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Ciclo da Porta da Morte

A Estrela dos Elfos

Margareth Weiss – Tracy Hickman


Título original:
Elven Star (Volume 2 The Death Gate Cycle)

© 1990 by Margaret Weis and Tracy Hickman


Published by arrangement with Bantam Books, a
difusion of Bantam Doubleday DELL Publishing Group, Inc.,
New York.
© Grupo Editorial Ceac, S.A 1991
ISBN: 84-413-0275-8 (Obra completa)
84-413-0643-5 (volume 52) Depósito legal: B. 14148-
1997

“Seu estandarte sobre mim era o amor.”


Cântico do Salomão

PRÓLOGO
“...tínhamos a nosso alcance o domínio do mundo.
Nossos antigos inimigos, os sartan, assistiam impotentes
nosso auge. A certeza de que seriam obrigados a viver sob
nosso comando era mortificante para eles, amarga como o
absinto, e decididos a tomar medidas drásticas, cometeram
um ato de desespero quase impossível de conceber. Para
não permitir que dominássemos o mundo, os sartan o
destruíram.
“Em seu lugar, criaram quatro novos mundos,
formados com os elementos do velho: Ar, Fogo, Terra e
Água. Os povos do mundo que sobreviveram ao holocausto
foram transportados para estes mundos para que os
habitassem. Nós, o antigo inimigo, fomos jogados em uma
prisão mágica conhecida como o Labirinto.
“Segundo os registros que descobri no Elo, os sartan
esperavam que a vida na prisão nos “reabilitasse”, que
sairíamos do Labirinto, com nossa natureza — dominante e
que eles denominavam cruel — apaziguada. Mas algo saiu
errado. Nossos carcereiros sartan, aqueles que deveriam
controlar o Labirinto, desapareceram. E o próprio Labirinto
tomou seu lugar, e, da prisão, transformou-se em verdugo.
“São incontáveis os filhos de nosso povo que
morreram nesse lugar espantoso. Gerações inteiras foram
aniquiladas. Mas, antes de ser destruída, cada uma delas
conseguiu ganhar terreno ao Labirinto e deixar seus
descendentes um pouco mais perto da liberdade. Por fim,
graças a meus extraordinários poderes mágicos, consegui
derrotar o Labirinto e fui o primeiro a escapar de suas
armadilhas. Atravessei a Porta Final e emergi neste mundo,
conhecido como o Elo. Aqui, vi o que os sartan tinham feito
conosco e descobri a existência de quatro novos mundos e
as relações entre eles. Mas o que é mais importante:
descobri a Porta da Morte.
“Retornei ao Labirinto — continuo fazendo isso com
freqüência — e utilizei minha magia para combater e
estabilizar diversas partes dele, proporcionando assim
refúgios seguros para o resto de minha gente, que ainda
luta por libertar-se de seu cativeiro.
Quem consegue, chega ao Elo e trabalha para mim,
levantando a cidade e preparando-se para o dia em que de
novo ocuparemos o lugar que nos corresponde como donos
do universo. Com este fim, decidi mandar exploradores a
cada um dos quatro mundos, através da Porta da Morte.”1

“(...) Escolhi Haplo entre o grande número de patryns


a meu serviço por diversas razões: sua sensatez, sua
rapidez de pensamento, sua capacidade de falar com
fluidez diversos idiomas e seu domínio da magia. Haplo
demonstrou sua capacidade em sua primeira viagem ao
Ariano, o mundo do ar. Não só fez tudo que pôde para
perturbar a ordem desse mundo e para precipitá-lo em uma
guerra devastadora, mas me trouxe abundantes e valiosas
informações, assim como um jovem discípulo, um menino
extraordinário chamado Bane.
“Estou muito satisfeito com Haplo e seu talento. Se o
vigio com certa severidade é devido a essa desafortunada
tendência a pensar por sua conta. Eu não digo nada, pois
no momento esse traço de seu caráter me é de incalculável
valor. Na realidade, não acredito que nem ele mesmo se dê
conta de seu defeito. Haplo imagina ser dedicado a mim,
sacrificaria sua vida por mim sem duvidar. Mas uma coisa é
1
O Senhor do Elo, História dos patryn depois da Destruição do Mundo. (N. do A.)
oferecer a própria vida, e outra diferente é oferecer a alma.
Reunificar os quatro mundos e derrotar aos sartan... que
doces serão essas vitórias! Mas muito mais doce será o
espetáculo de Haplo e seus congêneres, ajoelhados a minha
frente, me reconhecendo em seus corações e em suas
mentes como seu amo e senhor absoluto”.2

“Haplo, meu querido filho.”


“Espero que me permita chamá-lo assim. É tão
querido para mim como os filhos que gerei, talvez porque
acredito ter desempenhado um papel fundamental em seu
nascimento... ou renascimento. Não há dúvida de que te
arranquei das garras da morte e o devolvi à vida. Afinal, o
que faz um pai natural para ter um descendente, salvo
compartilhar alguns breves momentos de prazer com uma
mulher?
“Tinha a esperança de ajudá-lo a ganhar tempo em
sua viagem a Pryan, o reino do Fogo. Por azar, os
observadores me avisaram que o campo mágico está
desmoronando nas cercanias da porta quatrocentos e
sessenta e três. O Labirinto desencadeou uma praga de
formigas carnívoras que matou centenas dos nossos. Devo
ir combatê-las e, portanto, estarei ausente quando você
partir. Não é preciso dizer que gostaria que você estivesse a
meu lado, mas sua missão é urgente e não quero afastá-lo
de seu dever.
“Minhas instruções são parecidas com as que te dei
ao partir para o Ariano. É obvio, ocultará das pessoas
normais os seus poderes mágicos. Como no Ariano,
devemos manter em segredo nossa volta ao mundo. Se os
sartan me descobrirem antes que esteja preparado para
levar a cabo meus projetos, moverão céu e terra (como já
fizeram uma vez) para impedi-lo.
“Lembre-se, Haplo, que você é um observador. Se for
possível, não intervenha diretamente para alterar os
acontecimentos do mundo; atue só através de meios
2
Extrato dos diários privados do Senhor do Elo. (N. do A.)
indiretos. Quando me apresentar nesses mundos, não quero
escutar acusações de que meus agentes cometeram
atrocidades em meu nome. Seu trabalho no Ariano foi
excelente, meu filho, e se volto a citar esta precaução, faço-
o apenas como aviso.
“Sabemos pouco à respeito de Pryan, o mundo do
Fogo, exceto que sua extensão parece ser imensa. Os
indícios que os sartan nos deixaram descrevem uma
gigantesca bola de rocha que envolve um núcleo de fogo,
parecida com o mundo antigo mas muitíssimo maior. É esse
tamanho o que me desconcerta. Por que os sartan
sentiriam necessidade de fazer tão incrivelmente imenso
esse planeta? E há outra coisa que não entendo: onde está
o sol? Seu dever, Haplo, será encontrar resposta para estas
e outras perguntas.
“A vasta imensidão das terras de Pryan me leva a
pensar que seus habitantes devem estar divididos em
pequenos grupos, isolados entre si. Apóio-me para isso no
cálculo do número de seres das raças que os sartan devem
ter transladado para Pryan. Inclusive com uma explosão
demográfica sem precedentes, elfos, humanos e anões não
poderiam de modo algum ter se expandido até ocupar um
espaço tão enorme. Em tais circunstâncias, de nada me
serviria um discípulo que pudesse unificar os povos, como o
que trouxe do Ariano.
“Envio-o a Pryan com a missão principal de investigar.
Descubra tudo que puder desse mundo e de seus
habitantes. E, assim como no Ariano, procure com diligência
qualquer sinal dos sartan; embora, salvo uma exceção, não
tenha encontrado nenhum com vida no mundo do Ar, é
possível que fugissem dali e se exilassem em Pryan.
“Tome cuidado, Haplo. Seja discreto e prudente. Não
faça nada que possa atrair a atenção sobre você. Abraço-o
de todo coração. E espero estreitá-lo em meus braços
quando retornar, são, salvo e triunfante.
“Seu amo e pai.”3
3
Haplo, Pryan mundo do Fogo, vol. 2 de Diários da Porta da Morte. (N. do A.)
CAPÍTULO 1
MANSÃO DE YRENI, DANDRAK,
REINO MÉDIO

Calandra Quindiniar estava sentada atrás da enorme


mesa de madeira polida, somando os lucros do último mês.
Seus dedos brancos dirigiam com rapidez o ábaco,
deslizando as contas para cima e para baixo, e seus lábios
murmuravam as somas em voz alta enquanto escrevia as
cifras no velho livro de contabilidade encadernado em pele.
Sua caligrafia era muito parecida com a própria Calandra:
fina, reta, precisa e fácil de ler.
Sobre sua cabeça giravam quatro conjuntos de
plumas de cisne que mantinham o ar em movimento.
Apesar do mormaço de metade de ciclo no exterior, o
interior da casa permanecia fresco. A mansão se achava na
máxima elevação da cidade e recebia, graças a isso, a brisa
que mais abaixo era sufocada pela selva.
Era a maior mansão da cidade, depois do palácio real.
(Lenthan Quindiniar tinha dinheiro suficiente para fazer uma
casa maior até que o palácio real, mas era um elfo humilde
que conhecia muito bem seu lugar.) As estadias eram
espaçosas e arejadas, com tetos altos e numerosas janelas
e possuía um sistema de ventiladores mágicos, ao menos
um por cômodo. Os salões, muito amplos, achavam-se no
segundo andar e estavam belamente mobiliados. Algumas
persianas os deixavam frescos e na penumbra durante as
horas brilhantes do ciclo. Quando se produzia uma
tormenta, as persianas eram levantadas para deixar passar
a refrescante brisa carregada de umidade.
Paithan, o irmão mais novo de Calandra, estava
sentado em uma cadeira de balanço perto do escritório.
Balançava-se para frente e para trás indolentemente, com
um leque na mão, e estudava o movimento das plumas de
cisne sobre a cabeça de sua irmã. Do estudo, Paithan podia
divisar vários ventiladores mais: o do salão e, mais à frente,
o da cozinha. Viu-os girar no ar e entre o rítmico tremor das
plumas, o estalo das contas do ábaco e o leve rangido da
cadeira de balanço, caiu em um estado quase hipnótico.
Uma violenta explosão que sacudiu os três pisos da
casa fez Paithan se levantar de um salto.
— Maldição! — resmungou, observando com irritação
uma fina nuvem de yeso4 que caía do teto em sua bebida
gelada.
Sua irmã bufou e não disse nada. Fez uma pausa para
soprar o pó de gesso que se depositara na folha do livro de
contabilidade, mas não interrompeu seus cálculos. Ouviu-se
então um gemido de terror procedente do piso inferior.
— Deve ser a nova criada — comentou Paithan
ficando em pé. — É melhor tranqüilizá-la e dizer que são
apenas as experiências do nosso pai...
— Não fará nada disso — replicou Calandra sem
levantar a vista e sem parar de escrever. — Ficará aí
sentado e esperará que eu termine as contas; logo,
repassaremos os detalhes de sua próxima viagem a norint.
Já é suficientemente pouco o que faz para ganhar a vida,
sempre perdendo tempo em Orn e com seus amigos da
nobreza. Além disso, a garota é humana; e muito feia.
Calandra se concentrou de novo em suas somas e
subtrações. Paithan voltou a acomodar-se de bom grado na
cadeira de balanço.
“Deveria ter imaginado — pensou o jovem elfo — que
se Calandra contratasse uma humana seria algum
despropósito com cara de porco. Isso é o que se chama
amor fraternal. Ah!, enfim, muito em breve vou viajar e
então, minha querida Calandra, o que os olhos não vêem...”

4
Elaborado com um composto de depósitos de cálcio procedentes dos ossos de animais, mesclados com
outros elementos orgânicos até formar uma massa dúctil e manejável. (N. do A.)
Paithan se balançou na cadeira, sua irmã continuou
murmurando e os ventiladores continuaram girando
tranqüilamente.
Os elfos adoravam a vida e por isso a envolviam de
magia em quase todas as suas criações. As plumas
produziam a ilusão de estarem presas à asa do cisne.
Enquanto as contemplava, Paithan pensou que constituíam
uma boa analogia de sua família: todos os seus membros
viviam na crença ilusória de ainda estarem vinculados a
algo, talvez até uns aos outros.
Suas aprazíveis meditações foram interrompidas pela
aparição de um elfo sujo de fuligem, desalinhado e com as
pontas dos cabelos chamuscados, que entrou na sala aos
saltos e esfregando as mãos.
— Desta vez não foi ruim, não é? — comentou.
De baixa estatura para um elfo, era evidente que em
outra época tinha sido obeso. Nos últimos tempos, suas
carnes se tornaram fofas, e sua pele, cítrica e ligeiramente
torcida. Embora a capa de fuligem ocultasse, o cabelo cinza
que rodeava a extensa calva indicava que estava na
maturidade. Se não fosse pelas cãs, teria sido difícil calcular
a idade do elfo pois sua pele era lisa, sem uma ruga. E
olhos brilhantes; muito brilhantes. O recém-chegado
esfregou as mãos e olhou alternada e nervosamente para
seus filhos.
— Desta vez não foi ruim, não é? — repetiu.
— Certamente que não, chefe — assentiu Paithan, de
bom humor. — Um pouco mais e caio de costas.
Lenthan Quindiniar lhe dirigiu um sorriso
espasmódico.
— Calandra? — insistiu.
— Você conseguiu deixar a ajudante de cozinha
histérica e causou novas rachaduras no teto, se for a isso
ao que se refere, pai — replicou Calandra, fazendo um
gesto irritado.
— Você cometeu um erro! — o ábaco disse de
repente. Calandra dirigiu um olhar de raiva ao aparelho,
mas este se manteve firme. — Quatorze mil seiscentos e
oitenta e cinco mais vinte e sete não são quatorze mil
seiscentos e doze. São quatorze mil setecentos e doze.
Você esqueceu de puxar uma.
— Fique satisfeito que eu só tenha cometido um erro!
Viu o que fez, pai? — exclamou Calandra. Lenthan se
mostrou bastante abatido durante alguns instantes, mas
recuperou o ânimo em seguida.
— Agora não falta muito — comentou, esfregando as
mãos. — Desta vez, o foguete subiu acima da minha
cabeça. Acredito que estou perto de encontrar a mistura
adequada. Vou ao laboratório outra vez, meus queridos.
Estarei ali se alguém precisar de mim.
— Isto é muito provável! — murmurou Calandra.
— Vamos, deixe o chefe tranqüilo — disse Paithan,
observando com ar divertido o elfo sujo de fuligem que,
depois de uma hesitação, retrocedia entre os belos móveis
até desaparecer por uma porta traseira da cozinha. — Por
acaso prefere vê-lo como estava depois da morte de nossa
mãe?
— Preferiria vê-lo normal, se está se referindo a isso,
mas suponho que é pedir muito. Entre os namoros de Thea
e o estado mental do pai, somos os bobos da cidade.
— Não se preocupe, querida irmã. Possivelmente
alguns zombam, mas o farão sempre às escondidas
enquanto for você que arrecada o dinheiro dos Senhores da
Thillia. Além disso, se o velho recuperasse o juízo, voltaria a
cuidar do negócio.
— Ora! — Resmungou Calandra. — Não utilize essas
expressões. Já disse que não as suporto. É o que acontece
quando se anda por aí com amigos como esses seus. Um
grupo de indolentes...
— Erro! — Informou o ábaco. — Tem que...
— Já vou corrigir! — Calandra franziu o cenho,
consultou a última anotação e, com um gesto irritado,
voltou a somar as quantidades.
— Deixe que essa... essa coisa se encarregue das
contas — Paithan apontou para o ábaco.
— Não confio nas máquinas. Silêncio! — exclamou
Calandra quando seu irmão se dispunha a acrescentar algo
mais.
Paithan permaneceu em silêncio por alguns
momentos, abanando-se, enquanto se perguntava se teria
energia suficiente para chamar o criado e lhe mandar trazer
um copo de ambrosia fria... um que não estivesse cheio de
gesso. Entretanto, dado seu caráter, o jovem elfo era
incapaz de ficar calado muito tempo.
— Falando de Thea, onde ela está? — perguntou,
voltando a cabeça como se esperasse vê-la emergir de
debaixo de alguma das capas que protegiam vários móveis
da sala.
— Na cama, é obvio. Ainda não é a hora do vinho —
respondeu sua irmã, referindo-se ao período do final de
cada ciclo5 conhecido como “arrebatamento” em que os
elfos deixavam o trabalho e relaxavam tomando um copo
de vinho com especiarias.
Paithan balançou-se para frente e para trás. Estava se
aborrecendo. O nobre Durndrun ia sair com um grupo para
navegar pelo lago da árvore e ofereceria um jantar
campestre a seguir e, se Paithan quisesse participar, já era
hora de vestir-se adequadamente e se por a caminho. Até
sem ser de berço nobre, o jovem elfo era suficientemente
rico, bonito e encantador para fazer nome entre a
aristocracia. Faltava-lhe a educação da nobreza mas era
preparado o bastante para reconhecer e não tentar fingir
ser algo diferente do que era: o filho de um comerciante de
classe média. O fato de que esse pai comerciante de classe
média fosse, precisamente, o elfo mais rico de toda Equilan,
mais rico até (assim se dizia) que a própria rainha,
compensava suas ocasionais quedas na vulgaridade. O
5
A sociedade élfica de Equilan mede o tempo da seguinte maneira: uma hora tem cem minutos, vinte e
uma horas são um ciclo, cinqüenta ciclos são uma estação, e cinco estações, um ano. A medição do
tempo varia de um lugar a outro em Pryan, segundo as condições meteorológicas locais. Ao contrário do
mundo de Ariano, onde existe o dia e a noite, em Pryan nunca há sol. (N. do A.)
jovem elfo era um bom camarada que gastava o dinheiro
com prodigalidade.
“É um diabo interessante; conta as histórias mais
extravagantes”, havia dito um dos nobres.
A educação de Paithan vinha do mundo, não dos
livros. Depois da morte de sua mãe, uns oito anos atrás, e a
posterior queda de seu pai na loucura e na enfermidade,
Paithan e sua irmã mais velha se encarregaram dos
negócios familiares. Calandra ficava em casa e controlava a
contabilidade da próspera empresa de armamentos.
Embora fizesse mais de cem anos que os elfos não iam à
guerra, os humanos ainda gostavam de praticá-la, e mais
ainda gostavam das armas mágicas que os elfos criavam.
Paithan se encarregava de sair pelo mundo, negociar os
contratos, assegurar-se que os envios eram entregues e
manter os clientes satisfeitos.
Devido a isso, tinha viajado por todas as terras da
Thillia e em uma ocasião se aventurou até aos próprios
territórios dos reis do mar, para o norint. Os nobres elfos,
pelo contrário, raramente abandonavam suas propriedades
nas copas das árvores. Muitos deles nem sequer tinham
pisado nas partes inferiores de Equilan, seu próprio reino.
Devido a isso, Paithan era considerado uma maravilhosa
raridade e era cortejado como tal.
Paithan tinha consciência de que os nobres e as
damas o viam como um macaco doméstico. A alta
sociedade elfa não o aceitava totalmente. Ele e sua família
eram convidados ao palácio real uma vez ao ano, em uma
concessão da rainha a quem mantinha as arcas cheias, mas
isso era tudo. Nada disso preocupava Paithan.
Em compensação, o fato de que alguns elfos que não
tinham a metade da preparação e não tinham nem a quarta
parte de suas riquezas olharem para os Quindiniar por cima
do ombro porque estes não podiam reconstruir sua árvore
genealógica até o tempo da Peste incomodava Calandra
como uma flecha no peito. Não encontrava nenhuma
virtude na “nobreza” e, ao menos na frente do irmão,
deixava patente o desdém que lhe inspirava. E a irritava
muitíssimo que Paithan não compartilhasse seus
sentimentos.
Paithan, achava os nobres elfos quase tão divertidos
como eles o consideravam. Sabia que, se propusesse
matrimônio a qualquer uma das filhas de um dos duques,
haveria abraços e soluços e lágrimas ante a idéia de que a
“querida filha” se casasse com um plebeu... e o casamento
seria celebrado logo que a etiqueta cortesã permitisse.
Afinal, as casas nobres precisavam de dinheiro para se
manter.
O jovem elfo não tinha intenção de se casar; ao
menos, no momento. Procedia de uma família de
aventureiros e migrantes cujos antepassados eram os
exploradores elfos que tinham descoberto a omita. Ficara
quase uma estação completa em casa e era hora de viajar
outra vez, razão pela qual estava ali sentado junto a sua
irmã, quando deveria encontrar-se remando em um bote
acompanhado de alguma daminha encantadora. Mas
Calandra, abstraída em seus cálculos, parecia ter se
esquecido de sua presença. Paithan decidiu de repente que,
se ouvisse estalar outra vez as contas do ábaco, ia se
“chatear” (outra expressão de “seu uso” que provocaria a
irritação de Calandra).
Paithan tinha uma notícia para sua irmã que estivera
guardando para um momento como aquele. Uma notícia
que provocaria uma explosão parecida com a que tinha
sacudido a casa um momento antes, mas que tiraria
Calandra de sua concentração. Assim, Paithan poderia
escapar dali.
— O que você acha de nosso pai ter mandado chamar
um sacerdote humano? — perguntou.
Pela primeira vez desde que entrara na habitação,
sua irmã interrompeu seus cálculos, levantou a cabeça e
olhou para ele.
— O que?
— Nosso pai mandou chamar um sacerdote humano.
Pensei que você soubesse. — Paithan piscou
repetidamente, aparentando inocência.
Nos olhos escuros de Calandra apareceu um fulgor.
Seus lábios se apertaram. Depois de secar a pluma com
meticuloso cuidado em um pano manchado de tinta que
utilizava expressamente com tal propósito, deixou-a com
delicadeza em seu lugar correspondente, sobre o livro de
contabilidade, e voltou a cabeça para seu irmão,
dedicando-lhe toda a sua atenção.
Calandra nunca tinha sido bela. Toda a beleza da
família, dizia-se, tinha sido reservada e concedida a sua
irmã menor. Calandra era tão magra que seu aspecto era
quase cadavérico. (Quando criança, Paithan tinha recebido
uma palmadas ao perguntar se sua irmã prendera o nariz
em algum lugar.) Agora, parecia que toda sua cara tinha
sido comprimida em uma prensa. Usava o cabelo preso
para trás num coque apertado no alto da cabeça, preso
com três pentes de pontas agudas e aspecto atroz. Sua
pele tinha uma palidez mortal, pois raramente abandonava
o interior da casa e, quando o fazia, usava um guarda-sol
como proteção. Suas roupas severas eram sempre
confeccionadas segundo o mesmo patrão: abotoadas até o
queixo e com saias que se arrastavam pelo chão. Calandra
nunca tinha se importado em não ser bela. A beleza era
importante para a mulher que pretendesse apanhar um
homem, mas Calandra não queria nenhum.
— Afinal — Calandra gostava de dizer, — o que são os
homens além de seres que gastam seu dinheiro e se metem
em sua vida?
“Todos, exceto eu”, pensou Paithan. “E isso porque
Calandra cuidou de me educar como devia.”
— Não acredito — disse ela.
— Claro que sim. — Paithan estava se divertindo. — Já
sabe que o sex... perdão, foi um deslize... que nosso pai
está louco o bastante para fazer algo.
— Como você soube?
— Porque na última hora de jantar fiquei no bar do
velho Rory tomando uma taça rápida antes de ir para a
casa de...
— Não me interessa para onde foi — cortou Calandra,
em cuja testa apareceu uma ruga. — Rory não te contou
esse rumor, não é?
— Creio que sim, querida irmã. O louco de nosso pai
estava no bar, falando de seus foguetes, e saiu com a
notícia de que tinha chamado um sacerdote humano.
— No bar! — Calandra arregalou os olhos, aterrada. —
Muita... muita gente ouviu?
— Certamente que sim! — respondeu Paithan,
animadamente. — Era sua hora de costume, já sabe, justo a
hora do vinho, e o local estava abarrotado.
Calandra soltou um gemido rouco e seus dedos se
fecharam em torno do marco do ábaco, que protestou
sonoramente.
— Talvez nosso pai tenha... imaginado — murmurou.
Entretanto, sua voz soou desesperançada. Às vezes,
Lenthan Quindiniar estava muito ligado em sua loucura.
Paithan moveu a cabeça.
— Não — disse. — Falei com o homem dos pássaros.
Seu ánsar6 levou a mensagem a Gregory, Senhor da Thillia.
A nota dizia que Lenthan Quindiniar de Equilan queria
consultar um sacerdote humano a respeito de viagens às
estrelas. Comida, alojamento e quinhentas pedras.7
Calandra lançou um novo gemido, mordeu o lábio e
exclamou:
— Seremos assediados!
— Não, não. Eu acho que não. — Paithan sentiu certo
remorso por ser a causa daquele desgosto. Acariciou os
dedos duros de sua irmã. — Desta vez possivelmente
teremos sorte, Cal. Os sacerdotes humanos vivem em
6
Ave voadora da família dos gansos do mar utilizados para comunicações a longa distância. Um ganso
selvagem devidamente treinado, voa entre dois pontos sem jamais se perder. (N. do A.)
7
Medida de mudança de Equilan. É um papel de troca pelo equivalente em pedras, que são
extremamente escassas e só podem ser encontradas no fundo do mundo de Pryan. (N. do A.)
monastérios. Sua principal ocupação é intervir em política e
tentar nos fazer voltar para os Senhores Perdidos.
— Tem certeza disso? — As bochechas pálidas de
Calandra tinham recuperado parte da cor.
— Bom, não muito — reconheceu Paithan, — mas
estive muito tempo com os humanos e os conheço bem. Por
um lado, não gostam de vir a nossas terras, e tampouco
gostam de nós. Não creio que devamos nos preocupar com
a aparição desse sacerdote.
— Mas, por que? — Calandra quis saber. — Por que
nosso pai fez uma coisa assim?
— Porque os humanos acreditam que a vida veio das
estrelas, as quais segundo eles, são na realidade cidades e
pregam que algum dia, quando em nosso mundo reinar o
caos, os Senhores Perdidos retornarão e nos conduzirão a
elas.
— Tolice! — replicou ela, crispada. — Todo mundo
sabe que a vida provém de Peytin Sartan, Matriarca do
Paraíso, que criou este mundo para seus filhos mortais. As
estrelas são suas filhas imortais, que nos vigiam. — A elfa
pareceu contrariada ao compreender as conseqüências do
que estava dizendo: — Você não acha que nosso pai
acredita no que acaba de me dizer, não é? Seria... É uma
heresia!
— Parece-me que está começando a acreditar —
assentiu Paithan com ar mais sombrio. — Se parar para
pensar, Calandra, para ele faz sentido. Já estava
experimentando o emprego de foguetes para transportar
mercadorias antes que nossa mãe morresse. Então, ela
morre e nossos sacerdotes lhe dizem que ela foi para o céu
para ser uma das filhas imortais. Nosso pobre pai perde um
parafuso e tem a idéia de utilizar os foguetes para ir
encontrá-la. Depois, perde outro parafuso e decide que
talvez ela não seja imortal, mas apenas viva lá em cima, sã
e salva, em uma espécie de cidade.
— Orn bendito! — Calandra emitiu um novo lamento.
Permaneceu em silêncio por alguns instantes,
contemplando o ábaco e movendo entre os dedos uma das
contas. — Vou falar com ele — disse por fim.
Paithan se esforçou em manter o domínio de sua
expressão.
— Sim, talvez seja uma boa idéia, Cal. Vá falar com
ele.
Calandra ficou em pé, com um sussurro cerimonioso
da saia. Fez uma pausa e olhou para seu irmão.
— Íamos falar do próximo embarque...
— Isso pode esperar até manhã. O que temos nas
mãos é muito mais importante.
— Ora! Não precisa fingir que está tão preocupado.
Sei o que você quer, Paithan. Cair em uma dessas farras
amalucadas com seus amigos da nobreza em lugar de ficar
em casa, cuidando do negócio como deveria. Mas tem
razão, embora seja provável que não tenha juízo suficiente
para saber. Isto é mais importante. — Abaixo deles soou
uma explosão abafada, um estrondo de pratos caindo e um
grito vindo da cozinha. Calandra suspirou. — Vou falar com
ele, embora eu duvide que sirva de algo. Se conseguisse
que ele ficasse de boca fechada...
Fechou o livro de contabilidade com um golpe forte.
Com os lábios apertados e as costas rijas, encaminhou-se
para a porta do extremo oposto da cozinha. Tinha os
quadris tão firmes como as costas; nada de atraentes
balanços de saia para Calandra Quindiniar.
Paithan abanou a cabeça.
— Pobre chefe — murmurou. Por alguns momentos,
sentiu verdadeira pena dele. Depois, agitando o ar com o
leque, foi para seu quarto vestir-se.
CAPÍTULO 2

EQUILAN,
COPA DAS ÁRVORES

Depois de descer as escadas, Calandra atravessou a


cozinha, situada na parte baixa da mansão. O calor
aumentava claramente ao passar das arejadas plantas
superiores à zona inferior, mais fechada e carregada de
umidade. A criada, com os olhos avermelhados e a marca
de cozinheira cruzando o rosto, estava recolhendo irritada
os fragmentos da louça que acabara de derrubar no chão.
Tal como tinha dito a seu irmão, a criada era uma humana
realmente feia e seus olhos chorosos e lábios inchados não
contribuíam em nada para melhorar seu aspecto.
Entretanto, a verdade é que, aos olhos de Calandra,
todos os humanos eram feios e desajeitados, pouco mais
que brutos e selvagens. A humana era uma escrava,
comprada junto com um saco de farinha e uma panela de
pedra. Dali em diante, trabalharia nas tarefas mais
humildes às ordens de uma chefa, a cozinheira, durante
quinze das vinte e uma horas do ciclo. Compartilharia um
minúsculo quarto com a garçonete da planta baixa, não
teria nada de sua propriedade e ganharia uma miséria com
a qual, quando fosse uma anciã, poderia comprar a
liberdade. E, apesar de tudo isso, Calandra tinha a firme
crença de que tinha feito um tremendo favor à humana ao
trazê-la para viver entre gente civilizada.
A visão da moça em sua cozinha avivou as brasas da
ira de Calandra. Um sacerdote humano! Que loucura. Seu
pai deveria ter mais juízo. Uma coisa era ficar louco e outra
esquecer o menor sentido de decoro. Calandra cruzou a a
despensa, abriu com energia a porta da adega e desceu os
degraus cobertos de teias de aranha que conduziam ao
porão fresco e escuro.
A mansão dos Quindiniar se elevava em uma planície
de musgo que crescia entre as capas de vegetação mais
altas do mundo de Pryan. O nome Pryan significava reino do
Fogo em uma língua que, supostamente, as primeiras
gentes que chegaram àquele mundo utilizavam. A
denominação era acertada, pois o sol de Pryan brilhava
constantemente, mas outro nome ainda mais preciso para o
planeta seria Reino Verde pois, devido ao sol permanente e
às chuvas freqüentes, o chão de Pryan estava coberto por
uma capa de vegetação tão densa que eram poucos os
habitantes do planeta que o tinham visto.
Sucessivas camadas de folhagem e de diversas
formas de vida vegetal se dirigiam para cima, dando lugar a
numerosos níveis escalonados. Os leitos de musgo eram
incrivelmente grossos e resistentes; a grande cidade de
Equilan fora edificada em cima de um deles e sobre suas
superfície, de cor verde parda, estendiam-se lagos e até
mesmo oceanos. Os ramos superiores das árvores se
elevavam sobre elas formando imensos bosques
impenetráveis como selvas. E era ali, nas copas das árvores
ou nas planícies de musgo, onde a maioria da civilizações
de Pryan tinham erguido suas cidades.
As planícies de musgo não cobriam completamente o
planeta, mas eram interrompidas em lugares conhecidos
como “muros de dragão”. Neles, o espectador se
encontrava frente a um abismo de vegetação, ante uma
sucessão de troncos cinzas e uma selva de ervas, arbustos
e folhas que desciam até se perder de vista na
impenetrável obscuridade das regiões inferiores.
Os muros de dragão eram lugares colossais e
espantosos, onde poucos se atreviam a aproximar-se. A
água dos mares de musgo despencava pela borda das
enormes gretas e caía na escuridão com um rugido que
fazia tremer as poderosas árvores. Tormentas perpétuas se
desencadeavam ali. Enormes extensões de todos os tons de
verde se estendiam até onde a vista alcançava o radiante
céu azul no horizonte. Todos aqueles que alguma vez
tinham chegado até a borda, e contemplavam aquela
massa de selva impenetrável abaixo de seus pés, sentiam-
se pequenos, insignificantes e frágeis.
Em certas ocasiões, se o observador conseguisse
reunir a coragem suficiente para passar algum tempo
observando a selva que se abria abaixo dele, era possível
que visse o sinistro movimento de um corpo sinuoso
serpenteando entre os ramos e escorregando entre as
intensas sombras verdes com tal rapidez que o cérebro
chegava a duvidar do que o olho captava. Eram estas
criaturas, os dragões de Pryan, que davam seu nome às
impressionantes quedas. Poucos eram os exploradores que
os tinham visto, pois os dragões eram tão precavidos ante a
presença dos pequenos seres estranhos que habitavam as
copas das árvores, como precavidos se mostravam
humanos, anões e elfos ante a visão dos dragões. Não
obstante, existia a crença de que estes eram animais de
grande inteligência, enormes e sem asas, que levavam sua
vida muito, muito abaixo, talvez até no chão do planeta de
que falavam as lendas.
Lenthan Quindiniar nunca tinha visto um dragão. Seu
pai, tinha visto vários. Quintain Quindiniar fora um
explorador e inventor lendário que ajudara a fundar a
cidade élfica de Equilan e tinha criado numerosas armas e
outros artefatos que despertaram imediatamente a cobiça
dos habitantes humanos. Quintain tinha utilizado a já
considerável fortuna familiar, apoiada na omita8, para
estabelecer uma companhia comercial que a cada ano se
tornava mais próspera. Apesar do êxito da empresa,
Quintain não havia se contentado em ficar tranqüilamente
em casa e contar os lucros. Quando Lenthan, seu filho
único, teve idade suficiente, Quintain cedeu o negócio e
voltou para suas explorações. Nunca mais tiveram notícias
dele e todos tinham concordado, transcorrido uma centena
de anos, que tinha morrido.
Lenthan tinha em suas veias o sangue aventureiro de
sua família mas nunca se permitiu entregar-se às viagens,
pois se viu obrigado a se ocupar dos assuntos do negócio.
Ele também possuía o dom da família para fazer dinheiro,
mas em nenhum momento sentira que aquele dinheiro
fosse dele. Afinal se limitava a continuar o negócio em lugar
do pai. Lenthan tinha procurado durante muito tempo o
modo de deixar sua própria marca no mundo mas, por azar,
não restava muito a explorar. Os humanos dominavam as
terras ao norint, o oceano Terinthiano impedia a expansão
para o est e para o vars, e os muros de dragão fechavam a
marcha para o sorint. Para as aspirações de Lenthan, só
restava uma direção para onde ir: para cima.
Calandra entrou no laboratório do porão segurando a
saia para não sujá-la de pó. A expressão de seu rosto teria

8
Pedra ímã. Quindiniar foi o primeiro a descobrir e reconhecer suas propriedades, que, pela primeira
vez, tornaram possíveis as viagens por terra. Até o descobrimento da omita, os viajantes não tinham
modo de saber que direção seguiam e se perdiam irremediavelmente na selva. A localização da pátria é
um segredo de família que se guarda zelosamente. (N. do A.)
azedado o leite. De fato, esteve a ponto de gelar o sangue
de seu pai. Quando Lenthan viu sua filha naquele lugar que
tanto lhe desagradava, empalideceu e se aproximou
nervoso do outro elfo presente no cômodo. O elfo sorriu e
fez uma reverência superficial. A expressão de Calandra se
nublou ao vê-lo.
— Quanto... quanto me alegro em vê-la por aqui,
queria... — balbuciou o pobre Lenthan, depositando um
pote de um líquido pestilento sobre uma mesa imunda.
Calandra enrugou o nariz. O musgo que cobria as
paredes e o chão emitia um aroma acre e almiscarado que
não combinava bem com os diversos aromas químicos,
sobretudo sulfurosos, que impregnavam o laboratório.
— Querida Calandra — disse o elfo que acompanhava
seu pai, — espero que esteja bem de saúde.
— Estou, Professor Astrólogo. Agradeço o interesse e
também espero que se encontre bem.
— Pois é, o reumatismo me incomoda um pouco, mas
é algo a esperar na minha idade.
“Quem dera esse reumatismo o levasse, velho
charlatão!”, murmurou Calandra para si mesma.
“O que esta bruxa veio fazer aqui?”, perguntou-se o
astrólogo.
Lenthan ficou entre os dois com uma expressão
desventurada e culpada, embora não tivesse idéia, ainda,
do que tinha feito.
— Pai — disse Calandra com voz severa, — quero
falar com você. A sós.
O astrólogo fez outra reverência e começou a retirar-
se. Lenthan, vendo que ficava sem apoio, segurou-o pela
manga.
— Vamos, querida, Elixnoir faz parte da família...
— Certamente, come o suficiente para ser parte dela
— cortou Calandra, esquecendo a paciência e deixando-se
levar pelo terrível mau humor que a tomara ao receber
notícia da chegada do sacerdote humano. — Come o
suficiente para fazer parte várias vezes!
O astrólogo se empertigou, e seus olhos a olharam
por cima de um nariz longo e quase tão comprido e magro
como as pontas do manto azul escuro entre as quais
aparecia.
— Calandra! Lembre-se que ele é nosso convidado! —
Exclamou Lenthan, escandalizado ao ponto de repreender
sua filha maior. — E um Professor Feiticeiro!
— Convidado, sim, nisso tem razão. Elixnoir não
perde nunca uma boa comida, nenhuma ocasião de provar
nosso vinho nem de ocupar nosso quarto de hóspedes. Em
compensação, duvido muito de sua mestria nas artes
mágicas. Ainda não o vi fazer outra coisa além de
murmurar quatro palavras sobre essas poções pestilentas
que você prepara, pai, e depois afastar-se delas para
contemplar como borbulham e soltam fumaça. Vocês dois,
qualquer dia desses colocarão fogo na casa! Feiticeiro! Sei!
Ele só faz, pai, te encher a cabeça com blasfêmias sobre
pessoas que viajavam às estrelas em naves com velas de
fogo...
— Trata-se de feitos científicos, jovenzinha! —
interveio o astrólogo. As pontas da barba tremiam de
indignação. — O que fazemos, seu pai e eu, são
investigações científicas e não tem nada a ver com religiões
ou...
— Como não? — Interrompeu-o Calandra, lançando a
estocada verbal diretamente ao coração de sua vítima. —
Então, por que meu pai mandou trazer um sacerdote
humano?
Os olhos do astrólogo, pequenos como contas,
arregalaram-se de surpresa. A capa engomada se virou de
Calandra para o desventurado Lenthan, que pareceu
desconcertado com as palavras da filha.
— Isso é verdade, Lenthan Quindiniar? — perguntou o
feiticeiro, enfurecido. — Mandou chamar um sacerdote
humano?
— Eu... eu... — foi só o que Lenthan conseguiu
balbuciar.
— Assim, o senhor me enganou — declarou o
astrólogo. A cada momento que passava, aumentava sua
indignação e, com ela, parecia crescer o pescoço da capa.
— Me fez acreditar que compartilhava nosso interesse pelas
estrelas, seus ciclos e suas posições no céu.
— E assim era! É! — Lenthan retorceu as mãos
enegrecidas de fuligem.
— Afirmava estar interessado no estudo científico de
como estas estrelas regem nossas vidas...
— Blasfêmia! — exclamou Calandra, com um
estremecimento em seu corpo ossudo.
— E agora, em vez disso, descubro-o associado a
um... um...
Faltaram as palavras ao feiticeiro. O pescoço bicudo
da capa pareceu fechar-se em torno de seu rosto de modo
que só ficaram à vista, acima dela, seus olhos brilhantes e
enfurecidos.
— Não! Por favor, deixe-me explicar! — Grasnou
Lenthan. — Veja, meu filho me falou da crença dos
humanos na existência de gente que vive nessas estrelas e
pensei que...
— Paithan! — Calandra exclamou, identificando um
novo culpado.
— Que vive gente lá! — resmungou o astrólogo,
desdenhoso, com a voz sufocada atrás da roupa engomada.
— Pois me parece possível... e, certamente, explica
por que os antigos viajaram às estrelas e concorda com os
ensinamentos de nossos sacerdotes de que, quando
morremos, tornamo-nos um com as estrelas. Sinceramente,
sinto falta de Elithenia...
Disse isto com uma voz desventurada e suplicante
que despertou a piedade de sua filha. A seu modo, Calandra
amava sua mãe, assim como amava seu irmão e a sua irmã
mais nova. Era um amor severo, inflexível e impaciente,
mas amor e a moça se aproximou e pousou seus dedos
magros e frios no braço do pai.
— Vamos, pai, não se altere. Não tinha intenção de
inquietá-lo, mas acredito que deveria ter discutido o
assunto comigo antes de... de fazê-lo com os paroquianos
do botequim da Água Dourada! — Calandra não pôde
reprimir um soluço. Tirou um decoroso lenço e cobriu com
ele a boca e o nariz.
As lágrimas de sua filha produziram o efeito
(perfeitamente calculado) de esmagar Lenthan Quintiniar
completamente, como se o tivessem enterrado doze
palmos abaixo9 do musgo. O pranto de Calandra e o tremor
das pontas da capa do feiticeiro eram muito para o velho
elfo.
— Vocês têm razão — declarou, olhando-os
alternadamente com ar pesaroso. — Percebo que cometi
um engano terrível. Quando o sacerdote chegar, mandarei
que parta imediatamente.
— Quando chegar! — Calandra ergueu os olhos, já
secos, e observou seu pai. — Como assim quando chegar?
Paithan me disse que não viria...
— E como ele sabe? — perguntou Lenthan, perplexo.
— Falou com ele depois de mim? — O elfo levou uma mão
cerúlea ao bolso do colete de seda e tirou uma folha
enrugada de papel. — Olhe, querida — acrescentou,
mostrando a carta.
Calandra a agarrou e a leu com olhos febris.
— “Quando me vir, estarei aí. Assinado, o Sacerdote
Humano.” Ora! — Calandra devolveu a carta a seu pai com
desprezo. — Isto é ridículo... Tem que ser uma brincadeira
de Paithan. Ninguém em juízo perfeito mandaria uma carta
assim. Nem sequer um humano. O Sacerdote Humano! Por
favor!
— Talvez não esteja em seu juízo perfeito, como você
disse — disse o Professor Astrólogo em tom sinistro. Um
sacerdote humano louco estava a caminho.

9
Profundidade a que são enterrados no musgo os elfos mortos. (N. do A.)
— Que Orn tenha piedade de nós! — murmurou
Calandra, agarrando o canto da mesa do laboratório para
sustentar-se.
— Vamos, vamos, querida — disse Lenthan, passando
o braço pelos seus ombros. — Eu cuidarei disso. Deixe tudo
em minhas mãos. Não precisa se preocupar com nada.
— E, se eu puder ser de alguma ajuda — o Professor
Astrólogo cheirou o ar; da cozinha chegava o aroma de um
assado de targ, — ficarei feliz em colaborar também. Até
poderia esquecer de certas coisas ditas no calor de uma
discussão agitada.
Calandra não deu atenção ao mago. Tinha recuperado
o domínio de si mesma e seu único pensamento era
encontrar o quanto antes aquele seu irmão desprezível para
lhe arrancar uma confissão. Não tinha nenhuma dúvida —
melhor dizendo, tinha poucas dúvidas — que tudo aquilo
era obra de Paithan, uma amostra do que entendia por uma
brincadeira pesada. Provavelmente, pensou, naquele
instante estaria rolando de rir às suas costas. Continuaria
rindo quando lhe cortasse sua renda pela metade?
Deixando o astrólogo e seu pai para que explodissem
naquele porão, se assim quisessem, Calandra subiu a
escada com passos enérgicos e atravessou a cozinha, onde
a escrava se escondeu atrás de um trapo de secar até que
o horrível espectro tivesse desaparecido. Subiu ao terceiro
nível da casa, onde estavam as quartos, deteve-se em
frente a porta do quarto de seu irmão e chamou
sonoramente.
— Paithan! Abra a porta agora mesmo!
— Ele não está — disse uma voz sonolenta vindo do
fundo do corredor. Calandra lançou um olhar furioso à porta
fechada, chamou de novo e forçou um par de vezes o
trinco. Não escutou nenhum ruído. Virou-se, continuou
avançando pelo corredor e entrou no quarto de sua irmã
mais nova.
Vestida com uma camisola que mostrava seus
ombros leitosos e o suficiente de seus seios para despertar
o interesse, Aleatha estava recostada em uma cadeira em
frente a penteadeira, escovando o cabelo com gesto
languido enquanto se admirava no espelho. Este,
potencializado por meios mágicos, sussurrava elogios e
galanteios e oferecia algumas sugestões sobre a
quantidade correta de carmim.
Calandra parou na entrada do quarto, quase sem
falar de tão escandalizada.
— O que pretende, sentada meio nua a plena luz do
dia e com as portas totalmente abertas? E se algum servo
passasse?
Aleatha ergueu os olhos. Executou o movimento
lentamente, com frouxidão, sabendo o efeito que produzia e
desfrutando-o plenamente. A jovem elfa tinha os olhos de
um azul claro, vibrante, mas que — sob a sombra de suas
grossas pálpebras e de suas pestanas longas — escureciam
até adotar um tom púrpura. Por isso, quando os abria como
naquele instante, davam a impressão de mudar
completamente de cor. Eram muitos os elfos que tinham
escrito sonetos dedicados àqueles olhos e corria o rumor de
que um até morrera por eles.
— Ah! Já aconteceu de um dos criados me ver —
respondeu Aleatha sem se alterar. — O mordomo. Eu o vi
perambular pelo corredor ao menos três vezes na última
meia hora.
Aleatha tinha uma voz modulada e grave, que sempre
soava como se estivesse a ponto de adormecer
profundamente. Isto, combinado com as grossas pálpebras,
dava-lhe um ar de doce lassidão fizesse o que fizesse e
fosse onde fosse. Durante a febril alegria de um baile real,
Aleatha prescindia do ritmo da música e dançava sempre
lentamente, quase como em sonho, com o corpo
completamente rendido a seu par e produzindo neste a
deliciosa impressão de que, sem seu forte braço como
apoio, a moça cairia ao chão. Seus olhos lânguidos
permaneciam fixos nos do bailarino, com uma leve faísca
no fundo daquele púrpura insondável, e incitavam o homem
a imaginar o que conseguiria se aqueles olhos sonolentos
se abrissem de par em par.
— Você é o assunto de Equilan, Thea! — disse
Calandra em tom acusador, levando o lenço ao nariz.
Aleatha estava molhando de perfume o pescoço e os seios.
— Onde estava na última hora escura?10
Os olhos púrpura se abriram de par em par ou, ao
menos, bastante mais que antes. Aleatha não desperdiçaria
nunca com uma irmã o efeito que provocava o gesto
completo.
— Desde quando se preocupa com onde estou? Que
abelha te picou hoje, Cal?
— Hoje? Já é quase a hora do vinho! Você dormiu a
metade do dia!
— Se quer mesmo saber, estive com o nobre
Kevanish e fomos à Escura...
— Kevanish! — Calandra emitiu um gemido agitado.
— Aquele descarado! Desde o duelo, não é recebido em
nenhuma das casas decentes. Foi por culpa dele que a
pobre Lucillia se suicidou, e pode-se dizer que assassinou o
irmão dela. E você, Aleatha... se for vista em público junto a
ele... — Calandra engasgou.
— Tolice. Lucillia foi uma estúpida ao pensar que um
homem como Kevanish podia apaixonar-se realmente por
ela. E seu irmão foi ainda mais estúpido ao exigir uma
reparação. Kevanish é o melhor arqueiro de Equilan.
— Existe algo que se chama honra, Aleatha! —
Calandra parou atrás da cadeira de sua irmã e fechou
ambas as mãos sobre o respaldo, com os nódulos brancos
da pressão. Parecia que, com um mínimo movimento e a
qualquer instante, poderia fechá-las com igual força em
torno do frágil pescoço de sua irmã. — Por acaso nossa
família já esqueceu?

10
A hora escura não é realmente “escura”, se por isso se entender que caía a noite. Refere-se ao
período do ciclo em que as pessoas decentes fecham as persianas e se deitam para descansar. Entretanto,
também é nessa hora que os níveis inferiores e “mais escuros” da cidade ganham vida, e por isso a
referência ganhou umas conotações bastante sinistra. (N. do A.)
— Esquecer? — murmurou Thea com sua voz
sonolenta. — Não, querida Cal, nada foi esquecido.
Simplesmente, faz muito tempo que a família pagou por
ela.
Com uma absoluta falta de recato, Aleatha se
levantou da cadeira e começou a desatar os laços de seda
que mantinham quase fechada a parte frontal de sua
camisa de dormir. Calandra contemplou o reflexo de sua
irmã no espelho e viu marcas avermelhadas na carne
branca dos ombros e do peito: as marcas dos lábios de um
amante ardente. Enojada, Calandra deu meia volta e cruzou
o quarto com passos rápidos parando junto à janela.
Aleatha sorriu com indolência para o espelho e deixou
que a camisola deslizasse para o chão. O espelho se desfez
em comentários extasiados.
— Você estava procurando Paithan? — Recordou-lhe
sua irmã. — Entrou voando no seu quarto como um
morcego das profundezas, vestiu-se e saiu voando outra
vez. Acho que ia para a casa do Durndrun. Eu também fui
convidada, mas não sei se vou ou não. Os amigos dele são
uns chatos.
— Esta família está afundando! — Calandra apertou
as mãos. — Nosso pai manda chamar um sacerdote
humano! Paithan parece um vagabundo que só se preocupa
com as farras! E você... Você terminará solteira e grávida e
até pode se suicidar como a pobre Lucillia!
— Não acredito, querida Cal — replicou Aleatha,
afastando a camisola com o pé. — Para se suicidar é preciso
muita energia. — Admirando seu esbelto corpo no espelho,
que o encheu de elogios, franziu o cenho, ergueu a mão e
tocou uma campainha feita com a casca de ovo de pássaro
cantor. — Onde está minha criada? Preocupe-se menos
com a família, Cal, e mais com o serviço. Nunca vi gente
mais folgada.
— É minha culpa! — Suspirou Calandra, e fechou as
mãos com força, levando-as aos lábios. — Deveria ter
obrigado Paithan a ir à escola. Deveria teer prestado mais
atenção e não deixá-la tão solta. E deveria ter impedido as
loucuras de nosso pai. Mas então, quem teria administrado
o negócio? Quando comecei a dirigi-lo, a situação não era
nada boa! Teriamos nos arruinado! Arruinado! Se o
tivéssemos deixado nas mãos de nosso pai...
A donzela entrou correndo na quarto.
— Onde você estava? — perguntou Aleatha, com sua
habitual lassidão.
— Sinto muito, senhora. Não ouvi a campainha.
— Não a toquei. Mas deveria saber quando preciso de
você. Pegue o vestido azul. Na próxima hora escura ficarei
em casa. Não, espere. O azul, não. O verde com rosas de
musgo. Acho que aceitarei o convite de Durndrun,
finalmente. Poderia ocorrer algo interessante e, pelo menos,
poderei atormentar o barão, que morre de amor por mim. E
agora, Cal, que história é essa de sacerdote humano? É
bonito?
Calandra exalou um profundo soluço e afundou os
dentes no lenço. Aleatha olhou pra ela e, aceitando a bata
vaporosa que a criada lhe punha sobre os ombros, cruzou o
quarto indo até sua irmã. Aleatha era tão alta quanto
Calandra, mas sua silhueta era suave e bem torneada onde
a de sua irmã era ossuda e angulosa. O cabelo cinzento
emoldurava o rosto de Aleatha e lhe caía pelas costas e
sobre os ombros. A moça nunca enfeitava o cabelo segundo
a moda. Assim como resto de sua figura, o cabelo da
Aleatha sempre estava desalinhado, sempre produzia a
impressão de que acabara de levantar-se. Pousou suas
mãos suaves nos ombros trêmulos de Calandra e
murmurou:
— A flor das horas fechou suas pétalas a estas
alturas, Cal. Continue esperando inutilmente que volte a se
abrir e logo estará tão louca como nosso pai. Se nossa mãe
estivesse viva, talvez as coisas fossem diferentes... — A voz
de Aleatha se quebrou e se aproximou ainda mais da irmã.
— Mas não foi assim. E não há mais o que fazer —
acrescentou, encolhendo seus ombros perfumados. — Você
fez o que devia, Cal. Não podia nos deixar morrer de fome.
— Creio que você tem razão — respondeu Calandra
secamente, recordando que a donzela continuava no
quarto. Não queria discutir seus assuntos pessoais na
presença dos servos. Endireitou os ombros e estirou umas
rugas imaginárias de sua saia rígida e engomada. — Você
não ficará para o jantar?
— Não. Se quiser, aviso a cozinheira. Por que não me
acompanha a casa do barão Durndrun, irmã? — Aleatha deu
alguns passos até a cama, sobre a qual a donzela estava
colocando um jogo de roupa interior de seda. — Randolfo
irá. Sabe que ele nunca se casou, Cal? Você lhe quebrou o
coração.
— Melhor dizer que lhe quebrei o bolso — replicou
Calandra com voz severa enquanto se contemplava no
espelho, compunha o penteado onde o coque tinha se
desfeito ligeiramente e voltava a cravar em seu lugar os
três pentes de prender cabelos. — Randolfo não me queria,
mas cobiçava nosso negócio.
— É possível. — Aleatha parou por alguns instantes
em meio ao vestir-se. Seus olhos púrpura se voltaram para
o espelho e se cravaram no reflexo do olhar de sua irmã. —
Mas ao menos lhe faria companhia, Cal. Você está sozinha a
muito tempo.
— E você acha que vou permitir que apareça um
homem que se aproprie e estrague o que levei tantos anos
para consolidar, só para ver seu rosto a cada manhã, goste
ou não? Muito obrigado, mas não. Há coisas piores que
estar sozinha, Thea.
Os olhos púrpura de Aleatha escureceram até adquirir
um tom quase vermelho vivo.
— Não sei quais — respondeu em voz baixa. Sua irmã
não chegou a ouvi-la. Aleatha afastou o cabelo do rosto,
sacudindo de cima ao mesmo tempo as sombras lúgubres
que velavam seus olhos. — Quer que diga a Paithan que
você quer falar com ele?
— Não se incomode. Deve estar quase sem dinheiro e
com certeza virá ver-me à hora do trabalho. Agora, tenho
que revisar umas contas. — Calandra caminhou para a
porta. — Procure voltar em uma hora razoável. Antes da
manhã, pelo menos.
Aleatha sorriu com a ironia da irmã maior e baixou
suas pálpebras carregadas de sono com ar recatado.
— Se quiser, Cal, não voltarei a encontrar o barão
Kevanish.
Calandra parou e deu meia volta. Seu rosto severo
resplandeceu de alegria, mas se limitou a dizer:
— Não tenho a menor esperança de que o faça!
Ao sair do quarto, bateu a porta com violência.
— De qualquer modo, Kevanish está ficando
enfadonho... — acrescentou Aleatha para si mesma. Voltou
a recostar-se em frente a penteadeira e estudou suas
feições perfeitas no espelho.

CAPITULO 3

GRIFFITH,
TERNCIA, THILLIA
Calandra voltou a concentrar-se nos livros de
contabilidade como antídoto reconfortante contra as
extravagâncias e caprichos de sua família. A casa estava
em silêncio. Seu pai e o astrólogo continuavam com suas
coisas no porão mas, sabendo que a filha estava ainda mais
perto de explodir que sua pólvora mágica, Lenthan
considerou conveniente postergar qualquer outro
experimento com a dita substância.
Depois do jantar, Calandra mandou um servente com
uma mensagem para o homem dos pássaros, que deveria
enviá-lo a maese Roland de Griffith, no bar A Flor do
Bosque.

“O embarque chegará a princípio da colheita.11


O pagamento se efetuará na entrega da mercadoria.
Calandra Quindiniar.”

O homem dos pássaros prendeu a mensagem na pata


de uma ave de cores brilhantes, que tinha sido treinada
para voar até aquela parte da Thillia, e a soltou no ar. Ela
tomou o rumo norint-vars, em uma travessia que a levaria
sobre os campos e mansões da nobreza élfica e sobre o
lago Enthial.
A ave mensageira deslizou sem esforço pelos ares,
aproveitando as correntes que fluíam entre as árvores
gigantescas. Só tinha um objetivo: chegar a seu destino,
onde seu par a esperava preso em uma gaiola. Durante o
vôo não precisava se preocupar com a presença de
predadores, pois não era apetitoso para nenhum deles, já
que segregava um óleo que mantinha secas suas plumas
durante as freqüentes tormentas e que era um veneno
mortal para qualquer outra espécie.

11
Em Pryan, o nome das estações é dado pela parte do ciclo dos cultivos que corresponde:
renascimento, semeadura, crescimento, colheita e aragem. A rotação de colheitas é uma descoberta
humana. Os humanos, com sua habilidade na magia dos elementos — em contraste com as dotes dos
elfos para a magia mecânica — são muito melhores que estes nos trabalhos agrícolas. (N. do A.)
Voou a baixa altura sobre as terras que os elfos
cultivavam nos leitos de musgo mais altos, formando um
desenho de linhas artificialmente retas.
Escravos humanos aravam os campos e recolhiam as
colheitas. O ave não estava especialmente faminta, pois
tinha sido alimentada antes da partida, mas um rato seria
um bom aperitivo para o jantar. Entretanto, não descobriu
nenhum e continuou sua viagem.
Logo, os campos cultivados dos elfos deram espaço à
selva. Os arroios alimentados pelas chuvas diárias
formavam caudalosos rios sobre os leitos de musgo.
Serpenteando entre a selva, os rios encontravam às vezes
alguma greta nas capas superiores do musgo e formavam
quedas que se precipitavam para as profundezas
insondáveis.
Em frente aos olhos da ave começaram a flutuar
nuvens vaporosas e ganhou altura, subindo acima das
tormentas e da chuva. Finalmente, a massa de nuvens
negras e densas, sacudida pelos relâmpagos, ocultou
totalmente a terra. Entretanto, a ave, guiada pelo instinto,
não perdeu o rumo. Abaixo dela se estendiam os bosques
do barão Marcins; os elfos lhes tinham dado esse nome,
mas nem eles nem os humanos tinham reclamado direitos
sobre aquelas selvas impenetráveis.
A tormenta desabou e passou, como vinha
acontecendo desde tempos imemoriais, quase desde a
criação do mundo. O sol brilhava agora com força, e a
mensageira distinguiu terras cultivadas: Thillia, o reino dos
humanos. De cima, viu três das torres resplandecentes,
banhadas pelo sol, que apontavam as cinco divisões do
reino da Thillia. As torres, antigas para a medida do tempo
dos humanos, eram construídas de tijolo de cristal cujos
segredos de fabricação tinham sido descobertos pelos
feiticeiros humanos durante o reinado de Georg o Único.
Estes segredos, assim como muitos dos feiticeiros,
perderam-se na devastadora Guerra de Amor que
aconteceu após a morte do velho rei.
A ave utilizou as torres como referência para orientar-
se e desceu rapidamente, sobrevoando a baixa altura as
terras dos humanos. Situado em uma ampla planície de
musgo salpicada aqui e ali de árvores que foram
conservadas para proporcionar sombra, o país era plano,
mas entrecruzado de caminhos e salpicado de pequenas
populações. Os caminhos eram muito transitados, pois os
humanos sentiam a curiosa necessidade de andar
constantemente de um lugar a outro, necessidade que os
sedentários elfos nunca tinham entendido e que
consideravam própria de bárbaros.
Naquela parte do mundo, a caça era muito mais
propícia e a mensageira dedicou alguns breves instantes a
recuperar forças com um rato de bom tamanho. Depois de
se alimentar, limpou as garras com o bico, arrumou as
plumas e reiniciou o vôo. Quando viu que as terras planas
começavam a dar espaço a uma densa selva, ganhou novo
ânimo pois se aproximava do fim da sua longa viagem.
Estava sobre a Terncia, o reino mais a norint. Quando
chegou à cidade murada que circundava a torre de tijolos
de cristal da capital da Terncia, captou a áspera chamada
de sua companheira. Desce em espiral até o centro da
cidade e pousou, finalmente, na luva de couro que protegia
o braço de um falcoeiro thilliano. O homem recuperou a
mensagem, viu o nome do destinatário e deixou à fatigada
ave na jaula de sua companheira, que a recebeu com
suaves bicadas.
O falcoeiro entregou a mensagem a um cavaleiro que,
vários dias mais tarde, entrou em uma aldeia remota e
semi-cercada que se elevava nos confins da selva e deixou
o recado na única estalagem do lugar.
Sentado em seu banco favorito d'A Flor do Bosque,
maese Roland de Griffith estudou o fino pergaminho de
quin. Depois, com um sorriso o empurrou sobre a mesa
para uma moça que estava sentada a frente dele.
— Aqui está! O que havia dito, Rega?
— Graças a Thillia! É só o que posso dizer. — O tom
de voz de Rega era lúgubre; em seu rosto não havia o
menor sorriso. — Pelo menos, agora tem algo para mostrar
ao velho Barbanegra e talvez ele nos deixe em paz por
algum tempo...
— Onde ele deve estar? — Roland olhou para a flor
das horas12 em um vaso de barro. Quase vinte de suas
pétalas estavam fechadas. — Já passou da sua hora
habitual.
— Ele virá, não se preocupe. Isto é muito importante
para ele.
— Sim, por isso o atraso me preocupa.
— Problemas de consciência, por acaso? — Rega
puxou a jarra de kegrot e procurou à garçonete com o olhar.
— Não, mas não gosto de tratar estes assuntos aqui,
em lugar público...
— É o melhor. Assim fica tudo sobre a mesa, bem
claro. Não podemos levantar suspeitas. Ah! Ali está ele. O
que lhe disse?
A porta do botequim se abriu e o sol da hora dos jogo
de dados banhou a silhueta de um anão. Foi uma visão
imponente e, por um instante, quase todos os paroquianos
pararam de beber, de jogar ou de conversar para observá-
lo. Um pouco mais alto do que o habitual entre seu povo, o
anão tinha a pele clara e apresentava uma hirsuta cabeleira
negra e uma barba que se destacava entre os humanos. As
sobrancelhas negras e espessas que se juntavam sobre seu
nariz e os cintilantes olhos produziam uma impressão de
perpétua ferocidade que lhe era muito útil em terras
estranhas. Apesar do calor, usava uma camisa de seda com
listras brancas e vermelhas e, em cima dela, a pesada
armadura de couro de seu povo, com brilhantes calças
vermelhas metidas nas robustas botas de cano alto.

12
Planta de floração perpétua cujas pétalas se fecham a cada ciclo seguindo o ritmo do ciclo climático.
Todas as raças utilizam esta planta para determinar as horas do dia, embora em todas seu nome seja
diferente. Os humanos utilizam a própria planta, enquanto os elfos desenvolveram artefatos mecânicos
mágicos que imitam seus movimentos. (N. do A.)
Os presentes no bar trocaram sorrisos e comentários
irônicos sobre a indumentária chamativa do recém-
chegado mas, se soubessem algo sobre a sociedade dos
anões e sobre o significado das cores brilhantes de sua
roupa, não teriam rido de maneira alguma.
O anão parou na soleira da porta do bar e piscou,
ofuscado pelo sol do exterior.
— Barbanegra, meu amigo! — Exclamou Roland,
levantando-se do assento. — Aqui!
O anão entrou pesadamente no bar e seus olhos
foram de um canto a outro, desafiando com o olhar a
qualquer um que se atrevesse a dizer algo. Os anões eram
uma raridade na Thillia. O reino dos anões estava longe, ao
norint-est das terras dos humanos, e havia pouco contato
entre os povos. Entretanto, aquele anão estava há cinco
dias no povoado e sua presença tinha deixado de ser uma
novidade. Griffith era um povoado sórdido situado no limite
dos dois reinos, nenhum dos quais o reclamava. Seus
habitantes faziam o que queriam, o que agradava muito a
maioria deles, pois quase todos vinham de lugares da Thillia
onde fazer a própria vontade costumava conduzir à forca. O
povo de Griffith talvez se perguntasse o que um anão fazia
em seu povoado, mas ninguém faria a pergunta em voz
alta.
— Taberneiro, mais três! — Roland pediu aos gritos,
levantando sua jarra. — Temos motivos para brindar, meu
amigo — disse ao anão, que tomou assento com
parcimônia.
— Sim? — grunhiu o anão, observando o casal.
Roland, com um sorriso, ignorou o evidente desconforto de
seu convidado e lhe colocou a frente mensagem.
— Não sei ler o que está escrito aí — declarou o anão,
voltando a jogar sobre a mesa o manuscrito de quin.
A chegada da garçonete com o kegrot os
interrompeu. Distribuíram as jarras. Desarrumada, a
faxineira passou um trapo engordurado por cima da mesa,
dirigiu um olhar de curiosidade ao anão e se afastou com
seu andar indolente.
— Sinto muito, esqueci que não sabe ler elfo. O
embarque está a caminho, Barbanegra — disse Roland em
voz baixa e com um gesto despreocupado. — Chegará
durante o próximo aro.
— Meu nome é Drugar. É isso que diz o papel? — O
anão tocou a mensagem com seus dedos rechonchudos.
— Claro que sim, Barbanegra, meu amigo.
— Não sou seu amigo, humano — murmurou o anão,
mas o fez em sua língua e falando com sua própria barba.
Logo, entreabriu os lábios no que quase podia passar por
um sorriso. — Mas a notícia é excelente. — Sua voz pareceu
cheia de animosidade.
— Bebamos a isso. — Roland ergueu a jarra e deu
uma suave cotovelada em Rega, que estava observando o
anão com a mesma desconfiança que este tinha
demonstrado. — Ao nosso trato.
— Beberei a isso — assentiu o anão depois de meditar
na resposta por alguns instantes, aparentemente. Elevou a
jarra e repetiu: — Ao nosso trato.
Roland bebeu a sua sonoramente. Rega tomou um
gole. Ela nunca bebia em excesso já que um dos dois tinha
que permanecer sóbrio. Além disso, o anão não bebia,
apenas se limitava a umedecer os lábios. Os anões não
apreciam o kegrot, que todo mundo reconhece frouxo e
insípido em comparação com sua excelente bebida
fermentada.
— Estava me perguntando, sócio — insistiu Roland,
inclinando-se para frente e curvando-se sobre a jarra, —
que destino vão dar a essas armas.
— Por caso tem problemas de consciência, humano?
Roland lançou um olhar azedo para Rega, que ao
escutar suas próprias palavras na boca do anão, deu de
ombros e afastou a vista, dizendo em silêncio o que outra
resposta podia esperar de uma pergunta tão estúpida.
— Pagarei o suficiente para que não faça perguntas,
mas vou dizer o que faremos, porque meu povo é honrado.
— Tanto que têm que tratar com contrabandistas,
Barbanegra? — Roland sorriu, pagando ao anão com a
mesma moeda. As negras sobrancelhas deste se juntaram
em um gesto alarmante e os olhos negros emitiram fogo.
— Eu teria tratado de forma aberta e legal, mas as
leis de sua terra o impedem. Meu povo necessita dessas
armas. Não soube do perigo que vem do norint?
— Os reis do mar?
Roland fez um gesto à garçonete. Rega pôs sua mão
sobre a dele, advertindo-o para que fosse com tato, mas
Roland a rechaçou.
— Ora! Não! — O anão soltou uma gargalhada de
desprezo. — Falo do norint. Muito longe nessa direção, só
que agora já não tão longe.
— Não ouvimos absolutamente nada, Barbanegra,
velho amigo. Do que se trata?
Rega viu que o rosto do anão adquiria um ar sombrio
e o fogo de seus olhos se nublava de medo, e a mulher
sabia ou adivinhava o suficiente sobre o caráter da
Barbanegra para entender que o anão não tinha
experimentado o medo freqüentemente em sua vida.
— Humanos... do tamanho de montanhas. Vêm do
norint e destroem tudo em seu caminho.
Roland esteve a ponto de engasgar e pôs-se a rir. O
anão pareceu inchar literalmente de raiva e Rega cravou as
unhas no braço de seu companheiro. Roland, com
dificuldades, reprimiu a risada.
— Sinto muito, amigo, sinto muito, mas já tinha
ouvido esta história de lábios de meu querido pai quando
ainda estava vivo. Os titãs vão nos atacar... E suponho que
os Cinco Senhores Perdidos da Thillia voltarão ao mesmo
tempo. — Ergueu a mão por cima da mesa e deu uns
tapinhas no ombro do irritado anão. — Guarde o segredo,
meu amigo. Desde que tenhamos nosso dinheiro, não
importa o que façam nem a quem matem.
O anão voltou a avermelhar e puxou o braço com um
gesto brusco.
— Você não tem que sair, querido? — disse Rega com
toda atenção. Roland se levantou. Era um homem alto e
musculoso, loiro e atraente. A garçonete, que o conhecia
bem, roçou seu corpo com o seu quando ficou em pé.
— Com licença. Tenho que visitar uma árvore. Este
maldito kegrot me subiu à cabeça — comentou, e se
afastou abrindo caminho pelo bar, que estava enchendo
rapidamente de gente e de barulho.
Rega esboçou seu melhor sorriso e rodeou a mesa
para sentar-se ao lado do anão. A mulher era quase o
reverso da moeda comparada ao seu marido. De baixa
estatura e figura cheia, estava vestida para o calor e para
ocupar-se dos negócios com uma blusa de linho que
deixava à vista mais do que ocultava; amarrada sob os
seios, deixava a mostra a cintura. Calças de couro pelos
joelhos cobriam suas pernas como uma segunda pele. Sua
pele, de um intenso tom bronzeado, brilhava com um fino
filme de suor sob o calor do botequim. Os cabelos
castanhos, repartidos no centro da cabeça, caíam-lhe pelas
costas magras e brilhantes como a casca de uma árvore
molhada pela chuva.
Rega percebeu que não despertava a menor atração
física no anão. Provavelmente porque não tinha barba,
pensou com um sorriso, recordando o que tinha ouvido
sobre as mulheres anãs. Em compensação, o recém-
chegado parecia ansioso por explicar aquele conto de fadas
que seu povo tinha imaginado. À mulher não gostava que
um cliente partisse zangado, de modo que disse:
— Perdoe o meu marido, senhor. Bebeu um pouco
além da conta. Gostaria de ouvir mais sobre os titãs.
— Titãs... — O anão pareceu saborear a palavra,
estranha a seus lábios. — É assim que os chamam em seu
idioma?
— Creio que sim. Nossas lendas falam de humanos
gigantescos, grandes guerreiros, criados há muito tempo
pelos deuses das estrelas para servi-los. Entretanto, tais
seres não são vistos na Thillia desde antes da época dos
Senhores Perdidos.
— Não sei se esses... titãs... são os mesmos ou não —
respondeu Barbanegra com um movimento de cabeça. —
Em nossas lendas não existem tais criaturas. As estrelas
não nos interessam, já que vivemos nas entranhas da terra
e raramente as vemos. Em nossos mitos aparecem os
Ferreiros, que construíram este mundo no princípio dos
tempos junto com Drakar, o pai de todos os anões. Diz a
lenda que um dia os Ferreiros voltarão e nos permitirão
construir cidades de tamanho e magnificência
inimagináveis.
— Mas, se acreditam que esses gigantes são os... os
Ferreiros, para que querem as armas?
O rosto dele escureceu, suas rugas se tornaram mais
profundas.
— Parte do meu povo continua acreditando nessas
lendas, mas outros de nós falamos com os refugiados
procedentes das terras a norint. E nos relataram terríveis
episódios de destruição e de morte. Em minha opinião,
talvez as lendas estejam erradas. Por isso a provisão de
armas.
A princípio, Rega pensou que o anão estava
mentindo. Ela e Roland achavam que Barbanegra queria
utilizar as armas para atacar alguma colônia humana
isolada nos campos mas, ao ver como os olhos negros do
anão nublavam e ao escutar o tom grave e aflito de suas
palavras, Rega mudou de opinião. Ao menos uma coisa era
certa: Barbanegra acreditava na existência daquele inimigo
fantástico e essa era a verdadeira razão de ter adquirido o
armamento. A idéia era reconfortante. Era a primeira vez
que Roland e ela contrabandeavam armas e, dissesse
Roland o que dissesse, a mulher ficou aliviada ao saber que
não seria responsável pela morte de seus semelhantes.
— Ei, Barbanegra! O que está fazendo, tentando
conquistar minha esposa? — Roland sentou do outro lado
da mesa. Outra jarra o esperava e tomou um longo gole de
kegrot.
Rega percebeu a expressão carrancuda e sombria do
rosto do anão e lançou um rápido e doloroso chute em
Roland por baixo da mesa.
— Estávamos falando de mitos e lendas, querido.
Ouvi dizer que os anões gostam muito de canções, senhor,
e meu marido tem uma voz excelente. Gostaria de escutar
a balada da Thillia? Conta a história dos senhores de nossa
terra e como os cinco reinos se formaram.
O rosto do Barbanegra se iluminou.
— Sim, eu adoraria ouvi-la!
A mulher agradeceu às estrelas por ter dedicado
algum tempo em estudar tudo que pudera encontrar sobre
a sociedade dos anões. Estes, mais que apreciar a música,
sentiam absoluta paixão por ela. Todos os anões tocavam
instrumentos musicais e a maioria era dotada de uma
excelente voz e ouvido perfeito. Só tinham que escutar uma
canção uma vez para guardar a melodia e, com uma vez
eram capazes de recordar toda a letra.
Roland tinha uma magnífica voz de tenor e cantou a
balada, de encantadora beleza, com uma sensibilidade
deliciosa. Os paroquianos do botequim pediram silêncio aos
gritos para escutá-lo e, quando chegou à estrofe final, entre
a multidão de homens rudes havia muitos que tinham os
olhos cheios de lágrimas. O anão escutou com arrebatada
atenção, e Rega, com um suspiro, compreendeu que tinha
outro cliente satisfeito.

Do pensamento e do amor tudo nasceu um dia:


terra, ar, céu e insondável mar.
Das antigas trevas se abriu a luz,
e, liberta para sempre, seu resplendor se elevou.
Com voz reverente, cinco irmãos falaram de
obrigações reais e cargas preciosas.
Seu rei, agonizante sob o jugo da fortuna,
de cada um exige o cuidado de suas terras.
Cinco grandes reinos, nascidos de uma terra.
A cada bom príncipe sua parte concede.
Legados da vontade do monarca falecido,
para que governem com justiça e valor.
Ao primeiro os campos, os mansos arroios,
os ventos sussurrantes que balançam as ervas.
Ao outro o mar, o domínio das naves,
e as ondas que a tudo suavizam.
O terceiro de troncos e amenos prados,
véus de verdor que escurecem a vista.
Ao quarto, senhor das colinas e os vales,
onde estão as planícies férteis e produtivas.
O último, do sol fez seu brilhante lar,
no alto com seu ardente calor, duraria para sempre.
Dos cinco se lembrou o leal coração do monarca,
fiel a toda palavra e aos grandes reis do passado.
Todos os filhos governaram com a melhor intenção,
cuidando da herança como bons soberanos.
Com justiça e firmeza, dotados de grande sabedoria,
provocavam palavras de gratidão em todas as bocas.
Mas o cruel destino estragou seus puros corações
e os levou a voltar-se em armas contra si.
Cinco homens consumidos pela casta mulher
e cinco ânimos comovidos por um amor estridente.
Doce como o coração de uma poesia nasceu a
formosa mulher.
Sutil como toda a arte da natureza,
seu maravilhoso coração inflamou todos eles.
Quando cinco homens orgulhosos, irmãos de berço,
contemplaram aquele olhar, seu amor transbordou.
Pela doce Thillia, cinco amores jurados,
outros tantos reino partiram à guerra.
Cinco exércitos chocam,
os arados transformados em espadas,
camponeses da terra, às ordens da paixão.
Irmãos, um dia justos e amorosos guardiões
lançaram sal ao mar e feriram as terras.
Thillia se elevou na planície ensangüentada
com os braços estendidos e as mãos muito abertas.
Com o coração repleto de pena, afligida de vergonha
fugiu muito longe sob a amorosa superfície do lago.
A perfeição chorou sua alma perdida,
os cinco irmãos cessaram sua luta vã.
Clamaram ao alto, seus corações em um só,
e prometeram resgatá-la sob seu luto guerreiro.
Cheios de fé se encaminharam com passo humilde
para a Thillia, que dormia no fundo.
As ondas agitadas gritaram seu valor
e os reino choraram sua sombra na água.
Do pensamento e do amor tudo nasceu um dia:
terra, ar, céu e insondável mar.
Das antigas trevas abriu passagem a luz,
e, liberta para sempre, seu resplendor se elevou.

Rega terminou de contar a história:


— O corpo da Thillia foi recuperado e colocado em
uma urna sagrada no centro do reino, em um lugar que
pertence aos cinco reinos. Os corpos de seus amantes
nunca foram recuperados e daí surgiu a lenda de que algum
dia, quando a nação estiver em terrível perigo, os irmãos
voltarão para salvar seu povo.
— Gostei muito da canção! — exclamou o anão,
descarregando com força o punho sobre a mesa para
expressar sua aprovação. Até chegou a tocar no antebraço
de Roland com um de seus dedos curtos e rechonchudos;
era a primeira vez que tocava em algum dos dois humanos
durante os cinco dias em que estava com eles. — Gostei
muitíssimo! Gravei bem a melodia? — Barbanegra
cantarolou a toada com uma profunda voz de baixo.
— Sim, senhor! Perfeito! — exclamou Roland, muito
surpreso. — Quer que lhe ensine a letra?
— Já a guardei. — Barbanegra tocou na testa. — Sou
um aluno aplicado.
— Certamente que sim! — respondeu Roland,
piscando para a mulher.
Rega lhe devolveu o gesto com um sorriso.
— Eu gostaria de ouvi-la outra vez, mas tenho que ir
— disse o anão com sinceridade, levantando-se da mesa. —
Devo levar a boa notícia a minha gente. — Acrescentou: —
Eles se sentirão muito aliviados.
Depois, levou as mãos a um cinturão que rodeava seu
corpo, desabotoou-o e o jogou sobre a mesa.
— Aí está a metade do dinheiro, conforme o
combinado. A outra metade, na entrega.
Roland se apressou a fechar a mão em torno do cinto
e empurrá-lo para Rega por cima da mesa. A mulher o
abriu, olhou o conteúdo, contou-o rapidamente e assentiu.
— Muito bem, meu amigo — disse Roland sem se
incomodar em ficar em pé. — Nos encontraremos no lugar
combinado no final do aro.
Temerosa de que o anão se ofendesse, Rega se
levantou e estendeu a mão (com a palma aberta para
demonstrar que não ocultava nenhuma arma, seguindo o
ancestral gesto humano de amizade). Os anões não têm
esse costume, pois entre eles nunca se registraram
enfrentamentos. Barbanegra estava a tempo suficiente
entre os humanos para reconhecer a importância daquele
aperto de mão. Fez o que se esperava dele e abandonou o
botequim rapidamente, esfregando a mão no colete de
couro e cantarolando a melodia da balada da Thillia.
— Não foi ruim para uma noite de trabalho —
murmurou Roland, colocando o cinturão e ajustando-o com
muita dificuldade, pois sua cintura era esbelta e o anão,
muito robusto.
— Não graças a você! — murmurou Rega. A mulher
tirou o raztar13 da bainha redonda que tinha presa à coxa e
13
Baseado em um brinquedo infantil conhecido como bandalor, o raztar foi transformado em arma pelos
elfos. Uma caixa redonda que se acopla à palma da mão contém sete pontas de madeira unidas a um
gatilho mágico. Um gancho, enroscado em torno do gatilho, ajusta-se pelo outro extremo ao dedo do
meio. Com um rápido movimento de mão, o pino é impulsionado para frente e as pontas se estendem
magicamente. Outro gesto e as pontas são recolhidas na palma da mão. Os peritos em seu uso podem
enviar a arma a mais de quinze palmos de distância e rasgar com suas afiadas garras a carne do
começou a afiar à vista de todos suas sete pontas, ao
mesmo tempo dirigia um expressivo olhar aos paroquianos
no botequim que pudessem sentir um interesse excessivo
por seus assuntos. — Tirei suas castanhas do fogo. Se não
fosse por mim, Barbanegra teria partido.
— Ah! Eu poderia arrancar a barba dele e não teria se
atrevido a se ofender. Não podia se permitir isso.
— É verdade — assentiu Rega em tom inusualmente
sombrio e pensativo. — Estava realmente assustado, não
é.?
— E se estava? Melhor para o negócio, irmãzinha —
replicou Roland, animado. Rega lançou um severo olhar ao
redor.
— Não me chame de irmãzinha! Logo estaremos
viajando com o elfo e um deslize deste colocaria tudo a
perder!
— Sinto muito, “querida esposa”. — Roland fechou o
kegrot e moveu a cabeça, pesaroso, quando a garçonete
olhou. Com tanto dinheiro, era preciso ficar bastante alerta.
— Os anões projetam um ataque a algum assentamento
humano. Provavelmente contra os reis do mar. Não
poderíamos tentar lhes vender o próximo carregamento
também?
— Você não acha que os anões atacarão a Thillia, não
é?
— Está tendo crises de consciência? O que importa
isso? Se esses anões não atacarem a Thillia, atacarão os
reis do mar. E se não forem eles a atacar, a própria Thillia
atacará a si mesma. Aconteça o que acontecer, como disse
antes, tudo será bom para o negócio.
O casal deixou um par de moedas de madeira sobre a
mesa e abandonou o botequim. Roland caminhava a frente,
com a mão no punho da espada, de afiada folha de
madeira. Rega o seguia a um par de passos de distância
para lhe proteger as costas, como de costume. O casal
produzia um efeito impressionante e tinha vivido em Griffith

oponente sem que este tenha tempo de saber o que o golpeou. (N. do A.)
tempo suficiente para conseguir uma reputação de dureza,
astúcia e escassa tendência à piedade. Vários olhos os
seguiram, mas ninguém os incomodou. Os olhos e o
dinheiro chegaram sãos e salvos à cabana que chamavam
de casa.
Rega fechou a pesada porta de madeira e passou
cuidadosamente o ferrolho. Levantou uma mesa de madeira
de três pernas e a colocou contra a porta. Afastando com
um chute um tapete esfarrapado que cobria o chão,
descobriu uma tampa e, ao abri-la, surgiu um buraco
escavado no musgo. Roland guardou o cinto do dinheiro no
fossa, fechou a tampa e voltou a colocar o tapete e a mesa.
Rega tirou um pedaço de pão rançoso e uma fatia de
queijo mofado.
— Falando de negócios, o que você sabe desse elfo, o
tal Paithan Quindiniar?
Roland arrancou um pedaço de pão com seus fortes
dentes e levou um pedaço de queijo à boca.
— Nada — murmurou, mastigando. — É um elfo, o
que significa que será uma flor, exceto pelo que se refere a
você, minha encantadora irmã.
— Sou sua encantadora esposa, não esqueça. —
Rega, com ar brincalhão, acariciou a mão de seu irmão com
uma das pontas de madeira do raztar. Depois, cortou com a
garra outra fatia de queijo. — Acha mesmo que dará certo?
— Certamente. O sujeito que me contou diz que isso
não falha nunca. Os elfos são loucos pelas mulheres
humanas. Vamos nos apresentar como marido e mulher,
mas nosso matrimônio não é muito apaixonado. Você sente
falta de afeto, flerta com o elfo e o enrola até que, quando
puser a mão em seus seios ardentes, vai recordar-se de
repente que é uma respeitável mulher casada e põe-se a
gritar como uma possessa. Então apareço, muito furioso lhe
cortando suas bicudas... hum... orelhas, e ele compra sua
vida cedendo sua mercadoria pela metade do preço. Depois
a vendemos aos anões ao preço real, mais uma pequena
comissão, e teremos a vida solucionada durante as
próximas estações.
— Mas, depois dessa sacanagem, teremos que
enfrentar a família Quindiniar...
— Sim, faremos isso. Ouvi dizer que a elfa que cuida
do negócio e dirige à família é uma velha dissimulada de
caráter azedo. Seu irmãozinho não se atreverá a contar que
tentou destruir nosso lar feliz. E podemos nos assegurar de
que, em nossa próxima transação, os Quindiniar obtenham
alguns benefícios extras.
— Exposto assim, parece bastante fácil — reconheceu
Rega. Ergueu uma bota de vinho, deu um gole e passou o
pele ao irmão. — Pelo nosso feliz matrimônio, meu amado
esposo.
— Pela infidelidade, minha querida esposa.
Entre risadas deram um novo gole à bota.

Drugar saiu do bar, mas não abandonou Griffith


imediatamente. Ocultou-se à sombra de uma palmeira e
aguardou ali até que o homem e a mulher apareceram à
porta do local. Gostaria muito de segui-los, mas estava
consciente de suas limitações. Os anões, com seus andar
curto, não são feitos para perseguições discretas. Além
disso, naquela cidade humana, era impossível que alguém
como ele pudesse passar despercebido entre a multidão.
Contentou-se em segui-los atentamente com o olhar
enquanto se afastavam. Drugar não confiava no casal, mas
tampouco teria acreditado na Santa Thillia mesmo que ela
aparecesse a sua frente. Desagradava-lhe depender de um
intermediário humano e teria preferido tratar diretamente
com os elfos, mas isto era impossível. Os atuais Senhores
da Thillia tinham fechado um acordo com os Quindiniar pelo
qual a família não venderia suas armas mágicas e
inteligentes aos anões nem aos reis bárbaros do mar. Em
troca disso, os thillianos garantiam a compra de
determinada quantidade de armas a cada estação.
O acordo era conveniente para os elfos e, se alguma
arma élfica terminava nas mãos dos reis do mar ou dos
anões, não seria por culpa dos Quindiniar, certamente.
Afinal, como Calandra costumava repetir com irritação,
como podiam esperar que ela fosse capaz de distinguir um
humano traficante de raztares de um legítimo
representante dos Senhores da Thillia? Para ela, todos os
humanos tinham o mesmo aspecto. Assim com suas
moedas.
Pouco antes de Roland e Rega desaparecerem da
vista de Drugar, o anão ergueu uma pedra negra, com uma
runa gravada, que usava pendurada em uma tira de couro
em torno de seu pescoço. A pedra era lisa e arredondada,
desgastada de tanto esfregá-la amorosamente, e muito
velha, mais que o pai de Drugar, que era um dos habitantes
mais idosos de todo Pryan.
Tomando-a entre seus dedos, Drugar ergueu a pedra
até que, de sua perspectiva, ficaram ocultas atrás dela as
silhuetas de Roland e Rega. O anão riscou então um
desenho no ar com o amuleto e murmurou algumas
palavras acompanhando os gestos, que reproduziam a runa
gravada na pedra. Quando terminou, voltou a guardar a
pedra mágica debaixo das dobras de suas roupas com
gesto reverente e dirigiu algumas palavras em voz alta ao
casal, que se dispunha a dobrar uma esquina e não
demoraria para desaparecer da vista do anão.
— Não entoei a runa por gostar de vocês... nenhum
dos dois. Só lhes proporcionei este feitiço de proteção para
ter certeza de conseguir as armas que meu povo necessita.
Quando tivermos terminado a transação, romperei o
encantamento. E que Drakar leve a ambos.
Depois de cuspir no chão, Drugar se internou na
selva, abrindo caminho com golpes de facão entre a
vegetação fechada.
CAPITULO 4

EQUILAN,
LAGO ENTHIAL

Calandra Quindiniar não se iludia em relação aos dois


humanos com quem estava negociando. Supunha que eram
contrabandistas mas não se importava. Afinal, para
Calandra era impossível imaginar que um humano pudesse
fazer um negócio honrado. Em sua opinião, todos eram
contrabandistas, vagabundos e ladrões.
Por isso lhe pareceu gracioso — como poucas vezes
lhe parecia — ver Aleatha sair da casa e cruzar o pátio de
musgo para o escorregador. O vento que soprava entre as
copas das árvores levantou o delicado vestido e o inchou
em torno dela em vaporosas ondas verdes. A moda élfica
da época ditava cinturas largas e rodeadas, golas altas e
rígidas e saias retas. Uma moda que não favorecia Aleatha
e que, portanto, ela não seguia. O vestido tinha um amplo
decote que deixava à vista seus ombros esplêndidos e tinha
um talhe brandamente recolhido para cobrir e realçar seus
seios. Caindo em suaves dobras, as capas de tecido fino a
envolviam como uma nuvem salpicada de prímulas,
acentuando seus movimentos graciosos.
Aquele tipo de roupa tinha causado furor nos tempos
da sua mãe. Qualquer outra elfa — “inclusive eu mesma”,
pensou Calandra — vestida daquela maneira teria parecido
desarrumada e fora de moda. Aleatha, ao contrário, fazia a
moda atual parecer antiquada e feia.
Por fim, viu-a chegar ao abrigo dos escorregadores.
Estava de costas para ela, mas Calandra soube muito bem
o que sua irmã estava fazendo. Aleatha sorria para o
escravo humano que a ajudava a subir no veículo.
O sorriso de Aleatha era a de uma perfeita dama, com
os olhos baixos como era devido e o rosto quase oculto sob
o chapéu de aba larga, adornado de rosas. Sua irmã nunca
poderia acusá-la. Mas Calandra, que vigiava das janelas do
piso superior, conhecia muito bem os truques de Aleatha.
Embora suas pálpebras continuassem baixas, os olhos
púrpura não estavam e olhavam para o humano atrás das
longas pestanas negras. Tinha os lábios carnudos
entreabertos e movia o inferior contra a fileira de dentes
superiores, pequenos e muito brancos, umedecendo-o
constantemente. O escravo humano era alto e musculoso,
endurecido pelo trabalho. Estava com o torso nu sob o calor
de metade de ciclo e vestia calças de couro justas que os
humanos costumavam usar. Calandra viu o sorriso do
homem em resposta ao de Aleatha, viu-o demorar um
tempo excessivo para ajudá-la a montar no escorregador, e
viu que sua irmã conseguia roçar seu corpo no do humano
enquanto subia no estribo. A mão enluvada de Aleatha
inclusive permaneceu alguns instantes mais do necessário
entre os dedos do escravo. Por fim, a moça teve o
desplante de aparecer na janela do veículo, com a aba do
chapéu voltada para cima, e agitar a mão em direção a
Calandra.
O escravo seguiu o olhar da Aleatha, lembrou
subitamente do seu dever e se apressou em ocupar sua
posição. O veículo era feito com folhas de bentan, tecidas
até formar uma cesta redonda aberta na frente. Vários
ganchos prendiam a parte superior da cesta, pendurada de
uma grossa mola que saía da casa e entrava na selva.
Quando acionados, os ganchos puxavam a mola,
aproximando o veículo da casa. Ao voltar para seu estado
normal, os ganchos deixariam que a cesta escorregasse
mola abaixo, levando o veículo até uma encruzilhada onde
Aleatha tomaria outra daquelas cestas, cujos ganchos a
conduziriam a seu destino.
O escravo pôs em marcha o escorregador com um
empurrão e Calandra viu sua irmã desaparecer entre a
frondosa vegetação, com sua saia verde ondeando ao
vento.
Calandra dirigiu um sorriso desdenhoso ao escravo,
que permanecia em sua posição contemplando o veículo
com admiração. Que estúpidos eram aqueles humanos.
Nem sequer entendiam quando alguém zombava deles.
Aleatha era dissoluta mas, pelo menos, seus romances
eram com elfos de sua raça. Só flertava com os humanos
porque era divertido observar suas reações animalescas.
Aleatha, assim como sua irmã mais velha, preferiria beijar
um cão da casa a beijar um humano.
Paithan era outra história. Calandra voltou para
trabalho, tomando nota de enviar à nova criada da cozinha
para trabalhar na oficina do arco cintilante.

Com as costas apoiadas no veículo, desfrutando do


vento fresco que golpeava seu rosto enquanto descia
rapidamente entre as árvores, Aleatha se imaginou
oferecendo a certa pessoa presente na festa do nobre
Durndrun o relato de como tinha despertado a paixão do
escravo humano. É obvio, sua versão do acontecido seria
ligeiramente diferente.
“Juro, meu senhor, que sua mão se fechava sobre a
minha com tal força que acreditei que ia esmagá-la. E esse
animal teve o atrevimento de esfregar seu corpo suado
contra o meu!”
“Terrível!”, responderia seu interlocutor, com suas
pálidas feições élficas avermelhadas de indignação... Ou
seria de excitação ante o pensamento dos dois corpos
apertados um contra o outro? Então se aproximaria um
pouco dela. “E o que você fez?”
“Ignorei-o, é obvio. É a melhor maneira de tratar
essas bestas... além do chicote, é obvio. Mas, claro, não ia
açoitá-lo eu...”
“Não, mas eu poderia fazê-lo...” acrescentaria o nobre
com galhardia.
“Oh, Thea! Você sabe que suas brincadeiras deixam
os escravos loucos.”
Aleatha deu um ligeiro salto. De onde tinha saído
aquela voz perturbadora? Um imaginário Paithan... que
invadia seus pensamentos. Segurando o chapéu que o
vento estava a ponto de lhe arrancar da cabeça, Aleatha
tomou nota mentalmente de assegurar-se de que seu irmão
estivesse em outra parte antes de começar a relatar aquela
sedutora aventura. Paithan era um bom rapaz e não
estragaria a brincadeira de sua irmã deliberadamente, mas
era melhor não arriscar.
A cesta chegou ao final da corda, detendo-se na
encruzilhada. Outro escravo humano, bastante feio —
Aleatha não se dignou a olhá-lo duas vezes, — ajudou-a a
descer.
— Para a casa do barão Durndrun — indicou
friamente, e o escravo a acompanhou a um dos
escorregadores que esperavam na encruzilhada, cada um
dos quais pendia de uma mola que se dirigia a uma parte
distinta da selva. O escravo acionou os portadores e o
veículo sulcou os ares para as sombras, cada vez mais
profundas, transportando sua passageira às vísceras da
cidade de Equilan.
As cestas eram o meio de transporte dos ricos, que
pagavam uma cota aos governantes da cidade para utilizá-
los. Quem não podia pagar utilizava as oscilantes pontes
que ligavam a selva. Tais pontes conduziam de uma casa a
outra, de uma loja a outra, das casas às lojas e vice-versa.
Tinham sido estendidas quando os primeiros habitantes
elfos fundaram Equilan, para comunicar as poucas
moradias e oficinas edificadas nas árvores com propósitos
defensivos. Com o crescimento da cidade, aumentou
também o sistema de pontes, sem ordem nem
planejamento, para manter conectada cada casa com as
vizinhas e com o coração da cidade.
Equilan tinha prosperado e também seus habitantes.
Milhares de elfos viviam na cidade, que tinha quase o
mesmo número de pontes. Percorrê-la a pé era
extraordinariamente complicado, inclusive para quem tinha
vivido ali toda sua vida. Ninguém que tivesse certa
importância na sociedade élfica perambulava pelas pontes.
Exceto, possivelmente, em alguma correria temerária
durante a hora escura. Não obstante, aquelas pontes
constituíam uma excelente defesa frente aos vizinhos
humanos, que, em tempos remotos, tinham cobiçado com
olhos invejosos as moradias arborícolas élficas.
Os humanos construíam suas cidades diretamente
sobre as planícies de musgo, nunca nas árvores. Em certa
ocasião tinham enviado uma força para invadir Equilan mas
quando os grandes e desajeitados guerreiros humanos,
vestidos com suas volumosas armaduras de couro e
empunhando suas espadas de madeira, olharam para as
estreitas passagens de madeira presas com corda
confeccionada com fios de trepadeira que balançavam a
milhares de palmos acima do leito de musgo, deram meia
volta imediatamente e retornaram para sua terra. Os elfos
tinham descoberto que se levava certo tempo em aclimar
os escravos humanos à vida nas copas das árvores, e que a
maioria deles nunca parecia sentir-se confortáveis lá em
cima.
Com o tempo, Equilan se tornou mais rica e mais
segura, e seus vizinhos humanos de norint decidiram que
seria melhor deixar os elfos em paz e brigar entre si. A
Thillia ficou dividida em cinco reinos, cada um deles inimigo
dos outros, e os elfos tiraram proveito do fornecimento de
armas a todos os bandos em conflito.
As famílias reais e as de classe média que tinham
alcançado riqueza e poder se mudaram para a parte mais
alta das árvores. O lar de Lenthan Quindiniar se elevava na
colina14 mais elevada de Equilan, sinal de posição social
entre seus iguais de classe média mas não entre a realeza,
que construía suas mansões à beira do lago Enthial. Mesmo
que Lenthan pudesse comprar e vender a maioria das casas
do lago, nunca permitiriam que vivesse ali.
Para ser sincero, Lenthan não desejava isso. Estava
muito satisfeito de viver onde vivia, com uma boa vista das
estrelas e um claro entre a vegetação para lançar seus
foguetes.
Aleatha, ao contrário, tinha decidido viver junto ao
lago. A condição de nobre poderia ser adquirida com seu
encanto, seu corpo e sua parte da herança quando seu pai
morresse. Entretanto, o que Aleatha ainda não tinha
decidido era qual dos duques, condes, barões ou príncipes
comprar. Todos eram tão chatos... A tarefa que tinha a sua
frente era como ir as compras, procurar um menos
aborrecido que o resto.
O escorregador depositou delicadamente Aleatha na
bela mansão onde o barão Durndrun oferecia a recepção.
Um escravo humano se dispôs a ajudá-la a descer mas um
jovem nobre, chegando ao mesmo tempo, privou-o da
honra. O nobre era casado mas, mesmo assim, Aleatha lhe
dedicou um sorriso doce e encantador. O jovem ficou
fascinado e se afastou com Aleatha, deixando que o
escravo se ocupasse de sua esposa.
A casa do barão Durndrun, como todas as do lago
Enthial, elevava-se no borda superior de uma grande
concavidade de musgo. As mansões da nobreza elfa
estavam divididas ao longo daquela borda superior
14
Leitos de musgo que crescem na própria copa das enormes árvores da selva. (N. do A.)
enquanto a residência de Sua Majestade, a rainha, ocupava
o extremo mais afastado, separada da cidade onde
residiam seus súditos. Todas as outras casas tinham a
fachada orientada para o palácio, como se lhe rendessem
perpétua homenagem.
No centro do terreno estava o lago, sustentado sobre
um grosso leito de musgo que os braços lenhosos das
árvores gigantescas embalavam. Devido a seus leitos de
musgo, a maioria de lagos da zona tinha uma cor verde,
nítida e cristalina. Mas, graças a uma estranha espécie de
peixes que nadava no lago (presente do pai de Lenthan
Quindiniar à Rainha), as águas do Enthial ofereciam um
vibrante e assombroso tom azul e eram consideradas uma
das maravilhas de Equilan.
Os jardins do barão Durndrun se estendiam da casa
até a borda do lago. Seguindo o costume élfico, os jardins
eram cuidados e cultivados para que oferecessem um
aspecto de silvestre abandono. Arco íris de flores
competiam com os que o sol formava ao transpassar a
úmida atmosfera, competindo entre si para criar os efeitos
mais maravilhosos. Samambaias davam sombra às pálidas
bochechas das donzelas elfas. Grande número de orquídeas
caia das árvores ou se elevava da vegetação putrefata que
formava uma grossa capa sobre o leito de musgo. Aves e
animais terrestres (só os mais vistosos, interessantes e
pacíficos) pulavam entre a luxuriosa folhagem. Alguns
caramanchões com bancos de madeira de teca, importada
a alto preço das terras humanas próximas ao oceano
Terinthiano, ofereciam uma esplêndida panorâmica do lago
e dos terrenos do palácio real em frente.
Aleatha não prestou a menor atenção à vista, pois já
a tinha contemplado em outras ocasiões. Seu objetivo
agora era consegui-la para si. Ela e o nobre Daidlus já se
conheciam, mas até aquele momento Aleatha não tinha
percebido que ele era esperto, inteligente e
moderadamente atraente. Sentada junto ao jovem
admirador em um dos bancos de teca, Aleatha tinha
começado a contar sua história do escravo quando uma voz
jovial a interrompeu, assim como acontecera em seu
diálogo imaginário.
— Ah! Aqui está você, Thea. Ouvi dizer que tinha
vindo. E você é Daidlus, não é? Sabe que sua mulher o está
procurando? Não parece muito contente...
O nobre Daidlus tampouco o parecia. Lançou um
olhar colérico a Paithan, que o devolveu com o ar inocente
e ligeiramente nervoso de quem só pretende ajudar um
amigo.
Aleatha esteve tentada a reter o nobre e livrar-se de
Paithan, mas pensou que seria engraçado deixar a panela
cozinhar em fogo lento antes de aplicar todo o calor. Além
disso, tinha que falar com seu irmão.
— Me sinto envergonhada, meu senhor — disse,
ruborizando deliciosamente. — Estou afastando-o de sua
família. Fui muito egoísta e inconsequente, mas estava
desfrutando tanto de sua companhia...
Paithan cruzou os braços sobre o peito, apoiou-se no
muro do jardim e observou a cena com interesse. Daidlus
replicou, entre protestos, que poderia ficar com ela para
sempre.
— Não, não, meu senhor — disse Aleatha com um ar
de nobre altruísmo. — Vá ver sua esposa. Eu insisto.
Depois disto, estendeu a mão para que o jovem nobre
a beijasse. Daidlus o fez com mais ardor do que as normas
de urbanidade teriam considerado correto.
— Mas... eu gostaria tanto de ouvir o final da
história... — protestou o frustrado Daidlus.
— Ouvirá, meu senhor — respondeu Aleatha
entreabrindo as pálpebras e seus olhos brilhando em
faíscas azuladas. — Ouvirá.
O jovem nobre conseguiu sair de seu lado. Paithan
sentou-se no banco junto a sua irmã e esta tirou o chapéu e
se abanou com ele.
— Sinto muito. Thea. Interrompi algo?
— Sim, mas é melhor assim. As coisas aconteceram
muito depressa.
— Daidlus está bem casado, sabe? E tem três filhos
pequenos.
Aleatha deu de ombros, aquilo não lhe interessava.
— Um divórcio seria um escândalo tremendo —
continuou Paithan, cheirando uma flor que ficou muito bem
na lapela do longo traje de linon branco. De linhas folgadas,
a jaqueta caía sobre calças do mesmo tecido branco,
fechados nos tornozelos.
— Absolutamente. O dinheiro de nosso pai o
acalmaria.
— Teria que dá-lo a Rainha.
— É obvio. O dinheiro de nosso pai também se
encarregaria disso.
— Calandra ficaria furiosa.
— Não. Ela estaria muito contente de me ver
transformada em uma respeitável mulher casada. Não se
preocupe comigo, querido irmão. Você tem outros assuntos
com que se preocupar. Calandra estava a sua procura.
— Ah, é mesmo? — respondeu Paithan, tentando
aparentar indiferença.
— Sim, e a expressão de seu rosto poderia ter aceso
um desses infernais aparelhos de nosso pai.
— Que azar. Deve ter falado com o chefe, não é?
— Sim, creio que sim. Não falei muito com ela porque
não queria deixá-la furiosa. Do contrário, ainda estaria ali.
Disse algo sobre um sacerdote humano, acho. Eu... Orn
bendito! O que foi isso?
— Um trovão. — Paithan ergueu a vista para a densa
vegetação que os impedia de observar o céu. — Uma
tormenta deve estar se aproximando. Que azar, isso
significa que vão cancelar o passeio de barco.
— Não foi um trovão. É muito cedo. Além disso, notei
que solo tremeu, você não?
— Talvez seja Cal, que vem me ver.
Paithan tirou a flor da lapela e ficou brincando com
ela, desfolhando-a e lançando as pétalas ao regaço de sua
irmã.
— Fico feliz que isto o divirta tanto, Paithan. Vamos
ver o que dirá quando ela reduzir sua mesada à metade.
Por certo, que história é essa de sacerdote humano?
Paithan se acomodou no banco e cravou os olhos na
flor que estava esquartejando. Seu rosto juvenil adquiriu
uma seriedade inabitual.
— Veja, Thea. Ao voltar de minha última viagem, a
mudança de nosso pai me surpreendeu. Você e Cal não
percebem porque estão sempre com ele, mas... pareceu-me
tão... não sei... cinza, acredito. E abatido.
— Pois o viu em um de seus momentos mais lúcidos
— disse Aleatha com um suspiro.
— Sim, e esses malditos foguetes que constrói nunca
ultrapassam as copas das árvores, e muito menos se
aproximam das estrelas. E não para de falar da morte de
nossa mãe... Enfim, você já sabe como estão as coisas...
— Sim, sei como estão. — Aleatha juntou as pétalas
no regaço e, inconscientemente, formou com elas uma
tumba em miniatura.
— Eu queria que se animasse, de modo que disse a
primeira tolice que me veio à cabeça. “Por que não chama
um sacerdote humano?”, propus. “Essa gente sabe muito
das estrelas, pois afirmam vir delas. Dizem que elas são, na
realidade, cidades.” Acrescentei outras besteiras e minhas
palavras — Paithan parecia modestamente satisfeito
consigo mesmo — fizeram que nosso pai se sentisse
melhor. Não o tinha visto tão ativo desde o dia em que seu
foguete caiu no meio da cidade e provocou o incêndio do
lixo.
— Estupendo, Paithan! Como você não vai demorar
para viajar novamente, tanto faz o que acontecer. —
Aleatha lançou as pétalas ao vento com um gesto irritado.
— Mas Calandra e eu teremos que viver com esse humano,
e já temos o suficiente com a presença do velho astrólogo
luxurioso!
— Sinto muito, Thea. Juro que não pensei que se
importasse.
Paithan parecia constrangido e verdadeiramente
estava. Ele era um explorador despreocupado. Sua irmã
mais velha uma fria comerciante. Sua irmã menor egoísta e
desumana. A única chama que ardia em todos eles era o
amor e o afeto que professavam entre si. Um amor que,
desafortunadamente, não estendiam ao resto do mundo.
Paithan tomou a mão de sua irmã e a apertou entre
seus dedos.
— Além disso — disse, — esse sacerdote humano
nunca virá. Eu o conheço, sabe? E...
O leito de musgo se ergueu de repente sob seus pés
e voltou a descer. O banco onde estavam sentados deu
uma sacudida e uma súbita onda agitou a plácida superfície
do lago. Um estrondo que recordava um trovão mas que
parecia vir do chão acompanhou a vibração do terreno.
— Isto não é nenhuma tormenta! — exclamou
Aleatha, olhando ao redor com expressão alarmada. Ao
longe se ouviam gritos e exclamações. Paithan se levantou
com a expressão muito séria.
— Acho que é melhor voltar para casa, Thea — disse,
e lhe estendeu a mão. Aleatha se moveu com tranqüila
presteza, recolhendo suas saias vaporosas em torno das
pernas com calma rapidez.
— O que deve ser isso?
— Não tenho a menor idéia — respondeu Paithan,
cruzando o jardim rapidamente. — Ah, Durndrun! O que foi
isso? Algum novo jogo?
— Quem dera fosse! — O nobre anfitrião parecia
muito preocupado. — O tremor produziu uma grande
rachadura na parede da cozinha e minha mãe está histérica
do susto.
O estrondo começou de novo, desta vez mais
potente. O chão foi sacudido novamente e seguiu-se um
tremor. Paithan retrocedeu cambaleando até segurar-se em
uma árvore. Aleatha, pálida mas sem descompor-se,
agarrou-se a uma liana pendurada junto ao banco. O nobre
Durndrun perdeu o equilíbrio e esteve a ponto de ser
esmagado sob uma estátua que caiu de seu pedestal. O
tremor durou o tempo que um elfo demorava para respirar
três vezes e, em seguida, cessou. Do musgo surgiu então
um cheiro estranho. O cheiro de umidade rançosa e fria. O
aroma da escuridão. O aroma de algo que vivia na
escuridão.
Paithan foi ajudar o barão a levantar-se.
— Acho que deveríamos nos armar — disse Durndrun
em um sussurro, para que só Paithan o ouvisse.
— Sim — respondeu Paithan no mesmo tom,
enquanto dirigia um olhar para sua irmã. — Eu ia propor o
mesmo.
Aleatha ouviu e entendeu o que diziam. Um calafrio
de medo percorreu seu corpo. A sensação foi muito
agradável. Certamente, todo aquilo acrescentava interesse
a uma tarde que tinha esperado ser aborrecida como de
costume.
— Se me desculparem — disse, dobrando a aba do
chapéu para que a favorecesse ao máximo, — voltarei para
dentro, talvez possa ser de alguma ajuda à senhora da
casa.
— Obrigado, Aleatha Quindiniar. Fico muito grato.
Como ela é valente — acrescentou o barão, contemplando à
moça enquanto ela se dirigia à casa sem companhia. — A
metade das mulheres correm por aí gritando, tomadas por
um ataque de nervos, e a outra metade desmaiou. Sua irmã
é uma mulher admirável!
— Sim, é mesmo? — respondeu Paithan, a quem não
tinha escapado que Aleatha estava aproveitando a ocasião.
— Que armas você tem?
Enquanto voltavam apressadamente para a casa, o
nobre olhou para o jovem elfo que corria junto a ele.
— Quindiniar...? — Durndrun se aproximou ainda mais
e lhe segurou o braço. — Você acha que isto está
relacionado com esses rumores que nos contou outra noite?
Sabe, sobre os... os gigantes...
Paithan pareceu levemente envergonhado.
— Eu falei de gigantes? Por Orn, o vinho que nos deu
naquela noite era muito forte, Durndrun!
— Talvez os rumores não sejam apenas rumores,
afinal — murmurou Durndrun em tom lúgubre. Paithan
pensou na origem daquele estrondo e naquele cheiro de
escuridão. Moveu a cabeça em negativa e disse:
— Acho que vamos desejar ter a frente alguns
gigantes, senhor. Agora mesmo, eu adoraria escutar um
desses contos humanos para dormir.
Os dois chegaram ao edifício, onde começaram a
revisar o catálogo de armamento do arsenal. Outros elfos
que assistiam à festa se uniram a eles entre gritos e
exclamações, com um comportamento não muito melhor
que o de suas mulheres na opinião de Paithan. Estava
observando-os com uma mescla de diversão e impaciência
quando, de repente, percebeu que todos eles o
contemplavam, e que seus rostos estavam
extraordinariamente sérios.
— O que acha que devemos fazer? — perguntou o
barão Durndrun.
— Eu... eu... bem... — balbuciou Paithan, olhando com
ar confuso para os membros da nobreza elfa. — Vamos,
estou certo que vocês...
— Vamos, vamos, Quindiniar! — Cortou-lhe Durndrun.
— Você é o único de nós que esteve no mundo exterior, o
único com experiência neste tipo de assunto. Necessitamos
de um chefe e vai ser você.
“E, se acontecer algo, terão alguém para culpar”,
pensou Paithan, mas não disse isso em voz alta embora em
seus lábios aparecesse durante um segundo um sorriso
irônico.
O trovão começou de novo, desta vez com tal
potência que muitos dos elfos caíram de joelhos. Entre as
mulheres e crianças que tinham sido conduzidos à casa em
busca de abrigo se elevaram gritos e gemidos. Paithan
escutou o estalo de ramos ao se quebrarem na selva, e o
coro de roucos grasnidos das aves assustadas.
— Olhem! Olhem para isso! No lago! — gritou a voz
áspera de um dos nobres, situado na última fila da
multidão.
Todos se voltaram para onde indicava. As águas do
lago se agitavam e ferviam, e no centro, serpenteando para
o alto, viam-se as escamas reluzentes de um enorme corpo
verde. Uma parte daquele corpo sobressaía da água, para
voltar a mergulhar nela.
— Ah! Era o que eu pensava — murmurou Paithan.
— Um dragão! — exclamou o barão Durndrun.
Agarrou-se ao jovem elfo e acrescentou: — Por Orn,
Quindiniar! O que vamos fazer?
— Creio — respondeu Paithan com um sorriso — que
o melhor será ir para dentro e tomar o que, provavelmente,
será nossa última taça.

CAPITULO 5

EQUILAN,
LAGO ENTHIAL

Aleatha lamentou imediatamente ter ido para junto


das mulheres. O medo é uma enfermidade contagiosa e o
salão fedia a pânico. Provavelmente, os homens estavam
tão assustados como as mulheres, mas ao menos
mantinham uma aparência de coragem... se não por eles
mesmos, ao menos pelo que os outros pensariam. As
mulheres não só podiam deixar-se levar pelo terror, mas
também era isso o que se esperava delas. Mas até o medo
tinha suas normas de etiqueta.
A matrona da casa — mãe do barão Durndrun e
proprietária absoluta da mansão já que seu filho ainda era
solteiro — tinha prioridade nas demonstrações de histeria.
Ela era a mais velha, de classe mais alta, e estava em sua
casa. Nenhuma das damas presentes, portanto, tinha
direito a mostrar-se tão tomada de pânico como ela. (A
esposa de um simples duque, que tinha desmaiado em um
canto, estava condenada ao ostracismo.)
A matrona jazia prostrada em um sofá enquanto sua
faxineira chorava junto a ela e lhe aplicava diversos
remédios: banhos de água de lavanda nas têmporas, tintura
de rosa no peito, que subia e descia com tremor enquanto a
mulher tentava em vão recuperar o fôlego.
— Oh... Oh... Oh...! — ofegava, apalpando o coração.
As esposas dos convidados a rodeavam, retorcendo-
as mãos, abraçando-se de vez em quando e soltando
soluços afogados. Seu medo servia de inspiração para as
crianças, que até então tinham mostrado uma ligeira
curiosidade, mas que agora choramingavam em coro e se
metiam entre as pernas de todo o mundo.
— Oh... Oh... Oh...! — gemeu a matrona, exibindo
uma leve cor arroxeada.
— Dê-lhe uns tapas — disse Aleatha com frieza.
A faxineira pareceu tentada a fazê-lo, mas as esposas
dos nobres conseguiram recuperar-se de seu pânico em
tempo suficiente para se mostrarem escandalizadas.
Aleatha deu de ombros, virou-se e saiu para as grandes
janelas que serviam de portas e se abriam para o espaçoso
terraço de onde se contemplava o lago. Atrás da moça, as
convulsões da matrona pareciam ir diminuindo.
Possivelmente tinha ouvido a sugestão da Aleatha e visto a
mão crispada da criada.
— Nos últimos minutos não ouvimos nenhum ruído —
murmurou a esposa de um conde. — Talvez já tenha
acabado.
A resposta ao comentário foi um silêncio cheio de
inquietação. Aquilo não tinha terminado. Aleatha sabia e as
outras mulheres reunidas na sala também sabiam. No
momento reinava a calma, mas era um silêncio tenso,
carregado e terrível que fez Aleatha sentir falta dos
gemidos da matrona.
O estrondo se elevou de novo, desta vez com mais
força. A casa estremeceu alarmantemente. As cadeiras se
moveram de lugar e os pequenos adornos caíram das
mesas, fazendo-se em pedacinhos no chão. As que
puderam, agarraram-se ao que encontraram; as que não
tinham onde apoiar-se, perderam o equilíbrio e caíram
também. Da janela, Aleatha viu elevar-se do lago aquele
corpo verde e escamoso.
Por sorte, nenhuma das mulheres na sala percebeu a
presença daquele ser. Aleatha mordeu os lábios para não
soltar um grito de pavor. Em um abrir e fechar de olhos, a
criatura desapareceu com tal rapidez que a moça chegou a
duvidar de que realmente tivesse visto algo ou se fora mera
alucinação causada por seu próprio medo.
O trovão cessou e Aleatha viu os homens correndo
para a casa, com seu irmão à frente. A moça abriu as portas
e desceu depressa a ampla escadaria.
— Paithan! O que foi isso? — perguntou ao irmão,
agarrando-o pela manga da casaca.
— Um dragão, creio — respondeu ele.
— O que será de nós?
— Imagino que todos vamos morrer — disse Paithan
depois de pensar alguns momentos.
— Mas não é justo! — protestou Aleatha, chutando o
chão com um gesto de raiva e impotência.
— Não, suponho que não. — As palavras de sua irmã
lhe pareceram bastante estranhas em sua situação, mas
Paithan lhe acariciou a mão com um gesto tranqüilizador. —
Vamos, Thea, você não vai desmaiar como as outras
mulheres, não é? É impróprio que alguém como você se
deixe levar pela histeria.
Aleatha levou as mãos às bochechas e notou a pele
quente e avermelhada. Seu irmão tinha razão, pensou.
Devia parecer um despropósito. Depois de uma profunda
inspiração, obrigou-se a relaxar, alisou o cabelo e voltou a
compor as dobras desordenadas de seu vestido. O rubor foi
desaparecendo de seu rosto.
— O que vamos fazer? — insistiu com voz firme.
— Nos armar. Será inútil, Orn sabe, mas ao menos
poderemos manter o monstro a distância durante algum
tempo.
— E a Guarda da Rainha?
Do outro lado do lago, distinguia-se o regimento da
Guarda da Rainha desdobrando-se. Todos os soldados
corriam para ocupar suas posições.
— A guarda protege Sua Majestade, Thea. Os
soldados não podem abandonar o palácio. Tenho uma idéia:
pode levar às outras mulheres e as crianças para o porão
e...
— Não! Não vou morrer como um rato no buraco!
Paithan olhou fixamente para sua irmã, medindo seu
valor.
— Está bem, Aleatha. Há outra coisa que pode fazer.
Alguém tem que ir à cidade e alertar o exército. Não
podemos abrir mão de nenhum homem e as outras
mulheres não estão em condições de viajar. É uma missão
perigosa; o meio de transporte mais rápido é o
escorregador e se essa besta romper nossas linhas de
defesa...
Aleatha imaginou com toda clareza a enorme cabeça
do dragão erguendo-se e agitando-se violentamente até
romper os cabos que sustentavam o veículo sobre o vazio.
Viu-se caindo vertiginosamente...
Mas logo se imaginou presa com a proprietária da
casa em um porão escuro e mau ventilado.
— Eu vou. — Aleatha começou a recolher as saias.
— Espere, Thea. Escute. Não tente descer no centro
da cidade, pois se perderia ali. Procure o posto de guarda
do lado de vars. As cestas a levarão até uma parte do
caminho e depois terá que seguir a pé, mas verá o posto
desde a primeira encruzilhada. É uma fortificação
construída nos ramos de uma árvore karabeth. Diga-lhes
que...
— Paithan! — Durndrun saiu da casa correndo, com o
arco e um flecha na mão e apontando para o lago com a
outra. — Quem diabos está lá embaixo? Todos não haviam
voltado conosco?
— Era o que eu acreditava — assentiu Paithan,
forçando a vista para onde indicava o barão. O reflexo do
sol nas águas do lago era ofuscante mas conseguiu ver,
sem a menor duvida, uma figura que se movia à beira da
água. — Deixe esse arco aqui. Irei até lá. É fácil termos
deixado alguém para trás na confusão.
— Você pensa... pensa em ir até lá? Com o dragão? —
O nobre contemplou Paithan com assombro.
Como sempre fazia na vida, Paithan tinha se
apresentado como voluntário sem pensar. Mas, antes que
tivesse tempo de acrescentar que, de repente, tinha
recordado que tinha outro compromisso, Durndrun se
apressou a colocar o arco e a aljava com as flechas nas
mãos do jovem elfo enquanto murmurava algo a respeito
de uma medalha de valor. Póstuma, sem dúvida.
— Paithan! — Aleatha segurou seu braço. O elfo
tomou a mão da moça entre seus dedos, apertou-a e,
depois, depositou-a na mão de Durndrun.
— Aleatha se ofereceu para alertar os Guardiães das
Sombra15 para que venham nos resgatar.
— Que valentia! — Murmurou o nobre, beijando a
mão gelada da moça. — Que ânimo! — acrescentou, e
contemplou Aleatha com crescente admiração.
— A mesma que têm todos que ficam aqui, meu
senhor. Tenho a sensação de estar fugindo. — Aleatha
suspirou profundamente e dirigiu um olhar frio para seu
irmão. — Tome cuidado, Pait.
— O mesmo digo eu, Thea.
Com a arma disposta, Paithan se dirigiu correndo para
o lago.
Aleatha o viu afastar-se e notou no peito uma
sensação horrível, sufocante. Uma sensação que já tinha
experimentado uma vez em sua vida, na noite em que sua
mãe morrera.
— Permita-me que a escolte, querida Aleatha. — O
barão Durndrun não soltava sua mão.
— Não, meu senhor. Não diga tolices! — replicou
Aleatha imediatamente. Tinha um nó no estômago e o
coração apertado. Por que Paithan tinha partido? Por que a
abandonara? Só desejava escapar daquele lugar horrível. —
Você é necessário aqui.
— Aleatha! Que valente e bela você é! — O barão
Durndrun a atraiu para si; seus braços a rodearam e seus
lábios lhe roçaram os dedos. — Se, por algum milagre,
escapamos deste monstro, quero que se case comigo.
Aleatha deu um salto, transtornada pelo medo. O
barão Durndrun era um dos nobres de mais alta estirpe e
um dos elfos mais ricos de Equilan. Sempre a tinha tratado
com cortesia, mas sempre tinha se mostrado frio e distante.
Paithan tivera a amabilidade de informar sua irmã que o
barão a considerava “muito amalucada e com um
comportamento indecoroso”. Ao que parecia, tinha mudado
de idéia.
15
O exército élfico se divide em três ramos: a Guarda da Rainha, os Guardiães das Sombras e a Guarda
da Cidade. Os Guardiães das Sombras se mantêm nas regiões inferiores da cidade e, são peritos em
enfrentar os diversos monstros que vivem sob as planícies de musgo. (N. do A.)
— Meu senhor! Por favor, tenho que ir! — Aleatha se
debateu, embora não muito, para se soltar do braço que
rodeava sua cintura.
— Eu sei e não vou impedir que vá. Mas prometa que
será minha, se sobrevivemos.
Aleatha cessou seus esforços e baixou seus olhos
púrpura, com ar tímido.
— Estamos em circunstâncias terríveis, meu senhor.
Não agimos racionalmente. Se sairmos desta, não o
considerarei obrigado por esta promessa. Mas — se
aproximou ainda mais dele, e sussurrou — prometo ao meu
senhor que o aceitarei se voltar a me fazer esse pedido.
Afastando-se por fim, Aleatha fez uma elegante
reverência, deu meia volta e pôs-se a correr, graciosa e
veloz, pela grama de musgo para o abrigo das carruagens.
A moça sabia que o barão a seguia com o olhar.
“Ele é meu”, pensou. “Serei a esposa de Durndrun e
mandarei sua mãe para ser a primeira dama de companhia
da rainha.”
Enquanto corria, com as saias recolhidas para não
tropeçar, Aleatha sorriu. Se a matrona da casa havia ficado
histérica por causa de um dragão, como reagiria quando
recebesse a notícia! Seu único filho, sobrinho de Sua
Majestade, unido em matrimônio com Aleatha Quindiniar,
uma rica plebéia. Seria o escândalo do ano.
Mas, naquele momento, só podia rogar à bendita Mãe
Peytin que saísse com vida.

Paithan continuou sua descida pelo jardim inclinado,


em direção ao lago. O chão começou a vibrar outra vez e
parou para olhar rápido ao seu redor, procurando algum
indício do dragão. Entretanto, o tremor parou quase
imediatamente e o jovem elfo retomou a marcha.
Estava espantado consigo mesmo, com aquela
demonstração de valentia. Era um perito no uso do arco,
mas aquela pequena arma não lhe seria de muita utilidade
frente a um dragão. Pelo sangue de Orn! O que estava
fazendo ali? Depois de pensar seriamente, enquanto
espiava atrás de algumas moitas para ver melhor o lago,
chegou à conclusão que não era uma questão de valentia.
Só agia impulsionado pela curiosidade, aquela mesma
curiosidade que sempre tinha causado problemas em sua
família.
Fosse quem fosse a pessoa que perambulava junto ao
lago, tinha desconcertado Paithan. Este podia ver agora que
se tratava de um homem e que não era nenhum convidado.
Na realidade, não era um elfo. Era um humano, e bastante
velho, a julgar por seu aspecto. Um ancião de longos
cabelos grisalhos que lhe caíam sobre as costas e longa
barba branca que lhe chegava ao peito. Estava vestido com
uma túnica larga, suja e de cor cinzenta. Um gorro cônico,
amassado e com a ponta rasgada, sustentava-se
incertamente sobre a cabeça. E o mais incrível era que
parecia ter saído do lago. De pé junto à borda, desprezando
o perigo, o velho torcia a barba para escorrer a água e,
voltado para o lago, murmurava algo.
— Um escravo, sem dúvida — disse Paithan. — Deve
estar aturdido e desorientado. Embora não entendo por que
alguém conservaria um escravo tão velho e decrépito. Ei,
você! Velho!
Paithan encomendou sua alma a Orn e se lançou
abertamente caminho abaixo. O ancião não lhe deu atenção
e, pegando um longo cajado de madeira que tinha visto
tempos melhores, começou a bater na água com ele.
Paithan quase pôde ver o corpo serpenteante e
escamoso subindo das profundezas do lago azul. Notou
uma pressão no peito, um ardor nos pulmões.
— Não! Ancião! Pai... — Gritou, falando em humano e
utilizando o tratamento habitual com que os humanos se
dirigiam a seus anciões. — Pai! Afaste-se daí! Pai!
— Hein? — O ancião se virou e olhou para Paithan
com olhos confusos. — Filho? É você, rapaz? — Soltou o
cajado e abriu os braços. O movimento o fez cambalear. —
Me dê um abraço, filho! Venha com seu pai!
Paithan tentou deter seu próprio impulso de segurar o
ancião, que cambaleava para a beira da água. Entretanto, o
elfo escorregou sobre a erva úmida e lhe falharam os
joelhos. O velho perdeu seu precário equilíbrio e, agitando
os braços, caiu no lago com um grande barulho.
— Esta não é a maneira que um filho deve tratar seu
velho pai! — O humano olhou para Paithan, enfurecido. —
Me jogar no lago!
— Eu não sou seu filho, velho! E foi um acidente. —
Paithan puxou o ancião, arrastando-o para cima. — Vamos!
Temos que partir daqui em seguida! Há um dragão E...
O humano parou de súbito e Paithan, desequilibrado,
quase caiu. Puxou o braço do ancião para que continuasse
avançando, mas foi como tentar mover um tronco de vortel.
— Não vou sem meu chapéu — declarou o ancião.
— Pelo bendito Orn! — Paithan trincou os dentes.
Voltou o olhar para o lago com uma careta de temor,
esperando ver a qualquer momento que a água começava
a ferver outra vez. — Esqueça o gorro, velho idiota! Há um
dragão em... — Olhou de novo para o humano e exclamou,
exasperado: — Mas ele está na sua cabeça!
— Não minta, filho — replicou o ancião com teimosia.
Inclinou-se para recolher o cajado e o gorro lhe caiu sobre
os olhos. — Deuses! E agora fiquei cego de repente! —
acrescentou com voz assustado, erguendo as mãos para
medir o que tinha a sua frente.
— É o chapéu! — Paithan se aproximou de um salto,
agarrou o chapéu do velho e o arrancou da cabeça. — O
chapéu! — repetiu agitando-o a frente do seu nariz.
— Esse não é o meu — protestou o ancião,
observando o objeto com receio. — Você o trocou. O meu
tinha um aspecto muito melhor...
— Vamos! — exclamou de novo, reprimindo a
vontades de rir.
— O cajado! — gritou o velho, negando-se a sair de
onde estava plantado.
Paithan acariciou a idéia de deixar o velho para que
criasse raízes no musgo, se era isso que queria, mas o elfo
não suportava a idéia de ver um dragão devorando
ninguém... mesmo um humano. Voltou sobre seus passos
depressa, recuperou o cajado, colocou-o na mão do ancião
e continuou puxando-o para a casa.
O elfo receou que o velho humano tivesse
dificuldades para chegar até ali, pois o caminho era longo e
morro acima. Paithan ouviu si mesmo respirando com
esforço e sentiu as pernas cansadas pela tensão. O ancião,
ao contrário, parecia possuir uma resistência extraordinária
e avançava resolutamente, deixando buracos onde apoiava
o cajado no musgo.
— Ah, acho que algo está nos seguindo! — exclamou
de repente o ancião.
— Sim? — Paithan se virou. — Onde? — O velho
agitou o cajado e quase deixou Paithan sem sentidos.
— Pelos deuses que lhe darei com isto...
— Basta! Já é suficiente! — O elfo agarrou o cajado
que o ancião continuava movendo de um lado para outro.
— Não há nada aqui. Pensei que havia dito que... que algo
nos seguia.
— Se não for assim, por que me leva correndo por
esta maldita encosta?
— Há um dragão no la...
— O lago! — O humano ficou com a barba arrepiada e
suas sobrancelhas grossas ficaram eriçadas. — Jogou-me na
água de propósito! — O velho levantou o punho e o agitou
no ar em direção ao lago. — Já o acerto, verme! Venha! Saia
para onde eu possa vê-lo! — Deixou cair o cajado e
começou a levantar as mangas de suas roupas sujas e
úmidas. — Já estou pronto. Sim, senhor. E desta vez vou
lançar um feitiço que tirará seus olhos das órbitas!
— Espere um momento! — Paithan notou que o suor
começava a gelar sobre a pele. — Está dizendo que... que
esse dragão é... seu?
— Meu? É obvio que é meu! Não é uma espécie de
réptil escorregadio?
— Quer dizer que... que o dragão está sob seu
controle? — Paithan começou a respirar um pouco melhor.
— Então, deve ser um feiticeiro.
— Devo...? — O humano pareceu muito surpreso com
a notícia.
— Tem que ser um mago, e muito poderoso, para
controlar um dragão.
— Bom, eu... hum... veja filho. — O ancião começou a
coçar a barba com evidente desconforto. — Essa é uma
questão série entre nós... o dragão e eu.
— O que quer dizer? — Paithan notou que começava
a se formar um nó no seu estômago.
— Sobre quem controla quem. Não que eu tenha
alguma dúvida a respeito, certamente; o que acontece é
que... hum... que o dragão costuma se esquecer disso.
O elfo não errara: aquele velho humano estava louco.
Paithan tinha que encontrar um dragão e um humano louco.
Mas, no bendito nome da Mãe Peytin, o que aquele velho
louco estava fazendo no lago?
— Onde está, sapo inchado? — Continuou gritando o
feiticeiro. — Saia! Não servirá vai adiantar se esconder!
Um grito agudo interrompeu o falatório.
— Aleatha! — exclamou Paithan, voltando a vista para
o alto da colina.
— Socorro! Por favor... — O grito terminou com um
gemido afogado.
— Já vou, Thea! — O elfo saiu de sua momentânea
paralisia e pôs-se a correr para a casa.
— Ei, moço! — gritou o velho, com os braços
cruzados, contemplando encolerizado como ele se afastava.
— Onde acha que vai com meu chapéu?
CAPITULO 6

EQUILAN,
LAGO ENTHIAL

Paithan se uniu a um grupo de homens que,


conduzido pelo barão Durndrun, corria para onde tinha se
ouvido o grito. Ao dobrar a esquina da asa norint da casa, o
pelotão parou de súbito. Aleatha estava imóvel em uma
pequena colina de musgo. Diante dela, interpondo seu
corpo enorme entre a elfa e o abrigo dos escorregadores,
achava-se o dragão.
Era um ser enorme, cuja cabeça se elevava até as
copas das árvores. Seu corpo se perdia nas sombras da
selva e carecia de asas, pois tinha passado toda sua
existência na escuridão da vegetação impenetrável,
deslizando entre os troncos das gigantescas árvores de
Pryan. Suas fortes patas, dotadas de grandes garras,
podiam abrir caminho na selva mais fechada ou derrubar
um homem com um golpe. Quando avançava, sua larga
cauda se agitava como um chicote e cortava a vegetação
como uma foice, formando trilhas que eram bem
conhecidas (e imensamente temidas) pelos aventureiros.
Seus olhos enormes, vermelhos e inteligentes,
estavam fixos em Aleatha. O dragão não se mostrava
ameaçador; suas grandes mandíbulas não estavam abertas,
embora fossem visíveis as presas superiores e inferiores
sobressaindo de suas fauces. Uma língua vermelha aparecia
e desaparecia velozmente entre os dentes. Os homens
armados observavam aquela aparição, sem saber o que
fazer. Aleatha permanecia muito quieta.
O dragão inclinou a cabeça, observando-a.
Paithan abriu caminho até colocar-se na frente do
grupo. O barão Durndrun estava soltando furtivamente o
gatilho de uma mola de suspensão. A arma despertou
enquanto Durndrun começava a levá-la ao ombro. A seta
preparada para o disparo perguntou:
— Objetivo? Objetivo?
— O dragão — ordenou Durndrun.
— O dragão? — A flecha pareceu alarmada e disposta
a iniciar um protesto, um problema que as armas
inteligentes costumavam apresentar. — Por favor, consulte
o manual do usuário, seção B, parágrafo três. Cito: “Não
utilizar contra um adversário cujo tamanho seja superior
a...”
— Aponte para o coração...
— O que?
— O que pretende fazer com isso? — Paithan agarrou
o jovem nobre pelo cotovelo.
— Posso colocar um bom dardo nos olhos...
— Está louco? Se errar o dragão ele se lançará sobre
Aleatha!
Durndrun estava pálido e tinha uma expressão
preocupada, mas continuou preparando o arco.
— Sou um excelente atirador, Paithan. Fique de lado.
— Não!
— É nossa única chance! Maldito seja, Paithan, eu
gosto disso tão pouco como você, mas...
— Desculpe, filho — exclamou a suas costas uma voz
irritada. — Está amassando meu chapéu!
Paithan soltou uma praga. esquecera-se do ancião
humano, que abria caminho entre o grupo de elfos tensos e
carrancudos.
— Já não se tem respeito pelos anciões! Acham que
todos somos velhos decrépitos, não é? Pois uma vez tive
um feitiço que lhes teria feito cair de costas! Agora mesmo
não recordo bem como era... Sino de fogo? Não, não era
isso... Já sei! Círculo de fogo! Não, tampouco era isso.
Enfim, já me lembrarei! E você, moço... — O ancião estava
enfurecido. — Olhe como deixou meu chapéu!
— Pegue o maldito chapéu e... — Paithan começou a
responder sem perceber, em sua irritação, que o ancião
havia falado em correto elfo.
— Silêncio! — sussurrou Durndrun.
O dragão havia virado a cabeça lentamente e os
estava observando, com os olhos entrecerrados.
— Você! — exclamou o dragão com uma voz que
sacudiu os alicerces da casa do barão.
O ancião estava tentando devolver certa forma ao
gorro a base de pancadas. Ao escutar o ensurdecedor
“Você!”, dirigiu para um lado e outro sua vista nublada e
finalmente distinguiu a enorme cabeça verde que se
elevava à altura das copas.
— Desgraçado! — exclamou o ancião. Com passo
inseguro, retrocedeu um pouco enquanto erguia um dedo
tremulo e acusador para o dragão. — Sapo monstruoso!
Você tentou me afogar!
— Sapo! — O dragão ergueu ainda mais a cabeça e
cravou as patas dianteiras no musgo, fazendo tremer o
chão. Aleatha caiu e gritou. Paithan e Durndrun
aproveitaram a distração do dragão para correr em ajuda
da moça. Paithan se agachou junto a ela, protegendo-a com
seus braços. O barão Durndrun cobriu os irmãos com a
arma levantada. Da casa chegou a seus ouvidos o lamento
das mulheres, convencidas de que aquilo era o fim.
O dragão baixou a cabeça e o vento agitou as folhas
das árvores. A maioria dos elfos se atirou ao chão; só um
punhado de valentes permaneceu firme. Durndrun disparou
um dardo. Com um grito de protesto, a seta se chocou
contra as escamas verdes, ricocheteou nelas, caiu no
musgo e escorreu sob a vegetação. O dragão não pareceu
percebê-la. Sua cabeça parou a poucos palmos do ancião e
exclamou:
— Você, imitação de feiticeiro! Tem muita razão ao
dizer que tentei afogá-lo! Mas agora mudei de idéia. Morrer
afogado seria bom demais para você, relíquia roída!
Quando estiver satisfeito de carne de elfo, começando com
este aperitivo loiro que tenho a minha frente, vou limpar os
ossos de todos eles...
— É mesmo? — replicou aos gritos o ancião. Ajustou o
gorro na cabeça, jogou o cajado ao chão e, de novo,
começou a arregaçar as mangas. — Veremos!
— Vou disparar agora, aproveitando que ele não está
olhando — cochichou Durndrun. — Paithan, você e Aleatha
corram quando eu...
— Não diga besteiras, Durndrun! Não podemos lutar
contra essa criatura! Espere para ver o que o humano
consegue. Diz ele que controla o dragão!
— Paithan! — Aleatha cravou as unhas no seu braço.
— Esse humano é um velho louco! Escute o barão!
— Silêncio!
A voz do ancião começou a elevar-se em um tom
vibrante e agudo. Com os olhos fechados agitou os dedos
em direção ao dragão e iniciou um canto, balançando-se
para frente e para trás ao ritmo das palavras.
O dragão abriu a boca; seus dentes perversamente
afiados brilharam na penumbra e sua língua se agitou entre
eles, num gesto ameaçador.
Aleatha fechou os olhos e ocultou o rosto no ombro
de Durndrun, deslocando a mola de suspensão, que lançou
um grito de protesto. O barão afastou a arma, passou o
braço em torno da mulher e abraçou-a com força.
— Paithan, você conhece a língua humana. O que ele
está dizendo?

Quando era jovem saí a procurar


o amor e as coisas que sonhava.
Empreendi a marcha sob o céu nublado
e com um gorro na cabeça.
Parti com grandes intenções
confiando na intervenção divina; mas nada
podia me preparar para as coisas
que finalmente aprendi.

A princípio procurei batalhas


desejando o estrépito das espadas,
mas nos conduziram como ganho
e jamais chegamos a presenciar um combate.
Estive no campo durante horas,
entre as lanças e as flores;
decidi que era tempo de partir
e escapuli em plena noite.

estive vagando sem rumo,


vi guerras, reis e cabanas,
conheci muitos homens atraentes
que ainda não beijaram uma garota.
Sim, percorri o mundo inteiro
vi homens bêbados e serenos
mas nunca vi ninguém que bebê tanto
como o nobre Bonnie.

Paithan soltou um suspiro e disse.


— Eu não... não tenho certeza. Suponho que deva
ser... magia. — Começou a procurar pelo chão algum ramo
de bom tamanho ou algo que pudesse utilizar como arma.
Não lhe parecia o melhor momento para explicar ao nobre
que o ancião estava tentando enfeitiçar o dragão servindo-
se de uma das canções de botequim mais populares da
Thillia.

Vivi em palácios reais


e um rei me levou a seus aposentos
para que aprendesse os usos cortesãos
e observasse o poder da nobreza.
Aceitei o oferecimento do bom rei,
mas lhe esvaziei o cofre
e com a bolsa carregada de ouro a transbordar
desapareci de sua vista.

Depois conheci uma dama


em um canto discreto e escuro,
eu era muito hábil com as palavras
e nos fez muito tarde conversando.
A mulher me ofereceu seu leito essa noite
mas a família me exigiu o matrimônio,
assim, com preço posto a minha cabeça,
fugi da casa com as primeiras luzes do alvorada.

estive vagando sem rumo,


vi guerras, reis e cabanas,
conheci a muitos homens atraentes
que ainda não beijaram uma garota.
Sim, percorri o mundo inteiro,
vi homens bêbados e serenos
mas nunca vi ninguém que bebê tanto
como o nobre Bonnie.

— Por Orn bendito! — exclamou Durndrun, ofegando.


— Está funcionando!
Paithan ergueu a cabeça e viu, assombrado. A cabeça
do dragão tinha começado a mover-se ao compasso da
música.
O ancião continuou cantando a história do nobre
Bonnie em incontáveis estrofes. Os elfos permaneceram
imóveis, temendo que o menor gesto pudesse romper o
feitiço. Aleatha e Durndrun se apertaram um pouco mais
um contra o outro. O dragão tinha as pálpebras semi-
fechadas e a voz do ancião ficou mais doce. A criatura
parecia quase adormecida quando, de repente, abriu os
olhos e ergueu de novo a cabeça.
Os elfos agarraram suas armas. Durndrun colocou
Aleatha atrás dele. Paithan empunhou um ramo.
— Céus, meu senhor! — Exclamou o dragão,
contemplando o velho. — Está totalmente ensopado! O que
aconteceu?
O humano pareceu envergonhado:
— Bem, eu...
— Tem que tirar imediatamente essas roupas
molhadas, senhor, ou pegará uma pneumonia mortal.
Necessita de um bom fogo e um banho quente.
— Já tive água suficiente com...
— Por favor, senhor. Eu sei o que é o melhor. — O
dragão virou a cabeça de um lado para outro. — Quem é o
dono desta bela mansão?
Durndrun dirigiu um breve olhar de interrogação a
Paithan.
— Responda! — sussurrou o jovem elfo.
— Bem... sou eu. — O nobre parecia desorientado,
como se estivesse em dúvida se havia alguma norma de
etiqueta que estabelecesse o modo adequado de
apresentar-se a um enorme réptil. Por fim, decidiu ser
conciso e ater-se à pergunta. — Sou... sou Durndrun. O
barão Durndrun.
Os olhos avermelhados do dragão se concentraram
no aristocrata balbuciante.
— Desculpe-me, senhor. Lamento interromper a festa,
mas conheço meus deveres e é imperioso que meu mago
receba atenção imediata. É um ancião frágil e...
— A quem está chamando de frágil, monstro
infestado de carrapatos...
— Suponho que meu mago será hospedado em sua
casa, não é, senhor?
— Hospedado? — Durndrun piscou, desconcertado. —
Hospedado? Mas o que...
— É obvio que o convida! — resmungou Paithan, em
tom colérico.
— Ah, claro! Entendi! — murmurou o barão. Fez uma
reverência ante o humano e acrescentou: — Será uma
grande honra para mim receber... hum... como ele se
chama? — murmurou para Paithan.
— Que me crucifiquem se eu souber! — replicou este.
— Descubra!
Paithan se aproximou furtivamente do ancião.
— Obrigado por nos resgatar...
— Ouviu do que me chamou? — Perguntou o humano.
— Frágil! Vou lhe ensinar quem é frágil! Vou...
— Senhor, por favor! O barão Durndrun, esse
cavalheiro, ficará encantado em convidá-lo para sua casa
se tiver a amabilidade de nos dizer seu nome...
— É impossível.
Desconcertado, Paithan perguntou:
— O que é impossível?
— É impossível aceitar o convite. Tenho outros
compromissos anteriores.
— Por que essa demora? — interveio o dragão.
Paithan dirigiu um olhar inquieto à criatura.
— Desculpe-me, ancião, mas não compreendo e...
veja, não queremos irritar o...
— Estou sendo esperado — declarou o ancião. — Sou
esperado em outro lugar. A casa de um colega. Prometi que
iria e um feiticeiro não quebra jamais sua palavra. Se o
fizer, acontecem coisas terríveis ao seu nariz.
— E poderia me dizer onde está sendo esperado?
Trata-se de seu dragão, sabe? Parece...
— Excessivamente solícito? Um mordomo de filme de
série B? Uma mãe judia? Exato — replicou o humano em
tom lúgubre. — Sempre fica assim quando está sob o
feitiço. Deixa-me louco. Eu o prefiro da outra maneira, mas
tem o irritante costume de comer as pessoas se não o
mantenho subjugado.
— Por favor, ancião! — exclamou Paithan,
desesperado, ao ver que os olhos do dragão começavam a
emitir um fulgor avermelhado. — Para onde pretende ir?
— Está bem, rapaz, está bem. Não se excite. Vocês,
jovens, sempre apressados. Por que não me perguntou isso
antes? Para a casa de Quindiniar. De um sujeito chamado
Lenthan Quindiniar. Ele me convidou — acrescentou o
ancião, com ar altivo. — “Se precisa um de sacerdote
humano.” Na verdade, eu não sou sacerdote. Sou um mago.
Todos os sacerdotes tinham saído para arrecadar recursos
quando a mensagem chegou...
— Pelas orelhas de Orn! — murmurou Paithan. Tinha a
estranha sensação de encontrar-se no meio de um sonho.
Se fosse assim, já era hora de Calandra lhe jogar um copo
de água na cara. Virou-se para Durndrun. — Eu... sinto
muito, barão, mas o... o cavalheiro já tem outro
compromisso. Se alojara na casa de... de meu pai.
Aleatha se pôs-se a rir e Durndrun lhe deu uns
tapinhas nervosos no ombro, pois percebeu um tom
histérico em sua gargalhada. A moça, entretanto, limitou-se
a jogar a cabeça para trás e continuou rindo, ainda mais
forte.
O dragão, aparentemente, considerou que a risada
era dirigida a ele e entrecerrou seus olhos, com ar
ameaçador.
— Thea! Basta! — Ordenou Paithan. — Controle-se!
Ainda estamos em perigo! Não confio em nenhum dos dois
e não sei qual deles está mais louco, se o dragão ou o
velho.
Aleatha enxugou as lágrimas que lhe tinham saltado
dos olhos.
— Pobre Calandra! — Murmurou com uma risada. —
Pobre Cal!
— Cavalheiro, peço que se lembre que meu mago
continua com essas roupas ensopadas — trovejou o dragão.
—. Pode pegar um resfriado e é muito propenso a adoecer
dos pulmões.
— Meus pulmões não tem problemas...
— Se me disser a direção da casa — continuou o
dragão, fazendo-se de mártir, — irei na frente para lhe
preparar um banho quente.
— Não! — Gritou Paithan. — Quer dizer... — Tentou
pensar em algo, mas seu cérebro já tinha problemas
suficientes para adaptar-se à situação. Desesperado, virou-
se para o humano. — Os Quindiniar vivem em uma colina
com vistas para a cidade. Imagine o efeito da presença de
um dragão, surgindo de repente entre nossa gente... Não
pretendo ser grosseiro, mas não poderia lhe dizer que...
— Que se meta em outra parte? — O ancião emitiu
um suspiro. — Talvez valha a pena tentar. Ei, Cyril!
— Senhor?
— Sou perfeitamente capaz de preparar meu próprio
banho. E não me resfrio nunca! Além disso, não pode sair
fazendo cambalhotas pela cidade dos elfos com esse
enorme corpo escamoso. Deixaria estes anjos gelados de
susto.
— Anjos, senhor? — O dragão inclinou ligeiramente a
cabeça e lançou um olhar enfurecido.
— Esqueça! — O ancião fez um gesto com uma de
suas mãos nodosas e ordenou à criatura: — Agora, vá para
outra parte até que eu o chame.
— Muito bem, senhor — respondeu o dragão em tom
sentido. — Se é isso o que quer, realmente.
— Sim, sim. Vamos, parta logo.
— Eu só quero cuidar de si e dos seus interesses,
senhor.
— Certamente. Eu sei.
— Significa muito para mim, senhor — acrescentou o
dragão. Depois, começou a mover seu corpo pesado mole
para a selva, mas fez uma pausa e voltou sua cabeça
gigantesca, olhando para Paithan. — Cuidará para que meu
mago fique calçado para andar por terrenos úmidos? —
Paithan assentiu, como se tivesse um pacote na língua. — E
de que se abrigue bem e enrole o lenço ao pescoço e leve o
gorro até as orelhas? E que tome seu remédio todo dia, ao
despertar? Meu mago sofre transtornos intestinais, sabe?
Paithan agarrou o ancião pelo braço, ele tinha
começado de novo a soltar maldições e parecia a ponto de
lançar-se contra o dragão.
— Minha família e eu cuidaremos dele, Cyril —
conseguiu dizer por fim. — Afinal, é nosso convidado de
honra.
Aleatha tinha afundado o rosto em um lenço. Era
difícil perceber se estava rindo ou chorando.
— Obrigado, senhor — assentiu o dragão, com gesto
solene. — Deixo o mago em suas mãos. Cuide dele como é
devido; do contrário, não gostará das conseqüências.
As enormes garras dianteiras do dragão escavaram o
musgo, jogando pedaços para o alto, e a criatura
desapareceu lentamente no buraco que ia criando. Os elfos
escutaram, vindo de muito abaixo, o rangido de enormes
ramos ao partirem-se e, finalmente, um golpe surdo. O
tremor continuou por alguns momentos e, por fim, tudo
ficou quieto e silencioso. Depois, as aves voltaram a emitir
seus primeiros gorjeios, hesitantes.
— Estamos a salvo, se permanecer ali embaixo? —
perguntou Paithan ao humano com voz nervosa. — Não é
provável que se liberte do feitiço e cause problemas, não é?
— Não, não. Não se preocupe com isso, rapaz Sou um
feiticeiro poderoso. Muito poderoso! Eu até sabia um feitiço
que...
— De verdade? Que interessante! E agora, se quiser
me acompanhar...
Paithan conduziu o ancião para o abrigo dos
escorregadores. O jovem elfo considerou preferível
abandonar aquele lugar o mais rápido possível. Além disso,
era provável que a festa terminasse. Embora reconhecesse
que tinha sido uma das melhores de Durndrun. Sem dúvida,
falariam dela durante o resto da temporada de atividades
sociais.
O barão se aproximou de novo de Aleatha, que
enxugava as lágrimas com o lenço, e lhe ofereceu o braço.
— Posso acompanhá-la até o escorregador?
— Como quiser, barão — respondeu Aleatha,
apoiando a mão em seu braço enquanto um belo rubor
cobria suas bochechas.
— Quando seria um bom momento para uma visita?
— perguntou Durndrun em um sussurro.
— Uma visita, barão?
— A seu pai — respondeu ele em tom muito sério. —
Tenho que lhe pedir uma coisa. — Pousou a mão sobre as
dela e a atraiu para si. — Algo que diz respeito a sua filha.
Aleatha olhou para a casa pela extremidade do olho.
A mãe de Durndrun estava em uma janela, observando-os.
A velha matrona parecia mais alarmada que ante a
presença do dragão. Aleatha baixou os olhos e lançou um
tímido sorriso.
— Quando quiser, barão. Meu pai está sempre em
casa e se sentirá muito honrado em recebê-lo.
Paithan ajudou o ancião a introduzir-se no
escorregador.
— Desculpe, mas ainda não sei seu nome, senhor —
comentou enquanto se sentava ao lado do feiticeiro.
— Ah, não? — respondeu este com ar alarmado.
— Não, senhor. O senhor ainda não me disse.
— Coisa ruim... — O feiticeiro coçou a barba. —
Esperava que soubesse. Tem certeza que não?
— Claro, senhor. — Paithan virou a cabeça, inquieto,
desejando que sua irmã se apressasse. Entretanto, Aleatha
e o barão Durndrun demoravam a chegar.
— Hum... Bem, vejamos... — murmurou o ancião para
si mesmo. — Fiz... Não, esse não posso usar. reclamariam
contra mim. “Bola de cabelo”. Não; não soa digno o
bastante. Já sei! — Exclamou, dando uma cotovelada em
Paithan. — Zifnab!
— Saúde!
— Não, não! Esse é meu nome: Zifnab. O que
aconteceu, filho? — O ancião lhe dirigiu um olhar raivoso,
com as sobrancelhas arrepiadas. — Não é um bom nome?
— Sim... sim, claro que sim. É um... hum... um nome
muito bonito. Realmente... bonito. Ah, aqui está, Aleatha!
— Obrigado, barão — disse ela, deixando que
Durndrun a ajudasse a subir na carruagem. Sentou-se atrás
de Paithan e do ancião e dirigiu um sorriso ao seu
admirador.
— Eu os acompanharia até sua casa, meus amigos,
mas creio que terei que procurar os escravos. Parece que
esses covardes fugiram tão logo viram o dragão. Que bons
sonhos iluminem sua hora escura. Meus respeitos a seu pai
e a sua irmã.
O barão Durndrun despertou os operários, açulando-
os pessoalmente, e deu com suas próprias mãos o
empurrão que pôs em marcha o veículo. Aleatha voltou a
cabeça e o viu ali plantado, contemplando-a com olhos
encantados. A moça se acomodou no escorregador e alisou
as dobras de seu vestido.
— Parece que as coisas lhe saíram bem, Thea —
comentou Paithan com um sorriso, virando-se no assento e
dando um golpezinho afetuoso nas suas costelas. Aleatha
levantou a mão para arrumar o penteado, que tinha se
desordenado.
— Ah! Esqueci o chapéu. Enfim, acho que Durndrun
me comprará outro novo!
— Quando será o casamento?
— O quanto antes...
Um ronco interrompeu suas palavras. A moça apertou
os lábios e dirigiu um olhar de desagrado ao ancião, que
tinha adormecido profundamente com a cabeça apoiada no
ombro de Paithan.
— Antes de que a matrona da casa tenha tempo de
tirar isso da cabeça do filho, não? — O elfo piscou. Aleatha
franziu a testa.
— Sem dúvida tentará, mas não conseguirá nada.
Meu casamento será...
— Casamento? — Zifnab despertou com um salto. —
Casamento, você disse? Oh, não, querida. Temo que não vai
ser possível. Não há tempo, sabe?
— Como não, vidente? — replicou Aleatha com um
tom zombeteiro. — Por que não haveria tempo para o
casamento?
— Porque, meus filhos — proclamou o feiticeiro, e sua
voz mudou de repente, ficando sombria e carregada de
tristeza, — vim a anunciar o fim do mundo.
CAPÍTULO 7

NAS COPAS DAS ÁRVORES,


EQUILAN

— Morte! — Exclamou o ancião, sacudindo a cabeça.


— Morte, ruína e..., e... Como era mesmo? Não consigo me
lembrar...
— Destruição? — disse Paithan.
Zifnab lhe dirigiu um olhar de agradecimento.
— Sim, isso. Ruína e destruição. Espantoso!
Espantoso! — O humano agarrou Lenthan Quindiniar pelo
braço. — E você, senhor, será quem conduzirá seu povo em
frente!
— Eu...? — replicou Lenthan, e lançou um nervoso
olhar para Calandra, convencido de que sua filha não
permitiria isso. — E para onde tenho que conduzi-los?
— Em frente! — Insistiu Zifnab, contemplando um
frango assado, com olhos famintos. — Incomoda-se... Só um
pedaço. Revolver tanta coisas com os mistérios da magia
desperta o apetite, sabe?
Calandra bufou, mas não disse nada. Paithan piscou
para sua irmã irada e lhe disse:
— Vamos, Cal. Este humano é nosso hóspede de
honra. Tome feiticeiro, sirva-se. Quer algo mais? Alguns
tohahs?
— Não, obrigado...
— Sim! — interveio uma voz que soou como o rumor
de um trovão deslizando pelo chão. Os outros presentes à
mesa pareceram se alarmar. Zifnab se encolheu em seu
assento. — Tem que comer verduras, meu senhor. — A voz
parecia surgir do chão. — Pense em seu intestino!
Da cozinha chegou até seus ouvidos um grito,
seguido de um lamento desconsolado.
— É a faxineira. Já voltou com sua histeria — disse
Paithan. Deixou o guardanapo a um lado e ficou em pé.
Queria escapar dali antes de que sua irmã descobrisse o
que estava acontecendo. — Só vou...
— Quem disse isso? — Calandra o agarrou pelo braço.
— ... olhar, se me soltar...
— Não se excite tanto, Cal — interveio Aleatha com
sua habitual frouxidão. — Foi só um trovão.
— Meu intestino não é de sua maldita conta! —
Exclamou o ancião, dirigindo suas palavras para o chão. —
Eu não gosto da verdura...
— Se foi só um trovão — a voz de Calandra estava
carregada de ironia, — este desgraçado está falando de
seus intestinos com seus próprios sapatos. Está louco.
Paithan, leve-o daqui.
Lenthan dirigiu um olhar de súplica a seu filho.
Paithan olhou de esguelha para Aleatha, que deu de ombros
e moveu a cabeça. O jovem elfo voltou a agarrar o
guardanapo e se afundou de novo em seu assento.
— Não está louco, Cal. Está falando com... com seu
dragão. E não podemos levá-lo porque o dragão não ficaria
nada satisfeito.
— Seu dragão.
Calandra apertou os lábios e cerrou seus olhos. Toda a
família, assim como o astrólogo hospedado na casa, que
ocupava o outro extremo da mesa, conhecia aquela
expressão. Seus irmãos a denominavam em privado “a cara
de limão”. Quando estava naquele humor, Calandra podia
ser terrível.
Paithan manteve a vista no prato, amontoando um
pouco de comida com o garfo e abrindo um buraco no
centro. Aleatha contemplou sua própria imagem na
superfície do bule de porcelana e inclinou um pouco a
cabeça, admirando o reflexo do sol em seus cabelos.
Lenthan tentou desaparecer ocultando a cabeça atrás de
um vaso de flores. O astrólogo se consolou com uma
terceira ração de tohahs.
— É essa besta que aterrorizou a casa do barão
Durndrun? — O olhar de Calandra varreu a mesa. —
Querem dizer que o trouxeram para cá? Para minha casa?
O tom gelado de sua voz parecia rodear de branco
seu rosto, assim como o gelo mágico rodeava os copos de
vinho cristalizados. Paithan deu um ligeiro chute em sua
irmã menor por debaixo da mesa e procurou seu olhar.
— Não demorarei em partir outra vez. Volto para
minhas viagens — murmurou o moço para si mesmo.
— E eu logo serei proprietária de minha própria casa
— replicou Aleatha, sem elevar mais a voz.
— Parem de cochichar. Vamos todos terminar
assassinados em nosso próprio leito — exclamou Calandra,
cada vez mais furiosa. Quanto mais ardente era sua fúria,
mais fria soava sua voz. — Suponho que ficará satisfeito
então, Paithan! E você, Aleatha, ouvi falar dessa tolice de se
casar...
Deliberadamente, Calandra deixou a frase sem
acabar. A justaposição das duas idéias mencionadas sem
tempo de respirar — o casamento e serem assassinados em
suas próprias camas — deixava poucas dúvidas em relação
ao que pretendia dizer.
Ninguém se moveu, salvo o astrólogo (que meteu na
boca um tohah com manteiga) e o ancião. Sem a menor
idéia, aparentemente, de que era o pomo da discórdia, o
humano estava partindo para os quartos de um frango
assado. Ninguém disse uma palavra. No silêncio, com toda
nitidez, escutou-se o tinido musical de uma pétala
mecânica “abrindo” a hora.
O silêncio ficou incômodo. Paithan viu seu pai afundar
no assento com ar abatido e pensou de novo em como
parecia fraco e cinza. O pobre velho não tinha outra coisa
além de seus projetos absurdos. Por ele, podia continuá-los,
afinal, que mal havia nisso? Decidiu arriscar-se a receber a
cólera de sua irmã.
— Bem... Zifnab, para onde dizia que meu pai vai
conduzir... nosso povo?
Calandra o fulminou com o olhar mas, como Paithan
tinha previsto, seu pai se reanimou para ouvi-lo.
— Sim, isso. Onde? — perguntou Lenthan com
acanhamento, ruborizando.
O humano levantou uma pata do frango, apontando
para cima.
— Para o teto? — perguntou Lenthan, um pouco
desconcertado. O ancião levantou ainda mais a pata de
frango.
— Para os céus? Para as estrelas?
Zifnab assentiu, incapaz de falar por alguns instantes.
Pedaços de frango lhe escorregavam pela barba.
— Meus foguetes! Eu sabia! Ouviu isso, Elixnoir? —
Lenthan se voltou para o astrólogo elfo, que tinha parado
de comer e observava o humano com ar desconfiado.
— Meu querido Lenthan, faça o favor de considerar
isto de maneira racional. Seus foguetes são maravilhosos e
estamos fazendo consideráveis progressos ao mandá-los
acima das copas das árvores, mas disso a falar que levem
alguém às estrelas... Deixe que explique. Aqui temos uma
representação de nosso mundo segundo as lendas que nos
legaram nossos antepassados e que nossas próprias
observações confirmaram. Passe-me esse figo. — Sustentou
o fruto no alto e continuou: — Pois bem, isto é Pryan e este
é nosso sol.
Elixnoir olhou de um lado e outro, sentindo falta
imediatamente de outro sol.
— Um sol — disse Paithan, cortando uma tangerina.
— Obrigado — replicou o astrólogo. — Se importa...
Faltam-me mãos.
— Certamente. — Paithan estava se divertindo
imensamente. Não se atreveu a olhar para Aleatha pois, se
o fizesse, com certeza cairia na gargalhada. Seguindo as
instruções de Elixnoir, colocou com gesto sério a tangerina
a curta distância do figo.
— E agora... — O astrólogo levantou um torrão de
açúcar e, sustentando-o a grande distancia da tangerina, o
fez girar em torno do figo, — isto representa uma das
estrelas. Note quão longínqua está de nosso mundo! Pode
imaginar que enorme distancia teria que percorrer...
— Ao menos sete tangerinas — murmurou Paithan
para sua irmã.
— Bem que acreditava em nosso pai quando isso
significava comer grátis — assentiu Aleatha com voz fria.
— Lenthan! — O astrólogo apontou para Zifnab com
ar severo e declarou: — Esse humano é um charlatão! Eu...
— A quem está chamando de charlatão?
A voz do dragão estremeceu a casa. O vinho se
derramou dos copos, manchando a toalha. Os adornos das
mesinhas auxiliares, pequenos e frágeis, caíram ao chão.
Do estúdio chegou o ruído de uma estante ao cair. Aleatha
olhou por uma janela e viu uma moça saindo da cozinha
aos gritos.
— Acredito que não terá que preocupar-se mais com a
criada, Cal.
— Isto é intolerável!
Calandra ficou em pé. A geada que cobria seu nariz
se estendeu ao resto de seu rosto, congelando as feições e
gelando, ao mesmo tempo, o sangue dos que a
observavam. Seu corpo magro, seco, parecia um armação
de peças angulosas cujos agudos vértices podiam ferir
quem se aproximasse. Lenthan se encolheu visivelmente.
Paithan, com uma careta nos lábios, concentrou-se em
dobrar o guardanapo até formar com ele um chapéu de três
bicos. Aleatha suspirou e tamborilou na mesa com suas
longas unhas.
— Pai — disse Calandra com voz terrível, — quando
terminarmos de jantar, quero que esse velho e seu... seu...
— Cuidado com o que diz, Cal — disse Paithan sem
erguer a vista. — Não vá provocar o dragão ou ele nos
destrói a casa.
— Quero que saiam de minha casa! — As mãos de
Calandra se fecharam em torno do respaldo da cadeira,
com os nódulos brancos. Seu corpo estremeceu sob o vento
frio de sua ira, o único vento gelado que soprava naquela
terra tropical. Logo, sua voz se elevou em um grito: — Você
me ouviu, humano?
— Hein? — Zifnab olhou ao seu redor. Ao ver sua
anfitriã, sorriu e sacudiu a cabeça. — Não, obrigado,
querida. Não poderia comer mais um pedaço. O que tem
que sobremesa?
Paithan soltou meio riso e sufocou a outra metade
atrás do guardanapo. Calandra se virou e saiu da sala
furiosa, com as saias rangendo em torno de seus
tornozelos.
— Vamos, Cal — chamou Paithan com voz
conciliadora. — Sinto muito, não queria rir...
Ouviu-se uma portada.
— Na realidade, Lenthan — disse Zifnab, fazendo um
gesto com o osso de frango, que tinha deixado limpo, —
não vamos utilizar os foguetes. Não são grandes o
bastante. Teremos que transportar muita gente, entende? E
para isso será necessário uma nave grande. Muito grande.
— deu umas pancadinhas no nariz com o osso, em atitude
pensativa, e acrescentou: — E, como diz esse sujeito do
pescoço duro, as estrelas estão muito longe.
— Se me desculpar, Lenthan — interveio o astrólogo
elfo, enquanto ficava em pé, lançando fogo pelos olhos, —
eu também vou me retirar.
— ... sobretudo agora que parece que não haverá
sobremesa — disse Aleatha em voz alta o bastante para
assegurar-se de que o astrólogo a ouviria. Assim foi; as
pontas do pescoço da capa vibraram visivelmente e seu
nariz adquiriu um ângulo que parecia impossível.
— Mas não se preocupe — continuou Zifnab
placidamente, sem fazer o menor caso da comoção que se
levantou em torno dele. — Teremos uma nave, um veículo
grande. Aterrissará precisamente no jardim dos fundos e
terá um homem no comando. Um homem jovem. Com um
cão. Muito calado; o homem, não o cão... E com algo
estranho nas mãos, pois sempre as mantém enfaixadas. Por
isso temos que continuar lançando esses seus foguetes,
compreende? São muito importantes, esses foguetes.
— Sério? — Lenthan continuava desconcertado.
— Vou embora! — exclamou o astrólogo.
— Promessas, promessas... — Paithan suspirou e
tomou um gole de vinho.
— Sim, claro que são importantes. Sem eles, como
ele iria nos encontrar? — acrescentou o ancião.
— Quem? — quis saber Paithan.
— O homem nessa nave. Preste atenção! — replicou
Zifnab, com irritação.
— Ah! Esse! — Paithan se inclinou para sua irmã e
murmurou, em tom confidencial: — O dono do cão.
— Veja, Lenthan... Posso chamá-lo pelo nome? —
perguntou o ancião educadamente. — Pois bem, Lenthan,
necessitamos de uma nave grande porque sua esposa
desejará voltar a ver todos os seus filhos juntos. Passou
muito tempo, sabe? E cresceram muito.
— O que? — Lenthan empalideceu e o olhou com os
olhos ondulando de ira. Levou uma mão tremula ao coração
e acrescentou: — O que você disse? Minha esposa?
— Blasfêmia! — exclamou o astrólogo.
O leve zumbido dos ventiladores e o suave murmúrio
das pás emplumadas eram os únicos sons da sala. Paithan
tinha deixado o guardanapo na bandeja e a contemplava,
carrancudo.
— Pela primeira vez, concordo com esse estúpido.
Aleatha se levantou e se deslocou até ficar atrás do
assento de seu pai, sobre cujos ombros pousou as mãos.
— Pai — murmurou, com uma ternura na voz que
ninguém mais da família tinha ouvido — foi um dia
exaustivo. Não acha que deveria deitar-se?
— Não, querida. Não estou cansado. — Lenthan não
tinha afastado os olhos do ancião. — Por favor, o que dizia
de minha esposa?
Zifnab não deu amostras de ouvi-lo. Durante o
silêncio anterior, o ancião tinha abaixado a cabeça para
frente até apoiar a barba no peito e tinha fechado os olhos.
Sua única resposta foi um ronco baixo. Lenthan estendeu a
mão para ele.
— Zifnab...
— Pai, por favor! — Aleatha segurou suavemente a
mão de Lenthan, enegrecida e cheia de cicatrizes de
queimaduras. — Nosso convidado está exausto. Paithan,
chame os criados para que levem o feiticeiro aos seus
aposentos.
Os irmãos trocaram um olhar. Os dois tinha tido a
mesma idéia.
“Com um pouco de sorte, poderíamos tirá-lo de casa
às escondidas nesta noite. Poderíamos jogá-lo ao seu
próprio dragão para que o devorasse. Depois, pela manhã,
não seria difícil convencer nosso pai de que era apenas um
velho humano louco.”
— Zifnab! — repetiu Lenthan, sacudindo a mão de
sua filha e agarrando a do feiticeiro. O velho despertou
bruscamente.
— Quem...? — perguntou, olhando a seu redor com
olhos nublados. — Onde...?
— Pai!
— Silêncio, minha pequena. Agora, deixe-nos filha e
vá brincar por aí. Papai está ocupado. E, senhor, estava
dizendo algo a respeito de minha esposa...
Aleatha olhou para Paithan com ar suplicante. Seu
irmão não pôde fazer outra coisa além de encolher os
ombros. Mordendo os lábios e reprimindo as lágrimas,
Aleatha deu uns tapinhas no ombro de seu pai e saiu
correndo da sala. Uma vez fora da vista dos comensais,
levou a mão à boca e rompeu em soluços...

... A menina estava em frente a porta da quarto de


sua mãe. A garotinha estava sozinha; estava assim a três
dias e cada vez se sentia mais assustada. Tinham enviado
Paithan para a casa de alguns parentes.
— O menino é muito agitado — tinha ouvido alguém
dizer. — A casa tem que estar tranqüila.
Assim, não tinha ninguém com quem falar, ninguém
que lhe desse atenção. Queria ver sua mãe — a sua bela
mãe, que brincava e cantava para ela, — mas não a
deixavam entrar no quarto. A casa estava cheia de gente
estranha, curandeiros com suas cestas de plantas com
aromas estranhos e astrólogos que observavam o céu pelas
janelas.
A casa estava silenciosa, terrivelmente silenciosa. Os
criados choravam enquanto realizavam suas tarefas,
enxugando as lágrimas com o avental. Uma das faxineiras,
ao ver Aleatha sentada no corredor, disse que alguém
deveria cuidar da pequena, mas ninguém o fez.
Cada vez que abria a porta do quarto da mãe, Aleatha
se levantava de um salto e tentava entrar, mas o adulto
que saia — quase sempre um curador ou seu ajudante — a
impedia.
— Mas eu quero ver a mamãe!
— Sua mãe está doente. Precisa de muita
tranqüilidade. Não quer incomodá-la, não é querida?
— Não a incomodaria. — Aleatha estava certa disso.
Podia ficar calada e quieta. Estava assim a três dias. Quem
penteava os seus belos cabelos? Aquele era um trabalho
reservado a Aleatha, que a menina realizava todas as
manhãs com cuidado para não puxar os nós,
desembaraçando-os delicadamente com o pente de
tartaruga marinha e incrustações de marfim que tinha sido
um presente de casamento de sua mãe.
Entretanto, a porta permanecia fechada, com a
tranca passada, e Aleatha não conseguia entrar. Até que
uma noite, a porta se abriu e não voltou a ser fechada.
Aleatha compreendeu que já podia entrar, se quisesse, mas
de repente teve medo.
— Papai? — perguntou ao homem que estava junto à
porta, sem reconhecê-lo.
Lenthan não olhou para ela. Seus olhos não viam
nada. Tinha o olhar perdido, as bochechas fundas, o passo
vacilante. De repente, com um violento soluço, caiu ao chão
e ali ficou, imóvel. Os curandeiros acudiram correndo,
levantaram-no e o levaram pelo corredor até seu quarto.
Aleatha se afastou de seu caminho, apertando-se
contra a parede.
— Mamãe! — gemeu depois. — Quero a minha mãe!
Calandra saiu ao passadiço. Foi primeira a perceber a
presença da pequena.
— Mamãe se foi, Thea — murmurou. Estava muito
pálida, mas tranqüila. Em seus olhos não havia lágrimas. —
Estamos sozinhas...
Sozinha. Sozinha... Não, outra vez, não. Nunca mais.

Aleatha olhou em torno do quarto vazio em que


estava e voltou para a cozinha. Não havia ninguém.
— Paithan! — exclamou, correndo escada acima. —
Calandra!
Viu luz por baixo da porta do estúdio de sua irmã e
apressou o passo para ela. A porta se abriu e apareceu
Paithan. Seu rosto, quase sempre alegre, tinha uma
expressão sombria. Ao ver Aleatha, deu-lhe um triste
sorriso.
— Eu... estava procurando você, Pait. — Aleatha se
sentiu mais tranqüila. levou as mãos geladas às bochechas,
que ardiam, para devolver a estas a palidez que tanto
realçava sua beleza.
— É um momento ruim?
— Sim, bastante ruim. — Paithan sorriu.
— Vamos dar um passeio pelo jardim.
— Sinto muito, Thea, mas tenho que preparar a
bagagem. Calandra me obrigou a partir amanhã.
— Amanhã! — Aleatha franziu o cenho, irritada. —
Não pode fazer isso! Durndrun deve vir falar com papai e
depois celebraremos a festa de compromisso e você não
pode faltar...
— Sinto muito, Thea, mas não posso fazer nada. —
Paithan se inclinou para frente e a beijou na bochecha. —
Negócios são negócios, você sabe. — Pôs-se a andar de
novo pelo corredor, encaminhando-se ao seu quarto. De
repente se virou, moveu a cabeça em direção à porta do
estúdio de Calandra e acrescentou: — Ah! Um conselho:
não entre aí agora.
Aleatha retirou lentamente a mão do trinco. Ocultos
atrás das dobras sedosas da túnica, seus dedos se
fecharam com força.
— Tenha uma doce hora sombria, Thea — desejou seu
irmão, antes de penetrar em seu quarto e fechar a porta.
Uma explosão, procedente da parte de trás da casa,
fez vibrar as janelas. Aleatha apareceu em uma delas e viu
seu pai e ao ancião humano no jardim, disparando foguetes
alegremente. Atrás da porta do estúdio lhe chegou o suave
ruído das saias de Calandra, o som de seus sapatos de salto
alto. Sua irmã estava perambulando de um extremo ao
outro do quarto. Mau sinal. Como Paithan havia dito, não
era bom momento para interromper os pensamentos de sua
irmã.
Da janela, Aleatha viu o escravo humano, que
vadiava em seu posto junto ao abrigo dos escorregadores
contemplando a explosão dos foguetes. Sob o olhar da
moça, o escravo estirou os braços por cima da cabeça com
um bocejo. Os músculos ficaram marcados em suas costas
nuas. O humano assobiava, um feio costume daqueles
bárbaros. Faltando tão pouco para a hora sombria, ninguém
ia utilizar os escorregadores e muito em breve, quando
começasse a tormenta, daria por encerrado seu turno.
Aleatha correu pelo corredor até seu quarto. Ao
entrar, parou em frente ao espelho para dar uns retoques
em seu cabelo exuberante. Jogou um xale sobre os ombros
e, recuperando o sorriso, desceu a escada com passo
ligeiro.

Paithan viajou muito cedo, partiu sozinho, com a


intenção de unir-se à caravana da comerciantes nos
subúrbios de Equilan. Calandra levantou cedo para
despedir-se. Com os braços cruzados energicamente sobre
o peito, olhou-o com uma expressão severa, fria e distante.
Seu mau humor não tinha melhorado durante a noite. Os
dois estavam sozinhos. Se Aleatha estava acordada àquela
hora do dia, era só porque ainda não se deitara.
— Bem, Paithan, tome cuidado. Vigie os escravos
quando cruzar a fronteira. Você sabe que esses animais
tentarão fugir no momento em que sentirem a presença de
seus semelhantes. Suponho que perderemos alguns, mas é
inevitável. Tente reduzir ao mínimo nossas perdas: siga as
rotas mais afastadas e evite, se puder, as terras civilizadas.
É menos provável que escapem se não tiverem uma cidade
nas proximidades.
— Farei isso, Calandra.
Paithan, que já tinha realizado muitas viagens a
Thillia, sabia muito mais do assunto que sua irmã. Cal fazia
o mesmo discurso toda vez que partia, o que se
transformou em um ritual entre ambos. O rapaz escutou,
sorriu e assentiu placidamente, sabendo que dar aquelas
instruções tranqüilizava sua irmã e a fazia sentir que
conservava o controle sobre aquela parte do negócio.
— Vigie especialmente esse tal Roland. Não confio
nele.
— Você não confia em nenhum humano, Cal.
— Ao menos, de nossos outros clientes sabia com
certeza que eram desonestos, sabia que trapaças tentariam
para nos extorquir. Desse Roland e sua esposa não conheço
nada. Teria preferido fazer negócios com nossos clientes
costumeiros, mas este casal fez a melhor oferta. Receba o
pagamento antes de entregar uma só folha e tenha certeza
de que o dinheiro é verdadeiro, e não uma falsificação.
— Farei isso, Cal. — Paithan relaxou e se apoiou em
um poste da grade. O discurso ia se prolongar um pouco
mais. Poderia ter dito a sua irmã que, em sua maior parte,
os humanos eram honrados até a estupidez, mas sabia que
Cal não acreditaria nele.
— Transforme o dinheiro em matérias primas o
quanto antes. Leve a lista do que necessitamos; não a
perca. E assegure-se de que a madeira para as espadas é
de boa qualidade, e não como essa que Quintin trouxe da
última vez. Tivemos que jogar mais da metade fora.
— Alguma vez eu trouxe um carregamento ruim, Cal?
— replicou Paithan com um sorriso.
— Não, e é melhor que não comece a fazer isso
agora. — Calandra achou que algumas mechas de cabelo
escapavam do coque e voltou a esmagá-los afundando
energicamente a forquilha para prendê-los. — Hoje em dia,
tudo está ruim. Se era pouco ter que cuidar de nosso pai,
agora você acrescentou um velho humano louco! Isso para
não falar de Aleatha e essa paródia de casamento...
Paithan pousou os dedos sobre o ombro ossudo da
irmã.
— Deixa Thea fazer o que quiser, Cal. Durndrun é um
rapaz bastante agradável. Ao menos, não vem atrás dela
pelo dinheiro...
— Hum! — soprou Calandra, afastando-se do contato
do irmão.
— Deixe que ela se case com o barão, Cal...
— Deixar! — Exclamou Calandra. — Minha opinião
vale muito pouco nesse assunto, pode estar certo! Claro,
para você é muito fácil ficar aí plantado com esse sorriso.
Não estará aqui para enfrentar o escândalo... e nosso pai, é
claro, é mais que inútil.
— O que é isso, querida? — disse uma voz suave a
suas costas. Lenthan Quindiniar tinha aparecido na porta,
acompanhado do ancião.
— Dizia que você não servirá para tirar da cabeça de
Aleatha essa idéia louca de... de casar-se com o barão
Durndrun — replicou Calandra, sem humor para agradar
seu pai.
— E por que não podem se casar? — Disse o pai. —
Se eles se querem...
— Querer alguém? Thea? — Paithan soltou uma
gargalhada. Ao perceber a expressão desconcertada de seu
pai e o gesto carrancudo de sua irmã, o rapaz decidiu que
era hora de se colocar em marcha. — Preciso me apressar.
Quintin pensará que cai pelo musgo ou que algum dragão
me comeu. — O elfo se inclinou e beijou a irmã na
bochecha. — Você permitirá que Thea leve o assunto a sua
maneira, não é?
— Não creio que tenha muitas opções. Desde que
nossa mãe morreu, ela sempre fez o que quis. Lembre-se do
que lhe disse e tenha boa viagem.
Calandra se aproximou e o beijou no queixo. O beijo
foi quase tão brusco como a bicada de um ave e o jovem
elfo teve que se conter para não levar a mão à zona e
esfregá-la energicamente.
— Adeus, pai. — Paithan lhe apertou a mão e
acrescentou: — Boa sorte com os foguetes.
Lenthan lhe dirigiu um sorriso radiante.
— Viu os de ontem à noite? Elevaram-se como
centelhas brilhantes sobre as copas das árvores. Consegui
uma boa altura. Com certeza o brilho pode ser visto na
Thillia.
— Estou certo disso, pai. — virou-se para o ancião
humano. — Zifnab...
— Onde... — O feiticeiro se virou para um lado e para
outro. Paithan pigarreou e manteve o rosto imperturbável.
— Não, não, ancião. Falei com você. O nome. — O
moço estendeu a mão para ele. — Lembra-se? Zifnab...
— Ah! Prazer em conhecê-lo, Zifnab — replicou o
ancião, apertando-lhe a mão. — Sabe de uma coisa? Esse
nome me soa bastante familiar. Somos parentes?
Calandra lhe fez um gesto com a mão.
— É melhor que você vá agora, Pait.
— Despeça-se de Thea por mim — disse Paithan.
Sua irmã soltou um suspiro e sacudiu a cabeça com
um gesto sombrio.
— Tenha boa viagem, filho — disse Lenthan em tom
nostálgico. — Sabe? Às vezes acho que eu deveria viajar
também. Acho que me faria muito bem...
Ao perceber o olhar sombrio de Calandra, Paithan se
apressou a interrompê-lo.
— Deixe as viagens por minha conta, pai. Você tem
que ficar aqui e trabalhar nos foguetes para salvar nosso
povo e todo o resto.
— Sim, tem razão — disse Lenthan com ar de
importância. — Já está na hora de voltar ao trabalho. Você
vem, Zifnab?
— O que? Ah! Falava comigo? Sim, sim, meu querido
colega. Vou em um minuto. Talvez deva aumentar a
quantidade de cinza de madeira de zinco. Acredito que
assim conseguiremos mais potência na subida.
— Sim, claro. Como não pensei nisso antes! —
Lenthan exibiu um sorriso radiante, fez um vago gesto de
despedida com a mão para seu filho e entrou correndo na
casa.
— É provável que fiquemos sem sobrancelhas —
murmurou o humano, — mas conseguiremos maior altura.
Bom, parece que você vai partir, não?
— Sim, ancião. — Paithan sorriu e, com um cochicho
confidencial, acrescentou: — Não permita que toda essa
morte e destruição se inicie em minha ausência.
— Não se preocupe. — O ancião olhou-o com olhos
que, de repente, tornaram-se desconcertantemente
ardilosos e maliciosos. Afundando um de seus dedos
nodosos no peito do moço, murmurou: — A morte e a
destruição chegarão com você!

CAPÍTULO 8

O ELO

Haplo andou lentamente em torno da nave,


inspecionando-a atentamente para certificar-se de que tudo
estava pronto para o vôo. Ao contrário dos construtores e
primeiros donos da nave dragão, não inspecionava os cabos
guia e os arranjos que controlavam as asas gigantescas.
Seu olhar atento percorria o casco de madeira, mas não
revisava o calafetado. Quando suas mãos percorreram as
asas, não procuravam rasgos ou rupturas. O que estudava
com tanta atenção eram os estranhos e complicados signos
que tinham sido esculpidos, bordados, pintados e gravados
a fogo nas asas e no exterior da nave.
Até o último canto estava coberto de fantásticos
desenhos: espirais e elipses, linhas retas e curvas, pontos e
riscos, círculos, quadrados e traços em ziguezague. O
patryn murmurou as runas, passando a mão sobre os signos
mágicos. Os encantamentos não só protegeriam a nave,
mas também a fariam voar.
Os elfos que tinham construído a nave — denominada
Asa de Dragão em honra à viagem do Haplo ao mundo de
Ariano — não teriam reconhecido aquele produto como seu.
A nave de Haplo, que se apropriara durante sua estadia
naquele mundo, fora destruida em sua entrada na Porta da
Morte devido à perseguição de um antigo inimigo, viu-se
obrigado a abandonar Ariano rapidamente e só tinha
recorrido às runas indispensáveis para sua própria
sobrevivência (e a de seu jovem passageiro) através da
Porta da Morte. Entretanto, uma vez no Elo, o patryn pudera
dedicar tempo e magia para modificar a nave e adequá-la a
suas próprias necessidades.
A embarcação voadora, desenhada pelos elfos do
império de Tribos, tinha utilizado à princípio a magia élfica,
combinada com a mecânica. O patryn, que a tinha dotado
de uma força extraordinária graças a sua magia,
desembaraçou-se por completo dos elementos mecânicos.
Haplo limpou a galera da confusão de arneses e arranjos
que os escravos usavam para mover as asas, fixou estas
em posição totalmente aberta, bordou e pintou runas na
pele de dragão para lhe proporcionar força ascensional,
estabilidade, velocidade e proteção. As runas reforçaram o
casco de madeira de tal modo que não existia força capaz
de quebrá-lo ou lhe abrir uma brecha. Os signos mágicos
gravados nos cristais das clarabóias da ponte impediam
que estes se rompessem e, ao mesmo tempo, permitiam
uma visão sem obstáculos do que havia do outro lado.
Haplo penetrou pela escotilha de popa e percorreu os
passadiços da nave até a ponte. Ao entrar, olhou ao sua
redor com satisfação, notando como o poder de todas as
runas convergiam ali, concentrando-se naquele ponto.
Também ali tinha eliminado todos os complexos
mecanismos desenhados pelos elfos como ajuda à
navegação e a pilotagem. A ponte, situado no “peito” do
dragão, era agora uma câmara espaçosa e vazia, exceto
por um assento confortável e um grande globo de obsidiana
pousado na coberta.
Haplo se aproximou do globo e se agachou para
estudá-lo criticamente. Teve o cuidado de não tocá-lo. As
runas esculpidas na superfície da obsidiana eram tão
sensíveis que até o menor fôlego sobre elas podia ativar
sua magia e expulsar a nave ao ar prematuramente.
O patryn estudou os signos, repassando mentalmente
a magia que representavam. Os feitiços de vôo, navegação
e amparo eram complexos. Levou horas recitar todas as
runas e, quando terminou, estava tenso e dolorido, mas
satisfeito. Não tinha encontrado o menor defeito.
Levantou-se com um grunhido e flexionou seus
músculos doloridos. Depois de ocupar o assento,
contemplou a cidade que logo abandonaria. Uma língua
úmida lambeu sua mão.
— O que aconteceu, rapaz? — perguntou, olhando
para um cão negro com manchas brancas de raça
indefinida. — Achou que me esqueci de você?
O cão sorriu e meneou a cauda. Aborrecido, ficara
dormindo durante a inspeção e se alegrou de que seu amo
voltasse a lhe dar atenção. As sobrancelhas brancas,
desenhadas sobre olhos castanhos claros, proporcionavam
ao animal uma expressão de inteligência fora do comum.
Haplo acariciou as orelhas sedosas do cão e dirigiu um vago
olhar ao mundo que se estendia a frente dele...

O Senhor do Elo percorreu as ruas de seu mundo, um


lugar construído para ele por seus inimigos e que,
precisamente por isso, era muito apreciado. Cada um de
seus pilares de mármore artisticamente esculpidos, cada
uma de suas elevadas torres de granito, cada um de seus
esbeltos minaretes e prósperos templos, era um
monumento aos sartan, um monumento à ironia. E ao
Senhor do Elo gostava de perambular entre tudo aquilo,
rindo em silêncio.
O senhor do lugar não estava acostumado a rir alto.
Um traço característico de quem estivera aprisionado no
Labirinto é que raras vezes riem e, quando o fazem, a
alegria nunca chega a iluminar o olhar. Nem sequer quem
escapou da prisão infernal e alcançou o maravilhoso reino
do Elo jamais ri. No mesmo instante em que atravessam a
Porta da Morte, sai a seu encontro o Senhor do Elo, que foi
o primeiro a escapar. E só lhes diz três palavras:
“Não esqueça nunca.”
E os patryn não esquecem. Não esquecem os de sua
raça que continuam presos no Labirinto. Não esquecem
seus amigos e parentes mortos pela violência de uma
magia transformada em paranóia. Não esquecem quantas
feridas sofreram em suas próprias carnes. Também eles
riem em silêncio enquanto perambulam pelas ruas do Elo.
E, quando se encontram com seu senhor, inclinam-se como
demonstração de reconhecimento e respeito.
O Senhor do Elo é o único dos patryn que se atreve a
retornar ao Labirinto. E, até para ele, esta volta é
trabalhosa.
Ninguém conhece a procedência do Senhor do Elo.
Ele nunca faz referência ao assunto e não é uma pessoa a
que seja fácil acessar ou fazer perguntas. Ninguém sabe
sua idade embora se conjecture, por certos comentários,
que tem muito mais de noventa portas1616. É um homem
de inteligência aguda, rápida e fria. Suas habilidades
mágicas produzem um temor reverencial entre os próprios
patryn, cujos conhecimentos de magia lhes fariam ser
considerados autênticos semideuses nos diversos mundos.
Desde sua fuga retornou ao Labirinto em muitas ocasiões
com objetivo de criar naquele inferno, mediante sua magia,
uma série de refúgios para seus congêneres. E cada vez,
quando se dispõe a entrar, este ser frio e calculista é
tomado de um tremor que estremece seu corpo. Cruzar de
novo a Última Porta lhe exige um grande esforço de
vontade pois sempre o assalta, do mais profundo de sua

16
Antigamente, no Labirinto, a idade de uma pessoa era calculada pela quantidade de Portas que tinha
cruzado tentando escapar. Este sistema foi normalizado mais adiante pelo Senhor do Elo para poder
conservar um registro exato da população patryn. Quando um destes emerge do Labirinto, o Senhor do
Elo o submete a um extenso interrogatório e, segundo os detalhes que proporciona, adjudica-lhe uma
idade determinada. (N. do A.)
mente, o temor de que o Labirinto vencerá e o destruirá.
Que desta vez não encontrará o caminho de saída.
Naquele dia, o Senhor do Elo se encontrava perto da
Última Porta. Em torno dele estava sua gente, os patryn
que já tinham conseguido escapar. Com seus corpos
cobertos de runas tatuadas que constituíam seu escudo,
sua arma e sua armadura, um punhado deles tinha decidido
penetrar no Labirinto acompanhando a seu amo.
Este não lhes disse nada, mas concordou com sua
presença. Adiantou-se até a Porta, esculpida em lustroso
azeviche, e apoiou as mãos em um signo mágico que ele
mesmo tinha desenhado. A runa emitiu um resplendor azul
ao contato com seus dedos, os signos mágicos tatuados no
reverso de suas mãos responderam emitindo também uma
luz do mesmo tom azul e a Porta, que não tinha sido feita
para abrir para dentro, somente para fora, cedeu a uma
ordem dele.
Frente aos patryn reunidos apareceu uma panorâmica
do Labirinto, com suas formas estranhas e imprecisas, em
perpétua mudança. O Senhor do Elo contemplou quem o
rodeava. Todas os olhares estavam fixos no Labirinto. O
patryn observou como seus rostos perdiam a cor, como
seus punhos se fechavam e o suor banhava sua pele
coberta de runas.
— Quem vai entrar comigo? — perguntou, olhando-os
um a um. Todos os patryn tentaram sustentar o olhar de
seu senhor, mas nenhum conseguiu e, finalmente, o último
deles baixou a vista. Alguns valentes quiseram dar um
passo adiante, mas os músculos e os tendões não podem
entrar em ação sem um ato de vontade e a mente de todos
aqueles homens e mulheres estava sobressaltada com a
lembrança do terror. Sacudindo a cabeça, muitos deles
chorando abertamente, todos desistiram de seu propósito.
O Senhor do Elo se aproximou do grupo e pousou as
mãos sobre suas cabeças em gesto conciliador.
— Não se envergonhem de seu medo. Utilizem-no,
pois lhes dará forças. Faz muito tempo tentamos conquistar
o mundo e governar todas essas raças fracas, incapazes de
governar a si mesmas. Então, nossa força e nosso número
eram grandes e estivemos a ponto de alcançar nosso
objetivo. Aos sartan, nossos inimigos, só restou um meio
para nos vencer: destruir o próprio mundo, fracionando-o
em outros quatro mundos separados. Divididos por aquele
caos, caímos em poder dos sartan e estes nos prenderam
no Labirinto, uma prisão que eles mesmos tinham criado,
com a esperança de que saíssemos dali “reabilitados”.
“Conseguimos sair, mas as terríveis penalidades que
suportamos não nos abrandaram e debilitaram como
nossos inimigos tinham previsto. O fogo pelo qual passamos
nos forjou em um aço frio e afiado. Somos uma folha capaz
de atravessar nossos inimigos. Somos um fio que ganhará
uma coroa.
“Voltem. Retornem as suas tarefas. Tenham presente
sempre o que acontecerá quando retornarmos aos mundos
separados. E levem sempre com vocês a lembrança do que
deixamos para trás.
Os patryn, consolados, já não se sentiam
envergonhados. Viram seu amo entrar no Labirinto, viram-
no atravessar a Porta com passo firme e resolvido, e o
honraram e adoraram como a um deus.
A Porta começou a fechar-se atrás dele, mas ele a
deteve com uma ordem áspera. Perto dela, estendido no
chão de barriga para baixo, acabava de descobrir um jovem
patryn. Seu corpo musculoso, tatuado de símbolos mágicos,
mostrava os sinais de terríveis feridas; feridas que, ao que
parecia, ele mesmo tinha curado empregando sua própria
magia, mas que o tinham deixado quase sem vida. O
Senhor do Elo, em um nervoso primeiro exame do patryn,
não encontrou o menor sinal de que este respirasse.
Agachou-se, levou a mão ao pescoço do jovem
procurando o pulso e ficou surpreso ao escutar junto a si
um rosnado. Uma cabeça hirsuta se elevou junto ao ombro
do jovem caído.
O Senhor percebeu com assombro que era um cão.
O animal também tinha sofrido graves feridas.
Embora rosnasse ameaçadoramente e tivesse a valente
intenção de proteger o jovem, não podia sustentar a cabeça
erguida e o focinho lhe caía sem força sobre as patas
ensangüentadas. Entretanto, os rosnados não cessaram.
“Se lhe fizer mal”, parecia dizer o animal,
“encontrarei de algum jeito as forças necessárias para
despedaçá-lo.”
Com um leve sorriso — uma expressão muito
estranha nele, — o Senhor do Elo ergueu a mão em gesto
apaziguador e acariciou o pelo suave do cão.
— Fique tranqüilo, rapaz. Não vou machucar seu
dono.
O cão se deixou convencer e, arrastando-se sobre o
ventre, conseguiu levantar a cabeça e esfregar o focinho
contra o pescoço do jovem. O contato com o nariz frio
despertou o patryn. Este ergueu o olhar, viu o estranho
indivíduo que se inclinava sobre ele e, seguindo o instinto e
a vontade que lhe tinham mantido com vida, fez um esforço
para levantar-se.
— Não precisa de nenhuma arma contra mim, filho —
disse o Senhor do Elo. — Está é a Última Porta. Mais à
frente existe um novo mundo, um lugar de paz e
segurança. Eu sou seu dono e te acolho.
O jovem patryn se apoiou nas mãos, oscilando
ligeiramente, ergueu a cabeça e olhou para o outro lado da
Porta. Seus olhos, nublados, logo puderam distinguir as
maravilhas daquele mundo. Em seu rosto se desenhou
lentamente um sorriso.
— Consegui! — murmurou com um sussurro rouco
entre seus lábios manchados de sangue coagulado. — Eu os
venci!
— Eu disse o mesmo quando cheguei a esta Porta.
Como se chama?
O jovem engoliu e pigarreou antes de responder.
— Haplo.
— Um bom nome. — O Senhor do Elo passou os
braços pelas axilas do ferido. — Vamos, deixe que te ajude.
Para sua surpresa, Haplo o rechaçou.
— Não. Quero... cruzar essa porta... com minhas
próprias forças.
O Senhor do Elo não disse nada, mas seu sorriso
aumentou. Levantou-se e se pôs de lado. Trincando os
dentes de dor, Haplo ficou em pé com grande esforço.
Parou por um momento, enjoado, e se sustentou
cambaleando. O Senhor do Elo deu um passo para ele,
temendo que voltasse a cair, mas Haplo o rechaçou de
novo estendendo uma mão.
— Cão! — Disse com voz fraca. — A mim!
O animal se levantou, fraco, e se aproximou de seu
amo mancando. Haplo apoiou a mão na cabeça do cão para
manter o equilíbrio. O animal suportou o peso com
paciência e com os olhos fixos em Haplo.
— Vamos — disse este.
Juntos, passo a passo com andar hesitante, os dois
avançaram para a Porta. O Senhor do Elo, admirado,
seguiu-os. Quando os patryn do outro lado viram aparecer o
jovem, não aplaudiram nem gritaram vivas, mas lhe
dedicaram respeitoso silêncio. Ninguém se ofereceu para
ajudá-lo, embora todos percebessem que cada movimento
lhe causava dor. Todos sabiam o que representava
atravessar aquela última porta por si mesmo, ou com a
única ajuda de um amigo fiel.
Haplo entrou no Elo, piscando sob o sol ofuscante.
Com um suspiro, ajoelhou. O cão ganiu e lhe deu uma
lambida no rosto. O Senhor do Elo se apressou a ajoelhar-se
junto ao jovem. Haplo ainda estava consciente e o Senhor
tomou a mão, pálida e fria.
— Não se esqueça nunca! — cochichou-lhe,
apertando a mão contra seu rosto. Haplo ergueu os olhos
para o Senhor do Elo e sorriu...
— Bem, cão — murmurou o patryn, olhando ao seu
redor em uma última comprovação do estado da nave, —
acredito que já está tudo pronto. O que me diz, rapaz? Está
preparado?
O animal levantou as orelhas e lançou um sonoro
latido.
— Está bem, está bem. Temos a bênção de meu
Senhor e recebemos suas últimas instruções. Agora,
vejamos como este pássaro voa.
Estendeu as mãos sobre a pedra de governo da nave
e começou a recitar as primeiras runas. A pedra se levantou
da coberta, sustentada pela magia, e se deteve sob as
palmas das mãos de Haplo. Uma luz azul se filtrou através
de seus dedos, competindo com o fulgor vermelho que as
runas de suas mãos emitiam.
Haplo derrubou todo seu ser na nave, alagou o casco
com sua magia, notou-a penetrar nas asas de pele de
dragão como se fosse sangue, dando-lhes vida e energia
para guiar e controlar a nave. Sua mente se elevou e levou
consigo à embarcação. Pouco a pouco, esta começou a sair
do chão.
Pilotando-a com os olhos, o pensamento e a magia,
Haplo subiu aos ares a mais velocidade da que os
construtores da nave poderiam imaginar e sobrevoou o Elo.
Deitado aos pés de seu amo, o cão suspirou e se resignou à
viagem. Talvez recordasse sua primeira travessia da Porta
da Morte, uma viagem que quase tinha sido fatal.
Haplo fez algumas manobras de teste e, voando a
esmo sobre o Elo, desfrutou de uma insólita panorâmica da
cidade pela visão de pássaro (ou, melhor, de dragão).
O Elo era uma criação extraordinária, uma maravilha
de construção. Passeios largos, orlados de árvores,
estendiam-se de um ponto central até o horizonte impreciso
do longínquo Limite. Edifícios assombrosos de mármore e
cristal, aço e granito, adornavam as ruas. Parques e jardins,
lagos e tanques, proporcionavam lugares de serena beleza
por onde passear, pensar e meditar. Ao longe, perto do
Limite, estendiam-se suaves colinas e verdes campos,
preparados para a semeadura.
Entretanto, não havia agricultores que cultivassem
aqueles terrenos. Nem se via ninguém perambulando pelos
parques. Nem havia trânsito pelas ruas. Toda a cidade, os
campos, jardins e edifícios, estavam vazios e sem vida,
esperando.
Haplo conduziu a nave em torno do ponto central do
Elo, um edifício de agulhas de cristal — o mais elevado da
cidade, — que seu amo tinha tomado como palácio. Dentro
de suas agulhas de cristal, o Senhor do Elo tinha
encontrado os livros abandonados pelos sartan, livros onde
se narrava a Separação e a formação dos quatro mundos e
em suas páginas se falava do encarceramento dos patryn e
das esperanças dos sartan na “redenção” de seus inimigos.
O Senhor do Elo tinha aprendido por si mesmo a ler aqueles
livros e assim tinha descoberto a traição dos sartan que
tinha condenado seu povo à tortura. Lendo os livros, o
Senhor tinha traçado seu plano de vingança. Haplo inclinou
as asas da nave em saudação ao seu senhor.
Os sartan tinham previsto que os patryn ocupariam
aquele mundo maravilhoso... depois de sua “reabilitação”, é
obvio. Haplo sorriu e se acomodou melhor no assento.
Depois, soltou a pedra de governo, deixando que a nave
voasse com seus pensamentos. Logo, o Elo estaria
povoado, mas não só pelos patryn. Em breve, o Elo
acolheria elfos, humanos e anões, as raças inferiores. Uma
vez transportados para lá através da Porta da Morte, o
Senhor do Elo destruiria os quatro mundos espúrios criados
pelos sartan e voltaria a instaurar a velha ordem. A única
exceção seria que desta vez seriam os patryn que
governariam por direito próprio.
Uma das missões de Haplo em suas viagens de
investigação era observar se havia algum sartan vivo em
qualquer dos quatro mundos. Haplo surpreendeu a si
mesmo desejando descobrir mais algum... Algum sartan
que não fosse uma pobre imitação de semideus como
Alfred a quem havia enfrentado no mundo de Ariano.
Desejava que toda a raça dos sartan estivesse viva, para
que fossem testemunhas de sua própria e esmagadora
derrota.
— E quando os sartan virem tudo que construíram
ruir, depois que virem passar para nosso poder às raças
que esperavam dominar, será o momento de dar o justo
castigo aos nossos inimigos. Desta vez, seremos nós que os
jogaremos no Labirinto!
Haplo desviou o olhar para o caótico torvelinho negro
com nervuras vermelhas que acabava de aparecer ao
longe. Lembranças do horror surgiram das nuvens para
tocá-lo com suas mãos espectrais e Haplo as combateu
utilizando como arma o ódio. Em vez de ver a si mesmo,
imaginou a luta dos sartan, viu-os vencidos onde ele tinha
triunfado, viu-os morrer onde ele tinha escapado com vida.
O latido de advertência do cão o tirou de seus
pensamentos sombrios. Haplo percebeu que, perdido neles,
quase tinha se precipitado no Labirinto. Rapidamente,
colocou as mãos sobre a pedra de governo e fez a nave
virar. A Asa de Dragão sulcou de novo o céu azul do Elo,
livre dos tentáculos da maléfica magia que tinham tentado
capturá-lo.
Haplo voltou seus olhos e pensamentos para o céu
sem estrelas e pilotou a nave para o ponto de passagem,
para a Porta da Morte.
CAPITULO 9

DO CAHNDAR AO ESTPORT,
EQUILAN

Paithan esteve muito atarefado com os preparativos


para a viagem com a caravana e as palavras do ancião
sumiram de sua mente. Reuniu-se com Quintin, seu
capataz, nos limites de Cahndar, a Cidade da Rainha. Os
dois elfos inspecionaram o comboio, certificando-se que
arcos, molas de suspensão e raztars, guardados em cestos,
estavam bem presos aos tyros17. Paithan abriu alguns
cestos para inspecionar os brinquedos que tinham colocado
por cima, e se assegurou de que não se visse o menor
rastro das armas ocultas. Tudo parecia em ordem. O jovem
elfo felicitou Quintin por seu excelente trabalho e prometeu
recomendá-lo a sua irmã.
Quando Paithan e a caravana ficaram prontos para a
viagem, as flores das horas indicavam que a hora do
trabalho já estava bastante avançada e que logo seria
meio-ciclo. Depois de ocupar seu lugar à cabeça da
caravana, Paithan deu a ordem de marcha. Quintin montou
no primeiro dos tyros, ocupando a cadeira situada entre os
chifres. Com grandes dramas e lisonjas, os escravos
convenceram os outros tyros a avançar em fila atrás de seu
líder e o comboio inundou as terras selvagens. Logo, a
civilização ficou para trás.
Paithan impôs um passo rápido e a caravana avançou
em boa marcha. Os caminhos entre as terras humanas e
élficas estavam bem cuidados, embora fossem um tanto
traiçoeiros. O comércio entre os reinos era um negócio
lucrativo. As terras humanas eram ricas em matérias
primas: madeiras de teca e de espada, trepadeiras e
mantimentos, enquanto que os elfos eram peritos em
transformar estes recursos em produtos elaborados. As
caravanas entre os reinos iam e vinham diariamente.
Os maiores perigos para as caravanas eram os
ladrões humanos, os animais selvagens e as possíveis
quedas nos esporádicos abismos entre os leitos de musgo.
Entretanto, os tyros eram animais especialmente
adequados para viajar por terrenos difíceis, razão pela qual
Paithan os tinha escolhido apesar de seus defeitos (muitos
condutores, em particular os humanos, são incapazes de
17
O tyro é uma aranha gigante de corpo encouraçado e oito patas. Seis delas lhe servem para subir
pelas árvores e por seus próprios fios, enquanto que as duas dianteiras terminam em uma “mão”
articulada que utiliza para levantar e manipular os objetos. A carga é colocada na parte traseira do
tórax, entre as articulações das patas. (N. do A.)
lidar com os tyros, animais muito sensíveis que se
enroscam formando uma bola e se zangam quando alguém
fere sua sensibilidade). O tyro podia arrastar-se pelos leitos
de musgo, subir nas árvores e saltar ravinas tecendo sua
teia sobre o vazio e mantendo-se suspensos nela. As teias
de tyro eram tão fortes que algumas tinham sido
transformadas em pontes permanentes, mantidas pelos
elfos.
Paithan tinha percorrido aquela rota muitas vezes.
Estava familiarizado com seus perigos e preparado para
eles; em conseqüência, não lhe preocupavam muito. Não se
sentia especialmente preocupado com os ladrões. A
caravana era numerosa e estava bem provida de armas
élficas. Os bandoleiros humanos costumavam atacar os
viajantes solitários e, sobretudo, os de sua própria raça.
Apesar disso, Paithan sabia que se os ladrões descobrissem
a verdadeira natureza da carga que transportavam
estariam dispostos a correr grandes riscos para se apoderar
dela, pois os humanos tinham em grande consideração as
armas fabricadas pelos elfos, em especial as armas
“inteligentes”.
A mola de suspensão, por exemplo, era parecida com
a humana, consistia de um arco fixo em um eixo de
madeira, com um mecanismo para esticar e soltar a corda.
A “flecha” era um dardo que a magia élfica tinha dotado de
inteligência e que era capaz de reconhecer visualmente um
alvo e dirigir-se para ele sozinho. O arco mágico, uma
versão muito menor da mola de suspensão, podia ser
levado à cintura, guardado sob uma capa, e podia ser
disparado com uma mão. Nem os humanos nem os anões
podiam produzir armas inteligentes com sua magia, e os
ladrões que as vendiam no mercado negro pediam preços
exorbitantes por elas.
Mas Paithan tinha tomado precauções para evitar
roubos. Quintin, um elfo que trabalhava para a família
desde que Paithan era um menino, tinha embalado os
cestos pessoalmente e só ele e Paithan sabiam o que
transportavam realmente sob as bonecas, barquinhos e
caixas de surpresas. Os escravos humanos, cujo dever era
conduzir os tyros, acreditavam levar um carregamento de
brinquedos e não mortíferos brinquedos para adultos.
Particularmente, Paithan considerava tudo aquilo uma
prevenção desnecessária. As armas dos Quindiniar eram de
grande qualidade, superior até às que os elfos fabricavam
normalmente. O proprietário de uma mola de suspensão
Quindiniar devia conhecer uma palavra chave para ativar
sua magia e só Paithan possuía tal informação, que
transmitiria ao comprador quando chegasse o momento.
Entretanto, Calandra estava convencida de que cada
humano era um espião, um ladrão e um assassino que só
esperava a ocasião de lançar-se ao roubo, a violação, a
pilhagem e o saque.
Paithan tinha tentado convencer Calandra que sua
atitude era incoerente: por um lado, dedicava aos humanos
uma inteligência e uma astúcia extraordinárias e, por outro,
sustentava que eram pouco mais que animais.
— Na realidade, os humanos não são muito diferentes
de nós, Cal — tinha comentado em uma memorável
ocasião.
Jamais havia tornado a usar um argumento
semelhante. Calandra tinha se alarmado tanto com sua
atitude que tinha pensado seriamente em proibir suas
aventuras em terras humanas. A terrível ameaça de ter que
ficar em casa tinha bastado para que o jovem não voltasse
a mencionar o assunto.
A primeira etapa da viagem era simples. O único
obstáculo seria o golfo do Kithni, a grande extensão de
água que dividia as terras élficas dos territórios humanos,
mas ainda ficava muito longe, ao vars. Paithan se
acomodou ao ritmo da marcha, desfrutando do exercício e
da oportunidade de voltar a ser ele mesmo. O sol iluminava
as árvores com mil tons de verde, o aroma de um milhar de
flores perfumava o ar e as breves e freqüentes pancadas de
chuva refrescavam o calor que a marcha produzia. Às vezes
ouvia o ruído de algum animal que fugia da beira do
caminho, mas não prestava grande atenção à fauna da
selva. Depois de haver enfrentado um dragão, Paithan
decidiu que era capaz de fazer frente a qualquer animal.
Entretanto, foi durante aquele tranqüilo período que
as palavras do ancião começaram a lhe zumbir na cabeça.
A morte e a destruição chegarão com você!
Em certa ocasião, quando era pequeno, uma abelha
tinha entrado no ouvido de Paithan. O zumbido quase o
deixara louco até que sua mãe tinha conseguido extrair o
inseto. Assim como a abelha, a profecia de Zifnab tinha
ficado presa no cérebro de Paithan, repetindo uma e outra
vez, e não parecia que ele pudesse fazer grande coisa para
livrar-se dela.
Tratou de lhe tirar importância, zombando do ancião.
Afinal, este parecia tão louco como seu pai. Entretanto,
quando já tinha conseguido convencer-se, Paithan lembrou
dos olhos do feiticeiro. Ardilosos, inteligentes,
indecifravelmente tristes. Era essa tristeza que inquietava
Paithan, que lhe produzia um calafrio que sua mãe teria
atribuído a alguém que se erguia da tumba. Isso lhe evocou
lembranças de sua mãe. E Paithan recordou, do mesmo
modo, que o ancião havia dito que sua mãe queria ver seus
filhos.
O jovem elfo sentiu uma pontada que em parte era
doce e, em parte, estava carregada de remorsos e
inquietação. E se as crenças de seu pai fossem certas? E se
realmente pudesse reencontrar-se com sua mãe depois de
tantos anos? Soltou um grave assobio e moveu a cabeça.
— Sinto muito, mãe. Creio que você não ficaria muito
satisfeita.
Sua mãe queria que Paithan recebesse educação
formal; que todos os seus filhos a recebessem. Elithenia era
feiticeira da fábrica de armas quando Lenthan Quindiniar a
tinha conhecido e lhe tinha entregado seu coração. Apesar
de ter fama de ser uma das mulheres mais belas de
Equilan, Elithenia nunca se sentiu bem entre a alta
sociedade, coisa que Lenthan jamais tinha conseguido
entender.
— Suas roupas são as mais esplêndidas, querida.
Suas jóias, as mais caras. O que têm esses nobres que os
ponha acima dos Quindiniar? Diga-me e hoje mesmo
mandarei comprá-lo!
— O que têm não é algo que se possa comprar —
tinha respondido sua esposa, com voz triste.
— Do que se trata?
— Eles sabem da coisas.
E por isso a mulher tinha decidido garantir que seus
filhos também soubessem das coisas. Para isso contratou
uma governanta que desse a seus pequenos a mesma
educação que recebiam os filhos de um nobre. Mas os
resultados tinham sido decepcionantes. Calandra, desde
muito jovem, soube exatamente o que queria da vida e
aprendeu da governanta o que necessitava: o
conhecimento necessário para manipular pessoas e
números. Paithan não sabia o que queria, mas sabia muito
bem o que não queria: odiava as aborrecidas lições,
escapava da governanta sempre que possível e, se não
podia fazê-lo, perdia o tempo de mil maneiras. Aleatha,
consciente de seus recursos desde pequena, lançava
cândidos sorrisos, escondia-se no regaço da mulher e
conseguiu que nunca lhe exigisse aprender outra coisa
além de escrever seu nome.
Depois da morte da mãe, seu pai tinha conservado a
governanta. Foi Calandra quem despediu a mulher para
economizar dinheiro, e assim terminou a instrução escolar
dos irmãos.
— Não, temo que minha mãe não ficaria muito
contente conosco — murmurou Paithan, sentindo-se
inexplicavelmente culpado. Ao perceber o que tinha
pensado, pôs-se a rir um tanto envergonhado e sacudiu a
cabeça. — Se não acabar com estas divagações, terminarei
tão louco como meu pobre pai.
Para livrar-se de lembranças desagradáveis, Paithan
subiu nos chifres do primeiro tyro e ficou conversando com
o capataz, um elfo de muito bom julgamento e de grande
experiência. Desde aquele momento até a hora da tristeza
dessa noite, o primeiro ciclo depois da hora da corrente,
Paithan não voltou a pensar em Zifnab e na profecia. E,
quando o fez, foi só momentos antes de cair no sono.
A viagem até o Estport, de onde zarpava a balsa, foi
aprazível e desprovida de incidentes, e Paithan se esqueceu
por completo da profecia. O prazer de viajar, a
embriagadora consciência de liberdade depois da sufocante
atmosfera de sua casa, levantaram o ânimo do jovem elfo.
Ao fim de alguns ciclos, Paithan voltou a rir abertamente do
velho feiticeiro e de suas idéias absurdas, e deleitou Quintin
com anedotas de Zifnab durante os descansos na marcha.
Quando por fim chegaram ao golfo de Kithni, Paithan quase
não podia acreditar. A viagem tinha parecido muito curta.
O golfo de Kithni era um lago enorme que formava a
fronteira entre a Thillia e Equilan, e ali Paithan encontrou o
primeiro atraso. Estavam reparando um das balsas e só
havia uma em serviço. Ao longo da costa musgosa se
alinhavam várias caravanas esperando para efetuar a
travessia.
Quando chegaram, Paithan enviou o capataz para
descobrir quanto teriam que esperar. Quintin retornou com
uma senha e disse que poderiam cruzar em algum
momento do ciclo seguinte.
Paithan deu de ombros. Não tinha muita pressa e
parecia que os reunidos ali tiravam o máximo proveito
daquele contratempo. O mole da balsa tinha adquirido o
aspecto de um mercado. Os viajantes perambulavam pelo
lugar visitando conhecidos, trocando notícias e comentando
as últimas tendências do mercado. Paithan se ocupou em
instalar e alimentar os escravos, de elogiar e felicitar os
tyros e de verificar a segurança da mercadoria que
transportava. Depois, deixando tudo nas mãos competentes
do capataz, decidiu juntar-se a festa.
Um fazendeiro empreendedor, informado da situação
dos viajantes, tinha instalado uma carroça com vários
tonéis de vingin caseiro, esfriado com gelo18. O vingin era
uma bebida forte, elaborada com uvas prensadas e
reforçada com um líquido destilado de tohahs fermentados,
muito do gosto de Paithan. Ao ver um numeroso grupo
reunido em torno do tonel, o jovem elfo se aproximou dos
bebedores. Entre eles havia alguns velhos amigos e Paithan
foi acolhido com entusiasmo. Os viajantes acabam por
conhecer-se nos caminhos e às vezes viajam juntos, tanto
por razões de segurança como por companhia. Humanos e
elfos abriram lugar para Paithan e puseram em sua mão
uma jarra fria, cristalizada.
— Puntar, Ulaka, Gregor... Fico feliz em voltar a vê-los.
— O elfo saudou seus antigos camaradas e foi apresentado
aos que não o conheciam.
Sentando-se sobre um fardo junto a Gregor, um
humano corpulento e ruivo de barba crespa, Paithan tomou
um gole de vingin e, por um instante, agradeceu
mentalmente que Calandra não pudesse vê-lo. Depois das
saudações, vários dos presentes se interessaram por sua
saúde e a de sua família; o jovem elfo respondeu às
perguntas e devolveu a cortesia.
— O que transporta desta vez? — perguntou Gregor,
entornando uma jarra em um longo trago. Depois, com um
arroto de satisfação, devolveu a jarra ao fazendeiro para
que a voltasse a enchê-lo.
— Brinquedos — respondeu Paithan com um sorriso.
Risadas satisfeitas e piscadas de cumplicidade.
— Então, deve levá-los a norint — comentou um
humano, que tinham apresentado como Hamish.
— Exato — assentiu o elfo. — Como soube?

18
O gelo não existe de forma natural em nenhuma das terras conhecidas de Pryan. Começou a ser um
artigo de uso comum depois de sua descoberta, durante os experimentos mágicos dos humanos com o
clima. O gelo é um dos poucos produtos fabricados pelos humanos para o qual existe demanda nas
terras élficas. (N. do A.)
— Andam precisando de “brinquedos” por lá,
conforme ouvimos — respondeu Hamish. As risadas
cessaram e outros humanos concordaram com suas
palavras com ar sombrio. Os mercadores elfos, perplexos,
quiseram saber o por que daquilo.
— Há guerra com os reis do mar? — aventurou
Paithan, entregando ao fazendeiro sua jarra vazia. — Uma
notícia assim alegraria Calandra. Enviaria uma ave
mensageira para comunicar-lhe. Se algo podia deixá-la de
bom humor era uma guerra entre os humanos. Já imaginava
contar os benefícios que lhe reportaria.
— Não — respondeu Gregor. — Os reis do mar têm
seus próprios problemas se for certo o que ouvimos. Alguns
humanos desconhecidos, chegados do outro lado do mar
em toscas embarcações, atracaram como náufragos às
costas do país dos reis do mar. À princípio, estes acolheram
os refugiados, mas continuaram chegando mais e mais e
agora é difícil alimentá-los e abrigá-los.
— Que fiquem por lá — interveio outro mercador
humano. — Nós já temos problemas suficientes na Thillia,
para receber estranhos. Os mercadores elfos escutavam
com o sorriso de complacência de quem não se sente
afetado pelo que escuta, exceto no que se refere a seus
negócios.
Com mais humanos chegando à região só podia
significar um aumento dos benefícios.
— Mas... de onde saem esses humanos? — perguntou
Paithan.
Houve uma acalorada discussão entre os humanos,
que só terminou quando Gregor declarou:
— Eu sei de primeira mão, pois falei com algum deles.
Dizem vir de um reino conhecido como Kasnar, que está
muito longe ao norint de nossas terras, do outro lado do
mar Sussurrante.
— Por que fugiram de sua pátria? Por acaso alguma
grande guerra está acontecendo por lá? — insistiu Paithan,
perguntando-se mentalmente se seria muito difícil fretar
um navio para transportar um carregamento de armas tão
longe. Gregor moveu a cabeça em negativa, arrastando sua
barba vermelha sobre o peito colossal.
— Não se trata de uma guerra — respondeu com voz
grave. — Falam de destruição. De destruição total.
Ruína, morte e destruição.
Paithan notou umas pegadas pisando sua tumba e
sentiu um formigamento nas mãos e pés. Devia ser o
vingin, pensou, e deixou imediatamente a jarra na mesa.
— Do que se trata então? Dragões? Não posso
acreditar. Quando se ouviu que um dragão atacasse um
assentamento?
— Não, até os dragões fogem dessa ameaça.
— Então, o que é?
Gregor olhou ao seu redor com ar solene antes de
responder.
— Titãs.
Paithan e outros elfos se olharam, boquiabertos, e
finalmente caíram na gargalhada.
— Gregor, velho enrolão! Desta vez me pegou
direitinho! — Paithan enxugou as lágrimas que escorriam de
seus olhos. — Eu pago a próxima ronda. Refugiados e
náufragos...!
Os humanos permaneceram em silêncio, com
expressões cada vez mais sombrias e abatidas. Paithan os
viu trocar olhares lúgubres e conteve sua hilaridade.
— Vamos, Gregor, uma brincadeira é uma
brincadeira! Reconheço que já estava calculando os
possíveis benefícios para meus cofres. Creio que todos o
fazíamos — acrescentou, apontando com um gesto para os
outros elfos, — mas já é suficiente.
— Infelizmente não é uma brincadeira, meus amigos
— respondeu Gregor. — Eu falei com essa gente. Vi o terror
em seus rostos e o ouvi em suas vozes. Seres gigantescos,
de feições e corpo idênticos aos humanos, mas cuja
estatura ultrapassa as copas das árvores, apareceram em
suas terras procedentes do norint. São capazes de partir as
rochas com sua voz e destroem tudo em seu caminho.
Agarram os humanos em suas mãos enormes e os jogam ao
chão ou os espremem entre seus dedos até matá-los. Não
há arma capaz de detê-los. As flechas lhes fazem o mesmo
efeito que a picada de um mosquito. As espadas não
penetram em sua pele curtida, embora não lhes causassem
muito dano se o fizessem.
O peso das palavras de Gregor era opressivo para os
presentes e todos o escutavam em atento silêncio, embora
alguns ainda continuassem movendo a cabeça em gesto de
incredulidade. Outros mercadores, ao observar a solene
reunião, aproximaram-se para ver o que acontecia e
acrescentaram seus próprios rumores aos que já corriam
entre os reunidos.
— Kasnar era um grande império — continuou Gregor,
— e agora desapareceu, completamente arrasado. De uma
nação antigamente poderosa só restou um punhado de
gente que fugiu em suas embarcações através do mar
Sussurrante.
O fazendeiro, vendo que suas vendas de vingin
diminuíam, colocou a torneira em um novo tonel. Todos se
levantaram para encher de novo a jarra e começaram a
falar de uma vez.
— Titãs? Os seguidores de São? Ora, isso não é
apenas uma lenda!
— Não seja sacrílego, Paithan. Se acredita na Mãe19,
tem que acreditar em São e seus seguidores, que governam
a Escuridão.
— Sim, Umbar, todos sabemos que você é muito
religioso! Se alguma vez entrasse em um dos templos da
Mãe, provavelmente ele cairia em cima de você! Escute
Gregor, você é um homem sensato; não me diga que
acredita em duendes e espíritos.
19
Peytin, Matriarca do Paraíso. Os elfos acreditam que Peytin criou um mundo para seus filhos mortais.
Para governá-lo, designou seus primogênitos, os gêmeos Orn e Obi. O filho menor, São, sentiu ciúmes
deles e, depois de reunir os ambiciosos e belicosos humanos, empreendeu uma guerra contra seus
irmãos. Esta guerra causou; a separação do mundo antigo. São foi banido para baixo e os humanos
foram expulsos do antigo mundo e enviados a Pryan. Peytin criou uma raça, a élfica, e a enviou para
restaurar a pureza do mundo. (N. do A.)
— Não, mas acredito no que vejo e ouço. E vi coisas
terríveis nos olhos dessa gente.
Paithan observou fixamente seu interlocutor.
Conhecia Gregor a anos e sempre tinha considerado aquele
humano como uma pessoa valente, sincera e digna de
confiança.
— Está bem. Aceito que tenham fugido de algo, mas
por que temos que nos inquietar tanto? Seja o que for, é
impossível que cruzem o mar Sussurrante.
— Esses titãs...
— O que forem...
— ... poderiam descer através dos reinos anões de
Grish, Klag e Thurn — prosseguiu Gregor em tom carregado
de maus presságios. — De fato, chegaram rumores de que
os anões estavam preparando-se para uma guerra.
— Sim. Uma guerra contra os humanos, e não contra
demônios gigantescos. Essa é a razão de seus dirigentes
terem exposto esse embargo de armas.
Gregor deu de ombros, quase arrebentando as
costuras de sua camisa justa; depois, sorriu e seu rosto
barbudo pareceu partir-se em dois, com uma negra fenda
de orelha a orelha.
— Aconteça o que acontecer, Paithan, os elfos não
têm com que se preocupar. Os humanos os deterão. Nossas
lendas dizem que o Deus Cornudo nos submete a prova
constantemente, nos enviando adversários dignos de nos
enfrentar. Talvez, nesta batalha, os Cinco Senhores Perdidos
retornem para nos ajudar.
Foi dar um gole, fez uma careta e virou a jarra. Estava
vazia.
— Mais vingin! — exigiu.
O granjeiro elfo abriu a torneira, mas não saiu nada.
Golpeou os tonéis. Todos devolveram um deprimente som
oco. Entre suspiros, os mercadores se levantaram,
despedindo-se.
— Paithan, meu amigo — disse Gregor, — perto do
embarcadouro há um botequim. Agora estará abarrotado,
mas acredito que poderíamos conseguir uma mesa. — O
corpulento humano flexionou os músculos e pôs-se a rir.
— Certamente — assentiu Paithan imediatamente.
Seu capataz era um elfo competente e os escravos estavam
exaustos. Não era provável que houvesse problemas. —
Você encontra um lugar onde possamos nos sentar, e eu
pagarei as duas primeiras rodadas.
— Parece-me justo.
Cambaleando ligeiramente, os dois se abraçaram (o
braço de Gregor quase sufocando o esbelto elfo) e se
dirigiram para o mole.
— Ouça, Gregor, você que esteve em tantos lugares
— comentou Paithan, — ouviu falar de um feiticeiro humano
chamado Zifnab?
CAPITULO 10

VARSPORT, THILLIA

Paithan e sua caravana puderam cruzar na balsa no


ciclo seguinte. A travessia demorou um ciclo inteiro e o elfo
não desfrutou da viagem, pois teve que suportar os efeitos
da ressaca do vingin.
Os elfos tinham fama de maus bebedores, de não ter
a menor resistência para o álcool, e Paithan sabia muito
bem que não devia seguir o ritmo de Gregor. Mas recordou
a si mesmo que estava na farra, que não havia ali nenhuma
Calandra que o olhasse severamente por tomar um
segundo copo de vinho no jantar. Além disso, o vingin tinha
embaciado a lembrança do feiticeiro humano, de sua
estúpida profecia e dos lúgubres contos sobre gigantes de
Gregor.
O estalo constante do cabrestante giratório, os bufos
e chiados dos cinco javalis que puxavam e os constantes
gritos do humano que conduzia os animais retumbavam
como explosões na cabeça do elfo. O cabo que caia da
embarcação por cima da água, recoberto de uma
substância gordurosa e escorregadia, passava por cima de
sua cabeça e desaparecia, enroscando-se em torno do
cabrestante. Apoiado em um fardo de mantas à sombra de
um toldo, com uma compressa úmida sobre a testa
dolorida, Paithan contemplou a água que deslizava sob a
quilha do navio, compadecendo-se de si mesmo.
A balsa do golfo de Kithni estava em funcionamento
fazia sessenta anos. Paithan lembrava tê-la visto ainda
menino, em companhia do avô, durante a última viagem
que os dois tinham feito antes que o velho desaparecesse
para sempre na mata. Então, Paithan havia considerado a
balsa como o invento mais maravilhoso do mundo e ficara
tremendamente desconcertado ao saber que os humanos
eram seus criadores.
Com voz paciente, seu avô tinha explicado aquela
sede humana pelo dinheiro e pelo poder que se conhecia
como ambição, conseqüência da lamentável brevidade de
suas vidas, e que impulsionava todo tipo de esforçadas
empresas.
Os elfos se apressaram a aproveitar o serviço de
balsa, já que aumentava de forma notável o comércio entre
os dois reinos, mas continuavam olhando para ele com
suspeita. Não tinham a menor duvida de que a balsa, como
a maioria das empresas humanas, terminaria mal de um
modo ou outro. Enquanto não chegasse esse momento,
entretanto, os elfos permitiam magnanimamente que os
humanos lhes prestassem serviço.
Sentindo-se sonolento pelo chapinho da água e os
vapores de vingin que ainda flutuavam em sua cabeça,
Paithan ficou dormindo sob o calor. Antes de sumir no
sonho, lembrou vagamente o Gregor metido em uma briga
e quase provocando que os matassem (a ele e a Paithan).
Quando despertou, Quintin, o capataz, sacudia-o pelo
ombro.
— Auana! Auana20 Quindiniar! Acorde! O navio está
ancorando.
Paithan se levantou com um gemido, sentia-se um
pouco melhor. Embora a cabeça continuasse pulsando, ao
menos não tinha mais a impressão de que ia perder os
20
Palavra élfica que significa “Chefe”. (N do A)
sentidos ao menor movimento. Ficou em pé cambaleando e
atravessou a abarrotada coberta, onde os escravos
permaneciam agachados sobre o piso de madeira, ao
descoberto e sem nenhuma proteção contra o sol ardente.
Os escravos não pareciam se importar com o calor. Só
usavam uma tanga, indumentária aceitável já que não
havia escravas. Paithan, que tinha coberto até o último
centímetro de sua pele branca, contemplou a pele morena,
quase negra, daqueles humanos e recordou a enorme
distancia que havia entre as duas raças.
— Calandra tem razão — murmurou para si mesmo.
— Não são mais que animais e nem toda a civilização do
mundo mudará este fato. Não deveria ter me juntado ao
Gregor ontem à noite. De hoje em adiante, ficarei com os
de minha própria raça.
Paithan manteve esta firme resolução durante, mais
ou menos, uma hora. Para então, sentindo-se muito melhor,
estar de novo em companhia de um Gregor machucado
mas sorridente enquanto ambos permaneciam na cauda,
esperando a vez de apresentar seus documentos às
autoridades do porto. Paithan se mostrou alegre e animado
durante a longa espera. Quando Gregor o deixou para
passar na inspeção da alfândega, o elfo surpreendeu a si
mesmo escutando a conversa de seus escravos humanos,
que pareciam sentir uma ridícula excitação ao voltar a
encontrar-se em sua pátria.
Se tanto apreciavam sua terra, como se deixaram
vender como escravos?, perguntou-se Paithan ociosamente,
guardando sua vez em uma fila que se movia com a
lentidão de uma lesma do musgo enquanto os funcionários
de alfândega humanos faziam inumeráveis pergunta
absurdas e manuseavam a mercadoria dos mercadores que
lhe precediam. Durante a espera surgiram brigas,
geralmente entre humanos que, quando eram
surpreendidos com uma carga de contrabando, pareciam
adotar a atitude de que a lei deve aplicar-se a todos, menos
a eles mesmos. Os mercadores elfos raras vezes tinham
problemas nas fronteiras pois, ou obedeciam
escrupulosamente as leis ou, como Paithan, recorriam aos
meios sutis e discretos para ignorá-las.
Por fim, um dos funcionários indicou que se
aproximasse. Paithan e seu capataz avançaram com os
escravos e os tyros.
— Que carga está levando? — disse o homem,
olhando fixamente para os cestos.
— Brinquedos mágicos, senhor — respondeu Paithan
com um sedutor sorriso. O funcionário observou-o
atentamente.
— Bom momento para trazer brinquedos... —
murmurou.
— A que te refere, senhor?
— A esses rumores de guerra, é claro. Não me diga
que não ouviu comentários a respeito!
— Nenhuma palavra, senhor. Com quem lutam
atualmente? Com a Strethia, possivelmente, ou com a
Dourglasia?
— Nada disso. Não esbanjaríamos nossos dardos com
essa escória. Corre o rumor de que guerreiros gigantes vêm
do norint.
— Ah, isso! — Paithan deu de ombros com ar
condescendente e acrescentou: — Ouvi algo a respeito,
mas não lhe dei importância. Os humanos, estão
preparados para fazer frente a um risco assim, não é?
— É claro que sim — declarou o funcionário.
Suspeitando que era objeto de uma brincadeira, cravou a
vista no elfo. Paithan tinha uma expressão angelical quando
explicou, com língua suave como a seda:
— As crianças adoram nossos brinquedos mágicos e
falta pouco para a festa da Santa Thillia. Você não vai
querer que os pequenos se decepcionem, não é? —
inclinou-se para frente com ar confidencial e acrescentou:
— Creio que você seja avô, estou errado? O que acha de
ganhar alguns presentes e nos esquecemos dos trâmites
rigorosos?
— Sou avô, é certo — respondeu o funcionário,
carrancudo e severo. — Tenho dez netos, todos menores de
quatro anos, e todos eles vivem em minha casa. Abra esses
cestos!
Paithan percebeu que tinha cometido um erro tático.
Com o suspiro do inocente condenado injustamente, voltou
a dar de ombros e se encaminhou ao primeiro dos cestos.
Quintin desatou as correias com solícita e serviçal presteza.
Os escravos próximos à cena observavam com uma
expressão que Paithan reconheceu como de alegria contida,
o que lhe inquietou muito, por que diabos davam aqueles
sorrisos? Era quase como se soubessem...
O funcionário de alfândegas elevou a tampa do cesto.
Um montão de brinquedos de cores gritantes brilhou à luz
do sol. O humano, com um olhar de soslaio a Paithan,
afundou a mão no cesto.
Retirou-a imediatamente com uma exclamação,
sacudindo os dedos.
— Algo me mordeu! — disse em tom acusador. Os
escravos explodiram em risadas. O capataz, surpreso,
estalou o chicote ao seu redor e não demorou para
restaurar a ordem.
— Lamento muitíssimo, senhor. — Paithan se
apressou a fechar o cesto. — Deve ter sido uma caixa de
surpresas. Gostam muito de morder. Lamento realmente.
— E vai vender esses brinquedos malévolos às
crianças? — exclamou o funcionário, chupando o polegar
ferido.
— Alguns pais desejam certa carga de agressividade
nos brinquedos, senhor. Não quererá que os pequenos
sejam uns fracos, não é? Hum... senhor... eu inspecionaria
com especial cuidado esse cesto. Aí estão as bonecas.
O funcionário de alfândegas afastou a mão, titubeou
e o pensou melhor.
— Está bem, sigam em frente. Suma daqui.
Paithan deu a ordem a Quintin, que pôs
imediatamente os escravos a puxar das rédeas dos tyros.
Face às recentes marcas de chicotadas na pele,
alguns dos escravos conservavam ainda a expressão
zombeteira e Paithan se admirou por aquele estranho traço
de caráter dos humanos que os fazia aproveitar da desdita
alheia.
Os documentos de embarque foram inspecionados e
aprovados rapidamente e Paithan os guardou no bolso de
seu capote de viagem, fechado com um cinturão. Depois de
uma cortês reverencia ao funcionário, dispunha-se a correr
atrás de sua caravana quando notou uma mão que lhe
agarrava o braço. Seu bom humor começou a desaparecer
rapidamente. Notou uma pontada nas têmporas.
— Sim, senhor? — disse enquanto se voltava, com um
sorriso forçado.
O funcionário de alfândegas se inclinou para ele.
— Quanto quer por dez dessas caixas surpresa?

A viagem por terras humanas transcorreu sem


sobressaltos. Um dos escravos fugiu, mas Paithan tinha
previsto tal eventualidade levando consigo mais homens do
que precisava, e a maioria deles não lhe preocupava pois
tinha escolhido deliberadamente a humanos que deixavam
família em Equilan. Ao que parecia, um escravo tinha
escolhido a liberdade, ao invés de voltar com sua mulher e
seus filhos.
Sob a influência das histórias de Gregor, a profecia de
Zifnab começou a torturá-lo de novo. Paithan tentou
descobrir todo o possível sobre os gigantes que se
aproximavam e, em cada botequim que visitou, encontrou
alguém com algo que comentar a respeito. Entretanto,
pouco a pouco foi convencendo-se de que se tratava de um
mero rumor sem fundamento. Além de Gregor, não
encontrou um só humano que tivesse falado realmente e
pessoalmente com algum dos refugiados.
— O tio de minha mãe conheceu três deles, e contou
a minha mãe o que lhe disseram e...
— O filho do meu segundo primo estava em Jendi no
mês passado quando chegavam os navios e falou com meu
primo, que o contou ao seu pai, e ele me contou.
— Um mendigo que estava ali...
Finalmente, Paithan chegou com certo alívio à
conclusão de que Gregor tinha vendido caramelo de soom.21
O elfo afastou de sua mente a profecia de Zifnab. Completa,
definitivamente.
Paithan cruzou a fronteira de Marcinia com a Terncia
sem que os sentinelas sequer olhassem para os cestos.
Estudaram os documentos de embarque assinados pelo
funcionário de Varsport com gestos aborrecidos e lhe deram
passagem. O elfo aproveitava da viagem e não se apressou.
Fazia um tempo especialmente bom e os humanos, em sua
maior parte, eram amistosos e corteses. É claro, encontrou
esporádicos comentários hostis que chamavam os elfos de
“ladrões de mulheres” e “asquerosos escravagistas” mas
Paithan, que não se alterava por nada, fez ouvidos surdos
ou os desculpou com uma gargalhada e um oferecimento
de pagar a rodada seguinte.
Paithan se sentia atraído pelas mulheres humanas
tanto quanto qualquer elfo mas, tendo viajado longamente
por terras humanas, sabia que flertar com uma delas era a
maneira mais fácil de arriscar-se a perder uma das orelhas
(e talvez outras partes de sua anatomia). Assim, conseguiu
dominar seus impulsos e se contentou lançando olhares de
admiração ou roubar um breve beijo em algum canto
escuro. Se a filha do hospedeiro ia a sua porta no meio da
noite, desejosa de comprovar a lendária capacidade dos
varões elfos, Paithan sempre tinha cuidado de tirá-las de
sua cama ao chegar a hora brumosa, antes que alguém se
levantasse para iniciar a jornada.
O elfo e sua caravana chegaram ao destino, ao
pequeno e insosso povoado de Griffith, com algumas
semanas de atraso em relação à data prevista. Paithan se
21
Expressão élfica que significa agir com certa uma falsidade. O caramelo de soom é um produto
humano muito apreciado pelos elfos, que são terrivelmente gulosos. O caramelo tem um sabor delicioso,
mas comido em excesso pode ter penosas conseqüências no sistema digestivo dos elfos. (N. do A.)
sentia bastante satisfeito da travessia, considerando o
quanto era arriscado viajar pelos estados thillianos em
permanente conflito. Quando chegou ao botequim A Flor do
Bosque, ocupou-se de alojar os escravos e os tyros no
estábulo, procurou um lugar para o capataz e alugou um
quarto na estalagem para ele.
Na Flor do Bosque não estavam habituados a alojar
hóspedes elfos, por isso o proprietário estudou por um
longo momento o dinheiro de Paithan e fez soar a moeda
sobre a mesa para assegurar-se de que era de madeira
nobre. Depois de comprovar que o dinheiro era autêntico, o
homem se mostrou mais cortês.
— Como disse que se chama?
— Paithan Quindiniar.
— Hum... — O taberneiro grunhiu. — recebi duas
mensagens para você. Uma foi entregue em mãos; a outra
chegou por um ave mensageira.
— Muito obrigado — respondeu Paithan, lhe
entregando outra moeda. A atitude servil do dono do
botequim se intensificou notoriamente.
— Deve estar com fome, senhor. Sente-se na sala
comum e trarei algo para molhar o gogó.
— Que não seja vingin — disse Paithan, e se foi para a
sala com as cartas na mão.
Uma das missivas era de humana; o elfo percebeu
porque vinha em um fragmento de pergaminho que já havia
sido utilizado anteriormente. Tentaram apagar o escrito
original, mas não conseguiram. Depois de desatar a cinta,
suja e desfiada, Paithan desenrolou a carta e, com alguma
dificuldade, leu a mensagem escrita sobre o que parecia ter
sido uma notificação de impostos.

“Quindiniar, chega com atraso. A presente....


...a você. tivemos que sair ...
viagem ...
ter contente ao cliente. Voltaremos...”
O elfo se aproximou da janela e observou o
pergaminho na luz mas não houve modo de decifrar quando
voltariam. Assinava a carta, com um tosco gancho de ferro,
um tal Roland Hojarroja. Paithan tirou do bolso os
documentos de embarque e procurou o nome do cliente. Ali
estava consignado, com a caligrafia precisa e direita de
Calandra. Roland Hojarroja. O elfo deu de ombros, jogou a
carta no lixo e, em seguida, lavou as mãos e a consciência.
O dono do local se apressou a lhe levar uma jarra de
cerveja espumante. Paithan a provou e comentou que era
excelente; suas palavras deixaram o taberneiro muito
satisfeito e seu escravo de por vida (ou, ao menos,
enquanto tivesse dinheiro). Sentado em um reservado, com
os pés sobre a cadeira que tinha em frente, Paithan se
acomodou e abriu o outro pergaminho.
A carta era de Aleatha, quem devia tê-la escrito por
amor.

CAPÍTULO 11
MANSÃO DO QUINDINIAR,
EQUILAN

“Meu querido Paithan:


“Suponho que se surpreenderá por receber notícias
minhas, pois não sou muito amante das cartas. Entretanto,
estou certa de que não se ofenderá se disser a verdade: me
ocorreu te escrever por puro aborrecimento. Certamente,
espero que este noivado não dure muito, ou ficarei louca.
“Sim, querido irmão; abandonei meus “costumes
licenciosos”. Ao menos, no momento. Quando for uma
“respeitável mulher casada'' tenho intenção de levar uma
vida mais interessante; só será preciso ser mais discreta
que antes.
“Como tinha previsto, nosso enlace provocou um bom
escândalo. A mãe do barão é uma velha presunçosa que
esteve a ponto de colocar tudo a perder. A muito bruxa teve
a coragem de contar a Durndrun que eu tinha tido uma
caso com o conde R... que freqüentava certos
estabelecimentos e que até tinha relações com os escravos
humanos. Em resumo, disse-lhe que eu era indigna de
gozar do dinheiro de Durndrun, de sua casa e de seu
sobrenome.
“Felizmente, eu tinha imaginado que aconteceria algo
assim e consegui do meu “amado” a promessa de que me
manteria ciente das acusações que sua querida mãe
formulasse e me daria a oportunidade de as rebater.
Durndrun cumpriu sua palavra, mas lhe ocorreu vir me ver,
precisamente, em plena hora brumosa. Por Orn que, se for
um costume, vou tirá-lo em seguida! Mas já não havia
remédio e tive que fazer ato de presença. Por sorte, ao
contrário de algumas, eu sempre tenho bom aspecto ao
despertar.
“Encontrei Durndrun no salão, com ar muito sério e
sério, acompanhado de Calandra, que parecia divertir-se
muito com a situação.
“Cal nos deixou sozinhos — o que é perfeitamente
correto entre casais prometidos, sabe? — e, acredite ou
não, querido irmão, o barão começou a me lançar à cara as
acusações de sua mãe!
“Naturalmente, eu estava preparada para isso.
“Uma vez entendido o conteúdo exato das queixas (e
sua fonte), deixei-me cair ao chão, desmaiada. (Desmaiar
como sé deve é uma arte, sabe? É preciso cair sem se
machucar e, preferivelmente, sem causar-se desagradáveis
arranhados nos cotovelos. Não é tão simples como parece.)
Ao ver isso, Durndrun se alarmou muito e se viu obrigado —
é óbvio — a me pegar em seus braços e me depositar no
sofá.
“Recuperei os sentidos bem a tempo de impedir que o
barão pedisse ajuda aos criados e, ao vê-lo inclinado sobre
mim, chamei-o de “descarado” e cai em lágrimas.
De novo, ele se sentiu obrigado a tomar-me em seus
braços. Eu, entre soluços incoerentes sobre minha honra
manchada e sobre como poderia amar um homem que não
confiava em mim, tentei afastá-lo, me assegurando de que,
na agitação seguinte, me rasgasse a túnica e o barão
descobrisse que tinha posto a mão em um lugar
inconveniente.
“Ah, de modo que é isso o que pensa de mim!”, disse-
lhe, e me joguei de novo sobre o sofá, não sem me
assegurar de que, em meus frenéticos intentos por
consertar o rasgo, só fizesse piorar ainda mais as coisas.
Minha única preocupação era que Durndrun chamasse
ajuda. Por isso impedi que minhas lágrimas degenerassem
em histeria.
“Quando ficou em pé, observei pela extremidade do
olho a luta que se debatia em seu peito. Sosseguei meus
soluços e voltei a cabeça, olhando-o através de um véu de
cabelos loiros e com um tênue brilho sedutor nos olhos.
“Reconheço que fui o que alguém poderia tachar de
irresponsável”, disse com voz apagava, “mas é que não tive
uma mãe que me guiasse. Estou a muito tempo procurando
alguém a quem querer e honrar com todo meu coração e
agora que tinha encontrado...”
“Não pude continuar. Afundei o rosto na almofada
empapada em lágrimas e estendi o braço.
“Vá!”, disse-lhe. “Sua mãe tem razão! Não mereço
seu amor!”
“Bem, Pait, estou certa de que já adivinhou o resto.
Em menos do que se demora para dizer “matrimônio”, tinha
o barão Durndrun a meus pés... suplicando meu perdão! Eu
lhe concedi outro beijo e um longo e detido olhar antes de
cobrir recatadamente os “tesouros” que não conseguirá até
a noite de bodas.
“Durndrun estava tão arrebatado de paixão que até
falou de expulsar sua mãe de casa! Tive que pôr em ação
toda minha capacidade de persuasão para convencê-lo de
que acabaria querendo essa velha bruxa como à mãe que
nunca conheci. Tenho alguns planos para a matrona. Ela
ainda não sabe, mas vai cobrir minhas pequenas escapadas
quando a vida de casada ficar muito aborrecida.
“Assim, encontro-me a caminho do altar. O barão
Durndrun falou com sua mãe em tom autoritário, pondo em
seu conhecimento que íamos casar e declarando que, se
não gostava da idéia, iríamos viver em outra parte. Isto, é
claro, não me pareceu nada bem, pois a principal razão de
me casar com ele é a casa, mas não me preocupou muito. A
velha idolatra seu filho e cedeu em seguida, tal como eu
estava certa que faria.
“O casamento acontecerá dentro de uns quatro
meses. Gostaria que fosse antes, mas é preciso cumprir
certas formalidades e Calandra insiste que todo seja feito
como é devido. Enquanto chega o momento, não resta
outro remédio além de dar a impressão de que sou uma
donzela modesta e bem educada e ficar prudentemente em
casa. Estou segura de que você rirá ao ler isto, Paithan, mas
asseguro que não estive com nenhum homem em todo o
mês passado. Quando chegar a noite de bodas, até o
próprio Durndrun me parecerá apetecível!
“(Não estou nada segura de poder resistir tanto.
Suponho que você não terá percebido, mas um dos
escravos humanos é um exemplar magnífico. É muito
interessante falar com ele e até me ensinou algumas
palavras nesse idioma animalesco que utilizam. Falando de
animais, acha que será verdade o que dizem dos machos
humanos?)
“Lamento os borrões destas últimas linhas. Calandra
entrou no quarto e tive que esconder a carta entre a roupa
interior antes que a tinta secasse. Imagine o que Cal teria
feito se lesse a última parte?
“Por sorte, não é preciso que se preocupe. Pensando
bem, acho que não seria capaz de ter uma relação com um
humano. Não leve a mal, Pait, mas como pode suportar
tocar a suas mulheres? Enfim, suponho que para um
homem é diferente.
“Se estiver se perguntando que fazia Cal levantada
estas horas tão inoportunas. Era por causa dos foguetes,
que não a deixavam dormir.
“Falando dos foguetes, a vida em casa foi de mal a
pior desde que você partiu. Nosso pai e esse velho feiticeiro
louco passam toda a hora de trabalho no porão, preparando
seus projéteis, e toda a hora escura no jardim de trás,
disparando-os. Acho que superamos todas as marcas no
número de criados que nos abandonaram. Cal se viu
obrigada a pagar grandes somas a várias famílias da
cidade, ramos abaixo de nossa mansão, devido aos
incêndios causados em suas moradias. Nosso pai e o
feiticeiro enviam os foguetes para cima com a pretensão de
que “o homem das mãos enfaixadas” os verá e saberá onde
pousar!
“Ah, Paithan! Estou segura de que estará rindo, mas
falo sério. A pobre Cal está arrancando os cabelos de
frustração e temo que eu não estou muito melhor. É obvio,
nossa irmã está preocupada com o dinheiro e o negócio e
pela visita do prefeito com uma petição para que nos
desfaçamos do dragão.
“Estou preocupada com nosso pobre pai. Esse
ardiloso humano tem nosso pai totalmente encantado com
essa tolice da nave e de encontrar nossa mãe. Nosso pai
não fala de outra coisa. Está tão excitado que não come e
está mais magro a cada dia. Cal e eu estamos certas de
que o velho feiticeiro tem algum plano, talvez fazer-se com
a fortuna de nosso pai. Mas, se for assim, ainda não fez
nenhum movimento suspeito.
“Cal tentou em duas ocasiões subornar Zifnab, ou
como quer que se chame, oferecendo mais dinheiro do que
a maioria de humanos vêem em toda sua vida em troca de
que vá embora e nos deixe em paz. Na segunda vez, o
velho agarrou sua mão e, com uma careta de tristeza,
disse-lhe, “Mas, querida minha, se o dinheiro não tiver
importância...”.
“Não tem importância! Que o dinheiro não tem
importância! Até aquele momento, Cal o tinha tido por um
louco mas, depois disso, considera-o um louco furioso e
está convencida de que deveria estar encerrado em alguma
parte. Acredito que ela mesma o faria, se não temesse a
reação de nosso pai.
“E houve um dia em que o dragão esteve a ponto de
se solta. Lembra-se que o velho tem sob um feitiço sobre
essa criatura (Orn sabe como e por que)? Tínhamo-nos
sentado a tomar o café da manhã quando, de repente,
produziu-se uma terrível comoção fora da casa; esta tremeu
como se fosse cair, os ramos se quebraram e as lascas se
cravaram no leito de musgo, e apareceu pela janela da
cozinha um feroz olho encarnado que nos olhou.
“Pegue outro pão-doce, ancião!”, disse com voz
ameaçadora. “Com muito mel. Precisa engordar, estúpido.
Igual ao resto dessa carne roliça e suculenta que te rodeia!”
“Cintilavam-lhe os dentes e a saliva gotejava de sua
língua bífida. O humano estava pálido como um fantasma.
Os escassos criados que ainda restavam em casa correram
para a porta dando gritos.
““Viva!”, exclamou o dragão. “Comida rápida!”
“O olho desapareceu. Corremos à porta principal e
vimos a cabeça do dragão descer, com as mandíbulas a
ponto de fechar-se sobre a cozinheira.
““Não! Ela não!”, gritou o feiticeiro. “Ela sabe fazer
maravilhas com o frango! Agarre ao mordomo. Nunca
gostei dele”, virou-se para nosso pai e acrescentou: “Não
sabe ficar em seu lugar.”
“Mas não pode deixar que coma a todo o pessoal!”
“Por que não?”, gritou Cal. “Que coma a todos! O que
importa isso?”
“Deveria ter visto Cal, irmão. Dava medo. Ficou tensa,
rígida, e se limitou a ficar no alpendre dianteiro, com os
braços cruzados e as feições duras como pedra. O dragão
parecia brincar com suas vítimas, empurrando-as como se
fossem cordeiros, observando como se escondiam atrás das
árvores e lançando-se sobre elas quando saíam em campo
aberto.
“E se lhe entregarmos o mordomo e um par de
criados? Para lhe temperar os ânimos, por assim dizer...”
“Eu... temo que não”, respondeu nosso pobre pai, que
tremia como uma folha. O humano exalou um suspiro.
“Tem razão, suponho. Não devo abusar de sua
hospitalidade. Embora seja uma lástima, porque os elfos
são muito fáceis de digerir. Mas sempre fica com fome,
depois.” O ancião começou a arregaçar as mangas. “Anões,
não. Não voltarei a deixar que coma um anão, depois da
última vez. Tive que passar a noite acordado ao seu lado.
Vejamos. Como era esse feitiço? Bem... preciso de uma bola
de excrementos de morcego e uma pitada de enxofre. Não,
um momento. Acho que me confundi de encantamento...”
“E, depois disto, o velho começou a caminhar pelo
jardim, com toda a calma do mundo em meio daquele caos,
falando consigo mesmo sobre excrementos de morcego.
Então já tinha chegado um grupo de cidadãos, armados até
os dentes. O dragão ficou encantado de ver tanta gente, e
gritou não sei o que sobre “um bufê livre”. Cal estava
plantada no alpendre, gritando: “coma a todos!”. Nosso pai
retorceu as mãos e se jogou em um sofá.
“Envergonho-me de dizer, Pait, mas me pus a rir. Por
que me acontece isto? Devo ter alguma tara que me faz
romper a rir quando um desastre acontece. Desejei com
todo meu coração que estivesse presente para nos ajudar,
mas não estava. Nosso pai não servia para nada e Cal não
estava muito melhor. Desesperada, desci correndo ao
jardim e agarrei o feiticeiro pelo braço no mesmo instante
em que se dispunha a elevá-los ao ar.
“Não tem que cantar algo?”, perguntei-lhe. “Já sabe,
não sei o que sobre o conde Bonnie!”
“Era só o que tinha entendido da cantilena. O humano
piscou e seu rosto se iluminou. Depois, virou-se e me
lançou um olhar furioso, com a barba arrepiada. O dragão,
enquanto isso, perseguia os cidadãos pelo jardim.
“O que você quer?”, perguntou-me o velho, furioso.
“Quer se encarregar de meu trabalho?”
“Não, eu...”
“Não coloque o nariz nos assuntos de feiticeiros”,
insistiu com voz altissonante, “porque somos gente sutil e
fácil de encolerizar. Não é meu; disse-o um mago meu
amigo. Um tipo competente em seu trabalho, que sabia
muito sobre joalheria. E tampouco era mau em foguetes.
Embora não era elegante em sua indumentária, como
Merlin. Vejamos, como se chamava...? Raist... Não, esse era
o jovem tão irritante que sempre estava dando machadadas
e salpicando sangue. Muito desagradável. O nome do outro
era Gand... Gand não sei o que...”
“Pus-me a rir como uma louca, Pait! Não pude evitar.
Não tinha idéia do que o sujeito estava tagarelando. Era
tudo tão ridículo! Devo ser uma pessoa realmente perversa.
“O dragão!” Agarrei o ancião e o sacudi até que seus
dentes chacoalharam. “Detenha-o!”
“Zifnab me lançou um olhar doído.
““Ah, sim!, para você é muito fácil falar. Você não tem
que suportá-lo depois!”
“Depois com um novo suspiro, começou a cantar com
voz aguda e tremula que atravessa a cabeça como uma
furadeira. Como da vez anterior, o dragão levantou a
cabeça e olhou para o feiticeiro. Os olhos da criatura se
nublaram os olhos e não demorou para começar a balançar-
se ao ritmo da música. De repente, o dragão arregalou os
olhos, olhou para o velho e deu um salto.
“Senhor!”, disse com voz ensurdecedora. “O que faz
aqui fora, no meio do jardim, em roupa de dormir? Não tem
vergonha?”
“A cabeça do dragão serpenteou sobre o jardim e se
abateu sobre nosso pobre pai, que tinha se encolhido
debaixo do sofá. Os cidadãos, vendo distraída à criatura,
começaram a levantar suas armas e a aproximar-se dela
cautelosamente.
“Perdoe-me, maese Quindiniar”, disse o dragão com
voz rouca e ressonante. “É tudo minha culpa. Esta manhã
não cheguei a tempo de atender meu amo.” O dragão
voltou a cabeça para o ancião feiticeiro. “Senhor, tinha
preparado a levita malva com as calças de raias finas e...”
“Levita-a malva?”, interrompeu-o o velho, gritando.
“Acaso se viu alguma vez Merlin passear por Camelot e
lançar encantamentos vestido com uma levita malva? Por
todos os sapos, creio que não! Não conseguirá que...”
“Perdi o resto da conversa, pois tive que me dedicar a
convencer os cidadãos de que voltassem para casa. Na
realidade, não teria me aborrecido acabar com o dragão,
mas era evidente que suas armas não podiam lhe causar
dano e havia a possibilidade de que quebrassem o feitiço.
Por certo, foi pouco depois desta cena, à hora do almoço,
que chegou o prefeito com a petição.
“Depois disso, Pait, algo parece ter se quebrado no
interior de Cal. Agora, nossa irmã não faz o menor caso da
presença do feiticeiro e seu dragão. Simplesmente, age
como se não existissem. Não dirige a palavra ao humano;
nem sequer olha para ele. Passa todo o tempo na fábrica ou
encerrada em seu escritório. Tampouco fala com nosso pai,
embora ele nem tenha percebido pois está muito atarefado
com seus foguetes.
“Bom, Paithan, por enquanto são essas as novidades.
Tenho que concluir para me deitar. Amanhã vou tomar chá
com a mãe de Durndrun e acredito que trocarei minha taça
pela sua, apenas para o caso dela ter colocado um pouco
de veneno.
“Ah! Quase me esqueci. Cal diz que o negócio vai de
vento em popa, devido aos rumores de problemas
procedentes do norint. Lamento não ter prestado mais
atenção, mas já sabe quanto me aborrece falar de
negócios. Suponho que isso significa mais ganhos mas,
como diz o ancião, o que importa o dinheiro?
“ Volte logo, Pait, e me salve desta casa de loucos!
“Sua irmã que te quer,
“Aleatha”
CAPITULO 12

GRIFFITH, TERNCIA,
THILLIA

Concentrado na carta de sua irmã, Paithan percebeu


vagamente que alguém entrava no botequim, mas não
levantou a vista até que uma bota, com um enérgico chute,
tirou-lhe a cadeira em que apoiava os pés.
— Já era hora! — disse uma voz no idioma dos
humanos.
Paithan ergueu a vista e encontrou o olhar de um
humano alto, musculoso, de boa compleição e com uma
longa cabeleira loira presa na nuca com uma tira de couro.
O homem tinha a pele muito bronzeada exceto onde as
roupas a cobriam e Paithan pôde apreciar que,
naturalmente, era branca e corada como a de um elfo. Seus
olhos azuis eram francos e amistosos e em seus lábios
havia um sorriso amistoso. Vestia os calções de couro com
franjas e a túnica de pele sem mangas habituais entre os
humanos.
— Quincejar? — Disse o indivíduo, estendendo a mão.
— Sou Roland. Roland Hojarroja. Prazer em conhecê-lo.
Paithan dirigiu um rápido olhar à cadeira, derrubada
no meio do botequim em conseqüência do chute.
“Bárbaros”, pensou. Mas de nada serviria se zangar, de
modo que ficou em pé, e apertou a mão do humano
seguindo aquele estranho costume que elfos e anões
achavam tão ridículo.
— Meu nome é Quindiniar. Me acompanha em uma
bebida, por favor — respondeu, sentando-se de novo. — O
que gosta de tomar?
— Fala nosso idioma bastante bem, sem esse
estúpido ceceio da maioria dos elfos. — Roland agarrou
outra cadeira e sentou-se. — O que você está bebendo? —
Agarrou a jarra quase cheia de Paithan e farejou seu
conteúdo. — Isso está bom? Normalmente, a cerveja por
aqui parece mijo de bode. Ei, taberneiro! Traga outra
rodada!
Quando chegaram as bebidas, Roland elevou sua
jarra.
— Pelos brinquedos!
Paithan tomou um gole. O humano bebeu a sua de
um gole. Piscando e secando as lágrimas, acrescentou com
olhos chorosos:
— Não está ruim. Vai terminar a sua? Não? Eu me
encarrego disso então. Não posso permitir que se
desperdice. — Esvaziou a outra jarra e, quando terminou,
deixou-a sobre a mesa com um forte golpe.
— Pelo que estamos brindado? Ah, já recordo! Pelos
brinquedos. Já era hora, como dizia. — Roland se inclinou
para frente, lançando seu fôlego de cerveja ao nariz do
Paithan por cima da mesa. — Os meninos estavam
impacientes! Fiz tudo que pude para aplacar os pequenos...
Suponho que entende a que me refiro, não é?
— Não estou muito seguro — respondeu Paithan
brandamente. — Quer tomar outra jarra?
— Certamente. Taberneiro! Mais dois!
— Por minha conta — acrescentou o elfo ao observar
o gesto carrancudo do proprietário do local.
Roland baixou a voz.
— Os meninos... Os compradores, quer dizer, os
anões... estão realmente impacientes. O velho Barbanegra
queria me arrancar a cabeça quando lhe disse que o
embarque se atrasaria.
— Está vendendo as... os brinquedos aos anões?
— Sim. Há algum problema, Quinpar?
— Quindiniar. Não, só que agora entendo como pode
pagar um preço tão alto.
— Cá entre nós, os idiotas teriam pago o dobro para
conseguir o que vendemos. Estão muito excitados por não
sei que contos infantis sobre uns gigantes humanos. Mas
você mesmo verá ...
Roland deu um longo gole na cerveja.
— Eu? — Paithan sorriu e moveu a cabeça de um lado
e outro. — Deve ter se confundido. Uma vez que tenha
pago, os “brinquedos” são seus. Preciso voltar para minha
casa. Nestes tempos estamos muito ocupados.
— E como acha que vamos transportá-los? — Roland
passou a manga pelos lábios. — Levando os cestos em cima
da cabeça? Vi seus tyros no estábulo. Tudo está
perfeitamente embalado e podemos ir e voltar em pouco
tempo.
— Sinto muito, Hojarroja, mas isto não estava incluído
no trato. Pague o dinheiro e...
— Mas... não acha que o reino dos anões seria
fascinante?
Isso foi dito pela voz de uma mulher, atrás de
Paithan.
— Quincehart — disse Roland, fazendo um gesto com
a jarra. — Apresento-lhe minha esposa.
O elfo ficou em pé educadamente e se virou para a
mulher.
— Meu nome é Quindiniar.
— Prazer em conhecê-lo. Sou Rega.
Era uma humana de baixa estatura, cabelos negros e
olhos escuros. Sua roupa, de couro com franjas como a de
Roland, cobria seu corpo e deixava pouco deste à
imaginação. Seus olhos, protegidos por umas longas
pestanas negras, pareciam cheios de mistério. Estendeu-lhe
a mão e Paithan tomou-a na sua mas, em vez de estreitá-la
como a mulher parecia esperar, levou-a aos lábios e
depositou um beijo em seus dedos.
A humana ruborizou e deixou que sua mão
permanecesse alguns instantes na do elfo.
— Veja isto, marido. Você nunca me tratou assim!
— Porque é minha mulher — replicou Roland dando
de ombros, como se aquilo resolvesse a questão. — Sente-
se, Rega. O que quer tomar? O de costume?
— Um copo de vinho para a moça — Paithan pediu.
Cruzou o botequim, voltou com uma cadeira e a colocou
junto à mesa para que Rega a ocupasse. Ela deslizou para o
assento com a agilidade de um animal. Seus movimentos
foram rápidos, limpos e decididos.
Rega lançou um sorriso ao elfo, com a cabeça
ligeiramente inclinada e o cabelo, escuro e brilhante,
acariciando seu ombro nu.
— Convença Quinspar a ir conosco, Rega.
A mulher manteve os olhos e o sorriso fixos no elfo.
— Não tem que ir a algum lugar, Roland?
— Tem razão. Estou cheio dessa maldita cerveja.
Roland se levantou e saiu do botequim em direção ao
pátio traseiro. O sorriso de Rega se alargou. Paithan viu
dentes afiados, muito brancos, entre lábios que pareciam
tingidos com o suco de alguma fruta. Quem beijasse
aqueles lábios, provaria a doçura...
— Eu gostaria que nos acompanhasse. Não vamos
longe. Conhecemos a melhor trilha, passando pelas terras
dos reis do mar, mas pelas regiões desabitadas. Por onde
vamos, não há guardas de fronteira. O caminho é traiçoeiro
às vezes, mas você não parece uma pessoa a quem
incomoda um pouco de risco. — A mulher se aproximou um
pouco mais e o elfo captou um leve aroma almiscarado que
envolvia sua pele lustrosa de suor. Sua mão deslizou sobre
a de Paithan. — Meu marido e eu nos aborrecemos tanto
em nossa própria companhia...
Paithan percebeu premeditação em sua atitude
sedutora. Era lógico que percebesse: sua irmã, Aleatha, era
uma mestra naquela arte e poderia dar lições para aquela
humana. Para o elfo, tudo aquilo pareceu muito divertido e,
certamente, um verdadeiro entretenimento depois dos
longos dias de viagem. Contudo, em algum canto de sua
mente, não deixou de perguntar se a mulher estaria
disposta a entregar o que estava oferecendo.
“Nunca estive no reino dos anões”, refletiu Paithan.
“Nenhum elfo esteve ali. Talvez valha a pena ir.”
Viu surgir uma imagem de Calandra; os lábios
apertados, o nariz ossudo muito pálido, os olhos
chamejantes. Ficaria furiosa. Uma viagem como aquela
atrasaria sua volta por um mês, pelo menos.
“Mas Cal, escute”, ouviu-se dizer. “Estabeleci contato
comercial com os anões. Contato direto. Sem intermediários
que levem uma fatia...”
— Espero que venha conosco. — Rega apertou sua
mão. O elfo percebeu que a humana possuía uma força
incomum em uma mulher, e que a palma da mão era
áspera e calejada.
— Apenas nós três não poderíamos dominar tantos
tyros... — respondeu evasivamente.
— Não necessitamos de todos. — A mulher era
prática, eficiente. Sua mão se atrasou uns instantes entre
os dedos do elfo. — Suponho que trouxe brinquedos de
verdade como cobertura, não é? Venda-os. Depois
carregaremos as... hum... a carga mais valiosa em apenas
três tyros.
Bem, aquilo podia funcionar. Paithan teve que
reconhecer. Além disso, a venda dos brinquedos pagaria de
sobra a viagem de volta de seu capataz, Quintin. Os
benefícios podiam moderar a fúria de Calandra.
— Sendo assim, como poderia me negar? —
respondeu, apertando um pouco mais sua mão cálida. No
outro extremo do botequim soou uma pancada e Rega
retirou a mão, ruborizada.
— Meu marido — murmurou. — É terrivelmente
ciumento!
Roland cruzou de novo o local enquanto fechava a
correia da braguilha. Ao passar pelo balcão, apropriou-se de
três jarras de cerveja destinadas a outros paroquianos e as
levou para a mesa. Deixou-as cair sobre ela com estrépito,
salpicando a tudo e a todos, e sorriu.
— Bom, Quinsinard, minha esposa conseguiu
convencê-lo? Você vem conosco?
— Sim — confirmou Paithan, pensando que Hojarroja
não se comportava como os maridos ciumentos que o elfo
tinha conhecido. — Mas tenho que enviar de volta meu
capataz e os escravos. Minha família necessita deles em
Equilan. E me chamo Quindiniar.
— Boa idéia. Quanto menos gente conhecer nossa
rota, melhor. Ouça, importa-se que o chame de Quin?
— Meu nome é Paithan.
— Estupendo, Quin. Um brinde pelos anões. Por suas
barbas e seu dinheiro. Que fiquem as umas, que eu ficarei o
outro! — Roland se pôs-se a rir. — Vamos, Rega. Pare de
beber esse suco de uva. Você sabe que não o suporta.
Rega voltou a ruborizar. Com um olhar de
desaprovação a Paithan, afastou o copo de vinho. Levando
uma jarra de cerveja aos lábios tintos de suco, deu conta de
seu conteúdo a grandes goles com ar experiente.
“Que diabos!”, pensou Paithan, e bebeu sua cerveja
de um gole.
CAPÍTULO 13

EM ALGUM LUGAR SOBRE PRYAN

As lambidas de uma língua áspera e úmida e


insistentes ganidos tiraram Haplo de sua inconsciência,
sentou-se com ar pensativo e com seus sentidos atentos ao
mundo que o rodeava, embora sua mente continuasse
tratando de se recuperar dos efeitos da sacudida que o
tinha deixado desacordado.
Percebeu que estava na nave, deitado no camarote
do capitão; havia um colchão estendido sobre um beliche
de madeira presa ao casco da nave. O cão se deitou no
cama de armar junto a ele, com os olhos brilhantes e a
língua pendurada. Pelo visto, o animal se cansara e tinha
decidido que seu dono estava inconsciente por tempo
suficiente.
Ao que parecia, tinham conseguido. De novo haviam
cruzado a Porta da Morte.
O patryn não se moveu e prendeu a respiração,
aguçando o ouvido e outros sentidos. Não percebeu
nenhum perigo, ao contrário da última vez em que
atravessara a Porta. A nave se mantinha equilibrada e,
embora não houvesse a menor sensação de movimento,
concluiu que estava voando porque não tinha efetuado as
modificações necessárias em suas instruções mágicas para
que aterrissasse. Observou que várias runas brilhavam,
anunciando que estavam ativadas. Estudou-as e viu que
seus signos mágicos estavam relacionados com o ar, a
pressão e a manutenção da gravidade. Pareceu-lhe
estranho e se perguntou por que teriam entrado em ação.
Haplo relaxou e acariciou as orelhas do cão. Uma
brilhante luz solar entrava pela escotilha do teto. Virando-se
o patryn bisbilhotou pela janela para observar o novo
mundo em que tinha chegado.
Não viu nada, exceto o céu e, muito longe, como um
círculo de chamas brilhantes através da bruma, o sol. Ao
menos, aquele mundo tinha um sol; de fato, tinha quatro.
Lembrou que seu amo e senhor tinha dúvidas sobre aquele
ponto e se perguntou brevemente por que os sartan não
tinham incluído aqueles sóis em seus mapas. Talvez fosse
porque, como Haplo tinha descoberto, a Porta da Morte
estava localizada no centro daquele amontoado de sóis.
Levantou-se da cama e se dirigiu à ponte. As runas do
casco e das asas evitariam que a nave se chocasse contra
qualquer objeto, mas não custava se assegurar de que não
estava flutuando em frente a algum bloco gigantesco de
granito.
Logo comprovou que não era assim. A visão da ponte
mostrava uma enorme extensão de ar vazio até onde
alcançava sua vista, em todas as direções: acima, abaixo e
de ambos os lados.
Haplo se agachou acariciando a cabeça do cão com
ar ausente para que o animal ficasse quieto. Aquilo não
estava em seus cálculos e não estava seguro do que fazer.
De algum jeito, aquele vazio brumoso e de um tom azulado
ligeiramente tingido de verde era tão aterrador como a
feroz tormenta perpétua em que se viu lançado ao penetrar
no mundo de Ariano. O silêncio que o envolvia agora
resultava tão perturbador como o estrondo ensurdecedor
do Torvelinho. Ao menos, a nave não era sacudida como um
brinquedo nas mãos de um menino e a chuva não açoitava
o casco, já prejudicado pela passagem através da Porta da
Morte. Desta vez, o céu estava sereno, sem nuvens... e sem
um só objeto à vista, salvo o sol ardente.
Aquele céu espaçoso produzia um efeito quase
hipnótico sobre Haplo, e o patryn se obrigou a afastar o
olhar dele. Depois, avançou até a pedra de governo da
nave. Colocou as mãos sobre ela, uma de cada lado, e
completou assim o círculo: a mão direita sobre a pedra, a
pedra entre as mãos, a mão esquerda na pedra, a mão
unida ao braço, o braço ao corpo, o corpo ao braço direito,
e o braço à mão outra vez. Pronunciou as runas em voz
alta. A pedra começou a emitir um resplendor azul entre
suas mãos e a luz fluiu através delas. Haplo pôde ver as
veias vermelhas de sua vida. A luz se tornou mais brilhante,
até que quase não podia continuar observando-a, e
entrecerrou os olhos. O resplendor aumentou ainda mais e,
de repente, alguns raios de potente luz azul surgiram da
pedra em todas as direções.
Haplo se viu obrigado a afastar o olhar, virando a
cabeça para proteger-se do brilho ofuscante. Mas tinha que
continuar olhando para a pedra, tinha que continuar
observando. Quando um dos raios de navegação
encontrasse uma massa sólida, uma possível terra onde
atracar, ricochetearia, voltaria para a nave e acenderia
outra runa da pedra, que adquiriria uma cor vermelha.
Haplo poderia então dar um rumo preciso à nave.
O patryn esperou.
Nada.
A paciência era uma virtude que sua raça tinha
aprendido a praticar no Labirinto e que tinha assimilado a
base de golpes e de penalidades. Se alguém perdia a
calma, se agia impulsiva ou com precipitadamente, o
Labirinto dava conta dele. Se tivesse sorte, esse alguém
morria. Se não, se conseguisse sobreviver, recebia uma
lição que lhe perseguiria pelo resto de seus dias. Mas
aprendia. Sim, ele aprendia...
Haplo aguardou, com as mãos na pedra.
O cão se sentou a seu lado com as orelhas
levantadas, os olhos alerta e a boca aberta em um sorriso
de espera. Passou algum tempo. O cão se deitou no chão
com as patas dianteiras estendidas e a cabeça erguida,
sem deixar de olhá-lo e varrendo o chão com sua cauda
peluda. Passou mais tempo. O cão bocejou e apoiou a
cabeça entre as patas; olhava para Haplo com ar de
recriminação. Haplo continuou esperando, com as mãos
sobre a pedra. Os raios azuis tinham parado fazia um bom
tempo. O único objeto que podia ver era o amontoado de
sóis, reluzentes como uma moeda superaquecida.
O patryn começou a se perguntar se a nave ainda
voava. Não tinha como saber. Sob o controle da magia, os
cabos não rangiam, as asas não vibravam e a nave não
produzia o menor ruído. Haplo precisava de pontos de
referência, pois não havia nuvens nem terra alguma à vista.
Não havia nenhum horizonte pelo qual guiar-se.
O cão se deitou de lado e adormeceu.
As runas permaneceram apagadas e sem vida sob
suas mãos. Haplo notou que os afiados dentes do medo
começavam a lhe roer por dentro. Disse a si mesmo que
estava reagindo como um estúpido e não havia
absolutamente nada a temer.
“Precisamente isso”, respondeu uma voz dentro de
sua cabeça. “Não há nada em lugar algum.”
Será que a pedra não funcionava? A pergunta cruzou
sua mente, mas Haplo a rechaçou imediatamente. A magia
não falhava jamais. Quem a utilizava podia fracassar, mas
Haplo estava seguro de ter ativado os raios corretamente.
Imaginou-os viajando a incrível velocidade no vazio,
afastando-se até uma distância tremenda. Se não
voltassem, como devia interpretar isso?
Haplo meditou no assunto. Um raio de luz que brilha
na escuridão de uma caverna ilumina o caminho até certa
distância, até que enfraquece e termina por desaparecer
completamente. O raio é brilhante e concentrado quando
surge de sua fonte, mas quando se afasta dela começa a
decompor-se, a desagregar-se. Um calafrio percorreu sua
pele e lhe arrepiou os pelos dos braços. O cão se levantou
de repente, sentou-se sobre os quartos traseiros e mostrou
as presas com um rosnado baixo.
Os raios azuis eram incrivelmente poderosos. Teriam
que viajar a uma distância tremenda antes de
enfraquecerem a ponto de não poderem retornar. Ou teriam
encontrado algum tipo de obstáculo? Haplo retirou
lentamente as mãos da pedra.
Acomodou-se junto ao cão e o acariciou. O animal,
percebendo a inquietação de seu amo, olhou-o com
ansiedade, golpeando a coberta com a cauda e
perguntando o que fazer.
— Não sei — murmurou Haplo, observando o ar vazio
e deslumbrante.
Pela primeira vez em sua vida, sentia-se totalmente
impotente. No mundo Ariano, tinha enfrentado uma batalha
desesperada por sua vida e não tinha sentido o terror que
sentia agora. No Labirinto enfrentara incontáveis inimigos
muito superiores a ele em tamanho e em força — e, às
vezes, em inteligência — e nunca tinha sucumbido ao
pânico que começava a surgir em seu interior.
— Já chega de tolices! — disse em voz alta,
levantando-se de um salto com uma energia que assustou
ao cão e o fez retroceder, saindo do caminho.
Haplo percorreu a nave olhando por todas as janelas,
olhando por todas as frestas e vãos, com a desesperada
esperança de ver algo no céu azul esverdeado iluminado
por aqueles malditos sóis ofuscantes. Subiu à coberta e saiu
junto às enormes asas da nave. A sensação do vento lhe
açoitando o rosto proporcionou a primeira indicação de que
estava se movendo pelos ares. Agarrado à amurada,
colocou a cabeça para fora do casco e contemplou o infinito
vazio que se estendia abaixo dele. E de repente se
perguntou se estaria olhando realmente para baixo. Talvez
estivesse voando invertido e o que via estava acima. O
patryn não tinha como saber.
O cão ficou próximo da escada, levantou a cabeça e
soltou um ganido. O animal tinha medo de subir. Haplo por
um instante se imaginou caindo da coberta, caindo e caindo
interminavelmente, e compreendeu que o cão não queria
correr tal risco. As mãos do patryn, agarradas à amurada,
estavam banhadas em suor. Com um esforço, retirou-as e
voltou para baixo correndo.
Uma vez na ponte, caminhou por ela com passo
agitado e amaldiçoou sua covardia.
— Maldição! — exclamou, ao mesmo tempo em que
descarregava o punho contra a madeira.
As runas tatuadas em sua pele impediram que se
machucasse. O patryn nem sequer teve a satisfação de
sentir dor. Furioso, dispunha-se a golpear de novo o casco
quando um latido seco, imperioso o deteve. O cão se
ergueu sobre as patas traseiras e pulou, suplicando que
parasse. Haplo viu sua própria imagem refletida nos olhos
aquosos do animal, viu um homem agitado, à beira da
loucura.
Os horrores do Labirinto não tinham quebrado seu
ânimo. Por que, então, isto tinha que fazê-lo? Só porque não
tinha idéia de para onde ia, porque não era capaz de
distinguir onde era acima e onde abaixo, por aquela horrível
sensação de estar condenado a vagar sem fim por aquele
espaço vazio verde-azulado?
“Basta!”, disse a si mesmo.
Exalou um profundo suspiro e deu uns tapinhas no
cão.
— Está bem, moço, já me sinto melhor. Está bem.
O cão voltou em pé, olhando para seu dono com
inquietação.
— Controle — disse Haplo. — Tenho que recuperar o
controle. — A palavra lhe surpreendeu. — Controle. Perdi o
controle; isto foi o que me aconteceu. Até no Labirinto,
sempre tive o domínio da situação, sempre tive a
possibilidade de fazer algo que afetasse meu próprio
destino. Quando enfrentei os caodín estava em
inferioridade numérica, estava derrotado antes de lutar,
mas tive uma chance de agir. No fim, escolhi morrer, mas
então você apareceu — acariciou a cabeça do animal — e
decidi continuar vivendo. Agora não há nada que possa
fazer, ao que parece. Não tenho a menor chance de agir...
Ou tinha? O pânico recuou; o terror desapareceu. E
um raciocínio frio, lógico, encheu o espaço deixado. Haplo
cruzou a ponte até a pedra de governo. Pôs as mãos sobre
ela pela segunda vez, colocando-as sobre outra série de
runas diferentes, e pronunciou as palavras mágicas. Os
raios azuis surgiram de novo em todas as direções, desta
vez com outro propósito.
Nesta ocasião não procuravam matéria, terra ou
rocha. Agora procuravam sinais de vida.
A espera foi interminável e Haplo já começava a
sentir-se de novo lançado ao abismo negro do medo
quando, de repente, os raios voltaram. Haplo observou a
cena, desconcertado. As luzes chegavam de todas direções,
bombardeando-o e caindo sobre a pedra de cima, de baixo,
de todas os lados.
Aquilo era impossível, não fazia sentido. Como podia
estar rodeado de vida por toda parte? Evocou a imagem do
mundo de Pryan conforme tinha visto no diagrama dos
sartan: uma esfera flutuando no espaço. Os raios deveriam
ter chegado de uma só direção. Haplo se concentrou,
estudou as luzes e, por fim, decidiu que os raios que
chegavam de trás de seu ombro esquerdo eram mais
potentes que outros. Sentiu-se aliviado e resolveu voar
nessa direção.
Haplo levou as mãos a outro ponto da pedra e a nave
começou a virar lentamente, alterando o rumo. A cabine,
até aquele momento iluminada pelo brilho dos sóis,
começou a escurecer e as sombras se alargaram na
coberta.
Quando o raio ficou alinhado com o ponto certo da
pedra, a runa emitiu uma brilhante cintilação avermelhada.
O rumo foi estabelecido e Haplo retirou as mãos.
Com um sorriso, sentou-se junto ao cão e relaxou.
Fizera tudo que podia. Agora navegavam para algo vivo,
fosse o que fosse. Em relação aos outros sinais recebidos,
tão desconcertantes, Haplo só podia supor que tinha
cometido algum engano. Não os cometia freqüentemente,
mas decidiu que podia perdoar-se, dadas as circunstâncias.

CAPITULO 14
EM ALGUM LUGAR DE GUNIS

“Conhecemos as melhores rotas”, Rega havia dito a


Paithan.
Mas não existiam rotas melhores que outras. Só havia
uma. E nem Rega nem Roland nunca a tinham visto.
Nenhum dos dois irmãos tinha estado no reino dos anões,
detalhe que não revelaram ao elfo.
— O que pode ter de especial? — Roland havia dito a
sua irmã. — Será como qualquer outra rota através da
selva.
Mas não era e, depois de alguns ciclos de viagem,
Rega começou a pensar que tinham cometido um engano,
ou vários.
O caminho, onde podia ser chamado assim, era muito
recente. Tinha sido aberto na selva por mãos anãs, o que
significava que avançava por baixo dos níveis superiores
das enormes árvores, onde humanos e elfos se sentiam
mais confortáveis. O caminho dava voltas e voltas através
de regiões sombrias e escuras. Nas escassas ocasiões em
que a luz do sol chegava até eles, parecia refletida através
de um telhado de vegetais.
Lá embaixo, o ar parecia preso pelos ramos que
ficavam acima. Era rançoso, quente e úmido. As chuvas
torrenciais sobre as copas das árvores desciam até ali,
filtradas através de incontáveis ramos, folhas e leitos de
musgo. A água não era clara e fresca, mas tinha uma cor
escura e um intenso sabor de musgo. Era um mundo
diferente, deprimente, e ao fim de um penton 22 de marcha,
os dois humanos do grupo estavam profundamente fartos

22
Medida de tempo humana, equivalente a uma quinzena. (N do A)
dele. O elfo, sempre interessado em novos lugares, achava
tudo emocionante e mantinha sua habitual atitude corajosa.
Entretanto, a trilha não tinha sido aberta para a
passagem de caravanas carregadas. Com freqüência, as
trepadeiras, árvores e sarças eram tão fechadas que os
tyros não podiam atravessá-los com a carga sobre seus
corpos couraçados. Quando tal coisa acontecia, os três
tinham que descarregar as cestas e arrastá-las pela selva,
sem deixar de encher os ouvidos dos tyros com adulações
para convencê-los a seguir em frente.
Em várias ocasiões, o caminho se interrompia na
beira de um leito de musgo cinza e hirsuto e era preciso
descer até profundidades ainda mais escuras, pois os anões
não tinham construído pontes que cruzassem os precipícios.
Ao chegar a um deles, foi preciso descarregar de novo os
tyros para que pudessem estender seus fios e descer por
sua conta. Os pesados cestos de mercadoria teriam que ser
levados nas costas.
Juntos, com os braços quase desconjuntados, os
humanos se prepararam e foram dando corda lentamente,
transportando a bagagem. A maior parte do trabalho
correspondia a Roland. O corpo magro e a escassa
musculatura de Paithan serviam de pouco. Finalmente, este
se encarregou de fixar a corda em torno do ramo de uma
árvore e amarrá-la com firmeza enquanto Roland, com uma
força que ao elfo pareceu maravilhosa, ocupava-se do
descida dos cestos sem ajuda alguma.
Primeiro baixou Rega, para que ela desamarrasse os
cestos quando chegassem ao fundo e para se assegurar de
que os tyros não fugiriam. A sós no fundo do precipício,
entre aquelas tempestuosas trevas cinza esverdeadas,
acompanhada de grunhidos e bufos e da súbita chamada
horripilante do vampiro, Rega agarrou o raztar e
amaldiçoou o dia em que tinha permitido que Roland a
metesse naquele assunto. Não só pelo perigo, mas também
por outra razão: algo completamente imprevisto,
inesperado. Rega estava se apaixonando.
— Os anões realmente vivem em lugares assim? —
perguntou Paithan olhando cada vez mais para cima, mas
sem nem sequer assim conseguir ver o sol através da
densa massa de musgo e ramos que o cobria.
— Sim — respondeu Roland lacônicamente, não muito
disposto a tratar o assunto por receio de que o elfo lhe
fizesse mais perguntas sobre os anões dos que estava
preparado para responder.
Os três estavam descansando depois de cruzar o
maior dos precipícios que tinham encontrado até então. As
cordas de cânhamo não tinham alcançado o fundo e Rega
tivera que subir em uma árvore para desamarrar os cestos,
que tinham ficado pendurando a alguns palmos do chão.
— Nossa, suas mãos estão cobertas de sangue! —
exclamou Rega.
— Ora, não é nada! — Disse Paithan, olhando com
tristeza para as palmas cheias de arranhões. — escorreguei
quando já estava no último lance de corda.
— É este maldito ar úmido — murmurou Rega. —
Tenho a impressão de estar vivendo no fundo do mar.
Venha, deixe-me cuidar delas. Roland, querido, traga um
pouco de água.
Roland, rendido de esgotamento sobre o musgo,
lançou um olhar furioso a sua “esposa”: “ por que eu?”,
dizia sua atitude. Rega devolveu a seu “marido” um olhar
de resposta que parecia replicar: “deixe-me a sós com ele e
não reclame, a idéia foi sua”.
Roland, vermelho de raiva, ficou em pé e entrou na
selva levando o odre da água.
Aquela era a ocasião perfeita para que Rega
continuasse sua manobra de sedução. Era evidente que
Paithan a admirava, tratando-a com indefectível cortesia e
respeito. De fato, Rega nunca tinha conhecido um homem
que a tratasse tão bem. Mas ao ter aquelas mãos finas e
brancas de dedos longos e esbeltos entre as suas, curtas e
morenas, com os dedos rechonchudos, Rega se sentiu de
repente tímida e desajeitada como uma menina em seu
primeiro baile.
— Seu contato é muito agradável — disse Paithan.
Rega ruborizou, ergueu os olhos para ele sob suas
longas pestanas negras e encontrou os de Paithan, que a
contemplavam com uma expressão incomum no
despreocupado elfo: seu olhar era grave, sério.
“Oxalá não fosse a esposa de outro homem.”
“Não sou!”, quis gritar Rega.
A mulher notou um tremor nos dedos, retirou-os
rapidamente e se virou para procurar algo em sua
bagagem.
“O que está me acontecendo?”, pensou. “ É um elfo!
Só nos interessa seu dinheiro! Isto é tudo que importa!”
— Tenho um ungüento de casca de sporn. Acho que
vai arder, mas amanhã pela manhã estará curado.
— A ferida que sofro não se curará jamais.
A mão de Paithan acariciou o braço de Rega com
gesto doce e carinhoso. Rega ficou completamente imóvel e
deixou que a mão deslizasse sobre sua pele, braço acima,
despertando à sua passagem um verdadeiro incêndio de
paixões. A pele ardia e as chamas se estendiam pelo peito e
lhe oprimiam os pulmões. A mão do elfo deslizou depois
pelas costas da mulher até rodeá-la pela cintura para atraí-
la para ele. Rega, agarrada com força ao frasco de
ungüento, não opôs resistência mas não olhou para Paithan
em nenhum momento. Era incapaz de fazê-lo. Tudo aquilo
acabaria bem, pensou.
A pele do elfo era suave, os braços magros, o corpo
ágil. Rega tratou de ignorar o fato de que o coração lhe
pulsava como se fosse sair do peito.
“Roland voltará e nos encontrará... nos beijando... e
nós dois... estamos brincando com este elfo...”
— Não! — exclamou Rega, e escapou do abraço de
Paithan. A pele ardia mas, inexplicavelmente, foi tomada de
um calafrio. — Não... não faça isso!
— Sinto muito — murmurou Paithan, retirando o braço
imediatamente. Também ele respirava agitado, a respiração
rápida. — Não sei o que me aconteceu. Você é uma mulher
casada e eu me excedi.
Rega não respondeu, manteve-se de costas para o
elfo, desejando mais que tudo no mundo que ele a
estreitasse em seus braços mas consciente de que voltaria
a rechaçá-lo se o fizesse.
“É uma loucura”, pensou, secando uma lágrima com
as costas da mão. “deixei que homens que não me
importavam me tocassem e agora este... que eu quero...
não posso...”
— Não voltará a acontecer, prometo — acrescentou
Paithan.
Rega compreendeu que ele falava sério e amaldiçoou
seu coração, que se encolhia e agonizava ante tal
perspectiva. Diria a verdade. Já tinha as palavras nos lábios,
mas se conteve.
O que ia dizer? Que Roland e ela não eram casados,
que eram irmãos, que tinham mentido para surpreender o
elfo em uma relação indecorosa, que tinham planejado
submetê-lo a chantagem? Rega imaginou seu olhar de asco
e de ódio. Certamente a abandonaria.
“Seria melhor que o fizesse”, sussurrou-lhe a voz fria
e dura da lógica. “Quais as possibilidades de ser feliz com
um elfo? Mesmo que encontrasse um modo de dizer-lhe que
está livre para aceitar seu amor, quanto duraria? Ele não a
quer de verdade; nenhum elfo pode amar um humano de
verdade. Só está se divertindo. Não seria mais que um
passatempo, um romance que duraria um par de estações,
quando muito. Depois, a abandonaria para retornar aos
seus e você seria uma proscrita entre sua própria gente por
ter se entregado às carícias de um elfo.”
“Não”, replicou Rega. “Paithan me ama. Vi isso em
seus olhos e tenho uma prova disso: não tentou me forçar
em seu desejo.”
“Muito bem”, insistiu a vozinha irritante. “Digamos
que tem razão e que ele a quer. O que acontece então? Os
dois se tornarão proscritos. Ele não pode voltar para seu
povo e você, tampouco. Seu amor é estéril, pois elfos e
humanos não podem ter filhos. Os dois vagarão pelo mundo
em solidão. Os anos passam e você ficará velha e
quebrada, enquanto ele se mantém jovem e cheio de
vida...”
— Ei, o que está acontecendo aqui? — exclamou
Roland, surgindo inesperadamente dentre os arbustos. Ao
ver a cena, ficou paralisado.
— Nada — respondeu Rega com voz fria.
— Já vou descobrir — murmurou Roland,
aproximando-se de sua irmã. Esta e o elfo estavam um em
cada extremo da pequena clareira do bosque, o mais
afastados possível um do outro. — O que aconteceu, Rega?
Vocês brigaram?
— Não aconteceu nada! Me deixe em paz! — Rega
elevou a vista para as árvores escuras e retorcidas, rodeou
o corpo com os braços e estremeceu visivelmente. — Este
não é um lugar muito romântico, sabe? — acrescentou em
voz baixa.
— Vamos, irmãzinha! — Insistiu Roland com um
sorriso. — Você faria amor em uma pocilga, se o homem
pagasse o suficiente.
Rega deu-lhe um bofetão. O golpe foi duro e preciso.
Roland olhou-a perplexo, ao mesmo tempo em que levava a
mão à bochecha dolorida.
— Por que fez isso? Era só uma piada...
Rega virou-se sobre os calcanhares e abandonou a
clareira. Ao chegar a beira da vegetação, virou-se
novamente e jogou um objeto para o elfo.
— Tome, ponha isto nos arranhões.
“Tem razão”, disse a si mesma enquanto entrava na
selva para chorar sem que a vissem. “Deixarei as coisas
como estão. Entregaremos as armas, ele partirá e assim
tudo acabará. Eu sorrirei e não lhe darei a entender em
nenhum momento que significa para mim mais que um
flerte...”
Paithan, pego de surpresa, agarrou o frasco bem a
tempo de evitar que caísse ao chão. Depois, viu Rega
desaparecer na mata e ouviu-a abrir caminho entre os
arbustos.
— Mulheres! — resmungou Roland, esfregando a
bochecha dolorida e meneando a cabeça. Levou o odre de
água até o elfo e o depositou a seus pés. — Deve ser o
período.
Paithan ruborizou intensamente e lançou um olhar
envergonhado ao humano. Roland piscou o olho.
— O que aconteceu, Quin? Disse algo inconveniente?
— Em minha terra, os homens não falam destas
coisas — respondeu o elfo.
— Ah, não? — Roland olhou para o lugar por onde
Rega tinha desaparecido; depois, olhou de novo para o elfo
e seu sorriso aumentou. — Suponho que, em sua terra, são
muitas as coisas que os homens não fazem.
O acesso de fúria de Paithan se transformou em um
sentimento de culpa. Ele os teria visto juntos? Seria aquela
sua maneira de lhe avisar que mantivesse as mãos quietas?
O elfo teve que engolir o insulto, pelo bem de Rega.
Acomodou-se no chão e começou a aplicar o ungüento
sobre as palmas das mãos, esfoladas e ensangüentadas.
Quando o líquido escuro tocou a carne viva, Paithan não
pôde evitar uma careta de dor. Entretanto, acolheu esta dor
com satisfação; ao menos, ela era preferível à que roia seu
coração.
Paithan tinha se divertido com as ligeiras insinuações
de Rega durante o primeiro par de ciclos de trajeto até que,
de repente, deu-se conta de que estava deleitando-se
muito com aqueles flertes. Com excessiva freqüência, tirava
o chapéu admirando com grande atenção o movimento dos
músculos de suas pernas bem torneadas, o quente fulgor
de uma chama em seus olhos pardos, o gesto de passar a
língua por seus lábios tintos de suco quando a humana
estava imersa em profundos pensamentos.
A segunda noite de viagem, quando Rega e Roland
tinham levado suas mantas ao outro extremo da clareira de
bosque e se deitaram um ao lado do outro sob a luz mortiça
da hora da chuva, Paithan tinha notado que se mordia de
ciúmes. Não importava que nunca os surpreendesse
beijando-se ou sequer acariciando-se com afeto. De fato, o
casal se tratava com uma despreocupada familiaridade que
era desconcertante, até mesmo entre casais. Depois, no
quarto ciclo de marcha, tinha chegado à conclusão de que
Roland — apesar de ser um tipo bastante agradável para o
que se esperava de um humano — não apreciava o tesouro
que tinha por mulher.
Paithan se sentiu satisfeito com aquela descoberta,
pois lhe proporcionava uma desculpa para deixar que
crescessem e florescessem seus sentimentos pela humana,
quando sabia perfeitamente que deveria tê-los arrancado
pela raiz. Nos ciclos transcorridos, a planta tinha florescido
completamente e as raízes se enroscavam agora em torno
de seu coração. Muito tarde, deu-se conta do dano que
tinha causado... a ambos.
Rega o amava. Estava certo disso: tinha notado no
tremor de seu corpo e o tinha visto naquele único e breve
olhar que a humana tinha dado. Mas Paithan, cujo coração
deveria estar dando saltos de alegria, sentia-se embotado
de desespero. Que loucura! Que estúpida loucura! Sim,
claro, podia obter dela alguns momentos de prazer, como
tinha feito com tantas mulheres humanas. Amava-as e, em
seguida, deixava-as. Elas não esperavam nada mais, não
queriam nada mais. E ele tampouco. Até aquele momento.
Mas, o que desejava? Uma relação que os separaria
de suas respectivas vidas? Uma relação contemplada com
aversão por ambos os mundos? Uma relação que não lhes
daria nada, nem sequer filhos? Uma relação que, em pouco
tempo, chegaria a um amargo e inevitável final?
“Não”, pensou. “De uma coisa assim não pode sair
nada bom. Partirei. Voltarei para casa. Darei os tyros de
presente. Calandra ficará furiosa comigo de qualquer modo,
se for por uma causa ou por outra. Irei agora mesmo.”
Mas continuou sentado, aplicando o ungüento com
gesto ausente. Acreditou ouvir um pranto ao longe e,
embora tentasse não prestar atenção ao som, chegou um
momento em que não pôde suportar.
— Acho que sua esposa está chorando — disse
Roland. — Talvez algo esteja errado.
— Rega chorando? — Roland deixou de alimentar os
tyros e olhou para ele com expressão divertida. — Não,
deve ter sido um pássaro. Rega nunca chora; não derramou
uma lágrima nem sequer quando a feriram em uma briga
com raztares. Viu a cicatriz? Está aqui, na coxa esquerda...
Paithan ficou em pé e se internou na selva, em
direção contrária a que Rega tinha tomado.
Roland seguiu o elfo com a extremidade do olho até
que desapareceu e, depois, começou a cantarolar uma
canção obscena que naquela época corria de boca em boca
pelos botequins.
— Ele se apaixonou como um adolescente
inexperiente — confiou aos tyros. — Rega o está levando
com mais calma do que o habitual, mas suponho que sabe
o que tem nas mãos. Afinal, o sujeito é um elfo. De
qualquer forma, sexo é sexo. Os bebês elfos devem vir de
alguma parte e não acredito que seja do ar. Em
compensação, as mulheres elfas... Puaj! São pura pele e
ossos; é como se alguém levasse um pau para a cama. Não
é de estranhar que o pobre Quin siga Rega com a língua de
fora. É só uma questão de tempo. Um par de ciclos mais e o
pegarei com as calças arriadas. Então ajustaremos as
contas com o elfo. Embora seja uma pena... — refletiu
Roland. Jogou o odre da água no chão, apoiou as costas em
uma árvore e se estirou para aliviar a rigidez de seus
músculos. — Começo a gostar do sujeito.
CAPÍTULO 15

O REINO DOS ANÕES,


THURN

Amantes da escuridão, das cavernas e dos túneis, os


anões de Pryan não construíam suas cidades nas copas das
árvores como os elfos, nem nas planícies de musgo, como
faziam os humanos. Os anões abriam caminho para baixo
através da sombria vegetação, procurando a terra e a rocha
que eram sua herança, embora esta não fosse mais que
uma vaga lembrança de um tempo passado em outro
mundo.
O reino de Thurn era uma enorme caverna de
vegetação. Os anões viviam e trabalhavam em casas e
oficinas esculpidas como nichos nos troncos de gigantescas
árvores chaminé, assim chamadas porque sua madeira não
queimava facilmente e a fumaça das fogueiras dos anões
podia subir através de condutos naturais que os troncos
tinham no centro. Ramos e raízes formavam ruas e
caminhos iluminados com tochas de chama vacilante. Elfos
e humanos viviam em um dia perpétuo. Os anões viviam
em uma noite sem fim, uma noite que amavam e
consideravam uma bênção, mas que Drugar temia que
estivesse a ponto de se tornar permanente.
O anão recebeu a mensagem de seu rei durante a
hora de comer. O fato de que chegasse precisamente então
lhe deu uma idéia da importância de seu conteúdo, pois a
hora da comida era um momento em que alguém devia
prestar plena e total atenção à alimentação e ao muito
importante processo digestivo posterior. Durante a ingestão
dos mantimentos era proibido falar e, na hora seguinte, só
se tratavam de temas agradáveis para evitar que os sucos
estomacais se azedassem e provocassem transtornos
gástricos.
O mensageiro real se desculpou profusamente por
distrair Drugar da comida, mas acrescentou que o assunto
era muito urgente. Drugar saltou de sua cadeira,
derrubando os copos e pratos de barro e fazendo seu velho
criado grunhir e dizer coisas terríveis para o estômago do
jovem anão.
Drugar, que teve a lúgubre sensação de saber o
motivo da chamada, esteve a ponto de lhe replicar que os
anões podiam dar-se por afortunados se todas as suas
preocupações se reduzissem a uma má digestão.
Entretanto, guardou silêncio. Entre os anões, os velhos
eram tratados com respeito.
A casa de seu pai no tronco era contigua à sua e
Drugar não teve que andar muito. Cobriu a distância
correndo mas ao chegar à porta parou de repente, sentiu
medo de entrar; não queria ouvir o que tinha o dever de
conhecer. De pé na escuridão, enquanto acariciava a pedra
rúnica que levava em torno do pescoço, suplicou ao Um
Anão que lhe desse coragem e, depois de exalar um
profundo suspiro, abriu a porta e penetrou na sala.
A casa de seu pai era exatamente igual à sua, que
por sua vez era idêntica às outras moradias dos anões de
Thurn. A madeira da árvore tinha sido alisada e polida até
adquirir um quente tom amarelado. O solo era plano e as
paredes se elevavam até formar um teto em arco. O
mobiliário era muito singelo. Ser rei não proporcionava
nenhum privilégio especial, só mais responsabilidades. O rei
era a cabeça do Um Anão e, embora a cabeça pensasse
pelo corpo, não era certamente mais importante para este
que, por exemplo, o coração ou o estômago (o órgão mais
importante, na opinião de muitos anões).
Drugar encontrou seu pai sentado à mesa, com os
pratos meio cheios a um lado. Tinha na mão um pedaço de
casca cujo lado liso estava profusamente coberto com as
letras enérgicas e angulosas da escrita dos anões.
— O que houve, pai?
— Os gigantes se aproximam — disse o velho anão.
Drugar era fruto de um matrimônio tardio de seu pai. Sua
mãe, embora mantivesse relações muito cordiais com o
progenitor de Drugar, tinha própria casa como era costume
entre as anãs quando seus filhos alcançavam a maturidade.
— Os exploradores os viram. Os gigantes varreram Kasnar:
as pessoas, as cidades, tudo. E vêm para cá.
— Possivelmente o mar os deterá — disse Drugar.
— Sim, o mar os deterá, mas não por muito tempo —
continuou o velho anão. — Os exploradores dizem que não
são hábeis com as ferramentas. As poucas que têm utilizam
para destruir, não para criar. Não pensarão em construir
naves. Mas darão a volta e virão por terra.
— Talvez não dêem a volta. Pode ser que só queriam
se apropriar de Kasnar.
Drugar disse por pura esperança, não por
convencimento. E assim que as palavras saíram de seus
lábios, compreendeu que essa esperança era vã.
— Não se apropriaram de Kasnar — replicou seu pai
com um suspiro aflito. — Eles o destruíram. Por completo.
Seu objetivo não é conquistar, é destruir.
— Então, pai, já sabe o que devemos fazer. Temos
que ignorar esses estúpidos que dizem que os gigantes são
nossos irmãos. Temos que fortificar a cidade e armar nosso
povo. Escute, pai. — Drugar se inclinou para o ancião e
baixou a voz, embora na casa do monarca não houvesse
ninguém mais. — Entrei em contato com um traficante de
armas humano. Arcos e molas de suspensão elfos! Serão
nossos!
O velho anão olhou para seu filho e no fundo de seus
olhos, até aquele momento escuros e carentes de brilho,
acendeu-se uma chama.
— Excelente! — Estendeu o braço e pousou seus
dedos nodosos sobre a mão forte de seu filho. — É atrevido
e rápido de pensamento, Drugar. Será um bom rei. Mas não
acredito que as armas cheguem a tempo — acrescentou,
meneando a cabeça e coçando a barba de cor cinza aço
que lhe caia quase até o joelho.
— Será melhor que sim, ou alguém vai pagar! —
grunhiu Drugar.
O jovem se levantou e começou a passear pela
pequena sala às escuras, construída muito abaixo das
planícies de musgo, o mais longe possível do sol. — Porei
em ação o exército...
— Não — disse o ancião.
— Pai, não seja teimoso...
— E você não seja kadak!23 — O velho monarca
levantou o cajado, nodoso e retorcido como seus próprios
braços e pernas, e apontou com ele para seu filho. — Disse
que você seria um bom rei. E não teria dúvida se...
soubesse dominar seu fogo. A chama de seus pensamentos
arde e se eleva muito alto mas, em lugar de manter o fogo
controlado, deixa que ele lance labaredas a esmo.
Drugar franziu suas grandes sobrancelhas e que lhe
escureceram a expressão. O fogo de que falava seu pai
ardia em seu interior, esquentando palavras mordazes.
Drugar lutou contra seu temperamento: as palavras lhe
rasgavam os lábios, mas conseguiu segurá-las atrás deles.
Amava e respeitava seu pai, embora considerasse que o
ancião estava ruindo debaixo daquele golpe terrível.
— Pai, o exército...
— ... se voltará contra si mesmo e os anões lutarão
entre si — prognosticou o monarca, com voz tranqüila. — É
isso o que você quer, Drugar?
O ancião se levantou. Sua estatura já não era
impressionante: as costas encurvadas já não se
endireitavam, as pernas não sustentavam mais o corpo sem

23
Peça de madeira empapada em resina que se acende rapidamente quando se pronuncia a runa
adequada. (N. do A.)
ajuda. Mas Drugar, imponente ao lado de seu pai, viu tanta
dignidade na figura cambaleante, tanta sabedoria em seu
olhar apagado, que voltou a se sentir como um menino.
— A metade do exército se negará a empunhar as
armas contra seus “irmãos”, os gigantes. O que você fará
então, Drugar? Vai ordenar que vão à guerra? E como fará
que cumpram a sua ordem, filho? Mandando à outra
metade do exército que tome as armas contra eles? Não
faça isso! — O velho monarca golpeou o chão com o cajado
e as paredes de palha vibraram sob sua cólera. — Que não
chegue nunca o dia em que o Um se rompa! Que não
chegue nunca o dia em que o corpo verta seu próprio
sangue!
— Perdoe-me, pai. Não tinha pensado nisso.
O rei ancião suspirou. Seu corpo se encolheu e
afundou sobre si mesmo. Cambaleando, agarrou a mão de
seu filho e, com a ajuda deste e do cajado, deixou-se cair
de novo na cadeira.
— Contenha sua fúria, filho. Contenha-a ou destruirá
tudo a sua passagem, incluindo a si mesmo, Drugar.
Inclusive você mesmo. Agora, vá terminar de comer.
Lamento ter interrompido.
Drugar deixou seu pai e retornou para sua casa, mas
não voltou a sentar-se à mesa, pôs- se a caminhar para
cima e para baixo pela casa. Tentou com todas as suas
forças controlar o fogo que lhe queimava por dentro, mas
foi inútil. Uma vez avivadas, as chamas do temor por seu
povo não eram fáceis de aplacar. Não podia nem queria
desobedecer o ancião que além de seu pai era também seu
rei. Apesar disso, Drugar decidiu não deixar que o fogo se
apagasse totalmente. Quando o inimigo chegasse,
encontraria uma chama ardente, não cinzas apagadas e
frias.
O exército anão não foi mobilizado mas Drugar, em
particular e sem conhecimento de seu pai, preparou planos
de batalha e incitou todos os anões que tinham a mesma
opinião que ele para que tivessem as armas à mão. Do
mesmo modo, manteve-se em estreito contato com os
exploradores para seguir, mediante seus informes, os
progressos dos gigantes. Chegados ao obstáculo
intransponível do mar Sussurrante, os invasores se
encaminharam por terra para o leste, avançando
inexoravelmente para seu objetivo... fosse ele qual fosse.
Drugar não acreditava que o propósito dos gigantes
fosse aliar-se aos os anões. Thurn ouviu rumores sombrios
de matanças de anões nas populações do Grish e Klan, para
o norint, mas era difícil seguir a pista dos invasores e as
notícias dos exploradores (os escassos informe que
chegavam) eram confusos e não faziam muito sentido.
— Pai — suplicou ao velho rei, — é preciso que me
deixe convocar o exército! Como podemos continuar
ignorando estas mensagens?
Com um suspiro, o ancião respondeu:
— São os humanos... O conselho decidiu que são os
refugiados humanos que, fugindo dos gigantes, cometem
essas loucuras. Dizem que os gigantes se aliarão a nós e
que então chegará a hora de nossa vingança!
— Interroguei pessoalmente os exploradores, pai —
insistiu Drugar com crescente impaciência. — Com os que
restaram. Cada dia chegam menos informes e os poucos
exploradores que voltam, fazem-no cheios de pânico.
— É mesmo? — perguntou seu pai, olhando-o com ar
perspicaz. — E o que contam que viram?
Drugar titubeou, frustrado.
— Está bem, pai! Até agora, não viram nada, na
verdade!
— Eu também os ouvi, filho — assentiu pesadamente
o ancião. — Ouvi esses rumores sobre “a selva em
movimento”. Como posso me apresentar ao conselho com
tal argumento?
Drugar esteve a ponto de dizer a seu pai onde podia
meter o conselho e seus próprios argumentos, mas
percebeu que uma resposta tão brusca não serviria para
nada, exceto para irritar ainda mais o ancião. O monarca
não tinha culpa; Drugar sabia que seu pai tinha defendido a
mesma posição que ele sustentava. O conselho do Um,
formado pelos anciões da tribo, não quisera escutá-lo.
Com os lábios apertados para que não escapassem
de sua boca palavras ardentes, Drugar abandonou furioso a
casa de seu pai e pôs-se a andar pela vasta e complexa
série de túneis escavados na vegetação, encaminhando-se
para cima. Quando emergiu, entreabrindo os olhos, nas
regiões banhadas pelo sol, contemplou a selva. Ali fora
havia algo. E vinha em direção a eles. E Drugar não
acreditava que o fizesse com espírito fraternal. O anão
aguardou, com uma sensação de crescente desespero, a
chegada das armas élficas, mágicas e inteligentes.
Se aqueles dois humanos o tinham enganado...
Drugar jurou pelo corpo, a mente e a alma do Um que, se
assim fosse, os faria pagar com a vida.
CAPÍTULO 16

EM OUTRA PARTE DO GUNIS

— Não suporto mais isso! — declarou Rega.


Tinham transcorrido dois ciclos mais e a viagem os
tinha levado ainda mais para baixo, para as entranhas da
selva, muito longe do nível das copas, muito longe do sol,
do ar puro e da chuva refrescante. A caravana se achava a
beira de uma planície de musgo. O caminho cruzava uma
profunda ravina cujo fundo se perdia nas sombras. Deitados
de barriga para baixo na borda do escarpado de musgo, os
dois humanos e o elfo escrutinavam de cima sem poder ver
o que havia abaixo deles. A densa folhagem e os ramos das
árvores sobre suas cabeças impediam totalmente a
passagem da luz solar. Se continuassem descendo, teriam
que viajar em uma escuridão quase absoluta.
— Falta muito? — perguntou Paithan.
— Para chegar até os anões? Um par de jornadas,
calculo — respondeu Roland, sem deixar de escrutinar as
sombras.
— Calcula? Não tem certeza?
O humano ficou em pé e explicou:
— Aqui embaixo, a gente perde a noção de tempo.
Não há flores das horas, nem de nenhum outro tipo.
Paithan não fez comentários e continuou
contemplando o abismo, como se estivesse enfeitiçado pela
escuridão.
— Vou ver o que os tyros estão fazendo.
Rega se levantou, lançou um olhar penetrante e
expressivo ao elfo e fez um gesto a Roland. Juntos e em
silêncio, os dois irmãos se afastaram do precipício e
retornaram a pequena clareira no bosque onde tinham
amarrado os tyros.
— Isto não está certo. Tem que lhe dizer a verdade —
murmurou Rega, puxando a correia de um dos cestos.
— Eu? — replicou Roland.
— Baixe a voz! Está bem, temos que dizer-lhe a
verdade.
— E que parte da verdade pensa lhe revelar, querida
esposa?
Rega olhou de soslaio para seu irmão. Depois, afastou
o rosto.
— Só... só reconhecer que nunca percorremos este
caminho. Admitir que não sabemos onde diabos estamos
nem para onde vamos.
— O elfo irá embora.
— Esplêndido! — Rega deu um enérgico puxão à
correia, provocando o gemido de protesto do tyro. —
Tomara que o faça!
— O que aconteceu? — perguntou Roland.
Rega olhou ao seu redor e estremeceu.
— É este lugar. Eu o odeio. Além disso... — voltou a
concentrar a vista na correia e passou os dedos por ela
ausente, — há o elfo. É muito diferente do que você me
tinha pintado. Não é prepotente nem arrogante. Não tem
medo de sujar as mãos. E não é um covarde. Faz o que lhe
corresponde e fez as mãos em migalhas com essas cordas.
É um sujeito animado e divertido. Até cozinha, o que é
muito mais do que você faz, Roland! Paithan é... é
encantador. Não merece... o que tramamos.
Roland percebeu uma onda de rubor que subia pelo
pescoço moreno de sua irmã até tingir de carmesim suas
bochechas. Rega manteve o olhar baixo. Roland agarrou-a
pelo queixo e obrigou-a a virar o rosto para ele. Sacudindo
a cabeça de um lado para outro, soltou um longo assobio.
— Parece que você se apaixonou por ele!
Furiosa, Rega afastou a mão com um golpe.
— Nada disso! Afinal, ele é um elfo!
Assustada com seus sentimentos, nervosa e tensa,
furiosa consigo mesma e com seu irmão, Rega disse isso
com mais energia da que pretendia. Ao pronunciar a
palavra “elfo” franziu os lábios como se a cuspisse com
repugnância, como se tivesse provado algo asqueroso e
nauseabundo.
Ou, ao menos, assim foi como soou a Paithan.
O elfo se levantara de sua posição sobre o precipício
e voltava para informar a Roland que as cordas lhe
pareciam muito curtas e que não poderiam baixar a carga.
Paithan avançava com movimentos ligeiros e ágeis próprios
dos elfos, sem a idéia premeditada de surpreender a
conversa dos humanos. Entretanto, foi precisamente isso o
que aconteceu. Chegou a seus ouvidos com nitidez a
declaração final de Rega e, imediatamente, agachou-se
entre as sombras de um brinco de evir, oculto atrás de suas
largas folhas, e prestou atenção ao diálogo.
— Escute, Rega, já que chegamos tão longe,
proponho que levemos o plano até o final. O elfo está louco
por você! Cairá na armadilha. Surpreenda-o a sós em algum
canto escuro e incite-o a um corpo a corpo. Então eu
apareço e ponho a salvo sua honra, ameaçando contar a
todo mundo. Ele solta o dinheiro para nos manter calados.
Entre isso e a venda das armas, viveremos
estupendamente até a próxima estação. — Roland acariciou
afetuosamente a longa cabeleira negra de sua irmã. —
Pense no dinheiro, garota. Passamos fome muitas vezes
para deixar escapar esta oportunidade. Como você disse,
ele é um elfo.
Paithan sentiu o estômago se encolher. Deu meia
volta e se afastou entre as árvores com rapidez e em
silêncio, sem se preocupar em olhar muito bem que direção
tomava. Não chegou a ouvir a resposta de, mas tanto fazia.
Preferia não vê-la dirigir um sorriso de cumplicidade a
Roland; se voltasse a ouvi-la pronunciar a palavra “elfo”
naquele tom de desprezo, seria capaz de matá-la.
Apoiado em uma árvore, enjoado e com vertigem,
Paithan ofegava e se assombrou com seu comportamento.
Não podia acreditar na sua reação. O que importava tudo
aquilo, afinal? Que aquela mulher estivera brincando com
ele... Mas se tinha descoberto seu jogo no bar, antes até de
empreender a viagem! Como era possível que se deixasse
cegar daquele modo?
Tinha sido ela. E ele tinha sido bastante estúpido para
pensar que a humana estava se apaixonando por ele! Todas
aquelas conversas ao longo da travessia... Paithan tinha lhe
contado histórias de sua terra, de suas irmãs, de seu pai e
do velho feiticeiro louco. Ela tinha rido, tinha parecido
interessada. E em seus olhos tinha visto um brilho de
admiração.
E haviam aquelas ocasiões em que se haviam tocado,
por pura casualidade, o roçar de seus corpos, o encontro de
suas mãos ao procurar o mesmo odre de água. E aquela
vibração das pálpebras, aqueles suspiros, aquele rubor na
pele.
— Trabalhou muito bem, Rega! — Resmungou para si
mesmo, apertando os dentes. — Realmente bem! Sim,
estava louco por você! Teria caído na armadilha! Mas agora
não! Agora sei muito bem o que é, pequena vadia! — O elfo
fechou com força os olhos, contendo as lágrimas, e apoiou
todo seu peso na árvore. — Bendita Peytin, Sagrada Mãe de
todos nós! Por que me fez isto?
Possivelmente foi a prece, uma das poucas que o elfo
fez em sua vida, mas lhe assaltou uma pontada de culpa.
Paithan sabia desde oprincípio que Rega pertencia a outro
homem e, apesar disso, tinha flertado com ela na presença
do próprio Roland. O elfo teve que reconhecer que tinha
achado muito divertida a idéia de seduzir uma esposa
debaixo do nariz do marido.
“Esse é o seu castigo”, ela parecia lhe dizer. Mas a
voz da deusa tinha um tom parecido com o de Calandra e
só conseguiu deixá-lo mais furioso.
“Só queria me divertir”, justificou para si mesmo.
“Nunca teria permitido que as coisas fossem tão longe,
claro que não. E certamente não tinha intenção de... de me
apaixonar.” Este último pensamento, ao menos, era
verdade e fez Paithan acreditar em todo o resto.
— O que houve, Paithan? Aconteceu algo?
O elfo abriu os olhos e virou a cabeça. Rega estava a
sua frente e erguia uma mão para segurar seu braço. Com
um gesto brusco, afastou-a, fugindo ao contato.
— Nada — respondeu, contendo-se.
— Mas você está com um aspecto horrível! Está
passando mal? — Rega tentou segurá-lo outra vez. — Está
com febre?
Paithan se afastou outro passo. Estava disposto a
golpeá-la, se lhe tocasse.
— Sim. Não. Hum... febre, não. Foi... um enjôo. A
água, talvez. Deixe-me... deixe-me um momento sozinho.
Sim, já se sentia melhor. Totalmente curado. Pequena
vadia. Custava-lhe muito dissimular seu rancor e desprezo e
por isso manteve a vista afastada dela, fixa na selva.
— Acho que eu deveria ficar com você — disse Rega.
— Não parece nada bem. Roland está procurando outro
caminho para descer ou um lugar onde o precipício não seja
tão fundo. Creio que demorará bastante para voltar...
— É mesmo? — Paithan olhou para ela com uma
expressão tão estranha e penetrante que desta vez foi ela
quem deu um passo para trás. — Realmente demorará
muito para voltar?
— Eu não... — titubeou Rega. Paithan se lançou sobre
ela, agarrou-a pelos ombros e a beijou com força,
afundando os dentes em seus lábios carnudos. Tinham
sabor de suco de uvas e sangue. Rega se debateu, tentando
se soltar. É obvio: tinha que fingir certa resistência.
— Não lute! — sussurrou-lhe. — Eu te quero! Não
posso viver sem você!
O elfo esperava que ela se derretesse, que gemesse,
que o cobrisse de beijos. Então apareceria Roland, confuso,
horrorizado e magoado. Só o dinheiro acalmaria a dor da
traição.
“Então começarei a rir!”, pensou. “Rirei dos dois e
direi onde podem enfiar o dinheiro!”
Passando um braço pelas costas da mulher, o elfo
apertou o corpo seminu desta contra o seu. Com a outra
mão, tentou acariciá-la.
Uma violenta joelhada na virilha fez o elfo dobrar-se
de dor. Punhos contundentes o golpearam suas clavículas,
fazendo-o retroceder e mandando-o ao chão entre a
vegetação.
Inflamada de ira, com olhos chamejantes, Rega se
plantou junto a ele.
— Nem pense em voltar a me tocar! Não se aproxime
de mim! Nem me dirija mais a palavra!
Seus cabelos negros se arrepiaram como a pele de
um gato assustado. Virou-se e se afastou a grandes passos.
Enquanto rodava de dor pelo chão, Paithan teve que
reconhecer que aquilo o deixara absolutamente perplexo.
Ao voltar de sua busca por uma passagem mais
conveniente, Roland avançou silenciosamente pelo musgo
com a esperança, uma vez mais, de surpreender Rega e
seu “amante” em uma situação comprometedora. Chegou
ao lugar do caminho onde tinha deixado sua irmã e o elfo,
aspirou profundamente para lançar o grito de indignação de
um marido ultrajado e olhou, oculto atrás das folhas de um
frondoso arbusto. Imediatamente, soltou o ar com gesto de
decepção e desespero.
Rega estava sentada na beirada do precipício de
musgo, encolhida como um esquilo de lombo arrepiado,
com as costas curvadas e os braços em torno dos joelhos.
Observou seu rosto de perfil e, ante sua expressão sombria
e turbulenta, quase imaginou todo seu corpo rodeado de
espinhos como um ouriço. O “amante” de sua irmã estava o
mais longe possível dela, no outro extremo da clareira, e
Roland percebeu que estava inclinado em uma postura
bastante estranha, como se protegesse alguma parte
dolorida do corpo.
— Esta é a maneira mais estranha de seduzir alguém
que eu já vi! — Murmurou Roland para si mesmo. — O que
tenho que fazer com esse elfo? Pintar a cena? Talvez os
bebês elfos apareçam realmente no porta da casa em plena
noite! Ou talvez seja isso que ele pensa. Será preciso que
esse elfo e eu tenhamos uma conversa de homem para
homem.
— Ei! — Gritou, aparecendo de entre a selva
acompanhado de um grande estrépito. — Encontrei um
lugar, um pouco mais abaixo, onde sobressai da parede de
musgo uma plataforma de rocha. Podemos levar os cestos
até lá e depois baixá-los até o fundo. O que aconteceu? —
acrescentou olhando para Paithan, que caminhava curvado
e com movimentos cautelosos.
— Ele caiu — disse Rega.
— É mesmo? — Roland, que tinha ficado no mesmo
estado depois de um encontro com uma garçonete pouco
amistosa, observou sua irmã com suspeita. Rega não se
negara a levar adiante o plano para seduzir o elfo mas,
quanto mais pensava nisso, recordava que tampouco havia
dito explicitamente que o cumpriria. Apesar disso, não se
atreveu a dizer mais nada. O rosto de Rega parecia
petrificado e pelo olhar que dirigiu a seu irmão também
poderia transformá-lo em estátua.
— Sim, eu cai — Paithan afirmou com voz
cuidadosamente inexpressiva. — Eu... hum... tropecei em
um ramo.
— Que azar! — Roland deu-lhe uma piscada de
cumplicidade.
— Sim, azar! — repetiu Paithan. O elfo não olhou para
Rega, nem esta para ele. Com o rosto tenso e as
mandíbulas cerradas, os dois tinham a vista fixa em Roland.
Mas nenhum dos dois parecia vê-lo.
Roland ficou totalmente desconcertado. Não
acreditava no que lhe estavam dizendo e gostaria de
interrogar sua irmã e lhe tirar a verdade, mas não podia
levar Rega para uma conversa sem despertar as suspeitas
do elfo. E, além disso, Roland não estava muito seguro de
desejar um encontro a sós com Rega quando esta ficava
daquela maneira. O pai de Rega tinha sido o açougueiro do
povoado e o de Roland, o padeiro. (A mãe de ambos, apesar
de todos os seus deslizes, sempre tinha procurado que sua
família estivesse bem alimentada.) Havia momentos em
que Rega mostrava uma assombrosa semelhança com seu
pai. Este era um desses momentos. Roland quase pôde vê-
la a frente de uma cabeça de gado recém sacrificada, com
um brilho sedento de sangre no olhar.
O humano gaguejou e fez um gesto vago com a mão.
— O... hum... o lugar que encontrei fica nessa direção,
não muito longe daqui. Acha que poderá chegar até lá?
— Sim! — Paithan trincou os dentes.
— Vou cuidar dos tyros — interveio Rega.
— O elfo poderia ajudá-la com os animais... —
apontou Roland.
— Não preciso da ajuda de ninguém! — replicou
Rega.
— Ela não precisa da ajuda de ninguém! — assentiu
Paithan com um murmúrio.
Rega se afastou em uma direção e o elfo o fez na
direção contrária. Nenhum dos dois se voltou para olhar
para o outro. Roland ficou sozinho no meio da clareira,
acariciando a barba castanha.
— Enfim, parece que eu estava errado — murmurou
para si mesmo. — Ela não gosta do elfo. E me parece que
seu desagrado começa a provocar a mesma reação em
Paithan. As coisas pareciam ir bem entre eles... O que terá
acontecido? Quando Rega está com esse humor, não
adianta falar com ela. Mas deve haver algo que eu possa
fazer...
Ouviu a voz de sua irmã suplicando e adulando os
tyros, tentando convencer os animais a se moverem. E viu
Paithan, que avançava capengante junto a borda do
despenhadeiro de musgo, voltar a cabeça e dirigir um olhar
de aversão a Rega.
— Só me ocorre uma coisa que posso fazer —
continuou murmurando Roland. — Continuar incentivando
os encontros entre eles. Cedo ou tarde, algo acontecerá.
CAPÍTULO 17

NAS SOMBRAS,
GUNIS

— Tem certeza de que isso é uma rocha? —


perguntou Paithan, escrutinando na penumbra uma cornija
de cor branca cinzenta que aparecia abaixo de sua posição,
apenas visível entre uma touceira de folhas e trepadeiras.
— Claro que tenho certeza — respondeu Roland. —
Lembre-se que nós já fizemos esta rota anteriormente.
— É que não o ouvi falar nessa formação de rocha tão
alto na selva.
— Lembre-se que já não estamos tão alto. Descemos
um trecho considerável desde o início da viagem.
— Escutem! Ficar aqui contemplando a paisagem não
vai nos levar a parte alguma — interveio Rega com os
braços cruzados. — Já estamos com ciclos de atraso em
relação à data da entrega e podem ter certeza que o
Barbanegra vai exigir um desconto por isso. Se está com
medo, elfo, eu desço!
— Não, eu faço isso — replicou Paithan. — Peso
menos que você, se a cornija for instável, poderei...
— Que pesa menos que eu! — interrompeu-o ela. —
Por acaso está dizendo que estou gor...?
— Vocês dois descerão — interveio Roland em tom
conciliador. — Primeiro baixarei os dois até a cornija; de lá,
você, Paithan, ajudará Rega a descer até o fundo. Depois,
irei baixando os cestos até a rocha e você se encarregará
de passá-los a minha ir... hum... a minha esposa.
— Olhe, Roland, eu acho que o elfo deveria baixar a
você e a mim e...
— Sim. Também acho que essa é a melhor solução...
— Tolice! — cortou Roland, satisfeito com seu
estratagema e tramando novos planos para o casal. — Eu
sou o mais forte dos três e o trecho até a cornija é o mais
longo da descida. Têm algo a dizer sobre isto?
Paithan dirigiu um olhar furioso ao humano, observou
seu rosto atraente e seus poderosos bíceps e manteve a
boca fechada. Rega não olhou sequer para seu irmão;
mordendo o lábio, cruzou os braços e cravou a vista nas
sombras da selva que se adivinhava a seus pés.
O elfo fixou uma corda em torno de um ramo grosso,
amarrou o outro extremo à cintura e saltou da borda do
precipício quase sem dar tempo a Roland para agarrar a
corda e controlar sua descida. Desceu aos saltos,
amortecendo agilmente com as pernas os golpes contra as
paredes verticais de musgo, acima Roland segurava a corda
para que Paithan não oscilasse muito. De repente,
desapareceu a tensão da corda e se escutou a voz do elfo
vinda muito abaixo:
— Muito bem! Já cheguei! — Depois de alguns
instantes de silêncio, os humanos voltaram a ouvir sua voz,
entre desgostosa e enojada. — Isto não é uma rocha! É um
maldito cogumelo!
— Um quê? — gritou Roland, olhando pelo precipício.
— Um cogumelo! Um cogumelo gigante!
Ao perceber o olhar irado sua irmã que lhe dirigia,
Roland deu de ombros.
— Como ia saber? — murmurou.
— De qualquer modo, parece ser bastante resistente
para utilizá-lo de plataforma — prosseguiu Paithan depois
de outra breve pausa. Os dois humanos captaram algo mais
a respeito de terem “uma sorte incrível”, mas as palavras
se perderam entre a vegetação.
— É tudo o que precisávamos saber — comentou
Roland com ar corajoso. — Muito bem, ir...
— Pare de me chamar assim! Hoje fez isso duas
vezes! O que está querendo?
— Nada. Sinto muito. É só que tenho muitas coisas na
cabeça. Vamos, é sua vez.
Rega amarrou a corda à cintura, mas não desceu
imediatamente pela borda. Jogando um olhar à selva atrás
de si, estremeceu e esfregou os braços.
— Odeio tudo isto.
— Você outra coisa além de repetir isso e já está
ficando pesada. Tampouco me entusiasma, mas quanto
antes terminarmos, antes poderemos voltar para onde o sol
brilha.
— Não... não é só a escuridão. Trata-se de algo mais.
Algo anda ruim, não está sentindo? Está muito... silencioso.
Roland fez uma pausa, olhou ao seu redor e prestou
atenção. Sua irmã e ele tinham enfrentado tempos difíceis
juntos. O mundo exterior se mostrou esquivo e os dois
irmãos tinham aprendido a confiar unicamente um no outro.
Rega possuía uma percepção intuitiva, quase animal, em
relação às pessoas e à natureza. As poucas vezes que
Roland, o maior dos dois, ignorava seus conselhos ou as
advertências de sua irmã, tinha se lamentado depois. O
humano conhecia a fundo os bosques e, agora que prestava
atenção à vegetação, também ele percebia o estranho
silêncio.
— É possível que aqui embaixo reine sempre esta
calma — disse. — Não corre a mais leve brisa e, como
estamos acostumados ao murmúrio do vento nas folhas...
— Não, não é só isso. Não se escuta o menor som dos
animais, nem se vê o menor rastro de sua presença. E já faz
quase um ciclo que os ruídos pararam. Até de noite. Até os
pássaros emudeceram. — Rega meneou a cabeça. — É
como se todas as criaturas da selva se escondessem.
— Talvez seja porque estamos perto do reino dos
anões. Sim, tem que ser isso, neném. O que mais poderia
ser?
— Não sei — respondeu Rega, escrutinando
atentamente as sombras. — Não sei. Enfim, espero que
tenha razão. Vamos lá! — acrescentou de repente. —
Acabemos com isso de uma vez!
Roland ajudou sua irmã a saltar pela borda do
precipício e Rega desceu com a mesma facilidade que
Paithan. Ao chegar embaixo, o elfo ergueu as mãos para
ajudá-la a pousar no cogumelo, mas o olhar que lhe lançou
com seus olhos escuros o avisou que era melhor que se
afastasse. Rega aterrissou agilmente na ampla plataforma
formada pelo cogumelo e em seus lábios apareceu uma
leve careta de asco ao observar a desagradável massa
branca cinzenta em que apoiavam os pés. A corda, que
Roland soltou de acima, caiu a seus pés formando um rolo.
Paithan começou a prender a corda em um ramo da parede
do precipício.
— A que está preso este cogumelo? — perguntou
Rega em um tom de voz frio, desprovido de emoção.
— Ao tronco de alguma árvore enorme — respondeu
Paithan no mesmo tom, enquanto apontava para as estrias
da casca de um tronco mais grosso que o elfo e a humana
juntos.
— É firme? — quis saber ela, olhando para o vazio,
com inquietação. Abaixo se divisava outra planície de
musgo. A distância não era excessiva se alguém descesse
com a corda firmemente amarrada à cintura mas, sem ela,
a queda seria longa e desagradável.
— Eu, se fosse você, não começaria a saltar —
Paithan disse. Rega escutou o comentário irônico e lhe
lançou um olhar furioso; logo, voltou a cabeça para cima e
gritou:
— Depressa, Roland! O que está fazendo?
— Um momento, querida! Tenho um pequeno
problema com um dos tyros.
Roland, com um sorriso, sentou-se na beira do
precipício, apoiou as costas em um ramo e relaxou. Com
uma vara, açulava de vez em quando um dos tyros para
fazê-lo mugir.
Rega franziu o cenho, mordeu o lábio e ficou na beira
do cogumelo, o mais longe possível do elfo. Paithan,
assobiando, prendeu sua corda em torno do ramo, provou-a
e começou a amarrar a de Rega.
Não queria olhar para ela, mas não pôde evitar. Seus
olhos não deixavam de se desviar para ela, de dizer ao seu
coração coisas que este não tinha o menor interesse em
escutar.
“Olhe para ela”, diziam-lhe. “Estamos em meio desta
terra maldita por Orn, só nós dois em cima de um cogumelo
pendurado em um abismo, e está, mais fria que o lago
Enthial. Você nunca conheceu outra mulher igual!”
“E com sorte”, sussurrou-lhe ao ouvido outra vozinha
maliciosa, “nunca voltará a encontrar!”
“Que cabelos suaves... Que aspecto terão quando
solta essa trança e os deixa cair sobre os ombros nus e se
esparramam sobre seus seios...? Seus lábios... o beijo foi
tão doce como eu imaginava...”
“Por que não se joga no precipício?”, aconselhou-o a
vozinha incomoda. “Economize toda esta agonia. Ela
aceitou seduzi-lo, chantageá-lo. Você está sendo estúp...”
Rega ofegou e retrocedeu involuntariamente indo
agarrar-se com ambas as mãos ao tronco que tinha a suas
costas.
— O que aconteceu? — Paithan soltou a corda e se
aproximou dela. Rega tinha a vista fixa à frente,
concentrada na selva. Paithan seguiu a direção do olhar. —
O que é? — perguntou.
— Não está vendo?
— O que?
Rega piscou e esfregou os olhos.
— Não... não sei. — Sua voz expressava perplexidade.
— Parecia que... que a selva se movia!
— Pode ser o vento — replicou Paithan, quase irritado,
sem querer reconhecer o medo que tinha sentido, nem o
fato de que não o tinha sentido por si mesmo.
— Sente alguma corrente de ar? — insistiu ela.
Não, não sentia. A atmosfera era calorosa e
opressiva; o ar estava imóvel. Veio-lhe à cabeça a imagem
inquietante de um dragão, mas não se sentia o chão vibrar.
Não se ouvia o ruído surdo das criaturas que viviam entre a
vegetação. Paithan não captava som algum. Tudo estava
silencioso. Muito silencioso.
De repente, acima deles, surgiu um grito:
— Ei! Voltem aqui! Malditos tyros!
— O que aconteceu? — uivou Rega virando e,
aproximando-se da ponta do cogumelo tanto quanto lhe
pareceu prudente, tentou sem êxito ver o que acontecia. —
Roland! — A voz se quebrou de medo. — O que aconteceu
aí em cima?
— Esses tyros estúpidos fugiram!
As exclamações de Roland desapareceram na
distância. Rega e Paithan ouviram o barulho de ramos e
trepadeiras ao quebrar-se e as fortes pisadas de Roland,
que faziam o tronco vibrar. Depois, reinou de novo o
silêncio.
— Os tyros são animais dóceis. Não se deixam levar
pelo pânico — afirmou Paithan. — Nunca fogem, a menos
que vejam algo que realmente os aterrorize.
— Roland! — Uivou Rega. — Deixe-os ir!
— Cale-se, Rega. Ele não pode fazer isso... Os tyros
estão com as armas...
— Por mim tanto faz! — gritou ela, frenética. — Por
mim, podem ir todos para o inferno: as armas, os anões, o
dinheiro e você! Roland! Volte! — Descarregou os punhos
sobre o tronco da árvore enquanto acrescentava: — Não
nos deixe presos aqui embaixo! Roland!
— O que foi isso...? — Rega se virou, ofegante.
Paithan, muito pálido, estava observando a selva. — Nada
— disse com uma careta tensa.
— Mentira. Você viu! — Replicou ela com um gemido.
— Viu como a selva se movia!
— É impossível. É uma ilusão de ótica. Estamos
cansados, não dormimos o suficiente e os olhos nos
enganam...
Um grito aterrador fendeu o ar acima deles.
— Roland! — exclamou Rega. Apertando o corpo
contra a casca da árvore, suas mãos se aferraram à
madeira e tentaram escalar o tronco. Paithan e puxou-a.
Furiosa, a humana se debateu em seus braços. Depois de
outro grito rouco, chegou a seus ouvidos um chamado:
— Reg...!
A palavra foi cortada por um gemido sufocado.
De repente, falharam as pernas a Rega e ela caiu
contra Paithan. O elfo a sustentou e levou uma mão a sua
cabeça, pressionando o rosto moreno contra seu peito.
Depois de a tranqüilizar, voltou a apoiá-la na árvore e
colocou-se a frente dela, protegendo-a com o corpo.
Quando ela percebeu o que fazia, tentou afastá-lo
para um lado.
— Não, Rega, fique onde está.
— Quero ver, maldito seja! Vou lutar... — Em sua mão
brilhou o raztar.
— Não sei contra o que — sussurrou Paithan. — Nem
como!
O elfo se afastou e Rega apareceu atrás dele, com os
olhos arregalados. Voltou a encolher-se contra o peito do
elfo, deslizando o braço em torno de sua cintura.
Abraçados, os dois contemplaram como a selva se movia
em silêncio, envolvendo-os.
Não conseguiram distinguir nenhuma cabeça, nem
olhos, braços, pernas ou corpo algum, mas os dois tiveram
a profunda impressão de que estavam sendo observados,
ouvidos e localizados por seres terrivelmente inteligentes e
extremamente malévolos.
E, então, Paithan os viu. Ou, mais que vê-los,
percebeu que uma parte da selva se separava do resto e
avançava para ele. Mas enquanto não a teve muito perto,
com a cabeça quase à altura da sua, o elfo não percebeu
que estava frente ao que parecia um humano gigantesco.
Paithan viu a silhueta de duas pernas e dois pés
caminhando sobre a vegetação. A cabeça do ser
monstruoso estava quase à altura do cogumelo onde
estavam e a criatura avançava diretamente para eles,
olhando-os com fixidez. Até aquele simples ato de dar uns
passos produzia horror, aparentemente, a criatura não
podia ver o que perseguia.
O ser carecia de olhos; em seu lugar, no centro da
face, parecia ter um grande buraco perfurado rodeado de
pele.
— Não se mova! — disse Rega com um gemido
entrecortado. — Não fale! Possivelmente não pode nos
localizar.
Paithan a abraçou com força e não respondeu. Não
queria acabar com suas esperanças. Um momento antes,
os dois tinham armado tal alvoroço que até um elfo cego,
surdo e bêbado poderia tê-los descoberto.
O gigante se aproximou e Paithan compreendeu por
que lhe tinha produzido a impressão de uma porção de
selva em movimento. Seu corpo estava coberto de folhas e
trepadeiras dos pés a cabeça, e sua pele tinha a cor e a
textura da casca de uma árvore. Até mesmo quando ele
estava muito próximo, Paithan custou diferenciá-lo do fundo
selvagem. A cabeça bulbosa estava nua, calva e
esbranquiçada, destacava-se do que tinha ao redor.
O elfo lançou um rápido olhar em torno de si e viu
vinte ou trinta daqueles gigantes emergindo da mata e
deslizando para eles com movimentos ágeis e em um
silêncio absoluto, sobrenatural.
Paithan, arrastando Rega consigo, retrocedeu até que
suas costas se chocaram com o tronco da árvore. Foi um
gesto desesperado e inútil, pois era evidente que não havia
escapatória. As cabeças os miravam fixamente com seus
espantosos buracos vazios e escuros. O gigante mais
próximo pousou suas mãos na borda do cogumelo e deu
uma sacudida.
A precária plataforma tremeu sob os pés de Paithan.
Outro gigante se uniu ao primeiro, erguendo seus dedos
enormes até agarrar o cogumelo. Paithan contemplou as
mãos imensas e, com uma espécie de terrível fascinação,
viu que estavam cobertas de sangue seco.
Os gigantes puxaram o cogumelo, este tremeu de
novo e Paithan ouviu a árvore se rasgar. A ponto de perder
o equilíbrio, o elfo e a humana se abraçaram.
— Paithan! — Gritou Rega, quebrando a voz. — Eu
sinto muito! Eu te quero! Quero de verdade!
Paithan quis responder, mas não pôde. O medo lhe
tinha prendido a garganta, tinha-o deixado sem fôlego.
— Beije-me! — ofegou ela. — Assim não verei como...
O elfo tomou o rosto de Rega entre suas mãos, lhe
obstruindo a visão.
Depois, ele também fechou os olhos e apertou seus
lábios contra os dela. E o mundo pareceu afundar sob seus
pés.
CAPITULO 18

EM ALGUM LUGAR SOBRE


PRYAN

Haplo, com o cão a seus pés, estava sentado perto da


pedra de governo, na ponte, escrutinando o exterior pelas
clarabóias da Asa de Dragão com gesto cansado e
desesperado. Quanto tempo deviam estar voando?
Um dia, respondeu-se a si mesmo com amarga ironia.
Um longo, estúpido, aborrecido e interminável dia.
Os patryn não possuíam aparelhos para medir o
tempo, pois não necessitavam deles. No Elo, sua
sensibilidade mágica ao mundo que os rodeava lhes
proporcionava uma consciência inata da passagem do
tempo. Entretanto, Haplo sabia por experiência que ao
passar pela Porta da Morte e entrar em outro mundo
alterava a magia. Quando se aclimatasse àquele novo
mundo, seu corpo recuperaria a percepção mágica perdida
mas, no momento, não tinha a menor idéia de quanto
tempo tinha transcorrido desde sua entrada em Pryan.
Haplo não estava acostumado àquela luminosidade
permanente. Até no Labirinto existiam dia e a noite. Muitas
vezes, o patryn tivera razões para amaldiçoar o cair da
noite, pois com ela chegava a escuridão e sob sua proteção
espreitavam os inimigos. Agora, em compensação, teria se
prostrado de joelhos e suplicado uma bendita pausa
daquele sol ardente, uma bendita sombra que lhe
permitisse descansar e dormir, mesmo que fizesse isso com
grandes precauções.
O patryn se alarmou ao surpreender-se, depois de
passar outra “noite” acordado, considerando seriamente a
possibilidade de arrancar os olhos.
Nesse instante, tinha compreendido que estava
ficando louco.
O terror diabólico do Labirinto não tinha conseguido
vencê-lo e, o que outros considerariam um paraíso — paz e
tranqüilidade e luz eterna — iam conseguir isso agora.
— Era de esperar — murmurou. Soltou uma
gargalhada e se sentiu melhor. Por enquanto tinha afastado
a loucura, embora soubesse que ela continuava rondando.
Ao menos tinha comida e água. Enquanto restasse
um pouco de ambas, poderia obter mais com um
encantamento. Por azar, a comida era sempre a mesma,
pois só podia reproduzir a matéria que já tinha, e não
estava a seu alcance modificar sua estrutura para fazer
aparecer outra diferente. Logo esteve tão farto de carne
seca e ervilhas que teve que obrigar-se a comer algo. Não
tinha previsto levar um sortido de mantimentos variados.
Nem ver-se preso no paraíso.
Haplo, homem de ação obrigado à inatividade,
passava a maior parte do tempo olhando fixamente pelas
janelas da nave. Os patryn não acreditavam em deuses,
mas viam a si mesmos como o mais próximo que existia de
seres divinos (embora dessem a contra gosto a mesma
consideração a seus inimigos, os sartan). Assim, Haplo não
podia suplicar a ninguém que aquilo terminasse. Só podia
esperar.
Quando avistou as nuvens pela primeira vez, não
disse nada, negando-se a aceitar — nem sequer ao cão — a
esperança de que talvez pudessem escapar de sua prisão
alada. Podia tratar-se de uma ilusão de ótica, de uma
dessas miragens que faziam ver água onde só havia
deserto. Afinal, não era mais que um ligeiro obscurecimento
do ar azul esverdeado a um tom cinza esbranquiçado.
Deu uma rápida volta em torno da nave para
comparar a cor do ar em frente a proa com o do vazio que
deixavam atrás e com o dos flancos.
E foi então, ao levantar a cabeça para o céu da
coberta superior da nave, que viu a estrela.
— Este é o fim — disse ao cão, piscando sob a luz
branca que brilhava sobre ele na nebulosa distancia verde
azulada. — Os olhos me enganam...
Como era possível que não tivesse visto nenhuma
estrela até então? Isso, se realmente fosse uma estrela...
Lembrou que a bordo, em alguma parte, havia um
artefato que os elfos utilizam para ver a grandes distancia.
O patryn poderia ter utilizado a magia para
potencializar sua visão mas, ao fazê-lo, teria que confiar
novamente de sua própria percepção. Em vez disso, teve a
impressão — por confusa que fosse — que, se colocasse um
objeto neutro entre seus olhos e a estrela, o objeto lhe
revelaria a verdade.
Revolveu a nave até encontrar a luneta, guardada em
uma gaveta como curiosidade. Levou-a ao olho e focou a
luz brilhante, quase esperando que desaparecesse.
Entretanto, apareceu ante ele, aumentada e mais brilhante,
com uma brancura imaculada.
Se era uma estrela, por que não a tinha visto antes? E
onde estavam as outras? Conforme seu amo tinha contado,
o mundo antigo estava rodeado de incontáveis estrelas
mas, durante a separação do mundo realizada pelos sartan,
todas elas tinham desaparecido, desapareceram. Segundo
seu amo e senhor, não deveria haver estrelas visíveis em
nenhum dos novos mundos.
Preocupado e pensativo, Haplo voltou para a ponte.
Seria melhor mudar o rumo, voar para a luz, investigá-la...
Afinal, não podia ser uma estrela... Seu amo havia dito.
Colocou as mãos sobre a pedra de governo, mas não
pronunciou as palavras que davam vida às runas. Em sua
mente surgiu uma dúvida.
E se meu amo estiver errado?
Haplo agarrou a pedra com força e as bordas afiadas
das runas cravaram-se na carne desprotegida de suas
palmas. A dor foi um castigo adequado por ter duvidado de
seu amo, por duvidar daquele que os tinha salvado do
Labirinto infernal, daquele que os conduziria à conquista
dos mundos.
Seu amo, com seus conhecimentos de astronomia,
havia dito que não haveria estrelas. Voaria para aquela luz
para investigá-la. Teria fé. Seu amo não nunca tinha errado.
Mas continuou sem pronunciar as palavras mágicas.
E se voasse para a luz e seu amo estivesse errado a
respeito daquele mundo? E se fosse semelhante ao antigo,
um planeta orbitando um sol em um espaço frio, negro e
vazio? Se fosse assim, podia terminar voando em um nada,
sulcando um nada até que a morte o alcançasse. Pelo
menos, agora tinha avistado o que esperava e acreditava
que eram umas nuvens. E onde havia nuvens, podia haver
terra.
“Meu amo é meu dono”, pensou o patryn.
“Obedecerei incondicionalmente em tudo. Ele é sábio,
inteligente e onisciente. Obedecerei-o. E...”
Haplo tirou as mãos da pedra de governo. Dando
meia volta com gesto mal-humorado, aproximou-se de uma
das clarabóias e observou o exterior.
— Ali está, moço — murmurou.
O cão, ao perceber o tom de preocupação na voz de
seu amo, lançou um ganido de simpatia e varreu o chão
com o rabo para indicar que estava a seu dispor se
necessitasse.
— Terra! — Continuou Haplo. — Por fim!
Conseguimos!
Já não restava nenhuma dúvida. As nuvens se
abriram e, abaixo delas, pôde ver uma massa verde escura.
Ao aproximar-se mais, percebeu que nela se distinguiam
várias tonalidades, zonas que iam de cinzento até um
verde-azul intenso e um verde esmeralda pintalgado de
amarelo.
— Como posso voltar atrás, agora?
Uma parte de sua mente lhe disse que fazê-lo seria
ilógico. Aterrissaria ali, estabeleceria contato com os
habitantes como lhe tinha ordenado e logo, ao partir,
poderia investigar à luz resplandecente.
Sim, era um plano coerente e Haplo se sentiu
aliviado. O patryn não era dado a perder tempo em
recriminações ou análises profundas sobre seus próprios
atos e se concentrou com calma na tarefa de preparar a
nave para a aterrissagem. Ao perceber a crescente
excitação de seu amo, o cão começou a pular em torno
dele, mordiscando-o e dando saltos.
Entretanto, sob a excitação, o júbilo e a sensação de
vitória fluía uma corrente oculta muito mais sombria.
Aqueles últimos instantes haviam trazido uma revelação
terrível e Haplo se sentia sujo e indigno. Atrevera-se a
pensar que seu amo e senhor podia errar.
A nave continuou aproximando-se da massa verde e,
pela primeira vez, Haplo se deu conta da velocidade a que
tinha viajado. A terra parecia vir para cima e se viu
obrigado a recanalizar a magia das runas das asas em uma
manobra que reduziu a velocidade e tornou mais lenta a
descida. Começou a distinguir árvores e grandes extensões
verdes, desertas, que pareciam adequadas para uma
aterrissagem. Enquanto sobrevoava um mar, divisou ao
longe outras extensões de água, lagos e rios, apenas
visíveis devido à espessa teia de vegetação que as rodeava.
Mas não encontrou nenhum sinal de civilização.
Continuou voando sobre as copas das árvores e não
viu cidades, nem castelos, nem muralhas. Por fim, cansado
de contemplar o interminável oceano verde sob a quilha,
Haplo se deixou cair no chão frente a um dos amplos
mirantes da ponte. O cão adormeceu. Não se viam navios
nos mares nem barcos nos lagos. Não havia caminhos que
cruzassem as planícies abertas, nem pontes que saltassem
os rios.
Segundo os registros deixados pelos sartan no Elo,
aquele mundo devia ser habitado por elfos, humanos e
anões, e talvez até pelos próprios sartan. Mas, se era assim,
onde estavam? Sem dúvida, já deveria ter visto algum sinal
de sua presença. Ou talvez não...
Pela primeira vez, Haplo começou a fazer uma idéia
da imensidão daquele mundo. Embora estivesse povoado
por dezenas de milhões de habitantes, podia passar toda a
vida buscando-os sem jamais encontrá-los. Sob o denso
dossel de árvores podiam ocultar-se cidades inteiras,
invisíveis ao olho que as buscasse de cima. Não haveria
modo das descobrir, de detectar sua existência, somente
aterrissando e tentando penetrar naquela densa massa de
vegetação.
— Isso é impossível! — murmurou para si mesmo.
O cão despertou e acariciou a mão de seu amo com
seu focinho frio. Haplo esfregou o pelo suave e apertou sem
perceber suas orelhas. O animal, com um suspiro, relaxou e
fechou os olhos.
— Precisaria de um exército para explorar esta terra!
E possivelmente nem assim encontraria nada. Talvez não
deveríamos nos incomodar... Ei? O que...? Um momento!
O patryn ficou em pé de um salto, alarmando o cão,
que começou a ladrar. Com as mãos na pedra de governo,
Haplo fez a nave virar lentamente enquanto observava com
atenção uma pequena mancha de verde cinzento mais
clara que o resto.
— Sim! Ali! — exclamou excitado, apontando o lugar
pela janela como se estivesse apresentando sua descoberta
a centenas de pessoas, em lugar de fazê-lo a um simples
cão.
Contra o fundo verde, eram claramente visíveis
pequenos pontos de luz, de diferentes cores. Haplo as tinha
visto pela extremidade do olho e tinha dado a volta para
certificar-se. Depois de uma breve pausa, os brilhos
reapareceram. Podia ser um fenômeno natural, pensou, e
se obrigou a tranqüilizar-se, consternado ante a falta de
domínio sobre si mesmo.
Não importava. Aterrissaria e descobriria o que era.
Ao menos assim sairia daquela maldita nave e respiraria ar
fresco.
Haplo desceu em círculos, guiado pelo pontos
luminosos. Quando esteve abaixo das copas mais altas,
contemplou uma vista que lhe teria feito dar graças a seu
deus por tão milagrosa era, isso se acreditasse em algum
deus ao qual agradecer.
Junto à zona limpa se elevava uma espécie de
estrutura, construída evidentemente por mãos inteligentes.
Os brilhos procediam daquele lugar. E agora podia ver
gente, pequenas silhuetas como insetos na planície verde
cinzenta. As faíscas luminosas começaram a ficar mais
freqüentes, como se estivessem excitadas também. Parecia
que as luzes se elevavam do grupo reunido lá em baixo.
O patryn se dispôs a entrar em contato com os
habitantes daquele novo mundo. Já tinha uma história
preparada, parecida com a que tinha contado a Limbeck, o
anão, no Ariano.
Vinha de outra parte de Pryan, e seu povo (conforme
se fossem apresentando as circunstâncias) fazia
exatamente o mesmo que eles: combater para libertar-se
de seus opressores. Uma vez ganha a batalha em sua terra,
Haplo tinha vindo para ajudá-los a conseguir a liberdade.
Naturalmente, havia a possibilidade de que aquela
gente — elfos, humanos e anões — vivessem em paz e
tranqüilidade, que não tivessem opressores, que a vida se
desenvolvesse placidamente sob o governo dos sartan e
que não necessitassem se libertar de ninguém. Haplo
meditou sobre aquela possibilidade e não demorou para
rechaçá-la com um sorriso. Os mundos mudavam, mas um
fato permanecia o mesmo. Simplesmente, não era da
natureza dos mensch24 viver em harmonia com outros
mensch.
O patryn via já com clareza as pessoas no chão e
percebeu que também o tinham visto. Alguns saíam
apressadamente do edifício, olhando para o céu. Outros
corriam por uma ladeira para o lugar onde brilhavam as
luzes. Começou a distinguir o que parecia uma grande
cidade oculta sob os amplos ramos de uma árvore. Por uma
fresta da vegetação selvagem, viu um lago rodeado de
edifícios enormes com hortas cultivadas e vastas extensões
de grama.
A distância se reduziu ainda mais e Haplo viu que os
presentes contemplavam seu dragão alado, cujo corpo e
cabeça estavam tão bem pintados que, de baixo, devia
parecer de carne e osso. Notou que muitas testemunhas
evitavam aventurar-se na zona limpa, onde era já evidente
que Haplo iria pousar. As pessoas se refugiavam sob a
proteção das árvores, curiosas mas muito precavidas para
aproximar-se mais. Na realidade, o patryn se surpreendeu
ao ver que toda aquela gente não fugia em pânico ante sua
aparição. Mais ainda; vários dos presentes, dois deles em
particular, pararam abaixo da nave, com a cabeça volta
para cima e uma mão erguida para proteger os olhos do
brilho do sol.
Haplo viu que um dos dois, uma figura envolta em
roupas largas de tons escuros, apontava para uma zona
plana e limpa gesticulando com os braços. Se não fosse
muito improvável, o patryn teria dito que estavam
esperando sua aparição.
— Estou há muito tempo aqui em cima — disse para o
cão. Com as patas firmemente plantadas na coberta da
ponte, o animal ladrava freneticamente para as pessoas
reunidas sob o casco.
O patryn não dispunha de tempo para continuar
contemplando a cena. Com as mãos na pedra de governo,

24
Termo usado por sartan e patryns para denominar as raças inferiores: elfos, humanos e anões. Aplica-
se a todas elas. (N do A)
conjurou as runas para diminuir a marcha da Asa de
Dragão, deixar a nave suspensa no ar e pousá-la no chão sã
e salva. Pela extremidade do olho, viu que a figura de roupa
escura saltava, agitando no ar um gorro velho e
desajeitado.
A nave tocou o chão e, para surpresa e alarme de
Haplo, continuou descendo. Estava afundando! Haplo
percebeu então que não estava em terra firme, e sim
pousado em um leito de musgo que cedia sob o peso da
nave voadora. Já se dispunha a ativar a magia para deter a
descida da embarcação quando esta ficou assentada por
fim, balançando quase como num berço .
Por fim, depois de uma travessia que lhe tinha
parecido durar séculos, Haplo tinha chegado ao seu destino.
Chegou às janelas, mas estavam enterradas sob o
espesso musgo e não se via nada além de uma massa de
folhas verde-cinzentas contra o cristal. Teria que sair pela
coberta superior.
De cima lhe chegaram vozes fracas, mas Haplo
considerou que a nave teria semeado tal temor reverencial
entre os nativos que estes não se atreveriam a aproximar-
se. Se o fizessem, levariam um susto. O patryn tinha
levantado um escudo mágico em torno do casco e quem o
tocasse acreditaria, por uma fração de segundo, que lhe
tinha caído um raio em cima.
Uma vez chegado ao seu destino, Haplo voltou a ser
ele mesmo. Seu cérebro voltou a pensar, a guiar seus atos,
a dirigi-lo. Vestiu-se de modo que todo seu corpo, tatuado
de signos mágicos, ficasse a salvo de olhares. Para isso,
calçou botas de couro, suaves e flexíveis, ajustadas sobre
calças também de couro, uma camisa de manga longa,
fechada no pescoço e nos punhos e, por cima, um colete de
pele. Por último, amarrou um lenço ao pescoço,
introduzindo as pontas sob a camisa.
As tatuagens não se estendiam pela cabeça nem pelo
rosto, pois sua magia poderia perturbar os processos
mentais. Surgindo de um ponto do peito acima do coração,
as runas ocupavam todo o resto de seu corpo, percorrendo
o tronco até os rins, as coxas, as panturrilhas e o peito do
pé, mas não a planta. Círculos, espirais e complexos
desenhos em vermelho e azul rodeavam seu pescoço,
estendiam-se por seus ombros, desciam pelos braços e
cobriam tanto a palma como as costas de suas mãos, mas
não os dedos. Assim, as únicas zonas de sua pele livres de
tatuagens mágicas eram o crânio, para que seu cérebro
pudesse guiar a magia, os olhos, ouvidos e boca, para
poder perceber o mundo exterior, e os dedos das mãos e as
plantas dos pés, para conservar o tato.
A última precaução de Haplo, uma vez que a nave
tinha aterrissado e ele não necessitava mais das runas para
pilotá-la, foi envolver as mãos com fortes bandagens.
Ajustou a atadura em torno do punho e cobriu toda a
palma, passando o tecido entre os dedos e deixando-os
descobertos.
Uma enfermidade da pele, tinha explicado Haplo aos
mensch em Ariano. Não era dolorosa, mas as pústulas
avermelhadas e cheias de pus que a doença provocava
eram repulsivas. No Ariano, depois de escutar suas
explicações, todos tinham tratado de evitar suas mãos
enfaixadas.
Bom, quase todo mundo.
Um homem tinha adivinhado que mentia; um homem,
depois de submetê-lo a um feitiço, tinha examinado as
ataduras e descoberto a verdade. Mas aquele homem era
um sartan, Alfred, e já suspeitava do que ia descobrir. Haplo
tinha percebido que Alfred prestava uma atenção fora do
normal a suas mãos, mas não tinha se incomodado... o que
tinha sido um erro quase fatal para seus planos. Desta vez,
o patryn sabia o que devia vigiar; desta vez, estava
preparado.
Conjurou uma imagem de si mesmo e a inspecionou
atentamente, dando uma volta completa em torno daquele
Haplo simulado. Por fim, deu-se por satisfeito. Não se via
nem sinal das runas. Dissolveu a imagem. Colocou em seu
lugar as bandagens das mãos, subiu à coberta superior,
abriu a escotilha e saiu, deslumbrado, sob o sol brilhante.
O murmúrio de vozes se apagou ante sua aparição.
Haplo se levantou na coberta e olhou a seu redor, parando
um instante para aspirar profundamente aquele ar fresco,
embora terrivelmente úmido. Abaixo de si viu algumas
cabeças levantadas, algumas bocas abertas, alguns olhos
assombrados.
Eram elfos, com uma exceção. A figura de amplas
roupas de cor arroxeada era um humano, um velho com um
comprido cabelo grisalho e longa barba branca. Ao
contrário dos outros, o ancião não o contemplava com
assombro e temor. Radiante, virava-se para um lado e a
outro enquanto alisava a barba.
— Eu lhes disse! — ouviu-o exclamar. — Não lhes
disse? Suponho que acreditarão agora!
— Cão, aqui! — Haplo soltou um assobio e o animal
apareceu na coberta, trotando. Sua presença provocou uma
nova onda de assombro entre os presentes.
Haplo não se preocupou em jogar a escadilha; a nave
afundara tanto no musgo — com as asas pousadas sobre
este — que pôde saltar ao chão sem problemas. Os elfos
reunidos em torno da Asa de Dragão se afastaram
apressadamente, observando o piloto da nave com
incredulidade e suspeita. Haplo aspirou profundamente e se
dispôs a contar a história que tinha preparada. Sua mente,
trabalhando a marchas forçadas, evocou o idioma dos elfos.
Mas não teve chance de falar. Antes que o fizesse, o ancião
correu até ele e estreitou uma de suas mãos enfaixadas.
— Nosso salvador! Bem a tempo! — Exclamou,
sacudindo seu braço energicamente na tradicional
saudação humana. — Teve um bom vôo?
CAPITULO 19

NA FRONTEIRA DE THURN

Roland, estendido no chão, se contorceu para mudar


de posição tentando aliviar a dor de seus músculos
enrijecidos. A manobra deu resultado durante alguns
instantes, mas braços e nádegas não demoraram para doer
de novo, só que em pontos diferentes. Com uma careta no
rosto e com movimentos dissimulados, tentou soltar as
trepadeiras que lhe atendiam os punhos mas a dor o forçou
a desistir. As cordas eram mais resistentes que o couro e
tinham deixado seus punhos em carne viva.
— Não desperdice suas forças — disse uma voz.
Roland voltou a cabeça para ver quem falava.
— Onde você está?
— Do outro lado da árvore. Essas cordas são de liana
de pytha e não poderá soltá-las. Quanto mais tentar, mais
apertarão.
Vigiando de canto de olhos seus captores, Roland
conseguiu arrastar-se em torno do grande tronco até
descobrir, do outro lado, a figura de um humano de pele
morena vestido com roupas de cores brilhantes. O homem
estava firmemente amarrado com trepadeiras em torno do
peito, dos braços e das mãos. Do lóbulo de sua orelha
esquerda pendia um aro de ouro.
— Andor — se apresentou, com um sorriso. Tinha um
lado da boca inchado e meio rosto manchado de sangue
seco.
— Roland Hojarroja. Você é um rei do mar? —
acrescentou, fazendo referência ao brinco.
— Sim. E você é da Thillia. O que estavam fazendo
nas terras de Thurn?
— Thurn? Não estamos em Thurn. Estávamos a
caminho das Terras Ulteriores.
— Não banque o esperto comigo, thilliano. Sabe
muito bem onde estamos. De modo que estão
comercializando com os anões... — Andor fez uma pausa e
passou a língua pelos lábios. — Quanto daria para beber
algo...
— Sou um explorador — explicou Roland, lançando
um olhar precavido a seus captores para assegurar-se de
que não o observavam.
— Podemos falar livremente. Não se importam. E não
é preciso ocultar nada, sabe? Não vamos viver o bastante,
então para que se importar.
— O que...? O que quer dizer?
— Esses gigantes matam tudo o que encontram pela
frente... Vinte pessoas, em minha caravana. Todos mortos.
Os animais, inclusive. Por que os animais? Eles não tinham
feito nada. Não faz o menor sentido, não é?
Mortos? Vinte pessoas mortas? Roland olhou
severamente para o outro prisioneiro pensando que talvez
estivesse mentindo, que só pretendia afugentar um thilliano
das rotas comerciais dos senhores do mar. Andor apoiou as
costas na casca da árvore, com os olhos fechados. Roland
observou o suor que escorria por sua face, as olheiras
escuras em torno de seus olhos fundos, os lábios
cinzentos... Não, ele não mentia. O coração se encolheu de
medo ao lembrar do grito frenético de Rega, chamando-o, e
engoliu para tirar da boca o gosto amargo.
— E... e você? — conseguiu articular.
Andor se estirou, abriu os olhos e voltou a sorrir. Foi
um sorriso torcido, devido ao inchaço da boca, e a Roland
pareceu atroz.
— Eu tinha me afastado do acampamento para
atender uma chamada da natureza. Ouvi a luta, os gritos...
Quando chegou a hora escura... Deus das Águas, que sede!
— Voltou a passar a língua pelos lábios. — Fiquei imóvel.
Que outra coisa podia fazer? Ao chegar a hora escura, voltei
para lá dando a volta. E os encontrei: meus sócios
comerciais, meu tio... — Andor moveu a cabeça de um lado
e para outro. — Pus-me a correr. Tratei de me afastar, mas
me agarraram e me trouxeram aqui pouco antes de
aparecerem com você. É estranho que possam ver tão bem,
sem olhos.
— Quais... que diabos são? — perguntou Roland.
— Não sabe? São titãs!
Roland soltou um gemido.
— Essas são histórias de crianças...!
— Sim, crianças...! — Andor se pôs a rir. — Meu
sobrinho tinha sete anos. Encontrei seu corpo. Tinha a
cabeça destroçada, como se alguém a tivesse esmagado de
uma pisada. — Iniciou uma gargalhada estridente, um uivo
que lhe rompeu na garganta, seguido de uma tosse
agônica.
— Acalme-se — sussurrou Roland.
Andor tomou ar com um estremecimento.
— São titãs, asseguro-lhe. Os mesmos destruíram o
império de Kasnar. Arrasaram tudo ali! Não ficou um só
edifício em pé, uma só pessoa com vida exceto os que
conseguiram fugir de seu avanço. E agora se dirigem para o
sul através do reino dos anões.
— Mas os anões os deterão, sem dúvida...
Andor suspirou, fez uma careta e moveu o corpo.
— Corre o rumor de que os anões estão aliados com
eles, que adoram esses açougueiros. Os anões planejam
deixar que os titãs sigam sua marcha e nos destruam;
então, os anões se apropriarão de nossas terras.
Roland lembrou vagamente que Barbanegra tinha
comentado algo de seu povo e os titãs, mas já fazia muito
tempo e, além disso, ele estava muito carregado de cerveja
nessa noite.
Pela extremidade do olho captou um movimento que
o impulsionou a virar-se. No amplo espaço aberto onde
estavam amarrados os dois humanos apareceram mais
gigantes, deslocando-se mais silenciosos que o vento e sem
que uma só folha se movesse durante a sua passagem.
Roland observou com cautela os recém chegados,
que traziam vultos nos braços. Reconheceu uma cabeleira
escura...
— Rega! — sentou-se, lutando com raiva para livrar-
se das cordas.
— Viajam em grupo? — Andor sorriu, torcendo a boca.
— E levavam um elfo com vocês! Deus das Águas, se lhes
tivéssemos pego...
Os titãs levaram seus cativos até a árvore próxima a
que Roland estava amarrado e os depositaram
delicadamente no chão. Roland ficou aliviado ao observar
que os captores tratavam seus prisioneiros com delicadeza.
Tanto Paithan como Rega estavam inconscientes e tinham
as roupas cobertas do que pareciam fragmentos de
cogumelo, mas nenhum dos dois parecia ferido. Roland não
viu sinal algum de sangue, contusões ou ossos quebrados.
Os titãs amarraram os cativos com movimentos ágeis e
experientes, observaram-nos durante alguns instantes
como se os estudassem e, por fim, deixaram-nos em paz.
Depois, reunidos no centro da clareira, os gigantes
formaram um círculo e pareceram conferenciar, voltando
suas enormes cabeças de um lado e para outro para falar
entre si.
— Que grupo mais espantoso — murmurou Roland.
Arrastando-se para mais perto de Rega, apoiou sua cabeça
no peito de sua irmã e escutou os batimentos do seu
coração, fortes e regulares. Com umas ligeiras cotoveladas,
tentou despertá-la. — Rega!
A mulher agitou as pálpebras. Ao abri-los, viu Roland
e pestanejou, surpreendida e confusa. A lembrança do
pânico invadiu seu olhar. Tentou mover-se, descobriu que
estava amarrada e conteve o fôlego em um gemido
apavorado.
— Rega! Silêncio! Fique quieta. Não, não tente! Essas
malditas lianas apertam ainda mais se tentar se libertar.
— Roland! O que aconteceu? O que são esses...? —
Rega voltou a vista para os titãs e estremeceu.
— Os tyros devem ter farejado esses seres e fugiram.
Eu ia atrás deles quando a selva ganhou vida ao meu redor.
Só tive tempo de gritar. Eles me agarraram e me deixaram
sem sentidos.
— Paithan e eu estávamos no... na plataforma. Os
gigantes vieram e apoiaram as mãos no cogumelo e
começaram a sacudi-lo...
— Vamos, vamos. Já passou. Quin está bem?
— Não sei... parece que sim. — Rega observou suas
roupas cobertas de esporos e murmurou: — O cogumelo
deve ter amortecido nossa queda. Paithan! — Acrescentou
em um sussurro, inclinando-se para o elfo. — Paithan, está
me ouvindo?
— Aiii! — O elfo recuperou a consciência com um
gemido.
— Faça-o se calar! — grunhiu Andor.
Os titãs tinham deixado de olhar uns para os outros e
deslocaram sua cega atenção aos prisioneiros. Um a um,
com movimentos lentos e ágeis sobre o chão selvagem, os
gigantes se aproximaram deles.
— Acabou-se! — murmurou Andor com voz lúgubre.
— Nos veremos no inferno, thilliano.
Alguém soltou um lamento doloroso; Roland não pôde
definir se fora Rega ou o elfo. Não pôde afasar os olhos dos
gigantes o tempo suficiente para averiguar. Notou o corpo
tremulo de Rega, apertado contra o seu, e o movimento do
musgo lhe indicou que Paithan, preso como o resto deles,
tentava arrastar-se para a mulher.
Olhando atentamente para os titãs, Roland não viu
nenhuma razão para sentir medo. Eram enormes,
certamente, mas não se mostravam especialmente
ameaçadores ou agressivos.
— Escute, irmãzinha — sussurrou a Rega pelo canto
dos lábios, — se quisessem nos matar, já o teriam feito.
Fique calma. Não parecem muito inteligentes e acredito que
podemos sair desta.
Andor soltou uma gargalhada, uma gargalhada
espantosa, arrepiante. Os titãs, uma dezena deles,
reuniram-se em torno de seus prisioneiros, formando um
semicírculo. As cabeças sem olhos estavam voltadas para
eles. E chegou a seus ouvidos uma voz muito suave, muito
pacífica, muito doce.
Onde está a cidadela?
Roland ergueu a vista para eles, perplexo.
— Eles disseram algo? — perguntou. Podia jurar que
suas bocas não se moveram.
— Sim, eu ouvi! — respondeu-lhe Rega, espantada.
Onde está a cidadela?
Voltaram a escutar a pergunta, no mesmo tom de voz
agradável, como se as palavras fossem sussurradas na
mente. Andor soltou de novo sua risada enlouquecida.
— Não sei! — gritou de repente, sacudindo a cabeça
para frente e para trás. — Não tenho idéia de onde está a
maldita cidadela!
Onde está a cidadela? Para onde devemos ir?
As palavras tinham agora um tom de urgência; já não
eram um sussurro e sim um grito que retumbava dentro de
seu crânio.
Onde está a cidadela? Para onde devemos ir? Digam-
nos!
Incômodo a princípio, o grito que perfurava a cabeça
de Roland se tornou rapidamente mais e mais doloroso.
Procurou em seu torturado cérebro, tentando
desesperadamente recordar, mas jamais tinha ouvido falar
de alguma “cidadela”, ao menos não na Thillia.
— Perguntem... ao... elfo! — conseguiu articular,
filtrando as palavras entre seus dentes, cerrados por causa
daquela dor insuportável.
Um grito terrível atrás de si revelou que os titãs
tinham seguido sua indicação. Paithan tentou resistir,
rolando pelo chão e retorcendo-se de dor, enquanto gritava
algo em elfo.
— Basta! Basta! — suplicou Rega e, de repente, as
vozes cessaram.
Em suas cabeças reinou de novo o silêncio. Roland
deixou de agitar-se, esgotado. Paithan jazia no musgo,
soluçando. Rega, com os braços firmemente amarrados,
encolheu-se a seu lado. Os titãs contemplaram seus
prisioneiros e um deles, sem qualquer aviso, agarrou um
ramo caído e golpeou com ele o corpo preso e indefeso de
Andor.
O rei do mar não teve chance de gritar; o impacto
esmagou a caixa torácica, rasgando seus pulmões. O titã
levantou o ramo e descarregou um novo golpe, que
afundou o crânio do humano desgraçado.
Uma chuva de sangue quente salpicou Roland. Os
olhos de Andor olhavam fixamente para seu assassino. O
senhor do mar tinha morrido com aquele desagradável
sorriso nos lábios, como se celebrasse alguma brincadeira
espantosa. Seu corpo se agitou com os estertores de sua
agonia.
O titã continuou descarregando golpes, empunhando
o ramo coberto de sangue, até reduzir o cadáver a uma
massa sanguinolenta. Depois de o deixar irreconhecível, o
gigante se voltou para Roland.
Aturdido e apavorado, Roland reuniu toda sua força
em um último esforço e se impulsionou para trás,
derrubando Rega. Rastejando pelo musgo, curvou-se sobre
ela para protegê-la com seu corpo. Rega ficou imóvel, muito
imóvel, e seu irmão pensou que talvez tivesse desmaiado.
Esperou que assim fosse. Assim seria mais fácil... muito
mais fácil. Paithan jazia perto deles, olhando para o que
tinha restado de Andor com olhos arregalados. O elfo tinha
o rosto de um tom cinzento e parecia ter parado de respirar.
Roland se preparou para receber o golpe, rogando
que o primeiro o matasse.
Escutou o rangido do musgo debaixo dele e notou
uma mão que surgia do chão e o agarrava pela fivela do
cinturão, mas aquela mão não lhe pareceu real, não tão real
como a morte que se abatia sobre ele. O inesperado puxão
através do musgo o devolveu bruscamente à consciência.
Soltou um grito, balbuciou e lutou, como um sonâmbulo
que caísse de bruços em um charco gelado.
A queda terminou brusca e dolorosamente. Abriu os
olhos. Não estava submerso em água, estava em um túnel
escuro que parecia escavado na grossa capa de musgo.
Uma mão forte o empurrou e uma folha afiada o liberou das
cordas.
— Vamos, vamos! Eles são bastante estúpidos, mas
nos seguirão!
— Rega... — murmurou Roland, tentando voltar.
— Está aqui! Ela e o elfo! Vamos, em frente!
Rega caiu quase em cima, empurrada por trás. A
mulher bateu a bochecha contra o ombro de seu irmão e
ergueu a cabeça, outra vez consciente.
— Corram! — ordenou a voz.
Roland agarrou sua irmã, arrastando-a consigo. A
frente deles se estendia um túnel estreito que se internava
no musgo. Rega abriu a marcha, avançava engatinhando.
Roland a seguiu. O temor ditava a seu corpo o que devia
fazer para escapar, pois seu cérebro parecia bloqueado.
Confuso, medindo o caminho entre a escuridão verde
cinzenta, engatinhou, se arrastou e chapinhou em sua fuga.
Rega, cujo corpo era mais magro, abria caminho pelo túnel
com facilidade; de vez em quando, detinha-se para olhar
para trás, procurando com os olhos o elfo, que avançava
atrás de Roland.
O rosto de Paithan mostrava uma palidez espectral e
mais parecia um fantasma que um ser vivo, mas não
deixava de avançar, empregando mãos, joelhos e ventre
como um réptil. Atrás dele, a voz não deixava de lhes
apressar.
— Em frente, vamos!
A tensão não demorou para afetar Roland. Doíam-lhe
os músculos, os joelhos estavam em carne viva e o ar lhe
queimava os pulmões. “Já estamos a salvo”, pensou. “O
túnel é muito estreito para esses monstros...”
Um estrondo, como se mãos gigantescas estivessem
rasgando o chão, impulsionou Roland a continuar a marcha.
Como um mangusta caçando uma serpente, os titãs
estavam abrindo o musgo, alargando o passadiço para
localizá-los.
Os fugitivos continuaram descendo pelo túnel, caindo
e rodando em ocasiões, quando o caminho ficava muito
ingreme e a escuridão os impedia de ver para onde iam. O
temor de seus perseguidores e a voz insistente lhes
impulsionou além dos limites de sua resistência até que um
gemido e um golpe surdo a suas costas indicou a Roland
que as forças tinham finalmente abandonado o elfo.
— Rega! — exclamou. Sua irmã parou, virou-se
lentamente e o olhou com ar cansado. — O elfo desmaiou.
Venha me ajudar!
A mulher assentiu, sem fôlego para falar, e voltou
atrás arrastando-se. Roland agarrou-a pelo braço e a sentiu
tremer de cansaço.
— Por que pararam? — perguntou a voz.
— Olhe o... elfo...! — respondeu Roland
entrecortadamente. — Está... acabado. Todos estamos...
Descanso. Precisamos... um descanso.
Rega se deixou cair junto a ele, ofegando e com
pontadas nos músculos. O sangue rugia nos tímpanos de
Roland; os batimentos do seu coração lhe impediam de
ouvir se seus perseguidores ainda estavam atrás deles.
Embora pouco importasse muito, pensou, se os ouvia
chegar ou não.
— Descansaremos um pouco — disse a voz áspera. —
Mas só um momento. Para baixo. Temos que ir mais para
baixo.
Roland olhou ao seu redor, piscando para eliminar as
grandes manchas e faíscas que apareciam ante seus olhos.
De qualquer modo, não havia muito que ver. A escuridão
era densa, intensa.
— Com certeza... não nos seguirão... tão longe...
— Vocês não os conhecem. São terríveis.
Aquela voz... Agora que a escutava com mais
atenção, soava-lhe conhecida...
— Barbanegra? É você?
— Já lhe disse que me chamo Drugar. Quem é o elfo?
— Paithan — se apresentou o elfo, apoiando-se nas
paredes do túnel até se agachar. — Paithan Quindiniar. É
uma honra conhecê-lo, senhor; quero lhe expressar meu
agradecimento por...
— Deixe de cortesias agora, elfo! — Grunhiu Drugar.
— Para baixo! Temos que continuar descendo!
Roland flexionou as mãos. As almas estavam
sangrando, cheias de arranhões produzidos ao apoiá-las nas
paredes ásperas do túnel de musgo.
— Rega? — chamou, preocupado.
— Sim, posso continuar. — Roland ouviu-a suspirar.
Depois, sua irmã se afastou dele e começou a engatinhar
de novo.
Roland também exalou um profundo suspiro, secou o
suor dos olhos e continuou a marcha, embrenhando-se mais
e mais na escuridão.

CAPITULO 20
OS TÚNEIS,
THURN

Os fugitivos avançaram se arrastando pelo túnel,


sempre descendo, e a voz continuou insistindo: “Vamos, em
frente!”. Suas mentes perderam logo a consciência de onde
estavam ou o que faziam. Transformaram-se em autômatos
que se moviam nas sombras como brinquedos de corda,
sem pensar em seus atos, muito esgotados e aturdidos
para que se importarem.
Em um dado momento, invadiu-os uma sensação de
imensidão. Ao estender a mão, já não tocavam as paredes
do túnel. O ar, embora estagnado, tinha um surpreendente
frescor e cheirava a umidade e a viço.
— Chegamos ao fundo — anunciou o anão. — Agora,
podem descansar.
Cairam ao chão, estendidos de costas, ofegantes, e
esticaram os músculos para aliviar as caibras causadas pela
penosa marcha. Drugar não voltou a abrir a boca. Se não
fosse por sua respiração estertórea, poderiam ter pensado
que já não estava com eles. Por fim, um pouco recuperados,
começaram a perceber melhor o lugar onde estavam. O
material sobre o qual estavam estendidos, fosse o que
fosse, era duro e resistente, escorregadio e ligeiramente
áspero ao tato.
— O que é esta substância? — perguntou Roland,
levantando-se um pouco. Afundou a mão, tirou um punhado
e o deixou correr entre os dedos.
— O que importa? — replicou Rega. Em sua voz
ofegante havia um tom agudo. — Não suporto isto! A
escuridão... É terrível! Não posso respirar! Estou
sufocada...!
Drugar pronunciou algumas palavras no idioma dos
anões, que soaram como o barulho de rochas se chocando.
Imediatamente, acendeu-se uma luz cujo brilho foi doloroso
para o resto do grupo. O anão sustentou no alto uma tocha.
— Melhor assim, humana?
— Não, não muito — respondeu Rega. Sentado-se e
olhou ao seu redor com um gesto de temor. — A luz só
torna mais escura a escuridão. Odeio este lugar! Não
suporto estar aqui embaixo!
— Prefere voltar para cima? — perguntou Drugar.
Rega empalideceu e arregalou os olhos.
— Não — murmurou, e mudou de posição para
aproximar-se de Paithan.
O elfo iniciou o gesto de passar o braço pelos ombros
da humana para reconfortá-la, mas olhou para Roland.
Depois, avermelhando, ficou em pé e se afastou alguns
passos. Rega o seguiu com o olhar.
— Paithan?
Ele não se voltou. Afundando a cara entre as mãos,
Rega soluçou amargamente.
— Isso onde está sentado é terra — disse Drugar.
Roland estava desconcertado, sem saber o que fazer.
Sabia que, como “marido” dela devia aproximar-se e
consolar Rega; entretanto, tinha a impressão de que sua
presença só pioraria as coisas. Além disso, sentia a
necessidade de consolar a si mesmo. Ao olhar para as suas
roupas à luz da tocha, viu as manchas vermelhas que o
cobriam. Era sangue. O sangue de Andor.
— Terra — repetiu Paithan. — Lama e rochas... Quer
dizer que estamos realmente ao nível do chão?
— Sim — interveio Roland. — Onde estamos?
— Isto é um k'tark, uma encruzilhada de caminhos,
em sua língua — respondeu Drugar. — Aqui se juntam
vários túneis. Nós o consideramos um bom lugar de
reunião. Há reservas de comida e água. — Apontou vários
vultos, apenas visíveis sob a luz piscante da tocha. —
Sirvam-se.
— Eu não tenho fome — murmurou Roland enquanto
esfregava freneticamente as manchas de sangue da
camisa. — Mas agradeceria por um pouco de água.
— Sim, água! — Rega levantou a cabeça e as
lágrimas de suas bochechas brilharam à luz da tocha.
— Eu pego — ofereceu o elfo.
Os vultos eram barricas de madeira. O elfo tirou a
tampa de uma delas, aproximou a cabeça e cheirou seu
conteúdo.
— Água — informou. Encheu uma cabaça e levou-a a
Rega.
— Beba — disse-lhe com doçura, enquanto sua mão
lhe acariciava o ombro.
Rega tomou a cabaça e bebeu com avidez. Seus olhos
estavam fixos no elfo, e os dele nos seus. Roland, ao vê-los,
sentiu um nó sinistro em suas vísceras. Tinha cometido um
engano: sua irmã e o elfo se gostavam. Gostavam-se muito.
E aquilo não estava nos planos. Não lhe importava um
centimo que Rega seduzisse um elfo, mas não ia tolerar que
se apaixonasse por ele.
— Ei! — exclamou. — Eu também quero beber.
Paithan se levantou. Rega lhe entregou a cabaça
vazia com um fraco sorriso. O elfo retornou até a barrica de
água. Rega lançou um olhar zangado e penetrante para seu
irmão. Roland o devolveu, carrancudo. Rega jogou para trás
sua cabeleira escura.
— Quero partir! — declarou. — Quero sair daqui!
— Certamente — replicou Drugar. — Já lhe disse:
volte por onde viemos. Estarão esperando.
Rega estremeceu. Reprimindo um grito, escondeu o
rosto entre seus braços cruzados. Paithan protestou:
— Não é necessário ser tão duro com ela, anão. Nós
tivemos uma experiência assustadora! E, por isso —
acrescentou, olhando ao seu redor, — aqui embaixo não me
sinto muito melhor!
— É como o elfo diz... — interveio Roland. — Você
salvou nossa vida. Por que?
Drugar acariciou um machado de madeira que tinha
pendurado ao cinto.
— Onde estão as molas de suspensão?
— Já imaginava — assentiu Roland. — Pois bem, se
essa foi a razão de ter nos salvado, perdeu seu tempo. Terá
que reclamar com esses gigantes. Mas talvez já o tenha
feito! O senhor do mar me disse que vocês, os anões,
adoram estes monstros. Disse-me que seu povo vai se aliar
a esses titãs para depois se apropriarem das terras dos
humanos. É certo isso, Drugar? Para isso queria as armas?
Rega ergueu a cabeça e olhou para o anão. Paithan
tomou um lento sorvo de água, com a vista fixa em Drugar.
Roland ficou tenso. Não gostou do brilho nos olhos do anão,
e do sorriso gelado que apareceu em sua boca.
— Meu povo... — murmurou Drugar. — Meu povo já
não existe!
— O que? Explique, Barbanegra, maldito seja!
— Está muito claro — interveio Rega. — Olhe para
ele, Roland. Pobre Thillia! Está dizendo que todo seu povo
morreu!
— Pelo sangue do Orn! — resmungou Paithan em elfo,
com espanto.
— É certo isso? — Exigiu saber Roland. — É verdade o
que diz? Seu povo... morto?
— Olhe para ele! — gritou Rega, a beira da histeria.
Aturdidos e cegos por seus próprios temores, nenhum
deles viu grande coisa no anão. Com os olhos já bem
abertos, viram que Drugar estava as roupas rasgadas e
manchadas de sangue. Sua barba, sempre muito bem
cuidada, estava rasgada e suja; o cabelo despenteado. No
antebraço tinha uma ferida longa e com aspecto ruim, um
fio de sangue coagulado corria por sua face. Suas mãos
acariciavam o machado.
— Se tivéssemos recebido as armas — murmurou
Drugar com o olhar vazio e fixo nas sombras que se
moviam nos túneis, — poderíamos te-los enfrentado. E meu
povo ainda estaria vivo.
— Não foi nossa culpa. — Roland levantou as mãos,
mostrando as palmas. — Viemos o mais rápido possível. O
elfo... — indicou Paithan, — o elfo chegou tarde.
— Eu não sabia de nada! Como ia saber? Foi esse
maldito caminho que tomamos, Hojarroja, para cima e para
baixo por ravinas enormes e selvas intermináveis...
Conduziu-nos diretamente até esses malditos...
— Ah! Agora vai jogar toda a culpa em mim...?
— Chega de discussões! — Gritou Rega. — Não
importa de quem seja a culpa! Só interessa sair daqui!
— Sim, tem razão — disse Paithan, tranqüilizando-se
e baixando a voz. — Tenho que voltar e avisar meu povo.
— Ora! Os elfos não têm com que se preocupar. Meu
povo saberá como enfrentar esses monstros! — Roland
olhou para o anão e deu de ombros. — Não se ofenda,
Barbanegra, meu amigo, mas alguns bons guerreiros,
alguns guerreiros de verdade, e não um grupo de gente
com as pernas cortadas à altura dos joelhos, não terão
nenhum problema para destruir esses gigantes.
— O que me diz de Kasnar? — Replicou Paithan. — O
que fizeram os guerreiros humanos desse império?
— Camponeses! Fazendeiros! — Roland fez um gesto
depreciativo. — Nós, os thillianos, somos guerreiros! Temos
experiência.
— Em esmurrar uns aos outros, talvez. Ali em cima
não parecia tão valente!
— Pegaram-me despreparado! O que esperava que
eu fizesse, elfo? Cairam em cima de mim antes que
pudesse reagir. Está bem; talvez não possamos abate-los
com uma flechada, mas garanto que, quando tiverem cinco
ou seis lanças cravadas nesses buracos da cabeça, não
terão vontade de continuar fazendo perguntas estúpidas a
respeito de nenhuma cidadela...
...Onde estão as cidadelas?
A pergunta ressoou na mente de Drugar, fustigou-o
como um martelo, cada sílaba como um golpe que lhe
causava dor física.
De seu posto de observação em uma das milhares de
casas anãs, Drugar contemplou a imensa planície de musgo
onde seu pai e a maioria de seu povo tinha saído ao
encontro da vanguarda de gigantes.
Não, “vanguarda” não era o termo correto. A noção
de vanguarda implica uma ordem, um movimento dirigido.
Para Drugar, pareceu que o reduzido grupo de gigantes
tinha tropeçado casualmente com os anões, que tinha
topado com eles sem querer e que se distraíram por alguns
instantes de seu objetivo principal para... para perguntar
uma direção?
“Não saia, pai!”, tinha tentado suplicar ao velho.
“Deixe-me falar com eles, já que insiste em tamanha tolice.
Você fique aqui, onde estará a salvo.”
Entretanto, Drugar sabia que, se dissesse algo assim
para seu pai, este seria capaz de lhe fazer provar o cajado
com o qual andava. E teria muita razão ao fazê-lo,
reconheceu Drugar. Afinal, seu pai era o rei e ele devia
estar a seu lado.
Mas não estava.
— Pai, ordene que ao povo que fique em casa. Você e
eu iremos tratar com esses...
— Não, Drugar. Todos formamos o Um. Eu sou o rei,
mas sou apenas a cabeça e todo o corpo deve estar
presente para escutar, testemunhar e participar da
conversa. Assim é desde o tempo da nossa criação. — A
face do ancião relaxou com uma careta de causar pena. —
Se este é realmente nosso fim, que se diga que caímos
como vivemos: unidos.
O Um se apresentou, surgindo de suas moradas na
selva, e se reuniu na imensa planície de musgo que
formava o teto de sua cidade, piscando, cerrando os olhos e
amaldiçoando o brilho do sol. Levados pela emoção de
receber seus “irmãos”, cujos enormes corpos eram quase
do tamanho de Darkar, seu deus, os anões não perceberam
que muitos de seus concidadãos ficavam para trás, perto da
entrada de sua cidade. Drugar tinha postado ali seus
guerreiros, com a esperança de poder cobrir uma retirada.
O Um viu a selva avançar sobre o musgo.
Meio cegos pelo sol, ao qual não estavam
acostumados, os anões viram como as sombras entre as
árvores ou até os próprios troncos deslizavam com pés
silenciosos pelo musgo. Drugar franziu o cenho e observou
os gigantes tentando distinguir quantos eram, mas foi como
contar as folhas em um bosque. Perplexo, aniquilado,
perguntou-se apavorado como combateria algo que não
podia ver. Com armas mágicas, armas élficas, armas
inteligentes que procuravam sua presa, talvez os anões
tivessem alguma chance.
O que devemos fazer?
A voz que lhe soava na cabeça não era ameaçadora.
Era triste, lastimosa, frustrada.
Onde está a cidadela? O que devemos fazer?
A voz exigia uma resposta. Estava desesperada por
obtê-la. Drugar experimentou uma estranha sensação; por
um instante, apesar do medo, compartilhou a tristeza
daquelas criaturas. Lamentou sinceramente não poder
ajudá-las.
— Nunca ouvimos falar de nenhuma cidadela, mas
ficaríamos felizes em nos unir a sua busca, se lhes parecer
bem...
Seu pai não teve chance de pronunciar uma palavra
mais.
Movendo-se em silêncio, agindo sem aparente raiva
nem malícia, dois dos gigantes ergueram as mãos,
agarraram ao velho monarca e o despedaçaram. Depois,
jogaram os pedaços sanguinolentos ao chão, com gesto
despreocupado, como se fossem lixo. Em seguida, com a
mesma ausência de ferocidade e de premeditação, os titãs
se dedicaram a matar sistematicamente os anões.
Drugar contemplou a cena, aflito e incapaz de reagir.
Com a mente paralisada pelo horror do que tinha
presenciado e não pudera evitar, o anão agiu por instinto.
Seu corpo fez o que devia, sem responder a nenhuma
ordem consciente. Agarrou um corno de Kurt, o levou aos
lábios e tocou um chamado estridente, avisando seu povo
para que voltasse para seus abrigos, que se salvassem.
Ele e seus guerreiros, alguns deles postados nos
ramos das árvores, lançaram suas flechas nos gigantes.
Aguçados dardos de madeira, capazes de atravessar o
humano mais corpulento, ricocheteavam na pele grossa dos
gigantes. Estes reagiram à chuva de setas como se fosse
uma nuvem de mosquitos, livrando-se delas aos tapas
enquanto davam uma pausa na carnificina.
A retirada dos anões não se produziu em desordem. O
corpo era um e algo que acontecesse a um indivíduo,
acontecia a todos. Assim, detinham-se para ajudar os que
caíam. Os velhos ficavam para trás, implorando aos jovens
que procurassem refúgio. Os fortes levavam os fracos. Por
tudo isso, os anões foram presa fácil.
Os gigantes os perseguiram, alcançaram rapidamente
e os destruíram sem piedade. A planície de musgo ficou
empapada de sangue. Os corpos se empilhavam. Alguns
pendiam das árvores onde tinham sido lançados; a maioria
tinha ficado irreconhecível.
Drugar aguardou até o último momento antes de
procurar abrigo, depois de se assegurar que os poucos
ainda com vida naquela planície espantosa tinham
conseguido escapar. Nem sequer então quis partir. Dois de
seus homens tiveram que arrastá-lo à força até os túneis.
Acima deles puderam ouvir o rangido dos ramos ao
quebrar-se. Parte do “teto” da cidade escavada na
vegetação afundou. Quando o túnel pelo qual avançavam
caiu, Drugar e o que restava de seu exército se voltaram
para enfrentar o inimigo. Já não era necessário correr ou
procurar refúgio. Já não havia lugar onde ficar a salvo.
Quando Drugar recuperou a consciência, tirou um
pedaço da seção da galeria parcialmente afundada caído
sobre ele. Em cima dele se empilhavam os corpos de vários
de seus homens. Enquanto afartava os restos dos anões,
parou para escutar, atento a qualquer ruído que revelasse a
presença dos titãs.
Só ouviu silêncio. Um silêncio inquietante, carregado
de presságios. Durante o resto de seus dias, continuaria
ouvindo aquele silêncio e, com ele, a palavra que
sussurrava em seu coração:
— Ninguém...

— Eu os levarei ao seu povo — disse Drugar de


repente. Eram as primeiras palavras que pronunciava
depois de um longo tempo.
Os humanos e o elfo interromperam suas mútuas
recriminações, voltaram-se e o olharam para ele.
— Conheço o caminho. — Apontou para onde as
trevas eram mais densas e acrescentou: — Esses túneis...
conduzem à fronteira de Thillia. Estaremos a salvo se nos
mantivermos aqui embaixo.
— Todo... todo o trajeto? Aqui embaixo? — protestou
Rega.
— Pode voltar para cima, se quiser! — recordou-lhe
Drugar, indicando um passadiço. Rega olhou para onde ele
apontava, engoliu em seco com um calafrio e moveu a
cabeça negativamente.
— Por que? — quis saber Roland.
— Isso — assentiu Paithan, — por que faria algo assim
por nós?
Drugar contemplou-os com uma chama de ódio nos
olhos. Sim, odiava aqueles humanos, odiava seus corpos
esquálidos, seus rostos imberbes. Odiava seu cheiro, sua
mania de superioridade; odiava seu tamanho.
— Porque é meu dever — respondeu.
O que acontece a um anão, acontece a todos.
A mão de Drugar, oculta sob a barba, procurou algo
sob o cinto. Seus dedos se fecharam em torno da faca de
caça de osso de vampiro. Uma terrível alegria inundou o
peito do anão.

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