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CAPA

Pedro Kogen Dinis

CATORZE
>
Ricardo Galésio

> 14FOURTEENFEVEREIRO2008
Andrea Ribeiro
Carolina Reis Temos revista para dar e vender. Este mês. pela primeira vez, saímos para a rua,
não nos contentámos com as folhas binárias e conquistámos outro espaço. Em
Charlie Homo parceria com a Fnac, organizámos uma exposição com ilustrações do Pedro Kogen
Dinis. Quase Sonho. Para ver a partir de 15 de Fevereiro na Fnac Chiado.
Corrado Dalcò Mas há mais.

Diogo Pontes Pedrosa


Hugo Mortágua
Joana Lopes Correia
João Flores
Lars Stephan
Luca Buti
Pedro Kogen Dinis
Pedro Palrão
Pedro Rio
Sara Toscano
Yaniv Waissa
RETRO
by
LARS
STEPHAN
Alemão. Fotógrafo. Vive em Nova Iorque.

“My goal with my photography is to create images that have importance now and in
the future. I want them to be nice to look at composition and lightingwise, but also to
include a story element into them. I mean that if you look at the image now, it might
be beautiful, but if you’d look at the same image in 10 years to come, the clothes or
the way to shoot might be outdated, but the story, that what is told by the person in
the picture is still valid. I want to captivate the viewer now but also with the same
image down the line. If I can captivate a viewer that I am content with my work.”




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Algo se passou com ele. Sempre fora tão recatado em extravasar as emoções mais vivo e lhe aumentassem o prazer pelas pequenas coisas, aquelas que um coração
frágeis, mas algures entre o auge e o fim do filme, duas largas lágrimas soltaram- imaculado não sente nem dá valor.
se rosto abaixo. Levada pelo capítulo em que o velho descreveu o momento em que descobriu
O argumento contava o resto de vida dum homem gasto, que vincava a canivete o que afinal era o amor, Maria lembrou a primeira vez que tomou gosto ao cheiro
na sua própria carne, a memória de todos os seus que partiam deste mundo. Cada a vento que Pedro guardava no refugo do pescoço. Era inevitável, naquela noite os
alma perdida tinha um espaço no seu corpo flácido. O primeiro cunho foi feito no seus corpos centrifugar-se-iam, quer eles o permitissem ou não. Sem hesitar,
dia em que levado pelo ciúme inebriante mandou a sua própria mulher para longe. ela mordiscou-lhe ao ouvido as doces palavras que abrem portas e enclausuram
O desgosto e o arrependimento que o depredavam tornaram-no distante de todas curiosidades e pudores.
as dores, principalmente a física. Encruzilharam-se as mãos. As unhas cravavam a carne narcotizada pelo
Um pouco antes do fim da película, o acamado cedeu ao peso do tempo, e o desejo. Não havia trono nem coroa. Na cama, os reis e as rainhas vão nus pelas
narrador – um enfermeiro, ao qual o velho descrevia a história de cada cicatriz – escadas mais remotas até ao instinto mais elementar.
agarrou num bisturi e rasgou o seu próprio ombro, prolongando assim a presença Vestiram a pele do outro até perderem o tacto do seu próprio corpo.
do vetusto paciente. Mas a maior marca ficou ali escondida debaixo da bata branca Enrolaram-se sobre eles auréolas que os levaram ao lugar que é de cada um. Pedro
e da própria pele. Aquele homem tinha-o acordado do conformismo cru de que adormeceu pouco depois de sussurrar: - Quero acordar no entrelaçado dos teus
todos nós temos de sucumbir e morrer. Cada mão moribunda afagada nas últimas caracóis negros!
horas deixou a sua própria marca nesse seu Presente, que brevemente se tornaria No dia seguinte a cidade despertou coberta de neve. Um níveo milagre que
Passado. trouxe quase todos para a rua. Num quarto de janelas embaciadas, não havia neve
- Então, gostaste do filme? – Perguntou Pedro, de ar fresco para dispersar a ou frio que os separasse. Embebidos um no outro, perdiam-se e reencontravam-
impressão de que algo lhe tinha raspado no fundo do peito. Maria, depois de tantas se trocando, por debaixo dos lençóis, mimos de algodão doce. Pedro beijava-lhe
noites em que se perdeu nos seus olhos, soube-os ler, e respondeu que sim. – Era a face risonha de vergonha amorosa. Maria, apoiada no seu peito, perdia-se em
uma história linda! pensamentos longínquos e suspiros de satisfação serena.
As palavras ficaram por ali, na viagem de volta a casa, só se ouviam os passos Os ponteiros do relógio circundaram-se até cair um anoitecer inesperado.
e as beatas que tombavam no chão. Pedro espelhou-se no velho cheio de marcas Aquele encantamento, ultrapassou o regozijo dos mais novos, que nunca tinham
na pele, tal cela dum condenado a perpétua e contou uma a uma, as cicatrizes que visto neve, e dos mais velhos que já não a viam há mais de quarenta anos. Maria
possuiria se gravasse os desaparecidos no corpo. As suas feridas, ainda frescas, narrou-me esta história e fez-me acreditar, quase cegamente, que foram eles a
doíam mais que qualquer corte de navalha, faca de mato ou cutelo. Talvez fosse origem do insólito milagre branco. O manto que vestia a cidade era feito do mesmo
esse o único meio com que o velho podia contar para ocultar a dor. Uma outra dor, pedaço de céu que os cobria na cama.
mais imediata e distante do peito. Ou talvez, as marcas o fizessem sentir mais

DIOGO PONTES PEDROSA

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J. vive só, talvez demasiado. Um dia recebe M. provavelmente sem abrigo.
Entre eles B. um cão, sem dúvida o mais lúcido.
Depois de uma refeição juntos, alcançam esse lugar do quase sonho esperando
alcançar a Verdade,
ou apenas se possível um “remédio cruel”
para a “tragédia estranha” do que foram as suas vidas.

Uma exposição que pode ser lida como uma curta narrativa ou constituida de
peças independentes.
A cada um de resolver o seu próprio percurso.

PEDRO KOGEN DINIS


www.pedrokogendinis.blogspot.com
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Pré-Conceito . Parte I
TODOS SOMOS MONÁRQUICOS
Texto de JOÃO FLORES
Fotos de FRANÇOIS COQUEREL

5 pequenas histórias sobre 5 pequenas grandes pessoas.


Pequenas, porque são pequenas. Grandes, porque são pessoas.

Pessoas que sentem. Que vivem. Que inspiram. Que são.


Que são reis e rainhas dos seus reinos.
Todos somos reis e rainhas do nosso próprio reino.
“No teu reino, reinas tu, não reina mais ninguém...” (à partida...!! - digo eu -).
Sim, porque infelizmente, ou felizmente, há reis e rainhas que nem no seu próprio
reino, reinam. Uns porque não querem ou não podem.
Muitos, porque não sabem.
Reis e Rainhas escravizados porque nem sabem que são reis e rainhas.

Reis e Rainhas com as suas histórias. Com as suas lendas e mitos.


Nobres de sangue azul avermelhado.
Com as suas tão actuais manias e excentricidades “pop star” .
Com experiências e vivências. Com as suas nulidades e banalidades.
Ditadores e tiranos dos egocêntricos “eu isto...” e “eu aquilo...”.
Aventureiros das desventuras. Dos sorrisos.
Do sorriso que sorri e do sorriso que se limita a rir.
Reis e Rainhas da dor. Da dor que dói. Daquela que fingimos que dói.
Da que não dói nada e da dor que ainda bem que dói.

Reis e rainhas dos seus próprios pequenos grandes reinos.

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RAINHA DO REINO DO SOFRIMENTO

Dona Gertrudes Última. “a Sofredora”.


Chorona e monárquica. Tão triste o fado desta rainha. Tão pesado este fardo.
“Meu Deus, como gemem as notas desta guitarra...!!”
“Cega, surda e muda”. Presa dentro de um corpo sem reino.
Sem rumo nem rei. Reina na dor e na ausência. Vive na solidão.
Depressiva (toma Xanax não porque é fashion, mas porque precisa).
Uma Florbela. De poeta não tem nada, mas de sofrimento tem tudo.
Grita. Perdida. Dispersa. Sem esperança. Sem destino. Sem sentido.
Bebe água todos os dias para compensar a baba, o ranho e os litros e litros de
lágrimas que lhe escorrem pela face abaixo.
Desistente (como tantos outros que nunca acabam aquilo que começam...).
Não acredita. Só crê no “não”. Nunca no “sim”.
Ninguém lhe pega. Ninguém lhe sorri. Ninguém lhe chega.

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REI DO REINO DA LOUCURA

Dom Isidoro Terceiro. “ o Louco”.


Anárquico e monárquico. Nem esquerda nem direita, ambidextro.
Reina “sem rei nem roque”. Viajante vivido.
Rei das viagens internas.
Dá voltas ao mundo e já viu o fim do mundo (tudo em cuecas).
Dorme nu. Mesmo quando está acordado, dorme de dia (nu), vive de noite.
Tudo é lua, tudo é noite. Aluado. Vê bolinhas e psicadélicas. Fuma. Tudo.
Bebe vodka com red bull e frita em pastilhas que não são elásticas.
Joga dominó com o avô e faz crochet com a avó.
Usa óculos para o estilo (estilo...?!? Qual estilo?).
Fecha a tampa da sanita porque não quer ser só mais um.
Mastiga de boca aberta. Não é de modas nem tem modos.
Não pede desculpa a ninguém porque se desculpa tudo a um louco.
Genial para uns, louco para tantos. Feliz por ser louco.

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RAINHA DO REINO DA UTOPIA

Dona Belmira Primeira. “a Utópica”.


Lírica e monárquica. Tola. Inocente. Luminosa. Iluminada.
Reina a rir e a sorrir. Vive num mundo do tamanho do mundo.
Rainha da genuidade e da ingenuidade (Ó quanta ingenuidade!!).
Vintage tous les jour. Gosta do papel de parede da avozinha. Flores.
Do vinil e das cassetes. Do packman e do cubo mágico. Do arco íris.
Não tem mentira nas palavras. Só às vezes (bem, nem às vezes).
Apaixona-se hora sim hora não. Desilude-se hora sim hora não.
Transparente. “Believer”. Acredita em fadas, fantasmas, “pais natais”, políticos,
publicitários, duendes, nos signos do correio da manhã, no Papa dos “Pradas”
vermelhos e por mais incrível que pareça, até no gajo de armadura e espada em
punho sentado no cavalo branco ela acredita.
Tolinha tolinha tolinha. “Prazeirosamente” tolinha.

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REI DO REINO DO DESGRAÇADINHO

Dom Germano Zero. “o Desgraçado”.


Coitado e monárquico. Um banal. Um igual a tantos. Um coitadinho.
Não reina porque nunca soube reinar. Nem em casa reina.
Casado com uma doméstica. Um Infeliz. Vai às “meninas”.
Pai de filhos (coitadinhas das crianças que não têm culpa nenhuma...).
Não faz nenhum. “Não aquece nem arrefece”. Um “mais ou menos”.
Um café com leite. Galão. Não é preto nem é branco. É cinzento.
Tem voz e não fala. Só se queixa. É Queixinhas.
Não faz. Vai fazendo. Deixa sempre para amanhã o que pode fazer hoje.
Tem medo. Filho dos filhos do Salazarismo. Vive limitado e enevoado.
Gosta de ver a bola, mas não sabe jogar à bola (típico gajo que vira árbitro).
Tem roupa de Domingo. Vê a TVI. Tem barriga É do Benfica. Nem taxista é.
Não é nada. Não luta por nada. Não ambiciona nada. “Não vive. Existe...”.

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RAINHA DO REINO DA DUREZA

Dona Júlia Sétima. “a Dura”


Rija e monárquica. Forte. Divorciada. Durona. “Self made Woman”.
Sacrifica-se. Rainha do sacrifício. Reina um reino independente.
Rainha de si própria. Individualista. Individualista não é egoísta.
Complexada mas não é feia. (feia?? Quem é que disse que ela era feia??)
“Não é feia porque não há mulheres feias. Há, é umas que são mais bonitas que
outras”. Olheiras e olhos grandes. Trabalha no duro.
Tem apoio psicológico, dois empregos e um part-time.
Vai ao ginásio todos os dias e tem a mania das dietas. Bebe Isostar.
Não come batatas fritas. Come sopa de tomate durante semanas a fio.
Toma três vezes ao dia doses de proteínas, vitaminas e aminoácidos.
Não é uma “Vanessa” mas é uma campeã.
Dura ao estilo do coelhinho que dura. Irra que a mulher é dura!!

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CHIADO
Museu Nacional de Arte Contemporânea

Arte Portuguesa de 1850 até à actualidade


Colecção do CHIADO Museu Nacional de Arte Contemporânea
O que os une?
Nada, para além de todas pertencerem a esta história e
todos serem monárquicos.
Assim como eu. Assim como tu.

18.01.08 – 02.03.08
Pisos 2 e 2A

CHIADO Segunda: encerrado Visitas Guiadas:


Museu Nacional Terça-feira a domingo: 10h – 18h Pedro Lapa – 22 Janeiro
de Arte Contemporânea Entrada: 4 euros Maria de Aires Silveira – 12 Fevereiro
Rua Serpa Pinto, 4 (Descontos e condições especiais Emília Tavares – 26 Fevereiro
1200-444 Lisboa / Portugal de acesso sob consulta) 3.ª feira às 18h30 55
www.museudochiado-ipmuseus.com Grátis: Domingos e feriados, Acesso gratuito / marcação prévia:
mchiado@ipmuseus.pt até às 14.00 h 213432148, mchiado@ipmuseus.pt
Pré-Conceito . Parte II
TU
Texto de JOANA LOPES CORREIA
Foto de CHARLIE HOMO

A noite passada vieste visitar-me. Como de costume, aprumado, galante, com


aquele olhar acanhado, tão teu, que me faz sorrir por dentro, com vontade de ficar
à deriva nos teus abraços. É sempre assim que chegas. É sempre assim que te
recordo.
Não vinhas há muito. As horas vão passando, feitas de dias e semanas, preenchidas
pelo vazio da minha alma, pela ausência da minha existência. E eu continuo à
espera de nada, esquecida de mim própria, abandonada às sombras de mim
mesma. A cadeira baloiça ao segundo, marcando o passo do meu coração. O chá
amargo acalenta a esperança que se esfuma lentamente. Então, perco-me nos
anos, vagueio nos pensamentos tidos a dois, revivo as recordações e desconfio
de tudo. Sobretudo da memória, assaltada por vultos indefinidos que tomam o
teu lugar. Temo que me atraiçoe porque pensar–te é já só recordar o teu sorriso.
Tímido. Disso, lembro-me bem, sempre, porque as palavras se enchem de sentido
no silêncio dos teus lábios. Mas hoje não.
Hoje, no rosto gasto, de feições vincadas e sulcado a traços profundos, trazes todos
os momentos servidos com uma dose de ternura. A nossa receita inacabada, onde
o amor fervia em lume brando, apurando alegrias e ilusões, com o tempero da
vontade e persistência. E o teu toque especial, dava-lhe sabor a calmaria.
Hoje os teus lábios estavam cerrados. O sorriso, esse, bailava-te nos olhos,
numa dança intensa, brilhante, carinhosa, como da primeira vez que dançámos.
Lembras-te como dançávamos e rodopiávamos, inebriados pela música que enchia
o salão, que era nosso? Só meu e teu. Às vezes, ando pela casa em bicos de pés,
balançando-me apoiada em ti, seguindo os teus passos, leves, soltos, numa valsa
lenta e sentida. Sinto a firmeza com que me enlaças, na altivez do traje e da pose.
Vens para mim, sereno e confiante. Os teus olhos escuros ainda têm o brilho da
vida que vai morrendo nos meus. O mundo é um dia de neblina do lado de lá da
janela baça. Mas vejo-te a aproximar. Ouço o sussurro de um beijo, toco as mãos
trémulas que me afagam os cabelos e inspiro o aroma adocicado que fica no ar. É
sempre assim que me deixas. É sempre neste sonho que respiro, que desperto.
Vens visitar-me?

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DOR DA MORTE
Texto de ANDREA RIBEIRO
Foto de CHARLIE HOMO

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Vou morrer. Não sei quando nem como, mas vou. Essa certeza atropelou-me hoje
sem aviso num momento de lucidez violenta. Começou com um pensamento
banal, daqueles a que nem podemos chamar pensamento, que aparecem sem
raciocínio e normalmente não despoletam nenhuma conclusão. Observava o
escoar do trânsito rua abaixo, as pessoas obstinadas em chegar a algum lado, o
céu lá longe, afastado pelos prédios e pela indiferença de uma cidade que nunca
o olha de frente. Tudo estava certo e aborrecido, como sempre, e eu fazia parte do
quadro, como sempre faço, quando venho cá fora fumar. E bam, percebi. Não vou
estar cá quando aquele bebé que ali vai empoleirado num ombro tiver netos. Faça
o que fizer da minha vida. Não vou estar cá. É inútil. O Homem morre. O corpo
falha, como um velho espremedor de laranjas. Começa com pequenas coisas, já
não gira tão rápido como antes, já leva mais tempo a espremer o mesmo número
de laranjas, já não tira tanto sumo, já não roda sem ajuda, já não funciona, já
não tem lugar no mundo. Outro virá substitui-lo, outro mais evoluído. Paro um
momento. O meu cérebro recusa-se a continuar a seguir este raciocínio. Não está
preparado, não é suposto ir tão longe, não é suposto embrenhar-se tanto neste
beco escuro. Este é o tipo de pensamento que não estamos programados para
ter. Quando passamos por ele, pensamo-lo de leve, num logo se vê, até lá alguma
solução vai aparecer, eu sou diferente, eu sou eu. Todos temos essa estranha
capacidade de bloquear a morte, ocupando a mente com todo o tipo de parvoíces,
compromissos, conclusões brilhantes. O nosso cérebro é capaz de conjecturar as
invenções mais mirabolantes, todas com o mesma finalidade: adiar a morte, mas
quando chega a altura de pensar nela, há sempre outra coisa mais importante a
acontecer. Mas hoje não consegui fugir, sem querer escorreguei para o fundo do
meu ser. Sinto uma corrente de ar dentro de mim. É gélida, é injusta e assusta,
aterroriza, monopoliza todos os meus sentidos. O chão cai debaixo dos meus pés,
os meus ouvidos enchem-se de cimento. Os olhos, vidraram algures. Sinto um
vácuo doloroso, aperta-me, sufoca-me. Chega, não aguento. O meu corpo obriga-
me a sair deste negrume. Felizmente, esta brecha nos confins da mente só se abre
por uns escassos momentos, senão seria ironicamente fatal. E um segundo antes
da lucidez abandonar-me por completo, percebo o quão patéticos somos. Sim, vou
morrer, mas logo se vê.

BACALHOEIRO
GRÁTIS PARA OS SÓCIOS
61

www.bacalhoeiro.blog.com
D
O suor que me escorre pelo rosto desce a uma velocidade disforme conforme
contorna as curvas e rugas do meu rosto esforçado. Sinto o seu trajecto pela vaga
sensação de humidade, mas muito mais pela comichão que provoca ao acariciar

UM
a pele seca e os pequenos pelos louros junto aos seios perinasais, às bochechas e
à barba rala e escura – aí a gota desce com mais vagar, mas sempre imponente;
sempre a comichão! Sinto tudo isto com o prazer antecipado por aquela pequena
brisa que me vai refrescar e me fará esquecer o cansaço daqui a pouco.

SONHO
Já faz 12h desde que começamos a caminhar e o cume da montanha já está
próximo. O meu pessoal está motivado pelo vislumbre da meta. Não que alguém
fale. Já desistimos de falar há muitas horas para poupar a garganta e conservar a

QUE
respiração controlada.

Mais uma meia-hora de caminhada.

TIVE
“Finalmente cheguei!” – o sabor da conquista arrebata-me: “Vou àquela encosta
olhar o mundo aos meus pés.” E é com orgulho que observo o delinear da montanha
desde os meus pés até à zona que me parece ser onde eu era ontem.

Como o rio desgovernado, pela quebra bruta das paredes de uma barragem,
resvala pela montanha inundando vales e afogando grandes pedras, uma visão
encheu-me a vista que o meu cérebro decifra, tomando o lugar do mundo à frente
dos meus olhos.

Vi uma nuvem de poeira rasteira crescer de mais próxima que estava. Foi uma
visão através dos olhos da águia que voa do alto ao encontro da sua presa no chão:
vi uma carrinha vermelha. Depois vi o rosto crispado de uma mulher mirrada e
quase velha no lugar do pendura. Até vi os seus olhos olharem os meus olhos.
E por fim a escuridão apoderou-se da minha visão.

“Que estranho!” – pensei quando acordei. O meu quarto de hotel estava silencioso
e a única luz que entrava era a que escorria por baixo das cortinas vinda dos
candeeiros amarelos das docas de Faro. “Aquela mulher… este sonho… aquela
sensação bruta que me violentou e acordou… que horas são? Hum. Ainda tenho
tempo para dormir e sonhar mais. Vou voltar a ver aquela montanha, perceber o
que aquela mulher me quer… vou… hum…”

E volto a adormecer…

HUGO MORTÁGUA

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NO MAN’S LAND
I started to interest about photography, because of my dad, how been photographing
for years, from the passion to document the evolution of his close environment and
family. I was joined him to abandoned places and temporary locations, before it’ll
disappear from our existence.

I was born and raised in a nation, a part to a family that mostly extinct at the
holocaust. There is no documents from the days before world war II; I don’t know
how were those people, how did they look like; a family that left “there”; anonymous
identities that vanished from this world, without a real grave, with monument; In my
wondering, I’m trying to create certainty in my family’s missing parts and provide
those anonymous people, identity and interment.

I find myself, going back, again and again, to these lifeless locations, where
time doesn’t existent; no man’s land; searching for traces of memory; traces of
information about people and forgotten days, that should lead me into identity that
I adopt- a real and fabricated identity

YANIV WAISSA 2002-2008

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PAUSA PARA O CIGARRO...
Saí para a rua com os nervos a despontar nos poros da minha pele arrepiada os instintos que apenas contribuíam para a minha fraqueza, os impulsos que só
da diferença de temperatura que me bafejou assim que abri a porta. Mordia os me faziam tombar sobre mim próprio, encolher sobre mim próprio, desaparecer
lábios, ansioso, na esperança que as lágrimas se mantivessem no seu respectivo dentro de mim próprio. Irritava-me a mim próprio por ter de buscar nas pessoas
local e se limitassem apenas a ser esboços de ar que vertiam do canto dos meus em meu redor a força para me ultrapassar, e para me vencer no desespero e
olhos. Tudo…e nada ao mesmo tempo…era daqueles momentos em que o que nos desesperança. Mais uma passa…mal por mal sentia que o que me atormentava
turva o pensamento é uma neblina que nos cobre por completo sem deixar que cá dentro saía envolto no fumo do cigarro, passava dos meus lábios para o filtro, e
a distingamos…sem deixar que nela se desenhe uma concreta e distinta linha de mais à frente ardia com o tabaco e o papel, para se tornar cinza e voar ao vento.
pensamento que nos conduza à sua verdadeira causa. A minha solidão atraiu mais gente para a minha volta…um por um faiscando os
Estava em ponto de ebulição…pois que as lágrimas fervilhavam, prontas a isqueiros e a acenderem os cigarros, na busca de um reduto, de um escape para
borbulharem rosto abaixo…uma simples palavra, um simples olhar mais vívido e as suas ânsias, para os seus desesperos…ou simplesmente a satisfazer o vício que
intenso despoletaria o curso de água salgada. Andava assim…sensível…ao toque, não se incomodavam, ou sequer esforçavam, em contrariar e extinguir. Sorri-lhes
ao olhar, às palavras…a tudo quanto me atingisse por mais leve que fosse, fosse um sorriso cúmplice e lançámos palavras de uma conversa banal, de ocasião,
um beijo ao de leve na pele ou sequer a carícia de uma pluma perdida na sua para o ar, para que se soltassem pontas suficientes que pudessem ser atadas.
viagem, de encontro a mim por mero acaso. Obriguei-me a esquecer o que me fazia sugar o cigarro com tanto fôlego, tanta
Levei a mão ao bolso e tirei o cigarro e o isqueiro. Faisquei umas vezes até que a força…o que me fazia tremer os lábios de encontro ao filtro…era algo que não
chama se tornasse constante…levei o cigarro à boca, e a chama à boca do cigarro. queria partilhar, além de que me sentia mais leve…quase como que tudo quanto
Ouvi, ao de leve, o crepitar do cigarro a acender, do papel a arder, enquanto suguei me atormentava tivesse sido queimado com o tabaco, com o papel, e se tivesse
com vigor…enquanto sorvia o fumo, sentia o acumular da tensão na boca, na esvaído nas espessas nuvens de fumo que expelia pelas narinas e pela brecha dos
garganta, no nariz…sentia que no fumo leitoso se concentrava tudo o que eu queria lábios trémulos, e na cinza que deitava ao ar antes que ela própria caísse.
expelir …Expirei…larguei o fumo todo de uma vez, pela boca, pelas narinas e um E consegui…esqueci-me de tudo e encetei a conversa sem real interesse, para
peso saiu a flutuar de dentro de mim…O peso no peito diminuiu, mesmo sentindo depressa me ver envolto nas entranhas simples de um assunto sem grande valor,
o arranhão na garganta da nicotina a invadir-me até aos pulmões… (ou mesmo do sem grande importância…envolto com pessoas que me bafejavam o fumo dos seus
meu sentimento de culpa por estar a fazer algo que jurei não mais fazer). Suguei cigarros (quem sabe exalando também os seus pesares e preocupações) mas que
mais um pouco…já havia esquecido a imagem recorrente dos meus pulmões a me acalmavam. Sorri…para momentos depois rir um gargalhar sincero, arrancado
enegrecerem, a imagem ridícula de mim a desvanecer-me em fumo por demais do fundo de onde anteriormente o pesar se instalara…Pensei para mim que tudo
fumar… Mas naquele momento o que queria esquecer era demasiado importante… estava ultrapassado… pelo menos naquele momento, naquele local, com aquelas
mais importante do que qualquer peso na consciência. Sentia-me perdido…soprei pessoas. Se tudo voltasse haveria sempre outro cigarro, outras oportunidades
o fumo que havia inspirado… exalava suspiros profundos acompanhados de um para esvair em fumo o desgosto… mais tarde pensaria em desistir do vício
rasto branco…suguei novamente…e novamente expirei o trilho branco do meu porque naquele momento a importância de o manter superava qualquer peso na
desgosto e da minha ânsia. consciência, qualquer sentimento de culpa, pois que outros que tais havia que
Sentia as lágrimas secarem com o ardor nos olhos que se acumulava, pelas réstias apenas esse vício faria desaparecer (mais que não fosse numa simples ilusão).
esfarrapadas de fumo que captavam. Ainda assim escorreram duas grossas gotas
rosto abaixo, uma em cada lado da face. Caso me sentisse emocionalmente PEDRO PALRÃO
disponível faria pouco de mim próprio ao reparar no tremor dos meus lábios ao
sugar o filtro do cigarro, mas naquele momento estava demasiado imerso nas
razões que me haviam feito quebrar a promessa de mim para mim mesmo.
Sacudi a cinza que pendia torta da ponta do cigarro, dizendo-me pela sua inclinação
que se eu a não jogasse ao vento ela própria cairia como uma árvore acabada de
cortar, como um castelo de cartas com uma simples aragem…como eu próprio
ao mínimo contratempo. Suguei mais uma vez, para mais uma vez suspirar a
névoa de fumo, agora menos concentrada e densa por o ter feito com mais fôlego
e sem tanto empenho. Irritava-me a mim próprio por não ser capaz de contrariar
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MY AMSTER
DAM
My Amsterdam is a cosy cosmopolitan village, as improbable as a laboratorial
experience: a melting pot in a tiny-town, a new Babylon that fits a map twice the
size of my palm.
 
It’s an avant-garde capital, enlightened and progressive but so petite that w hen
the wind blows you can feel the smell of manure and when you get lost with your
bicycle on the way to the Amstel Station you can bump into chickens and fresh
vegetable gardens. 
 
My Amsterdam is a city where more than 50% of the children have a non-western
background and where 174 different nationalities struggle to learn Dutch, (a
language that comes 48 in the rank of spoken languages in the world, after Telugu,
Sunda or Hausa). It is a city to learn and experience new cultures, offering me as
many possibilities and choices as a wild menu: an Armenian friend, a Surinamese
dinner in the China Town, a Jewish house mate, an Egyptian teacher, a Turkish
neighborhood.
 
My Amsterdam is a kaleidoscopic city, where its citizens, like colored mirrors, show
us continuously changing patterns but where all this miscellany is nothing but...
gezellig! 75
VIII
PEDRO RIO

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Só as palavras rompem o silêncio, tudo o resto se calou. Se eu me calasse, não
deixaria de ouvir fosse o que fosse. Mas, se eu me calasse, voltariam os outros
ruídos, os ruídos que as palavras não me deixam ouvir, ou que deixaram realmente
de se ouvir. Mas eu calo-me, acontece, não, nunca, nem por um segundo. Também
choro, sem parar. É uma torrente ininterrupta, de palavras e de lágrimas. Tudo
sem reflectir. Mas falo mais baixo, de ano para ano um pouco mais baixo. Talvez.
Não dou conta. As pausas seriam portanto mais longas, entre as palavras, as
frases, as sílabas, as lágrimas, confundo as palavras com as lágrimas, as minhas
palavras são as minhas lágrimas, os meus olhos são a minha boca. E deveria
ouvir, a cada breve pausa, se há silêncio como eu digo, ao dizer que só as palavras
o rompem. Mas não, é sempre o mesmo murmúrio, fluido, sem hiatos, como uma
única palavra sem objectivo e portanto sem significado, porque é o objectivo que
dá significado às palavras. Sendo assim, com que direito, não, desta vez sei onde
quero chegar, e paro, dizendo, Nenhum, nenhum.

Samuel Beckett, “Textos para nada”, Assírio & Alvim.

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inspiration
CAROLINA DOS SANTOS REIS

In the heart of Montreal, there is a neighborhood called the Mile-End. It is my


home, but it also houses plenty of hopeful ideas and wonderful dreams. Wandering
through the streets, you can feel the air bursting with imagination. The walls,
the sidewalks and the numerous terrasses are active examples of this peaceful
agitation.

Some of those dreams come to be. Several years ago, nobody would have thought
of opening a fashion boutique in the area. Jennifer Glasgow was one of the first
to materialize her passion and open a shop with her partner Geneviève Heistek,
against the advice of many to go to more commercial areas of the city. But as a
showcase for marginal ideas, a marginal location was the best place for General
54. This was a good move for her con-sidering the low Mile-End rents at that time.
Since then, rents have risen and their busi-ness has bloomed.

Jennifer Glasgow graduated in fine arts as a performance and video artist. As a


starving artist, she started making hats out of used clothing and painting t-shirts
for some extra money. They quickly sold like hotcakes. What was initially a hobby
became her main oc-cupation when she stepped out of the contemporary arts
world and concentrated her skills on fashion. She had been very engaged as an
artist; human and female conditions were some of her concerns. Nevertheless, her
first dream was to pursue a career in fashion, creating things that could directly
touch the lives of people. For including ethical practices in her business activities,
Jennifer Glasgow is a little jewel in the mosaic of the modern world. She uses
small distributors for her supplies instead of big companies, and the store also
houses many local designers as well as a vintage section.

This story is not about the rise of a trendy shop, but rather an illustration of a shift
in val-ues. It is the best example that trends cannot be predicted, but are created
by individuals pursuing meaningful ways of doing their work. It is the time for a
culture that finds motiva-tions other than monetary profit for its activities. 87
DIANA
CORRADO DALCÒ
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