Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Prefácio................................................................................ ...............................3
1
Vida com Deus........................................................................................................ 5
Cônjuge rejeitado................................................................................................6
Metáforas misturadas.................................................................................... ......8
Faça de Novo!................................................................................................. ...10
Pensamentos sobre Jesus..................................................................................12
O espírito dos casamentos arranjados..............................................................14
JÓ e os enigmas do sofrimento..........................................................................17
A escada da tribulação......................................................................................19
Deus escolhe os favoritos............................................................................... ...21
O segredo espiritual do rei Davi........................................................................24
2
No mundo................................................................................................. ............26
A igreja da meia–noite................................................................................ .......27
A AIDS é um castigo de Deus............................................................................30
Um bom começo...............................................................................................32
Ética que vale a pena........................................................................................34
Escorpiões, vermes e mísseis............................................................................37
Perdão e reconciliação..................................................................................... ..39
O valor de um ser humano................................................................................41
3
Outro mundo............................................................................. ...........................44
Cuidado com os buracos–negros.......................................................................44
Matemáticos nascidos de novo.........................................................................47
Que aconteceu com o céu?...............................................................................49
Imagine que o céu não existe...........................................................................51
Domingo à tarde, na praia............................................................................... ..53
Perturbando o Universo.....................................................................................54
A ESTAÇÃO PERFUMADA....................................................................................56
4
Entre os crentes...................................................................................................59
O PODER DO AMOR E O AMOR AO PODER.........................................................59
Aja como se Deus ainda estivesse vivo.............................................................63
~ 2 ~
MÓRMONS, FARISEUS E OUTRAS PESSOAS BOAS..............................................65
Crescendo como fundamentalista.....................................................................66
Morbidamente saudável....................................................................................69
5
Vozes indispensáveis............................................................................... .............70
Efeitos covardes da deflação.............................................................................71
Imaginação convertida......................................................................................73
OS RISCOS DA RELEVANCIA............................................................................. ..75
Dois bezerros teimosos.....................................................................................79
O REJEITADO.............................................................................................. ........80
Avançando para o passado............................................................................... .82
6
O animal humano............................................................................. ....................83
O Universo e meu aquário.................................................................................84
Reencontro da turma do 2º grau.......................................................................90
O problema do prazer....................................................................................... .93
PREFÁCIO
Suponho que todos os escritores se preocupem com a arrogância
inerente ao ato de escrever. Sempre que pego a caneta (ou melhor:
removo a capa do teclado de meu computador) nasce em mim uma
esperança: de que, ao terminar a leitura, o leitor sinta que valeu a pena
dedicar seu tempo à minha obra. Presumo ter o direito de levá–lo a deixar
de lado qualquer outra atividade para prestar atenção em mim. Que me
dá este direito?
Quanto mais, porém, escrevo menos me preocupo com este assunto.
Aprendi que eu, ou qualquer outro autor, tenho a oferecer apenas um
ponto de vista. Apresento minha opinião – subjetiva, tendenciosa, pessoal
e necessariamente incompleta – e você, leitor, deve decidir se o resultado
merece sua atenção.
Há quinhentos anos o sábio renascentista Pico delia Mirandola
apresentou seu famoso discurso Oração a Respeito da Dignidade do
Homem, no qual definia o papel da humanidade dentro da criação. Com a
criação dos animais. Deus preencheu todas as posições essenciais da
natureza, mas o Divino Artífice ainda ansiava por uma criatura que
~ 3 ~
compreendesse o significado de tão grande obra, que se enchesse de
amor ao admirar a beleza e se enchesse de admiração frente à sua
grandeza.
Contemplar e apreciar todo o resto, refletir sobre o significado,
reverenciar e consagrar, estes papéis foram reservados para a espécie
feita à imagem de Deus.
Della Mirandola utilizou termos exaltados mas, como escritor, aceito
sua premissa. Olho à minha volta, para a grande obra da criação, e desejo
expressar meu próprio sentimento de espanto e, até mesmo, de amor. A
escritora cristã Flannery O'Connor afirmou que o autor que aborda a fé
"sentirá que vale a pena morrer, se for este o meio de ser encontrado por
Deus".
***
Por que a única vez em que vi meu tio feliz foi na tarde de 7 de
dezembro de 1941, quando os japoneses bombardearam Pearl
Harbor?
Philip Yancey
1
VIDA COM DEUS
•Como é Deus? Por que a maioria dos livros teológicos O mostra como
lógico, ordeiro, imutável e inefável, enquanto a Bíblia O retrata como
emocional, flexível, vulnerável e, acima de tudo, apaixonado?
~ 5 ~
•Por que apenas 10% da Bíblia – as Epístolas – são estritamente
didáticos, e todo o resto ensino por meios indiretos, como histórias,
poesias, parábolas e visões proféticas? Por que 90% dos sermões nas
igrejas evangélicas baseiam–se nos 10% didáticos?
•Como Deus consegue amar tanta gente no mesmo tempo? Se Ele nos
ama de verdade, por que algumas de nossas orações mais urgentes
ficam sem resposta? Por que não acontecem mais milagres?
•Por que o livro de Jó está na Bíblia? Será que alguém já apresentou
um argumento negando o amor de Deus que não apareça, de alguma
forma, no livro de Jó? Se Jó termina o livro como herói e seus amigos
como vilões, por que os cristãos citam mais as palavras deles?
•Por que Deus não respondeu às perguntas de Jó? E por que ele parece
não ter–se importado de ficar sem as respostas?
•Como podem os evangelistas da televisão promover com tanta
animação a teologia da prosperidade em um mundo cheio de injustiça
e sofrimento como o nosso? Será que algum cristão iraniano acredita
na teologia da prosperidade?
•Como podem os evangelistas da televisão prometer prosperidade e
segurança aos fiéis quando Jesus lhes prometeu uma cruz, enviou–os
como ovelhas no meio de lobos e permitiu que a maioria de Seus
discípulos morresse como mártires?
•Que faz Deus ficar feliz?
CÔNJUGE REJEITADO
Isolei–me em um chalé nas montanhas do Colorado durante duas
semanas de inverno. Levei comigo uma mala cheia de livros e anotações,
mas, ao voltar, descobri que só havia aberto um deles: a Bíblia. Comecei a
ler em Gênesis e segui em frente. Do lado de fora, a neve caía
furiosamente. Quando cheguei em Deuteronômio, a neve cobria o primeiro
degrau da escada externa. Atingi os profetas e ela chegou à caixa de
correio. Finalmente, quando terminei Apocalipse, precisei chamar um
caminhão para desobstruir a entrada da casa. Mais de 1,80m de pó gelado
caiu durante o tempo que passei lá.
A combinação de som abafado da neve caindo, isolamento e
concentração mudou para sempre o modo como leio a Bíblia. A percepção
mais surpreendente que me veio naquela leitura foi que nossas
impressões costumeiras de Deus podem ser muito diferentes do que a
Bíblia realmente retrata. Nos livros de teologia lemos sobre os decretos de
Deus, e características como onipotência, onisciência e imutabilidade.
Estes conceitos encontram–se na Bíblia, mas bem escondidos, e é
necessário esforço para vê–los. Leia as Escrituras e você encontrará não
uma névoa indistinta, mas uma Pessoa real. Deus sente prazer, raiva e
frustração. Uma vez após outra se choca com o comportamento humano.
Algumas vezes, depois de decidir agir de uma forma, Ele "muda de idéia".
Eu sei bem que o termo elegante "antropomorfismo" pode explicar
todos estes retratos com características humanas. E mesmo assim, lendo
a Bíblia inteira de uma vez, como fiz, é impossível não ser esmagado pela
~ 6 ~
alegria e angústia. Em resumo: pela paixão – do Senhor do Universo. É
verdade que Deus "toma emprestadas" imagens da experiência humana
para se comunicar de modo que possamos compreender, mas certamente
essas imagens apontam para uma realidade ainda maior atrás delas. Por
exemplo: nos profetas duas imagens são proeminentes: a do pai irado e a
do conjugue desprezado.
Para minha surpresa, o livro que mais me afetou foi Jeremias,
provavelmente por expressar estas duas imagens de um Deus apaixonado
com tanta força emocional. Os primeiros capítulos mostram um pai
ofendido tentando argumentar com um filho irremediavelmente rebelde.
Deus recorda como conduziu seus filhos através do deserto hostil,
providenciando alimento e água durante todo o caminho, para levá–los a
uma terra fértil e de prosperidade. No capítulo 3, versículo 19, Ele diz:
~ 7 ~
Conhece o que fizeste; dromedária, ligeira és, que anda torcendo os
seus caminhos. Jumenta montes, acostumada ao deserto, que,
conforme o desejo da sua alma, sorve o vento, quem a deteria no
seu cio? (2:23,24)
METÁFORAS MISTURADAS
~ 8 ~
Quando Israel era menino, eu o amei; e do Egito chamei a meu filho.
... Todavia, eu ensinei a andar a Efraim; tomando–os pelos seus
braços, mas não entenderam que eu os curava. Atraí–os com cordas
humanas, com laços de amor,
e fui para eles como os que tiram o jugo de sobre as suas queixadas,
e lhes dei mantimento.
Uma imagem invade minha mente, de uma fita de vídeo onde os pais
registraram os primeiros passos de uma garotinha. A mãe, ajoelhada, fala
com carinho persuadindo sua filhinha, que estende as duas mãos e
balança, perigosamente, de um lado para o outro. A câmara se move
rapidamente e mostra a alegria do pai. Tanto ele quanto a mãe continuam
a sorrir de uma orelha a outra sempre que colocam a fita e assistem. Foi
assim, como um pai ou mãe bobos de tanto amor, que Deus ensinou seu
povo a caminhar. Nesse trecho de Oséias, Ele se recorda, com nostalgia,
da alegria da paternidade. Subitamente grita, em uma pontada de dor,
Seu coração se move dentro dEle, sua compaixão é despertada:
Que motivo terá levado a este interlúdio suave em meio a uma história
para adultos sobre a prostituição? A mistura das duas imagens – Israel
como filho e como amante — é, no mínimo, diversa do convencional. Se
um ser humano misturasse as duas imagens, pensaríamos em incesto.
Mas Deus, buscando uma analogia que expressasse os sentimentos
profundos que nutre por seu povo, escolhe os dois relacionamentos
humanos mais profundos: paternidade e casamento. Na tentativa de
decifrar a combinação extraordinária das duas figuras em Oséias, cheguei
a uma palavra: dependência. Ela é a chave para se descobrir o que há em
comum entre as imagens e como elas diferem.
O relacionamento entre a criancinha e seus pais é caracterizado pela
dependência. Os bebês dependem deles para satisfação de todas as suas
necessidades, e eles desempenham tarefas desagradáveis — ficarem
acordados a noite toda, limparem vômito, ensinarem a usar o banheiro —
porque sentem a dependência total do filho, e amam aquele bebê. Sem
pais que cuidem dele, o bebê morrerá.
Ainda assim, esse padrão de comportamento não permanecerá para
sempre. Os bons pais estimulam pouco a pouco a independência do filho.
Meus amigos ensinaram a filha a andar, em vez de empurrá–la por toda a
vida em um grande carro. Embora soubessem que um dia ela poderá
andar para longe deles, não deixaram de ensinar. Lamentavelmente,
alguns pais fracassam em dar independência aos filhos. Conheço um
homem de 37 anos que ainda mora com sua mãe, por exigência dela, e
lhe entrega todo o salário que recebe. Só sai de casa se a mãe permitir.
Qualquer pessoa pode perceber que e um relacionamento doentio. Na
paternidade e na maternidade a dependência deve fluir rumo à liberdade.
Os amantes revertem este fluxo, já que possuem a liberdade e
escolhem abrir mão dela. A Bíblia manda que se submetam um ao outro, e
qualquer casal pode dizer que esta é uma descrição acurada do processo
~ 9 ~
cotidiano de viver juntos. A romancista Elizabeth Barrett Browning
escreveu o seguinte soneto pouco antes de se casar com Robert:
FAÇA DE NOVO!
~ 10 ~
dobravam–se, os pés viravam–se para fora e o corpo inclinava–se,
acentuadamente, para a frente.
No momento em que ela falava, fui envolvido pelo relato detalhado.
Mais tarde, refletindo sobre nossa conversa no ambiente sóbrio de meu
escritório, percebi como pareceria estranho para alguém que escutasse
por acaso. Nós dois nos maravilhamos, expressando o maior dos
entusiasmos, por uma habilidade dominada pelos aproximadamente dez
bilhões de humanos que já habitaram neste planeta. Então, ele sabe andar
– todo mundo sabe. Por que tanta animação?
Percebi que a infância é uma época em que temos um luxo raro na
vida, a qualidade de ser especial, que quase desaparece durante o resto
de nossa existência. Ao crescer, lutamos incessantemente para conseguir
atenção. Os adolescentes varam a noite estudando para provas,
maltratam o corpo em atividades físicas torturantes, fazem hora extra
para comprar roupas de griffe. passam horas na frente do espelha se
enfeitando – tudo para serem notados. Na idade adulta as pessoas
institucionalizam a busca insana das conquistas. Queremos,
desesperadamente, destacar–nos, ser notados. Enquanto isso, uma
criancinha só precisa dar uns passos desengonçados cruzando um tapete
da sala de estar, e seus pais e suas tias contam vantagem de seu triunfo
para rodos os amigos.
Os refletores da atenção especial podem ser acesos de novo quando
chega o momento do romance. Para um apaixonado, todo sinal de
nascença é bonitinho, os hobbies estranhos reflexo de viva curiosidade,
um espirro motivo para atenção redobrada. Voltamos a ser abençoados
com a classificação de especiais: por algum tempo, pelo menos, ate que o
tédio da vida acabe com isso.
O que acontece durante as fases de cuidados atentos na infância e a de
namoro arrebatado é um contraste completo com nosso comportamento
normal. Ao entrar em um ônibus, ninguém exclama para o motorista:
"Não acredito! Quer dizer que você dirige este ônibus enorme o dia
todo, e sozinho? E nunca sofre um acidente? Isso é maravilhoso!"
E nem paramos alguém no supermercado para falar, efusivamente:
"Estou tão orgulhoso de você, que sabe direitinho qual marca de
produto escolher! Existem tantas marcas diferentes, e mesmo assim você
sabe quais as que quer e coloca todas em seu carrinho e empurra por todo
o mercado com tanta segurança! Impressionante!"
Ainda assim, é este espírito, absurdo quando aplicado à rotina da vida,
que mostramos para com as crianças e os apaixonados. Para eles,
"santificamos" o que é comum e corriqueiro.
Não proponho que façamos papel de tolos todas as vezes em que
encontramos um motorista de ônibus ou um consumidor econômico. Mas,
pensar sobre o tratamento dispensado às crianças e aos apaixonados
trouxe–me apreciação mais profunda de algumas metáforas bíblicas. Deus
escolhe mais vezes "crianças" e "apaixonados" para descrever nosso
relacionamento com Ele do que qualquer outra figura.
O Velho Testamento é repleto de imagens de marido–esposa. Deus
corteja Seu povo, é louco por ele, como um apaixonado por sua amada.
Quando O ignoramos, sente–se ferido, rejeitado, como um apaixonado
desprezado. O Novo Testamento também usa a mesma imagem,
apresentando a Igreja como "a noiva de Cristo". Ao alterar a metáfora,
~ 11 ~
também anuncia que somos filhos de Deus, com todos os direitos e
privilégios de ilustres herdeiros. Jesus (o Filho "Unigênito" de Deus) veio,
ficamos sabendo, para possibilitar nossa adoção como filhos e filhas na
família de Deus. Estude estas passagens bíblicas, e você verá que Deus
olha por nós como nós olhamos por nossos próprios filhos, ou pela pessoa
a quem amamos.
Por ser infinito, Deus tem uma capacidade que não temos: tratar toda a
criação como igualmente especial. G. K. Chesterton tala assim sobre isto:
~ 13 ~
Uma pergunta tão abrangente dificilmente cabe em um capítulo do
tamanho deste, exceto quando a uma lição importante a ser extraída no
evangelho apócrifo. Esse evangelho, um dos favoritos dos gnósticos do
século II, foi adequadamente rejeitado pela igreja ortodoxa. As histórias
nele contidas sobre a infância de Jesus expressam uma heresia perigosa: a
crença de que podemos escapar deste mundo material repleto de falhas,
preso no tempo e no espaço, e viver em um plano mais "espiritual", bem
acima do tédio da vida cotidiana.
O Apóstolo Paulo lutou corajosamente contra o gnosticismo. Apegou–se
ã promessa de um mundo perfeito, que receberemos algum dia, do qual
temos uma pequena prova nesta vida. Mas nunca negou as realidades
tediosas e muitas vezes dolorosas. Ele nem poderia ter negado, em face
dos seus dias repletos de naufrágios, prisões, espancamentos e da dor
importuna de seu misterioso "espinho na carne". Resumindo: Paulo
apresenta a vida cristã como um tipo de suspensão que inclui o triunfo da
vitória eterna, mas também o pungente "ainda não" de nosso estado
presente.
Confesso que algumas vezes desejo que não fosse assim. Quando me
esforço sobre um artigo complicado ou tento fazer um carro teimoso
funcionar, ou quando enfrento um problema insolúvel que não
desaparecerá: em momentos assim anseio por uma forma de deixar para
trás o "ainda não". Desejo o Messias apresentado no evangelho apócrifo,
que ficará do meu lado, acertando minhas palavras, meus problemas
físicos e todos os infortúnios de minha vida.
Mas depois, estudando os evangelhos canônicos e as epístolas
explicatórias que os seguem, posso enxergar a sabedoria do propósito de
Deus. Certamente seria um milagre Jesus esticar tronos, fazer pássaros de
barro voarem e transformar mulas em homens. Mas é um milagre muito
maior pegar o fracassado grupo de onze homens que O seguiram, junto
com o arrogante caçador de cristãos chamado Saulo, e transformá–los,
com todas as falhas, na base de seu Reino.
Seria um milagre se todas as minhas palavras saíssem perfeitas e se
meu carro nunca mais quebrasse. (Uma voz me sussurra que assim eu
poderia fazer muito mais pelo Reino...) Mas Ele usar a matéria bruta de
tudo que escrevo ou, pode–se dizer, tudo que nós, seu Corpo, fazemos
nesta Terra: não é isto milagre muito maior ?
~ 14 ~
vida em nossa cultura e presumimos que em todas as outras também. A
vida é assim, pensamos nós.
Ah, mas aqui há um fenômeno notável: ainda hoje, em nossa aldeia
global, mais da metade de todos os casamentos acontece entre um
homem e uma mulher que jamais sentiram qualquer pontada de amor
romântico e talvez nem mesmo reconheçam o sentimento, se acontecer
com eles. Adolescentes na maior parte da África e da Ásia têm como certa
a noção dos casamentos arranjados por seus pais, assim como para nós é
certa a noção do amor romântico.
Um jovem casal de indianos, Vijay e Martha, explicaram–me como foi o
casamento deles. Os pais de Vijay avaliaram todas as garotas de seu
círculo social antes de se decidirem por uma chamada Martha para ser a
noiva de seu filho. Ele tinha 15 anos na ocasião e ela acabara de
completar 13. Os dois só haviam–se encontrado uma vez antes, e muito
rapidamente. Mas, depois que os pais dele chegaram a uma decisão,
reuniram–se com os pais dela e marcaram a dará do casamento para dali
a oito anos. Depois que combinaram tudo, contaram aos filhos com quem
eles iriam se casar e quando.
Durante os oito anos seguintes Vijay e Martha tiveram a permissão de
escrever uma carta por mês. Viram–se duas — apenas duas — vezes, e
muito bem acompanhados, antes da data do casamento. Mesmo assim,
tendo ido morar juntos sendo praticamente estranhos um ao outro, hoje o
casamento deles parece ser tão seguro e amoroso quanto qualquer outro
que conheço. Na verdade, missionários que vivem nestas sociedades
relatam que, regra geral, os casamentos arranjados são mais estáveis,
com a taxa de divórcios muito menor do que a dos que resultam de
romance.
Nas culturas ocidentais as pessoas se casam porque sentem atração
pelas qualidades agradáveis do outro: sorriso aberto, espirituosidade,
aparência bonita, habilidade atlética, bom humor, charme. Com o passar
do tempo, estas qualidades se alteram. Especialmente os atributos físicos
irão deteriorar–se com a idade. Enquanto isso, podem aparecer surpresas:
desleixo no cuidado com a casa, tendência à depressão, problemas
sexuais. Ao contrário de tudo isso, os companheiros em um casamento
arranjado não baseiam o relacionamento na atração mútua. Ao ser
informada da decisão dos pais, a pessoa aceita que viverá muitos anos
com alguém a quem mal conhece. Assim, a questão deixa de ser "Com
quem me devo casar?" e passa para "Que tipo de casamento eu e este
meu companheiro construiremos?"
***
Duvido muito de que o Ocidente algum dia venha a abandonar a idéia
de romance, apesar da base fraca que ele constitui para a estabilidade
familiar. Mas, nas conversas que mantenho com cristãos das mais diversas
culturas comecei a ver como o "espírito dos casamentos arranjados"
poderia transformar outras atitudes. Poderíamos aprender alguma coisa
sobre as nossas expectativas quanto à vida cristã, por exemplo.
Sempre achei estranha a fixação da teologia moderna com o problema
do sofrimento. As pessoas em nossa sociedade vivem mais tempo, com a
saúde muito melhor e com menos sofrimento físico do que em qualquer
outra época da história. E ainda assim nossos artistas, escritores, filósofos
~ 15 ~
e teólogos se atrapalham na procura de novas formas de apresentar as
questões milenares de Jó. Por que Deus permite tanto sofrimento? Por que
Ele não intervém? E é significativo notar que os brados não partem do
Terceiro Mundo – onde a miséria grassa — ou de pessoas como
Solzhenitsyn, que suportou enorme sofrimento. O grito angustiado parte
basicamente daqueles dentre nós que vivem no Ocidente confortável e
narcisista. E por pensar nesta tendência estranha que continuo a voltar ao
paralelo com os casamentos arranjados, que se transformou para mim em
uma espécie de parábola sobre as formas diferentes pelas quais as
pessoas se relacionam com Deus.
Algumas aproximam–se da fé basicamente como uma solução para
seus problemas, e escolhem Deus assim como escolhem o cônjuge,
procurando as qualidades agradáveis. Sua expectativa é a de que Deus
sempre lhes trará boas coisas. Dão o dízimo porque receberão de volta
dez vezes mais. Tentam levar uma vida reta porque acreditam que Ele lhes
dará prosperidade. Interpretam a frase "Jesus é a resposta" em seu
sentido mais literal e inclusivo: a resposta para o desemprego, um filho
com problemas mentais, um casamento em ruínas, uma perna amputada,
um rosto feio etc. Contam como certo que Deus interferirá em seu favor;
providenciando um emprego; curando o filho, a perna e o rosto feio e
colando de volta os pedaços do casamento partido.
Em meio a tudo isso, precisamos continuar a levantar o problema do
sofrimento, exatamente porque a vida não é sempre como gostaríamos de
que fosse. Realmente, em muitos países, ao tornar–se cristã a pessoa
pode ter certeza de que perderá o emprego, será rejeitada pela família,
enfrentará o ódio social, e talvez, até, seja presa.
Em seu maravilhoso livro The Mind of the Maker (A Mente do Criador),
Dorothy Sayers sugere um outro modo de enxergar o envolvimento de
Deus conosco. Afirma, em palavras que merecem muita reflexão:
O artista não vê a vida como um problema a ser solucionado, mas
como um agente da criação.
JÓ E OS ENIGMAS DO SOFRIMENTO
Ao aflito livra por meio da sua aflição, e pela opressão lhe abre os
ouvidos. (Jó 36:15)
"Por que eu?" Quase todo mundo faz esta pergunta em meio ao
sofrimento. Em grandes ou pequenas circunstâncias – um terremoto em
outro país ou no diagnóstico de uma doença – enfrentamos questões
angustiantes sobre por que Deus permite que sintamos dor.
Ironicamente, os cristãos em sofrimento obtêm conforto no livro de Jó.
Digo "ironicamente" porque Jó levanta mais questões sobre o sofrimento
do que responde. O final do livro – uma fantástica aparição pessoal de
Deus – parece o cenário perfeito para um monólogo esclarecedor. Deus,
porem, evita por completo o ponto central da discussão anterior. E as
várias teorias sobre a origem do sofrimento, todas agradáveis ao ouvido,
propostas pelos amigos de Jó são desfeitas por Deus, com um olhar
severo.
Este livro, relato espantoso de coisas ruins acontecendo a um homem
muito bom, não contém uma teoria compacta mostrando por que as
pessoas boas sofrem. Apesar disso, oferece algumas percepções rápidas
sobre o problema da dor. Meu próprio estudo levou–me às conclusões que
se seguem. Não respondem o problema da dor – nem mesmo Deus tentou
fazer isso. Mas esses princípios jogam luz sobre certos conceitos errôneos
tão comuns hoje quanto no tempo de Jó.
1. Os capítulos 1 e 2 mostram um fato importante de forma sutil: Deus
não causou diretamente os problemas de Jó. Permitiu que acontecessem,
mas Satanás foi o agente causador.
2. Em nenhum lugar do livro é sugerido que Deus não tenha poder ou
não seja bom. Algumas pessoas (até mesmo o rabino Kushner, em seu
livro muito conhecido Quando Coisas Ruins Acontecem com Pessoas Boas)
alegam que um Deus fraco não tem poder para evitar o sofrimento
humano. Outros, deístas, presumem que Ele dirige o mundo a distância,
sem envolvimento pessoal. Mas o livro de Jó não discute o poder de Deus,
só sua justiça. Em seu discurso final, em que resume as conclusões, Deus
apresenta ilustrações esplendidas da natureza para demonstrar seu poder.
3. Jó, decididamente, rejeita uma teoria: a de que o sofrimento sempre
vem em resultado ao pecado. A Bíblia confirma o princípio geral de "o
homem colhe o que semeia", até mesmo nesta vida (veja Salmos 1:3,
37:25). Mas as outras pessoas não têm qualquer direito de aplicar esse
princípio geral a uma pessoa em particular.
~ 17 ~
Os amigos de Jó foram persuasivos ao defender que ele merecia aquela
punição catastrófica. Quando Deus, porém, apresentou o veredicto final,
disse para eles:
Não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó. (42:7)
***
A ESCADA DA TRIBULAÇÃO
~ 21 ~
É uma idéia desconcertante pensar que Deus escolheu pessoas comuns
como seu canal preferido para revelar sua imagem – seu amor – ao
mundo.
E assim o mundo que Deus ama pode nunca conseguir vê–Lo, porque
nosso rosto impede. Há muito tempo sinto–me perturbado por um
comentário de Dorothy Sayers sobre as três maiores humilhações sofridas
por Deus. Para ela, a primeira humilhação foi a encarnação, quando
confinou–se em um corpo físico. A segunda foi a Cruz, quando sofreu a
ignomínia da morte por execução pública. A terceira é a Igreja.
Ao ler este comentário pela primeira vez, cenas da história vieram–me
à memória: as cruzadas, os massacres dos judeus, as guerras da religião,
a escravidão, a Ku–Klux–Klan. Todos estes movimentos alegavam ter a
aprovação de Cristo (houve até um navio negreiro batizado de O Bom
Navio Jesus). Mas a humilhação prossegue no século XX em lugares como
a Iugoslávia, a África do Sul, o Líbano e a Irlanda do Norte, onde alguns
dos piores conflitos do mundo envolvem cristãos. Ao olharmos para nós
mesmos, só é preciso examinar a minha vida para ver até que ponto Deus
se humilha para habitar em pessoas comuns.
É triste, mas o mundo julga o próprio Deus pelas ações dos que
carregam seu nome. No poema Before a Crucifix (Antes de um Crucifixo),
Charles Swinburne descreve as "bestas que se alimentam de homens" e
que vagueiam em torno da árvore da fé, impedindo que outros creiam:
Os discípulos dEle terão que parecer mais que estão salvos para que
eu possa crer no Salvador.
A Igreja é, na verdade, humilhação para Deus, fazendo, por causa
de sua hipocrisia, com que o mundo se afaste dEle.
***
~ 22 ~
Será que alguma mulher já foi atingida pelo sofrimento como Maria,
e não é verdade também que aquele a quem Deus abençoa, no
mesmo instante, Ele amaldiçoa?
Em sua obra fear anel Trembling (Temor e Tremor) ele medita sobre a
ansiedade, desespero e paradoxo que marcaram a vida de Maria.
É claro que a Bíblia aponta para Jesus como Aquele que dá mais
orgulho a Deus. Uma voz trovejou do céu:
"Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo."
Ele, o Servo Sofredor, certamente se encaixa no padrão descrito. Foi
Jesus, afinal, quem incorporou as duas outras grandes humilhações de
Deus.
O mesmo padrão de fé sob fogo aparece em Hebreus 11, um capítulo
que alguns chamam de "A Galeria dos Heróis da Fé". Nele o autor registra,
em detalhes terríveis, as lutas que podem sobrevir às pessoas fiéis,
concluindo: "Homens dos quais o mundo não era digno." Hebreus
acrescenta ainda, sobre este grupo impressionante: "Por isso, Deus não se
envergonha deles, de ser chamado o seu Deus." Para mim, esta frase
inverte o sentido da afirmativa de Dorothy Sayers sobre as humilhações
de Deus: sim, a Igreja já foi causa de vergonha para Ele, mas também Lhe
trouxe momentos de orgulho, e os santos sofredores de Hebreus 11
mostram isso.
Os santos atingem esta condição porque se apegam, teimosamente, à
convicção de que Deus merece nossa confiança, mesmo quando parece
que o mundo está desabando. Os santos de Hebreus 11 colocaram suas
esperanças em um país melhor, celestial, e por este motivo Deus não se
envergonha de ser chamado de Deus deles. Paradoxalmente, a fé se
desenvolve mais quando há incerteza e confusão: se duvida disso, leia a
história da vida das pessoas que aparecem em Hebreus 11. Os favoritos
de Deus, eles em especial, não estão imunes a períodos de testes. Como
disse Paul Tournier: "Onde não há mais oportunidade para duvidar também
não há mais oportunidade para crer."
Ao terminar meu estudo sobre os favoritos de Deus, um fato
sobressaiu–se a todos os outros. Aquelas pessoas dificilmente se parecem
com os santos saudáveis, prósperos e mimados que vejo apresentados nos
programas religiosos na televisão. O contraste é chocante e me deixou
confuso por algum tempo. Talvez seja esta a diferença: os programas na
televisão precisam preocupar–se em agradar a uma audiência de milhares
de pessoas, às vezes milhões. Os favoritos de Deus se dedicam a agradar
a uma audiência composta por Uma só Pessoa.
~ 23 ~
O SEGREDO ESPIRITUAL DO REI DAVI
A ti, Força minha, cantarei louvores, porque Deus é meu alto refúgio,
é o Deus da minha misericórdia.
Mais uma vez parecia que Deus agira para salvar a vida de Davi. Mas,
em I Samuel 19, o texto que corresponde ao Salmo, li uma cena de
caçada: Davi sai furtivamente por uma janela enquanto sua esposa
engana os perseguidores cobrindo uma estátua com pêlos de cabra. Mais
uma vez o salmo de Davi concede a Deus todo o crédito pelo que parecia
ser engenhosidade humana.
O Salmo 57 tem outro tom, de fraqueza e temor. Mostra um fugitivo
clamando por misericórdia. Pensei que a fé de Davi vacilava quando ele
~ 24 ~
escreveu aquelas palavras. Mas, ao olhar o registro histórico em I Samuel
24, encontrei uma das demonstrações de coragem desafiadora mais
extraordinárias de toda a história.
O Salmo 18 apresenta um resumo de toda a carreira militar de Davi.
Escrito quando, afinal, ele era rei absoluto, recorda com detalhes vívidos
os muitos milagres de livramento que Deus fez. Lendo apenas este salmo,
sem conhecer o contexto histórico, a pessoa acredita que a vida de Davi
foi especialmente charmosa e protegida. Ali ele não fala nada dos anos de
fuga, das batalhas que duravam a noite toda, das cenas de perseguição e
dos planos engenhosos de fuga que preenchem as páginas de I e II
Samuel.
Em resumo, se lemos os Salmos atribuídos a Davi e, a partir deles,
tentamos imaginar sua vida, fracassamos completamente. Pode–se pensar
em um eremita piedoso, alienado deste mundo, ou em uma alma tímida e
neurótica, favorecida por Deus, mas não se pensará em um gigante de
força e coragem. Como explicar a disparidade entre os dois registros
bíblicos, da jornada interior e da exterior de Davi?
***
2
NO MUNDO
•Por que existem tantos alcoólicos em nossos dias? Por que eles
simplesmente não vêm até a igreja em vez de se isolarem em seus
grupos fechados? Por que os pecadores se sentem tanta atração por
Jesus e tanta repulsa pela igreja?
•Por que as pessoas com Aids quase nunca vão à igreja?
~ 26 ~
•Por que praticamente todas as situações de disciplina na igreja
envolvem pecados sexuais? Por que ouço tão poucos sermões sobre os
pecados do orgulho, cobiça, preguiça e glutonaria? Será que os
cristãos apoiariam um movimento nacional semelhante à Lei Seca
contra a grande ameaça à saúde, que é a obesidade?
•Por que tantos hospitais têm nomes "cristãos"? E por que funcionam
como qualquer outro hospital? Como seria um hospital
verdadeiramente cristão?
•De onde veio o ódio racial? E as raças, de onde vieram? Por que Deus
não fez todas as pessoas semelhantes, como são as margaridas ou as
moléculas de hidrogênio?
•Deus prefere os Protestantes ou os Católicos na Irlanda?
•De onde vêm os ditadores? Por que Deus permite que inflijam tanto
mal ao mundo? Por que Deus se calou durante o Holocausto?
A IGREJA DA MEIA–NOITE
Nenhum de nós é capaz de prosseguir só, e não foi para isto que
Jesus veio? Ainda assim, a maioria das pessoas na igreja apresenta
um ar de satisfação consigo mesmas, com piedade ou
superioridade. Não sinto que, conscientemente, elas se apóiem em
Deus ou umas nas outras. Parece que a vida delas está em ordem.
Um alcoólico se sente inferior e incompleto na igreja.
~ 30 ~
de pessoas contraírem a Aids não era o fato de pecarem e merecerem ser
castigadas.
A crise da Aids mistura–se com um anseio misterioso entre os seres
humanos: o desejo profundo de que o sofrimento fosse atrelado ao
comportamento. Há um livro em minha estante, Theories of Illness
(Teorias da Doença), relatando uma pesquisa feita em 139 grupos tribais
de todo o mundo. Apenas quatro deles não pensam na doença como sinal
de desaprovação de Deus (ou dos deuses). O autor afirma que os poucos
grupos que duvidavam dessa doutrina provavelmente mudaram sua
crença após contato prolongado com a civilização moderna.
Praticamente só dentre todas as civilizações da história, a nossa,
moderna, secular, questiona se Deus age diretamente em acontecimentos
humanos como pragas e catástrofes naturais. Estamos confusos. Será que
Deus escolhe uma cidade do sul dos Estados Unidos para ser arrasada por
um tornado como alerta do julgamento final? Será que impede a chuva
decair na África como sinal de sua desaprovação? Ninguém sabe a
resposta com certeza. Mas a Aids, aí a história é diferente.
Indiscutivelmente, a probabilidade de transmissão da Aids é maior entre
os que praticam o sexo promíscuo ou compartilham agulhas sujas.
Para alguns cristãos, esta doença parece atender, por fim, ao anseio de
uma ligação nítida entre comportamento e sofrimento como punição. De
modo geral, a conexão já foi estabelecida, da mesma forma que fumar
aumenta o risco de câncer, obesidade favorece o aparecimento de
problemas do coração e a promiscuidade heterossexual amplia a
possibilidade de doenças venéreas. As conseqüências naturais desses
comportamentos envolvem, em muitos casos, sofrimento físico. Os
cientistas reconhecem este fato e advertem todos dos perigos. Mas a
pergunta oculta permanece: será que Deus manda a Aids como uma
punição específica, destinada a um alvo por Ele escolhido?
Outros cristãos não tem muita certeza. Acreditam em que é muito
perigoso tomar o lugar de Deus, e até mesmo interpretar a história em
nome dEle. Assim como os amigos de Jó, é muito fácil ser interpretado
como mal–humorado ou presunçoso em vez de profético. Deus disse que a
vingança Lhe pertence e sempre que nós, mortais, tentamos apropriar–nos
dela, pisamos em terreno perigoso. Julgamento sem amor suscita inimigos
e não convertidos. Entre os homossexuais que moram no mesmo bairro
que eu as afirmações dos cristãos sobre a crise da Aids fez muito pouco no
sentido de levá–los à reconciliação com Deus.
Até mesmo a ligação aparente entre causa e efeito quanto à Aids
levanta perguntas de respostas complicadas. Que dizer de um "inocente"
que adquire o vírus, como os bebês filhos de mães infectadas e aqueles
que recebem transfusão de sangue? São amostras do julgamento de
Deus? E se, de repente, alguém encontrar a cura, será que isto significará
que a punição de Deus acabou? Os teólogos europeus debateram durante
quatro séculos sobre qual seria a mensagem mandada por Deus durante a
Grande Praga; mas bastou um pouco de veneno de rato para pôr um fim a
todas aquelas questões angustiadas.
Ao refletir sobre estas duas pragas, o flagelo da peste bubônica que
matou um terço da humanidade e o flagelo moderno, acompanhado de
histeria semelhante, pego–me recordando um incidente da vida de Jesus,
~ 31 ~
registrado em Lucas 13:1–5. Algumas pessoas lhe perguntaram sobre uma
tragédia daqueles dias, e eis como Ele respondeu:
Cuidais vós que esses galileus foram mais pecadores do que todos
os galileus, por terem padecido tais coisas? Não, vos digo; antes, se
não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis. E aqueles
dezoito, sobre os quais caiu a torre de Siloé e os matou, cuidais que
foram mais culpados do que todos quantos homens habitam em
Jerusalém? Não, vos digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de
igual modo perecereis.
UM BOM COMEÇO
~ 33 ~
obrigados a complementar seus estudos neste hospital, usando apenas os
recursos médicos presentes nas vilas remotas da Índia.
Além disto, a escola realiza excursões regulares a regiões ainda mais
remotas. Em determinado dia do mês, rodos os doentes ou feridos de um
lugarejo se reúnem sob uma certa árvore. Uma van da escola chega, e os
jovens médicos e atendentes descem, armam mesas de exame e
começam uma rotina de injeções, colocação de ossos no lugar e pequenas
cirurgias. Desta forma, o treinamento na escola de medicina abrange três
níveis de cuidados: atendimento sofisticado no hospital, trabalho no
hospital mais simples, de ambiente rural e clínicas móveis, com
atendimento básico. Hoje, não apenas centenas, mas muitos milhares de
pacientes recebem cuidados médicos todos os meses.
A Índia não pode ter a esperança de fornecer cuidados médicos básicos
para todos seus cidadãos. Apenas 20% da população possuem instalação
de esgotos e água potável. Basta visitar a cidade santa de Varanasi, no Rio
Ganges, para se perceber contra o que os profissionais de saúde tem que
lutar. Carcaças de cachorros e de búfalos flutuam pelo rio, algumas vezes
servindo de balsa para os urubus, que se alimentam delas. As vacas
sagradas andam à vontade na água, defecando e urinando. E ainda assim
milhares de peregrinos vão até lá todos os dias e tomam seus banhos
rituais nas escadarias sagradas: mergulham sete vezes no rio, escovam os
cientes e depois, com muita solenidade, engolem a água santa.
Será necessária uma completa revolução apenas para mudar a
percepção da população local sobre a saúde, quanto mais para criar uma
superestrutura para lhe oferecer tratamento. Mas há esperança, grande
parte da qual vem no nome de Cristo. Uma estatística reveladora mostra o
fruto de dois séculos de trabalho missionário fiel: dentre os quase 1 bilhão
de habitantes da Índia, menos de 3% se dizem cristãos. Ainda assim, os
cristãos são responsáveis por mais de 18% do atendimento de saúde do
país. Uma população quase igual à metade da população dos Estados
Unidos, formada de hindus, muçulmanos, siques, jainistas, parses e
comunistas recebe atendimento de pessoas treinadas em lugares como
Vellore.
Apesar dos erros cometidos pelos missionários, em face de um
paternalismo presunçoso, os cristãos deram à Índia um legado inspirado
de educação e tratamento médico. Se um camponês daquele país ouvir a
palavra "cristão" – e talvez ele jamais tenha ouvido falar de Jesus Cristo –
a primeira imagem a aparecer em sua mente será, muito provavelmente,
a de um hospital, ou de uma van cheia de médicos que aparece no lugar
onde vive uma vez por mês para fornecer atendimento pessoal, gratuito,
no nome de Cristo. Certamente não é o Evangelho completo, mas já é um
bom começo.
~ 36 ~
Uma coisa, porém, intrigou–me: por que quando um ex–Presidente
chega à cidade para construir casas para os pobres centenas de pessoas
pagam US$ 50 para ouvi–lo falar sobre isso em um banquete elegante,
mas só umas poucas pegam um martelo e trabalham junto com ele?
Certa vez, passei uma noite em claro, deitado dentro de uma barraca
na Somália. No auge de uma das muitas crises na África, eu visitava um
dos campos de refugiados para escrever um artigo. Barracas e abrigos
improvisados espalhavam–se por milhares de metros quadrados, em todas
as direções à minha volta. Avistavam–se cabanas até o horizonte,
parecendo pequenas elevações em fila. Aquele campo abrigava mais de
sessenta mil refugiados. A noite estava quente, e eu queria caminhar ao ar
livre, olhando para cima, porque a Via–Láctea brilhava maravilhosamente
no claro céu equatorial. Mas os funcionários que trabalhavam ali me
haviam avisado para não fazer caminhadas à noite, por causa dos
escorpiões.
Contaram–me história horrorosas de escorpiões que se escondiam,
maliciosamente, nas toalhas e nas roupas e, especialmente, nos sapatos.
As vítimas de suas picadas enfrentam uma dor sem igual – uma
enfermeira me disse que seria como a dor do parto multiplicada doze
vezes – durante pelo menos duas semanas. Há bem pouco tempo, um
pequeno escorpião caíra do teto de uma barraca bem no rosto de um
médico adormecido. Até o dia em que me contaram a história ele ainda
recebia injeções na bochecha, de quatro em quatro horas, numa tentativa
de abrandar a dor.
Deitado ali, mas sem conseguir dormir, ouvi um som indistinto, sinistro,
algo como o lamento penetrante de uma muçulmana frente à morte de
um ente querido, embora o tom fosse mais animal do que humano. Mais
tarde me disseram que aquele era o som de um nômade somali picado por
um escorpião. O ar do deserto propagava o som por distâncias muito
grandes, de forma que, a cada hora que passava, o grito aumentava de
volume. Ao raiar do dia, o nômade chegou ao campo de refugiados em
busca de tratamento.
Deixei o campo alguns dias depois e, enquanto meu caminhão partia,
pensamentos deprimentes me acompanharam. O médico responsável pelo
campo me dissera que um em cada seis refugiados provavelmente
morreria, de desnutrição ou doença, no próximo mês. Mas, o que me
atingiu com uma força terrível foi que, durante minha estada ali, eu
despendi muito mais energia e tempo me preocupando com aqueles
escorpiões danados do que com aqueles aproximadamente dez mil
refugiados fadados a morrer.
***
* * *
Era uma vez alguns oficiais, dos mais graduados no governo dos
Estados Unidos. Assentaram–se em torno de uma mesa para discutir
maneiras de libertar cidadãos americanos mantidos como reféns no
Oriente Médio. Dentre as várias tentativas, uma frutificou, um plano
envolvendo o envio de milhões de dólares de equipamentos militares para
o Irã.
Quando a notícia se espalhou, os jornais se dedicaram a contar as
histórias sobre troca de armas por reféns. Os editoriais expressavam
ultraje porque os Estados Unidos barganharam com uma nação hostil, que
apoia o terrorismo. Congressistas censuraram o fato de lucros com a
venda de armas serem desviados para sustentar uma guerra suspensa na
América Central. Membros de comissões e investigadores especiais
esquadrinharam os documentos de remessa e registros telefônicos para
determinar quem sabia do quê, e quando. As leis foram violadas? A Casa
Branca abalou o equilíbrio constitucional do poder? Estas questões foram
motivo de debates acalorados na televisão, e também foram elas que
enfraqueceram seriamente a administração de Reagan nos dois últimos
anos de seu mandato.
É estranho, mas muito pouca gente expressou o que me parece ser a
questão mais básica de todas: a questão moral fundamental por trás da
permuta. Resumindo: os Estados Unidos ofereceram sessenta milhões de
dólares em armas — equipamentos planejados com perfeição para causar
a morte – visando a salvar a vida dos reféns. Ao olhar matematicamente,
trocamos a morte de muitos e muitos iraquianos (os prováveis alvos dos
mísseis que, na época, eram nossos aliados) pela vida de seis americanos.
Oliver North tentou calcular os números envolvidos. Anotou em um
memorando remetido a seu chefe, John Poindexter:
"1 707 e/300 TOWs = 1 CIDEUA."
~ 38 ~
Mais tarde ele explicou o que aquilo significava:
"Um Boeing 707 carregado com 300 mísseis TOW antitanque é igual a
um cidadão dos Estados Unidos da América."
Pouco tempo depois de uma das entregas de armas ao Irã. um míssil
iraniano caiu numa rua em Bagdá, no Iraque, e matou quarenta e oito
civis. Será que aquele míssil fora obtido na troca? Ao todo, dois mil mísseis
antitanque foram remetidos para o Irã. Se apenas 10% deles conseguirem
acertar o alvo, atingindo 200 tanques de guerra iraquianos e matando dois
soldados em cada um, a conta é óbvia: 400 iraquianos mortos em troca de
seis (ou três, como acabou sendo) americanos vivos.
Não questiono o direito de nosso país de defender, através da força,
seus cidadãos. Mas, talvez lenhamos deixado de aprender uma lição em
meio a todo o estardalhaço, e ainda não aprendemos, porque continuamos
despachando, animadamente, bilhões de dólares em armas para outros
países todos os anos. E talvez minha experiência na Somália e a de Jonas
na Assíria, tão radicalmente diferentes das circunstâncias que cercaram o
problema com o Irã, apontem para a mesma questão moral.
Será que meu conforto físico é mais significativo do que a
sobrevivência de dez mil refugiados? O conforto de um profeta hebreu é
mais importante do que a vida de 120 mil crianças assírias? E quantos
estrangeiros mortos vale a vida de seis americanos?
Uma coincidência geográfica curiosa: as ruínas da antiga cidade assíria
de Nínive se encontram na região que hoje é o Iraque.
PERDÃO E RECONCILIAÇÃO
~ 40 ~
De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo, como se Deus
por nós rogasse. Rogamo–vos, pois, da parte de Cristo, que vos
reconcilieis com Deus. (II Coríntios 5:20)
~ 41 ~
Eu costumava encontrar–me com certa regularidade com um pastor
bondoso e sábio. Muitas vezes os momentos que passávamos juntos eram
tranqüilos, sem maiores acontecimentos. Mas uma tarde ficará, para
sempre, marcada a ferro em minha memória. Era um dia de tempestade
em Chicago, e assentei–me, encolhido de frio apesar de meu suéter de lã,
bem perto de um aquecedor que assobiava. Naquele dia, fiz as perguntas.
Havia lido há pouco tempo, em um artigo no boletim da igreja, que o
pastor participara da libertação dos prisioneiros do campo de
concentração em Dachau, ao final da II Guerra Mundial. Eu queria saber
sobre a experiência dele.
Ele olhou para o outro lado, e parecia focar um espaço branco na
parede. Manteve–se em silêncio durante, pelo menos, 1 minuto. Seus
olhos se moviam rapidamente, como se reconstruísse a cena de quarenta
anos antes. Finalmente, falou e, durante os vinte minutos seguintes,
recordou as visões, sons e cheiros – estes em especial – que receberam
sua unidade ao marcharem através dos portões de Dachau, que ficava
bem perto de Munique. Durante várias semanas os soldados ouviram
rumores terríveis sobre os campos de concentração, mas, acostumados à
propaganda de guerra, não deram muita confiança às conversas. Nada os
preparara, e não havia nada que pudesse tê–los preparado, para o que
encontraram naquele lugar.
~ 43 ~
Na verdade, vejo uma ligação. Sem ser melodramático, algumas
vezes penso no que poderia ter acontecido se uma pessoa treinada
e sensível fizesse amizade com Adolf Hitler enquanto ele ainda era
jovem e impressionável, enquanto vagava pelas ruas de Viena, em
seu estado de confusão. A palavra poderia ter evitado todo aquele
derramamento de sangue: evitado Dachau. Nunca sei quem se
assentará nesta cadeira onde você está agora. E mesmo se terminar
desperdiçando minha vida com zés–ninguém ... aprendi no vagão de
carga que não existem zés–ninguém. Os corpos que encontramos
com o coração ainda batendo eram o mais próximo que se pode
chegar de ninguém: meros esqueletos envoltos em pele de papel.
Mas eu faria qualquer coisa para manter aquelas pobres pessoas
destruídas vivas. Nossos médicos passaram a noite acordados
tentando salvá–las; alguns soldados de nosso grupo perderam a vida
tentando libertá–las. Não existem ninguéns. Aprendi naquele dia em
Dachau o que significa a imagem de Deus em um ser humano.
3
OUTRO MUNDO
~ 44 ~
espetacular quanto a de Copérnico, embora em direções novas, chocantes
para muitos.
Para começar, não apenas a humanidade, mas cada indivíduo, homem
ou mulher, recuperou, através da física moderna, sua posição de figura
central na história do Universo. Porque, se extrairmos apenas um
ensinamento da física moderna, será este: o indivíduo consciente é um
componente essencial de, bem... de tudo. Na física de Newton, os
indivíduos não ocupam lugar especial no Universo, exceto como
participantes ocasionais no fenômeno estabelecido de causa e efeito. Mas
alguns cientistas do século XX defendem que a própria realidade da
ocorrência de um evento depende da existência de um observador.
Como disse Bernard D'Espagnat na revista Scientific American:
Não sei dizer isco delicadamente, de forma que vou falar: estou um
pouco preocupado com a atitude demonstrada na Bíblia para com a
matemática. Frederick Buechner vai ainda além e diz que a atitude é
atroz. Sei que este tipo de afirmação irrita algumas pessoas, mas quanto
mais leio mais entendo o que ele quer dizer. Pense nas evidências você
mesmo: um exemplo de cada um dos Evangelhos, para ser
matematicamente preciso.
Mateus 20. O capítulo começa com uma parábola sobre a qual,
compreensivelmente, quase não ouço sermões, porque contradiz todas as
leis adotadas pela sociedade relacionadas à justiça, motivação humana e
compensação justa. Jesus conta, em poucas palavras, sobre um fazendeiro
que contrata algumas pessoas para trabalhar em seus campos. Uns
começam logo cedo. No meio da manhã, chegam outros. Na hora do
almoço, ele contrata novos Trabalhadores, ainda outros no meio da tarde e
os últimos uma hora antes do término do expediente. Todos estão
satisfeitos com o emprego, até à hora do pagamento do salário, quando os
dedicados que trabalharam o dia todo sob o sol escaldante percebem que
os folgados que começaram há pouco mais de 1 hora recebem
exatamente a mesma quantia! Qualquer pessoa que já trabalhou no
campo um dia inteiro pode entender, facilmente, por que os primeiros a
"pegar no batente" se sentiram ultrajados. A decisão do patrão desafia as
regras de economia.
Entendo que Jesus contou esta parábola não visando a dar uma aula
sobre benefícios trabalhistas, e sim mostrar a atitude de Deus para
conosco. Mas a matemática no reino espiritual parece ser estranha como a
que foi usada nesta situação. Os últimos a começar a trabalhar me
lembram o ladrão na cruz: sem nada de bom, ele mal consegue "sedar
bem" no último instante, e, ainda assim, aparentemente, recebe a mesma
recompensa de uma pessoa que passou sua vida em devoção e piedade.
Histórias de perdão no último instante têm um toque atraente, é claro,
mas dificilmente motivarão uma pessoa a levar uma vida cristã decente.
Como você se sentiria, sendo criado em uma família correta, freqüentando
escolas cristãs, amadurecendo, estabelecendo uma família exemplar em
sua comunidade, tudo isto para descobrir que um atrasadinho se
arrependeu em seu leito de morte e chegou na sua frente no juízo Final?
~ 47 ~
Marcos 12. Aqui Jesus lida com a economia não através de uma
parábola, mas de um comentário direto sobre um ato que hoje a Receita
Federal classifica de "Contribuição para Entidades Beneficentes". Uma
viúva coloca duas moedas como oferta no Templo, em quantia inferior a 1
centavo. Jesus, que acabara de observar alguns ricos fazerem
investimentos consideráveis na causa da caridade, aparece com a
seguinte afirmação:
"Em verdade vos digo que esta viúva pobre depositou no gazofilácio
mais do que o fizeram todos os ofertantes."
Espero que Ele tenha falado baixo! Admirar os motivos que levaram a
viúva a doar suas moedas é uma coisa, mas aparecer com uma afirmação
matemática desconcertante – e potencialmente ofensiva – como esta é
outra totalmente diferente!
Talvez possamos explicar os comentários de Jesus com base no
desconhecimento, naquela época, de algumas regras importantes para o
levantamento de recursos que foram descobertas posteriormente. Por
certo levou tempo para que a Igreja do Novo Testamento conseguisse se
libertar da prática legalista do dízimo e ajustasse às ofertas voluntárias
suas exigências diplomáticas (Tiago 2, por exemplo, mostra uma
desconsideração chocante pelos princípios de levantamento de recursos).
E em nossa época, mais do que antes, vemos inovações importantes,
como cartas personalizadas, prêmios, clubes de contribuintes e banquetes
beneficentes (nos quais a viúva, sem qualquer sombra de dúvida, sentir–
se–ia deslocada). Certamente, o sentimentalismo suscitado pela fidelidade
de uma viúva não deve interferir na "construção de relacionamentos" e na
"manutenção dos doadores", atenção que dedicamos aos que doam
quantias substanciais: agir ao contrário seria, na verdade, ir
completamente contra a matemática.
Lucas 15. Todos conhecemos esta história, do nobre pastor que deixou
seu rebanho de noventa e nove ovelhas e lançou–se na escuridão para
procurar uma ovelhinha perdida. Um sermão bonito, mas reflita um pouco
sobre a matemática da história. Jesus diz que o pastor deixou as noventa e
nove "no deserto", donde se conclui que ficaram vulneráveis a ladrões,
lobos ou a um desejo incontrolável de disparar atrás dele. Como se
sentiria o pastor se voltasse com a ovelhinha perdida jogada nos ombros e
descobrisse que outras vinte e quatro haviam desaparecido?
Felizmente, a ciência do crescimento da Igreja instrui–nos hoje a
investir nossos recursos nas atividades que beneficiam o maior número de
pessoas. Grupos homogêneos funcionam muito melhor, de forma que ir
atrás de desviados sociais não é uma prática adequada a bons mordomos.
Obviamente, a ovelha que saiu do rebanho não se ajustava dentro dele, ou
talvez quisesse aproveitar sua própria liberdade – e esta dificilmente seria
uma boa razão para colocar todo o rebanho em perigo.
João 12. Uma das melhores amigas de Jesus, Maria (que já demonstrara
antes padrões duvidosos de utilização do tempo), ganha um lugar na
história em face da sua falta de habilidade econômica. Ela toma meio litro
– 1 ano de salário! – de perfume e o entorna nos pés de Jesus. Só de
pensar neste ato bizarro minha pressão sobe. Será que 50ml não teriam o
mesmo efeito? E Jesus queria mesmo que alguém espalhasse perfume em
seus pés? Até Judas, ainda que com motivos escusos, viu o desperdício
~ 48 ~
completo daquele ato: pense em todos os pobres que poderiam ser
ajudados com o tesouro que escorria pelo chão sujo.
A visão presente no Novo Testamento quanto à matemática me recorda
uma parábola de Kierkegaard (outro matemático questionável): um
vândalo invade uma loja de departamentos durante a noite e, em vez de
roubar, troca todas as etiquetas de preço. No dia seguinte, os funcionários
– e os clientes muito satisfeitos – encontram situações estranhas, como
colares de diamante por um dólar e bijuterias custando milhares de
dólares. Kierkegaard afirma que o Evangelho é assim: altera todas as
nossas convicções relacionadas a preço e valor.
~ 49 ~
anestesiando, assim, o desejo delas de satisfação material no presente1. A
crítica dele parece exótica hoje. Ninguém promete mais um presente no
Céu. Organizações religiosas, como o Concílio Mundial de Igrejas e as
agências de auxílio evangélicas, encorajam–nos a trazer a vida boa para
aqui, para a Terra.
2. O paganismo que penetra sorrateiramente em nossas idéias nos
convida a aceitar a morte como o clímax da vida na Terra e não como uma
transição violenta para uma vida que prossegue. Elisabeth Kü–bler–Ross
(que acredita na vida após a morte) definiu os cinco estágios da morte,
sugerindo, implicitamente, que a "Aceitação" é o estágio mais saudável e
apropriado. Assisti, em grupos de terapia em alguns hospitais, pacientes à
morte se esforçarem, desesperadamente, para atingir esse estado de
aceitação tranqüila, rejeitando, assim, o impulso do instinto e da
consciência, que vêem a morte como um inimigo. É estranho, mas
ninguém jamais conversou sobre o Céu naqueles grupos. Era um pouco
embaraçoso, parecia covardia. Que a inversão de valores nos levou a
encarar a crença na aniquilação como coragem e a fazer pouco caso da
esperança de eternidade repleta de felicidade?
3. As imagens bíblicas sobre o Céu são antigas e perderam o apelo que
continham. Muros de esmeralda, safira e jaspe, ruas de ouro e portões de
pérolas podem ter inspirado os camponeses do Oriente Médio, mas não
significam muito em nosso mundo tecnológico. E os líderes religiosos e os
artistas fracassaram em apresentar novas imagens, que cumprissem sua
função. Como será o Céu? Um lugar onde tudo que se tem a fazer é
passear o dia todo, com uma harpa, cantando, para todo o sempre? Esta
imagem não atrai a maioria de nós. Parece–me que os comunicadores
cristãos têm a clara responsabilidade de projetar uma nova compreensão
do Céu na consciência moderna. Se falharmos, perderemos uma das
melhores características de nossa fé.
O Céu oferece a promessa de um tempo, muito maior e mais
substancial do que este da Terra, de saúde, satisfação, prazer e paz para
aqueles que estão presos em dor, lares partidos, caos econômico, ódio,
medo e violência. Se não acreditamos nisto não há muitas razões, como
afirma o Apóstolo Paulo em I Coríntios 15, para sermos cristãos. E, se
crermos verdadeiramente, a fé mudará nossa vida. Digo isto porque já
presenciei os resultados eletrizantes que podem acontecer quando a idéia
do Céu se torna real.
Minha esposa, Janet, trabalhou com idosos em um abrigo em Chicago,
próximo a um projeto habitacional, numa região considerada uma das
mais pobres dos Estados Unidos. Metade dos clientes dela era branca,
metade era negros. Todos atravessaram tempos difíceis: duas guerras
mundiais, a Grande Depressão, revoltas sociais. E todos, por volta dos
setenta, oitenta anos, viviam conscientes da proximidade da morte. Mas
Janet reparou na diferença notável entre os brancos e os negros frente à
morte. É claro que havia exceções em ambos grupos, mas a tendência era
de os brancos se tornarem cada vez mais amedrontados e tensos.
Reclamavam da vida, da família e da saúde decadente. Os negros, ao
1
Algumas vezes parei para pensar em como Marx. sendo judeu, encaixava sua teoria com o conhecimento do
Velho Testamento. Deus revelou verdades grandes e elaboradas sobre a natureza de uma sociedade justa,
chegando até a organizar uma nação apenas para dar vida a esses princípios. Ainda assim, o Velho Testamento
contém poucos lampejos da vida após a morte. Chega quase a parecer que Deus esperou que alguns milhares
de anos da história humana passassem sem falar de nossas recompensas eternas para evitar distorções como
"um presente no Céu", que se constituem em abordagens inexatas da justiça.
~ 50 ~
contrário, conservavam o bom humor e o espírito de triunfo, embora a
maioria tivesse mais razões aparentes de amargura e desespero. (A maior
parte viveu no Sul apenas uma geração após a libertação dos escravos, e
sofreu, a vida toda, em face da opressão econômica e da injustiça. Já eram
adultos quando a Lei dos Direitos Civis entrou em vigor.)
Que causou essa diferença de perspectiva? Janet concluiu que a
resposta é a esperança, que pode ser traçada diretamente à crença firme
dos negros no Céu. As músicas que eles cantavam afirmavam que este
mundo não era o lugar deles, que estava aqui apenas de passagem. Estas
letras e outras semelhantes resultaram de um período trágico na história,
quando tudo neste mundo parecia deprimente. Mas, de alguma forma, as
igrejas conseguiram instilar neles uma crença viva em um lar além deste
aqui. Se quiser ouvir algumas imagens novas e mais relevantes sobre o
Céu, vá a alguns funerais de negros norte–americanos. Com sua
eloqüência característica, os pastores pintam em palavras uma vida tão
serena e sensível que todos na congregação começam a desejar ir para lá.
É claro que os enlutados sofrem, mas na perspectiva correta: sentem a dor
de uma interrupção, de um obstáculo temporário em uma batalha cujo
final já foi determinado.
De alguma forma, estes santos esquecidos pela sociedade aprenderam
a antegozar e aproveitar a presença de Deus apesar das dificuldades que
enfrentam neste mundo. Ao chegarmos ao Céu, talvez haja muita surpresa
ao verificar o que significa aproveitar a presença de Deus. Para outros,
como estes negros idosos da favela de Chicago, toda a alegria será
semelhante à saudação que se recebe ao volta: ao lar. Retorno há muito
esperado. A chegada deles não será parecida com uma visita a um local
desconhecido. Quem sabe talvez, eles evitem algumas centenas de anos
de transição embaraçosa?!
2
Erehuwon é a palavra Nowhere (lugar nenhum), escrita ao contrário. (N. da T.)
~ 51 ~
1. Os aciremanos valorizam a juventude acima de qualquer outra coisa.
Já que para eles não existe nada além da vida na Terra, a juventude
representa esperança. Não têm um futuro melhor pelo qual ansiar. Como
resultado, tudo que preservar a ilusão da juventude é bem aceito. O
esporte é uma obsessão nacional. As capas das revistas apresentam
rostos sem rugas e corpos lindos. Os livros e as fitas de vídeo mais
vendidos apresentam mulheres atraentes, de aproximadamente 40 anos,
demonstrando exercícios que, seguidos fielmente, farão com que a pessoa
pareça dez anos mais jovem.
2.Naturalmente, o povo de Acirema não valoriza os idosos, porque eles
se constituem numa lembrança desagradável do final da vida. Ao
contrário dos jovens, eles jamais podem representar a esperança.
Assim, a indústria da saúde em Acirema promove cremes para pele,
solução para careca, cirurgia plástica e muitos outros meios elaborados
de mascarar os efeitos do envelhecimento, o prelúdio da morte. Em
regiões especialmente insensíveis, os aciremanos chegam a confinar os
idosos em abrigos, isolando–os da população em geral.
3.Em Acirema valoriza–se mais a "imagem" do que a "substância".
Práticas como dietas, exercícios e construção do corpo, por exemplo,
atingiram o status de ritos pagãos de adoração. Um corpo bem
construído demonstra visivelmente as conquistas neste mundo,
enquanto que qualidades interiores nebulosas – compaixão, abnegação
e humildade – merecem poucos elogios. Como efeito colateral
deprimente, uma pessoa com deficiências, ou desfigurada, tem grande
dificuldade para conseguir competir, apesar das qualidades de seu
caráter.
4.A religião de Acirema focaliza exclusivamente como perambular aqui
e agora, porque não existe qualquer sistema de recompensa após a
morte. Os que ainda acreditam em uma deidade buscam a aprovação
de Deus em termos de boa saúde e prosperidade na Terra. Houve um
tempo em que os pastores perseguiram o que chamavam de
"evangelismo", mas hoje devotam a maior parte de sua energia a
aumentar o bem–estar de seus concidadãos.
5.Recentemente, os crimes tornaram–se mais violentos e bizarros. Em
outras cidades primitivas os cidadãos crescem com um vago temor de
um julgamento eterno pendendo sobre eles, mas os aciremanos não
impõem esses limites a seu comportamento maligno.
6.Gastam bilhões de dólares para manter corpos idosos presos a
sistemas de prolongamento da vida, enquanto que, ao mesmo tempo,
permitem, e até encorajam, o aborto. Essa atitude não é tão paradoxal
como parece, porque os aciremanos acreditam em que a vida humana
começa no nascimento e termina na morte.
7.Até bem recentemente os psicólogos de Acirema precisavam de
tratar das reações atávicas de seus pacientes: medo e raiva Frente à
morte. Novas técnicas, porém, trouxeram promessas na superação
desses instintos primitivos. Hoje, as pessoas aprendem a ver a
"aceitação" como a reação mais madura ao estado perfeitamente
natural da morte. Os estudiosos obtiveram sucesso na desvalorização
de atitudes ultrapassadas sobre morrer de maneira "nobre". Para os
aciremanos, a morte ideal acontece em paz, durante o sono.
~ 52 ~
8.Os cientistas em Acirema ainda trabalham para eliminar o problema
da morte. Enquanto isto, a maior parte das mortes acontece na
presença de profissionais treinados, em uma área isolada. Para diminuir
o choque, a palavra "morte", tão deselegante, foi substituída por
eufemismos como "passamento" e "descanso". E todas as cerimônias
que acompanham a morte demonstram sua separação da vida. Os
corpos são preservados quimicamente e colocados em recipientes
herméticos, à prova de vazamentos.
***
PERTURBANDO O UNIVERSO
Nascimento
No máximo um pequeno grupo de pastores testemunhou o drama da
noite do nascimento. Pense nisto: A Encarnação, que dividiu a história em
duas partes (fato que até nosso calendário reconhece, ainda que de má
vontade), teve mais testemunhas animais do que humanas.
Houve, na verdade, um murmúrio de uma "boa catástrofe", uma
explosão súbita de grandiosidade. O Universo não poderia permitir que a
visita chegasse sem ser anunciada e, por um instante, o céu se iluminou
em face da presença dos an;os. Todas as equipes de efeitos especiais de
Hollywood deter–se–iam, fascinadas, a contemplar a cena. Ainda assim,
quem a viu? Camponeses analfabetos que não deixaram nem ao menos o
registro de seu nome.
Morte
~ 54 ~
O Calvário foi menos espetacular aos olhos. Ali, o milagre não estava
no que aconteceu, mas no que deixou de acontecer. O ritual horroroso de
violência prosseguiu sem qualquer interferência. Os anjos permaneceram
afastados naquele d;a, detidos pelo próprio Filho de Deus. Até mesmo o
Pai voltou as costas, ou pelo menos parece que foi assim. Ele, também,
permitiu que a história seguisse seu curso, deixou que tudo que havia de
errado no mundo triunfasse sobre o que era certo.
"Salvou os outros; a si mesmo se salve", zombavam as pessoas. Desta
vez, neste momento público, quando Deus parecia estar totalmente
desamparado, as câmaras da história filmavam, registrando tudo. Grande
multidão assistiu a cada detalhe do julgamento, veredicto, crucificação e
morte. Ninguém poderia argumentar que Jesus não morreu.
Depois da morte
No momento em que ocorreu o Milagre dos Milagres, apenas duas
testemunhas estavam presentes: guardas romanos rudes, os homens
esquecidos da Páscoa. Eles, e ninguém mais, presenciaram com olhos
humanos a cena assombrosa do impossível feito possível. Ao mostrar um
reflexo humano incurável, imediatamente correram a informar o tumulto
às autoridades.
Mais tarde, naquele mesmo dia, a ressurreição lhes parecia enevoada e
remota, muitíssimo menos significativa do que, digamos, a pilha de
moedas de prata que colocaram diante deles. Será que algum dia nos
dedicamos a pensar no fato de, aparentemente, haverem as testemunhas
daquele grande dia morrido sem crer?
***
As coisas não mudaram muito nos dois mil anos que se passaram. Hoje,
os cientistas procuram sinais e os políticos desejam sabedoria; e, de vez
em quando, a cruz assoma como escândalo.
Os três eventos – nascimento, morte e ressurreição – causaram,
certamente, abalos no cosmos. E ainda assim, acontecendo em meio a
tanto mistério, com um grupo tão estranho de testemunhas, dificultaram
para sempre a fé. Proporcionaram apenas motivos suficientes para
aqueles que, como os discípulos, escolheram crer. Mas também
forneceram razões suficientes para os que, como os guardas romanos,
preferiram duvidar. Isto também não mudou, desde o tempo de Jesus até
hoje.
A ESTAÇÃO PERFUMADA
3
Jim e Tammy Faye Bakker, teleevangelistas. Em 1989 Jim foi condenado a 45 anos de prisão por ter desviado
as contribuições feitas pelos fiéis para o sustento de seu ministério, usando–as em benefício próprio. (N.da T.)
~ 56 ~
"Oh! A vida cristã é tããão boa que acredito em que a seguiria mesmo
se nada do que os cristãos pregam fosse verdade!"
Ela acabara de entrevistar pessoas que davam testemunhos
inspiradores e é verdade, Tammy Faye, a vida cristã descrita no programa
parecia muito boa. Embora haja ficado comovido pelo entusiasmo
demonstrado por ela, algo na declaração que fez — "se nada ... fosse
verdade" – incomodou–me. Parecia haver uma coisa errada, mas não
conseguia identificar o problema.
Por fim, localizei a fonte de meu desconforto em I Coríntios 15, o
capítulo mais importante na Bíblia sobre a ressurreição dos mortos. Nele, o
Apóstolo Paulo firma sua fé na verdade da ressurreição de Jesus. Com
ênfase notável ele afirma que, se Cristo não houvesse ressuscitado, sua
pregação seria inútil, assim como a fé. Além disto, acrescenta, seríamos
"os mais infelizes de todos os homens".
Paulo, que era conhecido por sua coragem, ainda assim admite que
jamais arriscaria sua vida por uma fé que carecesse do fundamento da
verdade. Não haveria motivo para se colocar em perigo. Dificilmente
valeria a pena enfrentar feras selvagens em Éfeso para defender uma
ilusão. O hedonismo seria uma alternativa muito mais atraente, e Paulo,
com franqueza, propõe: "Se os mortos não ressuscitam, comamos e
bebamos, que amanhã morreremos." Ao contrário de muitos evangelistas
da televisão, parece que ele esperava da vida cristã não a saúde e a
riqueza, mas sofrimento. Chegou a dizer a Timóteo: "Ora, todos quantos
querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos."
Ao ler as reflexões de Paulo sobre as dificuldades que enfrentou, não
posso imaginá–lo concordando com a afirmativa de Tammy Faye sobre a
vida cristã. Pego–me ainda questionando que ela diria a mesma coisa hoje,
com o mesmo entusiasmo.
***
Porque nós somos para com Deus o bom perfume de Cristo, tanto
nos que são salvos como nos que se perdem. Para com estes, cheiro
de morte para morte; para com aqueles, aroma de vida para vida.
***
Porque nós somos para com Deus o bom perfume de Cristo, tanto
nos que são salvos como nos que se perdem. Para com estes, cheiro
de morte para morte; para com aqueles, aroma de vida para vida.
4
ENTRE OS CRENTES
(111)
perficiais. Logo que começou a acompanhar aquele homem–criança, de
fôlego curto, percebeu a violência, rivalidade e competição, a obsessão
que existia em seu anseio pelo sucesso na vida acadêmica e no ministério
cristão. Com Adam ele aprendeu quê:
***
~ 67 ~
pena deles. Sim, sofri "prejuízos" em face do fundamentalismo. Mas,
afinal, meus prejuízos operaram de tal forma que me tornei "pobre de
espírito", condição que Jesus descreveu como pré–requisito para herdar o
reino de Deus.
Que lhe ensinaram sobre as emoções? Que efeito você acredita que
sua criação fundamentalista teve em sua habilidade de desfrutar de
intimidade emocional com alguém? Como você acha que o
fundamentalismo moldou o que você aprendeu sobre sexualidade? Tudo
bem, admito que houve vários danos nesta área. Durante a juventude,
sofria de uma curiosa esquizofrenia quanto às emoções. Por um lado,
aprendi na igreja a reprimi–las: sentimentos negativos, como a raiva,
levam ao pecado; os positivos, como alegria e felicidade, resultam em
orgulho, pecado de outro ripo. E ao mesmo tempo precisava de controlar–
me constantemente para não me deixar levar pelo emocionalismo nos
cultos. Preletores adeptos do reavivamento, depois de colocarem à nossa
frente visões do fogo do inferno, levavam–nos a repetir vezes sem conta
frases decoradas até que a última centelha interior de medo e culpa
fossem apagadas.
Mesmo o efeito danoso da diferença entre as duas abordagens das
emoções, porém, foi parcialmente sanado. Emoções ressequidas,
sentimento profundo de alienação e tendência à introspecção – o impacto
residual na realidade ajudou minha carreira de escritor, que se baseia na
posição de um observador que de vez em quando penetra nas situações
mas, na maior parte do lempo, permanece à margem dos acontecimentos.
A pesquisa prosseguia desta forma por cinco páginas, e terminava
pedindo que eu resumisse os efeitos positivos do fundamentalismo em
minha vida, e depois os negativos. Como positivos, apresentei os
seguintes:
•Conhecimento bíblico.
•Reconhecimento da seriedade das escolhas individuais e do
comportamento.
•Percepção de Deus.
Não levei muito tempo para identificar qual das duas listas se mostrara
mais importante na formação da pessoa que sou hoje. Na realidade,
aconteceu uma coisa engraçada enquanto respondia à pesquisa. Minha
expectativa era a de que, levando–me a reviver momentos dolorosos, a
pesquisa traria à tona raiva e ressentimento ainda não resolvidos. Mas, ao
chegar ao fim, fui acometido, principalmente, por um sentimento de
gratidão pela herança que recebi.
Os discípulos de Jesus lhe perguntaram:
"Quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?"
A resposta dEle foi, ao mesmo tempo, incompleta e profundamente
satisfatória:
"Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem
nele as obras de Deus."
~ 68 ~
Esta é uma boa lição para todos nós, que temos "prejuízos" – até
mesmo o causado pelo fundamentalismo. Percebi, ao completar o
questionário, que meu sentimento de gratidão ia até à graça curadora de
Deus, e não até o fundamentalismo. Para mim, uma prova desta
maravilhosa graça tem sido sua capacidade de penetrar em um sistema
que, às vezes, parece visar, especificamente, à perpetuação da não–graça.
MORBIDAMENTE SAUDÁVEL
5
VOZES INDISPENSÁVEIS
~ 71 ~
chamado de sin cere, sem cera. Hoje, em dia, porém, vendedores e
políticos contratam consultores para aprenderem a parecer "sinceros". A
sinceridade transformou–se em um tipo de imagem, característica menor,
adquirida, que não guarda qualquer relação com o que realmente se passa
no interior inseguro e duvidoso da pessoa.
A deflação das palavras constitui–se em um enorme problema para os
escritores, pastores e todos quantos delas dependem para expressar
idéias cristãs, já que os termos teológicos perderam tanta força quanto os
outros. Por que tantas novas versões da Bíblia surgiram neste século? As
boas e velhas palavras de João Ferreira de Almeida não se mantiveram
intactas em nossa era de deflação lingüística.
Por exemplo: pena significava misericórdia ou clemência. É um termo
derivado da mesma raiz de "piedade", e descrevia alguém que, como
Deus, estendia sua mão para ajudar os menos afortunados. Com o passar
do tempo, a ênfase passou do doador para o objeto da pena, visto como
fraco ou inferior. Deterioração semelhante aconteceu com caridade.
Quando os tradutores da Bíblia avaliaram o conceito de amor ágape,
expresso com tanta eloqüência em I Coríntios 13, decidiram adotar
"caridade(*)6" para transmitir a forma mais elevada de amor. Mas que
tristeza, ambas palavras desvalorizaram–se tremendamente. As pessoas
que tentavam demonstrar pena ou caridade aparentemente não estavam
à altura dos padrões elevados de suas palavras, e a língua adaptou–se à
situação. Hoje ouvem–se protestos: "Não tenha pena de mim!" e "Não
quero sua caridade!"
Dentre as palavras que sofreram deflação, minha predileta é cretino.
Na Medicina, o cretinismo descreve uma condição grotesca de deficiência
da tireóide, e os sintomas são o crescimento atrofiado, deformidade,
bócio, pele escamosa e (ai!) idiotia. Esta deficiência foi identificada pela
primeira vez nos Alpes e nos Pirinéus, onde a água de beber não continha
iodo suficiente. Gradualmente, a palavra cretino passou a abarcar
"qualquer pessoa com uma deficiência mental perceptível". E esta injúria
completa derivou do termo latino christianus. Ai, ai, este assunto de
etimologia está chegando perto demais de nós.
As poucas palavras santificadas que restaram foram contaminadas no
uso moderno. Ouça algumas músicas populares sobre o amor, e tente
encontrar alguma semelhante entre a letra da música e o que está
definido em I Coríntios 137. Salvação sobreviveu, mas principalmente nos
centros de reciclagem de lixo. A cultura moderna chega a usar termos
como renovado para carros usados, perfumes e times de futebol. É triste,
porque os cristãos não criam novas palavras fortes para expressar o
significado que se perdeu das antigas. Nossos neologismos são
emprestados, em sua maioria, de psicólogos, de modo que ouvimos
incessantemente sobre "amizade" ou "relacionamento pessoal" com Deus,
embora, como e. S. Lewis aponta em The Four Loves (Os Quatro Amores),
estas imagens descrevam com exatidão apenas uma ínfima parte do
encontro entre o Criador e a criatura.
Algumas palavras, porém, mantiveram seu brilho, e podem conseguir
sobreviver mais algumas décadas. Uma delas infiltrou–se tão amplamente
6
Nota do editor – A versão em língua portuguesa que utiliza a palavra caridade e a Revista e Corrigida de João
Ferreira de Almeida, da Imprensa Bíblica Brasileira.
7
Nota do editor – O cantor e compositor Renato Russo, utilizou–se deste recurso em uma de suas músicas,
distorcendo o sentido do texto bíblico.
~ 72 ~
que seria difícil matá–la sem grandes lutas. Graça, palavra teológica
maravilhosa, tem sido adotada, desavergonhadamente, por todos os
segmentos da sociedade. Muitas pessoas ainda "dão graças" antes das
refeições, reconhecendo que o pão cotidiano é um presente de Deus.
Somos agradecidos pela simpatia de alguém, gratificados por notícias
boas, agraciados quando bem–sucedidos, graciosos ao receber amigos.
Um compositor adiciona notas para graça à música, que os bons pianistas
aprendem a tocar graciosamente.
A indústria editorial secular chega bem perto de preservar o sentido
original, concedendo edições de graça. Ao assinar uma revista por 1 ano, a
pessoa pode continuar recebendo alguns exemplares depois que a
assinatura expirar. São edições de graça, isentas de pagamento, não
merecidas, enviadas na tentativa de levar a pessoa a fazer nova
assinatura. São grátis, aí está a palavra de novo.
IMAGINAÇÃO CONVERTIDA
Não sei se conheço outro escritor que parece estar tão perto ... do
Espírito do próprio Cristo. ... Suponho que nunca escrevi um livro no
qual não o citasse.
(140)
~ 74 ~
pirata. A família voltou–se para a encenação de O Peregrino (o próprio
MacDonald representava Greatheart) para conseguir pagar suas dívidas.
Estas dificuldades enfrentadas por ele só enfatizam o exemplo de fé
deixado por um de nossos maiores escritores devocionais. A novela
Phantasies termina com as folhas das árvores sussurrando: Um grande
bem está chegando – chegando – chegando para vós, Anodos.
George MacDonald cria nisto com todo seu coração, e aplicou essa
lição à sua própria vida bem como a toda a história.
OS RISCOS DA RELEVANCIA
8
Jornalista e escritor liberal, envolvido em inúmeros protestos, escreve obras chocantes sobre temas polêmicos.
Poderíamos comparar, no Brasil, com Fernando Gabeira. (N. da T.)
~ 75 ~
experiência intelectual, um anseio pela ordem que o levou a se refugiar na
igreja anglicana.
Eliot reconheceu que a ansiedade quanto ao futuro foi fator decisivo
em sua conversão. Os problemas globais daquela época fazem com que a
era moderna pareça calma: Hitler, Mussolini e Franco espalhavam o terror
por toda a Europa Ocidental, enquanto Stalin devastava a metade de um
continente no leste. Eliot concluiu que apenas a fé cristã poderia trazer
ordem àquele mundo caótico. Mas, qualquer que haja sido a motivação
inicial, a fé criou raízes e chegou a dominar seu pensamento e seu
trabalho. Eis como ele explicava isto:
** *
9
Evangelista conservador.
10
Jornalista liberal, escreve em revistas dando conselhos sobre amor e família.
11
Podemos imaginar no Brasil essa comissão formada pelo Rev. Boanerges Ribeiro. D.Eugênio Salles, o bispo da
igreja episcopal, Marta Suplicy e o bispo Edir Macedo. (N. da T.)
~ 77 ~
Como sociedade, costumamos afastar–nos da arte, rumo a
preocupações mais urgentes e práticas. Ao viverem um mundo que
enfrenta crise econômica e ambiental, sob ameaça de um holocausto
global, quem encontra tempo para a poesia e a literatura? Não
deveríamos, em vez de pensar em arte, escrever e ler sobre guerras
regionais, pobreza global, venda de armas e outros assuntos "relevantes"?
Sempre que sou tentado por esses pensamentos, volto–me para a
influência continuada de autores cristãos como Tolstoy, Dostoievski, John
Donne, Jonathan Swift, John Milton e, especialmente, T. S. Eliot (John
Donne, assim como Eliot, deixou de lado a poesia no auge de sua carreira,
para se dedicar a seus sermões, que poucos lêem hoje. John Milton
abandonou a poesia por vinte anos, durante a Guerra Civil da Inglaterra).
Todos estes escreveram muito sobre questões relevantes de seus dias, e
estes trabalhos transformaram–se em meras curiosidades, notas obscuras
colocadas no rodapé da história literária. Enquanto isto, suas criações
baseadas, no dizer de Faulkner, "... nas velhas verdades universais, na
falta das quais qualquer tipo de arte é efêmera e perdida: amor, honra,
piedade, orgulho, compaixão e sacrifício", não cessaram até hoje de
iluminar e inspirar.
Em algum ponto do caminho, T. S. Eliot recuperou sua voz poética. Em
uma série de poemas, The Four Quartets, escrita durante a pior fase da II
Guerra Mundial, ele conseguiu misturar a música e a mensagem. Nestes
poemas pode ver–se seu olho arguto, perscrutador, presente em seus
primeiros trabalhos, mas temperado com as percepções de sua
peregrinação religiosa. Um exemplo:
~ 78 ~
DOIS BEZERROS TEIMOSOS
Só deitado lá, na palha podre da prisão, foi que senti dentro de mim
os primeiros ímpetos do bem. Gradualmente, foi–me revelado que a
(152)
O REJEITADO
~ 80 ~
Shusaku Endo, morto em 1996, foi uma criatura das mais raras no
Japão: cristão durante toda sua vida. Em um país onde a Igreja constitui
menos de 1% da população, foi criado por sua mãe devota a Cristo e
batizado aos onze anos de idade. Ainda mais surpreendente, Endo, o
maior romancista japonês, escreveu livros com temas cristãos, que
invariavelmente ficavam entre os mais vendidos do país. Ele era como um
herói cultural no Japão, e ate apresentou um programa de entrevistas na
televisão no horário noturno.
Sua obra recebeu elogios de escritores famosos como John Updike e
Graham Greene, e foi muitas vezes indicado como candidato ao Prêmio
Nobel de Literatura. Nove de seus romances foram traduzidos para o
inglês, mas seu livro mais popular nos Estados Unidos foi A Life of Jesus
(Uma Vida de Jesus), seu relato pessoal de fé.
Ao crescer como cristão no Japão antes da II Guerra Mundial, Endo
sentia–se constantemente alienado. Algumas vezes seus colegas de classe
o maltratavam por sua ligação com uma religião "ocidental". Após a
guerra viajou para a França, na esperança de estudar romancistas
franceses católicos como François Mauriac e George Bernanos. Mas a
cidade de Lyon em 1949 não permitiu que se sentisse bem–vindo: desta
vez conheceu a rejeição racial em lugar da religiosa. Os aliados haviam
conduzido uma corrente contínua de propagandas contra os japoneses, e
Endo tornou–se alvo de muito abuso racial.
Rejeitado em sua terra natal e em seu lar espiritual, enfrentou uma
grande crise de fé. Passou vários anos pesquisando a vida de Jesus na
Palestina, e ali fez uma descoberta que o transformou: Jesus, também, foi
rejeitado. Mais do que isto, a vida de Jesus caracterizou–se pela rejeição.
Seus vizinhos riam dEle, sua família às vezes questionava sua sanidade
mental, seus amigos mais chegados O traíram e seus compatriotas
trocaram sua vida pela de um terrorista. Enquanto andou na Terra, Jesus
parecia ser atraído por outros rejeitados: leprosos, prostitutas, paralíticos,
pecadores notórios.
Este aspecto da vida de Jesus atingiu Endo com a força de uma
revelação. Ao viver no Japão, vira o cristianismo a distância, como uma fé
triunfante e conquistadora. Estudara o Santo Império Romano e as
brilhantes Cruzadas, admirara fotografias das grandes catedrais da
Europa, sonhara em viver em um país onde poderia ser cristão sem cair
em desgraça. Mas ali, enquanto estudava a Bíblia, percebeu que o próprio
Cristo não evitara "cair em desgraça". Jesus foi o Servo Sofredor, como
descrito em Isaías:
~ 81 ~
O tema central em muitos dos romances de Endo é a rejeição e o
sofrimento. Silêncio, o mais famoso, conta a história de cristãos japoneses
que renegaram sua fé em face da perseguição brutal dos xoguns. Ele lera
muitas histórias emocionantes de mártires cristãos, mas nenhuma sobre
traidores da fé. Nem poderia ler, porque nenhuma fora escrita. Ainda
assim, para ele, a mensagem mais poderosa de Jesus era seu amor
inextinguível, até mesmo – especialmente – pelos que o traíram. Seus
discípulos se afastaram dEle; e Ele continuava a amá–los. Seu país O
executou; mas enquanto estava esticado, nu, na posição da desgraça mais
completa, esforçou–se para conseguir gritar:
~ 82 ~
•Um juiz assentado em uma cadeira no escritório de um burocrata
nazista. Destituído de toda dignidade, se embaraça, tentando explicar
por que faltou ao comício para ir tocar Mozart com a orquestra da qual
participa.
•Uma faxineira esfrega com vigor teutônico uma escada de ladrilhos e
desafia, teimosamente, o conselho de sua vizinha pata deixar de
trabalhar nas casas dos judeus.
•Consumidores de uma loja, muito desapontados, esperam o fim de um
ataque aéreo em um abrigo subterrâneo. Conversam sobre derrotas
militares que nunca aparecem na imprensa alemã.
•Um oficial do exército acaba com todas as tentativas de sua esposa de
criar um ambiente festivo durante sua licença de Natal. Esvazia uma
garrafa de vinho em, virtualmente, um gole. Diz que é a única maneira
de esquecer os vagões de gado carregados de judeus que ele expediu
do fronte oriental.
•Dois adolescentes vagam pela cidade e encontram um panfleto jogado
por um avião dos aliados. Mostra corpos empilhados como madeira em
um campo de concentração alemão. Eles discutem se essas coisas
realmente acontecem ou se aquilo é apenas propaganda de guerra.
6
O ANIMAL HUMANO
•Por que existem tantos tipos de animais? Será que o mundo não
poderia prosseguir com, digamos, 300 mil espécies de besouros em
vez de 500 mil? Qual a vantagem da existência deles?
~ 83 ~
•Por que os animais mais belos da terra ficam escondidos de todos os
humanos, a não ser daqueles que usam os complicados equipamentos
de mergulho? Quem ê beneficiado com a beleza deles?
•Por que a quase totalidade da arte religiosa é realista, enquanto que
grande parte da criação de Deus — zebras, borboletas, estruturas
cristalinas — é exemplo rematado de designer abstrato?
•Por que é tão mais fácil treinar os cães do que os gatos? Quais dão
mais orgulho a Deus: os cães ou os gatos?
•Os seres humanos são animais' São qualquer coisa além de animais?
Por que não são mais fáceis de treinar?
•Por que existem piadas sujas? De qualquer forma, o que é que torna a
fisiologia da excreção e da reprodução tão engraçadas?
•Pergunto como Walker Percy: "Por que o homem se sente tão triste no
século XX? Por que se sente tão mal exatamente na era em que, mais
do que em qualquer outra, tem tido sucesso na satisfação de suas
necessidades e na utilização dos recursos que há no mundo? "
•Os gorilas e os javalis atravessam a crise da meia–idade?
•Por que o livro de Eclesiastes está na Bíblia? Será que o autor do livro
enfrentava uma crise de meia–idade? Como seria uma crise destas na
vida de um rei dos hebreus?
•Por que Salomão, que demonstrou tanta sabedoria ao escrever
Provérbios, passou os últimos anos de sua vida contrariando todos os
seus ensinamentos?
•Por que Cantares de Salomão está na Bíblia? Por que só este livro da
Bíblia é interpretado como alegoria quando, na verdade, não há
qualquer indicação nas Escrituras de que a intenção do autor fosse
alegórica? Como pode uma religião que inclui um texto como Cantares
de Salomão entre seus escritos sagrados ser conhecida como inimiga
do sexo?
•Por que o sexo é uma fonte de prazer? Eu só queria saber...
São perguntas que precisam de respostas.
~ 85 ~
O esforço necessário para cuidar de meu aquário me levou a uma
apreciação mais profunda do que significa controlar um Universo baseado
em leis físicas imutáveis. Para meus peixes sou uma deidade que não
hesita quando é necessário intervir. Equilibro a salinidade e verifico os
elementos na água. O tanque só recebe o alimento que retiro de meu
freezer e coloco lá dentro. Eles não viveriam sequer um dia sem o
aparelho elétrico que adiciona oxigênio à água.
Tenho que tomar uma decisão muito difícil cada vez que é necessário
tratar alguma infecção. O ideal seria remover o peixe doente para um
outro tanque, onde ficaria em quarentena, evitando assim que os outros o
atacassem e fossem contaminados. Mas esta intervenção violenta e até
mesmo o simples ato de perseguir o peixe doente com a rede poderia
causar mais danos do que a própria doença. A tensão resultante do
tratamento pode, na verdade, causar a morte.
Com freqüência, anseio por um modo de me comunicar com estes
habitantes das águas, seres destituídos de inteligência. Em face da
ignorância, enxergam–me como uma ameaça constante. Não consigo
convencê–los de que minha preocupação com eles é verdadeira. Sou
grande demais, minhas ações incompreensíveis. Vêem meus atos de
misericórdia como crueldade, enxergam minhas tentativas de curá–los
como destruição. Para mudar estas percepções seria necessário um ripo
de encarnação.
Comprei meu aquário para iluminar um quarto escuro, mas acabei
aprendendo algumas lições sobre dirigir um Universo. É necessário esforço
constante para equilibrar as leis físicas instáveis. Com freqüência os atos
mais cheios de graça passam despercebidos ou até mesmo são motivo de
ressentimento. Quanto às intervenções, nunca é simples agir, quer os
Universos sejam grandes ou pequenos.
Tudo isto foi apenas uma introdução, uma aula de zoologia para
aumentar o conhecimento de Jó. Daí Deus avança para o beemote,
criatura semelhante ao hipopótamo, que ninguém consegue domar e para
o poderoso leviatã, parecido com um dragão. Deus pergunta com um
toque de sarcasmo:
~ 86 ~
– Você é capaz de transformá–lo em um animal de estimação, como um
pássaro, ou colocá–lo numa corrente e entregar para suas filhas? Só olhar
para ele já é uma experiência tremenda. Não há quem seja forte o
suficiente para despertá–lo. Então, quem conseguirá enfrentar–me?
Vida selvagem é a mensagem que Deus transmite a Jó, a
particularidade presente em todos os animais. Ele está exaltando os
membros do mundo que criou que jamais serão domesticados pelos seres
humanos. É evidente que os animais selvagens desempenham uma
função essencial no "mundo como Deus o vê". Eles nos repreendem por
nossa arrogância, lembrando–nos de uma coisa que preferimos esquecer:
nossa condição de criaturas. Além disto, mostram–nos o esplendor de um
Deus invisível, que não pode ser domesticado.
* * *
Corro várias vezes por semana entre animais selvagens como estes
que citei acima, mas não sou molestado por eles, já que corro no jardim
zoológico do Parque Lincoln, no Centro de Chicago. Conheço–os bem, são
vizinhos agradáveis, mas sempre faço um esforço mental para imaginá–los
em seus habitats naturais.
Três pingüins se balançam neuroticamente para a frente e para trás,
sobre um pedaço de concreto que recebeu tinta spray para ficar parecido
com gelo. Imagino–os livres, pulando de um bloco de gelo a outro na
Antártida, cercados por milhões de primos, todos com a aparência tão
cômica quanto a deles.
Um elefante idoso se coloca próximo a um muro, marcando o tempo de
três modos diferentes: o corpo balança lateralmente em um ritmo, a cauda
marca um outro ritmo completamente diferente e a tromba se move em
outro, diverso dos dois primeiros. Tenho dificuldade em imaginar esse
gigante indolente suscitando terror em uma floresta na África.
E a chita barriguda que se move suavemente por uma prateleira de
pedra: será possível que este animal pertence à espécie que é capaz de,
em um espaço pequeno, acelerar mais do que um Porsche?
É necessário um salto enorme em minha mente para colocar o
pingüim, o elefante e a chita no lugar ao qual pertencem, de onde vieram.
De alguma forma, a mensagem arrebatadora de Deus sobre a vida
selvagem se evapora ao atravessar os fossos, as barras e as placas
informativas do zoológico. Ainda assim, sou afortunado por morar perto
dele porque, caso contrário, Chicago só me ofereceria esquilos, pombos,
baratas, ratos e alguns poucos pássaros. Será que era isto que Deus tinha
em mente ao conceder a Adão o domínio sobre os animais?
* **
-Tentei sair de casa com minha cachorra hoje de manhã. Ela só deu
uma fungada e foi direto se deitar no cobertor elétrico.
-Ouvi dizer que a diferença entre —40ºC e –30ºC é que, no primeiro,
seu cuspe congela antes de chegar ao chão.
~ 87 ~
É este o tipo de conversa que se ouve em Chicago no meio de janeiro.
Durante o Inverno temos todos um inimigo comum tão poderoso que
nossas prioridades são revistas: os apresentadores de notícias na televisão
contam histórias sobre o frio durante cinco minutos antes de passarem a
assuntos menores como os conflitos internacionais e o comércio mundial.
Nosso oponente real está do lado de fora, cercando–nos palpavelmente e
nós, humanos, ajuntamo–nos por trás das barreiras de tijolo e cimento. E
sobrevivemos. Juntos venceremos o inimigo. O espírito de tudo isto é
estranhamente atávico: somos guerreiros em uma caverna, tentando
reunir coragem para enfrentar o bando de mamutes que nos espera do
lado de fora.
Ouvi recentemente sobre uma pesquisa feita com cidadãos idosos de
Londres. Ao serem perguntados sobre o período mais feliz de sua vida,
60% deles responderam que fora a Blitz.12 Naquela época, todas as noites,
os esquadrões de bombardeiros da Luftwaffe derramava toneladas de
explosivos sobre a cidade, reduzindo o orgulho de uma civilização a
entulho, e hoje as vítimas se recordam daquela época com saudade! Eles
também tinham um inimigo do lado de fora e se juntavam nos lugares
escuros, determinados a sobreviver.
***
Isto acontece até mesmo em uma cidade muito grande, como Chicago.
No dia em que chega uma grande nevasca, os trens deixam de correr,
esquiadores tomam o lugar dos carros nas ruas e ninguém vai trabalhar.
***
Certo dia em fevereiro, peguei a Lake Shore, uma avenida que passa ao
lado do Lago de Chicago, rumo ao Centro da Cidade. e) sol brilhava muito.
É estranho, mas os dias mais frios sempre são os de céu mais limpo,
porque é a cobertura de nuvens que mantém a Terra aquecida. À minha
12
A Blitz foi o período, durante a II Guerra Mundial, em que os alemães atacaram com mais intensidade a
cidade de Londres, destruindo grande parte dela e causando muitas mortes (N da T).
~ 88 ~
esquerda, o Ligo Michigan tentava decidir se congelava ou não. Logo
acima da água azul–turquesa formava–se uma fumaça de gelo, aquele
fenômeno sensacional no qual a água deixa de lado as etapas
intermediárias e parte do estado líquido, se condensando, formando
minúsculos cristais de gelo. A minha direita, o contorno da cidade
iluminava–se com os raios esmaecidos e oblíquos do sol de inverno. É
curioso, mas a cena roda tinha um toque acolhedor. Não entendi o motivo,
até que percebi a fumaça branca que flutuava no topo de cada prédio.
Parecia que eles estavam respirando – até mesmo o concreto e o aço
haviam assumido um pouco das características dos seres vivos.
Talvez Eliot tenha razão sobre a crueldade de abril: este mês põe um
ponto final nas delícias sutis do Inverno. Meus pensamentos seguiram
neste sentido até que fiz uma curva e cheguei ao Parque Lincoln. Ali,
avistei alguns dos desabrigados de Chicago. Poucas camadas de jornais
velhos e algumas sacolas de plástico constituíam toda sua proteção contra
o frio. Eles, também, ajuntavam–se, mas pouco havia ali da alegria e
camaradagem que eu sentia nas pessoas nas paradas de ônibus e
mercearias. Tentavam apenas se manter vivos.
Foi então que percebi que gostar de fevereiro, usando palavras como
agradável e revigorante, experimentando o aconchego das barreiras
criadas pelo homem contra os elementos era o maior dos luxos. E captei
outro sentido importante da palavra mercê. A percepção da condição de
ser criatura, reunindo–se com outras em cavernas, abrigos antibombas ou
nos prédios de Chicago – só resulta em um sentimento semelhante à
alegria se nós, as criaturas, mostrarmos misericórdia para com aquelas
que se colocarem à nossa "mercê". Esta é uma boa lição para se lembrar
em fevereiro, abril ou em qualquer outro mês.
13
Antropólogo e arqueólogo que trabalhou na África Oriental, pesquisando a evolução humana. Popularizou a
arqueologia com suas palestras e seus livros. (N da T)
~ 90 ~
do que os outros. Descalças e um pouco envergonhadas, aquelas
profissionais e donas–de–casa lideraram–nos em alguns gritos de torcida
que lembrávamos apenas pela metade.
Os nerds14 também marcaram sua presença. Durante os anos do
colégio eles eram os vencedores das feiras de ciências, levavam o clube
de xadrez à vitória e elevavam a nota da escola no SAT 15 e recebiam, em
face dos seus esforços, desprezo e ofensas de todos os lados. A passagem
do tempo lhes concedeu uma grande vingança: dentre adolescentes
estranhos emergiram cientistas pesquisadores, programadores de
computador e peritos do mercado de ações.
Um grupo dos colégios de 2 grau passou por mutações no decorrer dos
O
O PROBLEMA DO PRAZER
~ 93 ~
cabeça em perplexidade frente à questão básica de saber por que
experimentamos o prazer.
De onde vem o prazer? Esta me parece uma questão muito importante
que, para os ateístas, é a equivalente filosófica do problema da dor para
os cristãos. Quanto ao prazer, os cristãos podem respirar mais aliviados.
Um Deus bom e amoroso naturalmente iria desejar que suas criaturas
sentissem prazer, alegria e satisfação pessoal. Nós, cristãos, partimos
desta pressuposição e depois procuramos um modo de explicar a origem
do sofrimento. Mas será que os ateístas e humanistas seculares não têm,
também, a obrigação de explicar a origem do prazer em um mundo de
acasos e ausência de significado?
Pelo menos uma pessoa encarou o assunto com precisão. Em seu livro
Orthodoxy (Ortodoxia), que não se pode deixar de ler, G.K. Chesterton
ligou sua própria conversão ao cristianismo ao problema do prazer. Ele
descobriu que o materialismo era muito frágil para justificar o sentimento
de admiração e prazer que algumas vezes caracteriza nossa reação ao
mundo, e em especial a atos humanos bem simples, como sexo,
nascimento e criação artística. Eis como ele descreve a experiência:
~ 95 ~