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PRÓLOGO
“...tínhamos a nosso alcance o domínio do mundo.
Nossos antigos inimigos, os sartan, assistiam impotentes
nosso auge. A certeza de que seriam obrigados a viver sob
nosso comando era mortificante para eles, amarga como o
absinto, e decididos a tomar medidas drásticas, cometeram
um ato de desespero quase impossível de conceber. Para
não permitir que dominássemos o mundo, os sartan o
destruíram.
“Em seu lugar, criaram quatro novos mundos,
formados com os elementos do velho: Ar, Fogo, Terra e
Água. Os povos do mundo que sobreviveram ao holocausto
foram transportados para estes mundos para que os
habitassem. Nós, o antigo inimigo, fomos jogados em uma
prisão mágica conhecida como o Labirinto.
“Segundo os registros que descobri no Elo, os sartan
esperavam que a vida na prisão nos “reabilitasse”, que
sairíamos do Labirinto, com nossa natureza — dominante e
que eles denominavam cruel — apaziguada. Mas algo saiu
errado. Nossos carcereiros sartan, aqueles que deveriam
controlar o Labirinto, desapareceram. E o próprio Labirinto
tomou seu lugar, e, da prisão, transformou-se em verdugo.
“São incontáveis os filhos de nosso povo que
morreram nesse lugar espantoso. Gerações inteiras foram
aniquiladas. Mas, antes de ser destruída, cada uma delas
conseguiu ganhar terreno ao Labirinto e deixar seus
descendentes um pouco mais perto da liberdade. Por fim,
graças a meus extraordinários poderes mágicos, consegui
derrotar o Labirinto e fui o primeiro a escapar de suas
armadilhas. Atravessei a Porta Final e emergi neste mundo,
conhecido como o Elo. Aqui, vi o que os sartan tinham feito
conosco e descobri a existência de quatro novos mundos e
as relações entre eles. Mas o que é mais importante:
descobri a Porta da Morte.
“Retornei ao Labirinto — continuo fazendo isso com
freqüência — e utilizei minha magia para combater e
estabilizar diversas partes dele, proporcionando assim
refúgios seguros para o resto de minha gente, que ainda
luta por libertar-se de seu cativeiro.
Quem consegue, chega ao Elo e trabalha para mim,
levantando a cidade e preparando-se para o dia em que de
novo ocuparemos o lugar que nos corresponde como donos
do universo. Com este fim, decidi mandar exploradores a
cada um dos quatro mundos, através da Porta da Morte.”1
4
Elaborado com um composto de depósitos de cálcio procedentes dos ossos de animais, mesclados com
outros elementos orgânicos até formar uma massa dúctil e manejável. (N. do A.)
Paithan se balançou na cadeira, sua irmã continuou
murmurando e os ventiladores continuaram girando
tranqüilamente.
Os elfos adoravam a vida e por isso a envolviam de
magia em quase todas as suas criações. As plumas
produziam a ilusão de estarem presas à asa do cisne.
Enquanto as contemplava, Paithan pensou que constituíam
uma boa analogia de sua família: todos os seus membros
viviam na crença ilusória de ainda estarem vinculados a
algo, talvez até uns aos outros.
Suas aprazíveis meditações foram interrompidas pela
aparição de um elfo sujo de fuligem, desalinhado e com as
pontas dos cabelos chamuscados, que entrou na sala aos
saltos e esfregando as mãos.
— Desta vez não foi ruim, não é? — comentou.
De baixa estatura para um elfo, era evidente que em
outra época tinha sido obeso. Nos últimos tempos, suas
carnes se tornaram fofas, e sua pele, cítrica e ligeiramente
torcida. Embora a capa de fuligem ocultasse, o cabelo cinza
que rodeava a extensa calva indicava que estava na
maturidade. Se não fosse pelas cãs, teria sido difícil calcular
a idade do elfo pois sua pele era lisa, sem uma ruga. E
olhos brilhantes; muito brilhantes. O recém-chegado
esfregou as mãos e olhou alternada e nervosamente para
seus filhos.
— Desta vez não foi ruim, não é? — repetiu.
— Certamente que não, chefe — assentiu Paithan, de
bom humor. — Um pouco mais e caio de costas.
Lenthan Quindiniar lhe dirigiu um sorriso
espasmódico.
— Calandra? — insistiu.
— Você conseguiu deixar a ajudante de cozinha
histérica e causou novas rachaduras no teto, se for a isso
ao que se refere, pai — replicou Calandra, fazendo um
gesto irritado.
— Você cometeu um erro! — o ábaco disse de
repente. Calandra dirigiu um olhar de raiva ao aparelho,
mas este se manteve firme. — Quatorze mil seiscentos e
oitenta e cinco mais vinte e sete não são quatorze mil
seiscentos e doze. São quatorze mil setecentos e doze.
Você esqueceu de puxar uma.
— Fique satisfeito que eu só tenha cometido um erro!
Viu o que fez, pai? — exclamou Calandra. Lenthan se
mostrou bastante abatido durante alguns instantes, mas
recuperou o ânimo em seguida.
— Agora não falta muito — comentou, esfregando as
mãos. — Desta vez, o foguete subiu acima da minha
cabeça. Acredito que estou perto de encontrar a mistura
adequada. Vou ao laboratório outra vez, meus queridos.
Estarei ali se alguém precisar de mim.
— Isto é muito provável! — murmurou Calandra.
— Vamos, deixe o chefe tranqüilo — disse Paithan,
observando com ar divertido o elfo sujo de fuligem que,
depois de uma hesitação, retrocedia entre os belos móveis
até desaparecer por uma porta traseira da cozinha. — Por
acaso prefere vê-lo como estava depois da morte de nossa
mãe?
— Preferiria vê-lo normal, se está se referindo a isso,
mas suponho que é pedir muito. Entre os namoros de Thea
e o estado mental do pai, somos os bobos da cidade.
— Não se preocupe, querida irmã. Possivelmente
alguns zombam, mas o farão sempre às escondidas
enquanto for você que arrecada o dinheiro dos Senhores da
Thillia. Além disso, se o velho recuperasse o juízo, voltaria a
cuidar do negócio.
— Ora! — Resmungou Calandra. — Não utilize essas
expressões. Já disse que não as suporto. É o que acontece
quando se anda por aí com amigos como esses seus. Um
grupo de indolentes...
— Erro! — Informou o ábaco. — Tem que...
— Já vou corrigir! — Calandra franziu o cenho,
consultou a última anotação e, com um gesto irritado,
voltou a somar as quantidades.
— Deixe que essa... essa coisa se encarregue das
contas — Paithan apontou para o ábaco.
— Não confio nas máquinas. Silêncio! — exclamou
Calandra quando seu irmão se dispunha a acrescentar algo
mais.
Paithan permaneceu em silêncio por alguns
momentos, abanando-se, enquanto se perguntava se teria
energia suficiente para chamar o criado e lhe mandar trazer
um copo de ambrosia fria... um que não estivesse cheio de
gesso. Entretanto, dado seu caráter, o jovem elfo era
incapaz de ficar calado muito tempo.
— Falando de Thea, onde ela está? — perguntou,
voltando a cabeça como se esperasse vê-la emergir de
debaixo de alguma das capas que protegiam vários móveis
da sala.
— Na cama, é obvio. Ainda não é a hora do vinho —
respondeu sua irmã, referindo-se ao período do final de
cada ciclo5 conhecido como “arrebatamento” em que os
elfos deixavam o trabalho e relaxavam tomando um copo
de vinho com especiarias.
Paithan balançou-se para frente e para trás. Estava se
aborrecendo. O nobre Durndrun ia sair com um grupo para
navegar pelo lago da árvore e ofereceria um jantar
campestre a seguir e, se Paithan quisesse participar, já era
hora de vestir-se adequadamente e se por a caminho. Até
sem ser de berço nobre, o jovem elfo era suficientemente
rico, bonito e encantador para fazer nome entre a
aristocracia. Faltava-lhe a educação da nobreza mas era
preparado o bastante para reconhecer e não tentar fingir
ser algo diferente do que era: o filho de um comerciante de
classe média. O fato de que esse pai comerciante de classe
média fosse, precisamente, o elfo mais rico de toda Equilan,
mais rico até (assim se dizia) que a própria rainha,
compensava suas ocasionais quedas na vulgaridade. O
5
A sociedade élfica de Equilan mede o tempo da seguinte maneira: uma hora tem cem minutos, vinte e
uma horas são um ciclo, cinqüenta ciclos são uma estação, e cinco estações, um ano. A medição do
tempo varia de um lugar a outro em Pryan, segundo as condições meteorológicas locais. Ao contrário do
mundo de Ariano, onde existe o dia e a noite, em Pryan nunca há sol. (N. do A.)
jovem elfo era um bom camarada que gastava o dinheiro
com prodigalidade.
“É um diabo interessante; conta as histórias mais
extravagantes”, havia dito um dos nobres.
A educação de Paithan vinha do mundo, não dos
livros. Depois da morte de sua mãe, uns oito anos atrás, e a
posterior queda de seu pai na loucura e na enfermidade,
Paithan e sua irmã mais velha se encarregaram dos
negócios familiares. Calandra ficava em casa e controlava a
contabilidade da próspera empresa de armamentos.
Embora fizesse mais de cem anos que os elfos não iam à
guerra, os humanos ainda gostavam de praticá-la, e mais
ainda gostavam das armas mágicas que os elfos criavam.
Paithan se encarregava de sair pelo mundo, negociar os
contratos, assegurar-se que os envios eram entregues e
manter os clientes satisfeitos.
Devido a isso, tinha viajado por todas as terras da
Thillia e em uma ocasião se aventurou até aos próprios
territórios dos reis do mar, para o norint. Os nobres elfos,
pelo contrário, raramente abandonavam suas propriedades
nas copas das árvores. Muitos deles nem sequer tinham
pisado nas partes inferiores de Equilan, seu próprio reino.
Devido a isso, Paithan era considerado uma maravilhosa
raridade e era cortejado como tal.
Paithan tinha consciência de que os nobres e as
damas o viam como um macaco doméstico. A alta
sociedade elfa não o aceitava totalmente. Ele e sua família
eram convidados ao palácio real uma vez ao ano, em uma
concessão da rainha a quem mantinha as arcas cheias, mas
isso era tudo. Nada disso preocupava Paithan.
Em compensação, o fato de que alguns elfos que não
tinham a metade da preparação e não tinham nem a quarta
parte de suas riquezas olharem para os Quindiniar por cima
do ombro porque estes não podiam reconstruir sua árvore
genealógica até o tempo da Peste incomodava Calandra
como uma flecha no peito. Não encontrava nenhuma
virtude na “nobreza” e, ao menos na frente do irmão,
deixava patente o desdém que lhe inspirava. E a irritava
muitíssimo que Paithan não compartilhasse seus
sentimentos.
Paithan, achava os nobres elfos quase tão divertidos
como eles o consideravam. Sabia que, se propusesse
matrimônio a qualquer uma das filhas de um dos duques,
haveria abraços e soluços e lágrimas ante a idéia de que a
“querida filha” se casasse com um plebeu... e o casamento
seria celebrado logo que a etiqueta cortesã permitisse.
Afinal, as casas nobres precisavam de dinheiro para se
manter.
O jovem elfo não tinha intenção de se casar; ao
menos, no momento. Procedia de uma família de
aventureiros e migrantes cujos antepassados eram os
exploradores elfos que tinham descoberto a omita. Ficara
quase uma estação completa em casa e era hora de viajar
outra vez, razão pela qual estava ali sentado junto a sua
irmã, quando deveria encontrar-se remando em um bote
acompanhado de alguma daminha encantadora. Mas
Calandra, abstraída em seus cálculos, parecia ter se
esquecido de sua presença. Paithan decidiu de repente que,
se ouvisse estalar outra vez as contas do ábaco, ia se
“chatear” (outra expressão de “seu uso” que provocaria a
irritação de Calandra).
Paithan tinha uma notícia para sua irmã que estivera
guardando para um momento como aquele. Uma notícia
que provocaria uma explosão parecida com a que tinha
sacudido a casa um momento antes, mas que tiraria
Calandra de sua concentração. Assim, Paithan poderia
escapar dali.
— O que você acha de nosso pai ter mandado chamar
um sacerdote humano? — perguntou.
Pela primeira vez desde que entrara na habitação,
sua irmã interrompeu seus cálculos, levantou a cabeça e
olhou para ele.
— O que?
— Nosso pai mandou chamar um sacerdote humano.
Pensei que você soubesse. — Paithan piscou
repetidamente, aparentando inocência.
Nos olhos escuros de Calandra apareceu um fulgor.
Seus lábios se apertaram. Depois de secar a pluma com
meticuloso cuidado em um pano manchado de tinta que
utilizava expressamente com tal propósito, deixou-a com
delicadeza em seu lugar correspondente, sobre o livro de
contabilidade, e voltou a cabeça para seu irmão,
dedicando-lhe toda a sua atenção.
Calandra nunca tinha sido bela. Toda a beleza da
família, dizia-se, tinha sido reservada e concedida a sua
irmã menor. Calandra era tão magra que seu aspecto era
quase cadavérico. (Quando criança, Paithan tinha recebido
uma palmadas ao perguntar se sua irmã prendera o nariz
em algum lugar.) Agora, parecia que toda sua cara tinha
sido comprimida em uma prensa. Usava o cabelo preso
para trás num coque apertado no alto da cabeça, preso
com três pentes de pontas agudas e aspecto atroz. Sua
pele tinha uma palidez mortal, pois raramente abandonava
o interior da casa e, quando o fazia, usava um guarda-sol
como proteção. Suas roupas severas eram sempre
confeccionadas segundo o mesmo patrão: abotoadas até o
queixo e com saias que se arrastavam pelo chão. Calandra
nunca tinha se importado em não ser bela. A beleza era
importante para a mulher que pretendesse apanhar um
homem, mas Calandra não queria nenhum.
— Afinal — Calandra gostava de dizer, — o que são os
homens além de seres que gastam seu dinheiro e se metem
em sua vida?
“Todos, exceto eu”, pensou Paithan. “E isso porque
Calandra cuidou de me educar como devia.”
— Não acredito — disse ela.
— Claro que sim. — Paithan estava se divertindo. — Já
sabe que o sex... perdão, foi um deslize... que nosso pai
está louco o bastante para fazer algo.
— Como você soube?
— Porque na última hora de jantar fiquei no bar do
velho Rory tomando uma taça rápida antes de ir para a
casa de...
— Não me interessa para onde foi — cortou Calandra,
em cuja testa apareceu uma ruga. — Rory não te contou
esse rumor, não é?
— Creio que sim, querida irmã. O louco de nosso pai
estava no bar, falando de seus foguetes, e saiu com a
notícia de que tinha chamado um sacerdote humano.
— No bar! — Calandra arregalou os olhos, aterrada. —
Muita... muita gente ouviu?
— Certamente que sim! — respondeu Paithan,
animadamente. — Era sua hora de costume, já sabe, justo a
hora do vinho, e o local estava abarrotado.
Calandra soltou um gemido rouco e seus dedos se
fecharam em torno do marco do ábaco, que protestou
sonoramente.
— Talvez nosso pai tenha... imaginado — murmurou.
Entretanto, sua voz soou desesperançada. Às vezes,
Lenthan Quindiniar estava muito ligado em sua loucura.
Paithan moveu a cabeça.
— Não — disse. — Falei com o homem dos pássaros.
Seu ánsar6 levou a mensagem a Gregory, Senhor da Thillia.
A nota dizia que Lenthan Quindiniar de Equilan queria
consultar um sacerdote humano a respeito de viagens às
estrelas. Comida, alojamento e quinhentas pedras.7
Calandra lançou um novo gemido, mordeu o lábio e
exclamou:
— Seremos assediados!
— Não, não. Eu acho que não. — Paithan sentiu certo
remorso por ser a causa daquele desgosto. Acariciou os
dedos duros de sua irmã. — Desta vez possivelmente
teremos sorte, Cal. Os sacerdotes humanos vivem em
6
Ave voadora da família dos gansos do mar utilizados para comunicações a longa distância. Um ganso
selvagem devidamente treinado, voa entre dois pontos sem jamais se perder. (N. do A.)
7
Medida de mudança de Equilan. É um papel de troca pelo equivalente em pedras, que são
extremamente escassas e só podem ser encontradas no fundo do mundo de Pryan. (N. do A.)
monastérios. Sua principal ocupação é intervir em política e
tentar nos fazer voltar para os Senhores Perdidos.
— Tem certeza disso? — As bochechas pálidas de
Calandra tinham recuperado parte da cor.
— Bom, não muito — reconheceu Paithan, — mas
estive muito tempo com os humanos e os conheço bem. Por
um lado, não gostam de vir a nossas terras, e tampouco
gostam de nós. Não creio que devamos nos preocupar com
a aparição desse sacerdote.
— Mas, por que? — Calandra quis saber. — Por que
nosso pai fez uma coisa assim?
— Porque os humanos acreditam que a vida veio das
estrelas, as quais segundo eles, são na realidade cidades e
pregam que algum dia, quando em nosso mundo reinar o
caos, os Senhores Perdidos retornarão e nos conduzirão a
elas.
— Tolice! — replicou ela, crispada. — Todo mundo
sabe que a vida provém de Peytin Sartan, Matriarca do
Paraíso, que criou este mundo para seus filhos mortais. As
estrelas são suas filhas imortais, que nos vigiam. — A elfa
pareceu contrariada ao compreender as conseqüências do
que estava dizendo: — Você não acha que nosso pai
acredita no que acaba de me dizer, não é? Seria... É uma
heresia!
— Parece-me que está começando a acreditar —
assentiu Paithan com ar mais sombrio. — Se parar para
pensar, Calandra, para ele faz sentido. Já estava
experimentando o emprego de foguetes para transportar
mercadorias antes que nossa mãe morresse. Então, ela
morre e nossos sacerdotes lhe dizem que ela foi para o céu
para ser uma das filhas imortais. Nosso pobre pai perde um
parafuso e tem a idéia de utilizar os foguetes para ir
encontrá-la. Depois, perde outro parafuso e decide que
talvez ela não seja imortal, mas apenas viva lá em cima, sã
e salva, em uma espécie de cidade.
— Orn bendito! — Calandra emitiu um novo lamento.
Permaneceu em silêncio por alguns instantes,
contemplando o ábaco e movendo entre os dedos uma das
contas. — Vou falar com ele — disse por fim.
Paithan se esforçou em manter o domínio de sua
expressão.
— Sim, talvez seja uma boa idéia, Cal. Vá falar com
ele.
Calandra ficou em pé, com um sussurro cerimonioso
da saia. Fez uma pausa e olhou para seu irmão.
— Íamos falar do próximo embarque...
— Isso pode esperar até manhã. O que temos nas
mãos é muito mais importante.
— Ora! Não precisa fingir que está tão preocupado.
Sei o que você quer, Paithan. Cair em uma dessas farras
amalucadas com seus amigos da nobreza em lugar de ficar
em casa, cuidando do negócio como deveria. Mas tem
razão, embora seja provável que não tenha juízo suficiente
para saber. Isto é mais importante. — Abaixo deles soou
uma explosão abafada, um estrondo de pratos caindo e um
grito vindo da cozinha. Calandra suspirou. — Vou falar com
ele, embora eu duvide que sirva de algo. Se conseguisse
que ele ficasse de boca fechada...
Fechou o livro de contabilidade com um golpe forte.
Com os lábios apertados e as costas rijas, encaminhou-se
para a porta do extremo oposto da cozinha. Tinha os
quadris tão firmes como as costas; nada de atraentes
balanços de saia para Calandra Quindiniar.
Paithan abanou a cabeça.
— Pobre chefe — murmurou. Por alguns momentos,
sentiu verdadeira pena dele. Depois, agitando o ar com o
leque, foi para seu quarto vestir-se.
CAPÍTULO 2
EQUILAN,
COPA DAS ÁRVORES
8
Pedra ímã. Quindiniar foi o primeiro a descobrir e reconhecer suas propriedades, que, pela primeira
vez, tornaram possíveis as viagens por terra. Até o descobrimento da omita, os viajantes não tinham
modo de saber que direção seguiam e se perdiam irremediavelmente na selva. A localização da pátria é
um segredo de família que se guarda zelosamente. (N. do A.)
azedado o leite. De fato, esteve a ponto de gelar o sangue
de seu pai. Quando Lenthan viu sua filha naquele lugar que
tanto lhe desagradava, empalideceu e se aproximou
nervoso do outro elfo presente no cômodo. O elfo sorriu e
fez uma reverência superficial. A expressão de Calandra se
nublou ao vê-lo.
— Quanto... quanto me alegro em vê-la por aqui,
queria... — balbuciou o pobre Lenthan, depositando um
pote de um líquido pestilento sobre uma mesa imunda.
Calandra enrugou o nariz. O musgo que cobria as
paredes e o chão emitia um aroma acre e almiscarado que
não combinava bem com os diversos aromas químicos,
sobretudo sulfurosos, que impregnavam o laboratório.
— Querida Calandra — disse o elfo que acompanhava
seu pai, — espero que esteja bem de saúde.
— Estou, Professor Astrólogo. Agradeço o interesse e
também espero que se encontre bem.
— Pois é, o reumatismo me incomoda um pouco, mas
é algo a esperar na minha idade.
“Quem dera esse reumatismo o levasse, velho
charlatão!”, murmurou Calandra para si mesma.
“O que esta bruxa veio fazer aqui?”, perguntou-se o
astrólogo.
Lenthan ficou entre os dois com uma expressão
desventurada e culpada, embora não tivesse idéia, ainda,
do que tinha feito.
— Pai — disse Calandra com voz severa, — quero
falar com você. A sós.
O astrólogo fez outra reverência e começou a retirar-
se. Lenthan, vendo que ficava sem apoio, segurou-o pela
manga.
— Vamos, querida, Elixnoir faz parte da família...
— Certamente, come o suficiente para ser parte dela
— cortou Calandra, esquecendo a paciência e deixando-se
levar pelo terrível mau humor que a tomara ao receber
notícia da chegada do sacerdote humano. — Come o
suficiente para fazer parte várias vezes!
O astrólogo se empertigou, e seus olhos a olharam
por cima de um nariz longo e quase tão comprido e magro
como as pontas do manto azul escuro entre as quais
aparecia.
— Calandra! Lembre-se que ele é nosso convidado! —
Exclamou Lenthan, escandalizado ao ponto de repreender
sua filha maior. — E um Professor Feiticeiro!
— Convidado, sim, nisso tem razão. Elixnoir não
perde nunca uma boa comida, nenhuma ocasião de provar
nosso vinho nem de ocupar nosso quarto de hóspedes. Em
compensação, duvido muito de sua mestria nas artes
mágicas. Ainda não o vi fazer outra coisa além de
murmurar quatro palavras sobre essas poções pestilentas
que você prepara, pai, e depois afastar-se delas para
contemplar como borbulham e soltam fumaça. Vocês dois,
qualquer dia desses colocarão fogo na casa! Feiticeiro! Sei!
Ele só faz, pai, te encher a cabeça com blasfêmias sobre
pessoas que viajavam às estrelas em naves com velas de
fogo...
— Trata-se de feitos científicos, jovenzinha! —
interveio o astrólogo. As pontas da barba tremiam de
indignação. — O que fazemos, seu pai e eu, são
investigações científicas e não tem nada a ver com religiões
ou...
— Como não? — Interrompeu-o Calandra, lançando a
estocada verbal diretamente ao coração de sua vítima. —
Então, por que meu pai mandou trazer um sacerdote
humano?
Os olhos do astrólogo, pequenos como contas,
arregalaram-se de surpresa. A capa engomada se virou de
Calandra para o desventurado Lenthan, que pareceu
desconcertado com as palavras da filha.
— Isso é verdade, Lenthan Quindiniar? — perguntou o
feiticeiro, enfurecido. — Mandou chamar um sacerdote
humano?
— Eu... eu... — foi só o que Lenthan conseguiu
balbuciar.
— Assim, o senhor me enganou — declarou o
astrólogo. A cada momento que passava, aumentava sua
indignação e, com ela, parecia crescer o pescoço da capa.
— Me fez acreditar que compartilhava nosso interesse pelas
estrelas, seus ciclos e suas posições no céu.
— E assim era! É! — Lenthan retorceu as mãos
enegrecidas de fuligem.
— Afirmava estar interessado no estudo científico de
como estas estrelas regem nossas vidas...
— Blasfêmia! — exclamou Calandra, com um
estremecimento em seu corpo ossudo.
— E agora, em vez disso, descubro-o associado a
um... um...
Faltaram as palavras ao feiticeiro. O pescoço bicudo
da capa pareceu fechar-se em torno de seu rosto de modo
que só ficaram à vista, acima dela, seus olhos brilhantes e
enfurecidos.
— Não! Por favor, deixe-me explicar! — Grasnou
Lenthan. — Veja, meu filho me falou da crença dos
humanos na existência de gente que vive nessas estrelas e
pensei que...
— Paithan! — Calandra exclamou, identificando um
novo culpado.
— Que vive gente lá! — resmungou o astrólogo,
desdenhoso, com a voz sufocada atrás da roupa engomada.
— Pois me parece possível... e, certamente, explica
por que os antigos viajaram às estrelas e concorda com os
ensinamentos de nossos sacerdotes de que, quando
morremos, tornamo-nos um com as estrelas. Sinceramente,
sinto falta de Elithenia...
Disse isto com uma voz desventurada e suplicante
que despertou a piedade de sua filha. A seu modo, Calandra
amava sua mãe, assim como amava seu irmão e a sua irmã
mais nova. Era um amor severo, inflexível e impaciente,
mas amor e a moça se aproximou e pousou seus dedos
magros e frios no braço do pai.
— Vamos, pai, não se altere. Não tinha intenção de
inquietá-lo, mas acredito que deveria ter discutido o
assunto comigo antes de... de fazê-lo com os paroquianos
do botequim da Água Dourada! — Calandra não pôde
reprimir um soluço. Tirou um decoroso lenço e cobriu com
ele a boca e o nariz.
As lágrimas de sua filha produziram o efeito
(perfeitamente calculado) de esmagar Lenthan Quintiniar
completamente, como se o tivessem enterrado doze
palmos abaixo9 do musgo. O pranto de Calandra e o tremor
das pontas da capa do feiticeiro eram muito para o velho
elfo.
— Vocês têm razão — declarou, olhando-os
alternadamente com ar pesaroso. — Percebo que cometi
um engano terrível. Quando o sacerdote chegar, mandarei
que parta imediatamente.
— Quando chegar! — Calandra ergueu os olhos, já
secos, e observou seu pai. — Como assim quando chegar?
Paithan me disse que não viria...
— E como ele sabe? — perguntou Lenthan, perplexo.
— Falou com ele depois de mim? — O elfo levou uma mão
cerúlea ao bolso do colete de seda e tirou uma folha
enrugada de papel. — Olhe, querida — acrescentou,
mostrando a carta.
Calandra a agarrou e a leu com olhos febris.
— “Quando me vir, estarei aí. Assinado, o Sacerdote
Humano.” Ora! — Calandra devolveu a carta a seu pai com
desprezo. — Isto é ridículo... Tem que ser uma brincadeira
de Paithan. Ninguém em juízo perfeito mandaria uma carta
assim. Nem sequer um humano. O Sacerdote Humano! Por
favor!
— Talvez não esteja em seu juízo perfeito, como você
disse — disse o Professor Astrólogo em tom sinistro. Um
sacerdote humano louco estava a caminho.
9
Profundidade a que são enterrados no musgo os elfos mortos. (N. do A.)
— Que Orn tenha piedade de nós! — murmurou
Calandra, agarrando o canto da mesa do laboratório para
sustentar-se.
— Vamos, vamos, querida — disse Lenthan, passando
o braço pelos seus ombros. — Eu cuidarei disso. Deixe tudo
em minhas mãos. Não precisa se preocupar com nada.
— E, se eu puder ser de alguma ajuda — o Professor
Astrólogo cheirou o ar; da cozinha chegava o aroma de um
assado de targ, — ficarei feliz em colaborar também. Até
poderia esquecer de certas coisas ditas no calor de uma
discussão agitada.
Calandra não deu atenção ao mago. Tinha recuperado
o domínio de si mesma e seu único pensamento era
encontrar o quanto antes aquele seu irmão desprezível para
lhe arrancar uma confissão. Não tinha nenhuma dúvida —
melhor dizendo, tinha poucas dúvidas — que tudo aquilo
era obra de Paithan, uma amostra do que entendia por uma
brincadeira pesada. Provavelmente, pensou, naquele
instante estaria rolando de rir às suas costas. Continuaria
rindo quando lhe cortasse sua renda pela metade?
Deixando o astrólogo e seu pai para que explodissem
naquele porão, se assim quisessem, Calandra subiu a
escada com passos enérgicos e atravessou a cozinha, onde
a escrava se escondeu atrás de um trapo de secar até que
o horrível espectro tivesse desaparecido. Subiu ao terceiro
nível da casa, onde estavam as quartos, deteve-se em
frente a porta do quarto de seu irmão e chamou
sonoramente.
— Paithan! Abra a porta agora mesmo!
— Ele não está — disse uma voz sonolenta vindo do
fundo do corredor. Calandra lançou um olhar furioso à porta
fechada, chamou de novo e forçou um par de vezes o
trinco. Não escutou nenhum ruído. Virou-se, continuou
avançando pelo corredor e entrou no quarto de sua irmã
mais nova.
Vestida com uma camisola que mostrava seus
ombros leitosos e o suficiente de seus seios para despertar
o interesse, Aleatha estava recostada em uma cadeira em
frente a penteadeira, escovando o cabelo com gesto
languido enquanto se admirava no espelho. Este,
potencializado por meios mágicos, sussurrava elogios e
galanteios e oferecia algumas sugestões sobre a
quantidade correta de carmim.
Calandra parou na entrada do quarto, quase sem
falar de tão escandalizada.
— O que pretende, sentada meio nua a plena luz do
dia e com as portas totalmente abertas? E se algum servo
passasse?
Aleatha ergueu os olhos. Executou o movimento
lentamente, com frouxidão, sabendo o efeito que produzia e
desfrutando-o plenamente. A jovem elfa tinha os olhos de
um azul claro, vibrante, mas que — sob a sombra de suas
grossas pálpebras e de suas pestanas longas — escureciam
até adotar um tom púrpura. Por isso, quando os abria como
naquele instante, davam a impressão de mudar
completamente de cor. Eram muitos os elfos que tinham
escrito sonetos dedicados àqueles olhos e corria o rumor de
que um até morrera por eles.
— Ah! Já aconteceu de um dos criados me ver —
respondeu Aleatha sem se alterar. — O mordomo. Eu o vi
perambular pelo corredor ao menos três vezes na última
meia hora.
Aleatha tinha uma voz modulada e grave, que sempre
soava como se estivesse a ponto de adormecer
profundamente. Isto, combinado com as grossas pálpebras,
dava-lhe um ar de doce lassidão fizesse o que fizesse e
fosse onde fosse. Durante a febril alegria de um baile real,
Aleatha prescindia do ritmo da música e dançava sempre
lentamente, quase como em sonho, com o corpo
completamente rendido a seu par e produzindo neste a
deliciosa impressão de que, sem seu forte braço como
apoio, a moça cairia ao chão. Seus olhos lânguidos
permaneciam fixos nos do bailarino, com uma leve faísca
no fundo daquele púrpura insondável, e incitavam o homem
a imaginar o que conseguiria se aqueles olhos sonolentos
se abrissem de par em par.
— Você é o assunto de Equilan, Thea! — disse
Calandra em tom acusador, levando o lenço ao nariz.
Aleatha estava molhando de perfume o pescoço e os seios.
— Onde estava na última hora escura?10
Os olhos púrpura se abriram de par em par ou, ao
menos, bastante mais que antes. Aleatha não desperdiçaria
nunca com uma irmã o efeito que provocava o gesto
completo.
— Desde quando se preocupa com onde estou? Que
abelha te picou hoje, Cal?
— Hoje? Já é quase a hora do vinho! Você dormiu a
metade do dia!
— Se quer mesmo saber, estive com o nobre
Kevanish e fomos à Escura...
— Kevanish! — Calandra emitiu um gemido agitado.
— Aquele descarado! Desde o duelo, não é recebido em
nenhuma das casas decentes. Foi por culpa dele que a
pobre Lucillia se suicidou, e pode-se dizer que assassinou o
irmão dela. E você, Aleatha... se for vista em público junto a
ele... — Calandra engasgou.
— Tolice. Lucillia foi uma estúpida ao pensar que um
homem como Kevanish podia apaixonar-se realmente por
ela. E seu irmão foi ainda mais estúpido ao exigir uma
reparação. Kevanish é o melhor arqueiro de Equilan.
— Existe algo que se chama honra, Aleatha! —
Calandra parou atrás da cadeira de sua irmã e fechou
ambas as mãos sobre o respaldo, com os nódulos brancos
da pressão. Parecia que, com um mínimo movimento e a
qualquer instante, poderia fechá-las com igual força em
torno do frágil pescoço de sua irmã. — Por acaso nossa
família já esqueceu?
10
A hora escura não é realmente “escura”, se por isso se entender que caía a noite. Refere-se ao
período do ciclo em que as pessoas decentes fecham as persianas e se deitam para descansar. Entretanto,
também é nessa hora que os níveis inferiores e “mais escuros” da cidade ganham vida, e por isso a
referência ganhou umas conotações bastante sinistra. (N. do A.)
— Esquecer? — murmurou Thea com sua voz
sonolenta. — Não, querida Cal, nada foi esquecido.
Simplesmente, faz muito tempo que a família pagou por
ela.
Com uma absoluta falta de recato, Aleatha se
levantou da cadeira e começou a desatar os laços de seda
que mantinham quase fechada a parte frontal de sua
camisa de dormir. Calandra contemplou o reflexo de sua
irmã no espelho e viu marcas avermelhadas na carne
branca dos ombros e do peito: as marcas dos lábios de um
amante ardente. Enojada, Calandra deu meia volta e cruzou
o quarto com passos rápidos parando junto à janela.
Aleatha sorriu com indolência para o espelho e deixou
que a camisola deslizasse para o chão. O espelho se desfez
em comentários extasiados.
— Você estava procurando Paithan? — Recordou-lhe
sua irmã. — Entrou voando no seu quarto como um
morcego das profundezas, vestiu-se e saiu voando outra
vez. Acho que ia para a casa do Durndrun. Eu também fui
convidada, mas não sei se vou ou não. Os amigos dele são
uns chatos.
— Esta família está afundando! — Calandra apertou
as mãos. — Nosso pai manda chamar um sacerdote
humano! Paithan parece um vagabundo que só se preocupa
com as farras! E você... Você terminará solteira e grávida e
até pode se suicidar como a pobre Lucillia!
— Não acredito, querida Cal — replicou Aleatha,
afastando a camisola com o pé. — Para se suicidar é preciso
muita energia. — Admirando seu esbelto corpo no espelho,
que o encheu de elogios, franziu o cenho, ergueu a mão e
tocou uma campainha feita com a casca de ovo de pássaro
cantor. — Onde está minha criada? Preocupe-se menos
com a família, Cal, e mais com o serviço. Nunca vi gente
mais folgada.
— É minha culpa! — Suspirou Calandra, e fechou as
mãos com força, levando-as aos lábios. — Deveria ter
obrigado Paithan a ir à escola. Deveria teer prestado mais
atenção e não deixá-la tão solta. E deveria ter impedido as
loucuras de nosso pai. Mas então, quem teria administrado
o negócio? Quando comecei a dirigi-lo, a situação não era
nada boa! Teriamos nos arruinado! Arruinado! Se o
tivéssemos deixado nas mãos de nosso pai...
A donzela entrou correndo na quarto.
— Onde você estava? — perguntou Aleatha, com sua
habitual lassidão.
— Sinto muito, senhora. Não ouvi a campainha.
— Não a toquei. Mas deveria saber quando preciso de
você. Pegue o vestido azul. Na próxima hora escura ficarei
em casa. Não, espere. O azul, não. O verde com rosas de
musgo. Acho que aceitarei o convite de Durndrun,
finalmente. Poderia ocorrer algo interessante e, pelo menos,
poderei atormentar o barão, que morre de amor por mim. E
agora, Cal, que história é essa de sacerdote humano? É
bonito?
Calandra exalou um profundo soluço e afundou os
dentes no lenço. Aleatha olhou pra ela e, aceitando a bata
vaporosa que a criada lhe punha sobre os ombros, cruzou o
quarto indo até sua irmã. Aleatha era tão alta quanto
Calandra, mas sua silhueta era suave e bem torneada onde
a de sua irmã era ossuda e angulosa. O cabelo cinzento
emoldurava o rosto de Aleatha e lhe caía pelas costas e
sobre os ombros. A moça nunca enfeitava o cabelo segundo
a moda. Assim como resto de sua figura, o cabelo da
Aleatha sempre estava desalinhado, sempre produzia a
impressão de que acabara de levantar-se. Pousou suas
mãos suaves nos ombros trêmulos de Calandra e
murmurou:
— A flor das horas fechou suas pétalas a estas
alturas, Cal. Continue esperando inutilmente que volte a se
abrir e logo estará tão louca como nosso pai. Se nossa mãe
estivesse viva, talvez as coisas fossem diferentes... — A voz
de Aleatha se quebrou e se aproximou ainda mais da irmã.
— Mas não foi assim. E não há mais o que fazer —
acrescentou, encolhendo seus ombros perfumados. — Você
fez o que devia, Cal. Não podia nos deixar morrer de fome.
— Creio que você tem razão — respondeu Calandra
secamente, recordando que a donzela continuava no
quarto. Não queria discutir seus assuntos pessoais na
presença dos servos. Endireitou os ombros e estirou umas
rugas imaginárias de sua saia rígida e engomada. — Você
não ficará para o jantar?
— Não. Se quiser, aviso a cozinheira. Por que não me
acompanha a casa do barão Durndrun, irmã? — Aleatha deu
alguns passos até a cama, sobre a qual a donzela estava
colocando um jogo de roupa interior de seda. — Randolfo
irá. Sabe que ele nunca se casou, Cal? Você lhe quebrou o
coração.
— Melhor dizer que lhe quebrei o bolso — replicou
Calandra com voz severa enquanto se contemplava no
espelho, compunha o penteado onde o coque tinha se
desfeito ligeiramente e voltava a cravar em seu lugar os
três pentes de prender cabelos. — Randolfo não me queria,
mas cobiçava nosso negócio.
— É possível. — Aleatha parou por alguns instantes
em meio ao vestir-se. Seus olhos púrpura se voltaram para
o espelho e se cravaram no reflexo do olhar de sua irmã. —
Mas ao menos lhe faria companhia, Cal. Você está sozinha a
muito tempo.
— E você acha que vou permitir que apareça um
homem que se aproprie e estrague o que levei tantos anos
para consolidar, só para ver seu rosto a cada manhã, goste
ou não? Muito obrigado, mas não. Há coisas piores que
estar sozinha, Thea.
Os olhos púrpura de Aleatha escureceram até adquirir
um tom quase vermelho vivo.
— Não sei quais — respondeu em voz baixa. Sua irmã
não chegou a ouvi-la. Aleatha afastou o cabelo do rosto,
sacudindo de cima ao mesmo tempo as sombras lúgubres
que velavam seus olhos. — Quer que diga a Paithan que
você quer falar com ele?
— Não se incomode. Deve estar quase sem dinheiro e
com certeza virá ver-me à hora do trabalho. Agora, tenho
que revisar umas contas. — Calandra caminhou para a
porta. — Procure voltar em uma hora razoável. Antes da
manhã, pelo menos.
Aleatha sorriu com a ironia da irmã maior e baixou
suas pálpebras carregadas de sono com ar recatado.
— Se quiser, Cal, não voltarei a encontrar o barão
Kevanish.
Calandra parou e deu meia volta. Seu rosto severo
resplandeceu de alegria, mas se limitou a dizer:
— Não tenho a menor esperança de que o faça!
Ao sair do quarto, bateu a porta com violência.
— De qualquer modo, Kevanish está ficando
enfadonho... — acrescentou Aleatha para si mesma. Voltou
a recostar-se em frente a penteadeira e estudou suas
feições perfeitas no espelho.
CAPITULO 3
GRIFFITH,
TERNCIA, THILLIA
Calandra voltou a concentrar-se nos livros de
contabilidade como antídoto reconfortante contra as
extravagâncias e caprichos de sua família. A casa estava
em silêncio. Seu pai e o astrólogo continuavam com suas
coisas no porão mas, sabendo que a filha estava ainda mais
perto de explodir que sua pólvora mágica, Lenthan
considerou conveniente postergar qualquer outro
experimento com a dita substância.
Depois do jantar, Calandra mandou um servente com
uma mensagem para o homem dos pássaros, que deveria
enviá-lo a maese Roland de Griffith, no bar A Flor do
Bosque.
11
Em Pryan, o nome das estações é dado pela parte do ciclo dos cultivos que corresponde:
renascimento, semeadura, crescimento, colheita e aragem. A rotação de colheitas é uma descoberta
humana. Os humanos, com sua habilidade na magia dos elementos — em contraste com as dotes dos
elfos para a magia mecânica — são muito melhores que estes nos trabalhos agrícolas. (N. do A.)
Voou a baixa altura sobre as terras que os elfos
cultivavam nos leitos de musgo mais altos, formando um
desenho de linhas artificialmente retas.
Escravos humanos aravam os campos e recolhiam as
colheitas. O ave não estava especialmente faminta, pois
tinha sido alimentada antes da partida, mas um rato seria
um bom aperitivo para o jantar. Entretanto, não descobriu
nenhum e continuou sua viagem.
Logo, os campos cultivados dos elfos deram espaço à
selva. Os arroios alimentados pelas chuvas diárias
formavam caudalosos rios sobre os leitos de musgo.
Serpenteando entre a selva, os rios encontravam às vezes
alguma greta nas capas superiores do musgo e formavam
quedas que se precipitavam para as profundezas
insondáveis.
Em frente aos olhos da ave começaram a flutuar
nuvens vaporosas e ganhou altura, subindo acima das
tormentas e da chuva. Finalmente, a massa de nuvens
negras e densas, sacudida pelos relâmpagos, ocultou
totalmente a terra. Entretanto, a ave, guiada pelo instinto,
não perdeu o rumo. Abaixo dela se estendiam os bosques
do barão Marcins; os elfos lhes tinham dado esse nome,
mas nem eles nem os humanos tinham reclamado direitos
sobre aquelas selvas impenetráveis.
A tormenta desabou e passou, como vinha
acontecendo desde tempos imemoriais, quase desde a
criação do mundo. O sol brilhava agora com força, e a
mensageira distinguiu terras cultivadas: Thillia, o reino dos
humanos. De cima, viu três das torres resplandecentes,
banhadas pelo sol, que apontavam as cinco divisões do
reino da Thillia. As torres, antigas para a medida do tempo
dos humanos, eram construídas de tijolo de cristal cujos
segredos de fabricação tinham sido descobertos pelos
feiticeiros humanos durante o reinado de Georg o Único.
Estes segredos, assim como muitos dos feiticeiros,
perderam-se na devastadora Guerra de Amor que
aconteceu após a morte do velho rei.
A ave utilizou as torres como referência para orientar-
se e desceu rapidamente, sobrevoando a baixa altura as
terras dos humanos. Situado em uma ampla planície de
musgo salpicada aqui e ali de árvores que foram
conservadas para proporcionar sombra, o país era plano,
mas entrecruzado de caminhos e salpicado de pequenas
populações. Os caminhos eram muito transitados, pois os
humanos sentiam a curiosa necessidade de andar
constantemente de um lugar a outro, necessidade que os
sedentários elfos nunca tinham entendido e que
consideravam própria de bárbaros.
Naquela parte do mundo, a caça era muito mais
propícia e a mensageira dedicou alguns breves instantes a
recuperar forças com um rato de bom tamanho. Depois de
se alimentar, limpou as garras com o bico, arrumou as
plumas e reiniciou o vôo. Quando viu que as terras planas
começavam a dar espaço a uma densa selva, ganhou novo
ânimo pois se aproximava do fim da sua longa viagem.
Estava sobre a Terncia, o reino mais a norint. Quando
chegou à cidade murada que circundava a torre de tijolos
de cristal da capital da Terncia, captou a áspera chamada
de sua companheira. Desce em espiral até o centro da
cidade e pousou, finalmente, na luva de couro que protegia
o braço de um falcoeiro thilliano. O homem recuperou a
mensagem, viu o nome do destinatário e deixou à fatigada
ave na jaula de sua companheira, que a recebeu com
suaves bicadas.
O falcoeiro entregou a mensagem a um cavaleiro que,
vários dias mais tarde, entrou em uma aldeia remota e
semi-cercada que se elevava nos confins da selva e deixou
o recado na única estalagem do lugar.
Sentado em seu banco favorito d'A Flor do Bosque,
maese Roland de Griffith estudou o fino pergaminho de
quin. Depois, com um sorriso o empurrou sobre a mesa
para uma moça que estava sentada a frente dele.
— Aqui está! O que havia dito, Rega?
— Graças a Thillia! É só o que posso dizer. — O tom
de voz de Rega era lúgubre; em seu rosto não havia o
menor sorriso. — Pelo menos, agora tem algo para mostrar
ao velho Barbanegra e talvez ele nos deixe em paz por
algum tempo...
— Onde ele deve estar? — Roland olhou para a flor
das horas12 em um vaso de barro. Quase vinte de suas
pétalas estavam fechadas. — Já passou da sua hora
habitual.
— Ele virá, não se preocupe. Isto é muito importante
para ele.
— Sim, por isso o atraso me preocupa.
— Problemas de consciência, por acaso? — Rega
puxou a jarra de kegrot e procurou à garçonete com o olhar.
— Não, mas não gosto de tratar estes assuntos aqui,
em lugar público...
— É o melhor. Assim fica tudo sobre a mesa, bem
claro. Não podemos levantar suspeitas. Ah! Ali está ele. O
que lhe disse?
A porta do botequim se abriu e o sol da hora dos jogo
de dados banhou a silhueta de um anão. Foi uma visão
imponente e, por um instante, quase todos os paroquianos
pararam de beber, de jogar ou de conversar para observá-
lo. Um pouco mais alto do que o habitual entre seu povo, o
anão tinha a pele clara e apresentava uma hirsuta cabeleira
negra e uma barba que se destacava entre os humanos. As
sobrancelhas negras e espessas que se juntavam sobre seu
nariz e os cintilantes olhos produziam uma impressão de
perpétua ferocidade que lhe era muito útil em terras
estranhas. Apesar do calor, usava uma camisa de seda com
listras brancas e vermelhas e, em cima dela, a pesada
armadura de couro de seu povo, com brilhantes calças
vermelhas metidas nas robustas botas de cano alto.
12
Planta de floração perpétua cujas pétalas se fecham a cada ciclo seguindo o ritmo do ciclo climático.
Todas as raças utilizam esta planta para determinar as horas do dia, embora em todas seu nome seja
diferente. Os humanos utilizam a própria planta, enquanto os elfos desenvolveram artefatos mecânicos
mágicos que imitam seus movimentos. (N. do A.)
Os presentes no bar trocaram sorrisos e comentários
irônicos sobre a indumentária chamativa do recém-
chegado mas, se soubessem algo sobre a sociedade dos
anões e sobre o significado das cores brilhantes de sua
roupa, não teriam rido de maneira alguma.
O anão parou na soleira da porta do bar e piscou,
ofuscado pelo sol do exterior.
— Barbanegra, meu amigo! — Exclamou Roland,
levantando-se do assento. — Aqui!
O anão entrou pesadamente no bar e seus olhos
foram de um canto a outro, desafiando com o olhar a
qualquer um que se atrevesse a dizer algo. Os anões eram
uma raridade na Thillia. O reino dos anões estava longe, ao
norint-est das terras dos humanos, e havia pouco contato
entre os povos. Entretanto, aquele anão estava há cinco
dias no povoado e sua presença tinha deixado de ser uma
novidade. Griffith era um povoado sórdido situado no limite
dos dois reinos, nenhum dos quais o reclamava. Seus
habitantes faziam o que queriam, o que agradava muito a
maioria deles, pois quase todos vinham de lugares da Thillia
onde fazer a própria vontade costumava conduzir à forca. O
povo de Griffith talvez se perguntasse o que um anão fazia
em seu povoado, mas ninguém faria a pergunta em voz
alta.
— Taberneiro, mais três! — Roland pediu aos gritos,
levantando sua jarra. — Temos motivos para brindar, meu
amigo — disse ao anão, que tomou assento com
parcimônia.
— Sim? — grunhiu o anão, observando o casal.
Roland, com um sorriso, ignorou o evidente desconforto de
seu convidado e lhe colocou a frente mensagem.
— Não sei ler o que está escrito aí — declarou o anão,
voltando a jogar sobre a mesa o manuscrito de quin.
A chegada da garçonete com o kegrot os
interrompeu. Distribuíram as jarras. Desarrumada, a
faxineira passou um trapo engordurado por cima da mesa,
dirigiu um olhar de curiosidade ao anão e se afastou com
seu andar indolente.
— Sinto muito, esqueci que não sabe ler elfo. O
embarque está a caminho, Barbanegra — disse Roland em
voz baixa e com um gesto despreocupado. — Chegará
durante o próximo aro.
— Meu nome é Drugar. É isso que diz o papel? — O
anão tocou a mensagem com seus dedos rechonchudos.
— Claro que sim, Barbanegra, meu amigo.
— Não sou seu amigo, humano — murmurou o anão,
mas o fez em sua língua e falando com sua própria barba.
Logo, entreabriu os lábios no que quase podia passar por
um sorriso. — Mas a notícia é excelente. — Sua voz pareceu
cheia de animosidade.
— Bebamos a isso. — Roland ergueu a jarra e deu
uma suave cotovelada em Rega, que estava observando o
anão com a mesma desconfiança que este tinha
demonstrado. — Ao nosso trato.
— Beberei a isso — assentiu o anão depois de meditar
na resposta por alguns instantes, aparentemente. Elevou a
jarra e repetiu: — Ao nosso trato.
Roland bebeu a sua sonoramente. Rega tomou um
gole. Ela nunca bebia em excesso já que um dos dois tinha
que permanecer sóbrio. Além disso, o anão não bebia,
apenas se limitava a umedecer os lábios. Os anões não
apreciam o kegrot, que todo mundo reconhece frouxo e
insípido em comparação com sua excelente bebida
fermentada.
— Estava me perguntando, sócio — insistiu Roland,
inclinando-se para frente e curvando-se sobre a jarra, —
que destino vão dar a essas armas.
— Por caso tem problemas de consciência, humano?
Roland lançou um olhar azedo para Rega, que ao
escutar suas próprias palavras na boca do anão, deu de
ombros e afastou a vista, dizendo em silêncio o que outra
resposta podia esperar de uma pergunta tão estúpida.
— Pagarei o suficiente para que não faça perguntas,
mas vou dizer o que faremos, porque meu povo é honrado.
— Tanto que têm que tratar com contrabandistas,
Barbanegra? — Roland sorriu, pagando ao anão com a
mesma moeda. As negras sobrancelhas deste se juntaram
em um gesto alarmante e os olhos negros emitiram fogo.
— Eu teria tratado de forma aberta e legal, mas as
leis de sua terra o impedem. Meu povo necessita dessas
armas. Não soube do perigo que vem do norint?
— Os reis do mar?
Roland fez um gesto à garçonete. Rega pôs sua mão
sobre a dele, advertindo-o para que fosse com tato, mas
Roland a rechaçou.
— Ora! Não! — O anão soltou uma gargalhada de
desprezo. — Falo do norint. Muito longe nessa direção, só
que agora já não tão longe.
— Não ouvimos absolutamente nada, Barbanegra,
velho amigo. Do que se trata?
Rega viu que o rosto do anão adquiria um ar sombrio
e o fogo de seus olhos se nublava de medo, e a mulher
sabia ou adivinhava o suficiente sobre o caráter da
Barbanegra para entender que o anão não tinha
experimentado o medo freqüentemente em sua vida.
— Humanos... do tamanho de montanhas. Vêm do
norint e destroem tudo em seu caminho.
Roland esteve a ponto de engasgar e pôs-se a rir. O
anão pareceu inchar literalmente de raiva e Rega cravou as
unhas no braço de seu companheiro. Roland, com
dificuldades, reprimiu a risada.
— Sinto muito, amigo, sinto muito, mas já tinha
ouvido esta história de lábios de meu querido pai quando
ainda estava vivo. Os titãs vão nos atacar... E suponho que
os Cinco Senhores Perdidos da Thillia voltarão ao mesmo
tempo. — Ergueu a mão por cima da mesa e deu uns
tapinhas no ombro do irritado anão. — Guarde o segredo,
meu amigo. Desde que tenhamos nosso dinheiro, não
importa o que façam nem a quem matem.
O anão voltou a avermelhar e puxou o braço com um
gesto brusco.
— Você não tem que sair, querido? — disse Rega com
toda atenção. Roland se levantou. Era um homem alto e
musculoso, loiro e atraente. A garçonete, que o conhecia
bem, roçou seu corpo com o seu quando ficou em pé.
— Com licença. Tenho que visitar uma árvore. Este
maldito kegrot me subiu à cabeça — comentou, e se
afastou abrindo caminho pelo bar, que estava enchendo
rapidamente de gente e de barulho.
Rega esboçou seu melhor sorriso e rodeou a mesa
para sentar-se ao lado do anão. A mulher era quase o
reverso da moeda comparada ao seu marido. De baixa
estatura e figura cheia, estava vestida para o calor e para
ocupar-se dos negócios com uma blusa de linho que
deixava à vista mais do que ocultava; amarrada sob os
seios, deixava a mostra a cintura. Calças de couro pelos
joelhos cobriam suas pernas como uma segunda pele. Sua
pele, de um intenso tom bronzeado, brilhava com um fino
filme de suor sob o calor do botequim. Os cabelos
castanhos, repartidos no centro da cabeça, caíam-lhe pelas
costas magras e brilhantes como a casca de uma árvore
molhada pela chuva.
Rega percebeu que não despertava a menor atração
física no anão. Provavelmente porque não tinha barba,
pensou com um sorriso, recordando o que tinha ouvido
sobre as mulheres anãs. Em compensação, o recém-
chegado parecia ansioso por explicar aquele conto de fadas
que seu povo tinha imaginado. À mulher não gostava que
um cliente partisse zangado, de modo que disse:
— Perdoe o meu marido, senhor. Bebeu um pouco
além da conta. Gostaria de ouvir mais sobre os titãs.
— Titãs... — O anão pareceu saborear a palavra,
estranha a seus lábios. — É assim que os chamam em seu
idioma?
— Creio que sim. Nossas lendas falam de humanos
gigantescos, grandes guerreiros, criados há muito tempo
pelos deuses das estrelas para servi-los. Entretanto, tais
seres não são vistos na Thillia desde antes da época dos
Senhores Perdidos.
— Não sei se esses... titãs... são os mesmos ou não —
respondeu Barbanegra com um movimento de cabeça. —
Em nossas lendas não existem tais criaturas. As estrelas
não nos interessam, já que vivemos nas entranhas da terra
e raramente as vemos. Em nossos mitos aparecem os
Ferreiros, que construíram este mundo no princípio dos
tempos junto com Drakar, o pai de todos os anões. Diz a
lenda que um dia os Ferreiros voltarão e nos permitirão
construir cidades de tamanho e magnificência
inimagináveis.
— Mas, se acreditam que esses gigantes são os... os
Ferreiros, para que querem as armas?
O rosto dele escureceu, suas rugas se tornaram mais
profundas.
— Parte do meu povo continua acreditando nessas
lendas, mas outros de nós falamos com os refugiados
procedentes das terras a norint. E nos relataram terríveis
episódios de destruição e de morte. Em minha opinião,
talvez as lendas estejam erradas. Por isso a provisão de
armas.
A princípio, Rega pensou que o anão estava
mentindo. Ela e Roland achavam que Barbanegra queria
utilizar as armas para atacar alguma colônia humana
isolada nos campos mas, ao ver como os olhos negros do
anão nublavam e ao escutar o tom grave e aflito de suas
palavras, Rega mudou de opinião. Ao menos uma coisa era
certa: Barbanegra acreditava na existência daquele inimigo
fantástico e essa era a verdadeira razão de ter adquirido o
armamento. A idéia era reconfortante. Era a primeira vez
que Roland e ela contrabandeavam armas e, dissesse
Roland o que dissesse, a mulher ficou aliviada ao saber que
não seria responsável pela morte de seus semelhantes.
— Ei, Barbanegra! O que está fazendo, tentando
conquistar minha esposa? — Roland sentou do outro lado
da mesa. Outra jarra o esperava e tomou um longo gole de
kegrot.
Rega percebeu a expressão carrancuda e sombria do
rosto do anão e lançou um rápido e doloroso chute em
Roland por baixo da mesa.
— Estávamos falando de mitos e lendas, querido.
Ouvi dizer que os anões gostam muito de canções, senhor,
e meu marido tem uma voz excelente. Gostaria de escutar
a balada da Thillia? Conta a história dos senhores de nossa
terra e como os cinco reinos se formaram.
O rosto do Barbanegra se iluminou.
— Sim, eu adoraria ouvi-la!
A mulher agradeceu às estrelas por ter dedicado
algum tempo em estudar tudo que pudera encontrar sobre
a sociedade dos anões. Estes, mais que apreciar a música,
sentiam absoluta paixão por ela. Todos os anões tocavam
instrumentos musicais e a maioria era dotada de uma
excelente voz e ouvido perfeito. Só tinham que escutar uma
canção uma vez para guardar a melodia e, com uma vez
eram capazes de recordar toda a letra.
Roland tinha uma magnífica voz de tenor e cantou a
balada, de encantadora beleza, com uma sensibilidade
deliciosa. Os paroquianos do botequim pediram silêncio aos
gritos para escutá-lo e, quando chegou à estrofe final, entre
a multidão de homens rudes havia muitos que tinham os
olhos cheios de lágrimas. O anão escutou com arrebatada
atenção, e Rega, com um suspiro, compreendeu que tinha
outro cliente satisfeito.
oponente sem que este tenha tempo de saber o que o golpeou. (N. do A.)
tempo suficiente para conseguir uma reputação de dureza,
astúcia e escassa tendência à piedade. Vários olhos os
seguiram, mas ninguém os incomodou. Os olhos e o
dinheiro chegaram sãos e salvos à cabana que chamavam
de casa.
Rega fechou a pesada porta de madeira e passou
cuidadosamente o ferrolho. Levantou uma mesa de madeira
de três pernas e a colocou contra a porta. Afastando com
um chute um tapete esfarrapado que cobria o chão,
descobriu uma tampa e, ao abri-la, surgiu um buraco
escavado no musgo. Roland guardou o cinto do dinheiro no
fossa, fechou a tampa e voltou a colocar o tapete e a mesa.
Rega tirou um pedaço de pão rançoso e uma fatia de
queijo mofado.
— Falando de negócios, o que você sabe desse elfo, o
tal Paithan Quindiniar?
Roland arrancou um pedaço de pão com seus fortes
dentes e levou um pedaço de queijo à boca.
— Nada — murmurou, mastigando. — É um elfo, o
que significa que será uma flor, exceto pelo que se refere a
você, minha encantadora irmã.
— Sou sua encantadora esposa, não esqueça. —
Rega, com ar brincalhão, acariciou a mão de seu irmão com
uma das pontas de madeira do raztar. Depois, cortou com a
garra outra fatia de queijo. — Acha mesmo que dará certo?
— Certamente. O sujeito que me contou diz que isso
não falha nunca. Os elfos são loucos pelas mulheres
humanas. Vamos nos apresentar como marido e mulher,
mas nosso matrimônio não é muito apaixonado. Você sente
falta de afeto, flerta com o elfo e o enrola até que, quando
puser a mão em seus seios ardentes, vai recordar-se de
repente que é uma respeitável mulher casada e põe-se a
gritar como uma possessa. Então apareço, muito furioso lhe
cortando suas bicudas... hum... orelhas, e ele compra sua
vida cedendo sua mercadoria pela metade do preço. Depois
a vendemos aos anões ao preço real, mais uma pequena
comissão, e teremos a vida solucionada durante as
próximas estações.
— Mas, depois dessa sacanagem, teremos que
enfrentar a família Quindiniar...
— Sim, faremos isso. Ouvi dizer que a elfa que cuida
do negócio e dirige à família é uma velha dissimulada de
caráter azedo. Seu irmãozinho não se atreverá a contar que
tentou destruir nosso lar feliz. E podemos nos assegurar de
que, em nossa próxima transação, os Quindiniar obtenham
alguns benefícios extras.
— Exposto assim, parece bastante fácil — reconheceu
Rega. Ergueu uma bota de vinho, deu um gole e passou o
pele ao irmão. — Pelo nosso feliz matrimônio, meu amado
esposo.
— Pela infidelidade, minha querida esposa.
Entre risadas deram um novo gole à bota.
EQUILAN,
LAGO ENTHIAL
CAPITULO 5
EQUILAN,
LAGO ENTHIAL
EQUILAN,
LAGO ENTHIAL
CAPÍTULO 8
O ELO
16
Antigamente, no Labirinto, a idade de uma pessoa era calculada pela quantidade de Portas que tinha
cruzado tentando escapar. Este sistema foi normalizado mais adiante pelo Senhor do Elo para poder
conservar um registro exato da população patryn. Quando um destes emerge do Labirinto, o Senhor do
Elo o submete a um extenso interrogatório e, segundo os detalhes que proporciona, adjudica-lhe uma
idade determinada. (N. do A.)
mente, o temor de que o Labirinto vencerá e o destruirá.
Que desta vez não encontrará o caminho de saída.
Naquele dia, o Senhor do Elo se encontrava perto da
Última Porta. Em torno dele estava sua gente, os patryn
que já tinham conseguido escapar. Com seus corpos
cobertos de runas tatuadas que constituíam seu escudo,
sua arma e sua armadura, um punhado deles tinha decidido
penetrar no Labirinto acompanhando a seu amo.
Este não lhes disse nada, mas concordou com sua
presença. Adiantou-se até a Porta, esculpida em lustroso
azeviche, e apoiou as mãos em um signo mágico que ele
mesmo tinha desenhado. A runa emitiu um resplendor azul
ao contato com seus dedos, os signos mágicos tatuados no
reverso de suas mãos responderam emitindo também uma
luz do mesmo tom azul e a Porta, que não tinha sido feita
para abrir para dentro, somente para fora, cedeu a uma
ordem dele.
Frente aos patryn reunidos apareceu uma panorâmica
do Labirinto, com suas formas estranhas e imprecisas, em
perpétua mudança. O Senhor do Elo contemplou quem o
rodeava. Todas os olhares estavam fixos no Labirinto. O
patryn observou como seus rostos perdiam a cor, como
seus punhos se fechavam e o suor banhava sua pele
coberta de runas.
— Quem vai entrar comigo? — perguntou, olhando-os
um a um. Todos os patryn tentaram sustentar o olhar de
seu senhor, mas nenhum conseguiu e, finalmente, o último
deles baixou a vista. Alguns valentes quiseram dar um
passo adiante, mas os músculos e os tendões não podem
entrar em ação sem um ato de vontade e a mente de todos
aqueles homens e mulheres estava sobressaltada com a
lembrança do terror. Sacudindo a cabeça, muitos deles
chorando abertamente, todos desistiram de seu propósito.
O Senhor do Elo se aproximou do grupo e pousou as
mãos sobre suas cabeças em gesto conciliador.
— Não se envergonhem de seu medo. Utilizem-no,
pois lhes dará forças. Faz muito tempo tentamos conquistar
o mundo e governar todas essas raças fracas, incapazes de
governar a si mesmas. Então, nossa força e nosso número
eram grandes e estivemos a ponto de alcançar nosso
objetivo. Aos sartan, nossos inimigos, só restou um meio
para nos vencer: destruir o próprio mundo, fracionando-o
em outros quatro mundos separados. Divididos por aquele
caos, caímos em poder dos sartan e estes nos prenderam
no Labirinto, uma prisão que eles mesmos tinham criado,
com a esperança de que saíssemos dali “reabilitados”.
“Conseguimos sair, mas as terríveis penalidades que
suportamos não nos abrandaram e debilitaram como
nossos inimigos tinham previsto. O fogo pelo qual passamos
nos forjou em um aço frio e afiado. Somos uma folha capaz
de atravessar nossos inimigos. Somos um fio que ganhará
uma coroa.
“Voltem. Retornem as suas tarefas. Tenham presente
sempre o que acontecerá quando retornarmos aos mundos
separados. E levem sempre com vocês a lembrança do que
deixamos para trás.
Os patryn, consolados, já não se sentiam
envergonhados. Viram seu amo entrar no Labirinto, viram-
no atravessar a Porta com passo firme e resolvido, e o
honraram e adoraram como a um deus.
A Porta começou a fechar-se atrás dele, mas ele a
deteve com uma ordem áspera. Perto dela, estendido no
chão de barriga para baixo, acabava de descobrir um jovem
patryn. Seu corpo musculoso, tatuado de símbolos mágicos,
mostrava os sinais de terríveis feridas; feridas que, ao que
parecia, ele mesmo tinha curado empregando sua própria
magia, mas que o tinham deixado quase sem vida. O
Senhor do Elo, em um nervoso primeiro exame do patryn,
não encontrou o menor sinal de que este respirasse.
Agachou-se, levou a mão ao pescoço do jovem
procurando o pulso e ficou surpreso ao escutar junto a si
um rosnado. Uma cabeça hirsuta se elevou junto ao ombro
do jovem caído.
O Senhor percebeu com assombro que era um cão.
O animal também tinha sofrido graves feridas.
Embora rosnasse ameaçadoramente e tivesse a valente
intenção de proteger o jovem, não podia sustentar a cabeça
erguida e o focinho lhe caía sem força sobre as patas
ensangüentadas. Entretanto, os rosnados não cessaram.
“Se lhe fizer mal”, parecia dizer o animal,
“encontrarei de algum jeito as forças necessárias para
despedaçá-lo.”
Com um leve sorriso — uma expressão muito
estranha nele, — o Senhor do Elo ergueu a mão em gesto
apaziguador e acariciou o pelo suave do cão.
— Fique tranqüilo, rapaz. Não vou machucar seu
dono.
O cão se deixou convencer e, arrastando-se sobre o
ventre, conseguiu levantar a cabeça e esfregar o focinho
contra o pescoço do jovem. O contato com o nariz frio
despertou o patryn. Este ergueu o olhar, viu o estranho
indivíduo que se inclinava sobre ele e, seguindo o instinto e
a vontade que lhe tinham mantido com vida, fez um esforço
para levantar-se.
— Não precisa de nenhuma arma contra mim, filho —
disse o Senhor do Elo. — Está é a Última Porta. Mais à
frente existe um novo mundo, um lugar de paz e
segurança. Eu sou seu dono e te acolho.
O jovem patryn se apoiou nas mãos, oscilando
ligeiramente, ergueu a cabeça e olhou para o outro lado da
Porta. Seus olhos, nublados, logo puderam distinguir as
maravilhas daquele mundo. Em seu rosto se desenhou
lentamente um sorriso.
— Consegui! — murmurou com um sussurro rouco
entre seus lábios manchados de sangue coagulado. — Eu os
venci!
— Eu disse o mesmo quando cheguei a esta Porta.
Como se chama?
O jovem engoliu e pigarreou antes de responder.
— Haplo.
— Um bom nome. — O Senhor do Elo passou os
braços pelas axilas do ferido. — Vamos, deixe que te ajude.
Para sua surpresa, Haplo o rechaçou.
— Não. Quero... cruzar essa porta... com minhas
próprias forças.
O Senhor do Elo não disse nada, mas seu sorriso
aumentou. Levantou-se e se pôs de lado. Trincando os
dentes de dor, Haplo ficou em pé com grande esforço.
Parou por um momento, enjoado, e se sustentou
cambaleando. O Senhor do Elo deu um passo para ele,
temendo que voltasse a cair, mas Haplo o rechaçou de
novo estendendo uma mão.
— Cão! — Disse com voz fraca. — A mim!
O animal se levantou, fraco, e se aproximou de seu
amo mancando. Haplo apoiou a mão na cabeça do cão para
manter o equilíbrio. O animal suportou o peso com
paciência e com os olhos fixos em Haplo.
— Vamos — disse este.
Juntos, passo a passo com andar hesitante, os dois
avançaram para a Porta. O Senhor do Elo, admirado,
seguiu-os. Quando os patryn do outro lado viram aparecer o
jovem, não aplaudiram nem gritaram vivas, mas lhe
dedicaram respeitoso silêncio. Ninguém se ofereceu para
ajudá-lo, embora todos percebessem que cada movimento
lhe causava dor. Todos sabiam o que representava
atravessar aquela última porta por si mesmo, ou com a
única ajuda de um amigo fiel.
Haplo entrou no Elo, piscando sob o sol ofuscante.
Com um suspiro, ajoelhou. O cão ganiu e lhe deu uma
lambida no rosto. O Senhor do Elo se apressou a ajoelhar-se
junto ao jovem. Haplo ainda estava consciente e o Senhor
tomou a mão, pálida e fria.
— Não se esqueça nunca! — cochichou-lhe,
apertando a mão contra seu rosto. Haplo ergueu os olhos
para o Senhor do Elo e sorriu...
— Bem, cão — murmurou o patryn, olhando ao seu
redor em uma última comprovação do estado da nave, —
acredito que já está tudo pronto. O que me diz, rapaz? Está
preparado?
O animal levantou as orelhas e lançou um sonoro
latido.
— Está bem, está bem. Temos a bênção de meu
Senhor e recebemos suas últimas instruções. Agora,
vejamos como este pássaro voa.
Estendeu as mãos sobre a pedra de governo da nave
e começou a recitar as primeiras runas. A pedra se levantou
da coberta, sustentada pela magia, e se deteve sob as
palmas das mãos de Haplo. Uma luz azul se filtrou através
de seus dedos, competindo com o fulgor vermelho que as
runas de suas mãos emitiam.
Haplo derrubou todo seu ser na nave, alagou o casco
com sua magia, notou-a penetrar nas asas de pele de
dragão como se fosse sangue, dando-lhes vida e energia
para guiar e controlar a nave. Sua mente se elevou e levou
consigo à embarcação. Pouco a pouco, esta começou a sair
do chão.
Pilotando-a com os olhos, o pensamento e a magia,
Haplo subiu aos ares a mais velocidade da que os
construtores da nave poderiam imaginar e sobrevoou o Elo.
Deitado aos pés de seu amo, o cão suspirou e se resignou à
viagem. Talvez recordasse sua primeira travessia da Porta
da Morte, uma viagem que quase tinha sido fatal.
Haplo fez algumas manobras de teste e, voando a
esmo sobre o Elo, desfrutou de uma insólita panorâmica da
cidade pela visão de pássaro (ou, melhor, de dragão).
O Elo era uma criação extraordinária, uma maravilha
de construção. Passeios largos, orlados de árvores,
estendiam-se de um ponto central até o horizonte impreciso
do longínquo Limite. Edifícios assombrosos de mármore e
cristal, aço e granito, adornavam as ruas. Parques e jardins,
lagos e tanques, proporcionavam lugares de serena beleza
por onde passear, pensar e meditar. Ao longe, perto do
Limite, estendiam-se suaves colinas e verdes campos,
preparados para a semeadura.
Entretanto, não havia agricultores que cultivassem
aqueles terrenos. Nem se via ninguém perambulando pelos
parques. Nem havia trânsito pelas ruas. Toda a cidade, os
campos, jardins e edifícios, estavam vazios e sem vida,
esperando.
Haplo conduziu a nave em torno do ponto central do
Elo, um edifício de agulhas de cristal — o mais elevado da
cidade, — que seu amo tinha tomado como palácio. Dentro
de suas agulhas de cristal, o Senhor do Elo tinha
encontrado os livros abandonados pelos sartan, livros onde
se narrava a Separação e a formação dos quatro mundos e
em suas páginas se falava do encarceramento dos patryn e
das esperanças dos sartan na “redenção” de seus inimigos.
O Senhor do Elo tinha aprendido por si mesmo a ler aqueles
livros e assim tinha descoberto a traição dos sartan que
tinha condenado seu povo à tortura. Lendo os livros, o
Senhor tinha traçado seu plano de vingança. Haplo inclinou
as asas da nave em saudação ao seu senhor.
Os sartan tinham previsto que os patryn ocupariam
aquele mundo maravilhoso... depois de sua “reabilitação”, é
obvio. Haplo sorriu e se acomodou melhor no assento.
Depois, soltou a pedra de governo, deixando que a nave
voasse com seus pensamentos. Logo, o Elo estaria
povoado, mas não só pelos patryn. Em breve, o Elo
acolheria elfos, humanos e anões, as raças inferiores. Uma
vez transportados para lá através da Porta da Morte, o
Senhor do Elo destruiria os quatro mundos espúrios criados
pelos sartan e voltaria a instaurar a velha ordem. A única
exceção seria que desta vez seriam os patryn que
governariam por direito próprio.
Uma das missões de Haplo em suas viagens de
investigação era observar se havia algum sartan vivo em
qualquer dos quatro mundos. Haplo surpreendeu a si
mesmo desejando descobrir mais algum... Algum sartan
que não fosse uma pobre imitação de semideus como
Alfred a quem havia enfrentado no mundo de Ariano.
Desejava que toda a raça dos sartan estivesse viva, para
que fossem testemunhas de sua própria e esmagadora
derrota.
— E quando os sartan virem tudo que construíram
ruir, depois que virem passar para nosso poder às raças
que esperavam dominar, será o momento de dar o justo
castigo aos nossos inimigos. Desta vez, seremos nós que os
jogaremos no Labirinto!
Haplo desviou o olhar para o caótico torvelinho negro
com nervuras vermelhas que acabava de aparecer ao
longe. Lembranças do horror surgiram das nuvens para
tocá-lo com suas mãos espectrais e Haplo as combateu
utilizando como arma o ódio. Em vez de ver a si mesmo,
imaginou a luta dos sartan, viu-os vencidos onde ele tinha
triunfado, viu-os morrer onde ele tinha escapado com vida.
O latido de advertência do cão o tirou de seus
pensamentos sombrios. Haplo percebeu que, perdido neles,
quase tinha se precipitado no Labirinto. Rapidamente,
colocou as mãos sobre a pedra de governo e fez a nave
virar. A Asa de Dragão sulcou de novo o céu azul do Elo,
livre dos tentáculos da maléfica magia que tinham tentado
capturá-lo.
Haplo voltou seus olhos e pensamentos para o céu
sem estrelas e pilotou a nave para o ponto de passagem,
para a Porta da Morte.
CAPITULO 9
DO CAHNDAR AO ESTPORT,
EQUILAN
18
O gelo não existe de forma natural em nenhuma das terras conhecidas de Pryan. Começou a ser um
artigo de uso comum depois de sua descoberta, durante os experimentos mágicos dos humanos com o
clima. O gelo é um dos poucos produtos fabricados pelos humanos para o qual existe demanda nas
terras élficas. (N. do A.)
— Andam precisando de “brinquedos” por lá,
conforme ouvimos — respondeu Hamish. As risadas
cessaram e outros humanos concordaram com suas
palavras com ar sombrio. Os mercadores elfos, perplexos,
quiseram saber o por que daquilo.
— Há guerra com os reis do mar? — aventurou
Paithan, entregando ao fazendeiro sua jarra vazia. — Uma
notícia assim alegraria Calandra. Enviaria uma ave
mensageira para comunicar-lhe. Se algo podia deixá-la de
bom humor era uma guerra entre os humanos. Já imaginava
contar os benefícios que lhe reportaria.
— Não — respondeu Gregor. — Os reis do mar têm
seus próprios problemas se for certo o que ouvimos. Alguns
humanos desconhecidos, chegados do outro lado do mar
em toscas embarcações, atracaram como náufragos às
costas do país dos reis do mar. À princípio, estes acolheram
os refugiados, mas continuaram chegando mais e mais e
agora é difícil alimentá-los e abrigá-los.
— Que fiquem por lá — interveio outro mercador
humano. — Nós já temos problemas suficientes na Thillia,
para receber estranhos. Os mercadores elfos escutavam
com o sorriso de complacência de quem não se sente
afetado pelo que escuta, exceto no que se refere a seus
negócios.
Com mais humanos chegando à região só podia
significar um aumento dos benefícios.
— Mas... de onde saem esses humanos? — perguntou
Paithan.
Houve uma acalorada discussão entre os humanos,
que só terminou quando Gregor declarou:
— Eu sei de primeira mão, pois falei com algum deles.
Dizem vir de um reino conhecido como Kasnar, que está
muito longe ao norint de nossas terras, do outro lado do
mar Sussurrante.
— Por que fugiram de sua pátria? Por acaso alguma
grande guerra está acontecendo por lá? — insistiu Paithan,
perguntando-se mentalmente se seria muito difícil fretar
um navio para transportar um carregamento de armas tão
longe. Gregor moveu a cabeça em negativa, arrastando sua
barba vermelha sobre o peito colossal.
— Não se trata de uma guerra — respondeu com voz
grave. — Falam de destruição. De destruição total.
Ruína, morte e destruição.
Paithan notou umas pegadas pisando sua tumba e
sentiu um formigamento nas mãos e pés. Devia ser o
vingin, pensou, e deixou imediatamente a jarra na mesa.
— Do que se trata então? Dragões? Não posso
acreditar. Quando se ouviu que um dragão atacasse um
assentamento?
— Não, até os dragões fogem dessa ameaça.
— Então, o que é?
Gregor olhou ao seu redor com ar solene antes de
responder.
— Titãs.
Paithan e outros elfos se olharam, boquiabertos, e
finalmente caíram na gargalhada.
— Gregor, velho enrolão! Desta vez me pegou
direitinho! — Paithan enxugou as lágrimas que escorriam de
seus olhos. — Eu pago a próxima ronda. Refugiados e
náufragos...!
Os humanos permaneceram em silêncio, com
expressões cada vez mais sombrias e abatidas. Paithan os
viu trocar olhares lúgubres e conteve sua hilaridade.
— Vamos, Gregor, uma brincadeira é uma
brincadeira! Reconheço que já estava calculando os
possíveis benefícios para meus cofres. Creio que todos o
fazíamos — acrescentou, apontando com um gesto para os
outros elfos, — mas já é suficiente.
— Infelizmente não é uma brincadeira, meus amigos
— respondeu Gregor. — Eu falei com essa gente. Vi o terror
em seus rostos e o ouvi em suas vozes. Seres gigantescos,
de feições e corpo idênticos aos humanos, mas cuja
estatura ultrapassa as copas das árvores, apareceram em
suas terras procedentes do norint. São capazes de partir as
rochas com sua voz e destroem tudo em seu caminho.
Agarram os humanos em suas mãos enormes e os jogam ao
chão ou os espremem entre seus dedos até matá-los. Não
há arma capaz de detê-los. As flechas lhes fazem o mesmo
efeito que a picada de um mosquito. As espadas não
penetram em sua pele curtida, embora não lhes causassem
muito dano se o fizessem.
O peso das palavras de Gregor era opressivo para os
presentes e todos o escutavam em atento silêncio, embora
alguns ainda continuassem movendo a cabeça em gesto de
incredulidade. Outros mercadores, ao observar a solene
reunião, aproximaram-se para ver o que acontecia e
acrescentaram seus próprios rumores aos que já corriam
entre os reunidos.
— Kasnar era um grande império — continuou Gregor,
— e agora desapareceu, completamente arrasado. De uma
nação antigamente poderosa só restou um punhado de
gente que fugiu em suas embarcações através do mar
Sussurrante.
O fazendeiro, vendo que suas vendas de vingin
diminuíam, colocou a torneira em um novo tonel. Todos se
levantaram para encher de novo a jarra e começaram a
falar de uma vez.
— Titãs? Os seguidores de São? Ora, isso não é
apenas uma lenda!
— Não seja sacrílego, Paithan. Se acredita na Mãe19,
tem que acreditar em São e seus seguidores, que governam
a Escuridão.
— Sim, Umbar, todos sabemos que você é muito
religioso! Se alguma vez entrasse em um dos templos da
Mãe, provavelmente ele cairia em cima de você! Escute
Gregor, você é um homem sensato; não me diga que
acredita em duendes e espíritos.
19
Peytin, Matriarca do Paraíso. Os elfos acreditam que Peytin criou um mundo para seus filhos mortais.
Para governá-lo, designou seus primogênitos, os gêmeos Orn e Obi. O filho menor, São, sentiu ciúmes
deles e, depois de reunir os ambiciosos e belicosos humanos, empreendeu uma guerra contra seus
irmãos. Esta guerra causou; a separação do mundo antigo. São foi banido para baixo e os humanos
foram expulsos do antigo mundo e enviados a Pryan. Peytin criou uma raça, a élfica, e a enviou para
restaurar a pureza do mundo. (N. do A.)
— Não, mas acredito no que vejo e ouço. E vi coisas
terríveis nos olhos dessa gente.
Paithan observou fixamente seu interlocutor.
Conhecia Gregor a anos e sempre tinha considerado aquele
humano como uma pessoa valente, sincera e digna de
confiança.
— Está bem. Aceito que tenham fugido de algo, mas
por que temos que nos inquietar tanto? Seja o que for, é
impossível que cruzem o mar Sussurrante.
— Esses titãs...
— O que forem...
— ... poderiam descer através dos reinos anões de
Grish, Klag e Thurn — prosseguiu Gregor em tom carregado
de maus presságios. — De fato, chegaram rumores de que
os anões estavam preparando-se para uma guerra.
— Sim. Uma guerra contra os humanos, e não contra
demônios gigantescos. Essa é a razão de seus dirigentes
terem exposto esse embargo de armas.
Gregor deu de ombros, quase arrebentando as
costuras de sua camisa justa; depois, sorriu e seu rosto
barbudo pareceu partir-se em dois, com uma negra fenda
de orelha a orelha.
— Aconteça o que acontecer, Paithan, os elfos não
têm com que se preocupar. Os humanos os deterão. Nossas
lendas dizem que o Deus Cornudo nos submete a prova
constantemente, nos enviando adversários dignos de nos
enfrentar. Talvez, nesta batalha, os Cinco Senhores Perdidos
retornem para nos ajudar.
Foi dar um gole, fez uma careta e virou a jarra. Estava
vazia.
— Mais vingin! — exigiu.
O granjeiro elfo abriu a torneira, mas não saiu nada.
Golpeou os tonéis. Todos devolveram um deprimente som
oco. Entre suspiros, os mercadores se levantaram,
despedindo-se.
— Paithan, meu amigo — disse Gregor, — perto do
embarcadouro há um botequim. Agora estará abarrotado,
mas acredito que poderíamos conseguir uma mesa. — O
corpulento humano flexionou os músculos e pôs-se a rir.
— Certamente — assentiu Paithan imediatamente.
Seu capataz era um elfo competente e os escravos estavam
exaustos. Não era provável que houvesse problemas. —
Você encontra um lugar onde possamos nos sentar, e eu
pagarei as duas primeiras rodadas.
— Parece-me justo.
Cambaleando ligeiramente, os dois se abraçaram (o
braço de Gregor quase sufocando o esbelto elfo) e se
dirigiram para o mole.
— Ouça, Gregor, você que esteve em tantos lugares
— comentou Paithan, — ouviu falar de um feiticeiro humano
chamado Zifnab?
CAPITULO 10
VARSPORT, THILLIA
CAPÍTULO 11
MANSÃO DO QUINDINIAR,
EQUILAN
GRIFFITH, TERNCIA,
THILLIA
CAPITULO 14
EM ALGUM LUGAR DE GUNIS
22
Medida de tempo humana, equivalente a uma quinzena. (N do A)
dele. O elfo, sempre interessado em novos lugares, achava
tudo emocionante e mantinha sua habitual atitude corajosa.
Entretanto, a trilha não tinha sido aberta para a
passagem de caravanas carregadas. Com freqüência, as
trepadeiras, árvores e sarças eram tão fechadas que os
tyros não podiam atravessá-los com a carga sobre seus
corpos couraçados. Quando tal coisa acontecia, os três
tinham que descarregar as cestas e arrastá-las pela selva,
sem deixar de encher os ouvidos dos tyros com adulações
para convencê-los a seguir em frente.
Em várias ocasiões, o caminho se interrompia na
beira de um leito de musgo cinza e hirsuto e era preciso
descer até profundidades ainda mais escuras, pois os anões
não tinham construído pontes que cruzassem os precipícios.
Ao chegar a um deles, foi preciso descarregar de novo os
tyros para que pudessem estender seus fios e descer por
sua conta. Os pesados cestos de mercadoria teriam que ser
levados nas costas.
Juntos, com os braços quase desconjuntados, os
humanos se prepararam e foram dando corda lentamente,
transportando a bagagem. A maior parte do trabalho
correspondia a Roland. O corpo magro e a escassa
musculatura de Paithan serviam de pouco. Finalmente, este
se encarregou de fixar a corda em torno do ramo de uma
árvore e amarrá-la com firmeza enquanto Roland, com uma
força que ao elfo pareceu maravilhosa, ocupava-se do
descida dos cestos sem ajuda alguma.
Primeiro baixou Rega, para que ela desamarrasse os
cestos quando chegassem ao fundo e para se assegurar de
que os tyros não fugiriam. A sós no fundo do precipício,
entre aquelas tempestuosas trevas cinza esverdeadas,
acompanhada de grunhidos e bufos e da súbita chamada
horripilante do vampiro, Rega agarrou o raztar e
amaldiçoou o dia em que tinha permitido que Roland a
metesse naquele assunto. Não só pelo perigo, mas também
por outra razão: algo completamente imprevisto,
inesperado. Rega estava se apaixonando.
— Os anões realmente vivem em lugares assim? —
perguntou Paithan olhando cada vez mais para cima, mas
sem nem sequer assim conseguir ver o sol através da
densa massa de musgo e ramos que o cobria.
— Sim — respondeu Roland lacônicamente, não muito
disposto a tratar o assunto por receio de que o elfo lhe
fizesse mais perguntas sobre os anões dos que estava
preparado para responder.
Os três estavam descansando depois de cruzar o
maior dos precipícios que tinham encontrado até então. As
cordas de cânhamo não tinham alcançado o fundo e Rega
tivera que subir em uma árvore para desamarrar os cestos,
que tinham ficado pendurando a alguns palmos do chão.
— Nossa, suas mãos estão cobertas de sangue! —
exclamou Rega.
— Ora, não é nada! — Disse Paithan, olhando com
tristeza para as palmas cheias de arranhões. — escorreguei
quando já estava no último lance de corda.
— É este maldito ar úmido — murmurou Rega. —
Tenho a impressão de estar vivendo no fundo do mar.
Venha, deixe-me cuidar delas. Roland, querido, traga um
pouco de água.
Roland, rendido de esgotamento sobre o musgo,
lançou um olhar furioso a sua “esposa”: “ por que eu?”,
dizia sua atitude. Rega devolveu a seu “marido” um olhar
de resposta que parecia replicar: “deixe-me a sós com ele e
não reclame, a idéia foi sua”.
Roland, vermelho de raiva, ficou em pé e entrou na
selva levando o odre da água.
Aquela era a ocasião perfeita para que Rega
continuasse sua manobra de sedução. Era evidente que
Paithan a admirava, tratando-a com indefectível cortesia e
respeito. De fato, Rega nunca tinha conhecido um homem
que a tratasse tão bem. Mas ao ter aquelas mãos finas e
brancas de dedos longos e esbeltos entre as suas, curtas e
morenas, com os dedos rechonchudos, Rega se sentiu de
repente tímida e desajeitada como uma menina em seu
primeiro baile.
— Seu contato é muito agradável — disse Paithan.
Rega ruborizou, ergueu os olhos para ele sob suas
longas pestanas negras e encontrou os de Paithan, que a
contemplavam com uma expressão incomum no
despreocupado elfo: seu olhar era grave, sério.
“Oxalá não fosse a esposa de outro homem.”
“Não sou!”, quis gritar Rega.
A mulher notou um tremor nos dedos, retirou-os
rapidamente e se virou para procurar algo em sua
bagagem.
“O que está me acontecendo?”, pensou. “ É um elfo!
Só nos interessa seu dinheiro! Isto é tudo que importa!”
— Tenho um ungüento de casca de sporn. Acho que
vai arder, mas amanhã pela manhã estará curado.
— A ferida que sofro não se curará jamais.
A mão de Paithan acariciou o braço de Rega com
gesto doce e carinhoso. Rega ficou completamente imóvel e
deixou que a mão deslizasse sobre sua pele, braço acima,
despertando à sua passagem um verdadeiro incêndio de
paixões. A pele ardia e as chamas se estendiam pelo peito e
lhe oprimiam os pulmões. A mão do elfo deslizou depois
pelas costas da mulher até rodeá-la pela cintura para atraí-
la para ele. Rega, agarrada com força ao frasco de
ungüento, não opôs resistência mas não olhou para Paithan
em nenhum momento. Era incapaz de fazê-lo. Tudo aquilo
acabaria bem, pensou.
A pele do elfo era suave, os braços magros, o corpo
ágil. Rega tratou de ignorar o fato de que o coração lhe
pulsava como se fosse sair do peito.
“Roland voltará e nos encontrará... nos beijando... e
nós dois... estamos brincando com este elfo...”
— Não! — exclamou Rega, e escapou do abraço de
Paithan. A pele ardia mas, inexplicavelmente, foi tomada de
um calafrio. — Não... não faça isso!
— Sinto muito — murmurou Paithan, retirando o braço
imediatamente. Também ele respirava agitado, a respiração
rápida. — Não sei o que me aconteceu. Você é uma mulher
casada e eu me excedi.
Rega não respondeu, manteve-se de costas para o
elfo, desejando mais que tudo no mundo que ele a
estreitasse em seus braços mas consciente de que voltaria
a rechaçá-lo se o fizesse.
“É uma loucura”, pensou, secando uma lágrima com
as costas da mão. “deixei que homens que não me
importavam me tocassem e agora este... que eu quero...
não posso...”
— Não voltará a acontecer, prometo — acrescentou
Paithan.
Rega compreendeu que ele falava sério e amaldiçoou
seu coração, que se encolhia e agonizava ante tal
perspectiva. Diria a verdade. Já tinha as palavras nos lábios,
mas se conteve.
O que ia dizer? Que Roland e ela não eram casados,
que eram irmãos, que tinham mentido para surpreender o
elfo em uma relação indecorosa, que tinham planejado
submetê-lo a chantagem? Rega imaginou seu olhar de asco
e de ódio. Certamente a abandonaria.
“Seria melhor que o fizesse”, sussurrou-lhe a voz fria
e dura da lógica. “Quais as possibilidades de ser feliz com
um elfo? Mesmo que encontrasse um modo de dizer-lhe que
está livre para aceitar seu amor, quanto duraria? Ele não a
quer de verdade; nenhum elfo pode amar um humano de
verdade. Só está se divertindo. Não seria mais que um
passatempo, um romance que duraria um par de estações,
quando muito. Depois, a abandonaria para retornar aos
seus e você seria uma proscrita entre sua própria gente por
ter se entregado às carícias de um elfo.”
“Não”, replicou Rega. “Paithan me ama. Vi isso em
seus olhos e tenho uma prova disso: não tentou me forçar
em seu desejo.”
“Muito bem”, insistiu a vozinha irritante. “Digamos
que tem razão e que ele a quer. O que acontece então? Os
dois se tornarão proscritos. Ele não pode voltar para seu
povo e você, tampouco. Seu amor é estéril, pois elfos e
humanos não podem ter filhos. Os dois vagarão pelo mundo
em solidão. Os anos passam e você ficará velha e
quebrada, enquanto ele se mantém jovem e cheio de
vida...”
— Ei, o que está acontecendo aqui? — exclamou
Roland, surgindo inesperadamente dentre os arbustos. Ao
ver a cena, ficou paralisado.
— Nada — respondeu Rega com voz fria.
— Já vou descobrir — murmurou Roland,
aproximando-se de sua irmã. Esta e o elfo estavam um em
cada extremo da pequena clareira do bosque, o mais
afastados possível um do outro. — O que aconteceu, Rega?
Vocês brigaram?
— Não aconteceu nada! Me deixe em paz! — Rega
elevou a vista para as árvores escuras e retorcidas, rodeou
o corpo com os braços e estremeceu visivelmente. — Este
não é um lugar muito romântico, sabe? — acrescentou em
voz baixa.
— Vamos, irmãzinha! — Insistiu Roland com um
sorriso. — Você faria amor em uma pocilga, se o homem
pagasse o suficiente.
Rega deu-lhe um bofetão. O golpe foi duro e preciso.
Roland olhou-a perplexo, ao mesmo tempo em que levava a
mão à bochecha dolorida.
— Por que fez isso? Era só uma piada...
Rega virou-se sobre os calcanhares e abandonou a
clareira. Ao chegar a beira da vegetação, virou-se
novamente e jogou um objeto para o elfo.
— Tome, ponha isto nos arranhões.
“Tem razão”, disse a si mesma enquanto entrava na
selva para chorar sem que a vissem. “Deixarei as coisas
como estão. Entregaremos as armas, ele partirá e assim
tudo acabará. Eu sorrirei e não lhe darei a entender em
nenhum momento que significa para mim mais que um
flerte...”
Paithan, pego de surpresa, agarrou o frasco bem a
tempo de evitar que caísse ao chão. Depois, viu Rega
desaparecer na mata e ouviu-a abrir caminho entre os
arbustos.
— Mulheres! — resmungou Roland, esfregando a
bochecha dolorida e meneando a cabeça. Levou o odre de
água até o elfo e o depositou a seus pés. — Deve ser o
período.
Paithan ruborizou intensamente e lançou um olhar
envergonhado ao humano. Roland piscou o olho.
— O que aconteceu, Quin? Disse algo inconveniente?
— Em minha terra, os homens não falam destas
coisas — respondeu o elfo.
— Ah, não? — Roland olhou para o lugar por onde
Rega tinha desaparecido; depois, olhou de novo para o elfo
e seu sorriso aumentou. — Suponho que, em sua terra, são
muitas as coisas que os homens não fazem.
O acesso de fúria de Paithan se transformou em um
sentimento de culpa. Ele os teria visto juntos? Seria aquela
sua maneira de lhe avisar que mantivesse as mãos quietas?
O elfo teve que engolir o insulto, pelo bem de Rega.
Acomodou-se no chão e começou a aplicar o ungüento
sobre as palmas das mãos, esfoladas e ensangüentadas.
Quando o líquido escuro tocou a carne viva, Paithan não
pôde evitar uma careta de dor. Entretanto, acolheu esta dor
com satisfação; ao menos, ela era preferível à que roia seu
coração.
Paithan tinha se divertido com as ligeiras insinuações
de Rega durante o primeiro par de ciclos de trajeto até que,
de repente, deu-se conta de que estava deleitando-se
muito com aqueles flertes. Com excessiva freqüência, tirava
o chapéu admirando com grande atenção o movimento dos
músculos de suas pernas bem torneadas, o quente fulgor
de uma chama em seus olhos pardos, o gesto de passar a
língua por seus lábios tintos de suco quando a humana
estava imersa em profundos pensamentos.
A segunda noite de viagem, quando Rega e Roland
tinham levado suas mantas ao outro extremo da clareira de
bosque e se deitaram um ao lado do outro sob a luz mortiça
da hora da chuva, Paithan tinha notado que se mordia de
ciúmes. Não importava que nunca os surpreendesse
beijando-se ou sequer acariciando-se com afeto. De fato, o
casal se tratava com uma despreocupada familiaridade que
era desconcertante, até mesmo entre casais. Depois, no
quarto ciclo de marcha, tinha chegado à conclusão de que
Roland — apesar de ser um tipo bastante agradável para o
que se esperava de um humano — não apreciava o tesouro
que tinha por mulher.
Paithan se sentiu satisfeito com aquela descoberta,
pois lhe proporcionava uma desculpa para deixar que
crescessem e florescessem seus sentimentos pela humana,
quando sabia perfeitamente que deveria tê-los arrancado
pela raiz. Nos ciclos transcorridos, a planta tinha florescido
completamente e as raízes se enroscavam agora em torno
de seu coração. Muito tarde, deu-se conta do dano que
tinha causado... a ambos.
Rega o amava. Estava certo disso: tinha notado no
tremor de seu corpo e o tinha visto naquele único e breve
olhar que a humana tinha dado. Mas Paithan, cujo coração
deveria estar dando saltos de alegria, sentia-se embotado
de desespero. Que loucura! Que estúpida loucura! Sim,
claro, podia obter dela alguns momentos de prazer, como
tinha feito com tantas mulheres humanas. Amava-as e, em
seguida, deixava-as. Elas não esperavam nada mais, não
queriam nada mais. E ele tampouco. Até aquele momento.
Mas, o que desejava? Uma relação que os separaria
de suas respectivas vidas? Uma relação contemplada com
aversão por ambos os mundos? Uma relação que não lhes
daria nada, nem sequer filhos? Uma relação que, em pouco
tempo, chegaria a um amargo e inevitável final?
“Não”, pensou. “De uma coisa assim não pode sair
nada bom. Partirei. Voltarei para casa. Darei os tyros de
presente. Calandra ficará furiosa comigo de qualquer modo,
se for por uma causa ou por outra. Irei agora mesmo.”
Mas continuou sentado, aplicando o ungüento com
gesto ausente. Acreditou ouvir um pranto ao longe e,
embora tentasse não prestar atenção ao som, chegou um
momento em que não pôde suportar.
— Acho que sua esposa está chorando — disse
Roland. — Talvez algo esteja errado.
— Rega chorando? — Roland deixou de alimentar os
tyros e olhou para ele com expressão divertida. — Não,
deve ter sido um pássaro. Rega nunca chora; não derramou
uma lágrima nem sequer quando a feriram em uma briga
com raztares. Viu a cicatriz? Está aqui, na coxa esquerda...
Paithan ficou em pé e se internou na selva, em
direção contrária a que Rega tinha tomado.
Roland seguiu o elfo com a extremidade do olho até
que desapareceu e, depois, começou a cantarolar uma
canção obscena que naquela época corria de boca em boca
pelos botequins.
— Ele se apaixonou como um adolescente
inexperiente — confiou aos tyros. — Rega o está levando
com mais calma do que o habitual, mas suponho que sabe
o que tem nas mãos. Afinal, o sujeito é um elfo. De
qualquer forma, sexo é sexo. Os bebês elfos devem vir de
alguma parte e não acredito que seja do ar. Em
compensação, as mulheres elfas... Puaj! São pura pele e
ossos; é como se alguém levasse um pau para a cama. Não
é de estranhar que o pobre Quin siga Rega com a língua de
fora. É só uma questão de tempo. Um par de ciclos mais e o
pegarei com as calças arriadas. Então ajustaremos as
contas com o elfo. Embora seja uma pena... — refletiu
Roland. Jogou o odre da água no chão, apoiou as costas em
uma árvore e se estirou para aliviar a rigidez de seus
músculos. — Começo a gostar do sujeito.
CAPÍTULO 15
23
Peça de madeira empapada em resina que se acende rapidamente quando se pronuncia a runa
adequada. (N. do A.)
ajuda. Mas Drugar, imponente ao lado de seu pai, viu tanta
dignidade na figura cambaleante, tanta sabedoria em seu
olhar apagado, que voltou a se sentir como um menino.
— A metade do exército se negará a empunhar as
armas contra seus “irmãos”, os gigantes. O que você fará
então, Drugar? Vai ordenar que vão à guerra? E como fará
que cumpram a sua ordem, filho? Mandando à outra
metade do exército que tome as armas contra eles? Não
faça isso! — O velho monarca golpeou o chão com o cajado
e as paredes de palha vibraram sob sua cólera. — Que não
chegue nunca o dia em que o Um se rompa! Que não
chegue nunca o dia em que o corpo verta seu próprio
sangue!
— Perdoe-me, pai. Não tinha pensado nisso.
O rei ancião suspirou. Seu corpo se encolheu e
afundou sobre si mesmo. Cambaleando, agarrou a mão de
seu filho e, com a ajuda deste e do cajado, deixou-se cair
de novo na cadeira.
— Contenha sua fúria, filho. Contenha-a ou destruirá
tudo a sua passagem, incluindo a si mesmo, Drugar.
Inclusive você mesmo. Agora, vá terminar de comer.
Lamento ter interrompido.
Drugar deixou seu pai e retornou para sua casa, mas
não voltou a sentar-se à mesa, pôs- se a caminhar para
cima e para baixo pela casa. Tentou com todas as suas
forças controlar o fogo que lhe queimava por dentro, mas
foi inútil. Uma vez avivadas, as chamas do temor por seu
povo não eram fáceis de aplacar. Não podia nem queria
desobedecer o ancião que além de seu pai era também seu
rei. Apesar disso, Drugar decidiu não deixar que o fogo se
apagasse totalmente. Quando o inimigo chegasse,
encontraria uma chama ardente, não cinzas apagadas e
frias.
O exército anão não foi mobilizado mas Drugar, em
particular e sem conhecimento de seu pai, preparou planos
de batalha e incitou todos os anões que tinham a mesma
opinião que ele para que tivessem as armas à mão. Do
mesmo modo, manteve-se em estreito contato com os
exploradores para seguir, mediante seus informes, os
progressos dos gigantes. Chegados ao obstáculo
intransponível do mar Sussurrante, os invasores se
encaminharam por terra para o leste, avançando
inexoravelmente para seu objetivo... fosse ele qual fosse.
Drugar não acreditava que o propósito dos gigantes
fosse aliar-se aos os anões. Thurn ouviu rumores sombrios
de matanças de anões nas populações do Grish e Klan, para
o norint, mas era difícil seguir a pista dos invasores e as
notícias dos exploradores (os escassos informe que
chegavam) eram confusos e não faziam muito sentido.
— Pai — suplicou ao velho rei, — é preciso que me
deixe convocar o exército! Como podemos continuar
ignorando estas mensagens?
Com um suspiro, o ancião respondeu:
— São os humanos... O conselho decidiu que são os
refugiados humanos que, fugindo dos gigantes, cometem
essas loucuras. Dizem que os gigantes se aliarão a nós e
que então chegará a hora de nossa vingança!
— Interroguei pessoalmente os exploradores, pai —
insistiu Drugar com crescente impaciência. — Com os que
restaram. Cada dia chegam menos informes e os poucos
exploradores que voltam, fazem-no cheios de pânico.
— É mesmo? — perguntou seu pai, olhando-o com ar
perspicaz. — E o que contam que viram?
Drugar titubeou, frustrado.
— Está bem, pai! Até agora, não viram nada, na
verdade!
— Eu também os ouvi, filho — assentiu pesadamente
o ancião. — Ouvi esses rumores sobre “a selva em
movimento”. Como posso me apresentar ao conselho com
tal argumento?
Drugar esteve a ponto de dizer a seu pai onde podia
meter o conselho e seus próprios argumentos, mas
percebeu que uma resposta tão brusca não serviria para
nada, exceto para irritar ainda mais o ancião. O monarca
não tinha culpa; Drugar sabia que seu pai tinha defendido a
mesma posição que ele sustentava. O conselho do Um,
formado pelos anciões da tribo, não quisera escutá-lo.
Com os lábios apertados para que não escapassem
de sua boca palavras ardentes, Drugar abandonou furioso a
casa de seu pai e pôs-se a andar pela vasta e complexa
série de túneis escavados na vegetação, encaminhando-se
para cima. Quando emergiu, entreabrindo os olhos, nas
regiões banhadas pelo sol, contemplou a selva. Ali fora
havia algo. E vinha em direção a eles. E Drugar não
acreditava que o fizesse com espírito fraternal. O anão
aguardou, com uma sensação de crescente desespero, a
chegada das armas élficas, mágicas e inteligentes.
Se aqueles dois humanos o tinham enganado...
Drugar jurou pelo corpo, a mente e a alma do Um que, se
assim fosse, os faria pagar com a vida.
CAPÍTULO 16
NAS SOMBRAS,
GUNIS
24
Termo usado por sartan e patryns para denominar as raças inferiores: elfos, humanos e anões. Aplica-
se a todas elas. (N do A)
conjurou as runas para diminuir a marcha da Asa de
Dragão, deixar a nave suspensa no ar e pousá-la no chão sã
e salva. Pela extremidade do olho, viu que a figura de roupa
escura saltava, agitando no ar um gorro velho e
desajeitado.
A nave tocou o chão e, para surpresa e alarme de
Haplo, continuou descendo. Estava afundando! Haplo
percebeu então que não estava em terra firme, e sim
pousado em um leito de musgo que cedia sob o peso da
nave voadora. Já se dispunha a ativar a magia para deter a
descida da embarcação quando esta ficou assentada por
fim, balançando quase como num berço .
Por fim, depois de uma travessia que lhe tinha
parecido durar séculos, Haplo tinha chegado ao seu destino.
Chegou às janelas, mas estavam enterradas sob o
espesso musgo e não se via nada além de uma massa de
folhas verde-cinzentas contra o cristal. Teria que sair pela
coberta superior.
De cima lhe chegaram vozes fracas, mas Haplo
considerou que a nave teria semeado tal temor reverencial
entre os nativos que estes não se atreveriam a aproximar-
se. Se o fizessem, levariam um susto. O patryn tinha
levantado um escudo mágico em torno do casco e quem o
tocasse acreditaria, por uma fração de segundo, que lhe
tinha caído um raio em cima.
Uma vez chegado ao seu destino, Haplo voltou a ser
ele mesmo. Seu cérebro voltou a pensar, a guiar seus atos,
a dirigi-lo. Vestiu-se de modo que todo seu corpo, tatuado
de signos mágicos, ficasse a salvo de olhares. Para isso,
calçou botas de couro, suaves e flexíveis, ajustadas sobre
calças também de couro, uma camisa de manga longa,
fechada no pescoço e nos punhos e, por cima, um colete de
pele. Por último, amarrou um lenço ao pescoço,
introduzindo as pontas sob a camisa.
As tatuagens não se estendiam pela cabeça nem pelo
rosto, pois sua magia poderia perturbar os processos
mentais. Surgindo de um ponto do peito acima do coração,
as runas ocupavam todo o resto de seu corpo, percorrendo
o tronco até os rins, as coxas, as panturrilhas e o peito do
pé, mas não a planta. Círculos, espirais e complexos
desenhos em vermelho e azul rodeavam seu pescoço,
estendiam-se por seus ombros, desciam pelos braços e
cobriam tanto a palma como as costas de suas mãos, mas
não os dedos. Assim, as únicas zonas de sua pele livres de
tatuagens mágicas eram o crânio, para que seu cérebro
pudesse guiar a magia, os olhos, ouvidos e boca, para
poder perceber o mundo exterior, e os dedos das mãos e as
plantas dos pés, para conservar o tato.
A última precaução de Haplo, uma vez que a nave
tinha aterrissado e ele não necessitava mais das runas para
pilotá-la, foi envolver as mãos com fortes bandagens.
Ajustou a atadura em torno do punho e cobriu toda a
palma, passando o tecido entre os dedos e deixando-os
descobertos.
Uma enfermidade da pele, tinha explicado Haplo aos
mensch em Ariano. Não era dolorosa, mas as pústulas
avermelhadas e cheias de pus que a doença provocava
eram repulsivas. No Ariano, depois de escutar suas
explicações, todos tinham tratado de evitar suas mãos
enfaixadas.
Bom, quase todo mundo.
Um homem tinha adivinhado que mentia; um homem,
depois de submetê-lo a um feitiço, tinha examinado as
ataduras e descoberto a verdade. Mas aquele homem era
um sartan, Alfred, e já suspeitava do que ia descobrir. Haplo
tinha percebido que Alfred prestava uma atenção fora do
normal a suas mãos, mas não tinha se incomodado... o que
tinha sido um erro quase fatal para seus planos. Desta vez,
o patryn sabia o que devia vigiar; desta vez, estava
preparado.
Conjurou uma imagem de si mesmo e a inspecionou
atentamente, dando uma volta completa em torno daquele
Haplo simulado. Por fim, deu-se por satisfeito. Não se via
nem sinal das runas. Dissolveu a imagem. Colocou em seu
lugar as bandagens das mãos, subiu à coberta superior,
abriu a escotilha e saiu, deslumbrado, sob o sol brilhante.
O murmúrio de vozes se apagou ante sua aparição.
Haplo se levantou na coberta e olhou a seu redor, parando
um instante para aspirar profundamente aquele ar fresco,
embora terrivelmente úmido. Abaixo de si viu algumas
cabeças levantadas, algumas bocas abertas, alguns olhos
assombrados.
Eram elfos, com uma exceção. A figura de amplas
roupas de cor arroxeada era um humano, um velho com um
comprido cabelo grisalho e longa barba branca. Ao
contrário dos outros, o ancião não o contemplava com
assombro e temor. Radiante, virava-se para um lado e a
outro enquanto alisava a barba.
— Eu lhes disse! — ouviu-o exclamar. — Não lhes
disse? Suponho que acreditarão agora!
— Cão, aqui! — Haplo soltou um assobio e o animal
apareceu na coberta, trotando. Sua presença provocou uma
nova onda de assombro entre os presentes.
Haplo não se preocupou em jogar a escadilha; a nave
afundara tanto no musgo — com as asas pousadas sobre
este — que pôde saltar ao chão sem problemas. Os elfos
reunidos em torno da Asa de Dragão se afastaram
apressadamente, observando o piloto da nave com
incredulidade e suspeita. Haplo aspirou profundamente e se
dispôs a contar a história que tinha preparada. Sua mente,
trabalhando a marchas forçadas, evocou o idioma dos elfos.
Mas não teve chance de falar. Antes que o fizesse, o ancião
correu até ele e estreitou uma de suas mãos enfaixadas.
— Nosso salvador! Bem a tempo! — Exclamou,
sacudindo seu braço energicamente na tradicional
saudação humana. — Teve um bom vôo?
CAPITULO 19
NA FRONTEIRA DE THURN
CAPITULO 20
OS TÚNEIS,
THURN