecimento e
sua organização (que o transforma em “evento”). Ao assistir a esses filmes (dos quais Matrix [2000]
é exemplar, e Final fantasy [2001], produzido só com imagens virtuais, sua consagração), o
espectador sabe que é “ilusão” o que se lhe propõe, ou, mais adequadamente, imagem (imago qua
imago) e, como tal, verdadeira (ver Espinosa, na INTRODUÇÃO), isto é, imagem eficiente. O que
importam não são as figuras como personagens, mas sim seus movimentos (e eles só são
“personagens” enquanto movimento). Daí que os atores, nesses filmes, não precisam representar (nem
mesmo serem bons atores...), pois não se lhes demanda isso; eles se presentam, construídos e
dimensionados pela técnica, tão mais eficientes quanto menos diferenciados em relação à técnica.
Por isso não há limite para essas ações dos corpos (No limits, propõe também, há bom tempo, a
campanha publicitária dos cigarros Hollywood). Longe de se proporem à identificação, esses
corpos-movimento (a propósito das imagens-movimento de Deleuze [1985]) operam ordenações (no
duplo sentido de dar ordens e serializar), constituem-se eles próprios como imagens técnicas, ou
imagens-máquina (Parente [org.], 1993), daí sua eficaz operatividade como modelizadores de corpos
e subjetividades, lançando-os do virtual para o possível. Quando garotos pegam em armas e
simulam seus jogos de videogame ou os efeitos especiais cinematográficos em seus espaços de
convívio, contra corpos reais, não estariam fazendo seus “testes de realidade” desse possível das
pequenas mortes operadoras de passagem de um nível a outro dos jogos na virtualidade do real?
15 Fenômeno tematizado em um belo filme de Peter Bogdanovich, A última sessão de cinema (The
234
de imagem e sonora em relação aos analógicos, como competitivos em relação
às possibilidades de fruição das imagens cinematográficas atuais, permitindo ao
espectador sua restituição para o conforto do acesso doméstico como alternativa
ao que lhe é oferecido no exterior. Destaco, dessa concorrência, que não se trata
tanto do que pode ser veiculado em um e outro dispositivo em termos de
conteúdo, mas sim que a disputa pela atenção dos públicos ocorre por
investimentos técnicos que sofisticam a tal ponto esses dispositivos de
percepção que os levam a propor aos seus públicos a fruição sensorial em
dimensões praticamente alucinatórias (“ouvir [com estrondo] o barulho de
alfinetes caindo no chão”, como propõem as campanhas publicitárias de DVDs
veiculadas pela mídia, elidindo o fato de que alfinetes não produzem
“estrondos” ao caírem, pelo menos para os limites auditivos humanos). Não se
trata, portanto, de desenvolver e refinar a percepção (o que levaria a uma
apreensão mais fina e elaborada da realidade), mas de reinventá-la para muito
além das possibilidades e limites corporais permitidas pela própria organização
biológica dos sistemas vivos, o que faz com que a resposta emocional a elas
(esse movimento do corpo em implicação com o que o afeta no exterior) seja,
quase sempre, difusa, indefinida, mesclada de fascínio e terror e desejante de
mais e mais ousadia e perfeição de efeitos. Se há recuo afetivo (desintensificação
da vibratilidade dos corpos) em relação a essas imagens espetaculares
oferecidas à percepção, ele se deve a esse caráter difuso da resposta emocional,
daí a indiferença presente no que identificamos como “banalização da
existência”, “banalização da violência”: a comoção frente aos acontecimentos
reais obedece à lei dos grandes números, pois se espera que eles sejam tão ou
mais espetaculares que os efeitos especiais oferecido pela produção ficcional (os
disaster movies e os tecnothrillers consumidos nas telas de cinema e nos monitores
de televisão).16
16 No caso específico do cinema norte-americano, em que prédios e até mesmo cidades são
destruídas ora por ações terroristas, ora por invasões de extra-terrestres, ora por acidentes da
natureza (furacões, tornados, terremotos etc.), situações enfrentadas pelos heróis que
invariavelmente triunfam, podemos pensar que a realização das peripécias na ficção servem
para confirmar a supremacia americana, que triunfa no final e, qual fênix, sempre renasce das
cinzas. Com o ataque real às torres gêmeas de Manhattan, em 11.09.2001, a reação, entretanto,
235
Estamos muito distantes, nessa reinvenção, de uma das perguntas que
movem a ética de Espinosa: “O que pode um corpo?” (Deleuze, 1975: 208 et
passim).17 Considerando que o corpo, em sua potência de afetar e ser afetado em
seus encontros com outros corpos (humanos e não-humanos), busca simular
máscaras18 para a exteriorização e efetuação das intensidades mobilizadas nesses
encontros, construindo, para isso, matérias de expressão que as efetuem (Rolnik,
1989: 25-26), a pergunta é, em primeiro lugar, pelas possibilidades de potencialização
poder de ser afectados: no son afectados por las mismas cosas, o no son afectados de la misma
manera por la misma cosa. Un modo deja de existir cuando ya no puede seguir manteniendo entre sus
partes la relación que lo caracteriza; igualmente, deja de existir cuando ‘ya no está apto para poder ser
afectado de un gran número de maneras’. En breve, una relación no es separable de un poder de ser
afectado. De manera que Spinoza puede considerar como equivalentes dos preguntas
fundamentales: Cuál es la estructura (fábrica) de un cuerpo? Qué es lo que puede un cuerpo? La
estructura de un cuerpo es la composición de su relación. Lo que puede un cuerpo es la
naturaleza y los limites de su poder de ser afectado.” (Deleuze, 1975: 208-209).
18 O termo “máscara” foi proposto por Rolnik (1989) para indicar um corpo que se desenha na
paisagem e se faz reconhecer no encontro com outro corpo, sendo constituída, essa máscara, por
matérias de toda espécie: icônicas, lingüísticas, afetivas, estéticas, cognitivas, éticas, enfim,
matérias de expressão necessárias para que as intensidades mobilizadas nos encontros de
corpos possam se efetuar, se exteriorizar. O termo “máscara” é pleno de ambigüidades, já que
pode ser entendido como um rosto que se sobrepõe a um suposto “rosto verdadeiro”. Seu uso é
intencional, um artifício a que recorre Rolnik em seu texto, para indicar que os processos de
simulação são, eles próprios, atravessados de ambigüidade, de forma que não haveria, assim,
“rosto verdadeiro”, todo rosto se desenhando como uma máscara com sua própria finitude, que
garante a consistência também finita dos territórios existenciais que se produzem na relação
intersubjetiva e intercorpórea. Assim, ao mesmo tempo em que uma máscara é via de
passagem, de efetuação de intensidades na relação intersubjetiva que se constrói na mútua
afetação de corpos, ela pode tanto operar sustentando a intensidade (o plus de força de Sade e
de Nietzsche) como operar como resistência a novas afetações, a novas potencializações, o que
acaba por determinar todos os dramas, processos imaginários (derivados da atividade
imaginativa) e equívocos na relação homem-mundo. Isso é, de certa forma, inevitável, pois não
suportaríamos estar continuamente em processo, daí a necessidade de prudência, de atenção
aos limiares de suportabilidade próprios a cada um, sob o risco de o agir ativo, criador, tornar-
se reação passiva, destrutiva. A servidão não deixa jamais de se pôr como possibilidade no
horizonte humano, como vimos em Espinosa. Como foi indicado anteriormente (CAPÍTULO 1,
DENTRO-FORA, Nota 39), em relação ao movimento pendular dos pólos molecular e molar, todo
território tem um caráter finito e processual: mal começa a desenhar-se e organizar-se (pólo
molar), já está sendo atravessado por elementos do pólo molecular que o
desmancham/desterritorializam. Tal é a processualidade da formação de todo e qualquer
campo, de caráter instituinte e produtor de real social, quer os entendamos como vínculos
afetivos (um casamento, uma família, um amor), quer como organização/constituição do eu,
quer os entendamos como valores, ideologia. “Máscara” é, portanto, “rosto”, correspondendo
aos conceitos de “rostidade”, “rostificação”, formulados por Deleuze & Guattari (Año Cero –
Rostridad, 1988: 173-198) como um dos planos da pragmática esquizoanalítica, em associação ao
de “corpo sem órgãos” (Deleuze & Guattari, 28 noviembre 1947 – Cómo hacerse un cuerpo sin
órganos, 1988: 155-171) aos quais recorrerei na seqüência.
236
de corpo e alma (ativos para agir e pensar) no encontro com tais dispositivos técnicos
que simulam novas percepções (assim como novos perceptos e novos afectos), e, em
seguida, pela qualidade dessa potencialização e pela realidade que ela produz. Seria
ela afirmação da potência de agir e pensar, ou estaria sustentando o corpo, em
circuito fechado, tão somente em sua atividade imaginativa, sem permitir-lhe o
acesso ou a passagem à compreensão dessa atividade (idéia da idéia do corpo),
isto é, sem permitir-lhe o acesso à atividade de elaboração raciocinante sobre a
própria experiência?19
Poderíamos nos autorizar a perguntar se as invenções de novas
percepções poderiam levar a processos de recomposições da própria estrutura
do corpo, como às vezes se sugere quando é afirmado que as novas gerações
que crescem em afetação com um sem número de dispositivos técnicos seria
“mutante” em relação às que as antecedem, ou quando, no Projeto Genoma,
investe-se a pesquisa das seriações do DNA com vistas à manipulação genética?
Perguntas instigantes, embora aventurarmo-nos por esse caminho só dirigiria o
pensamento a elucubrações futuristas sobre o destino humano, o que não seria
19
Acompanhado Espinosa, sabemos que a simples atividade imaginativa do corpo em seus
encontros com outros corpos leva geralmente a idéias inadequadas, no que diz respeito à
causalidade dos afetos que o movem; as idéias adequadas (o que podemos compreender como
razão) não se sobrepõem a essas experiências (numa oposição corpo-espírito, emoção-razão), ao
contrário, derivam dessas idéias inadequadas e se constróem enquanto reconhecimento, isto é,
como “justa medida” (ratio) dos próprios afetos e das próprias paixões, por dobra das forças que
se produzem nesses encontros para si, caminhando, assim, em direção à compreensão de suas
causalidades internas. Esse movimento não corresponde, entretanto, à idéia do “ser adulto”
como um eu relativamente autônomo, livre e responsável – homem moral –, como nos indica
Deleuze via Klossowski (INTRODUÇÃO, p. 158), nem à dos corpos liberados e “sem preconceitos”
ou “politicamente corretos”. Quando, em 1968, o grito de guerra dos jovens nas barricadas de
Paris foi “o imaginário no poder”, como sustentação para a afirmação de seu corpo liberado,
essa expressão de desejo abriu um processo de mutação social disruptivo e, ao mesmo tempo,
uma inversão. Como observa Anatrella (1992: 3), “os jovens de ontem tornaram-se adultos e,
enquanto seus predecessores desconfiavam dos adolescentes assim como desconfiavam da
sexualidade, eles provocaram o fenômeno oposto afirmando a própria adolescência contra os
adultos e impondo sua sexualidade”. Dessa forma Anatrella justifica sua afirmação de que o
imaginário e a sexualidade liberados por esse movimento teria sido, primordialmente, os do
corpo infantil, “de que tardamos a nos libertar na época da adolescência”; da mesma forma, o
corpo e suas experiências, com suas demandas de satisfação imediata às quais o mercado não
cessa de responder e incitar, mesmo que ilusoriamente, também permaneceria nesse estágio,
simulando-se como “eternamente jovem”, ideal-de-eu que constitui um verdadeiro mito
contemporâneo.
237
sustentável. Pensar “mundos possíveis” não implica prevê-los, mas tão somente
cartografá-los como abertos a virtualizações.20
O que efetivamente torna-se possível verificar no atual é que à produção
de imagens técnicas – imagens-máquina – com poder de agenciamento e
modelização do corpo, que atuam por rostificações (signâncias e
subjetivações),21 correspondem dispositivos e técnicas outras que as asseguram
como possíveis, confirmando assim sua própria atualidade. Vejamos, a título de
exemplo, as técnicas médicas de intervenção corretiva da forma/imagem do
corpo, como as da cirurgia plástica ou as mais recentes de escultura corporal, ou
as técnicas de otimização do corpo promovidas pela ginástica e pela cultura
física, em conexão com algumas representações dominantes do corpo.
Com essas técnicas à disposição, no cultivo da imagem de si, do pareser,
do “narcisismo”, o corpo não precisa mais aguardar ou suportar os processos
de auto-regeneração e de autoprodução próprios às relações internas dos
órgãos ou às relações externas e regenerativas que se processam na
intercorporeidade e o determinam em sua existência no mundo,22 nem conviver
238
com as marcas que nele permanecem do vivido.23 Com as técnicas corretivas
cirúrgicas disponíveis (como também dietas e regimes ou práticas de body
building) “faz-se um corpo para si” conforme ideado, imaginado: formas perfeitas,
apagamento de marcas, propondo-se, a partir dessa “correção” da Natureza
que lhe é imanente, tornar-se “finalmente” desejável, “finalmente” objeto de
desejo no mundo, finalmente “ativo”,24 em conformidade com os modelos
dominantes. Eis um bom exemplo de um desejo direcionado por fins. Ao se
recorrer a essa estratégia para aumento do próprio conatus (como potência de
perseveração na existência), mais geralmente o que se faz é despotencializá-lo,
confirmando o desejo como uma “falta a ser”, uma “carência de ser”, e não, ao
contrário, como força e potência para existir em ato. Encontramos aqui uma das
dimensões da simulação da potência humana para existir, agir e pensar, neste caso
na sua relação com as técnicas e seus dispositivos. Quando se argumenta que a
cultura do corpo magro e esguio das modelos da moda constitui o fundo das
bulimias e anorexias presentes nas mulheres jovens, resultantes do sofrimento
psíquico com a imagem corporal autonegada, podemos encontrar nessa relação
corpo ⇒ imagem ⇒ idéia de corpo ⇒ alma (psíquico) ⇒ idéia da idéia de corpo
seu fundamento. Como corporeidade e subjetividade surgem como dissociados,
apetite do corpo e desejo da alma necessariamente se dissociam e se contrapõem.
Alienados, é por não podermos nos reconhecer em nossa condição
intrinsecamente desejante como produtores de real que fazemos do desejo força
de reprodução, de consumo e de consumação, dispondo nossos corpos, com suas
hesitações e vacilações, às linguagens que o configuram e o impulsionam, em
sua unicidade – daí sua dimensão teológica indicada por Klossowski –, para esta
ou aquela direção.
Pode-se, por essa razão, pensar na constituição dos corpos entendidos
como estando no contrafluxo dos corpos saudáveis, modelados, perfeitos, como o
239
corpo perverso S-M ou o esquizo-experimental drogado como tendo um modo
de funcionamento muito semelhante ao dos que se lhe opõem.
Vemos algo similar, nas formas de lidar com o desejo, na atividade
sensorial e imaginativa propiciada pelas técnicas sexuais ou pelas drogas, que
atualmente – com a aceleração das transformações culturais, do trabalho, dos
costumes, em que territórios existenciais perdem, com igual velocidade, sua
efetividade – parecem sustentar, para seus usuários, uma ilusão identitária
construída como estratégia de proteção em relação à proliferação de forças que os
afetam e excedem as referências por eles conhecidas e, como tal, “seguras”, de
subjetividade.25 Ao avaliarmos, por exemplo, as campanhas antidrogas
institucionais, que contrapõem a imagem do corpo vivo-saudável à do corpo
desgastado-doente do usuário de drogas, podemos reconhecer, a partir dessas
formulações, as razões de sua relativa ineficácia: esses corpos não são distintos.
240
Assim como a adesão aos modelos do corpo saudável, a adesão ao consumo de
drogas liga-se ao mesmo determinante, enquanto causa inadequada e idéia
inadequada de si: o mesmo desejo de construir para si um corpo habitável e um
território existencial no qual se afirme o próprio conatus a partir de escolhas entre
possíveis que lhes vêm do exterior. A esse corpo – e a todos os outros que
possamos investir, inclusive os menos modelizados e mais singulares,
autopoiéticos, e às estratégias de sua construção – Deleuze & Guattari chamaram
corpo sem órgãos.26 Todos eles, corpos miraculosos – miraculosos como o era o do
presidente Schreber, ou o dos libertinos de Sade –, avançando ora para dimensões
autoconstrutivas, ora para dimensões autodestrutivas.
26Valendo de um termo criado por Artaud, em sua rebelião contra os limites do organismo (corpo
orgânico), Deleuze & Guattari substituíram “a noção parafreudiana de instinto de morte pelo
conceito esquizoanalítico de corpo sem órgãos, obedecendo a um movimento conceitual favorável
à expansão de vida não fascista” (Orlandi, Afirmação num lance final, Cadernos de Subjetividade,
num. esp. Gilles Deleuze, 1996: 234), noção que estabelece conversações com a formulada por
Foucault, retomada de Bichat, da morte como coextensiva à vida ( ver INTRODUÇÃO, p. 152): o
corpo orgânico seria dominado por uma multiplicidade de mortes parciais e singulares, sendo
que a vida, em sua batalha, ocupa lugares no “cortejo de um Morre-se”. Seja como ativo e
autoconstrutivo, seja como passivo e autodestrutivo, o corpo sem órgãos, como conceito,
diferencia o corpo enquanto organismo vivo (imanente à Natureza), com suas próprias
regulações, e o corpo que se produz, em seu finito ilimitado, nos encontros com outros corpos,
humanos e não-humanos, atravessado por componentes afetivos, estéticos, cognitivos,
perceptivos, eróticos, sentimentais. Com uma diferença. Esse corpo, que pode o que sua potência
lhe permite realizar a cada momento, tanto se constitui vibrátil, afluindo e refluindo, em afetação
com outros corpos e suas intensidades, às expensas do corpo orgânico ou até mesmo sob o risco
da morte deste (donde a prudência necessária a toda vida experimental), como, constituindo-se
por sucessivas modelizações, desintensifica-se, perdendo sua vibratilidade (como ocorre nas
alegrias imaginariamente construídas, que aumentam imaginariamente o conatus, diminuindo-o
na realidade). O primeiro assume sua dimensão trágica (o amor fati nietzscheano, aceitação do
destino, que não é, em absoluto, fatalista), que, vivendo os processos de subjetivação, se
singulariza; o outro adere às formas e modelos dominantes, supondo-se sempre íntegro e em
oposição/separação a uma morte que se distingue da vida como um instante decisivo ou
acontecimento indivisível e final, e não como coextensiva a ela (daí o “gozar a vida a qualquer
preço, posto que ela é curta”). Diferença entre o sádico ou o masoquista trágico, que podem o que
podem seu corpo e sua alma, e o “sádico” ou “masoquista” construídos como “opção” de
variedade e alternativa na atividade sexual – no binômio S-M – dos corpos “liberados” e “sem
preconceitos” promovidos pela mídia. As falas reiteradas nas entrevistas televisivas e na mídia
impressa que expõem a intimidade, do tipo “sou safadinha”, “adoro apanhar do meu homem”
etc. pertencem a este registro. A dimensão trágica é sempre silenciosa sobre si mesma. É claro que
não se escapa ao fascínio das modelizações nos encontros – o corpo não cessa de perceber e
imaginar –, mas é a maneira como essas matérias de expressão são feitas dobrar sobre o próprio
corpo, a maneira como elas são trabalhadas, dobrando-se sobre si mesmas, a maneira, enfim,
como a idéia do corpo passa para a idéia da idéia de corpo, que irá determinar modos de
singularização criadores ou modos de sujeição deletéria à subjetividade dominante. As matérias
são as mesmas, diferentes são os modos de trabalhar com elas.
241
Em suma, se podemos verificar facilmente, e sem nos exigirmos maiores
elaborações, que novas tecnologias não necessariamente significam o
desaparecimento das que as antecederam, mas sim, com muito maior
freqüência, sua transformação, menos evidentes são os modos como essas
transformações atuam na produção da subjetividade, com suas sempre novas
proposições ao homem que irá, com elas, de uma maneira ou outra, construir
novas conexões, novas formas de experiência e percepção do corpo próprio e do
outro27 e, conseqüentemente, novas formas de expressão e de subjetivação.28
Por outro lado, essa concorrência intensiva entre as tecnologias de produção de
sons e imagens, ao centrarem suas estratégias de captura de públicos – fazendo
27 Por exemplo, Stela Senra (Tela/Pele, FSP, Mais!, 30.04.2000: 4-9), ao analisar as alterações da
percepção em relação ao corpo próprio e ao do outro propiciadas pelas imagens técnicas,
observa que “a ‘fidelidade’ da reprodução cinematográfica fez da tela um espaço de eleição
para a imagem da pele, e do nu o lugar privilegiado da sua manifestação. Grão da pele, grão da
imagem, essa dupla porosidade propiciou uma aderência entre tela e pele e deu lugar a uma
espécie de ‘exercício epidérmico’ que captou diferentes texturas, do aveludado ao áspero,
expandindo e intensificando a percepção no cinema”.
28 Falar em “produção de subjetividade” e em “subjetivação” implica trabalhar não contando,
como venho insistindo, com a suposição de um sujeito que pré-exista a esses processos de
produção e de subjetivação, mas sim como dobras do Fora para o interior, e desdobras do
Dentro para o exterior. O que há, como já foi dito, é permanência e aderência a referências
identitárias (nacionais, religiosas, étnicas, familiares etc.) que sustentam a idéia de forçagem e
confronto entre uma subjetividade/personalidade/ identidade pré-existentes e as formas de
subjetivação emergentes. Reiterando, na perspectiva que assumo aqui, a subjetividade é sempre
produzida, por um sem-número de agenciamentos, e o é exatamente por não haver sujeito que
anteceda essa produção. Como observa Freire Costa (Um passeio no jardim sexológico, FSP,
Mais!, 03.12.1995: 5-10), “a melhor descrição do sujeito é a que afirma que a vida mental é a
soma dos atos de fala, pensamentos, rede de crenças, desejos, intenções e aspirações
características de nossas subjetividades. Em suma, quanto mais deixarmos de lado a idéia de
Linguagem e pensarmos mais que somos – como diz Collins – "self less persons", relés
orgânicos e lingüísticos articulados a outras teias de linguagens e ao ambiente físico, mais
seremos capazes de entender como nossos valores, opiniões, desejos etc. dependem da
variabilidade dos contextos e formas de vida que nos constituem. Creio que isso é importante
para nossa vida ética”. Ao falar em produção, não estou me referindo a indivíduos ou a sujeitos
em particular, mas a processos coletivos de produção de subjetividade – agenciamentos
coletivos de enunciação –, o que ocorre sempre nas relações de forças, isto é, nas forças que se
exercem sobre outras forças ou que sofrem o efeito de outras forças. A subjetivação, por sua vez,
diz respeito às formas como a força se exerce sobre si mesma. É curvando sobre si a força, é
colocando a força numa relação consigo que se inventa a subjetivação. “Não é mais o domínio
das regras codificadas do saber (relação entre formas), nem o das regras coercitivas do poder
(relação da força com outras forças), são regras de algum modo facultativas (relação a si). O
melhor é o que exercer um poder sobre si mesmo. (...) É isso a subjetivação: dar uma curvatura à
linha, fazer com que ela retorne sobre si mesma, ou que a força afete a si mesma. Teremos então
os meios de viver o que de outra maneira seria invivível”. (Deleuze, 1992: 140-141). É em relação
a essas possibilidades de subjetivação, de singularização, que venho propondo minhas
questões, ao pensar os corpos imersos na atividade imaginativa estimulada e sustentada por
dispositivos técnicos amplificadores da percepção e da sensação.
242
delas suas forças – no apelo sensorial e na emissão intensiva de signos (efeitos
especiais, amplificação de ruídos – a captação cada vez mais precisa e ampliada
da intensidade da respiração de um personagem em um filme, por exemplo –,
proliferação de luzes e movimentos, velocidade das imagens etc.), criam
dificuldades outras aos sujeitos a elas expostos, particularmente os relativos aos
processos de elaboração afetiva e racional do percebido, logo, à organização
emocional e psíquica e ao pensamento,29 na medida em que elas próprias, como
signos mundanos,30 sustentam-se quase que exclusivamente dessa supremacia
do sensorial, muitas vezes encobrindo tessituras narrativas bastante precárias e
lineares, por si só pouco afeitas a maiores elaborações imaginativas e de
pensamento.31
É sob esse aspecto que podemos considerar que a proliferação de
tecnologias disponíveis à fruição e conforto humanos (em particular os
domésticos) e a maturidade psíquica daqueles por elas afetados podem caminhar,
às vezes, numa relação inversamente proporcional, o que nos forçaria a pensar
que, longe de serem postos em progresso, os coletivos humanos, quanto mais
freqüentemente em conexão com essas tecnologias, poderiam estar caminhando
por uma via regrediente que, no limite, os ameaçaria de se cristalizarem, quanto à
potência de existir, agir e pensar, em estágios imaginativos infantis e perversos da
experiência de si e do outro.32
pensar como uma violência necessária (Nietzsche) a toda compreensão e aprendizagem (o que
se contrapõe à política pedagógica que privilegia o “aprender sorrindo, sem traumas, sem
esforço, sem dissonâncias”), e a escolha da via confortável, em conformidade com o ideal
utilitarista tal como formulado por Jeremy Bentham (“felicidade como mínimo de sofrimento”)
construtor da cultura do bem-estar, acabam expressando uma recusa do trabalho com as forças
internas e externas demandado para se alcançar efetivamente o estado adulto, autônomo e
eticamente implicado com a produção de mundo e do real social. Esta leitura já está presente
243
Assim, a afirmação algo “absolutista” de que são os conteúdos veiculados
pela televisão, com seus estereótipos, que infantilizam seu público, bastante
freqüente entre críticos que assinam colunas nos cadernos especializados dos
jornais (como TV Folha, da FSP, ou Telejornal, do OESP33), tem de ser bastante
relativizada, na medida em que é necessário compreender a televisão e seus
produtos como um dos muitos componentes de um plano, ou como um dos
muitos planos que constituem o campo complexo de uma realidade
sociocultural em mutação, na qual os corpos e as subjetividades não cessam de
ser solicitados e incitados a auto-superações e sobre a qual torna-se difícil tomar
em Freud (limitando-nos aos seus dois textos mais conhecidos sobre a cultura, El porvenir de una
ilusión [OC, 1981c.: 2.961-2.992], de 1927, sobre o sentimento religioso, e El malestar en la cultura
[OC, 1981b.: 3.017-3.068], de 1930, no qual retoma os temas do primeiro texto e analisa as
dificuldades humanas de responder às exigências da cultura e de alcançar as condições de uma
existência adulta), e tem sido retomada por psicanalistas e teóricos os mais diversos (como
Contardo Calligaris, Jurandir Freire Costa, Renato Mezan, Maria Rita Kehl, entre outros citados
neste trabalho) em suas análises da subjetividade na pós-modernidade, isto é, no capitalismo
pós-industrial, no qual, para ficarmos em uma das grandes mutações em curso, o corpo se vê
liberado das exigências do trabalho existentes no período antecedente, industrial e disciplinar
(cf. Deleuze, Post Scriptum sobre as sociedades de controle, 1992: 219-226). Um filme de
produção norte-americana recente, American Psycho (no Brasil, Psicopata americano), de Mary
Harron (2000), baseado em polêmico romance homônimo de Bret Easton Ellis, de 1991, lança
um olhar para a cultura yuppie dos anos 80, em plena era Reagan, representada por jovens e
bem-sucedidos executivos de Wall Strett que trabalham com “fusões e aquisições de empresas”
(ou “crimes e execuções”, no discurso do protagonista) e constróem um cotidiano fundado na
auto-presentação em espaços sociais de prestígio, como restaurantes caros e endereços
residenciais sofisticados, nos quais exibem suas roupas de grife, seus objetos caros e
diferenciados, o corpo belo e jovem, competindo entre si marcados pelo “narcisismo das
pequenas diferenças”. A narrativa acompanha a trajetória de um desses personagens, Pat
Bateman, que, em seu universo clean e solitário com seus cosméticos, ginásticas, massagens,
drogas, vídeos pornográficos, música pop e mulheres, que narra, em primeira pessoa, a própria
história e seus sentimentos de vacuidade e não-existência: “Há uma idéia de quem seja Patrick
Bateman, uma abstração, mas não sou real, somente uma entidade, algo ilusório, e embora eu
possa esconder um olhar frio, e apertando minha mão você sinta minha carne e até pense que
temos o mesmo estilo de vida, eu simplesmente não existo”. O foco do filme está na explosão de
sua fria pulsão homicida, desencadeada após o contato com um mendigo (isto é, o que está
resolutamente excluído de seu mundo), que se torna sua primeira vítima. Depois de uma série
de crimes ultraviolentos e de sua constatação de ser “um homem lindo doente”, sua fala final
expõe claramente uma angústia bem contemporânea: “Não há mais barreiras a transpor. Tudo
que tenho em comum com o incontrolável, com o insano, o perverso e o maligno, toda a
carnificina que causei, e minha total indiferença, eu agora ultrapassei. Minha dor é constante e
aguda, não quero um mundo melhor para ninguém. Na verdade, quero infligir minha dor aos
outros. Não quero que ninguém escape. Mas mesmo depois de admitir isso, não há catarse. Meu
castigo continua a fugir de mim e não obtenho conhecimento mais profundo de mim mesmo.
Nada pode ser extraído do que digo. Esta confissão nada significa”. Em um mundo sustentado
na plena visibilidade, no parecer, a própria morte, como finitude, torna-se impossível. Daí a
ilusão do ilimitado e do onipotente presente na posição narcísica do personagem.
33 No qual o filósofo Renato Janine Ribeiro (FFLCH/USP) tem sido uma grata exceção, ao propor
244
posições ou empreender uma compreensão mais apurada a partir de olhares
excessivamente parciais ou especialistas.
Em síntese, se é inegável que muitas das conquistas que nos autorizam a
supor um “progresso” em relação aos modos de vida de nossos antepassados, e
que dão a medida de nosso maior bem-estar, foram propiciadas pelo expressivo
desenvolvimento dos dispositivos técnicos, particularmente dos meios de
transporte (dos locais aos intercontinentais), em primeiro lugar, e, a partir deles,
dos meios de comunicação, seus dispositivos e suas linguagens (do correio, do
telégrafo, do rádio, do telefone às novas tecnologias informáticas, que conectam
virtualmente, em tempo real, pluralidades de mundos), resta-nos perguntar quais
foram as competências humanas efetivamente potencializadas nesse processo. Se, com
esse desenvolvimento, o homem pôde não só superar as contingências espaço-
temporais como conquistar maior liberdade de trânsito e de expressão, maior
acesso à informação e ao conhecimento de espaços e tempos diversos e
múltiplos, realizando boa parte dos alvos definidos pelas aspirações que
antecederam nosso presente, na medida em que, de certa forma, viu-se
“liberado”34 de idéias inadequadas, superstições e preconceitos sustentados
pelas limitações imaginárias e as experiências restritas de mundo das pequenas
e isoladas aldeias, resta-nos perguntar sobre as possibilidades construtivas e criadoras
de recursos que ele pôde fazer advir dessas superações.
O que efetivamente e de imediato podemos reconhecer é que o
desenvolvimento de sistemas de comunicação e de transporte modificou as
relações de proximidade física e subjetiva entre os homens, propiciando novas
possibilidades de afetação e de construção de novos territórios existenciais e
alterando os espaços de pertinência e os modos de significação e auto-
presentação das comunidades humanas. Assim como as cidades conectadas por
redes ferroviárias que, no século XIX, foram aproximadas fisicamente uma das
outras e experimentaram, com a intensificação de suas trocas comerciais, uma
245
maior potencialização de suas atividades tanto em termos produtivos como de
sociabilidade, o mesmo ocorreu com a conexão estabelecida por outros meios
de transporte e/ou comunicação, de forma que a conectividade entre espaços,
pessoas e mundos é mais ou menos potencializada conforme os dispositivos
técnicos que os colocam em interação. Essas relações de proximidade física ou
de contato à distância transmutam-se, concomitantemente, em relações de
proximidade subjetiva, marcando semelhanças e diferenças e abrindo
possibilidades de dominação, de conflito, de transformação e/ou de cooperação
entre essas comunidades. A mobilidade é agenciadora de alteridade, e
atualizações e aberturas para novos possíveis são o que as conectividades não
cessam de produzir. Nesse sentido, não representam, em si, nem um bem, nem um
mal. Elas tão-somente produzem realidade.35 É nesse sentido que podemos falar
em proliferação de forças no campo social, tanto mais intensas quanto maior a
mutabilidade em curso nesse campo, sendo delas que a ilusão identitária
procura proteger-se.
Por outro lado, torna-se difícil recusarmos a idéia de que a expansão da
indústria cultural no pós-guerra, propiciadora ao mesmo tempo de
aproximações e distanciamentos entre corpos (humanos e não-humanos) – o
que as técnicas e suas conectividades não cessam de intensificar de uma
maneira talvez inimaginável quando do surgimento da Escola de Frankfurt36 –,
promoveu, com maior intensidade, o distanciamento dos indivíduos do corpo-
a-corpo que era antes predominante em seu viver social. Viver social que se
expressa e se organiza, como venho afirmando com ênfase, no encontro dos
corpos, sendo aí que se constitui o espaço privilegiado de experiência das forças
e da expressão da potência de agir, pensar e existir de uns na relação com
outros. É portanto nos conflitos, nas conversações entre partes, nas negociações,
nas mútuas afetações e reconhecimentos que a trama dos desejos humanos
35 Esta leitura das possibilidades conectivas produzidas pelos dispositivos técnicos corresponde,
genericamente, às proposições trabalhadas por Lévy no conjunto de sua obra.
36 Que foi a primeira a fazer críticas consistentes a essa indústria ainda em sua emergência,
quando o fascínio das técnicas promovia e exaltava a crença no progresso e suas possibilidades
construtivas herdada do século XIX.
246
constrói o campo no qual a cultura se inventa como conatus coletivo, sendo esse
conatus que constitui, extensiva e propriamente, o espaço público.37
É conhecido o expressivo avanço da indústria cultural a partir da Segunda
Guerra Mundial, assim como os desenvolvimentos tecnológicos postos ao serviço
das populações desde então (boa parte deles promovidos e difundidos como
“estilos de vida” pela própria indústria cultural em noticiários, documentários,
filmes ficcionais e publicitários), com todas as transformações dos modos de vida
deles decorrentes, tanto os promotores de maior bem-estar material quanto, em
contrapartida, os geradores de insegurança e incerteza quanto ao futuro (como a
energia nuclear e seus múltiplos usos, alguns claramente dissociados, como, por
exemplo, na promoção da saúde e no desenvolvimento de material bélico de alta
potencial destrutivo).
Já na Primeira Guerra Mundial, que utilizou maciçamente armas de ataque
à distância, havia surpreendido o potencial de fria destruição delas resultantes, que
pode ser interpretado como mobilizado principalmente por uma maior reificação
do outro possibilitada pelo distanciamento corporal no confronto.38
A produção intelectual de reflexão sobre a guerra nos anos subseqüentes
assumiu uma justificada tonalidade sombria, na medida em que se tornava
mais e mais difícil deixar de reconhecer que, aliada ao desenvolvimento técnico,
emergia uma dimensão da destrutividade humana até então pensada como
247
reservada à ação isolada de indivíduos classificáveis como perversos39 ou a
culturas identificadas como mais afeitas à barbárie. A guerra, emergindo em um
momento de exaltação do processo civilizatório, propôs problemas ao
pensamento não possíveis de formular anteriormente,40 em um universo
fundado na crença em uma justa razão que garantiria o mundo em progresso e
equilíbrio. Um bom exemplo é o conceito – problemático e perturbador, mais
até que o de inconsciente – da pulsão41 de morte (que não cessa de dividir, até
hoje, o campo psicanalítico), proposto em 1920 por Freud, em Mas alla del
principio del placer (OC, 1981f.: 2.507-2.541), como intrapsíquico, e trabalhado
como ação destrutiva voltada para o exterior em El malestar en la cultura (OC,
1981b.: 3.017-3.068), de 1930.
39 O perverso, ao fazer de seu desejo a própria Lei, não reconhece o outro, como vimos na
INTRODUÇÃO, senão enquanto pretexto para sua atuação ilimitada determinada por seu próprio
desejo. Ele é incapaz de colocar-se em alteridade, daí sua frieza. Chega a ser aterradora, assim, a
valorização contemporânea da figura do perverso promovida pelo cinema e pela televisão,
centrada na exposição da violência ou nos modismos sexuais (como o do sadomasoquismo),
que fazem da perversão um teatro estimulante e atraente acessível a todos, elidindo sua
dimensão trágica. Como diz Deleuze (Klossowski e os corpos-linguagem, 1974: 289), nossa
época descobriu a perversão, mesmo não tendo mais de compor narrativas abomináveis como
as de Sade. O que geralmente encanta nas figuras perversas construídas pela indústria do
entretenimento parece ser sua capacidade de realizar muitas das aspirações fantasiosas dos
espectadores: habilidade para ludibriar, agilidade para escapar, domínio absoluto do outro que
com ele se depara, expondo uma potência que aos demais homens falta e confirmando, de certa
forma, que a neurose é sua atuação sonhada e o espaço ficcional que habitam, o duplo desse
sonho.
40 É dessa “impossibilidade” que resultam as leituras deformadoras de autores extemporâneos
inglesa e a brasileira (editada a partir da versão inglesa) apresentam indiferenciadamente, para Trieb
e Instinkt, a forma “instinto”, o que acaba levando a leituras equivocadas da obra freudiana. Freud
utiliza Instinkt para se referir a um comportamento hereditariamente fixado e que aparece sob
formas semelhantes em todos os indivíduos de uma mesma espécie, comportamento esse adaptado
ao seu objeto. Ele reserva a palavra Trieb para designar uma impulsão (de treiben = impelir),
indicando um processo dinâmico que consiste numa pressão ou força que faz o organismo tender
para um alvo. Uma pulsão tem sua fonte numa excitação corporal (estado de tensão) e seu alvo é
suprimir o estado de tensão presente na fonte pulsional, sendo no objeto ou graças a ele que a pulsão
pode atingir seu alvo. De qualquer forma, essa força incide menos numa finalidade definida e muito
mais numa orientação geral, sem que haja necessariamente fixidez do alvo ou do objeto. Trieb acaba
por ser definido como o fator propulsor do funcionamento do aparelho psíquico, ocupando uma
posição limite entre o psíquico e o somático e ligando-se à noção de “representante”, isto é, uma
espécie de delegação enviada pelo somático ao psiquismo, de forma a promover sua ação. Ao
trabalhar com as múltiplas expressões da sexualidade humana, Freud o faz da perspectiva da pulsão
e não do instinto, evitando, portanto, toda naturalidade nela depositada, como é corrente nas
abordagens biológicas do comportamento sexual presentes na sexologia.
248
Se no primeiro texto Freud buscava os fundamentos da pulsão de morte
(Thanatos) no próprio organismo biológico – independente da pulsão de vida
(Eros) mas em equilibração com ela, na medida em que, se Eros atua como pulsão
de conservação e reunião da substância viva em unidades sempre maiores,42
Thanatos, como pulsão autodestrutiva de morte, atua procurando dissolver essas
unidades, o que acaba por resultar em processos de perdas, transformações,
mudanças43 –, ao voltar-se para as questões da cultura, no segundo texto, ele vai
procurar compreender as manifestações externas da pulsão de morte como
parcelas dela desviadas para o exterior como pulsão de agressão e destrutividade
contra o outro e o mundo, logo, contra a própria cultura e civilização.44 Nessas
manifestações, o que Freud reconhece é a expressão da fragilidade humana na sua
relação com o mundo e suas forças, e a maneira como procura delas proteger-se,
procurando evitar a própria desagregação.45 Antecipando essas elaborações (que
anteriormente, trabalhando em um plano intrapsíquico, opunham pulsões de
autoconservação do eu às pulsões eróticas), há o conceito de narcisismo, formulado
em Introduccion al narcisismo (OC, 1981e: 2.017-2.033), de 1914, com o qual Freud
42 Argumento que indica o quanto o trabalho de Freud é tributário da obra de Leibniz, que
pensava a alma como constituída por mônadas, unidades fechadas em si mesmas, mas em
conexão, comunicação e dobramento com outras mônadas.
43 Mudanças que podem ser mais bem compreendidas hoje com o conceito de autopoiesis
formulado por Maturana e Varela (similar, por sua vez, à idéia das mônadas de Leibniz). O
conceito de organização autopoiética, derivado da cibernética pelos dois biólogos, combina
detalhes bioquímicos da função celular em uma direção totalmente nova nas ciências biológicas,
ao definir para ela um limite conceitual. Demonstram que o sistema celular está aberto (é
permeável) para a matéria e energia e, ao mesmo tempo, é operacionalmente fechado, isto é,
fechado à informação, instrução ou controle. Ele processa a si mesmo, de acordo com suas
próprias regras, e ao mesmo tempo é absolutamente dependente de sua conexão com o meio no
qual vive e que o provê de recursos materiais (www.pnc.com.au/~lfell/in.html, capturado em
22.06.2001). O conceito de corpo sem órgãos, de Deleuze & Guattari– proposto em substituição
ao de pulsão de morte (ver Nota 26), considerado por eles como um equívoco de Freud, por ter
ele buscado compor seu sistema interpretativo tomando o inconsciente como intrapsíquico e
individual, e não como se produzindo numa relação com o Fora e seus fluxos – encontra nessa
organização autopoiética seu ponto de articulação biológica.
44 Não muito diversamente, portanto, da leitura por Espinosa dos movimentos de
fundamentais que Rolnik (1989: 49) assim define: “uma face ontológica (medo de a vida se
desagregar, de ela não conseguir perseverar; medo de morrer); uma face existencial (medo de a
forma de exteriorização de intensidades perder credibilidade, ou seja, de certos mundos
perderem legitimidade, desabarem; medo de fracassar); uma face psicológica (medo de perder a
forma tal como vivida pelo ego; medo de enlouquecer)”.
249
reconhece a possibilidade de um investimento de Eros no próprio eu, isto é, a
possibilidade humana de tomar a si mesmo – o próprio eu, que se organiza como
forma de separação e proteção em relação ao exterior e suas forças, sendo
sustentado, como tal, pelas pulsões de autoconservação – como objeto, com recuo
das relações objetais, isto é, do investimento pulsional de outrem.
De interesse, aqui, são essas relações entre narcisismo, pulsão de
agressão e destrutividade que prevalecem em nossa contemporaneidade e a
maneira como eles se conectam e se põem em afetação com os dispositivos
técnicos, desde que possamos concordar com o caráter predominantemente
narcísico da cultura de consumo, amplamente indicado por autores como
Christopher Lasch, Jurandir Freire Costa, Slavoj Zizec, citados em outros
momentos deste trabalho.
O que procuro explicitar é que, se a técnica (e seus dispositivos) propôs
aos homens em relação de afetação com ela não só possibilidades de progresso
e de cooperação, mas também, ou principalmente, novas formas de
dimensionar e significar suas forças na relação com outras forças – que se
visibilizam nas relações de poder que se estabelecem no campo social –, é nas
formas como a dimensão humana se constitui e se organiza nesses contextos
que podemos buscar o sentido das narrativas, dos dramas, das escolhas que
constituem nossos percursos existenciais e que suportam as representações que
deles fazemos.
Podemos argumentar então que não são só e principalmente o
desenvolvimento e a racionalização das técnicas que devem ser identificados com
as potências de dominação e de banalização,46 em uma relação de equivalência
controle da técnica = poder, mas também os modos de territorialização significante
(lingüísticos e icônicos) e de significação (interpretativa, ou hermenêutica) das
relações de proximidade de corpos, de linguagens, de forças e seus modos de
afetação e de sua operacionalidade que as técnicas agenciam, assim como a
46 Por imposição de modelos hegemônicos e homogêneos, que teriam como causa (ou
conseqüência, na identidade saber/poder) a apropriação dos meios de produção pelos que
detêm o poder econômico/social/político, como, por exemplo, o monopólio das mídias por
poucos grupos e famílias. Na PARTE II, CAPÍTULO 3 – FORA, a propriedade dos meios será
discutida mais amplamente em sua função de produção e sustentação de homogênese social.
250
maneira como as relações de forças com outras forças (o que podemos, em termos
diagramáticos, entender como poder) se entrelaçam com campos de saber, que
permitem o surgimento de dispositivos de poder que lhes são imanentes. Vale
dizer, portanto, que é a maneira como são estabelecidas relações de
signância/significância entre fatos, corpos e coisas e os agenciamentos que essas
relações promovem, no sentido de semiotização da realidade e de criação de
estados afetivos dos corpos, que institui campos de saber e poder e não só os
dispositivos técnicos e institucionais em si mesmos.
Enfatizei, até o momento, a relação do corpo com os dispositivos
técnicos, chegando a colocá-los em posição de equivalência ou até mesmo a
privilegiá-los em relação às mensagens que eles suportam e ao seu sentido.47
Procurei mostrar de que forma as propostas de amplificação da percepção
propõem aos corpos desafios que, longe de os potencializarem, podem, por
imaginarização e saturação, mortificá-los. Mencionei também, em vários
momentos, o espaço doméstico como um locus privilegiado no qual o homem se
põe em interação e afetação com esses dispositivos, contrariamente ao que ocorria,
por exemplo, até início do século XX, quando os signos mundanos proliferavam
predominantemente nos espaços públicos nos quais os corpos encontravam
ocasião de se colocarem em interação. É necessário agora que passemos para os
modos de semiotização dessas afetações, sejam eles estéticos, discursivos, éticos,
cognitivos promovidos pela televisão e sua eficácia, mesmo quando os programas
que ela exibe não portam, eles mesmos, toda essa multiplicidade e qualidade
técnica exposta até o momento. Que busquemos, portanto, outra imanência corpo-
língua nestes percursos.
47É importante reiterar: quando falo de dispositivo técnico, mesmo me referindo ao aparelho,
ao equipamento em si, estou levando em conta todo um conjunto de técnicas, saberes e poderes
que lhe dão conformidade e que pertencem ao dispositivo comunicacional enquanto criador de
possibilidades várias de fruição e de captura daquele que se faz presente ao dispositivo técnico.
Assim, o equipamento é inseparável das estratégias que asseguram sua efetividade. Dispositivo,
portanto, no sentido que lhe é dado por Foucault, e que corresponde aos agenciamentos de
Deleuze & Guattari.
251
MUNDANIDADE E DOMESTICIDADE
48 Visível na freqüência com que reordenamos os objetos no espaço da casa, sempre que vivemos
processos de reordenação psíquica. Podemos dizer que objetivamos esses processos no exterior,
desdobrando-nos para eles através da reorganização dos objetos no espaço, como subjetivamos essas
ordenações realizadas no exterior, dobrando-as para nós, o que é experimentado como sensação de
maior bem-estar, de maior harmonia, de “estarmos novamente em casa”. Como foi observado
anteriormente (INTRODUÇÃO, item “O Diagrama de Foucault”), a contrapartida disso ocorre quando
a distribuição dos objetos no espaço assume uma função persecutória, ora por sua distribuição, ora
por se tornarem anímicos, momento do colapso da invaginação subjetiva. Subjetivação e objetivação
são dois processos que não cessam de se operar na construção de sujeitos e de mundos. “Chamemos
subjetivação a implicação de dispositivos técnicos, semióticos e sociais no funcionamento psíquico e
somático individual. Simetricamente, a objetivação será definida como a implicação mútua de atos
subjetivos ao longo de um processo de construção de um mundo comum. Subjetivação e objetivação
são assim dois movimentos complementares da virtualização. Com efeito, quando consideramos o
que eles fazem, nem o sujeito nem o objeto são substâncias, mas nós flutuantes de acontecimentos que se
interfaceiam e se envolvem reciprocamente [grifo nosso].” (Lévy, 1999:135). Há outra forma de
experimentação, entretanto, que se observa no espaço doméstico: pessoas que, na sua relação com o
exterior, por exemplo, no trabalho, assumem posições subalternas e de obediência, e, por isso,
experimentam uma diminuição de sua força em relação às outras forças, podem tomar o espaço
doméstico como domínio próprio, exercendo nele suas forças, invariavelmente, numa posição
autoritária e agressiva na relação com os que convivem com ele, mulher e filhos, principalmente.
Quando Freire Costa (1991) estudou a formação da família burguesa no Brasil do século XIX,
indicou essa dupla condição de submisso no exterior e autoritário no espaço doméstico como fruto
de uma negociação política: deixe as decisões, no espaço público, para os competentes para tomá-la,
isto é, não entre em conflito nem se envolva nas questões políticas, que, em contrapartida, não o
incomodaremos em seu exercício de poder no espaço privado.
252
bem, relaxado, à vontade, compreende, assim, constituir um espaço privado no
qual as fronteiras definidas como desejáveis no espaço público possam ser, se não
abandonadas de todo, bastante flexibilizadas.
Exatamente por essa relação flexibilizada corpo-espaço, a presença de
dispositivos técnicos no espaço privado de abrigo e recolhimento, se propicia
maior conforto e novas possibilidades para o fazer-espaço, não deixa de ativar
inquietações, com decorrentes formações imaginárias. Um simples exemplo: a
preocupação, mantida em discussão por longo tempo, com os riscos e possíveis
efeitos da “radiação” dos feixes emitidos pelo tubo catódico da televisão sobre o
corpo, motivadora de muitas considerações de cunho cientificizante por
especialistas, que teciam recomendações sobre as distâncias mínimas a serem
adotadas entre corpo-televisor, expressa a dimensão a que podem chegar essas
formações imaginárias. A produção ficcional, sempre atenta às possibilidades
de captura imaginária de seus públicos, tem gerado obras de grande sucesso
comercial sobre esses temas, como o filme Poltergeist (Tobe Hooper, 1982), no
qual uma criança é absorvida e adsorvida49 pelo tubo da tevê, que funciona como
portal, à maneira de uma superfície porosa, para um outro mundo habitado por
espíritos.50 O gesto final do pai da criança, de atirar o receptor de tevê para fora do
49 Dois processos, portanto: em física, a absorção é um processo pelo qual uma substância fluida (um
corpo, com suas partes moles e duras) passa através dos interstícios de uma substância porosa e aí
permanece, por adsorção ou capilaridade; no filme, sendo o tubo catódico portal para o mundo dos
espíritos, ocorreria a transformação, em outras formas, da energia de emissão, à medida que esta
passa através de uma substância. O imaginário validado como possível constrói seu fascínio: o que
permite aceitar a verossimilhança da narrativa é, entre outros referentes, o fato de, ao aproximarmos
o corpo do tubo catódico, percebermos a eletricidade estática na superfície da pele, como se
houvesse, efetivamente, capilaridade do tubo. A série de tevê Arquivo X, por exemplo, conta em sua
equipe com cientistas que atuam como consultores, de forma a assegurar que o que é apresentado
ao público tem fundamento científico, reiterando que o fantástico é possível. Parte de seu sucesso
advém dessa estratégia.
50 Nos anos 80, observa-se uma transformação significativa nos filmes “de terror”. Após um
253
quarto de motel, lugar provisório no qual se abriga com a família após sua própria
casa ser absorvida/adsorvida pela terra (restituída ao mundo dos mortos sobre o
qual ela estava assentada), é indicativo dessa relação de fascínio marcado de atração
e repulsa mobilizado por esses objetos domésticos altamente fetichizados pela
indústria do consumo.51
(além, claro, da perda de efetividade das representações dos inimigos externos como monstros
do espaço, de regiões misteriosas ou do além; quando a ficção cinematográfica os retoma, o faz
humanizando-os, como por exemplo Bram Stokers’s Dracula, de Coppola [1992], que recupera,
nesse personagem clássico da cinematografia do terror gótico, o clima romântico característico
do século XIX, momento em que Stoker o escreveu).
51 Entre atração e repulsa, este é o espaço de ambigüidade que marca a recepção das mensagens
emitidas pelos dispositivos de comunicação de massa, entre os quais a televisão ocupa posição
privilegiada: tanto adesão fascinada quanto suspeita reiterada em relação à verdade do que é
apresentado. Muito provavelmente as “suspeitas” de manipulação às quais se procura, ao mesmo
tempo, responder adequadamente (para evitar ocupar uma posição de exclusão) derivem dessa
ambigüidade. Suspeitas, claro, que são confirmadas pelos usos do dispositivo televisivo para
manipular consciências e dirigir escolhas, como ocorre nos processos políticos eleitorais. Quando os
que detém o poder dos meios reconhecem sua força de manipulação e a utilizam, o fazem por
pertencerem a esse mesmo espaço de ambigüidade em que estão inscritos seus públicos, sendo
exatamente por essa razão que atuam como produtores de realidade (e não, como poderíamos supor,
por estarem em uma posição de domínio racional e “transcendente” em relação às expectativas do
público). Em 15 minutos (John Herzfeld, 2001), esse potencial de manipulação da mídia como
produtora de realidade é narrado com a precisão de uma demonstração matemática: trata-se de um
thriller no qual a mídia, representada por um programa sensacionalista, reina sobre os
acontecimentos. Vários grupos concorrenciais são postos na luta por prestígio via visibilidade
mediática (os “15 minutos de fama” de Andy Warhol): a corporação da Polícia e a do Corpo de
Bombeiros disputam palmo a palmo seus espaços de prestígio com dois criminosos incendiários. Os
criminosos, estrangeiros (um tcheco e um russo que chegam anônimos à América e desejam
conquistar um espaço nesse mundo), rapidamente reconhecem o potencial da mídia e passam a
registrar com uma câmera seus crimes, com o objetivo de se tornarem famosos e saírem, assim, do
anonimato. O primeiro atua para a câmera e deseja prestígio por suas ações; o segundo registra e
deseja prestígio como cineasta que cria e documenta as ações, o que o leva a procurar assegurar seu
caráter espetacular. Todas as ações da polícia são também acompanhadas sistematicamente pela
mídia, a um ponto tal que, mais que seu próprio trabalho – salvar vidas e capturar criminosos –,
importa a espetacularidade de sua ação, na medida em que é esta que lhes garante o prestígio e, em
decorrência dele, os recursos financeiros para sua sustentação. A própria mídia participa da disputa
por prestígio, ao negociar com os criminosos a aquisição de seu filme, passando a protegê-los. Para
garantir audiência, a mídia promove os criminosos como heróis, fornecendo-lhes os argumentos
jurídicos de inimputabilidade por insanidade, que passam a ser utilizados como estratégicos e
motores de suas próprias ações criminosas (“Adoro a América”, diz o tcheco, “aqui ninguém é
responsável pelo que faz...”). Nesse mundo onde todos agem conforme seus próprios interesses, o
herói é personificado por um oficial do Corpo de Bombeiros que, recusando o prestígio da
visibilidade mediática, passa a atuar solitariamente em nome da justiça, procurando desmontar o
jogo da mídia. O filme conclui com o apresentador do programa sensacionalista, já recomposto da
recém-exposição de seu jogo, reafirmando o compromisso da mídia com a verdade acima de
qualquer outro interesse. Como observou Groys (Deuses escravizados: a guinada metafísica de
Hollywood, FSP, Mais!, 03.06.2001: 4-11), na atual tendência do mainstream hollywoodiano, seus
filmes estão se tornando “metafísicos”: “seus heróis são movidos sobretudo pela questão de quem
ou do que possa estar oculto por trás da ilusão do mundo visível”. Fazendo da crítica da indústria
cinematográfica seu próprio tema, apontando-a como “uma ilusão sedutora gerada para nós – uma
bela encenação do mundo que tem por tarefa escamotear a feia realidade”, os filmes passam a
254
Na produção cinematográfica, na qual “tudo é permitido, tudo é
possível”, como afirmou o canadense David Cronenberg em entrevista para os
jornais brasileiros, em maio de 2001, os exemplos dessa relação fantasmática do
corpo com a máquina são inúmeros.52 Cronenberg, aliás, é um dos cineastas que
mais investem o tema, trabalhando sistematicamente os processos de
transformação do corpo e seus devires, e, em muitos de seus filmes, as
transformações que se operam na relação corpo-máquina (Scanners, 1980;
Videodrome, 1982; The Dead Zone, 1983; The Fly, 1986; Naked Lunch, 1991; Crash,
1996; eXistenZ, 1999). Em eXistenZ, ainda inédito no Brasil, Cronenberg investe
o tema da imersão na realidade virtual, associando a máquina às drogas
alucinógenas (a máquina, inserida como prótese no corpo, passa a atuar,
internamente, de forma similar à droga53).
mostrar essa encenação no próprio mundo “real” dos fatos cotidianos (como em Truman Show [Peter
Weir, 1998]). “O herói de tais filmes é um iluminista, um crítico da mídia e ao mesmo tempo um
detetive particular que quer desmascarar não só a cultura em que vive, mas também todo o seu
mundo cotidiano como uma ilusão artificialmente produzida.” Esse herói, continua Groys,
recorrendo a Hegel e à dialética senhor/escravo, é o consumidor que se rebela contra o mundo da
produção e do trabalho, daí o produtor ser representado como monstruoso e oculto, por deter o
poder diabólico da manipulação e da simulação. “Em nossa cultura, o trabalho não só é
tradicionalmente odiado, mas associado ao pecado original, à maldição bíblica como castigo para a
curiosidade criminosa (...) [sendo ele] o verdadeiro segredo sujo da cultura”, muito mais que o sexo,
que é exposto em todos os lugares. “Ao encenar a indústria cinematográfica, o ‘mortal combat’ entre
o herói que representa a massa consumidora dos espectadores e as máquinas que essa própria
indústria cinematográfica representa, a indústria cinematográfica quer desvirtuar a suspeita de
manipulação que o espectador dirige contra ela – e isso pelo fato de confirmar essa suspeita.” (...)
“Essa é a nova estratégia da atual mídia de massas: autopropaganda, auto-abandono, auto-
recriminação (...) Ao desmascarar-se radicalmente e depreciar-se explicitamente à opinião pública, a
indústria cinematográfica e televisiva produz confiança e um sentimento de cumplicidade no
espectador. Quando não se acredita mais na bela ilusão é que tanto mais se acredita em seu
desmascaramento.” Cumplicidade que se dá em uma relação de exterioridade entre mídia e público
– mesmo quando se se propõe a interatividade, na forma “Você decide” –, daí seu caráter perverso.
52 No CAPÍTULO 1 – DENTRO, indiquei que os delírios registrados por Kraepelin e Tausk,
sua força de captura. Em Matrix (Larry & Andy Wachowski, 2000), os personagens vivem, em
absoluta inconsciência, uma realidade cotidiana sonhada por estarem conectados, pela espinha
dorsal, às centrais de comando do poder. Em The Truman Show (Peter Weir, 1998), o personagem
vive em uma cidade que é, na realidade, um imenso estúdio de tevê, cercado de coadjuvantes, tendo
255
É interessante observarmos que, nas respostas à pesquisa realizada pela
Unesco, os pais vêem como mais problemática a exposição dos filhos aos
noticiários que expõem a violência cotidiana das ruas do que às narrativas
ficcionais que investem a violência de forma extrema, mesmo os de terror para
adolescentes, do tipo Lendas urbanas, Sexta-Feira 13, Pânico etc., nos quais as
imagens predominantes são as que apresentam corpos dilacerados ou
desmembrados. O argumento de que os noticiários são “reais” e os filmes são
“ficcionais”, isto é, com situações “que não acontecem de verdade”, se relativiza
se pensarmos que, enquanto a violência das ruas captura inquietações coletivas
quanto ao viver cotidiano, as obras ficcionais respondem mais diretamente aos
fantasmas pessoais, cujas expressões são menos diretamente apreensíveis e
significáveis, mas nem por isso menos determinantes na significação da
experiência vivida. Não podemos desprezar também, em relação a essa fácil
aceitação pelos pais do consumo desses filmes de terror adolescente, o fato de
eles apresentarem, em sua maioria, um fundo moralizante e regulador das
aspirações de autonomia dos jovens, principalmente a sexual: os lugares
privilegiados dos ataques homicidas e da emergência do terror são os
acampamentos de finais de semana, os dormitórios universitários, as festas, nos
quais os jovens geralmente estão sós, distantes do controle dos adultos e abertos
à experimentação. O cinema comercial, principalmente o norte-americano,
raramente abre mão de finais moralizantes que equilibram, estrategicamente,
transgressão, culpa e castigo, por maiores sejam as perversões e excessos
expostos no desenvolvimento de suas tramas, evitando o risco da classificação
X, que os condenaria, de antemão, ao fracasso em seu próprio território.
O mesmo parece ocorrer com os programas de auditório televisivos que,
apresentados como entretenimento, tendem a se apresentar, da mesma forma,
como respostas a aspirações e a imaginários individuais, e, como tal, tornam-se
mais assimiláveis, mesmo quando enveredam para um grotesco ou um obsceno
sua vida monitorada e transmitida, integralmente, pela rede televisiva, desde seu nascimento,
vivendo também em inconsciência quanto ao que rege sua existência.
256
relativamente suportável.54 Diferentemente, as novelas, por trabalhar com
situações e personagens abertos à identificação cotidiana, e, como tais, assimiláveis
coletivamente com pequena resistência, sofrem um controle maior, pelo público,
quanto aos conteúdos expostos em suas narrativas. Penso ser possível supor que o
que determina essas respostas variáveis aos produtos televisivos é o caráter
doméstico de seu consumo, sendo, o que as regulam, os graus variáveis de
flexibilização e de permeabilidade suportáveis, no espaço privado, entre
mundanidade e domesticidade. Respostas que, por serem singulares, dificilmente
são classificáveis e separáveis estatisticamente como pertencentes a tais e tais
públicos.
Ora, nos estudos comunicacionais, discutimos, até mesmo com relativa
liberdade em face da variedade dos modelos interpretativos de que dispomos,
os processos de emissão e recepção das mensagens produzidas pelos meios de
comunicação de massa, e tendemos a desprezar essas questões mais imediatas,
relacionadas tanto aos suportes materiais, ou dispositivos técnicos, que lhes
permitem se efetivarem, quanto ao lugar que esses dispositivos ocupam no
imaginário de seus usuários, assim como o plano formado por essas relações de
proximidade corpo-objeto nas quais um e outro tendem a se indiferenciarem.
Essas questões são várias. Qual a função, o papel, o lugar de dispositivos
técnicos como o aparelho de rádio, de televisão, de reprodução e gravação de
CDs, o videocassete, o DVD, o karaokê, o videokê, o computador conectado à
internet nesse espaço limitado e definido como casa, lar, residência, abrigo?
Como eles são organizados e, ao mesmo tempo, como atuam enquanto
organizadores desse espaço de nossa privacidade, introduzindo nele os traços
de mundanidade55 que portam, traços esses em relação aos quais o próprio
alguns dispositivos provocam em seus proprietários, fascínio que parece ultrapassar o já bem
conhecido caráter fetichizado da mercadoria indicado por Marx. Principalmente quando a televisão
257
espaço privado atua, ao mesmo tempo, como protetor ou delimitador?56 Quais
as implicações topológicas de termos um aparelho de televisão posicionado em
um lugar privilegiado na sala de estar – espaço coletivo familiar –, ou em um
canto discreto de cada quarto – espaço individualizado – de uma residência?
Ao nos ocuparmos dessas suas distribuições no espaço doméstico, não se
trata, simplesmente, de encará-los privilegiadamente como objetos que,
enquanto facilitadores do conforto e disponibilizados em alta escala pela
indústria e comércio, se tornaram necessários, para não dizer obrigatórios, entre
as outras peças do mobiliário. Ou de abordá-los como formas de resposta à
crescente necessidade das pessoas de conectividade, de acesso à informação, ou
ainda como propiciadores de um entretenimento que, além de ser de baixo
custo, não demanda translações físicas, saídas para o exterior, para o espaço das
ruas, fornecendo uma solução apaziguadora à inquietação contemporânea
quanto, por exemplo, à exposição ao risco de assaltos e acidentes que o
mergulho constante nos fluxos da cidade amplifica, levando a certos
fechamentos territoriais que levaram Umberto Eco, em um ensaio provocador,
“La Edad Media ha comenzado ya” (Eco et alii, 1974: 7-34), a anunciar no
horizonte o retorno a uma “nova Idade Média”.57
Questões talvez banais ou desnecessárias para aquele que estuda os
processos comunicacionais. Questões talvez inocentes ou ingênuas, se
pensarmos nas muitas abordagens sociológicas da vida urbana que já
ainda não estava tão disseminada como hoje, era comum que ela ocupasse uma posição privilegiada
na sala de estar, muitas vezes cercada de objetos pessoais, como fotos de família, com uma
ordenação que evocava os pequenos altares presentes nas casas de pessoas devotas, organizando,
assim, um novo espaço de socialidade e de referência subjetiva.
56 Ver CAPÍTULO 1 – DENTRO, Nota 9, sobre o ritornelo.
57 Nesse ensaio, apesar de ter como ponto de partida as teses sobre o fechamento espacial em
guetos produzido pelo crescimento urbano e suas desordens, o que justificaria o anúncio de
“uma nova Idade Média”, Eco resgata a efervescência positiva que, na Idade Média, preparou o
advento do Renascimento, perguntando pelo “homem novo” que poderia emergir de um
possível colapso dos sistemas que constituem nossa modernidade, mais e mais dependentes dos
controles e dispositivos eletrônicos organizados por redes de transmissão e sustentadores de
nossos confortos e facilidades. No Brasil, tivemos recentemente uma amostra mínima do que
poderia advir de um colapso desses sistemas, com as respostas à implantação do programa de
racionamento de energia imposto à população pelo governo federal: pessoas angustiadas com a
possibilidade de não poderem usufruir de seus já restritos lazeres, outras mantendo seus
aparelhos desligados e não sabendo o que fazer com o tempo liberado dos consumos cotidianos,
além de uma breve crise no mercado de eletroeletrônicos. Por ter sido de curta duração, não
podemos saber que efeitos teria o prolongamento dessas novas situações.
258
procuraram dar conta do impacto dos dispositivos tecnológicos na vida
cotidiana. Questões talvez tolas, por demasiado óbvias, para aquele que se
encanta com o progresso tecnológico e a melhoria da qualidade de vida
propiciada pelos aparelhos eletroeletrônicos domésticos. Mesmo assim,
questões que talvez valham à pena, se nos dispormos a pensar as maneiras
como o homem constrói sua relação com o espaço e procura potencializar-se
nele, compondo seu corpo com esses dispositivos, consideradas as motivações
subjetivas e temporais dessa construção. Ou mesmo necessárias, pelo menos
aqui, se considerarmos a direção das articulações que proponho seguir, a da
relação desses dispositivos e seus produtos e a subjetividade em sua
cotidianidade e mundanidade. Algo que apreendemos menos por pesquisas
controladas, pela aplicação de modelos teóricos ou de metodologias de trabalho
bem sistematizadas ao nosso objeto, e mais por indícios, dos quais a própria
experiência do contato com os afectos e perceptos58 emanados do objeto com o
qual entramos em contato passa a ser fundamental.
Afinal, os meios de comunicação e seus dispositivos constituem,
propriamente, mesmo que somente por recorte e limitadamente, a experiência
mais intensa e freqüente da mundanidade de parte expressiva da população, se
considerarmos o trabalhador que chega à noite em sua casa e conta quase que
exclusivamente com a televisão ou o rádio, alguns poucos com a internet, para
58Afectos e perceptos referem-se com mais consistência a blocos de sensações que se conservam
de uma obra de arte. Forço-os, neste contexto, para indicar algumas permanências,
redundâncias e repetições do que é dado a ver pelo dispositivo televisivo, em especial se
gravamos um programa em vídeo e voltamos a ele uma e outra vez, ou quando ouvimos uma
música que nos afeta reproduzida em um CD: “O jovem sorri na tela enquanto ela dura. O
sangue lateja sob a pele deste rosto de mulher, e o vento agita um ramo, um grupo de homens
se apressa a partir. Num romance ou num filme, o jovem deixa de sorrir, mas começará outra
vez, se voltarmos a tal página ou a tal momento. A arte conserva, e é a única coisa no mundo
que se conserva. Conserva e se conserva em si, embora, de fato, não dure mais que seu suporte
e seus materiais, pedra, tela, cor química etc.” (...) “Se a arte conserva, não é à maneira da
indústria, que acrescenta uma substância para fazer durar a coisa. A coisa tornou-se, desde o
início, independente de seu ‘modelo’, mas ela é independente também de outros personagens
eventuais, que são eles próprios coisas-artistas, personagens de pintura conservando este ar de
pintura.” (...) “Os perceptos não são mais percepções, são independentes do estado daqueles
que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força
daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem
por si mesmos e excedem qualquer vivido. Existem na ausência do homem, podemos dizer,
porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele
próprio um composto de perceptos e afectos” (Deleuze & Guattari, 1992: 213).
259
se entreter e entrar em contato com os signos e acontecimentos do mundo. Uma
experiência que é, ao mesmo tempo, uma conquista permitida por seu trabalho,
já que o acesso a esses tipos de bens deriva do dinheiro que ele produz por sua
atuação no mundo, e expressão de sua limitação e de sua exclusão da
mundanidade.59 No espaço doméstico, exposto a esses signos, ele pode ser
absolutamente outro e diverso do que o configura como pertencente a esta ou
aquela categoria profissional, a este ou aquele segmento socioeconômico.60
Entretanto, como observa Sá (O sentido do som, in Novaes [org.], 2001: 123-
139), esse absolutamente outro, que entregou seu corpo ao trabalho por um
longo período (seu tempo-trabalho), ao buscar recompor-se (seu tempo-
recuperação), o faz ao mesmo tempo em que se entrega ao entretenimento (seu
tempo-lazer). O corpo que se refaz é o mesmo corpo que se dispõe ao lazer, no
contato com o dispositivo televisivo e as imagens que ele apresenta. Assim,
nesse “ao mesmo tempo”, é enquanto esse “outro e diverso” de sua
domesticidade, isto é, enquanto repousa e se dispõe indeterminado no campo
perceptivo constituído pelo olho-dispositivo técnico-imagem, que ele encontra
suas formas de sustentação e de afirmação de um contorno no exterior (suas
referências identitárias enquanto homem mundano), ao qual retornará no dia
seguinte, em seu tempo-trabalho, sem que tenha sido necessário realizar
efetivamente, com o próprio corpo, as ações que lhe deram esse contorno.61 No
260
trabalho, com seus pares, ao falar referido a esse lugar doméstico e mundano no
qual é outro e diverso, contará predominantemente, como matéria de expressão
para suas conversações, com essas imagens e falas a que se expôs no dia
anterior. É passivamente, portanto, que as imagens o afetam, é passivamente
que sua atividade imaginativa é posta em funcionamento, pois se trata, sempre,
perante a televisão, de uma aprendizagem e de uma modelização que
dispensam o pensamento e a ação.62
Sobre uma das dimensões da mundanidade, a dos signos, diz Deleuze
(1987: 5-7), acompanhando Proust em La recherche...:63
“Não existe meio que emita e concentre tantos signos em espaços tão
reduzidos e em tão grande velocidade. Na verdade, estes signos não são
homogêneos. Em um mesmo momento eles se diferenciam, não somente
segundo as classes, mas segundo ‘famílias espirituais’ ainda mais profundas.
De um momento para outro eles evoluem, imobilizam-se ou são substituídos
por outros signos. Assim, a tarefa do aprendiz é compreender porque alguém é
compreendê-los (cf. Barros Filho, 1995). O agendamento operado pela mídia dos temas a serem
discutidos nas relações sociais produz essa eficácia, ao torná-los comuns e, como tais,
compartilháveis nas conversações.
63 Escrito entre 1914 e 1922, Em busca do tempo perdido (La recherche...), de Proust, marca um dos
261
‘recebido’ em determinado mundo e porque alguém deixa de sê-lo; a que
signos obedecem esses mundos e quem são seus legisladores e seus papas. (...)
O signo mundano surge como o substituto de uma ação ou de um pensamento,
ocupando-lhes o lugar. Trata-se portanto de um signo que não remete a
nenhuma outra coisa, significação transcendente ou conteúdo ideal, mas que
usurpou o suposto valor de seu sentido. Por esta razão, a mundanidade,
julgada do ponto de vista das ações, é decepcionante e cruel e, do ponto de
vista do pensamento, estúpida. Não se pensa, não se age, mas emitem-se
signos. (...) O signo mundano não remete a alguma coisa; ele a ‘substitui’,
pretende valer por seu sentido. Antecipa ação e pensamento, anula pensamento
e ação, e se declara suficiente. Daí seu aspecto estereotipado e sua vacuidade,
embora não se possa concluir que esses signos sejam desprezíveis. O
aprendizado seria imperfeito e até mesmo impossível se não passasse por eles.
Eles são vazios, mas essa vacuidade lhes confere uma perfeição ritual, como
que um formalismo que não se encontrará em outro lugar. Somente os signos
mundanos são capazes de provocar uma espécie de exaltação nervosa, exprimindo sobre
nós o efeito das pessoas que sabem produzi-los [grifo nosso]”.
64Utilizo esta expressão como uma aproximação referencial ao filme de Wim Wenders Faraway, So
Close! [Tão longe, tão perto] (1993), obra que retoma os personagens de Wings of Desire [Asas do desejo]
(1987). Nos dois filmes, trata-se de anjos que contemplam o mundo, são afetados por seus signos e
acontecimentos, mas não podem experimentar afetiva ou sensorialmente suas forças, nem interferir
nelas. À medida que, dessa distância, seu desejo de participação se intensifica, à medida que se
contaminam, em suas conexões com os humanos, de sua humanidade, abre-se para eles a
possibilidade de se tornarem, eles mesmos, humanos. Em Wings of Desire, o anjo Damiel torna-se
humano ao apaixonar-se por uma trapezista, mulher-anjo humano; em Faraway, So Close!, o anjo
Cassiel, ao desejar tornar-se humano, faz seu atravessamento na impotência e no desespero (sua
impotência, como anjo, e seu desejo quase-humano de proteger e salvar uma criança que se precipita
da sacada de um prédio para a morte). Enquanto Damiel constitui-se como ser mundano e amoroso,
com seus limites e desejos, e, como tal, humano, Cassiel mergulha em um mundo violento do qual
não consegue viver efetivamente sua dimensão violenta, somente suas imagens de violência. Não mais
anjo, tampouco humano, acaba por sucumbir. Um olhar para o que pode ser significado como o
principal impasse proposto ao que somos, ao que nos define como homens desencantados
capturados pelas imagens que habitam o espaço intermédio entre dois mundos, o de nossa
262
aprendizagem de seus signos e a habilidade de responder a eles, seja pela
experiência vicária das identificações promovidas pelas narrativas das
telenovelas, seja pelo impacto das notícias expostas nos telejornais, que
anunciam acontecimentos aos quais se tem acesso por “ouvir dizer” ou “por
serem mostrados”, seja pela visibilidade dos corpos e a proliferação de signos
sexuais, de força, de atividade sobre sua superfície, seja pelos enunciados que
sobre eles se produzem. A essa experiência, o que se propõe como possibilidade
de sair da tele-realidade é pouco, e não retira, os que a vivem, do plano por ela
formado: realizar, através dela, a própria (sonhada?) assunção, pela
participação, como protagonista, dessa própria tele-realidade, como ocorre em
programas de auditório, em quiz-shows (como o Show do Milhão, de Sílvio Santos
[SBT]), nas aventuras dos reality shows (No Limite, da rede Globo), ou de ensaiá-
los nos encontros cotidianos, emiti-los para um outro, aguardar por seus efeitos.
De consumidor a consumido, este é o circuito da mundanidade no qual ocorre a
captura de corpos e desejos pelos signos emitidos pelo dispositivo técnico
televisivo.
Dos outros signos do mundo, os do amor, vividos necessariamente na
relação com um outro, ou os sensíveis, que emergem da experiência dos
acontecimentos, ou os da arte, ponto de confluência e de reinvenção dos outros
três (trabalhados por Wenders), a televisão – e os meios de comunicação de
massa em geral – pouco tem a apresentar ou a potencializar. Ao contrário, ao
propor, com seus diagramas ou suas narrativas, modelizações que remetem ao
263
dever-ser de determinado momento, até que outro dever-ser o substitua,65
tendem a barrar o reconhecimento desses demais signos.
Isso não significa que, por sua vez, esses outros signos deixam de atuar, na
existência cotidiana, com graus variados de força, cada qual formando seus
próprios planos em afetação e imanência com outros planos. Entretanto, embora
estabelecendo formas diversas de experiência que irão afetar a recepção desses
signos mundanos emitidos pelo dispositivo televisivo, não podem propor
alterações significativas a esses signos. Por formarem campos próprios e singulares
de experiência, eles não são intercambiáveis com esses outros signos, que, como
mundanos, como “substitutos de uma ação e de um pensamento”, funcionam, no
não-sentido, com suas próprias regras e consistências.66 Isso produz um efeito
paradoxal: quando ocorre de alguém tentar significar suas próprias experiências
singulares, exatamente as que lhe permitiriam caminhar para uma maior
consistência e singularização, por não serem intercambiáveis com esses outros
65 Como ocorre com o dever-ser das relações amorosas e sexuais, intensivamente cultivado em
programas de televisão, em revistas de comportamento, em manuais de auto-ajuda, em
aconselhamentos, em horóscopos etc., que acabam por constranger as próprias experiências
singulares. Os atuais “testes de fidelidade” presentes em vários canais (Domingo Legal, de Gugu
Liberato, SBT; Festa do Mallandro e Alegria Geral, Sérgio Mallandro, Gazeta; Te Vi na Tevê, João
Kleber, Rede TV!) são, nesse sentido, exemplares: os signos do amor, nos diz Deleuze (1987)
lendo Proust, constróem-se na incerteza do outro, e são atravessados pelo ciúme, sendo este
inclusive até mais forte que o amor. O amante está sempre movido pelo desejo de saber e
interpretar os signos que a pessoa amada emite, sendo esse esforço tanto o que o sustenta como
o põe continuamente a se perder. Os gestos amorosos, mesmo quando se dirigem a ele, o
excluem, na medida em que aqueles gestos da pessoa amada que recebe se construíram em
outro lugar, com outros corpos, mundo do qual ele está necessariamente excluído. Os “testes de
fidelidade”, ao proporem a possibilidade de saber se o outro responde a outros mundos que não
ao do amante, mais que simplesmente banalizar a relação intersubjetiva que constitui o laço
amoroso, o desmancha para cristalizá-lo em um casal que não pode mais se afetar e viver a
própria experiência como própria. Assim, ele não é só conservador ou reativo ou perverso por
expor a intimidade amorosa. Ele é perverso por acenar com a promessa de extinguir do
horizonte humano a possibilidade, atravessada de hesitações e dilemas, de se propor ao outro
enquanto objeto de seu desejo. No laço amoroso, a certeza o desinveste e reduz as matérias
expressivas a que se costuma recorrer para sustentá-lo, além de reduzir o outro a um nada
previsível.
66 Dois exemplos anedóticos, derivados de outros contextos, embora similares ao da emissão de
264
signos que chegam de forma modelizadora, acabam sendo experimentadas como
formas de alienação em relação ao mundo dominante no qual se encontra imerso.
Invertem-se, portanto, os pólos da própria experiência, singular e contextualizada,
e a reconhecida pelos demais como legítima, “normal”, aceitável: é a experiência
que passa a ser qualificada como difusa, inconsistente, despotencializada. Essa
intransitividade entre a experiência dos signos do amor e dos sensíveis e a emissão
dos signos mundanos pode permitir compreender o que tenho indicado como
redução banalizante das formas de expressão e experiência amorosa operada por
sua apropriação mediática (dos programas televisivos às inúmeras revistas que
investem o comportamento amoroso e sexual): uma semiotização que, limitada a
poucas e sempre as mesmas matérias de expressão, constrange a simulação de
quaisquer outras formas que, no encontro dos corpos, possam vir a se inventar.
Com isso, esses esforços de adequação da programação “ao gosto do
espectador” apoiados nas respostas obtidas pelos institutos de pesquisa, que
procuram definir perfis de públicos a partir de questionários sobre a própria
programação, resultam quase que invariavelmente em estratégias fechadas
operadoras de redundância, na medida em que dificilmente a resposta ao “que
você gostaria de ver” resulta em algo diverso do que já é apresentado. O desejo
de “outra coisa”, que deriva da experiência singular, não faz seus trânsitos de
um signo a outro. Por exemplo, à seguinte afirmação sobre “identificação de
públicos”, corrente nas estratégias de marketing,
265
atitudes do segmento escolhido.67 Essa é a tarefa da indústria publicitária, que,
estabelecendo as conexões produto-língua-corpo, produz as matérias de
expressão que comunicam o produto ao público.
O mesmo ocorre com as músicas e danças da moda veiculadas pelos
programas televisivos de auditório: não se trata, em nenhum momento, de
determinado ritmo ou forma corporal expressiva apresentados uma primeira vez
encontrarem-se com os ritmos e formas corporais expressivas dos que estão
expostos a ela, produzindo-se, entre um e outro, um plano de consistência. É a
dança que, ao presentar-se, cria imediatamente os ritmos e formas corporais
expressivas do público. O que ela produz é uma rostificação.68 Daí seu caráter
totalitário: se os que estão presentes buscam potencializar-se nessa presença (na
medida em que é no valor de positividade do programa que buscam estar
presentes e se simularem), o fazem a partir das simulações permitidas pelas
matérias fornecidas para essa potencialização. São estas que, performativamente,
dão materialidade a sua expressão, como veremos mais detalhadamente no
CAPÍTULO 4 – FORA-DENTRO.
67 Um romance notável dos anos 60, As coisas (Perec, 1969) acompanha um casal de sociólogos
que trabalham com pesquisas (profissão emergente na época) mergulhados num mundo de
objetos, dos quais extraem o que lhes dá seu frágil contorno. Dos objetos que contemplam nas
vitrines, com os quais sonham e pelos quais lutam, ao vazio de suas existências e de suas ações,
o romance os carrega, de ilusão identitária em ilusão identitária, de nenhum lugar para lugar
algum.
68
Como ocorre na entrada de qualquer pessoa em determinada categoria profissional: quando se
diz, ”vi, pelo seu jeito, pela forma de falar, por sua forma de se apresentar etc. que você é jornalista,
publicitário, psicólogo, advogado...”, não se trata de um efeito de aprendizagem, de formação, mas
de uma rostificação. Em um campus universitário, mesmo entre alunos dos primeiros anos,
aprendemos rapidamente a identificar em qual segmento de formação profissional cada um está
circunscrito. Não se trata, simplesmente, de identidade de grupo, pois nunca se é verdadeiramente
um grupo, mesmo que não cessemos de estar referidos a um ou outro grupo. O que temos são traços
de significância, matérias de expressão, determinados sistemas gestuais simuladores de uma
identidade e uma pertinência.
266
O PLANO DIAGRAMÁTICO
69 Essas quatro dimensões, apresentadas por Lévy em O que é o virtual?, sintetizam com
propriedade as formulações da esquizoanálise de Deleuze & Guattari (em particular, sobre os
Agenciamentos Coletivos de Enunciação, que mantém relações de proximidade com os
dispositivos de Foucault) e as descobertas e pesquisas mais recentes sobre as redes neurais e
informáticas, e estão distantes de conflituarem com a psicanálise. Lévy, que é às vezes
confundido por leitores apressados como mais um entusiasta da tecnologia, insere-se na mesma
vertente dos pensadores do Fora, como ele explicita claramente em A inteligência coletiva (1998).
Abordá-lo a partir dos modelos científicos e de pensamento tradicionais, derivados do
cartesianismo ou da teoria crítica, é abrir-se a inevitáveis equívocos.
267
Isto é, ao abordar o homem em sua relação com os meios de
comunicação, em particular, a televisão, estou considerando-o não enquanto
uma entidade psíquica organizada como uma unidade diferenciada – o que se
entende como indivíduo, ou como sujeito da consciência – em posição de
aceitação ou resistência conscientes em relação ao que se lhe apresenta, mas
enquanto mais ou menos ativado e afetado nesse contato, conforme essas
quatro dimensões, sendo de acordo com a forma como elas se organizam que
ele se constitui subjetivamente em conexão com o dispositivo e os signos que o
agenciam. Essas dimensões, claro, só podemos separá-las para fins
compreensivos, didáticos, na medida em que elas são imanentes, não havendo
alteração em uma delas que não afete imediatamente as demais.
Assim, acompanhando Lévy (1996: 104-105), as quatro dimensões da
afetividade são constituídas por:
268
“4. Uma energética. Os tropismos ou valores associados às imagens podem ser
intensos ou fracos. O movimento de um grupo de representações pode vencer
certas barreiras topológicas (afrouxar certas ligações, criar outras, modificar a
paisagem de atratores), ou, por falta de ‘força’, permanecer aquém delas. O
conjunto do funcionamento psíquico é assim irrigado e animado por uma
economia ‘energética’: deslocamentos ou imobilizações de forças, fixação ou
mobilização de valores, circulações ou cristalizações de energia, investimento
ou desinvestimento em representações, conexões etc.”
269
homem-existente ou ao conceito-homem, mas à mutação da forma-Homem, que
estaria submetida, na atualidade, a processos de dissolução:
Que homem pode advir dessa mutação, não sabemos ainda, embora
possamos imaginar que as novas forças do fora (como as geradas pela
conectividade das redes informáticas, identificadas por Lévy como possibilitadoras
de construção de uma inteligência coletiva) possam propiciar às forças-no-homem
novas formas de afirmação, em linhas e direções ilimitadas. Talvez encontremos,
como observa Orlandi, no super-homem (“além-do-homem”) nietzscheano o
composto dessas novas relações de forças. 70
Com maior certeza, é possível afirmar que dificilmente elas encontram
condições de afirmação sob as formas que ainda se ensaiam de construção de
um “sujeito” da comunicação, que buscam em uma racionalidade comunicativa
70Se já não sabíamos como essas novas formas podem se configurar, a mudança da ordem
mundial a partir do atentado de 11 de setembro aos EUA, que determinou a re-emergência de
velhos discursos sobre as fronteiras nacionais e a intensificação dos mecanismos de controle das
populações anuncia um destino bastante nefasto para essa mutação.
270
um caminho ao qual a forma-Homem, em sua mutabilidade, não cessa de se
furtar, embora não cessando, também, de ser reterritorializada por formas as
mais deletérias de captura por simulações de potência que, longe de serem
potencializadoras de suas forças criadoras, funcionam como diques protetores
em relação a elas. Nesse contexto, por melhores que sejam as intenções dos
profissionais da mídia, eles não têm como fazer fugir sua função controladora,
modelizante e de resistência aos processos de transformação das paisagens
psicossociais.
Esse, penso, é o maior impasse presente hoje nos procedimentos
comunicacionais. De um lado, uma celebração da diversidade e multiplicidade
de um mundo conectado em rede e em tempo real, que abre horizontes
inimagináveis, até algumas décadas atrás, de acesso e potencialização do
conhecimento e da comunicação entre os povos; de outro, pela redução dessa
diversidade a sistemas explicativos totais (objetividade sem parênteses, como
define Maturana, 1999), pela luta concorrencial pelo monopólio dessas riquezas,
por uma apreensão bastante estreita do que significaria, efetivamente, um livre
mercado (de produtos, de idéias, de paixões), pela multiplicação dos
dispositivos de controle, prevalece a ameaça totalitária da mais radical
despotencialização de todas essas conexões. Concorrendo a favor dessa
despotencialização, temos a fragilização dos corpos e suas forças internas
desejantes, sustentadas em estado de carência-e-captura71 pela cultura de
massa, e as aderências identitárias que resistem à própria mutabilidade de sua
forma-Homem.
É sob esse impasse que, para concluir este capítulo, retorno às
argumentações sobre as relações corpo-técnica-mídia e as imagens que delas se
produz: se o que nos garante a idéia de progresso e bem-estar é efeito da
expansão e multiplicação dos meios de transporte e de comunicação, com as
revoluções técnicas e a maior conectividade humana deles decorrentes, é
necessário que reconheçamos, entretanto, que os limites nos quais, da realidade,
71Ver, na PARTE II, CAPÍTULO 3 – FORA, item Censura e Liberdade de Expressão, como se
configura e se estabelece a síndrome-de-carência-e-captura.
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só podemos produzir suas representações, é também efeito da sustentação, por
aqueles afetados por esses meios, cada um a seu tempo, de discursos
homogêneos/homogeneizantes (com suas formas próprias de semiotização)
sobre esse mesmo progresso, de forma que podemos dizer que eles constituem
campos de implicações (que poderíamos chamar de simbólicos) que,
extensamente, asseguram que a realidade a que podemos aceder e viver é
aquela que eles próprios apresentam e sustentam. Esse recurso “ao si mesmo”
como estratégia de validação faz da comunicação, mais que um ato de
informação, uma ação designativa e restritiva, constituindo-se assim o caráter de
redundância do processo comunicativo (Deleuze & Guattari, 1988: 81-82), sendo
a essa redundância que se faz necessário abrir linhas de fuga.
É desse reconhecimento, e como ponto de ancoragem para as formulações
subseqüentes, que podemos concluir que a adesão contemporânea à cultura de
bem-estar e de progresso é fruto não-somente de uma maior racionalidade técnica,
ou lingüística – porque constituída por atos lingüísticos que estabelecem as
condições de reconhecimento da pertinência de cada um a um campo determinado
– mas também performativa, segmentária e territorializante no contato dos corpos
com os dispositivos com os quais eles se compõem, produzindo campos de
resistência às recomposições das forças-no-homem com as forças do fora, que, para
além das potências de reprodução, poderiam ser criadoras e expressivas de novos
modos de apreensão e de domínio do real.
Só a partir dessas recomposições, e da maneira como compreendemos os
atos lingüísticos compondo, ou não, campos de consistência com os atos não-
lingüísticos humanos – vale dizer, as ações a-significantes –, é que podemos
encontrar condições para montar novas cartografias dos processos de mutação
contemporâneos, e, com elas, repensar a tessitura ética em que nos
comprometemos, hoje, enquanto pertencentes à moderna sociedade de
consumo, pós-industrial e mediática. Para isso, é necessário que
compreendamos melhor as formas de exercício do poder que constróem a
tessitura do presente.
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