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19
agosto
2009
ano II
ficina
SAMIZDAT 19
agosto de 2009
Autores Convidados
José Guilherme Vereza
Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada
Textos de: a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.
Augusto dos Anjos Todas as imagens publicadas são de domínio público, royalty
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Machado de Assis
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Sumário
Por que Samizdat? 6
Henry Alfred Bugalho
COMUNICADO
SAMIZDAT Especial de Mistério e Suspense 8
ENTREVISTA
Isidro Iturat 10
Poesia 24
Augusto dos Anjos
CONTOS
O Retrato do Juiz 28
Joaquim Bispo
O Lobo Vermelho (segunda parte) 32
Volmar Camargo Junior
Contrata-se um Ghostwriter 36
Henry Alfred Bugalho
Rabiscos de um quase normal 42
Jú Blasina
As engrenagens da felicidade 44
Léo Borges
Ciúme 48
Marcia Szajnbok
A Caligrafia 52
Barbara Duffles
O Admirador - Final: O Enterro 54
Maristela Deves
A menina e as doze badaladas 56
Giselle Sato
Autor Convidado
O Escritor 60
José Guilherme Vereza
TRADUÇÃO
Annabel Lee 64
Edgar Allan Poe
A Máscara da Morte Vermelha 66
Edgar Allan Poe
TEORIA LITERÁRIA
O Bicentenário de Edgar Allan Poe 72
Henry Alfred Bugalho
Publicação Independente ontem e hoje 80
Henry Alfred Bugalho
CRÔNICA
A Morte sem Vida 84
Guilherme Rodrigues
Pouco Racistas 86
Joaquim Bispo
A Idade da Velhice? 90
Henry Alfred Bugalho
POESIA
Poesia Visual 92
Carlos Alberto Barros
Mais eu 94
José Espírito Santo
Na rua 95
Mariana Valle
Laboratório Poético: Desespero e Pássaros
Carniceiros 96
Volmar Camargo Junior
Blavinos 98
Ju Blasina
Poesias 99
Ju Blasina
6
6
E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substituam
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido A serem obrigados a
pelo mercado. burlar a indústria cultural, Enfim, “Samizdat” porque a
os autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- od iálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,
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Comunicado
SAMIZDAT Especial
Mistério e Suspense
http://www.flickr.com/photos/ericmorse/454379200/sizes/l/
d - Traduções;
Indicando, no assunto
e - Crônicas; do e-mail, SAMIZDAT
Especial 5, e em qual se-
3 - Serão seleciona- ção o texto se enquadra
dos, ao todo, entre 3 e (ver item 2).
5 textos para cada uma
das seções acima, mas a
edição do E-Zine possui o
direito de selecionar mais
ou menos obras.
Abraços a todos,
4 - Não há limites
de palavras, mas como Equipe da SAMIZDAT
se trata duma publica-
ção voltada para o meio www.revistasamizdat.com
digital, solicita-se que
não sejam enviados tex-
tos mais extensos do que
umas 2500 palavras.
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Entrevista
ISIDRO ITURAT
Para mais informações sobre Isi-
dro Iturat e sobre o indriso, leia:
http://www.revistasamizdat.
com/2008/10/voc-conhece-o-
indriso.html
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tores não consegue atingir melhorassem, apenas seria de desintegração mental
altos padrões artísticos. O necessário que cada uma e espiritual tão intenso,
fato de existir uma maio- destas figuras quisesse em época nem cultura
ria assim e um pequeno fazer a sua parte. alguma.
número de indivíduos que II: Pelo menos por agora,
realmente se destacam sinto que a principal cau-
acontece em qualquer ati- Desde sua origem, a
poesia possui um forte sa disso é o fato de que o
vidade. Em minha opinião, nosso medo está tomando
os motivos da rejeição apelo pedagógico: basta
nos lembrarmos dos po- a forma de mentira de
social à poesia são bem uma maneira especial-
maiores e até mais com- emas de Homero, Hesí-
odo, Dante, Shakespeare mente intensa em relação
plexos do que isso. Posso às coisas essenciais: o ali-
enumerar alguns elemen- e Heine, por exemplo.
Qual é a função da poe- mento apresenta-se como
tos que tenho percebido e veneno, a narcose como
os considero nucleares: a sia no século XXI, na sua
opinião? Este propósito lucidez, a escravidão como
poesia apela a fatos como liberdade, a ignorância
a expressão do mundo educacional ainda está
presente, ou ainda pos- como conhecimento, as
interior das pessoas; pode relações egoístas como
incentivar o que se chama sui razão de ser?
modelos de amor, Deus é
“processo de individua- II: Como já mencionei apresentado como diabo,
ção” (pelo qual a pessoa anteriormente, para mim os diabos como Deuses... E
passa de ser “massa” a ser a função mais importan- muitos de nós não quere-
“indivíduo diferenciado”); te da poesia consiste em mos nem ver quando, pelo
e é intrinsecamente sub- que ela expresse com a menos uma vez na vida, as
versiva pelo simples fato sua linguagem particu- coisas aparecem na nossa
de dizer as coisas de outro lar tudo aquilo que o ser frente como realmente
jeito, além de funcionar à humano é. Isso inclui, é são.
margem da mentalidade claro, a função de edu-
mercantil. Tais motivos já car, que é uma neces- Não sei se encarar hoje
são suficientes para que sidade insubstituível. esta situação já é ou será
a poesia não seja muito Falando especificamente uma função importante
aceita por uma sociedade do século XXI, penso da poesia, mas acho que
cuja maioria é educada que pode influir muito não estaria nada mal que
segundo padrões opostos. sobre as funções da po- assim fosse.
As figuras com maior esia o fato de que - isto
responsabilidade direta é uma opinião muito O que representa a In-
na hora de mudar todo pessoal – provavelmente ternet para o seu ofício
isso seriam os governan- em toda a história da literário? Em que ponto
tes que gerem a educação humanidade o ser hu- ela presta um favor aos
e as artes, as editoras, mano nunca esteve tão novos escritores? Em que
os professores e, logica- perdido, ferido e narco- ponto ela os atrapalha?
mente, os poetas. Hoje, o tizado em relação ao seu
caminho vital. A manei- II: Bom, através da Internet
conhecimento necessário tenho acesso a leituras às
para fazer um grupo ou ra mais simples de com-
provar isto é olhar uma quais seria quase impossí-
sociedade prósperos (ou vel acessar desde um país
para afundá-los) já existe. enciclopédia ilustrada
de arte. Qualquer pes- com uma língua diferente
Isso inclui uma tradição da minha; atualmente, o
literária de milhares de soa (que queira ver) vai
perceber imediatamente que eu escrevo depende
anos que permitiria fa- por inteiro da rede para
zer as melhores obras da que os artistas nunca
expressaram um grau ser divulgado; e o com-
história. Para que as coisas putador é o único instru-
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riqueza e singularidade. prazer com a vibração II: Basicamente, vejo a rela-
Na Europa a presença do daqueles versos na boca ção entre a minha poesia
Brasil é bem mais mais e no ouvido) eu recitava e o meu ensaio como a
forte na França. incessantemente o Soneto que poderia existir entre
Vale a pena mencionar de fidelidade. uma irmã mais velha com
alguns nomes evidentes o irmão menor. Cada um
que podem ser encontra- deles tem o seu próprio
Tem acontecido alguns tamanho (a poesia é bem
dos: Vinicius de Moraes, episódios bem desagra-
Jorge Amado, Machado de maior), mas trata-se de
dáveis nos aeroportos, uma relação amorosa na
Assis... envolvendo brasileiros qual um incentiva o ou-
que viajam para a Espa- tro. Por exemplo, a minha
Quando você teve con- nha. A que você atribui poesia não apresentaria
tato com a nossa litera- esse mal-estar? a mesma diversidade de
tura? II: Não tenho nenhum matizes se não fosse pelo
II: A partir de 2004, quan- conhecimento especializa- estudo, a meditação e o
do já estava preparando do em relação às questões trabalho de ordenação
a minha viagem para o políticas e minha opinião mental que exige o ensaio;
Brasil, que se concretizou não deve ter mais valor do no entanto, ele permite
em 2005. Juntamente com que a de qualquer outro tratar de assuntos literá-
o estudo da língua portu- cidadão comum. Pelo que rios além do verso que
guesa, comecei a procurar vi até agora, duvido que me interessam. Também
nomes de autores brasilei- a opinião pública (seja acontece que a afetividade
ros consagrados e a tentar brasileira ou espanho- e recursos que a poesia
ler alguns deles. As pri- la) chegue a conhecer o mobiliza, permite que o
meiras obras da literatura verdadeiro motivo destas ensaio fique mais rico em
brasileira que li, foram os ações nos aeroportos da detalhes expressivos, ritmo
contos de Machado de As- Espanha. Se os funcioná- e emocionalidade.
sis e uma pequena anto- rios envolvidos, por exem-
logia de poetas que achei plo, não forem claros e
na biblioteca da Casa do corretos na aplicação das
Brasil, em Madri. normas, isso significa que
existem outros motivos
além dos que aparecem
Entre os brasileiros, que na mídia, motivos que só
poetas você aprecia? conhecem as autoridades
II: Bom, em relação à que dão as ordens. Por
poesia brasileira estou isso, seja como cidadão es-
apenas começando a ler. panhol ou como cidadão
Até agora captaram mais brasileiro, só me resta ver
Coordenação da entrevista:
a minha atenção os grata- essa situação com muito
mente inevitáveis Carlos pesar. Volmar Camargo Junior
Drummond de Andrade,
Castro Alves e Vinicius de Seu site mostra que, Perguntas feitas por:
Morais. além de poesias, você
Com Vinicius tenho um também tem alguns ar- Carlos Barros
vínculo afetivo mais forte tigos e ensaios escritos. Giselle Sato
porque foi meu “mestre de Dentro dessas experiên-
Henry Alfred Bugalho
português”. Na Espanha, cias, o que te traz maior
para fixar a prosódia (e retorno: a prosa ou a Volmar Camargo Junior
porque sentia um enorme poesia?
ficina
www.samizdat-pt.blogspot.com
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www.oficinaeditora.com
Autor em Língua Portuguesa
Machado de Assis
A Igreja do Diabo
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ve instante da eternidade, sejam roupas ou botas, ce enjoado; e sabes tu o
o fazia crer superior ao ou moedas, ou quaisquer que ele fez?
próprio Deus. Mas reco- dessas matérias neces-
— Já vos disse que não.
lheu o riso, e disse: sárias à vida... Mas não
quero parecer que me — Depois de uma vida
— Só agora concluí
detenho em coisas miú- honesta, teve uma morte
uma observação, começa-
das; não falo, por exem- sublime. Colhido em um
da desde alguns séculos,
plo, da placidez com que naufrágio, ia salvar-se
e é que as virtudes, filhas
este juiz de irmandade, numa tábua; mas viu um
do céu, são em grande
nas procissões, carrega casal de noivos, na flor
número comparáveis
piedosamente ao peito o da vida, que se debatiam
a rainhas, cujo man-
vosso amor e uma co- já com a morte; deu-lhes
to de veludo rematasse
menda... Vou a negócios a tábua de salvação e
em franjas de algodão.
mais altos... mergulhou na eternidade.
Ora, eu proponho-me a
Nenhum público: a água
puxá-las por essa fran- Nisto os serafins agi-
e o céu por cima. Onde
ja, e trazê-las todas para taram as asas pesadas de
achas aí a franja de algo-
minha igreja; atrás delas fastio e sono. Miguel e
dão?
virão as de seda pura... Gabriel fitaram no Se-
nhor um olhar de súpli- — Senhor, eu sou, como
— Velho retórico! mur-
ca. Deus interrompeu o sabeis, o espírito que
murou o Senhor.
Diabo. nega.
— Olhai bem. Muitos
— Tu és vulgar, que é — Negas esta morte?
corpos que ajoelham aos
o pior que pode aconte-
vossos pés, nos templos — Nego tudo. A misan-
cer a um espírito da tua
do mundo, trazem as tropia pode tomar aspec-
espécie, replicou-lhe o
anquinhas da sala e da to de caridade; deixar a
Senhor. Tudo o que dizes
rua, os rostos tingem-se vida aos outros, para um
ou digas está dito e re-
do mesmo pó, os lenços misantropo, é realmente
dito pelos moralistas do
cheiram aos mesmos aborrecê-los...
mundo. É assunto gasto;
cheiros, as pupilas cen-
e se não tens força, nem — Retórico e sutil! ex-
telham de curiosidade
originalidade para re- clamou o Senhor. Vai; vai,
e devoção entre o livro
novar um assunto gasto, funda a tua igreja; chama
santo e o bigode do pe-
melhor é que te cales e todas as virtudes, recolhe
cado. Vede o ardor — a
te retires. Olha; todas as todas as franjas, convoca
indiferença, ao menos —
minhas legiões mostram todos os homens... Mas,
com que esse cavalheiro
no rosto os sinais vivos vai! vai!
põe em letras públicas
do tédio que lhes dás.
os benefícios que libe- Debalde o Diabo ten-
Esse mesmo ancião pare-
ralmente espalha — ou tou proferir alguma coisa
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mais belas cepas do mun- monumento de lógica. A um direito tão legítimo, o
do. Quanto à inveja, pre- venalidade, disse o Diabo, que era exercer ao mes-
gou friamente que era a era o exercício de um mo tempo a venalidade e
virtude principal, origem direito superior a todos a hipocrisia, isto é, mere-
de prosperidades infini- os direitos. Se tu podes cer duplicadamente.
tas; virtude preciosa, que vender a tua casa, o teu
E descia, e subia, exa-
chegava a suprir todas boi, o teu sapato, o teu
minava tudo, retificava
as outras, e ao próprio chapéu, coisas que são
tudo. Está claro que com-
talento. tuas por uma razão jurí-
bateu o perdão das injú-
dica e legal, mas que, em
As turbas corriam rias e outras máximas de
todo caso, estão fora de
atrás dele entusiasmadas. brandura e cordialidade.
ti, como é que não podes
O Diabo incutia-lhes, a Não proibiu formalmente
vender a tua opinião, o
grandes golpes de eloqü- a calúnia gratuita, mas
teu voto, a tua palavra,
ência, toda a nova ordem induziu a exercê-la me-
a tua fé, coisas que são
de coisas, trocando a no- diante retribuição, ou
mais do que tuas, porque
ção delas, fazendo amar pecuniária, ou de outra
são a tua própria consci-
as perversas e detestar as espécie; nos casos, po-
ência, isto é, tu mesmo?
sãs. rém, em que ela fosse
Negá-lo é cair no obscuro
uma expansão imperiosa
Nada mais curioso, e no contraditório. Pois
da força imaginativa, e
por exemplo, do que a não há mulheres que
nada mais, proibia rece-
definição que ele dava da vendem os cabelos? não
ber nenhum salário, pois
fraude. Chamava-lhe o pode um homem vender
equivalia a fazer pagar
braço esquerdo do ho- uma parte do seu san-
a transpiração. Todas as
mem; o braço direito era gue para transfundi-lo a
formas de respeito foram
a força; e concluía: mui- outro homem anêmico?
condenadas por ele, como
tos homens são canhotos, e o sangue e os cabelos,
elementos possíveis de
eis tudo. Ora, ele não partes físicas, terão um
um certo decoro social
exigia que todos fossem privilégio que se nega ao
e pessoal; salva, todavia,
canhotos; não era exclu- caráter, à porção moral
a única exceção do in-
sivista. Que uns fossem do homem? Demonstran-
teresse. Mas essa mesma
canhotos, outros destros; do assim o princípio, o
exceção foi logo elimi-
aceitava a todos, menos Diabo não se demorou
nada, pela consideração
os que não fossem nada. em expor as vantagens de
de que o interesse, con-
A demonstração, porém, ordem temporal ou pe-
vertendo o respeito em
mais rigorosa e profunda, cuniária; depois, mostrou
simples adulação, era este
foi a da venalidade. Um ainda que, à vista do pre-
o sentimento aplicado e
casuísta do tempo chegou conceito social, conviria
não aquele.
a confessar que era um dissimular o exercício de
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mento; ele negou, dizen- Mas não havia duvidar; o
do que ia ali roubar o caso era verdadeiro.
camelo de um drogman;
Não se deteve um
roubou-o, com efeito,
instante. O pasmo não
à vista do Diabo e foi
lhe deu tempo de refle-
dá-lo de presente a um
tir, comparar e concluir
muezim, que rezou por
do espetáculo presente
ele a Alá. O manuscrito
alguma coisa análoga ao
beneditino cita muitas
passado. Voou de novo ao
outras descobertas extra-
céu, trêmulo de raiva, an-
ordinárias, entre elas esta,
sioso de conhecer a causa
que desorientou comple-
secreta de tão singular
tamente o Diabo. Um dos
fenômeno. Deus ouviu-o
seus melhores apóstolos Joaquim Maria Machado de
com infinita complacên-
era um calabrês, varão de Assis nasceu pobre e epilético.
cia; não o interrompeu,
cinqüenta anos, insigne Era filho de Francisco José Ma-
não o repreendeu, não
falsificador de documen- chado de Assis e de Leopoldina
triunfou, sequer, daquela Machado de Assis, neto de escra-
tos, que possuía uma bela
agonia satânica. Pôs os vos alforriados. Foi criado no
casa na campanha roma-
olhos nele, e disse: morro do Livramento, no Rio de
na, telas, estátuas, biblio-
Janeiro. Ajudava a família como
teca, etc. Era a fraude em — Que queres tu, meu podia, não tendo freqüentado
pessoa; chegava a meter- pobre Diabo? As capas de regularmente a escola.
se na cama para não algodão têm agora fran- Sua instrução veio por conta
confessar que estava são. jas de seda, como as de própria, devido ao interesse
Pois esse homem, não veludo tiveram franjas de que tinha em todos os tipos de
só não furtava ao jogo, algodão. Que queres tu? leitura. Graças a seu talento e a
como ainda dava gratifi- É a eterna contradição uma enorme força de vontade,
cações aos criados. Ten- humana. superou todas essas dificuldades
e tornou-se em um dos maiores
do angariado a amizade
escritores brasileiros de todos os
de um cônego, ia todas
tempos.
as semanas confessar-se FIM de A igreja do Diabo
Entre os seis e os 14 anos, Ma-
com ele, numa capela so-
chado perdeu sua única irmã, a
litária; e, conquanto não mãe e o pai. Aos 16 anos em-
lhe desvendasse nenhuma pregou-se como aprendiz numa
fonte: http://www2.uol.
das suas ações secretas, tipografia e publicou os primei-
com.br/machadodeassis/
benzia-se duas vezes, ao ros versos no jornal “A Marmo-
machado.html ta”. Em 1860, foi convidado por
ajoelhar-se, e ao levantar-
se. O Diabo mal pôde Quintino Bocaiúva para colabo-
rar no “Diário do Rio de Janei-
crer tamanha aleivosia.
ro”. Datam dessa década quase
http://guisalla.files.wordpress.com/2008/09/machado1.jpg
A sua carreira burocrática teve gagueira contribuíram ainda
uma ascensão muito rápida, uma mais para o seu isolamento. São
vez que, em 1892, já era diretor dessa época seus últimos ro-
geral do Ministério da Viação. mances “Esaú e Jacó” (1904) e
O emprego público garantiu a “Memorial de Aires” (1908), que
estabilidade financeira, uma vez fecham o ciclo realista iniciado
que viver de literatura naquela com “Brás Cubas”
época era quase impossível, mes- Machado de Assis morreu em
mo para os bons escritores. sua casa situada na rua Cosme
Na década de 1880, a obra Velho. Foi decretado luto oficial
de Machado de Assis sofreu no Rio de Janeiro e seu enterro,
todas as suas comédias teatrais e uma verdadeira revolução, em acompanhado por uma multidão,
o livro de poemas “Crisálidas”. termos de estilo e de conteúdo, atesta a fama alcançada pelo
Em 12 de novembro de 1869 inaugurando o Realismo na autor.
casou-se com Carolina Augusta literatura brasileira. Os roman- O fato de ter escrito em por-
Xavier de Novais. Esse casamen- ces “Memórias póstumas de tuguês, uma língua de poucos
to ocorreu contra a vontade da Brás Cubas” (1881); “Quincas leitores, tornou difícil o reconhe-
família da moça, uma vez que Borba” (1891); “Dom Casmur- cimento internacional do autor.
Machado tinha mais problemas ro” (1899) e os contos “Papéis A partir do final do século 20,
do que fama. Essa união durou avulsos” (1882); “Histórias sem porém, suas obras têm sido tra-
cerca de 35 anos e casal não data” (1884), “Várias histórias” duzidas para o inglês, o francês,
teve filhos. Carolina contribuiu (1896) e “Páginas recolhidas” o espanhol e o alemão, desper-
para o amadurecimento intelec- (1899), entre outros, revelam tando interesse mundial. De
tual de Machado, revelando-lhe o autor em sua plenitude. O fato, trata-se de um dos grandes
os clássicos portugueses e vários espírito crítico, a grande ironia, nomes do Realismo, que pode se
autores de língua inglesa. o pessimismo e uma profunda colocar lado a lado ao francês
reflexão sobre a sociedade bra- Flaubert ou ao russo Dostoie-
Na década de 1870, Machado
sileira são as suas marcas mais vski, apenas para citar dois dos
publicou os poemas “Falenas” e
características. maiores autores do mesmo perío-
“Americanas”; além dos “Con-
tos Fluminenses” e “Histórias Em 1897, Machado fundou a do na literatura universal.
da meia-noite”. O público e a Academia Brasileira de Letras,
crítica consagraram seus méritos da qual foi o primeiro presiden-
Fonte: http://educacao.uol.com.
de escritor. Publicou os roman- te, pelo que a instituição também
br/biografias/ult1789u180.jhtm
ces: “Ressurreição” (1872); “A conhecida como casa de Macha-
Mão e a Luva” (1874); “He- do de Assis. Ocupou a Cadeira
lena” (1876); “Iaiá Garcia” N.º 23, de cujo patrono, José de
(1878). Essas obras ainda estão Alencar, foi amigo e admirador.
ligadas à literatura romântica e Em 1904, a morte de sua mulher
formam a chamada primeira fase foi um duro golpe para o es-
de Machado de Assis.
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Autor em Língua Portuguesa
A poesia de
Augusto dos Anjos
O MORCEGO
http://www.flickr.com/photos/eob/55453207/sizes/o/
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.
ASA DE CORVO
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VOZES DE UM TÚMULO
fonte: http://www.biblio.com.br/conteudo/AugustodosAnjos/augustodosanjosobras.htm
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Contos
Joaquim Bispo
O Retrato do Juiz
http://www.flickr.com/photos/itsallaboutmich/1989146178/sizes/o/
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conseguia evitar uma inquie- voltar. especial ao tio Jerónimo, pelo
tação difusa. Começava a Em casa pensou que, se esforço que fez de ir todas as
tornar-se uma obsessão. calhar, estava na altura de manhãs a Lisboa e assumir
Não ficara, do juiz, com parar de pintar. Foi falar tão bem aquela personagem.
mais que o nome e a mora- com um amigo, vizinho do Sem a sua ajuda, talvez não
da, rabiscados num papel. “atelier”, que há tempos se tivéssemos conseguido o que
Pensou em telefonar-lhe, mas propusera comprar-lho para há tanto tempo pretendía-
das Informações disseram-lhe alargar a sua loja de aprestos mos: a expansão do nosso
que aquela morada não tinha marítimos. Fizeram negócio, armazém de vendas e do
telefone fixo. Resolveu pro- depois de o amigo aceitar nosso negócio. Obrigado tio!
curar o cliente, pessoalmente. ficar também com o recheio. E faço questão, é claro, que
Apanhou o comboio para fique com o quadro. Bem o
Júlio recolheu-se à sua merece! De qualquer modo,
Carcavelos e, lá chegado, foi pequena casa de Montemor,
perguntando até encontrar a estamos todos de parabéns.
sobranceira ao vale de Lou- Por isso, peço que me acom-
casa do juiz. O que descobriu res, disposto a desanuviar
não podia ser mais pertur- panhem num brinde.
o espírito, mas não o tem
bador. conseguido. Passa as tardes Armando levantou um
Realmente, ali era a casa na varanda, de olhar perdido copo e pronunciou a fórmula
do juiz, mas ele não estava. no horizonte. Não consegue habitual:
Nem ele nem ninguém. Per- tirar da cabeça o olhar mau – A família é a nossa for-
guntando à vizinhança, soube do juiz. Nem consegue enten- taleza. À família!
que a casa estava abandona- der que intuito teve ele, ao Todos se levantaram, de
da desde que o juiz morrera, voltar do outro mundo e lhe copo na mão, respondendo
havia quinze anos. encomendar o retrato. em coro:
Júlio deixou-se cair num Por um desses dias, na – À família!
banco de jardim e ali ficou, sua casa de Azeitão, Arman-
sem tomar conta das horas, do Magalhães levantava-se O brinde terminou com
mergulhado num assombro da mesa e improvisava um uma longa salva de palmas,
de que não sabia como sair. pequeno discurso para uma que comunicou, ao espírito
Se havia coisa com que não dúzia de familiares reunidos de cada um, o enternecimen-
sabia lidar era com o sobre- à volta do almoço dominical: to de quem se sabe partici-
natural. pante no bom sucesso de um
– Meus queridos, é com projecto comum.
Desde então que Júlio não agrado e enorme orgulho que
pinta. No primeiro mês após celebro convosco a próxima
a traumática revelação, só expansão da nossa pequena [Conto publicado pela pri-
voltou ao “atelier” uma única empresa. Foi um negócio meira vez em 2007, na edição
vez. Tornar a encarar aquele bem sucedido de que todos resultante dum concurso de
olhar foi aterrador. Podia saíram a ganhar, como gosto contos promovido pelo site
jurar que o juiz o olhava de que sejam todos os nossos Ora, vejamos... em que obteve
cenho mais carregado, num negócios. Ganhámos nós e um 3º lugar ex-aequo, entre 67
misto de tensão e recrimi- ganhou o Sr. Júlio, que agora candidatos]
nação. Voltou a face da tela pode gozar uma bem mere-
para a parede, mas Júlio cida reforma. Era um grande
continuou a pressentir a artista. Vejam como ele cap-
intensidade do olhar através tou o olhar austero do tio –
dela. Sentiu medo. Saiu rapi- apontava Armando o quadro
damente, ofegante, sem saber na parede. – Aliás, quero fa-
o que fazer, sem vontade de zer um agradecimento muito
O Rei dos
Judeus
do www.revistasamizdat.com 31
w
gr nl
át
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Contos
O Lobo Vermelho
(segunda parte)
Guinen Plumbeano
Volmar Camargo Junior
www.revistasamizdat.com 33
contava que aquela não era perna mecânica, e a maior pedido de desculpas, a esposa
uma peça original, mas era parte delas era, no mínimo, do professor de luta fez para
uma cópia fiel da Guardiã fantasiosa. A minha preferida o menino um casaco da pele
do Mar, e que seu dono, o era esta: do lobo, que nunca mais pôde
homem que a empunha- Numa tarde de inverno, ser alvo, manchado de sangue
va, era o Lobo Vermelho, o Petro e seus colegas pratica- para sempre.
maior herói da guerra contra vam luta no pátio da escola, Eu ri sozinho no banco de
os invasores delfins. Então, quando foram surpreendidos trás do carro. Como aquelas
meu pai contava todo tipo de por um lobo selvagem. Eles historietas eram marcantes
histórias sobre ele, e que eu e ainda não o haviam percebido para as crianças! Era bem
meus amigos costumávamos porque era um lobo branco, provável que, se eu pergun-
reproduzir em nossas brin- e se esgueirou na neve até tasse para qualquer um dos
cadeiras, amarrando toalhas chegar perto o suficiente para meus amigos de infância, eles
e lençóis às costas como atacar de surpresa. Os outros teriam lembrado desta, “O
capas, e cada um com uma meninos fugiram apavorados, menino e o lobo branco”, tal-
“Guardiã do Mar” feita das mas Petro não teve a mesma vez com as mesmas palavras.
pernas de uma cadeira velha. sorte: o lobo saltou em sua Percebendo que eu ria – devo
Fazíamos um sorteio, todas as direção e, para impedir que até ter falado sozinho, em
tardes, para decidir quem se- fugisse, abocanhou sua perna voz alta – Platin olhou-me
ria o Lobo Vermelho, depois, e o derrubou. O menino teve pelo espelho, devolvendo-me
quem seria Unmonu, seu o sangue frio de fingir-se de o sorriso.
companheiro de aventuras, morto. Quando o predador — Já conhece o General,
e, por fim, quem seriam os soltou sua perna para conferir Senhor Plumbeano? Digo, já
adversários: príncipes delfins, se a presa estava realmente o viu alguma vez?
lordes adormecidos, bruxos abatida, Petro reagiu. Com
linces, guerreiros bárbaros. E — Pode me chamar apenas
presteza, enfiou as duas mãos
eu recordo de sempre gostar Guinen, Platin. Só vi o Gene-
no focinho do animal, segu-
mais de interpretar os vilões, ral em fotografias. Por que a
rando suas mandíbulas fecha-
enquanto meus amigos se es- pergunta?
das e avançou com os dentes
tapeavam para disputar que contra o pescoço peludo do — Porque a última vez que
heróis seriam. Ao final da lobo. A fúria de Petro era tão ele foi visto em público, ele
brincadeira era sempre eu, grande que o couro do preda- estava bem diferente — res-
ou melhor, o inimigo do Mar dor rasgou-se como um trapo pondeu, enfático.
de Luna, quem tinha a pior velho, e músculos e veias iam- — Diferente como? — quis
sorte, mas não antes de ter se rompendo à medida que saber.
deixado muitos soldados caí- o menino mordia. Só depois
dos, ter derrubado o “Bovineu — Não precisa se preo-
disso é que o professor de luta
Invencível” e decepado uma cupar. Você já vai ver. Che-
veio em seu auxílio, mas aí, o
das pernas do Lobo Vermelho gamos. Seja bem-vindo à
lobo, que era branco, já estava
– e eu nunca tinha certeza se Mansão do General.
morto, todo tingido de verme-
era a direita ou a esquerda. lho. A perna do menino Petro
Havia dezenas de versões teve de ser amputada. Todos, a
explicando a razão de o partir daquele dia, passaram a
General Velasturvo usar uma temê-lo e respeitá-lo. Como um
http://www.flickr.com/photos/27235917@N02/2788169879/sizes/l/
A Oficina Editora é uma utopia, um não-
lugar. Apenas no século XXI uma vintena
de autores, que jamais se encontraram
fisicamente, poderia conceber um projeto
semelhante.
O livro, sempre tido em conta como uma
das principais fontes de cultura, tornou-se
apenas um bem de consumo, tornou-se um
elemento de exclusão cultural.
A proposta da Oficina Editora é resgatar o
valor natural e primeiro da Literatura: de bem
cultural. Disponibilizando gratuitamente
e-books e com o custo mínimo para livros
impressos, nossos autores apresentam
a demonstração máxima de respeito à
Literatura e aos leitores.
www.revistasamizdat.com 35
Contos
Contrata-se
um Ghostwriter
Henry Alfred Bugalho
http://paranormal.about.com/library/graphics/ghost_on_stairs_lg.jpg
— Algo comum nos não podia ser feio (ser — Estou tão feliz com
Estados Unidos, amiga. “Es- bonito não era imperioso, minha escolha, Marieta! —
critor fantasma”, em por- mas feio, nem pensar!), e Eleonor no telefone — O
tuguês: você paga alguém com horários extrema- rapazinho é atencioso e
para colocar suas idéias mente maleáveis, já que as dedicado. Amanhã, trará
no papel e, no final, quem melhores idéias de Eleonor as primeiras páginas do
recebe os créditos é você. ocorriam de madrugada, que escreveu.
Mais fácil, impossível. ou seja, disponibilidade Mas Pietro della Fonta-
para receber telefonemas na não cumpriu o prome-
Proposta tentadora. De às três ou quatro da ma-
fato, resolveria muitos pro- tido. Ao invés dum ma-
nhã. nuscrito, trouxe apenas o
blemas estruturais de sua
narrativa, o primeiro deles: E tal pessoa só poderia velho caderno de notas.
como colocar num livro ser Pietro della Fontana, — Mas você prometeu,
setenta anos de história vinte e tantos anos, olhar Pietro!
pessoal, três casamentos, profundo, sorriso sincero
e, de acordo com ele, pelo — Desculpe-me, Eleonor,
uma viuvez, um filho mor- eu deveria ter-lhe explica-
to em acidente de carro, menos dois livros publi-
cados na Itália. Apesar do do o meu método de tra-
uma filha doutora na Suí- balho antes de começar-
ça, Eleonor sobrevivendo a português com sotaque,
um conhecimento grama- mos. Você só terá acesso
um acidente de avião (com ao texto quando eu houver
mais cinco outras pessoas). tical impecável; não trouxe
currículo, mas apenas um terminado. Então, revisa-
Todas aqueles coisas, gran- remos juntos e faremos as
des ou triviais, que indiví- pedaço de guardanapo,
no qual, diante da própria modificações.
duos comuns consideram
imprescindíveis de serem Eleonor, escreveu um pará- — Mas você prometeu!
escritas num livro, para o grafo, descrevendo-a. — Foi um deslize que
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não se repetirá. — sou eu, você me cha- Eleonor tremia, havia
A confiança de Eleonor mou. Eu vim. perdido o sono, tinha
nele foi abalada. No entan- Os pêlos da viúva se ar- medo de descer e con-
to, agora que os trabalhos repiaram, conhecia a voz, firmar se Pietro havia
já haviam começado, iriam mas, tomada pelo pânico, realmente partido. Ficou
até o fim. não raciocinava. Permane- sentada na beira da cama,
ceu em silêncio. abraçando-se, aguardando
o sol nascer.
Uma idéia brilhante — Sou eu, Pietro... — a
despertou Eleonor, sobre voz insistiu.
como iniciar o próximo Poderia ser uma em- — História esquisita esta
capítulo. Sentada na cama, boscada, uma armadilha. que você me contou, ami-
discou o número de Pietro; O bandido poderia tê-la ga — Marieta apoiava a
ninguém atendeu. espiado e investigado a cabeça no punho cerrado,
todos com quem ela man- pensativa.
— Atenda, Pietro! É im-
portante — ela sussurrava. tinha contato. Mas a voz — Vou cancelar o con-
Secretária eletrônica. era mesmo de Pietro. Len- trato com ele. Não quero
tamente, ela abriu o closet. mais saber de ele escre-
— Pietro, aqui é Eleonor, vendo minha história.
ligue para mim o mais Os olhos profundos do
rapaz a fitavam, à distân- Quem deu a ele direito de
rápid... — não concluiu; vir até minha casa, entrar
tinha certeza de haver cia dum palmo:
sem ser convidado? Não
ouvido passos na escada. — O que você está fa- quero mais saber.
Desligou o telefone, vestiu zendo dentro do armário,
o penhoar e abriu uma Eleonor? — ele riu. — E se ele for perigoso,
fresta na porta. Mesmo Eleonor? Ele pode querer
— O que é que você se vingar de você. Talvez
estando tudo escuro, uma está fazendo aqui em casa,
sombra se lançava de bai- seja melhor você descobrir
a esta hora da madrugada? mais coisas sobre ele. Eu
xo para cima, na escada, — a raiva da senhora era
por causa do fraco abajur gostaria de conhecê-lo.
muito inferior ao medo —
na sala. Eleonor teve medo. Saia daqui agora! Saia, saia, — Por favor, não me
E se fosse um assaltante? saia! peça isto.
Um estuprador (há quase — Confie em mim, Eleo-
uma década que ela não — Calma, Eleonor, eu
trouxe alguns rascunhos nor. Você sabe como é mi-
sabia o que era ter um nha intuição. Uma olhada
homem dentro dela)? E se para você dar uma olha-
da. Achei que não deveria neste rapaz e já vou saber
fosse um psicopata assassi- se ele é de boa índole.
no em série? deixá-la esperando.
— Não vou repetir, ra- Eleonor aquiesceu. Ligou
Eleonor apagou a luz para Pietro e marcou um
e correu para dentro do paz. Se você não for em-
bora agora, serei obrigada jantar, na casa dela, naque-
closet. Arfava. Coração na la mesma noite.
boca. O invasor mexeu a chamar a polícia.
na maçaneta, a porta do Pietro trajou uma de- — Ele já deve estar para
quarto se abriu, um vulto cepcionada expressão. chegar — Eleonor apertava
entrou e caminhou direta- Com um maço de papéis as mãos, enquanto Marieta
mente para o closet. En- sob o braço, deu a volta e dispunha a mesa para três.
costou a cabeça na porta. desapareceu escada abai- A hora combinada che-
— Eleonor, — murmurou xo. gou e Pietro, sempre ina-
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veria a melhor amiga, não dele. ele havia dado a ela esta-
teria lhe dado apenas um Eleonor leu o que estava va fora de área, a polícia
abraço; ela lhe beijaria a escrito: nem acreditava no que ela
face e agradeceria todos dizia.
estes anos de companhei- Capítulo 47 Deixou a delegacia com
rismo. a sensação de impunidade,
Devia fazer uma última Marieta não percebeu de que não conseguiria
visita a ela, a sós. Foi até o que alguém a havia seguido. justiçar a morte da amiga.
necrotério. No semblante, Por razões muito impor- Na saída, porém, se depa-
aquelas mesmas feições tantes, queria-a morta; ela rou com o escrivão, cuja
descritas pela filha como poderia ser um entrave na mulher conhecia a obra de
sendo medo. O que Marie- missão dele; poderia pôr della Fontana.
ta tinha a temer? Ou era tudo a perder.
Suplicou-lhe ajuda, en-
apenas um ataque cardía- tregou-lhe seu endereço e
co mesmo? Desesperada, com a lhe pediu que solicitasse à
Com o pretexto de certeza de que a morte de esposa que mandasse para
apanhar as roupas para Marieta não havia sido na- ela algumas informações
o velório, Eleonor obteve tural, Eleonor correu para sobre Pietro.
permissão de Renata para a delegacia mais perto. Marieta foi velada e
entrar na casa da morta. Os policiais riram da sepultada. De luto, olhos
Logo que abriu a por- hipótese dela, leram o inchados de tanto chorar,
ta, encontrou pegadas de pedaço de papel, especula- Eleonor, ao chegar em casa,
lama, que desapareciam ram que poderia ser uma apanhou a correspondên-
após poucos passos. Po- coincidência mórbida, cia. Havia um gordo en-
rém, ao contrário do mas, sob insistente pedido velope. Nele, um maço de
esperado, havia pegadas de Eleonor, aceitaram fazer documentos sobre Pietro
de quatro pés, dois possi- uma busca da ficha crimi- della Fontana. Fotos, facsí-
velmente de Marieta, dois, nal de Pietro della Fonta- miles de manuscritos, bio-
bem maiores, dum ho- na. Nada, mas um escrivão grafia, bibliografia. Tudo,
mem. Alguém havia esta- ouviu o nome e comentou: desde a foto até a caligra-
do com Marieta, naquela — Pietro della Fontana? fia, o Pietro, escrito italia-
mesma noite chuvosa. As Este cara deve estar usan- no, morto em 1926, mestre
pegadas pequenas desapa- do um nome falso! do gênero fantástico e de
reciam antes; as grandes, terror, se assemelhava ao
— Por quê? — o outro
seguiam até perto do sofá. Pietro, ghostwriter.
policial perguntou.
Eleonor as acompanhou, Eleonor se trancou no
então, avistou, sob uma — Este é o nome dum
quarto, e leu linha por
poltrona, apenas a ponti- famoso escritor italiano.
linha o material que tinha
nha duma folha de papel. Minha esposa está fazendo
em mãos. Descobriu que
uma dissertação de mes-
Ela se abaixou e a pu- Pietro havia se mudado
trado sobre a obra dele.
xou para fora. Era uma da Itália para esta cidade,
Morreu há uns oitenta
folha velha de papel, e a casa na qual faleceu
anos, acho.
amarelecida, escrita com ficava a poucas quadras da
letra pequena e apressada, A constatação foi dura casa de Eleonor. Seu Pie-
exatamente igual às folhas para Eleonor. Ela não tinha tro, o ghoswriter, era um
do caderno de Pietro, exa- o nome verdadeiro do rapaz muito esperto, estava
tamente como a caligrafia criminoso, o telefone que tentando assustá-la, que-
www.revistasamizdat.com 41
Contos
Rabiscos de
um quase normal
Ju Blasina
www.revistasamizdat.com 43
Contos
As engrenagens
da felicidade Léo Borges
http://www.flickr.com/photos/sheilatostes/626560532/sizes/o/
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o Lulu Santos dizendo, desfrutar por mais tempo e as misteriosas taxas gli-
colado ao seu tímpano, do conforto que o di- cêmicas daquela mulher
que via um novo começo nheiro, quando existisse, e, com algum constrangi-
de era. Assim como acre- proporcionaria. mento, concluiu que ela
ditava no médico, Heitor poderia ter uma licença
também nunca descon- A garoa se confirmou para ficar de fora do rol
fiou que o Lulu pudesse e os primeiros pingos dos que consomem uma
estar mentindo, apesar de surgiram no pára-brisa. alimentação balanceada,
saber que artistas, muitas Mas, Heitor estava de- dita ideal.
vezes, se enganam, ou, até terminado a iniciar sua
de propósito, enganam jornada atlética sob qual- O calçadão da praia
os outros, quase sempre quer clima. No sinal do estava deserto. Um vento
com a melhor das inten- último cruzamento para frio procurava inibir a
ções, como a de agora, a praia uma pedinte veio intenção atlética do ex-
em que o cantor tinha a intimidar seus felizes sedentário Heitor. Corpos
missão de vivificar um pensamentos batendo inertes refugiados em
preguiçoso. com os nós dos dedos seus apartamentos apre-
no vidro lateral. “Um ciavam as televisões apa-
Um atraente outdoor trocado pelo amor do rentemente sintonizadas
na avenida principal era bom Deus...”. As gotas em um mesmo canal. Um
imperativo na promoção deixavam turva a imagem aposento destoante no
do carro sofisticado: “Seja da mulher, como se ela cenário concentrava um
feliz hoje!”. Hoje, obvia- estivesse desmanchando grupo de amigos festejan-
mente, já estava tarde juntamente com a chuva. do algo. No poste adja-
para ser, mas Heitor vi- Era uma mendiga com cente, um cartaz atraiu a
nha juntando uma grana um pano roto amarrado atenção de Heitor. Mos-
fazia algum tempo para à cabeça que, não obstan- trava a foto de um garoto
comprar aquela máquina te não livrá-la de ter os de seus vinte anos, sorriso
de design arrojado. Faria cabelos molhados, ainda estático e olhar pacífico.
parte da tal engrenagem lhe conferia uma apa- Fazia um sinal positivo
da felicidade ter um car- rência melancólica. Ela com a mão. Letras negras
ro como o do anúncio? não tinha um headpho- e grandes apareciam so-
Heitor sabia que sim. A ne onde pudesse ouvir bre a foto revelando seu
mensagem era clara: não o Lulu prevendo um nome: “Marcelo Zanet-
devemos deixar aquisi- futuro com gente fina ti”. Abaixo, um pequeno
ções que nos farão felizes elegante e sincera e não texto dizia: “O homicídio
para amanhã, principal- parecia estar disposta a não pode ser banaliza-
mente se você for um dar uma corridinha para do! Amanhã poderá ser
sedentário, pois pode entrar em forma. “Estou seu filho. Confiamos na
acabar morrendo com sem comer desde ontem”. Justiça”. Triste era perce-
uma veia entupida e vai Também teria ela de se ber que mesmo com uma
perder a oportunidade alimentar com saladas alimentação adequada,
de dirigir um belo veí- e sucos diet conforme Marcelo não garantiu sua
culo. Bom, Heitor estava determinava o senso sau- longevidade.
ali, fazendo a parte dele, dável? Sim, com certeza,
fazendo as coisas que lhe pensou Heitor. Entretanto, Aquele rapaz engros-
mandavam para criar sua logo após abaixar o vidro sava as estatísticas de
poupança de dias, sema- e dar algumas moedas, assassinatos na cidade e
nas, anos, e, assim, poder ele ponderou sobre a vida a família agora parecia
querer incomodar os
www.revistasamizdat.com 47
Contos
http://www.flickr.com/photos/sukisousale/3075075643/sizes/o/
www.revistasamizdat.com 49
tragédia, um assassinato, trazia efeitos que se faziam ram as palpitações, sentia
um drama familiar. Tal- visíveis no jovem. Pouco a todos os músculos do
vez uma linda jovem que, pouco, deixava para trás os corpo relaxados, o tumul-
diante de um amor proi- traços de menino mal pú- to que lhe preenchera a
bido, houvesse posto fim bere, ganhava ares de ho- mente sossegava. Dormiu
à vida bem ali, onde hoje mem feito. Ganhara barba, serenamente naquela noite
era o seu quarto. Pesqui- os braços e o tórax se e acordou refeito.
sou, leu, investigou, mas tornavam repentinamente
não havia tal personagem. fortes, todo ele adquirira A calmaria, entretanto,
Onde foi construída a um aspecto másculo. A não durou muito. No-
casa dos tios, em tempos tia estranhava. O tio, com vas crises semelhantes
idos não havia nada, ape- uma piscadela cúmplice, se repetiram. Em geral,
nas um terreno vazio. A sugeria – “arrumou aí uma acometiam-no quando
frustração dessa fantasia, namorada, hein?” O moço estava na escola, sobretudo
entretanto, não diminuiu disfarçava e nada respon- nos ensaios para o baile.
sua curiosidade nem seu dia. Na escola também a Sempre que tomava a mão
apego, antes até os fomen- mudança se fizera notar. Já da parceira de valsa, a dor
tou. não zombavam, e a possí- recomeçava. Um dos cole-
vel paixão secreta do ra- gas percebeu sua expres-
O jantar era servido paz era assunto das rodi- são constrita e, cruelmente,
sempre por volta das nhas femininas. Divertido disparou – “ah, bem sabia
oito e meia. Um pouco com o mistério, ele apenas que no fundo, no fundo,
de conversa, notícias do sorria, maroto, deixando seu problema era medo
dia, novidades da escola, que a dúvida crescesse. de mulher!” Pronto, já se
amenidades feitas para tornara novamente alvo
facilitar a digestão. Ansio- Os problemas começa- da zombaria. Tentava se
so, o rapazinho checava ram à época do baile de controlar, disfarçar, mas
repetidamente o relógio à formatura. Era preciso es- ficava cada vez mais difí-
espera da permissão tácita colher uma das mocinhas cil. À medida que a festa
para se retirar. Subia ao da classe para ser seu par. se aproximava, as crises
quarto cada vez mais cedo. Há dois anos, teria sobra- vinham mais frequentes e
Decerto iria estudar, pen- do. Hoje, era alvo de dis- mais intensas. Preocupa-
savam os tios, equivocados. puta, e logo lhe definiram dos, os tios chamaram um
Expectante da noturna como parceira de valsa a médico. Depois de muito
visita, punha-se logo entre mais bonita da sala. Go- examinar e conversar, o
os lençóis, vedava todas as zava intimamente da sua veredicto: o rapaz não
luzes e esperava. vitória quando sentiu pela tinha nada. Provavelmente
primeira vez a dor. Como estava apenas ansioso pela
Fiel e constante, ela um aperto no alto da festa, emocionado por ter
sempre vinha. O garoto cabeça, teve a sensação de que se apresentar em pú-
fechava os olhos e imagi- que o crânio estava pres- blico dançando com uma
nava-se a conversar com tes a ser esmagado. Sem jovem tão cobiçada. Coisas
ela, a contar-lhe sua vida, poder se controlar, soltou da idade. Talvez fosse bom
seus segredos. Compre- um grito. Todos se vira- fazer uns exercícios, prati-
ensiva, ela respondia com ram para ele, e foi nova- car alguma luta marcial...
seu toque imaterial, com mente tomado pelo antigo
carinhos sutis que mal rubor, afastando-se logo Mas ele bem conhecia
roçavam a pele. Por vezes, daquela cena pública. No o remédio para seu mal:
emocionado, sentia um caminho para casa, tinha ir para casa, fechar-se no
fio de lágrima escorrer- sensações desagradáveis, quarto, apagar as luzes.
lhe. Ela, então, muito doce, arrepios, náuseas. Uma Era mágico. Assim que se
secava seu rosto com um espécie de febre e torpor deitava, ela vinha, a fantas-
beijo delicado. E assim, lhe borravam a visão e um magórica namorada. Na
noite após noite, cada vez ruído áspero parecia vir verdade, nas últimas se-
mais o jovem abria seu de dentro da cabeça para manas algo havia mudado
íntimo à mulher fantasma os ouvidos. Suando frio nessas visitas. Transforma-
que lhe acompanhava as e tremendo, correu logo da em amante espectral,
noites desde a mais tenra para o quarto. Bastou que seus carinhos já não se
infância. se jogasse sobre a cama limitavam aos toques sutis
para que todo o mal estar e aos beijos delicados. Nos
Essa companhia, agora, desaparecesse. Logo cessa- últimos tempos, sentia que
http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
temor, mais a queria. aparvalhado dos que ainda
não tinham conseguido
Assim terminava-se o deixar o local. Ninguém
ano letivo. Finalmente, a podia ver, mas ouviam-
chegou o dia do baile. lhe os gemidos cada vez
Vestindo pela primeira vez mais altos, e a voz rouca
um smoking, toda a fa- que, mesclada ao assobio
mília presente, lá estava o do vento, parecia repetir: –
rapaz, muito compenetra- “meu, meu, só meu...”
do de seu papel ao lado da
jovenzinha com quem ia Toda a cena não durou
dançar a valsa. Já se ou- mais que alguns minutos.
viam os primeiros acordes De súbito, tudo se aquie-
e os pares já se dispu- tou. No lugar da ventania,
nham no centro do salão, vinha agora uma brisa
quando aconteceu. leve que atravessava a sala
deixando em seu rastro
No mesmo instante, to- um vago perfume de rosas.
das as luzes começaram a O socorro médico foi
piscar. Os lustres imensos chamado, mas já era tarde
balançavam, estilhaçando demais para a pobre moça
pouco a pouco os cristais que jazia em meio à poça
de que eram feitos. As de seu próprio sangue.
janelas, os espelhos, os co- E, para aumentar ainda
pos, tudo o que era vítreo mais a perplexidade geral,
naquele ambiente, se par- notaram que num canto
tia e os cacos enlouque- do salão estava largado
cidos voavam para todo um smoking, como se
lado. Todos gritavam, as alguém tivesse se despido
moças corriam. Em meio e esquecido ali as roupas.
àquela histeria, nem todos Os tios o reconheceram
puderam notar que uma como sendo a vestimenta
ficina
única jovem fora atingi- do sobrinho.
da pelos estilhaços. Sua
parceira de valsa estava Ele, no entanto, nunca
caída, no meio do salão, o mais foi visto.
www.oficinaeditora.org
51
Contos
http://www.flickr.com/photos/aphrodite/99779066/sizes/o/
Barbara Duffles
A caligrafia
52 SAMIZDAT agosto de 2009
52
Aconteceu num inverno separou de mim, saiu de re-
Henry Alfred Bugalho
qualquer da primeira déca- pente como havia chegado A
GUI
Nova York
da de 2000. Veio de repen- e desapareceu na penum-
te no meio da penumbra, bra. Na mesma hora abri o
jogou-me contra a parede e envelope amassado, era uma
perfurou minha alma com carta velha, mas estranha- para Mãos-de-VAca
seus olhos distantes. Olhos mente datava de 2032. Era
de passado, de quem já foi e de despedida, e dizia “Meus
O Guia do Viajante Inteligente
não estava mais ali. Parecia filhos, não me vejo mais
que o conhecia, mas forcei neste mundo. Perdoem-me”. www.maosdevaca.com
www.revistasamizdat.com 53
Contos
O Admirador
Final: O Enterro
54 SAMIZDAT agosto
julho de
de2009
2009
54
Chegou ao cemitério Ele sorriu novamente. a se afastar em direção à
às 17 h em ponto, e es- “Demorou a descobrir, saída do cemitério. Que-
tranhou que não houves- heim? Mas, também, ria ir embora, e só. E foi
se ninguém lá para o seu quem sou eu para você seu erro.
enterro. Mesmo assim, reparar em mim – seja
Mal sentiu quando
caminhou entre os túmu- como homem ou como
algo pesado caiu com
los – que mais pareciam suspeito? Simplesmente o
força sobre sua cabeça,
um labirinto – tentando novo porteiro, aquele que
enquanto ouvia-o dizer:
decidir o que fazer. Que lhe abria a porta do pré-
“Você acha que eu seria
local teria ele escolhido dio, entregava a corres-
tolo de marcar com você
para sua cova, perguntou- pondência, às vezes aju-
no horário exato? Alte-
se, relanceando um olhar dava com as compras...
rei a hora no jornal que
ao redor e ainda estra- Achei que as coisas iam
deixei sob a sua porta, os
nhando a ausência de pa- mudar com as flores, mas
outros só chegam para
rentes e amigos. “Apare- você continuou a sair
o enterro daqui a uma
ça”, chamou em voz alta, com aquele seu namora-
meia hora...” Depois, não
“eu sei que você está aí”. dinho sem sal! E eu tendo
ouviu nem sentiu mais
de avisar-lhe toda vez que
Com um sorriso ma- nada. Se não estivesse de-
ele chegava, tendo de ser
quiavélico e um olhar sacordada e sedada den-
educado com ele...”
zombeteiro, ele final- tro do caixão que desceu
mente surgiu no corre- Ela tentou falar, repli- à sepultura às 18 h., veria
dor entre as sepulturas, car sobre o absurdo disso o quanto era querida: en-
alguns metros adiante. tudo, mas ele ergueu a quanto o padre rezava e
“Bem-vinda, que bom que mão, interrompendo-a. dizia palavras de consolo,
você veio ao nosso en- “Eu jurei que você se- amigos, parentes, colegas
contro”, saudou, num ar- ria minha, e que, se não de trabalho, namorado,
remedo de cumprimento. fosse, não seria de mais ex-namorado, vizinhos e
http://www.flickr.com/photos/mathieustruck/85768734/sizes/o/
www.revistasamizdat.com 55
Contos
Giselle Sato
A menina e
as doze badaladas
56 SAMIZDAT agosto de 2009
56
Doze badaladas amavam muito, tanto que
não tinham tempo para
Foram doze badaladas, o mais nada além de si.
som repercutiu através dos
Restavam os jardins
salões imensos e vazios.
com muitas flores e balan-
Quem ousaria enfrentar o
ços, empregadas e babás.
medo e espiar, ainda que
Correndo pelas alamedas
pela fresta da fechadura,
ela sonhava que era uma
a quem pertenciam os
fada e pintava as mais lin-
passos cadenciados. Um...
das cores. Cantava e baila-
dois...três...
va e assim eram os dias de
Uma lufada de vento sol. Dias de luz.
forte, arrancou as cortinas
Algumas vezes a doçu-
diáfanas e a lua penetrou
ra perdia o encanto. Pren-
toda senhora de si o apo-
dendo laços negros nas
sento sombrio. Iluminando
pontas das longas tranças,
e evidenciando os cantos
ela transformava-se na
escuros. A última espe-
bruxa má e desejava afo-
rança era o círculo de
gar todos no grande lago.
luz, no chão do quarto de
Todos sem exceção, mes-
brinquedos. Ainda podiam
mo os que deveria obede-
tentar... Mas quem iria se
cer e respeitar. Nestes dias
arriscar? Espreitando na
em que o céu tingia as nu-
escuridão eles aguarda-
vens em chumbo de puro
vam.
rancor... Ela partia-se em
O que antes era motivo mil pedaços e não sabia
de alegria, agora só trazia o que era ou o que fazia.
pânico e horror. Bonecas Destruía o que atravessas-
rotas e caolhas pareciam se seu caminho, maltrata-
acompanhar seus movi- va os bichos e as pessoas
mentos, bailarinas tortas tinham verdadeiro pavor.
pendiam pelas prateleiras,
Quando tudo se acal-
caixas de lembranças em
mava ela repetia baixinho:
papel desbotado. Caixas
Não estou sozinha. Foi
de brinquedos, papéis e
ela quem fez estas coisas
giz de cera espalhados
ruins. Somos duas irmãs
pelo chão.
em almas costuradas a
Houve uma vez uma ferro e brasa. Talvez seja
menina que só queria ser um castigo... Talvez... Mas
feliz. Ela cresceu em uma não estou sozinha. Ela está
casa linda, com pais que se comigo.
http://www.flickr.com/photos/dogwelder/55051390/sizes/l/
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Como a canção de ni- dos olhos da família feliz, final veio arrebatada de
nar jamais entoada. Ela ou viu medo e ódio. O cutelo um contentamento indes-
elas adormeciam. Almas firme destruiu cada peda- critível. Abriu os braços e
siamesas tão diversas, brin- cinho daquelas vidas. foi recebida pela Mãe.
cavam por trás do espelho
A lua negra ofertou o
do salão de chá.
fio condutor.
-- A décima terceira hora
Esgueirando sob tapetes
--- Formando um ponto
vivia o tormento, oculto
único nas trevas.
sob camadas de espessa lã
e tramas bem amarradas. Urros animalescos, sons
Surgiu uma centelha
Prisioneiros e cúmplices guturais, gritos agudos e
criada pelo medo
aguardando o momento graves. Ópera dos desal-
propício da salvação, eles mados, incompreendidos e Partiu-se em duas fagu-
se apegaram. Agora eram fracassados. Música. lhas ínfimas.
três. O cheiro acre crescia Tênues e pálidas... Mas
Algumas vezes deitada e os animais rondavam a vívidas!
em frente à lareira, ouvia fazenda. Todas as portas e
A Morte soprou e
histórias de um tempo em janelas foram abertas. Era
deu vida ao que seria sua
que não havia nada. o convite final! Que vies-
criação derradeira. Partiu
sem e compartilhassem o
O vazio e o inexplicá- gloriosa do seu feito, mais
banquete...
vel caminharam juntos e uma vez havia triunfado.
criaram vida. Foi assim A menina percorreu Os seres divinos sempre
que ela iniciou seu apren- cada cômodo e fingiu não apostavam e perdiam.
dizado com o mestre dos perceber os poucos sobre-
Ninguém conhecia
sonhos. Ele repetia cada viventes. O ar gelado da
mais o homem...
lição, dia após dia... Incan- noite envolveu o ambiente.
sável em sua doutrina. E Eles chegaram aos poucos, Tão temida e odiada...
todo ensinamento tem um vinham deslizando pelo Para ela não havia segredo,
custo muito alto. Talvez caminho da escuridão, ain- perdão, compaixão ou mi-
insuportável ou além dos da temiam o casulo, mas sericórdia. Apenas justiça.
limites. sabiam que precisavam
obedecer. O pequeno milagre
Certo dia os pais per- acontecia e todos os seres
ceberam, que não tinham Finalmente a menina observavam em silêncio.
uma criança que se con- deixou-se levar pelo des-
tino, sentiu quando par- Das duas forças abriu-
tentava com doces e afa-
tes de seu corpo foram se um vórtice e de lá sur-
gos. Era uma aberração
arrancadas e engolidas giram sete mistérios.
que precisavam destruir
o quanto antes, temiam o às pressas. Precisava ser Eles iriam engolir o
dedo acusador e os risos devorada e destruída, era mundo, tomar o fel da
de escárnio. A menina parte do todo e ela agora taça e trazer a ruína à
encarou os pais: dentro compreendia. A agonia humanidade torpe.
ficina
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Autor Convidado
O escritor
Afrânio resolveu escrever sentou à mesa do jantar. Inócuos momentos em
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um livro. Achava que estava Muito bem, vamos lá. que...
na hora. Só não decidiu fazer Toca o telefone.
isso antes, porque era per- Era uma vez.
seguido pela mais absoluta Ok. Era uma vez o quê? - Alô.
das certezas de que nenhum - Afrânio, sou eu.
Era uma vez... era uma vez
editor iria dar importância
o quê, onde, quando, como e - Oi, que voz é essa?
ao seu texto, nenhum livrei-
por quê? - Uma notícia chata: tio
ro iria colocar seu livro na
vitrine, a noite de autógrafos Afrânio franziu as sobran- Miguel morreu.
seria um fiasco, nenhum lei- celhas diante daquele mons- - O quê?
tor iria comprar seus escri- truoso papel em branco.
tos. E todos os críticos iriam - O tio Miguel mesmo.
Tentou mais uma vez e não Enfarte fulminante, agora
condená-lo a um vexame saiu nada.
público e notório. de manhã, fazendo a barba.
Não era uma vez. Quando tia Magali chegou só
Mas dessa vez estava firme. deu tempo de tirar o sabão
Procurou outro caminho.
Ouviu dizer que para um do rosto.
escritor bastava um cotoco Mordidas de lábios, ar de
quem tinha caído nas arma- - Peraí. Deixa eu me refa-
de lápis e um papel de pão. zer.
O assunto viria no decorrer dilhas da inspiração.
do pensar e as histórias, as Gabriel Garcia Márquez - Tudo bem, depois você
personagens, as situações também deve ter lá seus dias me liga.
brotariam por si só. Bastava absolutamente inócuos. - Não, não, a gente tem que
apenas um leve empurrãozi- Inócuos. Bela palavra. enfrentar. Mas eu não vou a
nho do tal cotoco. enterros.
Que tal começar assim?
Foi assim mesmo que se - Nem eu. Dá riso nervoso
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sabe aonde, minha filha. se comover. consegue falar.
Afrânio desligou o telefone. - Miguinho, Miguinho! Por - Querida Tia Magali, re-
Decidiu encarar o velório. que você fez isso comigo? ceba do seu dileto sobrinho
**** Por que foi jogar peteca na Afrânio e da sua não menos
praia ontem à noite? Eu sabia dileta sobrinha Lavínia as
Pegou o primeiro táxi. que ia te fazer mal de ma- mais sinceras condolências
- Bom dia, o senhor pode- nhã... pela súbita perda do amado
ria me levar às capelas do Ao descobrir Afrânio cônjuge e estimado tio. Dá
Cemitério São João Batista, encostado na parede mais me cá um afetuoso abraço de
por obséquio? distante do caixão, Tia Ma- dor e consternação.
- O motorista deu uma gali se joga nos seus braços. Tia Magali olha nos olhos
risadinha. Aperta-lhe tórax, peito e pes- de Afrânio. Tenta se contro-
coço. Como uma sucuri. lar, esquece a viuvez. E cai na
- O senhor está rindo do
- Alfredo, que bom que gargalhada.
quê?
você veio... vem cá ver o ros- - Tá rindo de quê, Tia
- Por obséquio, é? Não é
to sereno do Miguinho. Magali?
melhor por Botafogo?
- Afrânio, tia Magali, Afrâ- - Desculpe, mas esse seu
E Afrânio mais não disse.
nio... discurso foi muito rococó.
Só pensou: outra Kátia na
minha vida. - Afraninho, claro, Afrani- E tome de ataque de riso.
nho de Marieta. Tia Magali e a amiga que
****
- Antonieta, Tia Magali. a amparava, olham às gar-
A capela estava vazia. galhadas para a cara do
Ninguém. Nem a viúva. Entre - Vem cá, meu sobrinho Afrânio. Circunspecto, con-
flores mal cheirosas, sob um querido, vamos nos despedir tido, sobrancelhas franzidas.
manto de filó, Tio Miguel era juntos do seu tio Miguel. Outras pessoas começam a
apenas um nariz cor de cera - Tia Magali, deixa o tio chegar. Os amigos da peteca,
com algodão em cada nari- Miguel dormindo seu sono os coronéis reformados, as
na. Afrânio ficou à distância, eterno, tranqüilo. Prefiro ficar balzacas bronzeadas do Posto
observando como os homens aqui mesmo. Seis. A tia retoma os prantos.
depois que viram defuntos Afrânio sai de fininho.
perdem a dignidade. São ape- Tia Magali em prantos.
****
nas narizes apontando para o - Afraninho, você sempre
teto, alheios a seus arredores. carinhoso... Na saída do cemitério. É
Logo Tio Miguel. Tão extro- abordado por um florista.
- Tia Magali, em meu nome
vertido e mandão. Metido e em nome da minha irmã... - Parente ou amigo?
a dar ordens em casa, na
cozinha, nas filas de cinema, - Luzia... - Tio.
nas reuniões familiares, nas - Não, Tia Magali. Lavínia. - Então, o melhor é uma
casernas, onde passou mais La-ví-nia. coroa de cravos.
da metade da sua vida. Agora - Pensando bem, é distinto.
- Lavininha, claro. Deve
estava ali sem ninguém para
estar tão crescida. - Sim, claro, uma bem fron-
mandar ou chatear. Só espe-
rando a hora de uma outra - 42 anos, Tia Magali. dosa, para ficar num cava-
pessoa, alheia a sua vontade, lete ao lado do morto. Todo
Tia Magali vira-se para o
mandar fechar o caixão e mundo olha para a coroa
centro das desatenções da
sair carregado a uma gaveta antes de olhar o falecido.
capela e recomeça a gritaria.
qualquer. Aliás, muita gente evita olhar
- Miguinho, Miguinho, meu o falecido. É um macete. O
De repente, um ruído companheiro, meu compa- parente finge que está olhan-
assustador. Irrompe à capela nheiro que se foi. Meu Deus, do o defunto, mas é atraído
Tia Magali. Toda de preto, o que será de mim? pela beleza da coroa.
amparada por uma amiga,
proferindo urros de desespe- Afrânio espera passar o - Bem pensado.
ro, gritando bem alto como transe. Tão logo a tia se re-
- Então, só falta os dizeres.
se o marido gelado pudesse cupera, volta à carga e, enfim,
http://www.flickr.com/photos/hidden_treasure/2474163220/sizes/l/
O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
ficina
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Tradução
Annabel Lee
Edgar Allan Poe
It was many and many a year ago, The angels, not half so happy in heaven,
In a kingdom by the sea, Went envying her and me-
That a maiden there lived whom you may know Yes!- that was the reason (as all men know, In this
By the name of Annabel Lee; kingdom by the sea)
And this maiden she lived with no other thought That the wind came out of the cloud by night,
Than to love and be loved by me. Chilling and killing my Annabel Lee.
I was a child and she was a child, But our love it was stronger by far than the love
In this kingdom by the sea; Of those who were older than we-
But we loved with a love that was more than love- Of many far wiser than we-
I and my Annabel Lee; And neither the angels in heaven above,
With a love that the winged seraphs of heaven Nor the demons down under the sea,
Coveted her and me. Can ever dissever my soul from the soul
Of the beautiful Annabel Lee.
And this was the reason that, long ago,
In this kingdom by the sea, For the moon never beams without bringing me dreams
A wind blew out of a cloud, chilling Of the beautiful Annabel Lee;
My beautiful Annabel Lee; And the stars never rise but I feel the bright eyes
So that her highborn kinsman came Of the beautiful Annabel Lee;
And bore her away from me, And so, all the night-tide, I lie down by the side
To shut her up in a sepulchre Of my darling, my darling, my life and my bride,
In this kingdom by the sea. In the sepulchre there by the sea,
In her tomb by the sounding sea.
http://www.flickr.com/photos/lunaspin/2094563164/sizes/o/
Eu era criança e ela era criança, Mas o nosso amor era mais que o amor
Neste reino ao pé do mar; De muitos mais velhos a amar,
Mas o nosso amor era mais que amor – De muitos de mais meditar,
O meu e o dela a amar; E nem os anjos do céu lá em cima,
Um amor que os anjos do céu vieram Nem demônios debaixo do mar
a ambos nós invejar. Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.
E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar, Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Um vento saiu duma nuvem, gelando Da linda que eu soube amar;
A linda que eu soube amar; E as estrelas nos ares só me lembram olhares
E o seu parente fidalgo veio Da linda que eu soube amar;
De longe a me a tirar, E assim ‘stou deitado toda a noite ao lado
Para a fechar num sepulcro Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
Neste reino ao pé do mar. No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.
Fonte: http://www.culturabrasil.pro.br/pessoaepoe.htm
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Tradução
A Máscara da
Morte Vermelha
Edgar Allan Poe
tradução: Henry Alfred Bugalho
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e aqui as vidraças eram e assim cintilantemente o som; e assim os baila-
púrpuras. A terceira era iluminava a sala. E assim rinos obrigatoriamente
totalmente verde, e assim se produzia uma multi- cessavam suas evoluções;
eram seus caixilhos. A dão de reluzentes e fan- e havia um breve descon-
quarta era mobiliada e tásticas aparições. Mas na certo coletivo na alegre
iluminada em laranja — sala ocidental, ou negra, o companhia; e, enquanto
a quinta em branco — a efeito da tocha que luzia os sinos do relógio ainda
sexta em violeta. O séti- sobre as janelas negras soavam, observava-se que
mo apartamento estava através dos vitrais cor de os mais instáveis empali-
intimamente revestido sangue era fantasmagóri- deciam, e os mais velhos
com tapeçarias de veludo co ao extremo, e produzia e sedados passavam as
negro que eram suspen- uma visão tão selvagem mãos pelas sobrancelhas
sas desde o teto, descendo sobre o temperamento como se em confusa reve-
pelas paredes e tombando daqueles que nela entra- rência ou meditação. Mas
em pesadas dobras sobre vam, que eram poucos os quando os ecos cessavam
um tapete do mesmo ma- da companhia corajosos totalmente, uma risada
terial e matiz. Mas, nesta o suficiente para porem o leve de súbito traspassava
câmara apenas, a cor das pé dentro do recinto. a assembleia; os músi-
janelas falhava em corres- cos olhavam uns para os
Era neste apartamento
ponder à sua decoração. outros e sorriam como se
que também havia, con-
As vidraças eram escar- para seu próprio nervo-
tra a parede ocidental,
lates — uma profunda sismo e tolice, e faziam
um gigantesco relógio
cor de sangue. Agora em sussurrantes votos, cada
de ébano. Seu pêndulo
nenhum dos sete apar- um para o outro, que a
balançava de um lado
tamentos havia qualquer próxima badalada do
a outro com um surdo,
lâmpada ou candelabro, relógio não produziria
pesado, monótono retum-
em meio à profusão de neles semelhante emoção;
bo; e quando o ponteiro
ornamentos dourados que e, então, após o lapso de
dos minutos percorria
jaziam dispersos para lá sessenta minutos (que
o circuito, e estava para
e para cá, ou dependu- abarca três mil e seiscen-
soar a hora, provinha dos
rados no teto. Não havia tos segundos do Tempo
pulmões acobreados do
luz alguma emanando de que voa), vinha ainda
relógio um som que era
lâmpada ou vela desde o outra badalada do reló-
nítido, sonoro, profundo e
interior da suíte de câma- gio, e então era o mesmo
excessivamente musical,
ras. Mas, nos corredores desconcerto, tremulação e
mas de uma nota e ênfase
que deixavam a suíte, ali meditação como antes.
tão peculiares que, a cada
havia, oposto a cada jane-
lapso de hora, os músi- Mas, a despeito de
la, um pesado tripé, sus-
cos da orquestra eram estas coisas, era uma fes-
tentando um braseiro de
constrangidos a pararem tividade alegre e magnifi-
fogo, que projetava seus
momentaneamente sua in- cente. Os gostos do duque
raios através dos vitrais
terpretação, para ouvirem eram peculiares. Ele tinha
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imergido completamente sobre os quais nenhu- dançarinos), ele pare-
no silêncio, havia muitos ma zombaria pode ser ceu ter convulsões, num
indivíduos na multidão feita. Na verdade, toda a primeiro momento com
que encontraram prazer companhia parecia agora um forte tremor tanto de
em se tornar cientes da sentir profundamente que terror quanto de repulsa;
presença de uma figura na fantasia e no compor- mas, em seguida, sua testa
mascarada que não havia tamento do estranho não enrubesceu de raiva.
capturado a atenção de existia sabedoria nem
— Quem ousa? — ele
ninguém anteriormente. E propriedade. A figura era
roucamente indagou os
o rumor desta nova pre- alta e esquelética, e enco-
cortesãos que estavam
sença havia se espalhado, berta da cabeça aos pés
próximos dele — quem
aos sussurros, ao redor, com as vestes da cova. A
ousa nos insultar com
a certa altura, ergueu-se máscara que escondia as
esta pilhéria blasfemató-
de toda a companhia um feições era feita de modo
ria? Agarrem-no e o des-
buchicho, ou murmúrio, a se assemelhar à aparên-
mascarem — para que sai-
expressão de desaprova- cia de um cadáver enrije-
bamos a quem devemos
ção e surpresa — então, cido, que mesmo o escru-
enforcar ao nascer do sol,
finalmente, de terror, hor- tínio mais detalhado teria
desde os parapeitos!
ror e repulsa. dificuldade em detectar
a farsa. E tudo isto ainda Era na câmara oriental,
Numa assembleia de
poderia ter sido supor- ou a azul, na qual estava
fantasias tais quais retra-
tado, até aprovado, pelos o Príncipe Prospero quan-
tei, poderia bem se supor
insanos festeiros. Mas o do ele pronunciou estas
que nenhuma aparência
mímico havia ido longe palavras. Elas retumbaram
ordinária teria excitado
demais ao assumir o tipo alto e claramente através
tal sensação. Na verda-
da Morte Vermelha. Suas das sete salas —pois o
de, a licença da masca-
vestes manchadas de san- príncipe era um homem
rada da noite era quase
gue — e sua ampla fronte, destemido e robusto, e a
ilimitada; mas a figura
com todas as feições do música havia sido suspen-
em questão extrapolava
rosto — estavam espargi- sa com um movimento de
todos os limites, e havia
das com o horror escar- sua mão.
ultrapassado as fronteiras
late.
até mesmo do indefinido Era na sala azul que
decoro do príncide. Há Quando os olhos do estava o príncipe, com
acordes nos corações dos Príncipe Prospero pousa- um grupo de pálidos
mais descuidados que ram sobre esta imagem cortesãos a seu lado. A
não podem ser tocados espectral (que com um princípio, enquanto ele
sem emoção. Mesmo com movimento lento e so- falava, houve um ligeiro
aquele completamente lene, como se para mais movimento apressado
perdido, para quem vida completamente manter deste grupo em direção
e morte são igualmente seu papel, vagava de um ao intruso, que, naquele
zombarias, há assuntos lado a outro entre os momento também estava
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Teoria Literária
O bicentenário de
Edgar Allan Poe
a vida e a criação de um mito literário
dedicar exclusivamente à
abandonar a carreira uni-
carreira literária, tornando-
versitária e se alistou no
se o primeiro autor norte-
exército. Nesta época, já se
americano a viver apenas
interessava pela Literatura e,
da escrita. No entanto,
em 1827, lançou sua pri-
longe de representar fortu-
meira coletânea de poe-
na e sucesso, esta escolha
mas — “Tamerlane e outros
significou para Edgar uma acima: Virginia Clemm era prima
poemas” —, que teve reper-
vida repleta de dificuldades de Edgar Allan Poe e foi o seu
cussão praticamente nula. grande amor. Também foi uma das
e privações. Começou a se
Após servir por dois dedicar também ao gênero trágicas perdas na vida do autor.
anos, Edgar conseguiu a da prosa, publicando alguns
dispensa com o auxílio de contos em periódicos da
John Allan, caso prometesse
www.revistasamizdat.com 73
Virginia, sua esposa,
apresentou os primeiros
sintomas de tuberculose em
1842, e nunca conseguiu
se recuperar totalmente. A
doença da esposa acentuou
os problemas de Edgar com
o álcool. Após ter traba-
lhado em vários jornais, ele
retornou a Nova York e se
tornou editor do “Broadway
Journal” e, posteriormente,
proprietário.
Seu poema mais famoso,
“O Corvo”, foi publicado em
1845. Apesar da enorme
repercussão, Edgar Allan
Poe recebeu apenas 9 dó-
lares pela publicação. Seu
jornal faliu um ano depois,
quando Poe se mudou para
um casebre no Bronx, onde
Virginia morreria.
Voltou a Richmond e co-
meçou um relacionamento
com uma paixão da juven-
tude, Sarah Royster.
Edgar Allan Poe mor-
reu em 1849, vagando pelas
ruas de Baltimore, delirante.
Apesar de seu falecimento
estar evidentemente relacio-
nado ao abuso de álcool, as
causas ainda são questiona-
das.
http://www.census.nationalarchives.ie/exhibition/dublin/literary/full/M_Joyce.jpg
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Atrás das vidraças de um café, americanos mais influentes Edgar Allan Poe, que sofreu
um convalescente, contemplan- do século XX, renovou o para poder viver de sua
do com prazer a multidão, gênero conto ao ressuscitar pena, converteu-se numa
mistura-se mentalmente a todos questionamentos, técnicas, das mais ricas fontes de
os pensamentos que se agitam à ambientações, sutilezas inspiração para a literatura
sua volta. Resgatado há pouco já utilizadas ou levadas à vindoura. E o grande segre-
das sombras da morte, ele aspi- perfeição por Poe, como o do disto residiu, principal-
ra com deleite todos os indícios embuste, o raciocínio lógi- mente, na transformação de
e eflúvios da vida; como estava co, o macabro e fantástico, um atormentado indivíduo
prestes a tudo esquecer, lembra- o enigmático, a criptografia, real em um personagem
se e quer ardentemente lembrar- a antiguidade histórica e bizarro e assustador, que
se de tudo. Finalmente, preci- povos exóticos ou desapare- toma vida todas as vezes
pita-se no meio da multidão à cidos. que um leitor entra em
procura de um desconhecido contato com sua obra.
A controversa figura de
cuja fisionomia, apenas vislum-
brada, fascinou-o num relance.
A curiosidade transformou-se
numa paixão fatal, irresistível!”
No mundo lusófono, a
obra de Poe se refletiria e
influenciaria os trabalhos
de Machado de Assis, que
definitivamente buscou no
autor norte-americano sua
inspiração para a estrutura-
ção e para algumas temáti-
cas de seus contos. Por sua
vez, em Portugal, Fernando
Pessoa afirmava que Edgar
Allan Poe “era uma das
figuras literárias mais no-
táveis da América Inglesa”.
Ambos, Machado de Assis e
Pessoa, traduziram poemas
de Poe para o português.
Enfim, Jorge Luis Borges,
um dos autores hispano-
À direita: Charles Baudelaire foi
o primeiro tradutor das obras de
Poe e contribuiu para sua aclama-
ção entre os autores simbolistas e
surrealistas na França.
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tre outros; Poe foi considerado como estão sendo organizados
– investigações policiais cerebral demais, apesar de eventos, como palestras, re-
(“Os Assassinatos da Rua ainda ser tomado como citação de poemas e debates
Morgue”, “O Mistério de um autor do Romantismo. em sua homenagem, mas
Marie Rôget”, “O Coração Para ele, era muito mais principalmente em Rich-
Delator”, “Tu és o Homem”, importante a forma e a mond, Boston e Baltimore,
“A Carta Roubada”) sonoridade dos versos do cidades nas quais ele passou
que o conteúdo, no entanto, a maior parte da vida.
– eventos marítimos
isto nunca significou um Inclusive, em Baltimore,
bizarros ou fantásticos
desequilíbrio entre forma e para o dia 10 de outubro
(“A Narrativa de Arthur
mensagem na obra poética de 2009, está sendo prepa-
Gordon Pym”, “Mensagem
de Poe. rado um funeral em home-
numa Garrafa”, “Descida ao
Maelström”) Pessoalmente, acredito nagem a Poe, que contará
que no corpus literário de com atores representando
Poe existem algumas das os papéis de amigos e rivais
Além disto, há vários mais fundamentais obras- do autor.
outros textos satíricos, de primas da escrita, mas há Nas ligações abaixo, há
humor, enigmáticos (como uma qualidade díspar entre parte da programação das
“O Escaravelho de Ouro”) os textos. Quem se aventu- comemorações do bicen-
e profundamente meta- rar a ler a obra completa tenário de nascimento de
físicos. Edgar Allan Poe do autor se deparará com Edgar Allan Poe.
é considerado como um obras incomparáveis, mas
dos precursores da Ficção Poe Bicentennial - Balti-
também com outras de
Científica, por causa de more
difícil acesso, ou até desin-
contos como “O Embuste teressantes. http://www.poebicentennial.
do Balão”, “A Aventura sem com/index.html
Definitivamente, Edgar
par de um tal Hans Pfaall”. Poe Revealed 1809-2009 –
Allan Poe é leitura obri-
Poe é também considerado Richmond
gatória para qualquer um
como o primeiro autor de
interessado em Literatura. http://www.poe200th.com/
ficção policial, ao conceber
Uma obrigação repleta de index.php
o antológico personagem
prazeres, surpresas e assom-
Auguste Dupin. Tornou-se The New York Times –
bro.
um ícone da literatura de Edgar Allan Poe at 200
Terror e Gótica. A comemoração (Slideshow)
Paralelamente aos mes-
do bicentenário de http://www.nytimes.com/
nascimento de Poe slideshow/2009/01/16/
tres russos e franceses,
como Pushkin, Tchekov e books/eapoe-SLIDE-SHOW-
Durante todo o ano de
Maupassant, Edgar Allan 01-17-2009_index.html
2009, em várias cidades do
Poe instaurou as bases do
leste dos EUA, comemora-se
conto moderno, produzin-
o bicentenário de nascimen- Página oposta: edição do jornal
do alguns dos textos mais
to e o centésimo sexagési- The New York Times em comemo-
perfeitos e emblemáticos do ração ao centenário de nascimen-
mo aniversário de morte de
gênero. to de Edgar Allan Poe, em 15 de
Edgar Allan Poe. Por todo o
No campo da poesia, julho de 1909.
lugar que o escritor viveu,
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Teoria Literária
Publicação independente
ontem e hoje
Henry Alfred Bugalho
www.revistasamizdat.com 81
ta e tornou o livro, se não Assim como predomi- O autor-editor no mundo
acessível ao público, pelo nou no século XX, a publi- digital
menos viável comercial- cação independente é tida
mente. como a via de acesso a uma A informatização se
editora comercial, ou ape- caracteriza como a maior
No entanto, apenas no
nas como publicação por inovação na publicação de
século XIX, auge da era
vaidade. livros desde Gutenberg.
industrial, a publicação de
Nunca antes foi tão fácil,
livros conseguiu reduzir No primeiro caso, o
barato e rápido produzir
drasticamente os custos de autor custeia a primeira
e distribuir informação.
produção e abrir as portas tiragem de seu livro, na ex-
A internet rompeu todas
para a cultura de massas. pectativa de chegar a alguns
as barreiras geográficas e
O controle da cultura leitores, mas, principalmen-
materiais do processo de
deixou as mãos do clero te, de atrair a atenção de
publicação.
e de patronos aristocratas editores. Este foi o percurso
realizado por quase todos Por um lado, tem sido
para pequenos editores ou
os grandes autores contem- possível armazenar todo o
grandes associações que im-
porâneos, os quais através tipo de obras, de todas as
pulsionaram a publicação
de pequenas tiragens ini- épocas, em todos os idio-
de livros rumo ao mercado
ciais provaram a qualidade mas. Obras raras existen-
de consumo.
e a viabilidade comercial de tes apenas em bibliotecas
Então, a figura do autor pessoais ou livros pouco
suas obras.
publicado por uma editora conhecidos podem ser en-
(como Victor Hugo) dividiu No segundo caso, temos
contrados sem dificuldades.
espaço, pela primeira vez, o escritor amador que en-
O critério mercadológico
com o autor independente, contra na publicação inde-
deixa de predominar, e o
ou seja, aquele que custeia pendente a possibilidade de
valor histórico ou literário
do próprio bolso a publi- suprir o desejo de ver seu
volta a ser mais importante.
cação de seu livro (como livro impresso e vendido
Sítios como os do Projeto
quase todas as obras de (ou distribuído gratuitamen-
Gutenberg (www. guten-
Friedrich Nietzsche), e com te) para amigos e parentes.
berg.org), do Internet Sacred
o autor-editor, aquele es- Não há grandes pretensões
Texts Archive (http://www.
critor que assume também comerciais ou literárias,
sacred-texts.com/), do Per-
o papel de editor de seus apenas a necessidade de ter
seus Digital Library (http://
próprios livros e periódicos em mãos o resultado de
www.perseus.tufts.edu/ho-
(como Balzac, Dickens e meses de trabalho.
pper/), do Domínio Público
Edgar Allan Poe). Todavia, ainda há um (http://www.dominiopubli-
Estes três modelos ainda terceiro caso, e que resga- co.gov.br/), entre vários ou-
vigoram hoje em dia, mas ta uma das propostas do tros, disponibilizam obras
as editoras comerciais século XIX, do autor-editor, de domínio público, muitas
acabaram se sobressaindo que encontra na publica- que não são reeditadas há
e obscurecendo os outros ção independente uma via décadas por causa da pouca
dois. alternativa para consolidar demanda.
sua carreira.
E como se caracteriza o Por outro lado, a inter-
autor independente hoje? net permitiu, primordial-
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Crônica
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Crônica
Joaquim Bispo
Pouco racistas
86 SAMIZDAT agosto de 2009
86
A capacidade de miscigena- se relacionou com a filha do glomerado pró português que
ção dos Portugueses foi talvez chefe Arcoverde, bem como combateram nas duas batalhas
o grande trunfo para terem com outras indígenas de quem de Guararapes (1648,1649)
conseguido manter possessões teve 24 filhos, facto que lhe integravam muitos autóctones,
coloniais no séc. XVII, ataca- valeu o epíteto de Adão Per- de todos os estratos e matizes,
das por Holandeses, Ingleses nambucano.” alguns dos quais em posição
e Franceses. Ao contrário dos A miscigenação tinha a van- de liderança de blocos comba-
Holandeses, por exemplo, que tagem de assegurar imunidade tentes. Os quatro comandantes
eram de “má boca” e por isso genética aos descendentes das militares exaltados pela Histó-
tinham de mandar vir da Euro- índias, face a diversas enfermi- ria foram:
pa quase todos os mantimentos, dades e epidemias. “João Fernandes Vieira –
nos 24 anos que permaneceram Depois destes cruzamen- senhor de engenho de origem
em Pernambuco, os Portugue- tos de primeira geração, onde portuguesa;
ses adaptaram-se bem, quer entravam Brancos europeus co- André Vidal de Negreiros
climática, quer gastronómica, lonizadores, Índios autóctones – brasileiro de origem portu-
quer sexualmente. e, a partir de meados do séc. guesa (mazombo) – mobilizou
São famosos os casos de XVI, Negros africanos, chegados recursos e gentes do sertão
João Ramalho e António Ro- como escravos, muitos outros nordestino;
drigues que “foram os pioneiros de segunda e terceira se segui- Felipe Camarão – indígena
da miscigenação no planalto ram, criando uma enorme mul- brasileiro da tribo potiguar –
de Piratininga (S. Paulo). O tiplicidade racial. No séc. XVII, liderou as forças da sua tribo;
primeiro casou com Bartira, para tentar distinguir as várias Henrique Dias – brasilei-
filha do morubixaba Tibiriçá variedades que foram brotando ro filho de escravos africanos
e o segundo com uma filha do de todos aqueles cruzamentos, libertos – foi o ‘governador da
chefe Piquerobi. Estas ligações usavam-se – para os nascidos gente preta’ (negros, crioulos e
entre portugueses e índias no Brasil – as seguintes desig- mulatos), oriunda dos engenhos
encontram-se na origem de nações: assolados pelo conflito.”
alguns dos mais importantes O empenhamento coorde-
troncos paulistas.” Branco + Branca = Mazombo nado de todo este heterogé-
“Outro exemplo paradig- Branco + Índia = Mameluco neo conjunto foi decisivo na
mático é fornecido por Diogo Branco + Negra = Mulato derrota e subsequente expul-
Álvares, o Caramuru, que teve Branco + Mulata = Pardo são, como corpo estranho, das
uma larga prole da sua relação Negro + Negra = Crioulo forças holandesas e determinou
com a índia Paraguaçu – que, Negro + Mulata = Cabra aspectos importantes do viver
após o baptismo, se passou a Negro + Índia = Cafuso brasileiro futuro.
http://www.flickr.com/photos/barbaraporto/3641789835/sizes/o/
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Crônica
Eder Ferreira
http://www.flickr.com/photos/yaniecks_passion/3598018194/sizes/l/
dúvidas. A dança, a pin- instruir, e de mudar a mais ser esquecida. Mas,
tura, a escultura, o cine- mente de seus especta- logo o Homem percebeu
ma, todas possuem algo dores, ou melhor, leitores. que poderia também in-
que as faz transcender as Essa arte é a literatura. ventar histórias, criando,
fronteiras da realidade e Desde que o Homem assim, os mitos, que até
aproximar o ser huma- inventou a escrita, criou- hoje emocionam e im-
no da perfeição. Mas, há se uma necessidade de pressionam a todos, com
uma que faz mais do que se registrar o que se via poderes mágicos, seres
isso. Uma arte que, além e sentia. E mais: a cultu- extraordinários e fatos
de servir como base para ra, que era apenas oral, insólitos.
outras, cumpre um papel passada de boca em boca, Com a evolução do
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Crônica
A Idade da Velhice?
Henry Alfred Bugalho
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Poesia
A ingenuidade
e o conhecer das idades
são canções cantando-se,
são pedra lisa a rolar na enseada ao sabor da onda
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Poesia
Laboratório Poético:
Esquecimento ii.
persegue-me insistente o eco
(revisitado)
que ecoa e ecoa e ecoa
nesse templo vazio e oco
i.
buscam-me mortas
ecoa em cada quadro dessa galeria
as coisas, mortas as horas,
a justeza por que caminho,
as letras, mortas
e a aspereza do alheio
o nunca, o nada, o pó
as mãos que não trazem calos
de uma rua velha, numa casa velha,
os impossíveis desapegos
num mundo invisível e velho
um panorama do que não possuo
ainda desperto ante o corredor
a perfídia do leito
áspero e poeirento
cada hora perdida
sinto a frialdade do seu hálito
cada fio de cabelo
em cada quadro dessa galeria
os princípios e os fins
ecoam o velho e o sono,
as cãibras, o suor
ecoam o verbo e o verso
o cheiro de noite e os sonhos
vencido, desisto da fuga
a tortura, a morte, a dor,
devora-me uma fome urgente que não tem nome
o rancor e a solidão
sou engolido pelo torpor do esquecimento
o que de mim não se enamora
sussurra uma voz com cheiro velho
“ouço estrelas”, sabe-me o destino todo
fujo
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Poesia
blavinos
Ju Blasina
Blavino Nº 12 – o P ó
Hoje
Nada mais
É que o futuro
Do ontem – Passado
Como é o hoje ao amanhã
Eu
Às minhas lembranças e
Esperanças o tempo
Juro em vão:
É só uma gaveta
Não sou à toa, ateu
Onde guardo-
Ou pagão. Só não sirvo
-me em
Pras coisas sérias – verdades
São tão etéreas quanto à própria existência
Pó
Mim
http://leerlingen.hetassink.nl/nederlands/stromingen/20ste%20eeuw/kandin1.gif
Quente
O fundo, o além Saboreie
A cinza das horas O líquido acre-doce
Do mal ou do bem? Que escorre de mim
O pouco de tudo Beba-me,
Faz louco de mim Antes que o sangue esfrie
O amargo interno Coma-me
O etéreo eterno Antes que a carne morra
Devore-me
O (meu) fim
Antes que já não haja
Mais nada
Pra provar em mim
E ao final
Erga a taça
Lamba o prato
Não deixe migalhas
Daquilo que um dia fui
Mortas e esquecidas
Sobre a bandeja de prata
www.revistasamizdat.com 99
O lugar onde
a boa Literatura ficina
é fabricada
www.oficinaeditora.com
http://www.flickr.com/photos/27235917@N02/2788169879/sizes/l/
A Oficina Editora é uma utopia, um não-
lugar. Apenas no século XXI uma vintena
de autores, que jamais se encontraram
fisicamente, poderia conceber um projeto
semelhante.
O livro, sempre tido em conta como uma
das principais fontes de cultura, tornou-se
apenas um bem de consumo, tornou-se um
elemento de exclusão cultural.
A proposta da Oficina Editora é resgatar o
valor natural e primeiro da Literatura: de bem
cultural. Disponibilizando gratuitamente
e-books e com o custo mínimo para livros
impressos, nossos autores apresentam
a demonstração máxima de respeito à
Literatura e aos leitores.
SAMIZDAT
Edição, diagramação e capa
Revisão
Volmar Camargo Junior
Inconformado com a própria inaptidão para di-
zer algo sem ser através de subterfúgios, abdicou de
parte de suas horas diárias de sono, tentando domar
a sintaxe e adestrar a semântica. Depois de perambu-
lar pelo Rio Grande do Sul, acampou-se na brumosa,
fria, úmida, às vezes assustadora – mas cercada por
um cenário natural de extrema beleza – Canela, na
Serra Gaúcha. Amargo e frio, cálido e doce, descen-
dente de judeus poloneses, ciganos uruguaios, indí-
genas missioneiros, pêlos-duros do Planalto Médio,
é brasileiro, gaúcho, e, quando ninguém está vendo,
torcedor do Grêmio Futebol Porto-alegrense. Autor
dos blogs “Um resto de café frio” e “Bah!”.
v.camargo.junior@gmail.com
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj
www.revistasamizdat.com 101
Assessoria de imprensa
Mariana Valle
Por um amor não correspondido, a carioca de
Copacabana começou a poetar aos 12 anos. Veio o
beijo e o príncipe virou sapo. Mas a poesia virou sua
amante. Fez oficina literária e deu pra encharcar o
papel com erotismo. E também com seu choro. Em
reação à hipocrisia e ao machismo da sociedade.
Atuou como jornalista em várias empresas, mas foi
na TV Globo onde aprimorou as técnicas de reda-
ção e ficção. E hoje as usa para contar suas próprias
histórias. Algumas publicadas em seu primeiro livro
e outras divulgadas nos links listados em seu blog
pessoal: www.marianavalle.com
Colaboração
Joaquim Bispo
Ex-técnico de televisão, xadrezista e pintor amador,
licenciado recente em História da Arte, experimenta
agora o prazer da escrita, em Lisboa.
episcopum@hotmail.com
Barbara Duffles
Jornalista, escritora e roteirista, é autora do livro
“Não Abra” e do blog “Não Clique”. Apesar das nega-
tivas, esta carioca quer, sim, ser lida - como todo es-
critor. Tem dias de conto, de crônica e de pílulas sem
sentido. Suas paixões: cinema e livros com cheiro de
novo - se bem que adora se perder nos sebos da vida.
102 SAMIZDAT
102 SAMIZDATagosto
agostode
de2009
2009
102
http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
Carlos Barros
Paulistano, filho de nordestinos, desenhista desde
sempre, artista plástico formado, escritor. Começou
sua vida profissional como educador e, desde então,
já deixou seu rastro por ONG’s, Escolas e Centros
Culturais, através de trabalhos artísticos e pedagó-
gicos – experiências que têm forte influência sobre
seus escritos. Atualmente, organiza oficinas de ilus-
tração para crianças, estuda pós-graduação em Histó-
ria da Arte e escreve para publicações na internet.
carloseducador@hotmail.com
http://desnome.blogspot.com
Eder Ferreira
Nasceu em Siqueira Campos, no dia 27 de dezem-
bro de 1980. Formou-se no curso de Matemática,
na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jaca-
rezinho (FAFIJA). Funcionário público municipal na
cidade de Siqueira Campos, trabalha junto ao Depar-
tamento de Cultura, coordenando projetos de incen-
tivo à leitura e à criação literária. Também exerce
a função de professor de informática e secretariado
administrativo no Centro Educacional Integrado
Plovas Informática (CEIPI). Trabalha ainda, de forma
autônoma, com livros personalizados para presentes.
Sua ligação com a literatura já é de longa data.
Giselle Sato
Autora de Meninas Malvadas, A Pequena Baila-
rina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine
apenas como uma contadora de histórias carioca.
Estudou Belas Artes, Psicologia e foi comissária de
bordo. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se
a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes,
funcionando como um eficiente panorama da socie-
dade em que vivemos.
www.revistasamizdat.com 103
Guilherme Rodrigues
Estudante de Letras na Universidade do Sagrado
Coração, em Bauru, onde sempre morou. Nutre gran-
de paixão por Línguas, Literatura e Lingüística, áreas
a que se dedica cada vez mais.
Jú Blasina
Gaúcha de Porto Alegre. Não gosta de mensurar
a vida em números (idade, peso, altura, salário). Não
se julga muito sã e coleciona papéis - alguns afir-
mam que é bióloga, mestre em fisiologia animal e
etc, mas ela os nega dizendo-se escritora e ponto fi-
nal. Disso não resta dúvida, mas como nem sempre
uma palavra sincera basta, voltou à faculdade como
estudante de letras, de onde obterá mais papéis para
aumentar a sua pilha. É cronista do Caderno Mulher
(Jornal Agora - Rio Grande - RS), mantém atualiza-
do seu blog “P+ 2 T” e participa de fóruns e oficinas
virtuais, além de projetos secretos sustentados à base
de chocolate e vinho, nas madrugadas da vida.
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104 SAMIZDATagosto
agostode
de2009
2009
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http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
Léo Borges
Nasceu em setembro de 1974, é carioca, servidor
público e amante da literatura. Formado em Comu-
nicação Social pela FACHA - Faculdades Integradas
Hélio Alonso, participou da antologia de crônicas
“Retratos Urbanos” em 2008 pela Editora Andross.
Marcia Szajnbok
Médica formada pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, trabalha como psiquiatra
e psicanalista. Apaixonada por literatura e línguas
estrangeiras, lê sempre que pode e brinca de escrever
de vez em quando. Paulistana convicta, vive desde
sempre em São Paulo.
Maristela Deves
Gaúcha nascida na pequena cidade de Pirapó, co-
meçou a sonhar em ser escritora tão logo aprendeu a
ler. Escreve principalmente contos nos gêneros misté-
rio, suspense e terror, além de crônicas.
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Também nesta edição, textos de