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Cruz e Sousa Faróis

Faróis
Cruz e Sousa

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Cruz e Sousa Faróis

Índice
RECOLTA DE ESTRELAS ........................................................................................... 3
RECORDA! ............................................................................................................... 4
CANÇÃO DO BÊBADO ............................................................................................ 4
A FLOR DO DIABO .................................................................................................. 5
AS ESTRELAS ........................................................................................................... 6
PANDEMONIUM ..................................................................................................... 6
ENVELHECER ........................................................................................................... 7
FLORES DA LUA ....................................................................................................... 8
TÉDIO ...................................................................................................................... 8
LÍRIO ASTRAL .......................................................................................................... 9
SEM ESPERANÇA ..................................................................................................... 10
CAVEIRA .................................................................................................................. 10
RÉQUIEM DO SOL .................................................................................................. 10
ESQUECIMENTO ..................................................................................................... 10
VIOLÕES QUE CHORAM... ..................................................................................... 12
OLHOS DO SONHO ............................................................................................... 13
ENCLAUSURADA ..................................................................................................... 14
MÚSICA DA MORTE... ............................................................................................. 14
MONJA NEGRA ........................................................................................................ 14
INEXORÁVEL ............................................................................................................ 15
RÉQUIEM ................................................................................................................. 16
VISÃO ...................................................................................................................... 16
PRESSAGO ............................................................................................................... 17
RESSURREIÇÃO ....................................................................................................... 17
ENLEVO ................................................................................................................... 18
PIEDOSA ................................................................................................................. 18
AUSÊNCIA MISTERIOSA .......................................................................................... 20
MEU FILHO ............................................................................................................. 20
VISÃO GUIADORA .................................................................................................. 21
LITANIA DOS POBRES ............................................................................................ 21
SPLEEN DE DEUSES ................................................................................................. 23
DIVINA .................................................................................................................... 23
CABELOS ................................................................................................................. 23
OLHOS .................................................................................................................... 23
BOCA ....................................................................................................................... 23
SEIOS ....................................................................................................................... 23
MÃOS ...................................................................................................................... 24
PÉS ........................................................................................................................... 24
CORPO .................................................................................................................... 24
CANÇÃO NEGRA ..................................................................................................... 24
A IRONIA DOS VERMES .......................................................................................... 25
INÊS ......................................................................................................................... 26
HUMILDADE SECRETA ............................................................................................ 26
FLOR PERIGOSA ...................................................................................................... 26
METEMPSICOSE ...................................................................................................... 27
OS MONGES ........................................................................................................... 27
TRISTEZA DO INFINITO ......................................................................................... 28
LUAR DE LÁGRIMAS ................................................................................................ 28
ÉBRIOS E CEGOS .................................................................................................... 31
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Cruz e Sousa Faróis
Ânfora azul, de onde o incenso
RECOLTA DE ESTRELAS Dos sonhos se eleva denso.
Filho meu, de nome escrito
Da minh’alma no Infinito. Constelação flamejada
De toda esta vida ansiada.
Escrito a estrelas e sangue
No farol da lua langue... Crisol onde lento, lento
Purifico o Sentimento.
Das tuas asas serenas
Faz manto para estas penes. Íris curioso onde giro
E alucinado deliro.
Dá-me a esmola de um carinho
Como a luz de um claro vinho. Signo dos signos extremos
Destes tormentos supremos.
Com tua mão pequenina
Caminhos em flor me ensina. Orbita de astros onde pairo
E em febre de luz desvairo.
Com teu riso fresco e suave
Oh! Dá-me do encanto a chave. Vertigem, vertigem viva
Da paixão mais convulsiva.
Do teu florão de Inocência
Dá-me as roses da Clemência. Traz-me unção, traz-me concórdia
E paz e misericórdia.
Como outro Jesus bambino,
Esclarece-me o Destino. Do teu sorriso a frescura
Rios de ouro abra, na Altura.
Traz luz ao mundano pego
Onde sigo, mudo e cego... Abra, acenda labaredas,
Iluminando-me as quedas.
Com teus enleios e graça
Nos meus cuidados perpassa. Flor noturna da luxúria
Brotada de haste purpúrea.
Este peito acende, inflama
Na mais sacrossanta chama. Dos teus olhos dadivosos
Escorram óleos preciosos...
Faz brotar nevados lírios
Das cruzes dos meus martírios. Óleos cândidos, dos mundos
Maravilhosos, profundos.
Dá-me um sol de estranho brilho,
Flor das lágrimas, meu filho. Óleos virgens se derramem
E o meu viver embalsamem.
Rebento triste, orvalhado
Com tanto pranto chorado. Embalsamem de eloqüentes,
Celestes dons prefulgentes.
Filho das ânsias, das ânsias,
Das misteriosas fragrâncias, Para que eu possa com calma
Erguer os castelos da alma.
Filho de aromas secretos
E de desejos inquietos. Para que eu durma tranqüilo
Lá no sepulcral Sigilo.
De suspiros anelantes
E impaciências clamantes. Ó meu Filho, ó meu eleito
Deslumbramento perfeito.
Filho meu, tesouro mago
De todo esse afeto vago... Traz novo esplendor ao facho
Com que altos Mistérios acho
Filho meu, torre mais alta
De onde o meu amor se exalta. Meu Filho, frágil e terno,
Socorre-me do atro Inferno.
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Cruz e Sousa Faróis
Onde vibram gládios duros Bate a porta dos Astros solitários
Por ergástulos escuros. Dos eternos Fulgores,
Em busca desses mortos visionários,
E cruzam flamíneas, fortes, Almas de sonhadores.
Negras vidas, negras mortes.
Ah! volta a infância dos primeiros beijos,
Onde tecem Satanases Dos momentos sidéreos,
Sete círculos vorazes... Volta a sede dos últimos desejos,
Dos primeiros mistérios!

RECORDA! Ah! volta aos desenganos primitivos,


Quando a onda dos desejos inquietantes, Volta a essência dos anos,
Que do peito transborda, Volta aos espectros tristemente vivos,
Morrer, enfim, nas amplidões distantes, Ah! volta aos desenganos!
Recorda-te, recorda...
Volta aos serenos, flóridos oásis,
Revive dessa música já finda Volta aos hinos profundos,
Que nas estrelas dorme. Volta as eflorescências dos Lilazes,
Volta-te ao mundo sedutor ainda Volta, volta a esses mundos!
Da ilusão multiforme!
Fique na Sombra e no Silêncio d’alma
Volta, recorda eternamente, volta Todo o teu ser dolente,
Aos faróis da Esperança, Para tranqüilo, com ternura e calma,
Do Sonho estranho as grandes asas solta Recordar docemente...
À celeste Bonança.
Na Sombra então e no Silêncio denso,
Recorda mágoas, lágrimas e risos Como em mágicas plagas,
E soluços e anseios... Faz acender o alampadário imenso
Revive dos nevoeiros indecisos Das recordações vagas...
E dos vãos devaneios.
Pousa a cabeça, meigamente pousa
Revive! Goza! Desolado, embora, Nesse augusto Quebranto
Sorrindo e soluçando, E nem da Terra a mais ligeira cousa
Erguendo os véus de já passada aurora, Te desperte do Encanto.
Recordando e sonhando...
Para o Amor, para a Dor e para o Sonho
Cada alma tem seu íntimo recato Nas Esferas transborda...
Numa estrela perdida E entre um soluço e um segredo risonho
E cada coração intemerato Recorda-te, recorda...
Tem na estrela uma vida.

Aplica o ouvido a correnteza fria CANÇÃO DO BÊBADO


Dos golfões da matéria Na lama e na noite triste
E recorda de que lama sombria Aquele bêbado ri!
E composta a miséria. Tu’alma velha onde existe?
Quem se recorda de ti?
Recorda! Sonha! Nas estrelas erra,
Beduíno do Espaço Por onde andam teus gemidos,
Aos sonhos brancos, que não são da Terra, Os teus noctâmbulos ais?
Dá, sorrindo, o teu braço... Entre os bêbados perdidos
Quem sabe do teu — jamais?
Dá o teu braço, pelos céus sorrindo
E recordando parte Por que é que ficas à lua
E hás de entender os claros céus, sentindo Contemplativo, a vagar?
Que andas a recordar-te. Onde a tua noiva nua
Foi tão depressa a enterrar?

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Cruz e Sousa Faróis
Que flores de graça doente Gerou, da poeira quente das areias
Tua fronte vem florir Das praias infinitas do Desejo,
Que ficas amargamente Essa langue sereia das sereias,
Bêbado, bêbado a rir? Desencantada com o calor de um beijo.

Que vês tu nessas jornadas? Sobre galpões de sonho os seus palácios


Onde está o teu jardim Tinham bizarros e galhardos luxos.
E o teu palácio de fadas, Mais grave de eloqüência que os Horácios,
Meu sonâmbulo arlequim? Vivia a vida dos perfeitos bruxos.

De onde trazes essa bruma, Sono e preguiça, mais preguiça e sono,


Toda essa névoa glacial Luxúrias de nababo e mais luxúrias,
De flor de lânguida espuma, Moles coxins de lânguido abandono
Regada de óleo mortal? Por entre estranhas florações purpúreas.

Que soluço extravagante, Às vezes, sob o luar, nos rios mortos,


Que negro, soturno fel Na vaga ondulação dos lagos frios,
Põe no teu ser doudejante Boiavam diabos de chavelhos tortos,
A confusão da Babel? E de vultos macabros, fugidios.

Ah! das lágrimas insanas A lua dava sensações inquietas


Que ao vinho misturas bem, As paisagens avérnicas em torno
Que de visões sobre-humanas E alguns demônios com perfis de ascetas
Tu’alma e teus olhos tem! Dormiam no luar um sono morno...

Boca abismada de vinho, Foi por horas de Cisma, horas etéreas


Olhos de pranto a correr, De magia secreta e triste, quando
Bendito seja o carinho Nas lagoas letíficas, sidéreas,
Que já te faça morrer! O cadáver da lua vai boiando...

Sim! Bendita a cova estreita Foi numa dessas noites taciturnas


Mais larga que o mundo vão, Que o velho Diabo, sábio dentre os sábios,
Que possa conter direita Desencantado o seu poder das furnas,
A noite do teu caixão! Com o riso augusto a flamejar nos lábios,

Formou a flor de encantos esquisitos


A FLOR DO DIABO E de essências esdrúxulas e finas,
Branca e floral como um jasmim-do-Cabo Pondo nela oscilantes infinitos
Maravilhosa ressurgiu um dia De vaidades e graças femininas.
A fatal Criação do fuIvo Diabo,
Eleita do pecado e da Harmonia. E deu-lhe a quint’essência dos aromas,
Sonoras harpas de alma, extravagancias,
Mais do que tudo tinha um ar funesto, Pureza hostial e púbere de pomas,
Embora tão radiante e fabulosa. Toda a melancolia das distancias...
Havia sutilezas no seu gesto
De recordar uma serpente airosa. Para haver mais requinte e haver mais viva,
Doce beleza e original carícia,
Branca, surgindo das vermelhas chamas Deu-lhe uns toques ligeiros de ave esquiva
Do Inferno inquisitor, corrupto e langue, E uma auréola secreta de malícia.
Ela lembrava, Flor de excelsas famas,
A Via-Láctea sobre um mar de sangue. Mas hoje o Diabo já senil, já fóssil,
Da sua Criação desiludido,
Foi num momento de saudade e tédio, Perdida a antiga ingenuidade dócil,
De grande tédio e singular Saudade, Chora um pranto noturno de Vencido.
Que o Diabo, já das culpas sem remédio,
Para formar a egrégia majestade, Como do fundo de vitrais, de frescos
De góticas capelas isoladas,
Chora e sonha com mundos pitorescos,
Na nostalgia das Regiões Sonhadas.
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Cruz e Sousa Faróis
E os emissários espectrais das mortes
AS ESTRELAS Abrindo as grandes asas flamifortes...
Lá, nas celestes regiões distantes,
No fundo melancólico da Esfera, E o teu perfil oscila, treme, ondula,
Nos caminhos da eterna Primavera Pelos abismos eternais circula...
Do amor, eis as estrelas palpitantes.
Circula e vai gemendo e vai gemendo
Quantos mistérios andarão errantes, E suspirando outro suspiro horrendo.
Quantas almas em busca da Quimera,
Lá, das estrelas nessa paz austera E a sombra rubra que te vai seguindo
Soluçarão, nos altos céus radiantes. Também parece ir soluçando e rindo.

Finas flores de pérolas e prata, Ir soluçando, de um soluço cavo


Das estrelas serenas se desata Que dos venenos traz o torvo travo.
Toda a caudal das ilusões insanas.
Ir soluçando e rindo entre vorazes
Quem sabe, pelos tempos esquecidos, Satanismos diabólicos, mordazes.
Se as estrelas não são os ais perdidos
Das primitivas legiões humanas?! E eu já nem sei se e realidade ou sonho
Do teu perfil o divagar medonho.

PANDEMONIUM Não sei se e sonho ou realidade todo


Em fundo de tristeza e de agonia Esse acordar de chamas e de lodo.
O teu perfil passa-me noite e dia.
Tal é a poeira extrema confundida
Aflito, aflito, amargamente aflito, Da morte a raios de ouro de outra Vida.
Num gesto estranho que parece um grito.
Tais são as convulsões do último arranco
E ondula e ondula e palpitando vaga, Presas a um sonho celestial e branco.
Como profunda, como velha chaga.
Tais são os vagos círculos inquietos
E paira sobre ergástulos e abismos Dos teus giros de lágrimas secretos.
Que abrem as bocas cheias de exorcismos.
Mas, de repente, eis que te reconheço,
Com os olhos vesgos, a flutuar de esguelha, Sinto da tua vida o amargo preço.
Segue-te atrás uma visão vermelha.
Eis que te reconheço escravizada,
Uma visão gerada do teu sangue Divina Mãe, na Dor acorrentada.
Quando no Horror te debateste exangue,
Que reconheço a tua boca presa
Uma visão que é tua sombra pura Pela mordaça de uma sede acesa
Rodando na mais trágica tortura.
Presa, fechada pela atroz mordaça
A sombra dos supremos sofrimentos Dos fundos desesperos da Desgraça.
Que te abalaram como negros ventos.
Eis que lembro os teus olhos visionários
E a sombra as tuas voltas acompanha Cheios do fel de bárbaros Calvários.
Sangrenta, horrível, assombrosa, estranha.
E o teu perfil asas abrir parece
E o teu perfil no vácuo perpassando Para outra Luz onde ninguém padece...
Vê rubros caracteres flamejando.
Com doçuras feéricas e meigas
Vê rubros caracteres singulares De Satãs juvenis, ao luar, nas veigas.
De todos os festins de Baltazares.
E o teu perfil forma um saudoso vulto
Por toda a parte escrito em fogo eterno: Como de Santa sem altar, sem culto.
Inferno! Inferno! Inferno! Inferno! Inferno!
Forma um vulto saudoso e peregrino
De força que voltou ao seu destino.
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Cruz e Sousa Faróis
De ser humano que sofrendo tanto Todas as altas celas de ouro e prata
Purificou-se nos Azuis do Encanto. De teu claustro de Virgem sem afeto
Fecharam sobre tu’alma timorata
Subiu, subiu e mergulhou sozinho, Austeras portas, com fragor secreto.
Desamparado, no fetal caminho.
No entanto, havia no teu corpo ondeante
Que lá chegou transfigurado e aéreo, As delícias sutis de um céu fugace...
Com os aromas das flores do Mistério. E era talvez o encanto mais picante
A graça aldeã do teu nariz rapace.
Que lá chegou e as mortas portas mudas
Fez abalar de imprecações agudas... Teus olhos tinham certa magoa nobre
E certo fundo de doirado abismo
E vai e vai o teu perfil ansioso, E a malícia que logo se descobre
De ondulações fantásticas, brumoso. Em olhos de felino narcotismo.

E vai perdido e vai perdido, errante, Mas na boca trazias todo o oculto
Trêmulo, triste, vaporoso, ondeante. Toque sombrio de ironia grave...
E como que as belezas do teu vulto
Vai suspirando, num suspiro vivo Abriam asas peregrinas de ave.
Que palpita nas sombras incisivo...
Tinhas na boca esse elixir ardente
Um suspiro profundo, tão profundo Da volúpia mortal dos gozos e essa
Que arrasta em si toda a paixão do mundo. Chama de boca, feita unicamente
Para no gozo envelhecer depressa.
Suspiro de martírio, de ansiedade,
De alívio, de mistério, de saudade. E envelheceste tanto, muito cedo,
Sumiu-se tão depressa o teu encanto,
Suspiro imenso, aterrador e que erra Foi tão falaz o sedutor segredo
Por tudo e tudo eternamente aterra... Do teu carnal e lânguido quebranto!

O pandemonium de suspiros soltos Envelheceste para os vãos idílios,


Dos condenados corações revoltos. Para os estranhos estremecimentos,
Para os brilhos iriantes dos teus cílios
Suspiro dos suspiros ansiados E para os sepulcrais esquecimentos.
Que rasgam peitos de dilacerados.
Envelheceste para os vãos amores,
E mudo e pasmo e compungido e absorto, E para os olhos, para as mãos que abrias
Vendo o teu lento e doloroso giro, Como dois talismãs de brancas flores
Fico a cismar qual é o rio morto E de leves e doces harmonias...
Onde vai divagar esse suspiro.
Presa, sem ar, sem sol, crepusculada
No celibato que não tem perfume
ENVELHECER De todo envelheceste abandonada,
Flor de indolência, fina e melindrosa, Já como um ser que não provoca ciúme.
Cativante sereia da esperança,
Cedo tiveste a crença dolorosa Envelhecer é reduzir a vida
De quanto a vida é velha e como cansa... A sentimentos de tristeza austera,
Enclausurá-la numa grave ermida
Na lânguida, na morna morbideza De luto e de silêncio sem quimera.
Do teu amargo e triste celibato,
Tu te fechaste para a Natureza E envelhecer na juventude flórea,
Como a lua no célico recato. Do celibato emurchecido lírio
E ficar sob os pálios da ilusória
No fundo delicado dos teus seios Melancolia, como a luz de um círio...
Foste esconder os sentimentos vagos,
E todos os dolentes devaneios Envelhecer assim, virgem e forte,
Das estrelas sonhando a flor dos lagos. E cerrar contra o mundo a rósea porta
Do Amor e apenas esperar a Morte,
A alma já muda, há muito tempo morta.
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Cruz e Sousa Faróis
Envelheces de tédio, de cansaço, Alma sem rumo, a modorrar de sono,
D’ilusões e de cismas e de penes, Mole, túrbida, lassa...
Como envelhece no celeste espaço Monotonias lúbricas de um mono
O turbilhão das estrelas serenas. Dançando numa praça...

O Amor os corações fez interditos Mudas epilepsias, mudas, mudas,


Ao teu magoado coração cativo Mudas epilepsias,
E apagou-te os sublimes infinitos Masturbações mentais, fundas, agudas,
Do seu clarão fecundador e vivo. Negras nevrostenias.

Hoje envelheces na clausura imensa, Flores sangrentas do soturno vício


Dentro de um sonho pálido feneces. Que as almas queima e morde...
Tua beleza veste névoa densa, Música estranha de fetal suplício,
Em surdinas e sombras envelheces. Vago, mórbido acorde...

De pranto e luar, num desolado misto, Noite cerrada para o Pensamento


Cai a noite na tua puberdade Nebuloso degredo
E como a Rediviva do Imprevisto, Onde em cavo clangor surdo do vento
Erras e sonhas pela Eternidade! Rouco pragueja o medo.

Plaga vencida por tremendas pragas,


FLORES DA LUA Devorada por pestes,
Brancuras imortais da Lua Nova Esboroada pelas rubras chagas
Frios de nostalgia e sonolência... Dos incêndios celestes.
Sonhos brancos da Lua e viva essência
Dos fantasmas noctívagos da Cova. Sabor de sangue, Lágrimas e terra
Revolvida de fresco,
Da noite a tarda e taciturna trova Guerra sombria dos sentidos, guerra,
Soluça, numa tremula dormência... Tantalismo dantesco.
Na mais branda, mais leve florescência
Tudo em Visões e Imagens se renova. Silêncio carregado e fundo e denso
Como um poço secreto,
Mistérios virginais dormem no Espaço, Dobre pesado, carrilhão imenso
Dormem o sono das profundas seivas, Do segredo inquieto...
Monótono, infinito, estranho e lasso...
Florescência do Mal, hediondo parto
E das Origens na luxúria forte Tenebroso do crime,
Abrem nos astros, nas sidéreas leivas Pandemonium feral de ventre farto
Flores amargas do palor da Morte. Do Nirvana sublime.

Delírio contorcido, convulsivo


TÉDIO De felinas serpentes,
Vala comum de corpos que apodrecem, No silamento e no mover lascivo
E esverdeada gangrene Das caudas e dos dentes.
Cobrindo vastidões que fosforescem
Sobre a esfera terrena. Porco lúgubre, lúbrico, trevoso
Do tábido pecado,
Bocejo torvo de desejos turvos, Fuçando colossal, formidoloso
Languescente bocejo Nos lodos do passado.
De velhos diabos de chavelhos curvos
Rugindo de desejo. Ritmos de forças e de graças mortas,
Melancólico exílio,
Sangue coalhado, congelado, frio, Difusão de um mistério que abre portas
Espasmado nas veias... Para um secreto idílio...
Pesadelo sinistro de algum rio
De sinistras sereias... Ócio das almas ou requinte delas,
Quint’essências, velhices
De luas de nevroses amarelas,
Venenosas meiguices.
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Cruz e Sousa Faróis
Insônia morna e doente dos Espaços, Traz-me o alivio dos alívios,
Letargia funérea, Ó virginal,
Vermes, abutres a correr pedaços Ó lírio dos lírios níveos,
Da carne deletéria. Ó Lírio astral!

Um misto de saudade e de tortura, Dentre as sonatas da lua


De lama, de Ódio e de asco, Celestial,
Carnaval infernal da Sepultura, Lírio, vem, Lírio, flutua,
Risada do carrasco. Ó Lírio astral!

Ó tédio amargo, ó tédio dos suspiros, Dos raios das noites de ouro,
Ó tédio d’ansiedades! Do Roseiral,
Quanta vez eu não subo nos teus giros Do constelado tesouro,
Fundas eternidades! Ó lírio astral!

Quanta vez envolvido do teu luto Desprende o fino perfume


Nos sudários profundos Etereal
Eu, calado, a tremer, ao longe, escuto E vem do celeste fume,
Desmoronarem mundos! Ó lírio astral!

Os teus soluços, todo o grande pranto, Da maviosa suavidade


Taciturnos gemidos, Do céu floral
Fazem gerar flores de amargo encanto Traz a meiga claridade,
Nos corações doridos. Ó lírio astral!

Tédio! que pões nas almas olvidadas Que bendita e sempre pura
Ondulações de abismo E divinal
E sombras vesgas, lívidas, paradas, Seja-me a tua frescura,
No mais feroz mutismo! Ó lírio astral!

Tédio do Réquiem do Universo inteiro, Que ela, enfim, me transfigure,


Morbus negro, nefando, Na hora fatal
Sentimento fatal e derradeiro E os meus sentidos apure,
Das estrelas gelando... Ó lírio astral!

O Tédio! Rei da Morte! Rei boêmio! Que tudo que me é avaro


Ó Fantasma enfadonho! De luz vital,
És o sol negro, o criador, o gêmeo, Nessa hora se tome claro,
Velho irmão do meu sonho! Ó lírio astral!

Que portas de astros, rasgadas


LÍRIO ASTRAL Num céu lirial,
Lírio astral, ó lírio branco Eu veja desassombradas,
Ó lírio astral, Ó lírio astral!
No meu derradeiro arranco
Sê cordial! Que eu possa, tranqüilo, vê-las,
Limpo do mal,
Perfuma de graça leve Essas mil portas de estrelas
O meu final Ó lírio astral!
Com o doce perfume breve,
Ó lírio astral! E penetrar nelas, calmo,
Na paz mortal,
Dá-me esse óleo sacrossanto Como um davídico salmo,
Toda a caudal O lírio astral!
Do óleo casto do teu pranto,
Ó lírio astral! Vento velho que soluça
Meu Sonho ideal,
No Infinito se debruça,
Ó lírio astral!
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Cruz e Sousa Faróis
Por isso, lá, no Momento,
Na hora fetal, CAVEIRA
Perfuma esse velho vento I
Ó lírio astral!
Olhos que foram olhos, dois buracos
Traz a graça do Infinito, Agora, fundos, no ondular da poeira...
Graça imortal, Nem negros, nem azuis e nem opacos.
Ao velho Sonho proscrito, Caveira!
Ó lírio astral!
II
Adoça-me o derradeiro
Sonho feral Nariz de linhas, correções audazes,
O lírio do astral Cruzeiro De expressão aquilina e feiticeira,
Ó lírio astral! Onde os olfatos virginais, falazes?!
Caveira! Caveira!!
Se, o Lírio, ó doce Lírio
De luz boreal III
Na morte o meu claro círio,
Ó lírio astral! Boca de dentes límpidos e finos,
De curve leve, original, ligeira,
Perfuma, Lírio, perfume, Que é feito dos teus risos cristalinos?!
Na hora glacial, Caveira! Caveira!! Caveira!!!
Meu Sonho de Sol, de Bruma,
Ó lírio astral!
RÉQUIEM DO SOL
Que eu suba na tua essência Águia triste do Tédio, sol cansado,
Sacramental Velho guerreiro das batalhas fortes!
Para a excelsa Transcendência, Das ilusões as trêmulas coortes
Ó lírio astral! Buscam a luz do teu clarão magoado...

E lá, nas Messes divinas, A tremenda avalanche do Passado


Paire, eternal, Que arrebatou tantos milhões de mortes
Nas Esferas cristalinas, Passa em tropel de trágicos Mavortes
Ó lírio astral! Sobre o teu coração ensangüentado...

Do alto dominas vastidões supremas


SEM ESPERANÇA Águia do Tédio presa nas algemas
Ó cândidos fantasmas da Esperança, Da Legenda imortal que tudo engelha...
Meigos espectros do meu vão Destino,
Volvei a mim nas leves ondas do Hino Mas lá, na Eternidade, de onde habitas,
Sacramental de Bem-aventurança. Vagam finas tristezas infinitas,
Todo o mistério da beleza velha!
Nas veredas da vida a alma não cansa
De vos buscar pelo Vergel divino
Do céu sempre estrelado e diamantino ESQUECIMENTO
Onde toda a alma no Perdão descansa. Ó Estrelas tranqüilas, esquecidas
No seio das Esferas,
Na volúpia da dor que me transporta, Velhos bilhões de lágrimas, de vidas,
Que este meu ser transfunde nos Espaços, Refulgentes Quimeras.
Sinto-te longe, ó Esperança morta.
Astros que recordais infâncias de ouro,
E em vão alongo os vacilantes passos Castidades serenas,
À procura febril da tua porta, Irradiações de mágico tesouro,
Da ventura celeste dos teus braços. Aromas de açucenas.

Rosas de luz do céu resplandecente


Ó Estrelas divinas,
Sereias brancas da região do Oriente
Ó Visões peregrinas!
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Cruz e Sousa Faróis
Aves de ninhos de frouxéis de prata Sentindo que um encanto etéreo e mago,
Que cantais no Infinito Mas um lívido encanto,
As Letras da Canção intemerata Põe nos semblantes um luar mais vago,
Do Mistério bendito. Enche tudo de pranto.

Turíbulos de graça e encantamento Que um concerto de suplicas de magoa,


Das sidérias umbelas, De martírios secretos,
Desvendai-me as Mansões do Esquecimento Vai os olhos tornando rasos d’água
Radiantes sentinelas. E turvando os objetos...

Dizei que palidez de mortos lírios Que um soluço cruel, desesperado


Há por estas estradas Na garganta rebenta...
E se terminam todos os martírios Enquanto o Esquecimento alucinado
Nas brumas encantadas. Move a sombra nevoenta!

Se nessas brumas encantadas choram O rio roxo e triste, Ó rio morto,


Os anseios da Terra, O rio roxo, amargo...
Se os lírios mortos que há por lá se auroram Rio de vãs melancolias de Horto
De púrpuras de guerra. Caídas do céu largo!

Se as que há por cá titânicas cegueiras, Rio do esquecimento tenebroso,


Atordoadas vitórias Amargamente frio,
Embebedam os seres nas poncheiras Amargamente sepulcral, lutuoso,
E no gozo das glórias! Amargamente rio!

O céu é o berço das estrelas brancas Quanta dor nessas ondas que tu levas,
Que dormem de cansaço... Nessas ondas que arrastas,
E das almas olímpicas e francas Quanto suplício nessas tuas trevas,
O ridente regaço... Quantas lágrimas castas!

Só ele sabe, o claro céu tranqüilo Ó meu verso, ó meu verso, ó meu orgulho,
Dos grandes resplendores, Meu tormento e meu vinho,
Qual é das almas o eternal sigilo, Minha sagrada embriaguez e arrulho
Qual o cunho das cores. De aves formando ninho.

Só ele sabe, o céu das quint’essências, Verso que me acompanhas no Perigo


O Esquecimento ignoto Como lança preclara,
Que tudo envolve nas letais diluências Que este peito defende do inimigo
De um ocaso remoto... Por estrada tão rara!

O Esquecimento é flor, sutil, celeste, O meu verso, ó meu verso soluçante,


De palidez risonha. Meu segredo e meu guia,
A alma das coisas languemente veste Tem dó de mim lá no supremo instante
De um véu, como quem sonha. Da suprema agonia.

Tudo no esquecimento se adelgaça... Não te esqueças de mim, meu verso insano,


E nas zonas de tudo Meu verso solitário,
Na candura de tudo, extremo, passa Minha terra, meu céu, meu vasto oceano,
Certo mistério mudo. Meu templo, meu sacrário.

Como que o coração fica cantando Embora o esquecimento vão dissolva


Porque, trêmulo, esquece, Tudo, sempre, no mundo,
Vivendo a vida de quem vai sonhando Verso! que ao menos o meu ser se envolva
E no sonho estremece... No teu amor profundo!

Como que o coração fica sorrindo Esquecer e andar entre destroços


De um modo grave e triste, Que além se multiplicam,
Languidamente a meditar, sentindo Sem reparar na lividez dos ossos
Que o esquecimento existe. Nem nas cinzas que ficam...
11
Cruz e Sousa Faróis
É caminhar por entre pesadelos, Quando os sons dos violões vão soluçando,
Sonâmbulo perfeito, Quando os sons dos violões nas cordas gemem,
Coberto de nevoeiros e de gelos, E vão dilacerando e deliciando,
Com certa ânsia no peito. Rasgando as almas que nas sombras tremem.

Esquecer é não ter lágrimas puras, Harmonias que pungem, que laceram,
Nem asas para beijos Dedos Nervosos e ágeis que percorrem
Que voem procurando sepulturas Cordas e um mundo de dolências geram,
E queixas e desejos! Gemidos, prantos, que no espaço morrem...

Esquecimento! eclipse de horas mortas. E sons soturnos, suspiradas magoas,


Relógio mudo, incerto, Mágoas amargas e melancolias,
Casa vazia... de cerradas portas, No sussurro monótono das águas,
Grande vácuo, deserto. Noturnamente, entre ramagens frias.

Cinza que cai nas almas, que as consome, Vozes veladas, veludosas vozes,
Que apaga toda a flama, Volúpias dos violões, vozes veladas,
Infinito crepúsculo sem nome, Vagam nos velhos vórtices velozes
Voz morta a voz que a chama. Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.

Harpa da noite, irmã do Imponderável, Tudo nas cordas dos violões ecoa
De sons langues e enfermos, E vibra e se contorce no ar, convulso...
Que Deus com o seu mistério formidável Tudo na noite, tudo clama e voa
Faz calar pelos ermos. Sob a febril agitação de um pulso.

Solidão de uma plaga extrema e nua, Que esses violões nevoentos e tristonhos
Onde trágica e densa São ilhas de degredo atroz, funéreo,
Chora seus lírios virginais a lua Para onde vão, fatigadas do sonho
Lividamente imensa. Almas que se abismaram no mistério.

Silêncio dos silêncios sugestivos, Sons perdidos, nostálgicos, secretos,


Grito sem eco, eterno Finas, diluídas, vaporosas brumas,
Sudário dos Azuis contemplativos, Longo desolamento dos inquietos
Florescência do Inferno. Navios a vagar a flor de espumas.

Esquecimento! Fluido estranho, de ânsias, Oh! languidez, languidez infinita,


De negra majestade, Nebulosas de sons e de queixumes,
Soluço nebuloso das Distancias Vibrado coração de ânsia esquisita
Enchendo a Eternidade! E de gritos felinos de ciúmes!

Que encantos acres nos vadios rotos


VIOLÕES QUE CHORAM... Quando em toscos violões, por lentas horas,
Ah! plangentes violões dormentes, mornos, Vibram, com a graça virgem dos garotos,
Soluços ao luar, choros ao vento... Um concerto de lágrimas sonoras!
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
Bocas murmurejantes de lamento. Quando uma voz, em trêmolos, incerta,
Palpitando no espaço, ondula, ondeia,
Noites de além, remotas, que eu recordo, E o canto sobe para a flor deserta
Noites da solidão, noites remotas Soturna e singular da lua cheia.
Que nos azuis da Fantasia bordo,
Vou constelando de visões ignotas. Quando as estrelas mágicas florescem,
E no silêncio astral da Imensidade
Sutis palpitações a luz da lua, Por lagos encantados adormecem
Anseio dos momentos mais saudosos, As pálidas ninféias da Saudade!
Quando lá choram na deserta rua
As cordas vivas dos violões chorosos. Como me embala toda essa pungência,
Essas lacerações como me embalam,
Como abrem asas brancas de clemência
As harmonias dos Violões que falam!
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Cruz e Sousa Faróis
Que graça ideal, amargamente triste, Corpos frágeis, quebrados, doloridos,
Nos lânguidos bordões plangendo passa... Frouxos, dormentes, adormidos, langues
Quanta melancolia de anjo existe Na degenerescência dos vencidos
Nas visões melodiosas dessa graça. De toda a geração, todos os sangues;

Que céu, que inferno, que profundo inferno, Marinheiros que o mar tornou mais fortes,
Que ouros, que azuis, que lágrimas, que risos, Como que feitos de um poder extremo
Quanto magoado sentimento eterno Para vencer a convulsão das mortes,
Nesses ritmos trêmulos e indecisos... Dos temporais o temporal supremo;

Que anelos sexuais de monjas belas Veteranos de todas as campanhas,


Nas ciliciadas carnes tentadoras, Enrugados por fundas cicatrizes,
Vagando no recôndito das celas, Procuram nos violões horas estranhas,
Por entre as ânsias dilaceradoras... Vagos aromas, cândidos, felizes.

Quanta plebéia castidade obscura Ébrios antigos, vagabundos velhos,


Vegetando e morrendo sobre a lama, Torvos despojos da miséria humana,
Proliferando sobre a lama impura, Têm nos violões secretos Evangelhos,
Como em perpétuos turbilhões de chama. Toda a Bíblia fatal da dor insana.

Que procissão sinistra de caveiras, Enxovalhados, tábidos palhaços


De espectros, pelas sombras mortas, mudas. De carapuças, máscaras e gestos
Que montanhas de dor, que cordilheiras Lentos e lassos, lúbricos, devassos,
De agonias aspérrimas e agudas. Lembrando a florescência dos incestos;

Véus neblinosos, longos véus de viúvas Todas as ironias suspirantes


Enclausuradas nos ferais desterros Que ondulam no ridículo das vidas,
Errando aos sóis, aos vendavais e às chuvas, Caricaturas tétricas e errantes
Sob abóbadas lúgubres de enterros; Dos malditos, dos réus, dos suicidas;

Velhinhas quedas e velhinhos quedos Toda essa labiríntica nevrose


Cegas, cegos, velhinhas e velhinhos Das virgens nos românticos enleios;
Sepulcros vivos de senis segredos, Os ocasos do Amor, toda a clorose
Eternamente a caminhar sozinhos; Que ocultamente lhes lacera os seios;

E na expressão de quem se vai sorrindo, Toda a mórbida música plebéia


Com as mãos bem juntas e com os pés bem juntos De requebros de faunos e ondas lascivas;
E um lenço preto o queixo comprimindo, A langue, mole e morna melopéia
Passam todos os lívidos defuntos... Das valsas alanceadas, convulsivas;

E como que há histéricos espasmos Tudo isso, num grotesco desconforme,


na mão que esses violões agita, largos... Em ais de dor, em contorsões de açoites,
E o som sombrio é feito de sarcasmos Revive nos violões, acorda e dorme
E de Sonambulismos e letargos. Através do luar das meias noites!

Fantasmas de galés de anos profundos


Na prisão celular atormentados, OLHOS DO SONHO
Sentindo nos violões os velhos mundos Certa noite soturna, solitária,
Da lembrança fiel de áureos passados; Vi uns olhos estranhos que surgiam
Do fundo horror da terra funerária
Meigos perfis de tísicos dolentes Onde as visões sonâmbulas dormiam...
Que eu vi dentre os vilões errar gemendo,
Prostituídos de outrora, nas serpentes Nunca da terra neste leito raso
Dos vícios infernais desfalecendo; Com meus olhos mortais, alucinados...
Nunca tais olhos divisei acaso
Tipos intonsos, esgrouviados, tortos, Outros olhos eu vi transfigurados.
Das luas tardas sob o beijo níveo,
Para os enterros dos seus sonhos mortos
Nas queixas dos violões buscando alivio;
13
Cruz e Sousa Faróis
A luz que os revestia e alimentava Para onde foste, ó graça das mulheres,
Tinha o fulgor das ardentias vagas, Graça viçosa dos vergéis de Ceres
Um demônio noctâmbulo espiava Sem que o meu pensamento te persiga?!
De dentro deles como de ígneas plagas.
Por onde eternamente enclausuraste
E os olhos caminhavam pela treva Aquela ideal delicadeza de haste,
Maravilhosos e fosforescentes... De esbelta e fina ateniense antiga?!
Enquanto eu ia como um ser que leva
Pesadelos fantásticos, trementes.
MÚSICA DA MORTE...
Na treva só os olhos, muito abertos, A musica da Morte, a nebulosa,
Seguiam para mim com majestade, Estranha, imensa musica sombria,
Um sentimento de cruéis desertos Passa a tremer pela minh’alma e fria
Me apunhalava com atrocidade. Gela, fica a tremer, maravilhosa...

Só os olhos eu via, só os olhos Onda nervosa e atroz, onda nervosa,


Nas cavernas da treva destacando: Letes sinistro e torvo da agonia,
Faróis de augúrio nos ferais escolhos, Recresce a lancinante sinfonia,
Sempre, tenazes, para mim olhando... Sobe, numa volúpia dolorosa...

Sempre tenazes para mim, tenazes, Sobe, recresce, tumultuando e amarga,


Sem pavor e sem medo, resolutos, Tremenda, absurda, imponderada e larga,
Olhos de tigres e chacais vorazes De pavores e trevas alucina...
No instante dos assaltos mais astutos.
E alucinando e em trevas delirando,
Só os olhos eu via! — o corpo todo Como um Ópio letal, vertiginando,
Se confundia com o negror em volta... Os meus nervos, letárgica, fascina...
Ó alucinações fundas do lodo
Carnal, surgindo em tenebrosa escolta!
MONJA NEGRA
E os olhos me seguiam sem descanso, É teu esse espaço, e teu todo o Infinito
Suma perseguição de atras voragens, Transcendente Visão das lágrimas nascida,
Nos narcotismos dos venenos mansos, Bendito o teu sentir, para sempre bendito
Como dois mudos e sinistros pajens. Todo o teu divagar na Esfera indefinida!

E nessa noite, em todo meu percurso, Através de teu luto as estrelas meditam
Nas voltas vagas, vãs e vacilantes Maravilhosamente e vaporosamente;
Do meu caminho, esses dois olhos de urso Como olhos celestiais dos Arcanjos nos fitam
Lá estavam tenazes e constantes. Lá do fundo negror do teu luto plangente.

Lá estavam eles, fixamente eles, Almas sem rumo já, corações sem destino
Quietos, tranqüilos, calmos e medonhos... Vão em busca de ti, por vastidões incertas...
Ah! quem jamais penetrará naqueles E no teu sonho astral, mago e luciferino,
Olhos estranhos dos eternos sonhos! Encontram para o amor grandes portas abertas.

Cândida Flor que aroma e tudo purifica,


ENCLAUSURADA Trazes sempre contigo as sutis virgindades
Ó Monja dos estranhos sacrifícios, E uma caudal preciosa, interminável, rica,
Meu amor imortal, Ave de garras De raras sugestões e curiosidades.
E asas gloriosas, triunfais, bizarras,
Alquebradas ao peso dos cilícios. As belezas do mito, as grinaldas de louro,
Os priscos ouropéis, os símbolos já vagos,
Reclusa flor que os mais revéis flagícios Tudo forma o painel de um velho fundo de ouro
Abalaram com as trágicas fanfarras, De onde surges enfim como as visões dos lagos.
Quando em formas exóticas de jarras
Teu corpo tinha a embriaguez dos vícios. Certa graça cristã, certo excelso abandono
De Deusa que emigrou de regiões de outrora,
Certo aéreo sentir de esquecimento e outono,
Trazem-te as emoções de quem medita e chora.
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Cruz e Sousa Faróis
És o imenso crisol, és o crisol profundo Quem auréolas te deu assim miraculosas
Onde se cristalizam todas as belezas, E todo o estranho assombro e todo o estranho medo,
És o néctar da Fé, de que eu melhor me inundo. Quem pôs na tua treva ondulações nervosas,
Ó néctar divinal das místicas purezas. E mudez e silêncio e sombras e segredo?

Ó Monja soluçante! Ó Monja soluçante, Mas ah! quanto consolo andar errando, errando,
Ó Monja do Perdão, da paz e da clemência, Perdido no teu Bem, perdido nos teus braços,
Leva para bem longe este Desejo errante, Nos noivados da Morte andar além sonhando,
Desta febre letal toda secreta essência. Na unção sacramental dos teus negros Espaços!

Nos teus golfos de Além, nos lagos taciturnos, Que glorioso troféu andar assim perdido
Nos pélagos sem fim, vorazes e medonhos, Na larga vastidão do mudo firmamento,
Abafa para sempre os soluços noturnos, Na noite virginal ocultamente ungido,
E as dilacerações dos formidáveis Sonhos! Nas transfigurações do humano sentimento!

Não sei que Anjo fatal, que Satã fugitivo, Faz descer sobre mim os brandos véus da calma,
Que gênios infernais, magnéticos, sombrios, Sinfonia da Dor, ó Sinfonia muda,
Deram-te as amplidões e o sentimento vivo Voz de todo o meu Sonho, ó noiva da minh’alma,
Do mistério com todos os seus calafrios... Fantasma inspirador das Religiões de Buda.

A lua vem te dar mais trágica amargura, O negra Monja triste, ó grande Soberana,
E mais desolação e mais melancolia, Tentadora Visão que me seduzes tanto,
E as estrelas, do céu na Eucaristia pura, Abençoa meu ser no teu doce Nirvana,
Têm a mágoa velada da Virgem Maria. No teu Sepulcro ideal de desolado encanto!

Ah! Noite original, noite desconsolada Hóstia negra e feral da comunhão dos mortos,
Monja da solidão, espiritual e augusta, Noite criadora, mãe dos gnomos, dos vampiros,
Onde fica o teu reino, a região vedada, Passageira senil dos encantados portos,
A região secreta, a região vetusta?! Ó cego sem bordão da torre dos suspiros...

Almas dos que não tem o Refúgio supremo Abençoa meu ser, unge-o dos óleos castos,
De altas contemplações, dos mais altos mistérios, Enche-o de turbilhões de sonâmbulas aves,
Vinde sentir da Noite o Isolamento extremo, Para eu me difundir nos teus Sacrários vastos,
Os fluidos imortais, angelicais, etéreos. Para me consolar com os teus Silêncios graves.

Vinde ver como são mais castos e mais belos,


Mais puros que os do dia os noturnos vapores: INEXORÁVEL
Por toda a parte no ar levantam-se castelos Ó meu Amor, que já morreste,
E nos parques do céu há quermesses de amores. Ó meu Amor, que morta estas!
Lá nessa cova a que desceste,
Volúpias, seduções, encantos feiticeiros Ó meu Amor, que já morreste,
Andam a embalsamar teu seio tenebroso Ah! nunca mais floresceras?!
E as águias da Ilusão, de vôos altaneiros,
Crivam de asas triunfais o horizonte onduloso. Ao teu esquálido esqueleto,
Que tinha outrora de uma flor
Cavaleiros do Ideal, de erguida lança em riste, A graça e o encanto do amuleto;
Sonham, a percorrer teus velhos Paços cavos... Ao teu esquálido esqueleto
E esse nobre esplendor de majestade triste Não voltará novo esplendor?!
Recebe outros lauréis mais bizarros e bravos.
E ah! o teu crânio sem cabelos,
Convulsivas paixões, convulsivas nevroses, Sinistro, seco, estéril, nu...
Recordações senis nos teus aspectos vagam, (Belas madeixas dos meus zelos!)
Mil alucinações, mortas apoteoses E ah! o teu crânio sem cabelos
E mil filtros sutis que mornamente embriagam. Há de ficar como estás tu?!

O grande Monja negra e transfiguradora, O teu nariz de asa redonda,


Magia sem igual dos paramos eternos, De linhas límpidas, sutis
Quem assim te criou, selvagem Sonhadora, Oh! há de ser na lama hedionda
Da carícia de céus e do negror d’infernos? O teu nariz de asa redonda
Comido pelos vermes vis?! 15
Cruz e Sousa Faróis
Os teus dois olhos — dois encantos — Do brilho das estrelas cristalinas
De tudo, enfim, maravilhar, Virá um riso irônico de dor,
Sacrário augusto dos teus prantos, E da minh’alma subirão neblinas,
Os teus dois olhos — dois encantos — Incensos vagos, cânticos de amor.
Em dois buracos vão ficar?!
Por toda parte o amargo escárnio fundo,
A tua boca perfumosa Sem já mais nada para mim florir,
O céu do néctar sensual As risadas vandálicas do mundo
Tão casta, fresca e luminosa, Secos desdéns por toda a parte a rir.
A tua boca perfumosa
Vai ter o cancro sepulcral?! Que hão de ser vãos esforços da memória
Para lembrar os tempos virginais,
As tuas mãos de nívea seda, As rugas da matéria transitória
De veias cândidas e azuis Hão de 1á estar como a dizer: — jamais!
Vão se extinguir na noite treda
As tuas mãos de nívea seda, E hei de subir transfigurado e lento
Lá nesses lúgubres pauis?! Altas montanhas cheias de visões,
Onde gelaram, num luar, nevoento,
As tuas tentadoras pomas Tantos e solitários corações.
Cheias de um magnífico elixir
De quentes, cálidos aromas Recordarei as íntimas ternuras,
As tuas tentadoras pomas De seres raros, porém mortos já,
Ah! nunca mais hão de florir?! E de mim, do que fui, pelas torturas
Deste viver pouco me lembrará.
A essência virgem da beleza,
O gesto, o andar, o sol da voz O mundo clamará sinistramente
Que Iluminava de pureza, Daquele que a velhice alquebra e alui...
A essência virgem da beleza Mas ah! por mais que clame toda a gente
Tudo acabou no horror atroz?! Nunca dirá o que de certo eu fui.

Na funda treva dessa cova, E os dias frios e ermos da Existência


Na inexorável podridão Cairão num crepúsculo mortal,
Já te apagaste, Estrela nova, Na soluçante, mística plangência
Na funda treva dessa cova Dos órgãos de uma estranha catedral.
Na negra Transfiguração!
Para me ungir no derradeiro e ansioso
Olhar que a extrema comoção traduz,
RÉQUIEM Sob o celeste pálio majestoso
Como os salmos dos Evangelhos celestiais, Hão de passar os Viáticos da luz.
Os sonhos que eu amei hão de acabar,
Quando o meu corpo, trêmulo, dos velhos
Nos gelados outonos penetrar. VISÃO
Noiva de Satanás, Arte maldita,
O rosto encarquilhado e as mãos já frias, Mago Fruto letal e proibido,
Engelhadas, convulsas, a tremer, Sonâmbula do Além, do Indefinido
Apenas viverei das nostalgias Das profundas paixões, Dor infinita.
Que fazem para sempre envelhecer.
Astro sombrio, luz amarga e aflita,
Por meus olhos sem brilho e fatigados Das Ilusões tantálico gemido,
Como sombras de outrora, passarão Virgem da Noite, do luar dorido,
As ilusões de uns olhos constelados Com toda a tua Dor oh! sê bendita!
Que da Vida dourarão-me a Ilusão.
Seja bendito esse clarão eterno
Mas tudo, enfim, as bocas perfumosas, De sol, de sangue, de veneno e inferno,
O mar, o campo e tudo quanto amei, De guerra e amor e ocasos de saudade...
As auroras, o sol, pássaros, rosas,
Tudo rirá do estado a que cheguei. Sejam benditas, imortalizadas
As almas castamente amortalhadas
Na tua estranha e branca Majestade!
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Cruz e Sousa Faróis
A alma cobarde de Judas
PRESSAGO Recebe expressões comudas.
Nas águas daquele lago
Dormita a sombra de Iago... Negras aves de rapina
Mostram a garra assassina.
Um véu de luar funéreo
Cobre tudo de mistério... Sob o céu que nos oprime
Languescem formas de crime.
Há um lívido abandono
Do luar no estranho sono. Com os mais sinistros furores,
Saem gemidos das flores.
Transfiguração enorme
Encobre o luar que dorme... Caveiras! Que horror medonho!
Parecem visões de um sonho!
Dá meia-noite na ermida,
Como o último ai de uma vida. A morte com Sancho Panca,
Grotesca e trágica dança.
São badaladas nevoentas,
Sonolentas, sonolentas... E como um símbolo eterno,
Ritmos dos Ritmos do inferno.
Do céu no estrelado luxo
Passa o fantasma de um bruxo. No lago morto, ondulando,
Dentre o luar noctivagando,
No mar tenebroso e tetro
Vaga de um naufrago o espectro. O corvo hediondo crocita
Da sombra d’Iago maldita!
Como fantásticos signos,
Erram demônios malignos.
RESSURREIÇÃO
Na brancura das ossadas Alma! Que tu não chores e não gemas,
Gemem as almas penadas Teu amor voltou agora.
Ei-lo que chega das mansões extremas,
Lobisomens, feiticeiras Lá onde a loucura mora!
Gargalham no luar das eiras.
Veio mesmo mais belo e estranho, acaso,
Os vultos dos enforcados Desses lívidos países,
Uivam nos ventos irados. Mágica flor a rebentar de um vaso
Com prodigiosas raízes.
Os sinos das torres frias
Soluçam hipocondrias. Veio transfigurada e mais formosa
Essa ingênua natureza,
Luxúrias de virgens mortas Mais ágil, mais delgada, mais nervosa,
Das tumbas rasgam as portas. Das essências da Beleza.

Andam torvos pesadelos Certo neblinamento de saudade


Arrepiando os cabelos. Mórbida envolve-a de leve...
E essa diluente espiritualidade
Coalha nos lodos abjetos Certos mistérios descreve.
O sangue roxo dos fetos.
O meu Amor voltou de aéreas curvas,
Há rios maus, amarelos Das paragens mais funestas...
De presságio de flagelos. Veio de percorrer torvas e turvas
E funambulescas festas.
Das vesgas concupiscências
Saem vis fosforescências. As festas turvas e funambulescas
Da exótica Fantasia,
Os remorsos contorcidos Por plagas cabalísticas, dantescas,
Mordem os ares pungidos. De estranha selvageria.

17
Cruz e Sousa Faróis
Onde carrascos de tremendo aspecto Não sinto mais o teu sorrir macabro
Como astros monstros circulam De desdenhosa caveira.
E as meigas almas de sonhar inquieto Agora o coração e os olhos abro
Barbaramente estrangulam. Para a Natureza inteira!

Ele andou pelas plagas da loucura, Negros pavores sepulcrais e frios


O meu Amor abençoado, Além morreram com o vento...
Banhado na poesia da Ternura, Ah! como estou desafogado em rios
No meu Afeto banhado. De rejuvenescimento!

Andou! Mas afinal de tudo veio Deus existe no esplendor d’algum Sonho,
Mais transfigurado e belo, Lá em alguma estrela esquiva.
Repousar no meu seio o próprio seio Só ele escuta o soluçar medonho
Que eu de lágrimas estréio. E torna a Dor menos viva.

De lágrimas de encanto e ardentes beijos, Ah! foi com Deus que tu chegaste, é certo,
Para matar, triunfante, Com a sua graça espontânea
A sede ideal de místico desejo Que emigraste das plagas do Deserto
De quando ele andou errante. Nu, sem sombra e sol, da Insânia!

E lágrimas, que enfim, caem ainda No entanto como que volúpias vagas
Com os mais acres dos sabores Desses horrores amargos,
E se transformam (maravilha infinda!) Talvez recordação daquelas plagas
Em maravilhas de flores! Dão-te esquisitos letargos...

Ah! que feliz um coração que escuta Porém tu, afinal, ressuscitaste
As origens de que é feito! E tudo em mim ressuscita.
E que não é nenhuma pedra bruta E o meu Amor, que repurificaste,
Mumificada no peito! Canta na paz infinita!

Ah! que feliz um coração que sente


Ah! tudo vivendo intenso ENLEVO
No mais profundo borbulhar latente Da doçura da Noite, da doçura
Do seu fundo foco imenso! De um tenro coração que vem sorrindo,
Seus segredos recônditos abrindo
Sim! eu agora posso ter deveras Pela primeira vez, a luz mais pura.
Ironias sacrossantas...
Posso os braços te abrir, Luz das esferas, Da doçura celeste, da ternura
Que das trevas te levantas. De um Bem consolador que vai fugindo
Pelos extremos do horizonte infindo,
Posso mesmo já rir de tudo, tudo Deixando-nos somente a Desventura.
Que me devora e me oprime.
Voltou-me o antigo sentimento mudo Da doçura inocente, imaculada
Do teu olhar que redime. De uma carícia virginal da Infância,
Nessa de rosas fresca madrugada.
Já não te sinto morta na minh’alma
Como em câmara mortuária, Era assim tua cândida fragrância,
Naquela estranha e tenebrosa calma Arcanjo ideal de auréola delicada,
De solidão funerária. Visão consoladora da Distância...

Já não te sinto mais embalsamada


No meu carinho profundo, PIEDOSA
Nas mortalhas da Graça amortalhada, Não sei por que, magoada Flor sem glória,
Como ave voando do mundo. A tua voz de trêmula meiguice
Desperta em mim a mocidade flórea
Não! não te sinto mortalmente envolta De sentimentos que não tem velhice.
Na névoa que tudo encerra...
Doce espectro do pó, da poeira solta
Deflorada pela terra.
18
Cruz e Sousa Faróis
Guslas de um céu remotamente mudo Na transcendência do teu ser, tão alta,
Gemem plangentes nessa voz que voa Vejo dos céus como que os dons, a esmola,
E através dela, abençoando tudo, O indefinido que de ti ressalta
Um luar de perdões desabotoa. Me prende, me arrebata e me consola.

Vejo-te então sublimemente triste E sinto que a tua alma desprendida


E excelsa e doce, num anseio lento, Do terrestre, do negro labirinto
Vagando como um ser que não existe, Melhor há de adorar-me na outra
Transfigurada pelo Sofrimento. Vida Melhor sentindo tudo quanto eu sinto.

Mas, não sei como, vejo-te por brumas, Porque não é por sentimento vago,
Além da de ouro constelada Porta, Nem por simples e vã literatura,
Na ondulação das lívidas espumas, Nem por caprichos de um estilo mago
Morta, já morta, muito morta, morta... Que sinto tanto a tua essência pura.

E sinto logo esse supremo e sábio Não é por transitória veleidade


Travo da dor, se morta te antevejo, E para que o mundo reconheça,
Essa macabra contração de lábio Que sinto a tua cândida Piedade,
Que morde e tantaliza o meu desejo. As auréolas de Luz dessa cabeça.

Fico sempre a cismar, se tu morresses Não é para que o mundo te proclame


Que angustia fina me laceraria, Maravilha das mártires, das santas
Que músicas de céus saudosos, desses Que eu digo sempre ao meu Amor que te ame
Céus infinitos sobre mim fluiria... Mesmo através de tantas ânsias, tantas.

Que anjos brancos soberbos, deslumbrantes, Nem é também para que o mundo creia
Resplandecentes nos broqueis das vestes, Na humilde limpidez da tua alma justa,
Claros e altos voariam flamejantes Que o mundo, vil e vão, desdenha e odeia
Para buscar-te, dos Azuis Celestes. Toda a humildade, toda a crença augusta.

Sim! Sim! Pois então tanta e atroz fadiga, Mas sinto porque te amo e te acompanho
Tanta e tamanha dor convulsa e cega Pelas montanhas de onde sóis saudosos
Há de ficar sem doce luz amiga, Clarões e sombras de um mistério estranho
Da lágrima dos céus, que tudo rega?! Espalham, como adeuses carinhosos.

As batalhas cruéis do sacrifício, Sinto que te acompanho, que te sigo


As transfigurações dos teus calvários, Tranqüilo, calmo desses vãos rumores
Essas virtudes, rolarão com o vício E que tu vais embalada comigo,
Pelos mesmos abismos tumultuários?! Na mesma rede de carinho e dores.

Toda a obscura pureza dos teus feitos, Sinto os segredos do teu corpo amado,
A tua alma mais simples do que a água, Toda a graça floral, a graça breve,
Essa bondade, todos os eleitos Todo o composto lânguido, alquebrado
Sentimentos que tens de flor da Mágoa; Do teu perfil de áureo crescente leve.

Nada se salvará jamais, mais nada Sinto-te as linhas imortais do flanco,


Se salvará, no instante derradeiro?! E as ondas vaporosas dos teus passos
Ó interrogação desesperada, E todo o sonho castamente branco
Errante, errante pelo mundo inteiro! Da volúpia celeste desses braços.

Nada se salvará da essência viva Sinto a muda expressão da tua boca


Que tudo purifica e refloresce; Feita num doce e doloroso corte
De tanta fé, de tanta luz altiva De beijo dado na veemência louca
De tanta abnegação, de tanta prece?! Dos céus do gozo entre o estertor da morte.

Nada se salvará, piedosa e pobre Sinto-te as nobres mãos afagadoras,


Flor desdenhada pelo Mal ufano, Riquezas raras de um valor secreto
Só o meu coração e verso nobre E mãos cujas carícias redentoras
Hão de abrigar-te do desprezo humano. São as carícias do supremo Afeto.
19
Cruz e Sousa Faróis
Sinto os teus olhos fluidos, de onde emerge Erguendo-os como cálices amargos
Uma graça, uma paz, tamanho encanto, De um vinho ideal de já mortas quimeras,
Tão brando e triste, que a minha alma asperge Para além destes céus mudos e largos
Em suavíssimos bálsamos de pranto. Na ampla misericórdia das Esferas!

Uns olhos tão etéreos, tão profundos,


De tanta e tão sutil delicadeza AUSÊNCIA MISTERIOSA
Que parecem viver lá n’outros mundos, Uma hora só que o teu perfil se afasta,
Longe da contingente Natureza. Um instante sequer, um só minuto
Desta casa que amo — vago luto
Olhos que sempre no tremendo choque Envolve logo esta morada casta.
Dos sofrimentos íntimos, latentes,
Tem esse toque amigo, o velho toque Tua presença delicada basta
Original das lágrimas ardentes. Para tudo tornar claro e impoluto...
Na tua ausência, da Saudade escuto
Ah! sÓ eu vejo e sinto esse desvelo O pranto que me prende e que me arrasta...
Que transfigura e faz o teu martírio,
O sentimento amargurado e belo Secretas e sutis melancolias
Que e já, talvez, quase mortal delírio... Recuadas na Noite dos meus dias
Vêm para mim, lentas, se aproximando.
Sinto que a mesma chama nos abraça,
Que um perfume eternal, casto, esquisito, E em toda casa, nos objetos, erra
Circula e vive com divina graça Um sentimento que não é da Terra
Dentro do nosso trêmulo Infinito. E que eu mudo e sozinho vou sonhando...

E tudo quanto me sensibiliza,


Fere, magoa, dilacera, punge, MEU FILHO
Tudo no teu olhar se cristaliza, Ah! quanto sentimento! ah! quanto sentimento!
No teu olhar, no teu olhar que unge. Sob a guarda piedosa e muda das Esferas
Dorme, calmo, embalado pela voz do vento,
Sinto por ti o mais febril e intenso Frágil e pequenino e tenro como as heras.
Carinho quase louco, doentio...
Carinho singular, curioso, imenso, Ao mesmo tempo suave e ao mesmo tempo estranho
Que deixa na alma um resplendor sombrio. O aspecto do meu fiIho assim meigo dormindo...
Vem dele tal frescura e tal sonho tamanho
E e de tal forma esse carinho raro, Que eu nem mesmo já sei tudo que vou sentindo.
De tal encanto e tão sagrada essência,
De tal Piedade e tal Perdão preclaro, Minh’alma fica presa e se debate ansiosa,
Que canta na estrelada Refulgência. Em vão soluça e clama, eternamente presa
No segredo fatal dessa flor caprichosa,
Ah! nunca saberás quanto exotismo Do meu filho, a dormir, na paz da Natureza.
De sentimento me alanceia e pulsa,
Vibra violinos de sonambulismo Minh’alma se debate e vai gemendo aflita
Nest’alma ora serena, ora convulsa! No fundo turbilhão de grandes ânsias mudas:
Que esse tão pobre ser, de ternura infinita,
Tens luz de lua e tens gorjeios de ave Mais tarde irá tragar os venenos de Judas!
No mundo virginal dos meus sentidos,
E és sonho, sombra de Angelus suave Dar-lhe eu beijos, apenas, dar-lhe, apenas, beijos,
Nos nossos mútuos e comuns gemidos. Carinhos dar-lhe sempre, efêmeros, aéreos,
O que vale tudo isso para outros desejos,
E sonho, sombra de Angelus, tão brandos, O que vale tudo isso para outros mistérios?!
Imortalmente tão indefiníveis
Que todos os terrores execrandos De sua doce mãe que em prantos o abençoa
Cobrem-se para nós de íris sensíveis. Com o mais profundo amor, arcangelicamente,
De sua doce mãe, tão límpida, tão boa,
É assim que eu te sinto, erma, sozinha, O que vale esse amor, todo esse amor veemente?!
Frágil, piedosa, nos singelos brilhos
Erguendo aos braços, nobremente minha,
Os dolentes troféus dos nossos filhos.
20
Cruz e Sousa Faróis
O longo sacrifício extremo que ela faça, Nesse ambiente de amor onde dormes teu sono
As vigílias sem nome, as orações sem termo, Não sentes nem sequer o mais ligeiro espectro...
Quando as garras cruéis e horríveis da Desgraça Mas, ah! eu vejo bem, sinistra, sobre o trono,
De sadio que ele é, fazem-no fraco e enfermo?! A Dor, a eterna Dor, agitando o seu cetro!

Tudo isso, ah! Tudo isso, ah! quanto vale tudo isso
Se outras preocupações mais fundas me laceram, VISÃO GUIADORA
Se a graça de seu riso e a graça do seu viço Ó alma silenciosa e compassiva
São as flores mortais que meu tormento geram?! Que conversas com os Anjos da Tristeza,
Ó delicada e lânguida beleza
Por que tantas prisões, por que tantas cadeias Nas cadeias das lágrimas cativa.
Quando a alma quer voar nos paramos liberta?
Ah! Céus! Quem me revela essas Origens cheias Frágil, nervosa timidez lasciva,
De tanto desespero e tanta luz incerta! Graça magoada, doce sutileza
De sombra e luz e da delicadeza
Quem me revela, pois, todo o tesouro imenso Dolorosa de música aflitiva.
Desse imenso Aspirar tio entranhado, extremo!
Quem descobre, afinal, as causas do que eu penso, Alma de acerbo, amargurado exílio,
As causas do que eu sofro, as causas do que eu Perdida pelos céus num vago idílio
gemo! Com as almas e visões dos desolados.

Pois então hei de ter um afeto profundo, Ó tu que és boa e porque és boa és bela,
Um grande sentimento, um sentimento insano Da Fé e da Esperança eterna estrela
E hei de vê-lo rolar, nos turbilhões do mundo, Todo o caminho dos desamparados.
Para a vala comum do eterno Desengano?!

Pois esse filho meu que ali no berço dorme, LITANIA DOS POBRES
Ele mesmo tão casto e tão sereno e doce Os miseráveis, os rotos
Vem para ser na Vida o vão fantasma enorme São as flores dos esgotos.
Das dilacerações que eu na minh’alma trouxe?!
São espectros implacáveis
Ah! Vida! Vida! Vida! Incendiada tragédia, Os rotos, os miseráveis.
Transfigurado Horror, Sonho transfigurado,
Macabras contorções de lúgubre comédia São prantos negros de furnas
Que um cérebro de louco houvesse imaginado! Caladas, mudas, soturnas.

Meu filho que eu adoro e cubro de carinhos, São os grandes visionários


Que do mundo vilão ternamente defendo, Dos abismos tumultuários.
Há de mais tarde errar por tremedais e espinhos
Sem que o possa acudir no suplicio tremendo. As sombras das sombras mortas,
Cegos, a tatear nas portas.
Que eu vagarei por fim nos mundos invisíveis,
Nas diluentes visões dos largos Infinitos, Procurando o céu, aflitos
Sem nunca mais ouvir os clamores horríveis, E varando o céu de gritos.
A mágoa dos seus ais e os ecos dos seus gritos.
Faróis a noite apagados
Vendo-o no berço assim, sinto muda agonia, Por ventos desesperados.
Um misto de ansiedade, um misto de tortura.
Subo e pairo dos céus na estrelada harmonia Inúteis, cansados braços
E desço e entro do Inferno a furna hórrida, escura. Pedindo amor aos Espaços.

E sinto sede intensa e intensa febre, tanto, Mãos inquietas, estendidas


Tanto Azul, tanto abismo atroz que me deslumbra. Ao vão deserto das vidas.
Velha saudade ideal, monja de amargo Encanto,
Desce por sobre mim sua estranha penumbra. Figuras que o Santo Ofício
Condena a feroz suplício.
Tu não sabes, jamais, tu nada sabes, filho,
Do tormentoso Horror, tu nada sabes, nada... Arcas soltas ao nevoento
O teu caminho e claro, é matinal de brilho, Dilúvio do Esquecimento.
Não conheces a sombra e os golpes da emboscada. 21
Cruz e Sousa Faróis
Perdidas na correnteza E de tal forma um encanto
Das culpas da Natureza. Secreto vos veste tanto.

Ó pobres! Soluços feitos E de tal forma já cresce


Dos pecados imperfeitos! O bando, que em vós parece.

Arrancadas amarguras Ó Pobres de ocultas chagas


Do fundo das sepulturas. Lá das mais longínquas plagas!

Imagens dos deletérios, Parece que em vós há sonho


Imponderáveis mistérios. E o vosso bando é risonho.

Bandeiras rotas, sem nome, Que através das rotas vestes


Das barricadas da fome. Trazeis delícias celestes.

Bandeiras estraçalhadas Que as vossas bocas, de um vinho


Das sangrentas barricadas. Prelibam todo o carinho...

Fantasmas vãos, sibilinos Que os vossos olhos sombrios


Da caverna dos Destinos! Trazem raros amavios.

O pobres! o vosso bando Que as vossas almas trevosas


É tremendo, é formidando! Vêm cheias de odor das rosas.

Ele já marcha crescendo, De torpores, d’indolências


O vosso bando tremendo... E graças e quint’essências.

Ele marcha por colinas, Que já livres de martírios


Por montes e por campinas. Vêm festonadas de lírios.

Nos areiais e nas serras Vem nimbadas de magia,


Em hostes como as de guerras. De morna melancolia!

Cerradas legiões estranhas Que essas flageladas almas


A subir, descer montanhas. Reverdecem como palmas.

Como avalanches terríveis Balanceadas no letargo


Enchendo plagas incríveis. Dos sopros que vem do largo...

Atravessa já os mares, Radiantes d’ilusionismos,


Com aspectos singulares. Segredos, orientalismos.

Perde-se além nas distâncias Que como em águas de lagos


A caravana das ânsias. Bóiam nelas cisnes vagos...

Perde-se além na poeira, Que essas cabeças errantes


Das Esferas na cegueira. Trazem louros verdejantes.

Vai enchendo o estranho mundo E a languidez fugitiva


Com o seu soluçar profundo. De alguma esperança viva.

Como torres formidandas Que trazeis magos aspeitos


De torturas miserandas. E o vosso bando é de eleitos.

E de tal forma no imenso Que vestes a pompa ardente


Mundo ele se torna denso. Do velho Sonho dolente.

E de tal forma se arrasta Que por entre os estertores


Por toda a região mais vasta. Sois uns belos sonhadores.
22
Cruz e Sousa Faróis
Auréola negra, majestosa, ondeada,
SPLEEN DE DEUSES Alma da treva, densa e perfumada,
Oh! Dá-me o teu sinistro Inferno Lânguida Noite da melancolia!
Dos desesperos tétricos, violentos,
Onde rugem e bramem como os ventos
Anátemas da Dor, no fogo eterno... OLHOS
II
Dá-me o teu fascinante, o teu falerno
Dos falernos das lágrimas sangrentos A Grécia d’Arte, a estranha claridade
Vinhos profundos, venenosos, lentos D’aquela Grécia de beleza e graça,
Matando o gozo nesse horror do Averno. Passa, cantando, vai cantando e passa
Dos teus olhos na eterna castidade.
Assim o Deus dos Páramos clamava
Ao Demônio soturno, e o rebelado, Toda a serena e altiva heroicidade
Capricórnio Satã, ao Deus bradava. Que foi dos gregos a imortal couraça,
Aquele encanto e resplendor de raça
Se és Deus-e já de mim tens triunfado, Constelada de antiga majestade,
Para lavar o Mal do Inferno e a bava
Dá-me o tédio senil do céu fechado... Da Atenas flórea toda o viço louro,
E as rosas e os mirtais e as pompas d’ouro,
Odisséias e deuses e galeras...
DIVINA
Eu não busco saber o inevitável Na sonolência de uma lua aziaga,
Das espirais da tua vi matéria. Tudo em saudade nos teus olhos vaga,
Não quero cogitar da paz funérea Canta melancolias de outras eras!...
Que envolve todo o ser inconsolável.

Bem sei que no teu circulo maleável BOCA


De vida transitória e mágoa seria III
Há manchas dessa orgânica miséria
Do mundo contingente , imponderável. Boca viçosa, de perfume a lírio,
Da límpida frescura da nevada,
Mas o que eu amo no teu ser obscuro Boca de pompa grega, purpureada,
E o evangélico mistério puro Da majestade de um damasco assírio.
Do sacrifício que te torna heroína.
Boca para deleites e delírio
São certos raios da tu’alma ansiosa Da volúpia carnal e alucinada,
E certa luz misericordiosa, Boca de Arcanjo, tentadora e arqueada,
E certa auréola que te fez divina! Tentando Arcanjos na amplidão do Empírio,

Boca de Ofélia morta sobre o lago,


CABELOS Dentre a auréola de luz do sonho vago
I E os faunos leves do luar inquietos...

Cabelos! Quantas sensações ao vê-los! Estranha boca virginal, cheirosa,


Cabelos negros, do esplendor sombrio, Boca de mirra e incensos, milagrosa
Por onde corre o fluido vago e frio Nos filtros e nos tóxicos secretos...
Dos brumosos e longos pesadelos...

Sonhos, mistérios, ansiedades, zelos, SEIOS


Tudo que lembra as convulsões de um rio IV
Passa na noite cálida, no estio
Da noite tropical dos teus cabelos. Magnólias tropicais, frutos cheirosos
Das árvores do Mal fascinadoras,
Passa através dos teus cabelos quentes, Das negras mancenilhas tentadoras,
Pela chama dos beijos inclementes, Dos vagos narcotismos venenosos.
Das dolências fatais, da nostalgia...

23
Cruz e Sousa Faróis
Oásis brancos e miraculosos
Das frementes volúpias pecadoras CORPO
Nas paragens fatais, aterradoras VII
Do Tédio, nos desertos tenebrosos...
Pompas e pompas, pompas soberanas
Seios de aroma embriagador e langue, Majestade serene da escultura
Da aurora de ouro do esplendor do sangue, A chama da suprema formosura,
A alma de sensações tantalizando. A opulência das púrpuras romanas.

Ó seios virginais, tálamos vivos As formas imortais, claras e ufanas,


Onde do amor nos êxtases lascivos Da graça grega, da beleza pura,
Velhos faunos febris dormem sonhando... Resplendem na arcangélica brancura
Desse teu corpo de emoções profanas.

MÃOS Cantam as infinitas nostalgias,


V Os mistérios do Amor, melancolias,
Todo o perfume de eras apagadas...
Ó Mãos ebúrneas, Mãos de claros veios,
Esquisitas tulipas delicadas, E as águias da paixão, brancas, radiantes,
Lânguidas Mãos sutis e abandonadas, Voam, revoam, de asas palpitantes,
Finas e brancas, no esplendor dos seios. No esplendor do teu corpo arrebatadas!

Mãos etéricas, diáfanas, de enleios,


De eflúvios e de graças perfumadas, CANÇÃO NEGRA
Relíquias imortais de eras sagradas Ó boca em tromba retorcida
De amigos templos de relíquias cheios. Cuspindo injúrias para o Céu,
Aberta e pútrida ferida
Mãos onde vagam todos os segredos, Em tudo pondo igual labéu.
Onde dos ciúmes tenebrosos, tredos,
Circula o sangue apaixonado e forte. Ó boca em chamas, boca em chamas,
Da mais sinistra e negra voz,
Mãos que eu amei, no féretro medonho Que clamas, clamas, clamas, clamas,
Frias, já murchas, na fluidez do Sonho, Num cataclismo estranho, atroz.
Nos mistérios simbólicos da Morte!
Ó boca em chagas, boca em chagas,
Somente anátemas a rir,
PÉS De tantas pragas, tantas pragas
VI Em catadupas a rugir.

Lívidos, frios, de sinistro aspecto, Ó bocas de uivos e pedradas,


Como os pés de Jesus, rotos em chaga, Visão histérica do Mal,
Inteiriçados, dentre a auréola vaga Cortando como mil facadas
Do mistério sagrado de um afeto. Dum golpe só, transcendental.

Pés que o fluido magnético, secreto Sublime boca sem pecado,


Da morte maculou de estranha e maga Cuspindo embora a lama e o pus,
Sensação esquisita que propaga Tudo a deixar transfigurado,
Um frio n’alma, doloroso e inquieto... O lodo a transformar em luz.

Pés que bocas febris e apaixonadas Boca de ventos inclemente


Purificaram, quentes, inflamadas, De universais revoluções,
Com o beijo dos adeuses soluçantes. Alevantando as hostes quentes,
Os sanguinários batalhões.
Pés que já no caixão, enrijecidos,
Aterradoramente indefinidos Abençoada a canção velha
Geram fascinações dilacerantes! Que os lábios teus cantam assim
Na tua face que se engelha,
Da cor de lívido marfim.

24
Cruz e Sousa Faróis
Parece a furna do Castigo Que a tropa toda forma nos caminhos
Jorrando pragas na canção, Por onde irás passar indiferente;
A tua boca de mendigo, Que há no semblante vão de toda a gente
Tão tosco como o teu bordão. Curiosidades que parecem vinhos.

Boca fatal de torvos trenos! Que os potentes canhões roucos atroam


Da onipotência do bom Deus, O espaço claro de uma tarde suave,
Louvados sejam tais venenos, E que tu vais, Lírio dos lírios e ave
Purificantes como os teus! Do Amor, por entre os sons que te coroam.

Tudo precisa um ferro em brasa Que nas flores, nas sedas, nos veludos,
Para este mundo transformar... E nos cristais do féretro radiante
Nos teus Anátemas põe asa Nos damascos do Oriente, na faiscante
E vai no mundo praguejar! Onda de tudo há longos prantos mudos.

Ó boca ideal de rudes trovas, Que do silêncio azul da imensidade,


Do mais sangrento resplendor, Do perdão infinito dos Espaços
Vai reflorir todas as covas, Tudo te dá os beijos e os abraços
O facho a erguer da luz do Amor. Do seu adeus a tua Majestade.

Nas vãs misérias deste mundo Que de todas as coisas como Verbo
Dos exorcismos cospe o fel... De saudades sem termo e de amargura,
Que as tuas pragas rasguem fundo Sai um adeus a tua formosura,
O coração desta Babel. Num desolado sentimento acerbo.

Mendigo estranho! Em toda a parte Que o teu corpo de luz, teu corpo amado,
Vai com teus gritos, com teus ais, Envolto em finas e cheirosas vestes,
Como o simbólico estandarte Sob o carinho das Mansões celestes
Das tredas convulsões mortais! Ficará pela Morte encarcerado.

Resume todos esses travos Que o teu séquito é tal, tal a coorte,
Que a terra fazem languescer. Tal o sol dos brasões, por toda a parte,
Das mãos e pés arranca os cravos Que em vez da horrenda Morte suplantar-te
Das cruzes mil de cada Ser. Crê-se que és tu que suplantaste a Morte.

A terra é mãe! — mas ébria e louca Mas dos faustos mortais a regia trompa,
Tem germens bons e germens vis... Os grandes ouropéis, a real Quermesse,
Bendita seja a negra boca Ah! tudo, tudo proclamar parece
Que tão malditas coisas diz! Que hás de afinal apodrecer com pompa.

Como que foram feitos de luxúria


A IRONIA DOS VERMES E gozo ideal teus funerais luxuosos
Eu imagino que és uma princesa Para que os vermes, pouco escrupulosos,
Morta na flor da castidade branca... Não te devorem com plebéia fúria.
Que teu cortejo sepulcral arranca
Por tanta pompa espasmos de surpresa. Para que eles ao menos vendo as belas
Magnificências do teu corpo exausto
Que tu vais por um coche conduzida, Mordam-te com cuidados e cautelas
Por esquadrões flamívomos guardada, Para o teu corpo apodrecer com fausto.
Como carnal e virgem madrugada,
Bela das belas, sem mais sol, sem vida. Para que possa apodrecer nas frias
Geleiras sepulcrais d’esquecimentos,
Que da Corte os luzidos Dignitários Nos mais augustos apodrecimentos,
Com seus aspectos marciais, bizarros, Entre constelações e pedrarias.
Seguem-te após nos fagulhantes, carros
E a excelsa cauda dos cortejos vários. Mas ah! quanta ironia atroz, funérea,
Imaginária e cândida Princesa:
És igual a uma simples camponesa
Nos apodrecimentos da Matéria!
25
Cruz e Sousa Faróis
De onde não sei tanta simplicidade,
INÊS Tanta secreta e límpida humildade
Tem teu nome a estranha graça Vem ao teu ser como os encantos raros.
De uma galga verde, estranha.
Certo langor te adelgaça, Nos teus olhos tu alma transparece...
Certo encanto te acompanha. E de tal sorte que o bom Deus parece
Viver sonhando nos teus olhos claros.
És velada, quebradiça
Como teu nome é velado.
Certa flor curiosa viça FLOR PERIGOSA
No teu corpo edenizado. Ah! quem, trêmulo e pálido, medita
No teu perfil de áspide triste, triste,
Chamam-te a Inês dos quebrantos, Não sabe em quanto abismo essa infinita
A galga verde, a felina, Tristeza amarga singular consiste.
Amaranto de amarantos,
Das franzinas a franzina. Tens todo o encanto de uma flor, o encanto
Secreto de uma flor de vago aroma...
Teus olhos, langues aquários Mas não sei que de morno e de quebranto
Adormentados de cisma, Vem, lasso e langue, dessa negra coma.
Vivem mudos, solitários
Como uma treva que abisma. És das origens mais desconhecidas,
De uma longínqua e nebulosa infância.
Tua boca, vivo cravo A visão das visões indefinidas,
Sangüíneo, púrpuro, ardente, De atra, sinistra mórbida elegância.
De certa forma tem travo
Embora veladamente. Como flor, entretanto, és bem amarga!
Pólens celestes o teu ser inundam,
És lírio de velho outono, Mas ninguém sabe a onda nervosa e larga
Meiga Inês, e de tal sorte Dos insetos mortais que te circundam.
Que já vives no abandono,
Meio enevoada da morte. Quem teu aroma de mulher aspira
Fica entre ânsias de túmulo fechado...
Teu beijo, do rosmaninho Sente vertigens de vulcão, delira
Tem o sainete amargoso... E morre, sutilmente envenenado.
Lembra a saudade de um vinho
Secreto, mas venenoso. Teu olhar de fulgências e de treva,
Onde as volúpias a pecar se ajustam,
Por um mistério indizível Guarda um mistério que envilece e eleva,
Não te é dado amar na terra. Causa delíquios e emoções que assustam.
Vem de longe o Indefinível
Que os teus silêncios encerra! És flor, mas como flor és perigosa,
Do mais sombrio e tétrico perigo...
Deus fechou-te a sete chaves Fenômenos fatais de luz ansiosa
O coração lá no fundo... Vão pelas noites segredar contigo.
Mas deu-te as asas das aves
Para irradiares no mundo. Vão segredar que és feia e que és estranha
Sendo feia, mas sendo extravagante,
De enorme, de esquisita, de tamanha
HUMILDADE SECRETA Influência de eclipse radiante...
Fico parado, em êxtase suspenso,
Às vezes, quando vou considerando Sei! não nasceste sob a luz que ondeia
Na humildade simpática, no brando Na beleza e nos astros da saúde;
Mistério simples do teu ser imenso. Mas sendo assim, morbidamente feia,
O teu ser feia torna-se virtude.
Tudo o que aspiro, tudo quanto penso
D’estrelas que andam dentro em mim cantando, És feia e doente, surges desse misto,
Ah! tudo ao teu fenômeno vai dando Da exótica, da insana, da funesta
Um céu de azul mais carregado e denso. Auréola ideal dos martírios de Cristo
Naquela Dor absurdamente mesta.
26
Cruz e Sousa Faróis
Vens de lá, vens de 1á — fundos remotos São os monges sombrios, solitários,
Adelgaçando como os véus de um rio... Como esses vagos rios
Abrindo do magoado e velho lótus Que passam nas florestas tumultuários,
Do sentimento, todo o sol doentio... Solitários, sombrios.

Mas quem quiser saber o quanto encerra São monges das florestas encantadas,
Teu ser, de mais profundo e mais nevoento, Dos ignotos tumultos,
Venha aspirar-te no teu vaso — a Terra — Almas na Terra desassossegadas,
Ó perigosa flor do esquecimento! Desconsolados vultos.

São os monges da Graça e do Mistério,


METEMPSICOSE Faróis da Eternidade
Agora, já que apodreceu a argila Iluminando todo o Azul sidéreo
Do teu corpo divino e sacrossanto; Da sagrada Saudade.
Que embalsamaram de magoado pranto
A tua carne, na mudez tranqüila, — Onde e quando acharão o seu descanso
Eles que há tanto vagam?
Agora, que nos Céus, talvez, se asila Em que dia terão esse remanso
Aquela graça e luminoso encanto Os seus pés que se chagam?
De virginal e pálido amaranto
Entre a Harmonia que nos Céus desfila. Quando caminham nas Regiões nevoentas,
Da lua nos quebrantos,
Que da morte o estupor macabro e feio As suas sombras vagarosas, lentas
Congelou as magnólias do teu seio, Ganham certos encantos...
Por entre catalépticas visões...
Ficam nimbados pela luz da lua
Surge, Bela das Belas, na Beleza Os seus perfis tristonhos...
Do transcendentalismo da Pureza, Sob a dolência peregrina e crua
Nas brancas, imortais Ressurreições! Dos tantálicos sonhos.

As Ilusões são seus mantos sangüíneos


OS MONGES De símbolos de dores,
Montanhas e montanhas e montanhas De signos, de solenes vaticínios,
Ei-los que vão galgando. De nirvânicas flores.
As sombras vãs das figuras estranhas
Na Terra projetando. Benditos monges imortais, benditos
Que etéreas harpas tangem!
Habitam nas mansões do Imponderável Que rasgam d’alto a baixo os Infinitos,
Esses graves ascetas; Infinitos abrangem.
Ocultando, talvez, no Inconsolável
Amarguras inquietas. Deixai-os ir com os seus troféus bizarros
De humano Sentimento,
Como os reis Magos, trazem lá do Oriente Arrebatados pelos ígneos carros
As alfaias preciosas, Do augusto Pensamento.
Mas alfaias, surpreendentemente,
As mais miraculosas. Que os leve a graça das errantes almas,
— Grandes asas de tudo —
Nem incensos, nem mirras e nem ouros, Entre as Hosanas, o verdor das palmas,
Nem mirras nem incensos, Entre o Mistério mudo!
Outros mais raros, mágicos tesouros
Sobre todos, imensos. Não importa saber que rumo trazem
Nem se é longo esse rumo...
Pelos longínquos, sáfaros caminhos Eles no Indefinido se comprazem,
Que vivem percorrendo, São dele a chama e o fumo.
A Dor, como atros, venenosos vinhos,
Os vai deliqüescendo. Deixai-os ir pela Amplidão a fora,
Nos Silêncios da esfera,
Nos esplendores da eternal Aurora
Coroados de Quimera!
27
Cruz e Sousa Faróis
Deixai-os ir pela Amplidão, deixai-os, Tristeza sem causa forte,
No segredo profundo, Diversa de outras tristezas,
Por entre fluidos de celestes raios Nem da vida nem da morte
Transfigurando o mundo. Gerada nas correntezas...

Que só os astros do Azul cintilam Tristeza de outros espaços,


Pela sidérea rede De outros céus, de outras esferas,
Saibam que os monges, lívidos, desfilam De outros límpidos abraços,
Devorados de sede... De outras castas primaveras.

Que ninguém mais possa saber as ânsias Dessas tristezas que vagam
Nem sentir a Dolência Com volúpias tão sombrias
Que vindo das incógnitas Distancias Que as nossas almas alagam
E dos monges a essência! De estranhas melancolias.

Monges, ó monges da divina Graça, Dessas tristezas sem fundo,


Lá da graça divina, Sem origens prolongadas,
Deu-vos o Amor toda a imortal couraça Sem saudades deste mundo,
Dessa Fé que alucina. Sem noites, sem alvoradas.

No meio de anjos que vos-abençoam Que principiam no sonho


Corações estremecem... E acabam na Realidade,
E tudo eternamente vos perdoam Através do mar tristonho
Os que não vos esquecem. Desta absurda Imensidade.

Toda a misericórdia dos espaços Certa tristeza indizível,


Vos oscule, surpresa... Abstrata, como se fosse
E abri, serenos, largamente, os braços A grande alma do Sensível
A toda a Natureza! Magoada, mística, doce.

Ah! tristeza imponderável,


TRISTEZA DO INFINITO Abismo, mistério aflito,
Anda em mim, soturnamente, Torturante, formidável...
Uma tristeza ociosa Ah! tristeza do Infinito!
Sem objetivo, latente,
Vaga, indecisa, medrosa.
LUAR DE LÁGRIMAS
Como ave torva e sem rumo, I
Ondula, vagueia, oscila
E sobe em nuvens de fumo Nos estrelados, límpidos caminhos
E na minh’alma se asila. Dos Céus, que um luar criva de prata e de ouro,
Abrem-se róseos e cheirosos ninhos,
Uma tristeza que eu, mudo, E há muitas messes do bom trigo louro.
Fico nela meditando
E meditando, por tudo Os astros cantam meigas cavatinas,
E em toda a parte sonhando. E na frescura as almas claras gozam
Alvoradas eternal, cristalinas,
Tristeza de não sei donde, E os Dons supremos, divinais esposam.
De não sei quando nem como...
Flor mortal, que dentro esconde Lá, a florescência dos Desejos
Sementes de um mago pomo. Tem sempre um novo e original perfume,
Tudo rejuvenesce dentre harpejos
Dessas tristezas incertas, E dentre palmas verdes se resume.
Esparsas, indefinidas...
Como almas vagas, desertas As próprias mocidades e as infâncias
No rumo eterno das vidas. Das coisas tem um esplendor infindo
E as imortalidades e as distancias
Estão sempre florindo e reflorindo.

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Cruz e Sousa Faróis
Tudo aÍ se consola e transfigura E absorto, penetrando os Céus tão calmos,
Num Relicário de viver perfeito, Céus de constelações que maravilham,
E em cada uma alma peregrina e pura Não sabe, acaso, se com os brilhos almos,
Alvora o sentimento mais eleito. São estrelas ou lágrimas que brilham.

Tudo aí vive e sonha o imaculado Mas ah! das Almas esse azul letargo,
Sonho esquisito e azul das quint’essências, Esse eterno, imortal Isolamento,
Tudo é sutil e cândido, estrelado, Tudo se envolve num luar amargo
Embalsamado de eternais essências. De Saudade, de Dor, de Esquecimento!

Lá as Horas são águias, voam, voam Tudo se envolve nas neblinas densas
Com grandes asas resplandecedoras... De outras recordações, de outras lembranças,
E harpas augustas finamente soam No doce luar das lágrimas imensas
As Aleluias glorificadoras. Das mais inconsoláveis esperanças.

Forasteiros de todos os matizes II


Sentem ali felicidades castas
E os que essas libações gozam felizes Ó mortos meus, ó desabados mortos!
Deixam da terra as vastidões nefastas. Chego de viajar todos os portos.

Anjos excelsos e contemplativos, Volto de ver inóspitas paragens,


Soberbos e solenes, soberanos, As mais profundas regiões selvagens.
Com aspectos grandíloquos, altivos,
Sonham sorrindo, angelicais e ufanos. Andei errando por funestas tendas
Onde das almas escutei as lendas.
Lá não existe a convulsão da Vida
Nem os tremendos, trágicos abrolhos. E tornei a voltar por uma estrada
Há por tudo a doçura indefinida Erma, na solidão, abandonada.
Dos azuis melancólicos de uns olhos.
Caminhos maus, atalhos infinitos
Véus brancos de Visões resplandecentes Por onde só ouvi ânsias e gritos.
Miraculosamente se adelgaçam...
E recordando essas Visões diluentes Por toda a parte a rir o incêndio e a peste
Dolências beethovínicas perpassam. Debaixo da Ilusão do Azul celeste.

Há magos e arcangélicos poderes Era também luar, luar lutuoso


Para que as existências se transformem... Pelas estradas onde errei saudoso...
E os mais egrégios e completos seres
Sonos sagrados, impolutos dormem... Era também luar, o luar das penas,
Brando luar das Ilusões terrenas.
E lá que vagam, que plangentes erram,
Lá que devem vagar, decerto, flóreas, Era um luar de triste morbideza
Puras, as Almas que eu perdi, que encerram Amortalhando toda a natureza.
O meu Amor nas Urnas ilusórias.
E eu em vão busquei, Mortos queridos,
Hosanas de perdão e de bondade Por entre os meus tristíssimos gemidos.
De celestial misericórdia santa
Abençoam toda essa claridade Em vão pedi os filtros dos segredos
Que na harmonia das Esferas canta. Da vossa morte, a voz dos arvoredos.

Preces ardentes como ardentes sarças Em vão fui perguntar ao Mar que e cego
Sobem no meio das divinas messes. A lei do Mar do Sonho onde navego.
Lembra o vôo das pombas e das garças
A leve ondulação de tantas preces. Ao Mar que e cego, que não vê quem morre
Nas suas ondas, onde o sol escorre...
E quem penetra nesse ideal Domínio,
Por entre os raios das estrelas belas, Em vão fui perguntar ao Mar antigo
Todo o celeste e singular escrínio, Qual era o vosso desolado abrigo.
Todo o escrínio das lágrimas vê nelas.
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Cruz e Sousa Faróis
Em vão vos procurei cheio de chagas, Sem ter ao pe de mim o astral cruzeiro
Por estradas insólitas e vagas. Do vosso grande amor alvissareiro.

Em vão andei mil noites por desertos, Por isso, ó sombras, sombras impolutas,
Com passos, espectrais, dúbios, incertos. Eu ando a perguntar as formas brutas.

Em vão clamei pelo luar a fora, E ao vento e ao mar e aos temporais que ululam
Pelos ocasos, pelo albor da aurora. Onde é que esses perfis se crepusculam.

Em vão corri nos areiais terríveis Caminho, a perguntar, em vão, a tudo,


E por curvas de montes impassíveis. E só vejo um luar soturno e mudo.

Só um luar, só um luar de morte Só contemplo um luar de sacrifícios,


Vagava igual a mim, com a mesma sorte. De angústias, de tormentas, de cilícios.

Só um luar sempre calado e dútil, E sem ninguém, ninguém que me responda


Para a minha aflição, acerbo e inútil. Tudo a minh’alma nos abismos sonda.

Um luar de silêncio formidável Tudo, sedenta, quer saber, sedenta


Sempre me acompanhando, impenetrável. Na febre da Ilusão que mais aumenta.

Só um luar de mortos e de mortas Tudo, mas tudo quer saber, não cessa
Para sempre a fechar-me as vossas portas. De perscrutar e a perscrutar começa.

E eu, já purgado dos terrestres De novo sobe e desce escadarias


Crimes, Sem achar nunca essas portas sublimes. D’estrelas, de mistérios, de harmonias.

Sempre fechado a chave de mistério Sobe e não cansa, sobe sempre, austera,
O vosso exílio pelo Azul sidéreo. Pelas escadarias da Quimera.

Só um luar de trêmulos martírios Volta, circula, abrindo as asas volta


A iluminar-me com clarões de círios. E os vôos de águia nas Estrelas solta.

Só um luar de desespero horrendo Cada vez mais os vôos no alto apruma


Ah! sempre me pungindo e me vencendo. Para as etéreas amplidões da Bruma.

Só um luar de lágrimas sem termos E tanta forca na ascensão desprende


Sempre me perseguindo pelos ermos. Da envergadura, a proporção que ascende...

E eu caminhando cheio de abandono Tamanho impulso, colossal, tamanho


Sem atingir o vosso claro trono. Ganha na Altura, no Esplendor estranho.

Sozinho para longe caminhando Tanto os esforços em subir concentra,


Sem o vosso carinho venerando. Em tantas zonas de Prodígios entra.

Percorrendo o deserto mais sombrio Nas duas asas tal vigor supremo
E de abandono a tiritar de frio... Leva, através de todo o Azul extremo,

Ó Sombras meigas, ó Refúgios ternos Que parece cem águias de atras garras
Ah! como penetrei tantos Infernos! Com asas gigantescas e bizarras.

Como eu desci sem vós negras escarpas, Cem águias soberanas, poderosas
A Almas do meu ser, Ó Almas de harpas! Levantando as cabeças fabulosas.

Como senti todo esse abismo ignaro E voa, voa, voa, voa imersa
Sem nenhuma de vós por meu amparo. Na grande luz dos Paramos dispersa.

Sem a benção gozar, serena e doce, E voa, voa, voa, voa, voa
Que o vosso Ser aos meus cuidados trouxe. Nas Esferas sem fim perdida a toa.
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Cruz e Sousa Faróis
Ate que exausta da fadiga e sonho Ninguém diria, entanto,
Nessa vertigem, nesse errar medonho. O sentimento trágico, tremendo,
A convulsão de pranto
Até que tonta de abranger Espaços, Que aquelas almas iam turvescendo.
Da Luz nos fulgidíssimos abraços.
Ninguém sabia, certos,
Depois de voar a tão sutis Encantos, Quantos os desesperos mais agudos
Vendo que as Ilusões a abandonaram, Dos mendigos desertos,
Chora o luar das lágrimas, os prantos Ébrios e cegos, caminhando mudos.
Que pelos Astros se cristalizaram!
Ninguém lembrava as ânsias
Daqueles dois estados meio gêmeos,
ÉBRIOS E CEGOS Presos nas inconstâncias
Fim de tarde sombria. De sofrimentos quase que boêmios.
Torvo e pressago todo o céu nevoento.
Densamente chovia. Ninguém diria nunca,
Na estrada o lodo e pelo espaço o vento. Ébrios e cegos, todos dois tateando,
A que atroz espelunca
Monótonos gemidos Tinham, sem vista, ido beber, bambeando.
Do vento, mornos, lânguidos, sensíveis:
Plangentes ais perdidos Que negro álcool profundo
De solitários seres invisíveis... Turvou-lhes a cabeça e que sudário
Mais pesado que o mundo
Dois secretos mendigos Pôs-lhes nos olhos tal horror mortuário.
Vinham, bambos, os dois, de braço dado,
Como estranhos amigos E em tudo, em tudo aquilo,
Que se houvessem nos tempos encontrado. Naqueles sentimentos tão estranhos.
De tamanho sigilo,
Parecia que a bruma Como esses entes vis eram tamanhos!
Crepuscular os envolvia, absortos
Numa visão, nalguma Que tão fundas cavernas,
Visão fatal de vivos ou de mortos. Aquelas duas dores enjaularam,
Miseráveis e eternas
E de ambos o andar lasso Nos horríveis destinos que as geraram.
Tinha talvez algum sonambulismo,
Como através do espaço Que medonho mar largo,
Duas sombras volteando num abismo. Sem lei, sem rumo, sem visão, sem norte,
Que absurdo tédio amargo
Era tateante, vago De almas que apostam duelar com a morte!
De ambos o andar, aquele andar tateante
De ondulação de lago, Nas suas naturezas,
Tardo, arrastado, trêmulo, oscilante. Entre si tão opostas, tão diversas,
Monstruosas grandezas
E tardo, lento, tardo, Medravam, já unidas, já dispersas.
Mais tardo cada vez, mais vagaroso,
No torvo aspecto pardo Onde a noite acabava
Da tarde, mais o andar era brumoso. Da cegueira feral de atros espasmos,
A embriaguez começava
Bamboleando no lodo, Rasgada de ridículos sarcasmos.
Como que juntos resvalando aéreos,
Todo o mistério, todo E bêbadas, sem vista,
Se desvendava desses dois mistérios: Na mais que trovejante tempestade,
Caminhando a conquista
Ambos ébrios e cegos, Do desdém das esmolas sem piedade,
No caos da embriaguez e da cegueira,
Vinham cruzando pegos Lá iam, juntas, bambas,
De braço dado, a sua vida inteira. — acorrentadas convulsões atrozes —,
Ambas as vidas, ambas
Já meio alucinadas e ferozes.
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Cruz e Sousa Faróis
E entre a chuva e entre a lama
E soluços e lágrimas secretas,
Presas na mesma trama,
Turvas, flutuavam, trêmulas, inquietas.

Mas ah! torpe matéria!


Se as atritassem, como pedras brutas,
Que chispas de miséria
Romperiam de tais almas corruptas!

Tão grande, tanta treva,


Tão terrível, tão trágica, tão triste,
Os sentidos subleva,
Cava outro horror, fora do horror que existe.

Pois do sinistro sonho


Da embriaguez e da cegueira enorme,
Erguia-se, medonho,
Da loucura o fantasma desconforme.

Compilado por
Roberto B. Cappelletti
Setembro, 2005
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