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COLÉGIO MILITAR

LIÇÃO INAUGURAL
Proferida na Abertura Solene do Ano Lectivo 2004/2005
14 de Outubro de 2004

UM MUNDO DO AVESSO
Reflexões sobre o quotidiano

Quando, no final do ano lectivo transacto, o Excelentíssimo Senhor


Director do Colégio Militar me convidou a proferir esta lição inaugural, o meu
pensamento, talvez na procura de um refúgio sapiente, encheu-se das palavras
que Miguel Torga, em 1962, escreveu no poema Viagem, poema que me
acompanha e, de certa forma, norteia, desde a meninice e que tomo a
liberdade de partilhar com V. Ex.as.

Aparelhei o barco da ilusão


E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar…
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos.)

Prestes, larguei a vela


E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.

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E, assim, conquistado, embarquei.
Mergulhei num mar ora chão ora revolto.
O que importa é partir, lembrei-me.
Tantos temas. Tanto mundo e poesia a rodearem-me.
De que falar?
O que importa é partir, tornei a lembrar-me.
E parti.
Depois de muitas conversas com as partes visíveis e invisíveis dos
mundos, encontrei o tema: “Um Mundo do Avesso – Reflexões sobre o
quotidiano”.
Vago, talvez. Mas era esse o propósito, afinal.

Assim, vou partilhar com V. Ex.as um segredo: a existência de um


instrumento que inventei há algum tempo e que muito útil me tem sido.
Já há alguns séculos que usamos o microscópio para ver o infinitamente
pequeno, o telescópio para ver o infinitamente grande. Joël de Rosnay
inventou o macroscópio para ver o infinitamente complexo. Eu inventei o
AVESSOSCÓPIO, um instrumento que nos permite ver o infinitamente visível
pelo avesso. Mais à frente explicarei o funcionamento e a aplicabilidade deste
prodigioso instrumento.

Aquilo de que vou falar são, por certo, trivialidades. Mas trivialidades que,
de tão triviais, se distanciaram da reflexão. Assoberbados pelos afazeres
quotidianos, acabamos por perder a capacidade de nos deslumbrarmos e
maravilharmos com a simplicidade da complexidade do que nos rodeia.
Como nos ensinou Vergílio Ferreira: «Não queiras saber tudo. Deixa um
espaço livre para saberes de ti». E foi desta forma, com estes pensamentos
a atravessar o sentimento, que procurei nesse espaço livre de quem quer
saber de si, pequenas coisas, pequenos nadas que, apesar de irrisórios, nos
desafiam a cada momento.

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A Ciência em geral, e a Astronomia em particular são o pretexto para ir
lançando alguns desafios a V. Ex.as. E, no fim, espero que possamos sair
ilesos e munidos de um avessoscópio desenferrujado, um instrumento grátis,
de fácil utilização e que já nasce connosco. Basta aprender a usá-lo.

Há sempre forma de virar do avesso cada ser, cada circunstância, cada


objecto, cada pensamento, cada sentido e cada sentimento. E à medida que
vamos aperfeiçoando a utilização do nosso recém-descoberto instrumento,
podemos aperceber-nos quão bom é começarmos a coleccionar mundos do
avesso. Eu tenho muitos, confesso. E desafio V. Ex.as a perscrutarem os
vossos.
Quando começarmos a coleccionar mundos do avesso e registarmos no
fundo do nosso ser essas visões alternativas da realidade, poderemos dizer
como Óscar Wilde: «Nunca viajo sem o meu diário. Deve-se ter sempre
alguma coisa sensacional para ler no comboio.»

Agora, dirigindo-me particularmente a vós, Srs. Alunos, sugiro que


adopteis o instrumento de que vos vou falar. No ano lectivo que hoje se
inaugura solenemente, procurai encontrar perspectivas diferentes a cada
passo. Antes de desanimardes, virai do avesso esse pequeno mundo de
contrariedade e aprendei com ele. Analisai o que corre bem e o que corre
menos bem. Aprendei com os erros. E, se o estudo para uma prova escrita ou
para um exame, vos encher de desânimo, ou vos faltar vontade para
acabardes uma tarefa ou um trabalho de casa, tal pode significar apenas que
estará na altura de mudardes de perspectiva. Agarrai no avessoscópio e
utilizai-o da forma que considerardes mais adequada. Espero que esta
abordagem possa contribuir para se apaixonarem ainda mais pela vida, pelo
que nos rodeia, pelo mundo em geral e pela Ciência em particular.

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Recordo as palavras com que a poetisa e actriz brasileira Bruna
Lombardi termina o seu poema Alta Tensão:
“(…) você pode me empurrar pro precipício
não me importo com isso
eu adoro voar.”

Como é fácil perceber, esta perspectiva é aliciante e profícua.


Que voeis, esperançados, de matéria em matéria, de amizade em
amizade, de sonho em sonho. E um dia, quando fordes ex-alunos, ireis olhar
para o Colégio como para a vida, de forma ainda mais apaixonada.

Robert Lowell possuía um avessoscópio perverso. Dizia-nos ele que «a


luz ao fundo do túnel pode ser a de um comboio em sentido contrário».
Se há alguma verdade na afirmação, cabe-vos actuar para que não seja
sempre assim. Não tem de ser sempre assim.

Também o Sr. Valéry, uma personagem criada pelo escritor Gonçalo M.


Tavares, possui, há muito, um apuradíssimo e eficientíssimo avessoscópio.
Não resisto a partilhar convosco um pequeno e bem divertido exemplo de
como podemos descobrir em nós formas fantásticas de encararmos as
contrariedades.
«O Senhor Valéry era pequenino, mas dava muitos saltos. Ele
explicava:
Sou igual às pessoas altas só que por menos tempo. (…)
Mas isto constituía para ele um problema. (…)
Dias depois saiu à rua com um banco.
Colocava-se em cima dele e ficava lá em cima, parado, a olhar:
— Desta maneira sou igual aos altos durante muito tempo. Só que
imóvel.
Mas não se convenceu. (…)
Por isso o Senhor Valéry decidiu ser alto na cabeça.»

Sejamos, então, altos na cabeça.

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De tão longo, este intróito quase passou a texto chave. Mas como
compreenderão, particularmente neste estabelecimento Militar de Ensino, “as
ideias são como as formaturas, logo a seguir a uma vem outra!”.

E, como penso que já terão percebido de que falo, quando falo do


avessoscópio, proponho que iniciemos uma viagem pelos mundos do avesso.

Lanço um desafio inicial: pensar um pouco sobre o que nos rodeia. Aliás,
só o acto de pensar já nos deve fazer pensar. Usemos o avessoscópio. O que
é isto de “um pensamento”? Se dissecarmos a parte biológica, química e física
da questão, quem se vira do avesso somos nós. Um pensamento pode ser,
porque não, reduzido aos seus átomos causídicos: carbono, oxigénio,
hidrogénio, azoto e outros mais. Com os mesmos átomos, pensamos coisas
tão diversas. V. Ex.as já tinham pensado nisto?
Por exemplo, enquanto alguns Srs. alunos pensam nas camas das
camaratas, outros pensam no Amarelo de Carne, outros na bolama, outros nos
trabalhos de casa ou nas provas escritas que se avizinham, outros nas
quartas-feiras e até mesmo nas noites de Domingo. Todos pensamos coisas
diferentes mas, se repararmos, concluímos que as ferramentas que usamos
são iguais. Somos todos feitos dos mesmos materiais e, no entanto, somos
todos tão diferentes.
Os átomos que constituem os nossos corpos, o nosso sangue, os
mesmos átomos que nos permitem pensar, foram fabricados numa qualquer
estrela de massa considerável ao longo de alguns milhões de anos. Por isso,
pelo menos uma vez na nossa história pessoal já tivemos um doce momento
de “estrelato”. Já fomos uma estrela. Em boa verdade, parte dela, mas isso
pouco importa. E esses elementos químicos, feitos nessas fornalhas nucleares
que podemos ver em noites de céu estrelado, são os blocos de construção das
nossas células. A célula é a unidade básica da vida. Todos quantos aqui
estão neste ginásio, são feitos de células. Não se sabe ao certo quantas
constituem um organismo complexo, como o ser humano, mas estima-se que
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tenha entre cinquenta e cem biliões de células. Imaginem um 5 com treze
zeros à frente! É esse o número aproximado de células que nos compõe.
Fantástico, não é? Desde que aqui entrámos, já muitas deixaram de estar
funcionais nos nossos corpos. E já muitas se terão formado, entretanto…

Cada célula tem, em média, uma dimensão de 20 micrómetros, ou seja, é


50 vezes mais pequena do que um milímetro. Seriam necessárias dez mil para
cobrir a cabeça de um alfinete. Só no nosso córtex cerebral, o conjunto das
“pequenas células cinzentas”, como lhes chamava Hercule Poirot, há três
vezes mais células do que habitantes na Terra! Dá que pensar…

E assim terminamos esta ideia como começámos: a pensar.

E quanto mais pensamos sobre pormenores mais nos apercebemos de


que eles são, de facto, da maior importância.

Querem V. Ex.as ver como um pormenor nos vira completamente do


avesso?
Dentro do nosso corpo, o sistema respiratório está totalmente coberto de
centenas de cílios que batem todos na mesma direcção e nos ajudam a escoar
as mucosidades e a manter o asseio da respiração. A bióloga Clara Pinto
Correia, explica-nos bem esta fantástica aventura de um pormenor que é,
afinal, maior. A explicação pode parecer um pouco complexa mas o final é tão
bonito que vos desafio a esperarem por ele.
O motor dos tais cílios, tal como o dos flagelos dos espermatozóides,
funciona graças a um sistema proteico perfeitíssimo. Há várias proteínas
envolvidas no movimento dessas estruturas. Uma dessas proteínas chama-se
dineína e está envolvida na tarefa de ajudar os cílios e os flagelos a
deslocarem-se ordenadamente uns em relação aos outros para produzirem
batimentos regulares. Há pessoas que nascem sem determinadas estruturas
formadas por essa proteína dineína. Aí tudo se complica. Se os afectados são
homens, são sempre estéreis, porque os flagelos dos espermatozóides não se
agitam. O aparelho respiratório fica carregado de impurezas porque os cílios
estão paralisados e não podem desempenhar o seu papel de limpeza – daí
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resultando bronquites recorrentes e sinusites crónicas. Mas isso não é tudo. O
mais espantoso é que a ausência de actividade enzimática da dineína interfere
com a organização do embrião da maneira mais estranha deste mundo;
metade das pessoas sem essas estruturas formadas pela dineína nasce com
os órgãos ímpares do lado contrário ao normal: o coração, o fígado, o intestino,
o apêndice, todos se deslocam para o lado de lá, como se cada uma destas
pessoas fosse a nossa imagem no espelho. Uma alteração chamada situs
inversus. Exteriormente nada se nota e algumas pessoas só o descobrem
numa idade mais tardia. Quando lhes dói o coração, estas pessoas levam a
mão ao lado direito do peito.
Cá está um aparente pormenor a virar-nos do avesso.
Imaginem-se V. Ex.as a dançar com uma pessoa com situs inversus. O
coração de V. Ex.as do lado esquerdo. O do par de dança, do lado direito.
Frente a frente, os dois corações sobrepõem-se e batem mais forte.
Eu garanti que o final valia a pena.
Alguém dançando com o avesso.
É tudo uma questão de perspectiva.

Continuemos assim, de desafio em desafio.

Estamos numa instituição que comemorou recentemente duzentos anos


de existência. Uma instituição há duzentos anos na História devido ao esforço,
à vontade e à dedicação de todos quantos por aqui vão passando. Mas
permitam-me V. Ex.as uma irreverente e poética utilização do avessoscópio:
esta data de nascimento está incorrecta. Ou melhor, é imprecisa. E passo já a
fundamentar esta minha proposta. A Natureza há muito que sabia que iria
contribuir para a criação, manutenção e glória desta milenar e não secular
instituição. Dizemos que tem 201 anos, mas algumas partes que o constituem
têm muito mais. Exponho, então, esta minha teoria daqui lançando um novo
desafio: um destes dias, ao subirem a escadaria que liga a Parada Nova aos
Claustros, detenham-se a observar o chão que vão pisando e verão que o
nosso Colégio Militar guarda segredos. Reparem no chão, nos degraus e
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patamares. Os segredos gritados em silêncio fervilham naquelas rochas e
mostram-nos um mundo do avesso que nos vê avessos ao mundo. Um
destes dias atrevam-se a ouvi-los. Sem que nos apercebamos, os nossos pés
calcorreiam um calcário compacto, também chamado lioz, de tons rosa e
branco. Nele jazem marcas de seres vivos, contemporâneos dos dinossauros,
que não são mais do que fósseis de rudistas caprinídeos, seres que tinham
uma forma enrolada e viviam em águas agitadas tendo, por isso, uma concha
espessa. Num dia em que vos sobre tempo, coisa rara, bem sei, entretenham-
se a olhar para o chão. Procurem-nos. Será mais fácil procurarem secções
destes organismos pois parecem pequenas espirais. E quando vos disserem
que o Colégio Militar é uma casa cheia de História, pensem em voz baixa,
“Nem sabem quanto!”.

Como referi, se há coisa que os alunos deste Colégio não têm, é uma
vida calma. Pelo menos em termos físicos. Mas mesmo assim, é tudo uma
questão de perspectiva. As apressadas caminhadas entre o Corpo de Alunos e
os locais de aulas, as tais que acabam por não permitir que olhem para o chão,
perecem quando as comparamos com outras que fazemos sem nos
apercebermos. Passo a explicar. Aqui fechados, sentados ou em pé, mais à
vontade ou em sentido, temos a aparente noção de calma, quietude e
serenidade. No entanto, se pensarmos neste mundo do avesso,
rapidamente nos apercebemos do paradigma da estabilidade. Nada está
parado – tudo se move. A questão está em sabermos o referencial usado.

A velocidade a que a Terra se move à volta da nossa estrela é incrível! O


nosso planeta é uma verdadeira nave espacial e nós, aqui neste ginásio,
sentados ou em pé, somos autênticos viajantes do espaço. É vertiginosa a
velocidade média a que a Terra faz a translação em torno do Sol: 108 000
quilómetros por hora.

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Façamos uma experiência.

Contemos 1 segundo. Já está?

Muito bem.

Neste segundo, a Terra andou cerca de trinta quilómetros em torno do


Sol. Imaginem quanto andou desde que iniciei esta leitura. Fantástico, não é?
Uma velocidade cerca de mil vezes superior à permitida nas nossas auto-
estradas! E em torno do centro galáctico viajamos à estonteante velocidade de
250 km/s!

Por isso, quando partirem do Corpo de Alunos às sete horas e cinquenta


minutos de cada manhã, lembrem-se do esforço que a Terra faz por nós,
viajando a enormes velocidades mas de forma suficientemente doce para que
não enjoemos.

E, nos dias de calor mais intenso, quando os Srs. alunos estiverem


formados debaixo de um Sol que insiste em lembrar de forma aguerrida a sua
tão útil existência, lembrem-se que os raios que vos aquecem e incomodam
percorreram cerca de cento e cinquenta milhões de quilómetros para chegar
até vós, demorando 8 minutos a fazer o trajecto. Nessas alturas, se sentirem
um esmorecimento, usem o avessoscópio e lembrem-se do cansaço da luz que
vos ilumina.

Espero ter contribuído para relativizar algumas das vossas preocupações


e cansaços.

Aproveito o ensejo, para vos falar de algumas outras preocupações da


sociedade actual que, como vou demonstrar, tão fáceis são de resolver, se
usarmos esta nova técnica de ver o mundo do avesso e procuramos aplicar os
nossos conhecimentos de Ciência a par do nosso avessoscópio.

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Bem sabemos que a idade e o peso constituem, para muitos, motivo de
preocupação. Neste colégio, talvez mais o peso que a idade, já que
permanentemente se apela à máxima “Mente sã em corpo são”. Mas, como
referi, tudo é ultrapassável, se soubermos “dar a volta”. Foi assim que me
lembrei de vos convidar a, permitam-me a expressão, “dar uma volta” pelo
nosso sistema solar. Os exemplos que vou partilhar com V. Ex.as podem não
ser muito úteis mas, para além das reflexões científicas que permitem fazer,
sempre constituem material para sonharmos quando uma depressão mais
persistente se intrometer de rompante num dos nossos momentos felizes e de
deslumbramento.

Hoje, 14 de Outubro de 2004, já vivi 11670 dias terrestres, quase trinta e


dois anos ao longo dos quais fui engordando, confesso. Parece-me que esse
peso crescente terá estabilizado por volta dos 85 quilogramas. Não é um bom
exemplo para o Batalhão Colegial, bem sei! Mas peço o favor de usarem o
avessoscópio para descobrirem o lado positivo da questão…
Também peço desculpa por me usar como exemplo e por abusar da
bondade da Física que me permite, condescendente, usar esta unidade de
massa, o quilograma, quando, de facto, me refiro ao peso. Faço-o apenas para
simplificar.

Voltando ao rumo.
Quando me quero divertir e iludir, pego no avessoscópio e vou até Marte.
Aí terei 16 anos e pesarei 32 quilogramas. Serei um adolescente, ainda em
idade colegial, a saborear o maravilhoso céu cor-de-rosa com que este planeta
nos presenteia. Percebo agora porque são felizes os marcianos. Aí poderei
contemplar o Monte Olimpo, o maior vulcão do sistema solar que alcança uma
altura de cerca de 27 km.
Em Vénus, terei perto de 52 anos e pesarei 77 quilogramas. Neste
planeta acontecerá algo curioso: verei o Sol erguer-se a Ocidente (Oeste) e
pôr-se a Oriente (Este).
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Já em Júpiter, pesarei cerca de 201 quilogramas e terei quase 2 anos e
meio.
Não gosto muito de me imaginar no planeta mais afastado do Sol.
Sobretudo porque não é sempre o mesmo. É verdade. As órbitas de Neptuno e
Plutão cruzam-se. Quando os alunos do Batalhão Colegial nasceram, era
Neptuno e não Plutão, o planeta que mais afastado estava do Sol. Desde 1980
e até 14 de Março de 1999 foi isso que aconteceu. Quando vos perguntarem
qual é o planeta mais afastado, peguem no avessoscópio e respondam:
depende!
Em Plutão, pesarei pouco mais do que 5,5 kg e ainda não terei sequer 1
ano de idade.

E já que falei de vida extraterrestre, partilho com V. Ex.as a visão que o


endiabrado Calvin conta ao seu tigre Hobbes: “Às vezes penso que a prova
acabada de que existe vida inteligente algures no Universo é que até hoje não
houve um único ser que tentasse contactar-nos”. Pelos vistos, o Calvin também
já descobriu o avessoscópio…

Nesta viagem pelo sistema solar vou terminar na Lua. Aqui no Colégio
não gostamos que esse planeta seja habitado pelos Srs. alunos durante as
aulas, as cerimónias e as actividades de responsabilidade. Mas a atracção que
este astro exerce sobre nós é forte e milenar. Muitas foram as canções e os
poemas escritos tendo a Lua como inspiração e mote. Quantos amantes
apaixonados namoraram ao luar. Mas como será esta nossa companheira,
causadora das marés, vista através do avessoscópio?
Estamos tão habituados ao que nos rodeia que não lhe damos grande
atenção. A bela cor azul de um céu límpido parece-nos algo perfeitamente
natural. No entanto, é um privilégio do nosso planeta que lhe é proporcionado
pela sua atmosfera. A Lua não possui qualquer atmosfera pelo que o céu de
dia ou de noite é sempre negro.

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Imaginemos que seria possível estarmos neste momento na Lua, sem
quaisquer fatos pressurizados, e que eu falava sem microfones. Colocar-se-
me-ia um grande problema.
[…]
Exactamente, seria essa a estranha sensação de não me fazer ouvir.
Como na Lua não há atmosfera não há suporte material para o som se
propagar. E quem diz na Lua diz no espaço em geral. Portanto, peguem no
avessoscópio e apliquem-no aos filmes de Hollywood. Não deixem de se
deslumbrar, sonhar, maravilhar, mas munam-se do espírito crítico quando
ouvirem as ruidosas explosões do Star Wars…
Na superfície lunar, com cerca de 14 quilogramas, poderei observar
cerca de 30 mil crateras. Mas há quatro especiais. Têm o nome associado a
portugueses notáveis o que as torna… notáveis. Vasco da Gama, Pedro
Nunes, Fernão de Magalhães e o menos conhecido Cristobal Acosta.

Já agora que entrámos nesta onda patriótica, talvez também não seja do
conhecimento de V. Ex.as que, entre Marte e Júpiter, a cerca de 485 milhões de
quilómetros do Sol, isto é, cerca de três vezes mais afastado do que a Terra,
orbita um pequeno asteróide cujo nome é… PORTUGAL.
Na noite de hoje, quando olharem para o céu não verão a Lua. Estamos
na fase de Lua Nova. Mas, se fossem selenitas, ou seja, habitantes do nosso
satélite, poderiam deslumbrar-se com a Terra Cheia. Talvez cheia de
avessoscópios apontados para o céu!

E aqui vem um penúltimo desafio que nos permite concluir que a


Astronomia está, de facto, em toda a parte.

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Analisemos a estrofe 89 do canto X da magnífica obra Os Lusíadas,
escrita por Luís de Camões, e descodifiquemos a maravilhosa e
contextualizada mensagem que nos transmite.
(X, 89)
Debaxo deste grande Firmamento,
Vês o céu de Saturno, Deus antigo;
Júpiter logo faz o movimento,
E Marte abaxo, bélico inimigo;
O claro Olho do céu, no quarto assento,
E Vénus, que os amores traz consigo;
Mercúrio, de eloquência soberana;
Com três rostos, debaxo vai Diana.

É maravilhoso o confronto com esta visão, ainda geocêntrica, do sistema


solar sabiamente apresentada pelo poeta. Com a sua imensa mestria, Camões
explica-nos como, na altura, se concebia a organização dos astros, apesar das
ideias heliocêntricas estarem já a ser ventiladas de forma mais fundamentada.
Em volta da Terra havia sete esferas, para além das quais estaria o
firmamento. Saturno ocupava a sétima esfera. Júpiter orbitava a Terra na sexta
e Marte ocupava a quinta. O claro Olho do céu, bem se vê, o Sol, ocupava o
quarto assento. Vénus a terceira esfera, Mercúrio a segunda e Diana, a Lua,
com os seus três rostos (uma menção às suas fases) ocupava a primeira.
Esta é apenas uma das preciosas pérolas astronómicas com que Luís de
Camões nos presenteia ao longo dos Lusíadas. Aqui fica o convite. Que tal
folhearmos esta magnífica obra com um olho avessoscópico?

Sete planetas. O número sete reveste-se de um carácter místico.


Sete planetas, setes esferas, sete cores do arco-íris, sete vidas de um
gato, sete dias da semana, sete anos até à Récita, entre outros. E sete os
desafios que vos lancei.

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Falta bem pouco para terminar. Mas não o poderia fazer sem vos mostrar
como os céus pensam em tudo, de facto. Os alunos deste Colégio conhecem
bem o útil Calisto, o caderninho que trazem junto ao corpo e que permite
anotar, porque não, os mundos do avesso que os Srs. alunos vão encontrando.
Por certo, nunca usaram o avessoscópio para o analisar. A origem do nome
será outra mas aproveito para partilhar convosco uma nova perspectiva.
Galileu Galilei foi o primeiro a observar as quatro maiores luas de Júpiter
em 1610: Io, Ganimedes, Calisto e Europa, colectivamente chamadas luas
galileanas. Os nomes destas quatro luas têm que ver com o facto de serem
jovens que se enamoraram por Zeus, o deus grego que os romanos
apelidaram de Júpiter. Destas, realçamos Calisto. Calisto era uma ninfa
«belíssima» e uma virgem da corte de Ártemis. Zeus encantou-se com a jovem
e engravidou-a de Árcade. Ártemis zangou-se e transformou-a em ursa. Mas
Zeus transformou-a numa constelação, a Ursa Maior. Assim, numa noite de
céu escuro e limpo, mesmo com a poluição luminosa que se nota nos céus de
Lisboa, olhai para a Ursa Maior. Aí está Calisto que não cabe nos vossos
bolsos mas reina nos lados de Norte, bem perto da estrela polar. Talvez por
isso, munidos do Calisto, os alunos não percam nunca o Norte.

E estamos mesmo a terminar esta viagem pelos mundos do avesso.


Espero ter contribuído com algumas pistas para uma visão alternativa da
realidade que se tenta impor quotidianamente. Continuem a usar o
avessoscópio. Se procurarem nas bandeiras da Austrália, do Alaska, do
Brasil, nos quadros de Van Gogh, de Elsheimer, de Vermeer e nos frescos de
Giotto, na Bíblia, na história dos calendários, nos filmes de Hollywood, no
espólio fílmico e musical dos Monty Python, no primeiro filme do Shrek, na
música Vincent de Don MacLean, no livro Viagem à Lua, de Cyrano de
Bergerac, nos poemas de Nemésio, nos textos de Italo Calvino, nas Aventuras
de Tintim e de Lucky Luke, nas tiras de Bill Watterson e muitos outros,
encontrarão triliões de motivos para gostarem de estar vivos.

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Cantem sempre como os Ornatos Violeta: “Ouvi dizer que o mundo
acaba amanhã e eu tenho tantos planos p’ra depois”. (Adaptado)

Nem que tenham de fazer como o poeta holandês que nos conta a
história de um homem que acredita. Acredita, apesar de tudo. Constrói e tem
força. Diz-nos ele:
Poesia é, para mim, a história
Que me contaram em tempos
De um homem que no seu sótão
Construíra um avião de cimento
E, orgulhoso, a todos afirmava
Que voar, de facto, o avião podia,
Só que… não passava no postigo!

Rien Vroegingdeweij
Poeta contemporâneo holandês

Termino como comecei, citando gente que pensou o mundo. Olhou-o


doutros prismas e ousou. Por isso o mudou. Aqui ficam, então, as sábias
palavras do escritor argentino Jorge Luís Borges quando, em 1984, visitou o
Egipto:
A uns trezentos ou quatrocentos metros da pirâmide,
baixei-me, agarrei num punhado de areia, deixei-o cair
silenciosamente mais à frente e disse em voz baixa:
“Estou a modificar o Sara”.

Na minha mão está areia. E nas vossas?


Tenho dito

FIM

Luz, 14 de Outubro de 2004

Rui Jorge Vieira Farinha


Professor do Quadro de Nomeação Definitiva em regime de Requisição no Colégio Militar
desde Setembro de 2003.
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