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LIÇÃO INAUGURAL
Proferida na Abertura Solene do Ano Lectivo 2004/2005
14 de Outubro de 2004
UM MUNDO DO AVESSO
Reflexões sobre o quotidiano
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E, assim, conquistado, embarquei.
Mergulhei num mar ora chão ora revolto.
O que importa é partir, lembrei-me.
Tantos temas. Tanto mundo e poesia a rodearem-me.
De que falar?
O que importa é partir, tornei a lembrar-me.
E parti.
Depois de muitas conversas com as partes visíveis e invisíveis dos
mundos, encontrei o tema: “Um Mundo do Avesso – Reflexões sobre o
quotidiano”.
Vago, talvez. Mas era esse o propósito, afinal.
Aquilo de que vou falar são, por certo, trivialidades. Mas trivialidades que,
de tão triviais, se distanciaram da reflexão. Assoberbados pelos afazeres
quotidianos, acabamos por perder a capacidade de nos deslumbrarmos e
maravilharmos com a simplicidade da complexidade do que nos rodeia.
Como nos ensinou Vergílio Ferreira: «Não queiras saber tudo. Deixa um
espaço livre para saberes de ti». E foi desta forma, com estes pensamentos
a atravessar o sentimento, que procurei nesse espaço livre de quem quer
saber de si, pequenas coisas, pequenos nadas que, apesar de irrisórios, nos
desafiam a cada momento.
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A Ciência em geral, e a Astronomia em particular são o pretexto para ir
lançando alguns desafios a V. Ex.as. E, no fim, espero que possamos sair
ilesos e munidos de um avessoscópio desenferrujado, um instrumento grátis,
de fácil utilização e que já nasce connosco. Basta aprender a usá-lo.
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Recordo as palavras com que a poetisa e actriz brasileira Bruna
Lombardi termina o seu poema Alta Tensão:
“(…) você pode me empurrar pro precipício
não me importo com isso
eu adoro voar.”
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De tão longo, este intróito quase passou a texto chave. Mas como
compreenderão, particularmente neste estabelecimento Militar de Ensino, “as
ideias são como as formaturas, logo a seguir a uma vem outra!”.
Lanço um desafio inicial: pensar um pouco sobre o que nos rodeia. Aliás,
só o acto de pensar já nos deve fazer pensar. Usemos o avessoscópio. O que
é isto de “um pensamento”? Se dissecarmos a parte biológica, química e física
da questão, quem se vira do avesso somos nós. Um pensamento pode ser,
porque não, reduzido aos seus átomos causídicos: carbono, oxigénio,
hidrogénio, azoto e outros mais. Com os mesmos átomos, pensamos coisas
tão diversas. V. Ex.as já tinham pensado nisto?
Por exemplo, enquanto alguns Srs. alunos pensam nas camas das
camaratas, outros pensam no Amarelo de Carne, outros na bolama, outros nos
trabalhos de casa ou nas provas escritas que se avizinham, outros nas
quartas-feiras e até mesmo nas noites de Domingo. Todos pensamos coisas
diferentes mas, se repararmos, concluímos que as ferramentas que usamos
são iguais. Somos todos feitos dos mesmos materiais e, no entanto, somos
todos tão diferentes.
Os átomos que constituem os nossos corpos, o nosso sangue, os
mesmos átomos que nos permitem pensar, foram fabricados numa qualquer
estrela de massa considerável ao longo de alguns milhões de anos. Por isso,
pelo menos uma vez na nossa história pessoal já tivemos um doce momento
de “estrelato”. Já fomos uma estrela. Em boa verdade, parte dela, mas isso
pouco importa. E esses elementos químicos, feitos nessas fornalhas nucleares
que podemos ver em noites de céu estrelado, são os blocos de construção das
nossas células. A célula é a unidade básica da vida. Todos quantos aqui
estão neste ginásio, são feitos de células. Não se sabe ao certo quantas
constituem um organismo complexo, como o ser humano, mas estima-se que
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tenha entre cinquenta e cem biliões de células. Imaginem um 5 com treze
zeros à frente! É esse o número aproximado de células que nos compõe.
Fantástico, não é? Desde que aqui entrámos, já muitas deixaram de estar
funcionais nos nossos corpos. E já muitas se terão formado, entretanto…
Como referi, se há coisa que os alunos deste Colégio não têm, é uma
vida calma. Pelo menos em termos físicos. Mas mesmo assim, é tudo uma
questão de perspectiva. As apressadas caminhadas entre o Corpo de Alunos e
os locais de aulas, as tais que acabam por não permitir que olhem para o chão,
perecem quando as comparamos com outras que fazemos sem nos
apercebermos. Passo a explicar. Aqui fechados, sentados ou em pé, mais à
vontade ou em sentido, temos a aparente noção de calma, quietude e
serenidade. No entanto, se pensarmos neste mundo do avesso,
rapidamente nos apercebemos do paradigma da estabilidade. Nada está
parado – tudo se move. A questão está em sabermos o referencial usado.
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Façamos uma experiência.
Muito bem.
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Bem sabemos que a idade e o peso constituem, para muitos, motivo de
preocupação. Neste colégio, talvez mais o peso que a idade, já que
permanentemente se apela à máxima “Mente sã em corpo são”. Mas, como
referi, tudo é ultrapassável, se soubermos “dar a volta”. Foi assim que me
lembrei de vos convidar a, permitam-me a expressão, “dar uma volta” pelo
nosso sistema solar. Os exemplos que vou partilhar com V. Ex.as podem não
ser muito úteis mas, para além das reflexões científicas que permitem fazer,
sempre constituem material para sonharmos quando uma depressão mais
persistente se intrometer de rompante num dos nossos momentos felizes e de
deslumbramento.
Voltando ao rumo.
Quando me quero divertir e iludir, pego no avessoscópio e vou até Marte.
Aí terei 16 anos e pesarei 32 quilogramas. Serei um adolescente, ainda em
idade colegial, a saborear o maravilhoso céu cor-de-rosa com que este planeta
nos presenteia. Percebo agora porque são felizes os marcianos. Aí poderei
contemplar o Monte Olimpo, o maior vulcão do sistema solar que alcança uma
altura de cerca de 27 km.
Em Vénus, terei perto de 52 anos e pesarei 77 quilogramas. Neste
planeta acontecerá algo curioso: verei o Sol erguer-se a Ocidente (Oeste) e
pôr-se a Oriente (Este).
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Já em Júpiter, pesarei cerca de 201 quilogramas e terei quase 2 anos e
meio.
Não gosto muito de me imaginar no planeta mais afastado do Sol.
Sobretudo porque não é sempre o mesmo. É verdade. As órbitas de Neptuno e
Plutão cruzam-se. Quando os alunos do Batalhão Colegial nasceram, era
Neptuno e não Plutão, o planeta que mais afastado estava do Sol. Desde 1980
e até 14 de Março de 1999 foi isso que aconteceu. Quando vos perguntarem
qual é o planeta mais afastado, peguem no avessoscópio e respondam:
depende!
Em Plutão, pesarei pouco mais do que 5,5 kg e ainda não terei sequer 1
ano de idade.
Nesta viagem pelo sistema solar vou terminar na Lua. Aqui no Colégio
não gostamos que esse planeta seja habitado pelos Srs. alunos durante as
aulas, as cerimónias e as actividades de responsabilidade. Mas a atracção que
este astro exerce sobre nós é forte e milenar. Muitas foram as canções e os
poemas escritos tendo a Lua como inspiração e mote. Quantos amantes
apaixonados namoraram ao luar. Mas como será esta nossa companheira,
causadora das marés, vista através do avessoscópio?
Estamos tão habituados ao que nos rodeia que não lhe damos grande
atenção. A bela cor azul de um céu límpido parece-nos algo perfeitamente
natural. No entanto, é um privilégio do nosso planeta que lhe é proporcionado
pela sua atmosfera. A Lua não possui qualquer atmosfera pelo que o céu de
dia ou de noite é sempre negro.
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Imaginemos que seria possível estarmos neste momento na Lua, sem
quaisquer fatos pressurizados, e que eu falava sem microfones. Colocar-se-
me-ia um grande problema.
[…]
Exactamente, seria essa a estranha sensação de não me fazer ouvir.
Como na Lua não há atmosfera não há suporte material para o som se
propagar. E quem diz na Lua diz no espaço em geral. Portanto, peguem no
avessoscópio e apliquem-no aos filmes de Hollywood. Não deixem de se
deslumbrar, sonhar, maravilhar, mas munam-se do espírito crítico quando
ouvirem as ruidosas explosões do Star Wars…
Na superfície lunar, com cerca de 14 quilogramas, poderei observar
cerca de 30 mil crateras. Mas há quatro especiais. Têm o nome associado a
portugueses notáveis o que as torna… notáveis. Vasco da Gama, Pedro
Nunes, Fernão de Magalhães e o menos conhecido Cristobal Acosta.
Já agora que entrámos nesta onda patriótica, talvez também não seja do
conhecimento de V. Ex.as que, entre Marte e Júpiter, a cerca de 485 milhões de
quilómetros do Sol, isto é, cerca de três vezes mais afastado do que a Terra,
orbita um pequeno asteróide cujo nome é… PORTUGAL.
Na noite de hoje, quando olharem para o céu não verão a Lua. Estamos
na fase de Lua Nova. Mas, se fossem selenitas, ou seja, habitantes do nosso
satélite, poderiam deslumbrar-se com a Terra Cheia. Talvez cheia de
avessoscópios apontados para o céu!
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Analisemos a estrofe 89 do canto X da magnífica obra Os Lusíadas,
escrita por Luís de Camões, e descodifiquemos a maravilhosa e
contextualizada mensagem que nos transmite.
(X, 89)
Debaxo deste grande Firmamento,
Vês o céu de Saturno, Deus antigo;
Júpiter logo faz o movimento,
E Marte abaxo, bélico inimigo;
O claro Olho do céu, no quarto assento,
E Vénus, que os amores traz consigo;
Mercúrio, de eloquência soberana;
Com três rostos, debaxo vai Diana.
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Falta bem pouco para terminar. Mas não o poderia fazer sem vos mostrar
como os céus pensam em tudo, de facto. Os alunos deste Colégio conhecem
bem o útil Calisto, o caderninho que trazem junto ao corpo e que permite
anotar, porque não, os mundos do avesso que os Srs. alunos vão encontrando.
Por certo, nunca usaram o avessoscópio para o analisar. A origem do nome
será outra mas aproveito para partilhar convosco uma nova perspectiva.
Galileu Galilei foi o primeiro a observar as quatro maiores luas de Júpiter
em 1610: Io, Ganimedes, Calisto e Europa, colectivamente chamadas luas
galileanas. Os nomes destas quatro luas têm que ver com o facto de serem
jovens que se enamoraram por Zeus, o deus grego que os romanos
apelidaram de Júpiter. Destas, realçamos Calisto. Calisto era uma ninfa
«belíssima» e uma virgem da corte de Ártemis. Zeus encantou-se com a jovem
e engravidou-a de Árcade. Ártemis zangou-se e transformou-a em ursa. Mas
Zeus transformou-a numa constelação, a Ursa Maior. Assim, numa noite de
céu escuro e limpo, mesmo com a poluição luminosa que se nota nos céus de
Lisboa, olhai para a Ursa Maior. Aí está Calisto que não cabe nos vossos
bolsos mas reina nos lados de Norte, bem perto da estrela polar. Talvez por
isso, munidos do Calisto, os alunos não percam nunca o Norte.
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Cantem sempre como os Ornatos Violeta: “Ouvi dizer que o mundo
acaba amanhã e eu tenho tantos planos p’ra depois”. (Adaptado)
Nem que tenham de fazer como o poeta holandês que nos conta a
história de um homem que acredita. Acredita, apesar de tudo. Constrói e tem
força. Diz-nos ele:
Poesia é, para mim, a história
Que me contaram em tempos
De um homem que no seu sótão
Construíra um avião de cimento
E, orgulhoso, a todos afirmava
Que voar, de facto, o avião podia,
Só que… não passava no postigo!
Rien Vroegingdeweij
Poeta contemporâneo holandês
FIM