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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

LILIAN WERNECK RODRIGUES

O MÓBILE:
A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA EM
“THE L WORD”
ADAPTADA A UM ROTEIRO ORIGINAL

JUIZ DE FORA
2º SEMESTRE DE 2007
LILIAN WERNECK RODRIGUES

O MÓBILE:
A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA EM
“THE L WORD”
ADAPTADA A UM ROTEIRO ORIGINAL

Trabalho de conclusão de curso de graduação.


Apresentado como requisito para obtenção de
grau de Bacharel em Comunicação Social.
Pela Faculdade de Comunicação Social da
Universidade Federal de Juiz de Fora.

Orientador Acadêmico: Professor MS Cristiano


José Rodrigues.

JUIZ DE FORA
2º SEMESTRE DE 2007
LILIAN WERNECK RODRIGUES

O MÓBILE:
A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA EM “THE L WORD”
ADAPTADA A UM ROTEIRO ORIGINAL

Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado como requisito para obtenção de


grau de Bacharel em Comunicação Social na Faculdade de Comunicação Social da UFJF.

Orientador Acadêmico: Professor MS. Cristiano José Rodrigues.


Banca Examinadora:

Trabalho de conclusão de curso aprovado em 14 / 11 / 2007


pela banca composta pelos seguintes membros:

____________________________________________________
Professor Mestre Cristiano José Rodrigues – UFJF - Orientador

____________________________________________________
Professora Doutora Cláudia Regina Lahni – UFJF – Convidada

____________________________________________________
Professor Doutor Nilson Alvarenga – UFJF – Convidado

Conceito obtido _____Nota Máxima 100,0 pontos_________

JUIZ DE FORA
2º SEMESTRE DE 2007
DEDICATÓRIA

À mulher que me inspira, ilumina meu caminho,


me ajuda a retirar as pedras, me incentiva a con-
quistar meus desejos e a sonhar cada dia mais:

Leda Maria, minha mãe abençoada.


AGRADECIMENTOS

Após tantos e tantos anos de luta para conseguir


essa graduação, a lista de agradecimentos não ha-
via de ser pequena. Infelizmente, não pude aqui
escrever todos os “obrigada!” que gostaria de
deixar registrado.

Em primeiro lugar, agradeço a Deus e aos anjos


que me ajudam em todos os momentos.

Agradeço também, com o mais puro carinho, a


meu pai, Sérgio, e à minha mãe Leda, exemplos
incontestáveis de vida, força, determinação e fé.
Amo vocês!
Obrigada pela paciência e apoio, sempre.
Agradeço às minhas irmãs, Juliane e Renata, e ao
meu irmão, Serginho, além de Daniela, minha
cunhada, e meus sobrinhos: Rafael, Júlia, Luisa e
Luana.
À minha tia Oneida, pelo apoio que me deu
quando mais precisei;
Não posso me esquecer do meu companheiro
mais fiel, que é um pedacinho de mim: Billy!
Às minhas amigas e amigos, agradeço a todos!
Mas uns são partes essenciais da minha vida: ao
lorde Giovane, ao anjo Márcio, à fiel Myriam, à
debochada Tais e à louca Nicole;
Agradeço às minhas sócias, Tais e Juliana, por
acreditarem na QuebraGalho;
À Rosa Berg, por ter sido a primeira a acreditar
em “O Móbile” e por todo o apoio desde então;
Às integrantes da lista e da comunidade de “The L
Word”, em especial à Rafaela Britto, amiga de
longe a quem digo muito obrigada pela atenção e
pelos bons momentos de conversa on line!
À Professora Cláudia Lahni, meu sincero agrade-
cimento, por ter sido a primeira a abrir meus o-
lhos para a importância de ser mulher.

Ao meu orientador, Professor Cristiano, agradeço


pela paciência e pelo carinho de tantos anos.
EPÍGRAFE

Não falo do amor romântico, aquelas paixões me-


ladas de tristeza e sofrimento. Relações de de-
pendência e submissão, paixões tristes. Algumas
pessoas confundem isso com amor. Chamam de
amor esse querer escravo, e pensam que o amor é
alguma coisa que pode ser definida, explicada,
entendida, julgada. Pensam que o amor já estava
pronto, formatado, inteiro, antes de ser experi-
mentado. Mas é exatamente o oposto, para mim,
que o amor manifesta. A virtude do amor é sua
capacidade potencial de ser construído, inventado
e modificado. O amor está em movimento eterno,
em velocidade infinita.
O amor é um móbile.
Como fotografá-lo? Como percebê-lo? Como se
deixar sê-lo? E como impedir que a imagem se-
dentária e cansada do amor nos domine? Minha
resposta? O amor é o desconhecido. [...]
O amor, eu não conheço. E é exatamente por isso
que o desejo e me jogo do seu abismo, me aven-
turando ao seu encontro. A vida só existe quando
o amor a navega. Morrer de amor é a substância
de que a Vida é feita. Ou melhor, só se Vive no
amor. E a língua do amor é a língua que eu falo e
escuto.
(MOSKA, Paulinho - “Do Amor”)
RESUMO

O seguinte trabalho pretende analisar primeira-


mente a história da homossexualidade feminina
no mundo, através de dados e acontecimentos
importantes, e provocar reflexões sobre o papel e
as identidades da mulher lésbica e do homem gay
no contexto social, familiar e midiático. Tem co-
mo objetivo, também, relatar momentos funda-
mentais dos movimentos lesbianos e de suas a-
ções pelo respeito, fim do preconceito e pela visi-
bilidade lésbica. Além disso, em paralelo, preten-
de apresentar um breve histórico de fatos, assim
como a importância representativa, das séries de
TV norte-americanas, passando pela definição do
gênero, desde os anos 50 até os dias atuais, nas
quais as personagens homossexuais encontram
espaço e acabam ganhando destaque. As duas a-
bordagens paralelas encontram congruência na
apresentação e análise da série americana “The L
Word”, atualmente exibida em vários países. A
partir de diversas identidades e situações que en-
volvem o universo lésbico, o seriado dá visibili-
dade de forma verossímil à mulher homossexual
contemporânea. Como objeto da reflexão, surge
um roteiro cinematográfico inédito, de título “O
Móbile”, com a proposta de cinco curtas-
metragens que trazem diferentes histórias de a-
mor entre mulheres. Além de produto inspirado
na série americana, o roteiro tem como objetivo
maior se tornar também uma ferramenta na luta
contra o pré-conceito da vida das mulheres que
amam mulheres. Mulher. Homossexualidade. Sé-
rie de TV.
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.............................................................................................................10

2. (HOMO) SEXUALIDADES HUMANAS: UMA QUESTÃO DE DESEJOS.........14

2.1. A importância do sexo.......................................................................................16

2.2. Identificações e identidades diversas................................................................22

2.3. O início do movimento LGBT..........................................................................31

2.4. O orgulho das mulheres que amam mulheres...................................................39

3. AS SÉRIES DE TV NORTE-AMERICANAS...........................................................50

3.1. A dramaturgia seriada: definições.....................................................................52

3.2. Os primeiros anos e o conservadorismo americano..........................................56

3.3. A explosão da TV por assinatura.....................................................................62

3.4. A homossexualidade nas séries americanas......................................................72

4. A PRIMEIRA SÉRIE LÉSBICA DA TV...................................................................82

4.1. A Palavra L: lésbicas com glamour e verossimilhança.....................................83

4.1.1. Primeira Temporada – a rede das meninas...........................................98

4.1.2. Segunda Temporada – a amizade e o amor.........................................104

4.1.3. Terceira Temporada – tristes dilemas, histórias reais........................107

4.1.4. Quarta Temporada – vidas paralelas...................................................109


5. “O MÓBILE”: A INSPIRAÇÃO ENCORAJA O NOVO.......................................113

5.1. As cinco peças de “O Móbile” – o roteiro......................................................114

5.1.1. Admiração...............................................................................................119

5.1.1.1. Roteiro “Admiração”.......................................................................122

5.1.2. Diálogo.....................................................................................................130

5.1.2.1. Roteiro “Diálogo”.............................................................................132

5.1.3. Confiança ...............................................................................................142

5.1.3.1. Roteiro “Confiança”........................................................................144

5.1.4. Apoio........................................................................................................150

5.1.4.1. Roteiro “Apoio”................................................................................152

5.1.5. Perdão......................................................................................................156

5.1.5.1. Roteiro “Perdão”..............................................................................159

6. CONCLUSÃO.............................................................................................................168

7. ANEXOS......................................................................................................................171

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................176
MIA KIRSHNER: What does The L Word mean?

ROSE TROCHE: What?! Someone said "Lunch"?!

ERIC MABIUS: It's much more than that wink-wink, nudge-nudge.

LEISHA HAILEY: I think that it represents everything you want it


to. That's what's great about it.

MIA KIRSHNER: Loss.

LEISHA HAILEY: Legs... I'm kidding.

ROSE TROCHE: The L Word means the word that's not spoken.
And I love its little badness, I love its euphemistic, like...bad quali-
ty.

PAM GRIER: The L Word is a show about living the life you love,
loving the life you live.
(THE L WORD DEFINED, 2004)

MIA KIRSHNER: O que quer dizer a palavra L?

ROSE TROCHE: Quê?! Alguém disse “Lanche”?!

ERIC MABIUS: É muito mais que esfrega-esfrega, nhéco-nhéco.

LEISHA HAILEY: Eu penso que ela representa tudo aquilo que


você quer. Isso que é o legal disso tudo.

ERIN: Amor (Love)

MIA KIRSHNER: Perda (Loss)

LEISHA HAILEY: Pernas (Legs)... Estou brincando.

ROSE TROCHE: A palavra L é aquela palavra que não deve ser


dita. E eu amo essa maldadezinha em torno dela, eu amo seus eu-
femismos, tipo... uma qualidade má..

PAM GRIER: The L Word é uma série sobre viver a vida que vo-
cê ama, amar a vida que você vive.
(THE L WORD DEFINED, 2004)
10

1. INTRODUÇÃO

Uma mulher toca a campainha da casa. A porta se abre e ela entra. Cumprimenta,

animada, várias amigas que estão sentadas na sala, bebendo refrigerantes e cerveja, conver-

sando agitadamente. Parece que repassam os acontecimentos do episódio anterior. Ela se sen-

ta no meio delas. Enquanto isso, do outro lado da cidade, uma jovem garota, insegura com seu

jeito de vestir, com seu jeito de andar, seu jeito de pensar, seu jeito de gostar de outras garo-

tas, assustada, fecha a porta do quarto. Coloca o som da TV bem baixinho, e fica esperando, o

tempo todo com o controle na mão, já que seu pai ou sua irmã podem entrar a qualquer mo-

mento. Em outro estado, uma mulher em seus trinta e poucos põe seu filho pequeno na cama,

sonolento. Apaga a luz do quarto. Passa pela cozinha e pega a vasilha de pipocas. Entra em

seu quarto. Sua companheira está lá, deitada entre as cobertas, afundada no travesseiro, vendo

TV. Ela entrega-lhe a vasilha e deita, se ajeitando em seus braços. Ela recebe um beijo e sorri.

Em outro país, um casal termina de assistir ao Fantástico, mesmas histórias de sempre. O ma-

rido, meio sonolento, entrega o controle para a mulher que, até então, lia o jornal. Ela resolve

zapear entre os canais e percebe que um certo programa está para começar. Ela olha para o

marido, ele está cochilando. Resolve deixar naquele canal para ver o que, afinal de contas, era

aquela palavra com L.

O leão ruge, marca registrada de um estúdio de cinema. Começa a música tema.

Meninas em vestidos apertados, que se travestem com bigodes. Garotas dirigindo


rápido, ingênuas com longos chicotes. As mulheres que sentem saudades, amam,
desejam. Mulheres que se entregam. Esta é a maneira que nós vivemos. Falando,
rindo, amando, respirando, lutando, fodendo, chorando, bebendo, montando,
ganhando, perdendo, trapaceando, beijando, pensando, sonhando. É a maneira que
nós vivemos e amamos. (BETTY, 2005, disponível em
<http://letras.terra.com.br/betty/558445/>, acesso em 25 nov. 2007)
11

Desde 2004, essas e outras têm sido as rotinas de muitas garotas, mulheres e jo-

vens senhoras em vários países diferentes. Quando começa, a série norte-americana “The L

Word”, mostra de cara um universo antes explorado pouco e, muitas vezes, de forma equivo-

cada. Mulheres que amam mulheres.

“The L Word” é um marco importante tanto no percurso das homossexuais femi-

ninas através dos tempos, quanto da história do gênero seriado, produto cultural com signifi-

cativa produção na televisão norte-americana. Para se entender por que essa série se torna esse

marco, é preciso antes conhecer o caminho que percorreu.

Para isso, no segundo capítulo, realizo uma busca através dos diversos significa-

dos que a sexualidade humana vem adquirindo com o tempo. Desde o estabelecimento da

heterossexualidade como padrão de comportamento até a criação de movimentos organizados

pelo fim desse padrão e pelo reconhecimento das diversidades sexuais, apresento fatos histó-

ricos e breves reflexões sobre a homossexualidade do ser humano, principalmente as que se

refletem na vida das mulheres lésbicas.

Da mesma forma, e paralelamente, no terceiro capítulo, apresento a definição do

gênero série de TV e os principais acontecimentos, além dos principais e significativos produ-

tos culturais deste estilo já lançados no mercado dos Estados Unidos. Seus sucessos, suas in-

fluências, sua projeção e seu valor de mercado incontestável, garantiram que esse espaço na

televisão fosse ocupado por histórias ousadas, de boa qualidade técnica e temas inovadores.

Perfeito contexto para que as homossexuais pudessem ser inseridas e, com isso, conquistas-

sem um lugar para exercer um dos maiores direitos: sua visibilidade.

As lésbicas, através das lutas dos movimentos organizados, começaram a se mos-

trar. E nenhum lugar poderia ser melhor para aplicar essa visibilidade do que na televisão. Por

que não num gênero que tem como tradição a ousadia e a inovação? Foi assim que “The L
12

Word” ganhou voz e projeção na TV. E é essa série com seus perfis identificáveis do universo

lesbiano contemporâneo que apresento no capítulo quatro deste trabalho.

Incentivada por essa visibilidade, e acreditando que é possível fazer mais e outras

histórias, um roteiro com cinco histórias de amor entre mulheres foi criado. O processo de

escrita e produção de “O Móbile”, objeto direto da influência adquirida com o acompanha-

mento da série “The L Word”, assim como os roteiros de “Admiração”, “Diálogo”, “Apoio”,

“Confiança” e “Perdão” seguem descritos no capítulo cinco, como uma proposta de represen-

tação da homossexualidade feminina dos dias de hoje.


13

ROSE TROCHE: There's that thing about people just wanting to


get all the gay material into as big bucket and call it the same.
That's annoying.

MIA KIRSHNER: I think that people are fed up with being backed
into a corner and being marginalized and told what their life style
is.

ERIC MABIUS: I think very quickly people are going to forget


they are watching a show about lesbians, per se.

LEISHA HAILEY: I hope that the world really opens their arms...

[scene with Shane talking to Dana]

SHANE: Sexuality is fluid. Whether you're gay, or you're straight,


or you're bisexual... you just go with the flow.

LEISHA HAILEY: It shows the beauty of our diversity, and the


community, and reflects, somehow, what the gay community is
like.

OFF: Even taking the TV’s biggest gay breakthroughs into ac-
count, there has never been a series like The L Word.
(THE L WORD DEFINED, 2004)

ROSE TROCHE: Tem essa coisa das pessoas insistirem em pegar


todo o material gay e colocar junto num grande saco. Isso é irritan-
te.

MIA KIRSHNER: Eu penso que as pessoas estão cansadas de se-


rem jogadas para um canto e serem marginalizadas e dizerem que
aquele é o seu estilo de vida.

ERIC MABIUS: Eu acho que as pessoas vão se esquecer muito


rapidamente que estão vendo uma série sobre lésbicas, por si
mesmas.

LEISHA HAILEY: Eu espero que o mundo realmente abra os seus


braços...

[cena com Shane conversando com Dana]

SHANE: A sexualidade é fluida. Não importa se você é gay, héte-


ro ou bissexual... você simplesmente segue seu fluxo.

LEISHA HAILEY: Ela mostra as belezas da nossa diversidade e a


comunidade, e reflete, de alguma modo, como a comunidade gay
se parece.

OFF: Mesmo considerando os grandes avanços gays que os canais


de TV fizeram, nunca houve uma série como “The L Word”.
(THE L WORD DEFINED, 2004)
14

2. (HOMO) SEXUALIDADES HUMANAS: UMA QUESTÃO DE DESEJOS

O sexo, o desejo, a atração, a orientação, a cultura, as relações: o que é a homos-

sexualidade? Neste capítulo pretendo levantar uma breve história das sexualidades humanas

com foco principal nas relações entre iguais, entre os mesmos gêneros. Entre as mulheres e os

homens que não se encaixam exatamente nos padrões estabelecidos, sejam pela religião, pelo

Estado, pela medicina ou pela sociedade.

Desta forma, é importante antes de tudo, explicar que não vou questionar a fundo

os porquês de ser ou não homossexual, heterossexual, bissexual ou transexual. A ciência e a

mídia tentam há muitos anos definir se é uma questão de influências, de genes ou de cultura.

Como afirma João Silvério Trevisan, as “causas” da homossexualidade e toda sua discussão

parecem ser dispensáveis e equivocadas. “Quando perguntado a respeito, Jean Genet respon-

deu que buscar a origem da homossexualidade lhe parecia tão irrelevante quanto saber por

que os olhos eram verdes” (2000, pág. 31). Não existem meios de, neste momento, explicar

porque uma mulher prefere ter relações afetivas e sexuais com outra mulher. Mas temos como

mostrar, baseado em literaturas e relatos, um parâmetro da forma como a sociedade ocidental

através dos tempos procurou transformar o amor gay1 em algo errado, imoral e criminoso. E,

da mesma maneira, levantar a questão de que a realidade não é bem essa, de que na verdade,

trata-se muito mais de uma questão de desejos.

Algo importante que também gostaria de deixar claro é que tenho como objetivo

principal concentrar-me nas mulheres lésbicas, por vários motivos. Primeiro, porque são elas

1
A palavra gay é usualmente atribuída aos homens que têm relações homossexuais. Mas essa definição depende do país e da
cultura em que a palavra é inserida. No dicionário on-line Michaelis (http://michaelis.uol.com.br), ao pesquisar gay, aparece
como referência o termo “guei”, cuja definição é: “sm (ingl gay) pop 1 Homossexual masculino. 2 ch Veado, bicha.” Já na
versão americana do site Wikipedia (http://en.wikipedia.org/), “While gay applies in some contexts to all homosexual people,
the term lesbian is sex-specific: it is used exclusively to describe homosexual women. Sometimes gay is used to refer only to
men.” Ou seja, em sua origem inglesa, na qual anteriormente significava feliz ("carefree", "happy", ou"bright and showy"),
gay define as práticas, cultura e pessoas homossexuais, indistintamente. Como o objeto da pesquisa é uma série norte-
americana, que usa muito o termo gay para se referir às mulheres, pretendo aqui usar esse termo com essa significância, não
somente para os homens. Quando esse for o objetivo, usarei complementos para ajudar no entendimento.
15

as personagens principais da série “The L Word”, objeto de minha análise. Segundo por ser

este um universo no qual me insiro. Outro motivo é um detalhe específico dos estudos da ho-

mossexualidade, que percebi ao realizar a pesquisa para elaborar essa monografia. Os livros,

textos, artigos que li e sites que visitei, confirmam o fato levantado por Trevisan (2000, pág.

11) de que muito pouco ou quase nada existe em literatura sobre a homossexualidade femini-

na. A maior parte é voltada especificamente para o relato e estudo dos gays masculinos, tra-

vestis ou transexuais. Sobre as mulheres, o máximo que essa literatura dedica é um capítulo

ou citações. Poucos e difíceis de encontrar à venda são os livros que aprofundam o tema, co-

mo o fez Tânia Navarro-Swain em “O Que é Lesbianismo?” (2000) 2, base constante de meu

discurso. Mesmo sendo este um livro de bolso, pertencente à coleção “Primeiros Passos” da

Editora Brasiliense, ou seja, de poucas páginas e para leigas, o trabalho da professora e histo-

riadora destaca-se não só como um guia mas também como uma grande fonte de questiona-

mentos sérios sobre a forma que a história lida com as mulheres, lésbicas ou não. Da mesma

forma, encontrei somente na internet outras fontes sobre a lesbianidade3, em sites, teses, traba-

lhos e artigos de professoras e alunas com os mesmos questionamentos que eu: por que se fala

tão pouco sobre a mulher homossexual?

Questionar leva a abrir os horizontes, aprender coisas novas ou mesmo desaprender


preconceitos, normas e valores afirmados pelo senso comum. Se a tradição está pre-
sente para falar do lesbianismo como um desvio, uma aberração, cabe-nos indagar o
que é esta tradição que faz da lésbica um ser oculto e obscuro, que lhe reserva um
espaço de perversão e de desordem num mundo que se quer transparente, definindo
os seres humanos em apenas dois: mulheres e homens. [...] Assim, as relações soci-
ais que escapam aos modelos concebidos são marginalizadas, esquecidas ou elimi-
nadas da historiografia, este grande conjunto de histórias que compõem a memória
do vivido. (NAVARRO-SWAIN, 2000, p.12)

2
O título do livro ainda traz a palavra lesbianismo e, da mesma forma, a palavra é usada em todas as citações. No entanto, o
correto seria retirar da palavra lésbica o sufixo ismo, que é associado à doença. O termo lesbianidade vem sendo adotado
pelas organizações sociais de lesbianas em oposição ao termo lesbianismo por sua associação com a concepção de homosse-
xualidade como doença, que vigorou no CID-10 (Código Internacional de Doenças) até a década de 80.
3
Durante o trabalho, usarei as palavras lesbianidade e lesbianas, mesmo não sendo muito usuais.
16

A conclusão que chego é a de que, infelizmente, o machismo continua impreg-

nando nossa sociedade, sendo encontrado em todos os lugares. Até mesmo no meio homosse-

xual. Por isso, neste capítulo farei apenas citações sobre a história dos gays homens, travestis

e transexuais. Tenho como ideal a igualdade dos gêneros e pretendo aqui não cometer equívo-

cos sexistas que são muitas vezes levados adiante sem que percebamos. Para isso, pretendo

seguir as recomendações de Assumpção e Bocchini (2002). E por isso, tentarei abordar fiel-

mente, e com olhos atuais, a história das mulheres que amam mulheres.

2.1. A importância do sexo

De todas as características do ser humano, uma ganha destaque inigualável dentro

da sociedade moderna: o sexo. Como um definidor de gêneros, de patologias, de valores de

mercado, de padrões de consumo, de dogmas religiosos, de posturas sociais e com base em

seus vários aspectos, a sexualidade se transformou numa das mais importantes significantes

da cultura humana. Antes de entrar mais detalhadamente em discussões dos diversos papéis

da sexualidade e suas orientações, é importante ter uma noção do que é esse sexo:

O sexo é um nome dado a coisas diversas que aprendemos a reconhecer como sexu-
ais de diversas maneiras. Certas coisas sexuais podem ser mostradas, como, por e-
xemplo, as descrições médico-fisiológicas do aparelho genital. Outras, como descri-
ções de sensações corporais são reconhecidas pela mostração e pela interpretação,
como orgasmo, que aprendemos que é 'algo sexual' mas que poderia ser sinal de
possessão pelo demônio ou espasmo muscular. Outras, como descrições de senti-
mentos afetivos ou amorosos, são puras realidades lingüísticas, que não podem ser
mostradas e nas quais o suporte corporal é absolutamente dispensável como critério
de uso correto dos termos e expressões. Outras, finalmente, como regras de paren-
tesco e valorização moral de condutas dependem do conhecimento prático ou abstra-
to de instituições culturais e sociais complexas, sem relação direta com atos e condu-
tas observáveis. (COSTA, 1996, p. 64)

A partir deste conceito de Jurandir Freire Costa, é possível perceber como as defi-

nições de sexo variam conforme os campos do direito, da biologia, da religião e da cultura.


17

No entanto, uma das definições é imposta à sociedade ocidental como correta e imutável: a da

divisão binária homem/mulher. Esta divisão, deixa-se claro, não no aspecto físico e biológico,

cuja diferença é óbvia, mas sim no sentido de gênero social.

Se pegarmos como exemplo a religião, encontramos as personagens de Eva e A-

dão. Como determinantes de papéis sociais, talvez não haja exemplo melhor do que uma soci-

edade paternalista pode fazer com a cultura de um povo. Para os católicos, Eva, a primeira

mulher, surgiu em segundo lugar, a partir de pedaços do corpo de Adão, o primeiro homem.

Este, uma imagem de Deus, seria o ser superior, dominador, aquele que se viu obrigado a cor-

rigir os erros de Eva. Ela, por sua vez, era uma mulher sedutora, fraca, com o único objetivo

de ser um complemento e uma ajuda ao homem, e foi dominada pela tentação. A mulher co-

nhece a Serpente e sua “árvore da ciência e da sabedoria”, come o “fruto proibido”, comete o

“pecado original” e acaba expulsa do paraíso. Numa livre interpretação, Eva toma conheci-

mento de seu real papel no mundo, do direito de tomar decisões, do seu poder e força, de sua

sexualidade e acaba punida por isso, tendo que sofrer as dores do parto e tornando-se cada vez

mais submissa ao seu Adão.

No entanto, se procurarmos dentro de diferentes conceitos religiosos, como os do

Judaísmo, encontramos outra versão dos fatos. Segundo o Rabino Manis Friedman4, no livro

dos Gênesis da Torá, ou Bereshit5, Chava (Eva) era ou outro lado da imagem de D’us (Deus).

Ela come o fruto para experimentar o sabor da vida, de estar imersa nela. A transgressão a-

contece pois ela parte de um mundo Divino para um mundo real, onde somente o aqui e o

agora importam, onde não há ponto de vantagem a partir do qual discernir o bem do mal. Ela

teve a coragem de ver o outro lado das coisas. E, com isso, entendeu a mensagem de D’us.

4
Disponível em <http://www.chabad.org.br/biblioteca/artigos/AdaoEva/home.html>, acesso em 15 nov. 2007.
5
Torá (do hebraico ‫ּתֹורה‬,
ָ significando instrução, apontamento, lei) é o nome dado aos cinco primeiros livros do Tanakh
(também chamados de Hamisha Humshei Torah, ‫ חמשה חומשי תורה‬- as cinco partes da Torá) e que constituem o texto central
do judaísmo. É um substantivo feminino. Já Bereshit ‫תישארב‬, Bereshit - No princípio conhecido pelo público não-judeu como
Gênesis (disponível em <www.pt.wikipedia.org>, acesso em 19 nov. 2007.)
18

Eva entendeu a necessidade de D'us de que este mundo inferior, um mundo conta-
minado pela morte e pelo pecado, fosse elevado e unido a Ele. Ela entendeu que os
seres humanos devem deixar o Éden e descer ao mundo inferior, e ali criar um lar
para D'us. [...] E assim ela comeu da árvore, e convenceu Adão a fazer o mesmo.
Quando D'us perguntou a Adão: "Tu comeste da árvore?" - não foi uma repreensão
ou censura. Ele estava admirando a sabedoria de Adão em ter tomado a decisão cor-
reta. Adão, em sua inocência, admitiu que fora a sabedoria de Eva, não a sua. "Ela
deu-me o fruto da árvore, e eu comi." [...] O mundo agora pode tornar-se confortável
para Ele, quando as coisas que O definem - Seus mandamentos - são praticados. As-
sim fazendo, preparamos o mundo para nossa suprema redenção. (FRIEDMAN,
200-, disponível em <http://www.chabad.org.br>, acesso em 15 nov. 2007.)

Apesar de dois pontos de vista completamente diferentes sobre o mesmo dogma

religioso, a primeira versão, a da Eva pecadora e submissa ao marido, permaneceu.

Ora, essa representação da origem da humanidade católica não poderia estar mais

envolta em preconceitos e sexismos. E foi principalmente a partir dela que a heterossexuali-

dade se tornou o caráter normativo da representação social do ocidente, com a reprodução

como único objetivo das relações sexuais. O desejo humano se tornara uma “culpa”, um “pe-

cado”. Como acrescenta Tânia Navarro-Swain, a “Bíblia, o Alcoorão, narrativas ligadas a um

deus masculino, não são verdadeiros manuais de comportamento e normatividade relativos à

construção do social e dos gêneros, dos papéis femininos e masculinos?” (2000, p.28)

Dois pólos, um superior e outro inferior, marcados pelo signo do sexo, da sexualida-
de, da reprodução, cada um em seu papel segundo sua “natureza” dotada do selo di-
vino. A heterossexualidade como norma e as relações assimétricas entre os corpos
sexuados ficam assim instituídos no imaginário ocidental, ordenando as práticas e
relações no Ocidente cristão. (NAVARRO-SWAIN, 2000, p. 17)

Aliás, a reprodução não só fez da heterossexualidade uma regra como também

uma necessidade em sociedades que buscavam o crescimento do Estado. A partir dela, foi

determinada a forma como as famílias seriam estabelecidas. Se não houvesse a relação entre

homens e mulheres, não haveria novos cidadãos. Sem novos cidadãos, o Estado não seria

formado. Em algumas cidades da Grécia Antiga, como Esparta, por exemplo, era o Estado
19

quem determinava quando os homens e as mulheres teriam relações sexuais e, conseqüente-

mente, filhos, já que eles viviam separados e tinham vidas sociais completamente diversas6.

Ainda nesse contexto, somente para exemplificar, a mulher era tão pouco conside-

rada pela sociedade, que para um jovem grego de boa posição social ser iniciado sexualmente,

devia fazê-lo com gregos másculos, adultos, maduros e de boa posição político-sócio-

econômico-intelectual. Mas é importante acrescentar que as mulheres, sendo banidas de todas

as atividades políticas, culturais, sociais e esportivas, formavam outra comunidade, um gueto,

onde tinham também sua iniciação sexual entre elas. Anos mais cedo, e nesse contexto, viveu

Safo, poetisa grega da ilha de Lesbos, que foi considerada por Platão a Décima Musa7.

Safo era uma mulher emancipada, que participava da política desde os 19 anos e

que cantava em suas poesias o amor pelas mulheres. Era sacerdotisa de Afrodite e participava

de ritos de iniciação na escola de moças que havia fundado, a que é considerada tanto a pri-

meira escola para mulheres, como a primeira escola de aperfeiçoamento da história, com o

ensino de música, canto e poesia. Suas alunas recebiam o nome de hetairai (amigas) e muitas

delas tiveram relações com Safo. A que mais marcou a vida da poetisa foi Átis, que foi retira-

da da escola pelos seus pais. Ao perdê-la, Safo escreveu o poema “Adeus a Átis”, cujos versos

líricos são considerados os mais belos de todos os tempos e são adotados como modelo de

singeleza e de sobriedade da forma literária. Safo, e sua ilha de Lesbos, serviram também para

denominar o amor homossexual feminino. A expressão “práticas sáficas” virou sinônimo de

“práticas sexuais entre mulheres”. A palavra lésbica, por sua vez, veio exatamente do termo

habitantes de Lesbos. Apesar da forte influência e da poesia de rara beleza, e como em muitos

momentos da história do mundo, as vivências da mulher lésbica Safo simplesmente foram

retiradas das páginas dos livros, sua obra denegrida e sua poesia queimada como heresia.

(NAVARRO-SWAIN, 2000)

6
Sobre essa questão, ver Pastre (1987, p81).
7
“Há quem afirme serem nove as musas. Que erro! Pois não vêem que Safo de Lesbos é a décima?” – Platão. Disponível em
<www.pt.wikipedia.org>, acesso em 15 nov. 2007.
20

Exatamente por isso, com a visão do Cristianismo Ocidental, essa história tornou-

se lenda, como aconteceu com várias rainhas, sacerdotisas e guerreiras da Era Medieval. Na

versão cristã, muitas vezes elas se tornavam reis, sacerdotes e guerreiros. (IDEM, 2000) Em

seu período de maior poder, na Idade Média a partir do século XI, a Igreja desenvolveu uma

caça contra os homossexuais e todos aqueles que se levantavam contra a moral católica. Re-

solveram, com muita violência, puní-los para que se tornassem exemplos, assim, centenas de

lésbicas foram queimadas como bruxas, e homossexuais em geral eram usados como “lenha”

para as fogueiras purificadoras da santa igreja. Somente a heterossexualidade com fins repro-

dutivos era o “natural”.

Além da igreja, a burguesia trouxe a necessidade de se determinar quem era o

herdeiro das propriedades dentro de uma sociedade paternalista e, assim, submeteu as mulhe-

res ao domínio masculino. Com isso, aumentou mais ainda a discriminação em relação a toda

atividade sexual que não tivesse na reprodução “controlada” seu objetivo. Somente a família,

com um pai provedor e forte e uma mãe subjugada e carinhosa poderia existir dentro de uma

sociedade burguesa, “natural e correta”.

Essas representações mediadoras das relações entre mulheres e homens marcaram de


valores o discurso da história “científica”, que se inicia no século XIX; penetraram a
pesquisa média e biológica quando decidem a respeito do normal e do patológico
nas práticas humanas; abriram espaço para a instituição de modelos de comporta-
mento definidores do certo e do errado, do bom e do mau, do bem e do mal contido
nos sentimentos e práticas que ligam os seres humanos. A heterossexualidade com-
pulsória, fenômeno relativamente recente na história humana, passa a ser a regra u-
niversal, o que determina a integração social nos papéis do “verdadeiro” masculino e
feminino. Os limites de tolerância de práticas sexuais diversas dependem do grau de
hegemonia da heterossexualidade enquanto norma absoluta ou escolha possível; des-
se modo, nas sociedades onde a reprodução é apenas um dos eixos e não o pivô cen-
tral das relações humanas, o leque de práticas sexuais aceitas tende a ser mais am-
plo. (NAVARRO-SWAIN, 2000, p. 17-18)

Como mostram esses exemplos, através dos tempos, a relação sexual entre ho-

mens e mulheres foi sendo forjada como o padrão de sexualidade, enquanto qualquer outra

forma de desejo sexual era considerada “anormal”, “perversão” ou “desvio”.


21

Apenas a re-historicização das categorias criadas pela sociedade burguesa pode li-
vrar-nos da inversão de causa e efeito contida na interpretação naturalizante de nossa
sociedade. Os anormais nada mais são do que construções sociais naturalizadas, as
quais derivam de relações de poder que atribuem a eles uma posição de inferioridade
e submissão na ordem social. Nossos corpos socializados trazem o passado ao pre-
sente e contribuem para a manutenção das categorias sociais e da hierarquia imposta
pelo padrão de normalidade burguês. Assim, a desigualdade de poder chega aos in-
divíduos nos seus próprios corpos e no uso destes, dos prazeres e capacidades repro-
dutivas. (MISKOLCI, 2002/2003, p.13)

Mas a toda regra, exceções são bem vindas. Em várias culturas e em diversos

momentos da história, o discurso normativo não se recai somente sobre o sexo, se tornando

este um caráter secundário. Como explica Jurandir Freire Costa, aquilo que unifica e identifi-

ca os atos sexuais como da ordem do sexo na cultura ocidental moderna podem inexistir em

outras culturas.

Os Sambia, uma tribo na Nova Guiné, tem como princípio da vida o sêmen. Conse-
qüentemente, o valor do sêmen é que determina a ordenação moral das práticas se-
xuais. A sua produção e distribuição é feita de diversas maneiras, inclusive aquelas
que, na nossa cultura, estão na ordem da identificação com o sexo. Por exemplo: en-
tre os Sambia é costume haver a transmissão de sêmen de homens adultos aos meni-
nos através da felação para que cresçam, adquiram força e possam ser bons produto-
res de sêmen quando ficarem adultos (COSTA, 1996, p. 67).

Segundo os padrões atuais, essa prática seria classificada como homossexualida-

de, por ser realizada entre duas pessoas do mesmo sexo, e como pedofilia, por envolver um

adulto e uma criança. Mas para os nativos de Sambia, isso não passa de um ritual da tribo.

Conclusão: expressões sexuais usadas para falar de sexo tais como 'o mesmo sexo' e
o 'outro sexo' naquela cultura soariam tão estranhas quanto nos pareceria estranho
dividir os indivíduos modernos entre 'felaciofílicos' e 'felaciofóbicos' ou definirmos
alguém como 'impotente para a felação', se esse alguém, por acaso, dissesse ter nojo
ou inibição para praticá-la (COSTA, 1996, p. 67).

A heteronormatividade foi, então, desde o início dos tempos, estabelecida. No en-

tanto, sempre existiram homens e mulheres que não se encaixavam nas definições sexuais e

de gênero, que sempre sentiram interesses diversos aos que eram mostrados como “corretos”
22

pelo estado, pela medicina ou pela religião. A diversidade sexual é uma característica huma-

na, e os padrões e categorias existem somente no sentido de classificação social.

2.2. Identificações e identidades diversas

Homens com traços femininos, mulheres com traços masculinos. Homens mascu-

linos que mantinham relações sexuais com outros homens, fossem eles masculinos, femininos

ou travestidos. Pessoas que não se sentiam bem nos corpos que haviam nascido e, por isso,

mudavam de gênero. Mulheres femininas que sentiam atração sexual, e que praticavam sexo,

com outras mulheres, masculinizadas ou não, amigas, professoras, primas, desconhecidas, não

importava. Jovens meninas e meninos que atingiam a maturidade sexual sem entender ao cer-

to por que seu futuro deveria ser com alguém do sexo oposto se seu desejo era pelo mesmo

sexo. Até certo momento da história, esses homens e mulheres não tinham uma categorização

formal. Foi a partir da evolução da noção de sexo que termos e conceitos foram definidos e

estabelece-se a idéia da homossexualidade na nossa cultura.

Até o século XVIII, a concepção científica dominante da sexualidade era a do o-

ne-sex model, onde os humanos tinham um só sexo e a mulher era entendida como um homem

invertido e, portanto, inferior. (SILVA, 2004) Por essa concepção, todas as relações seriam

homoeróticas, já que envolveriam a fricção de duas partes sexuais iguais, mesmo que uma

fosse o inverso da outra. A partir do século XVIII, concebe-se a noção de sexualidade através

do two-sex model, que mesmo distante da noção atual, já previa uma diferenciação básica

entre o homem e a mulher a partir das diferenças anatômicas.

A invenção dos homossexuais e heterossexuais foi uma conseqüência inevitável das


exigências feitas à mulher e ao homem pela sociedade burguesa européia. (...) No
modelo médico do one-sex model, o sexo referia-se exclusivamente aos órgãos do
aparelho reprodutor. Não era algo invasivo, que perpassava e determinava o caráter,
os amores, sentimentos e sofrimentos morais dos indivíduos. Este sexo absoluto, o-
23

nipotente e onipresente só tornou-se teórico-culturalmente obrigatório a partir do


momento em que se criou a noção da bissexualidade originária. (...) A homossexua-
lidade será, inicialmente, definida como uma perversão do instinto sexual causada
pela degenerescência de seus portadores e, depois, como um atraso evolutivo ou re-
tardamento psíquico, manifestos no funcionamento mental feminino do homem
(COSTA, 1996, p. 86-87).

A evolução dessa concepção científica de sexualidade acabou influenciando na

criação de das noções sociais de sexo, identidade, papel e orientação sexual que são conside-

radas na classificação de um indivíduo como homossexual.

Oficialmente, o termo homossexual foi cunhado em 1869, pelo jornalista austro-

húngaro Karl-Maria Kertbeny8, e vinha para explicar a prática: “do mesmo sexo”. Apesar de

ter sido criado por um ativista dos direitos homossexuais, no ano seguinte a palavra homosse-

xual entra para os anais da Psiquiatria como um desvio sexual e ganha o sufixo “ismo”.

Na segunda metade do sécluo XIX, foi um militante “uranista” (como se chamava


então o homem que praticava sexo com homem) quem criou o termo “homossexua-
lismo” – visando a legitimar biologicamente a “vocação” homossexual e isentar de
culpa os seus “vocacionados”. De fato, isso deu início a uma importante mudança de
postura da ciência, que passou de condenação à curiosidade científica perante uma
anomalia, digamos, moralmente neutra. [...] Mas, como se trata de uma faca de dois
gumes, a contrapartida deve ser lembrada para evidenciar a ingenuidade da proposta
inicial, pois a situação se tornou rósea apenas negativamente. (TREVISAN, 2000,
p.33)

O “homossexualismo”, desta forma, passou a ser sinônimo de doença, de patolo-

gia e foi incluído em 1870 na Classificação Internacional de Doenças (CID) como Transtorno

Sexual. Bem na verdade, a classificação foi uma desculpa para que os moralistas e preconcei-

tuosos criassem leis que baniam os homossexuais e puniam suas práticas com violência e

clausura. E, assim, por muitos anos a sociedade burguesa considerou a homossexualidade

crime, o que fez com que milhares de mulheres e de homens fossem mortas e mortos por as-

sumirem suas orientações sexuais.

8
Após o suicídio de um amigo gay que era chantageado por causa de sua orientação sexual, o jornalista começou a se interes-
sar pelo tema. Karl-Maria Kertbeny se tornou um ativista dos direitos dos homossexuais. Em 1869, um de seus panfletos de
militância trouxe o termo homossexual em substituição do pejorativo pederasta. Ele também criou os termos heterossexual e
monossexual (quem se concentra apenas na masturbação).
24

O estranho é que, apesar dessa classificação da psiquiatria e da medicina que se-

para um lugar obscuro para as lésbicas e os gays masculinos, segundo um dos pais da psicaná-

lise, Sigmund Freud, a pulsão (sexual) não tem objeto pré-determinado no ser humano e tanto

a “homossexualidade” quanto a “heterossexualidade” se desenvolvem socialmente, partindo

de certas disposições individuais. Além disso, sob o nome de homossexualidade, se incluem

numerosos fenômenos de ordens diversas. Isso porque, segundo ele, todos os indivíduos de

nossa cultura possuem uma corrente libidinosa heterossexual e uma homossexual; sendo que a

determinação da orientação predominante depende de uma série de fatores não completamen-

te conhecidos. (BARBERO, 1988) E essa análise foi feita no início do século passado, anos

antes dessa decisão de categorizar os homossexuais como transtornados mentalmente.

A pesquisa psicanalítica se opõe com o máximo de decisão que se destaquem os


homossexuais, colocando-os em um grupo a parte do resto da humanidade, como
possuidores de características especiais. Estudando as excitações sexuais, além das
que se manifestam abertamente, descobriu que todos os seres humanos são capazes
de fazer uma escolha de objeto homossexual e que na realidade o fizeram no seu in-
consciente. (FREUD, 1905, p.146, adição de 1915).

Na Alemanha, por exemplo, em 1871, através do Parágrafo 175 do Código Crimi-

nal, as pessoas consideradas gays foram perseguidas e presas. O Nazismo aumentou em dez

vezes a abrangência do Parágrafo 175 e em 1937 foi criado o triângulo rosa para classificar as

homossexuais masculinos e o triângulo preto para as homossexuais femininas.

Partindo do pressuposto eugênico de que os homossexuais era anormais incuráveis,


como os loucos e os aleijados, o nazismo estigmatizou-os com o triângulo rosa e de-
terminou sua eliminação como corolário obrigatório para a boa saúde da sociedade.
Tal postura corresponderia, no estado tecnológico atual, à possibilidade de identifi-
car bebês homossexuais ainda em embrião para abortá-los – imitando prática comum
na Índia de interromper a gravidez quando se trata de feto feminino. (TREVISAN,
2000, p.33)

Milhares de alemães morreram nos campos de concentração, sem que fosse pro-

vado se eram “culpados” ou não, dentro dessa concepção eugênica de homossexualidade co-
25

mo transtorno. Mesmo depois do fim da guerra, os que possuíam o triângulo rosa permanece-

ram presos por causa da citada lei, que só foi revogada com a queda do muro de Berlim em

1990.

Enquanto isso, nos Estados Unidos, entrava em vigor o chamado “Código Hayes”.

No início da criação do cinema, os homossexuais apareceram em cena em muitas produções.

Se não de forma direta, pelo menos de forma sugestionada. O problema é que, sempre que

apareciam, era de forma efeminada, caricaturada e como piada, ou então, no caso das lésbicas,

com o único intuito de excitar os homens. Os gays não eram levados a sério, ganhavam apeli-

dos e deboches, e sempre apareciam como vítimas, tristes e agoniados. Por outro lado, se uma

mulher aparecia como homem, era tida como um objeto de apelo sexual para os heterossexu-

ais masculinos. No filme “Morroco”, de 1930, a atriz Marlene Dietrich aparecia belamente

vestida em um smoking, como parte de um show. Singela e sensual, atraía os olhares de todos

na sala, homens ou mulheres. No final da cena, ela dá um beijo de leve em uma das mulheres

da platéia, o que chama a atenção do seu futuro companheiro na trama 9. Mas, mesmo assim,

eles e elas apareciam.

Em 1934, a Associação dos Produtores e Distribuidores de Filmes da América

(MPPDA) decidiu que o cinema precisava de uma “faxina” em prol dos bons costumes e da

moral. Através de Will H. Hayes, a associação em conjunto com a Igreja Católica dos EUA,

lançou uma série de normas que obrigavam os filmes a não usarem palavras de baixo calão,

não mostrar nudez, não insinuar o sexo e, entre outras coisas, a não apresentar perversões se-

xuais (leia-se homossexualidade, transexualide, etc.) nas suas histórias. A censura dentro da

indústria cinematográfica obrigou que partes inteiras de filmes fossem cortadas e que em ne-

nhum momento fosse mencionada a sexualidade das personagens. O “Código Hayes” vigorou

até o ano de 1967, quando foi criada uma nova classificação dos filmes. Essas normas foram

9
Para mais informações sobre a homossexualidade no cinema, ver o documentário “The Celluloid Closet”, de 1995 (HBO),
dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman e baseado no livro homônimo de Vito Russo, de 1981.
26

mais um reforço à característica negativa que se atribuía às lésbicas, pois, além de não se po-

der falar no assunto, elas se tornaram as vilãs da história, como em “A Filha de Drácula”, de

1936, ou em “Rebecca”, 1940, ou as que se matavam ao final da história por não agüentarem

a “culpa”, como em “The Children Hour”, de 196110.

Logo após esse período, em 1948, o zoólogo Alfred Charles Kinsey11 lançou um

instituto de estudos da sexualidade e dois livros muito controversos, mas que foram funda-

mentais para a quebra de diversos tabus. “Sexual Behavior in the Human Male” (1948) e “Se-

xual Behavior in the Human Female” (1953) foram responsáveis por escândalos, mas também

por conseguir abalar, pela primeira vez em muitos anos, a heteronormatividade que se instala-

ra. Suas obras influenciaram tanto o comportamento sexual da sociedade norte-americana,

principalmente nos anos 60, que muitos lhe dão mérito pela revolução sexual que ali fora ini-

ciada. Além da valorização do desejo em vez da necessidade de reprodução como uma das

causas das relações sexuais, os estudos foram fundamentais para o entendimento da diversi-

dade sexual de mulheres e homens. Para Kinsey, a classificação da sexualidade humana não

se restringia apenas a hetero e homossexual. Ele criou a seguinte categorização: heterossexual

exclusivo; heterossexual ocasionalmente homossexual; heterossexual mais do que

ocasionalmente homossexual; igualmente heterossexual e homossexual, (também chamado de

bissexual); homossexual mais do que ocasionalmente heterossexual; homossexual

ocasionalmente heterossexual; homossexual exclusivo; indiferente sexualmente.

Se os relatórios12 estavam ou não corretos e se essa categorização eram

necessários, não é possível afirmar, já que, na prática, a única diferença entre um

10
Neste filme, Shirley McLaine é Martha, apaixonada por Karen (Audrey Hepburn). Ela se mata após serem chantageadas
por algo que, imagina-se, seja sua orientação sexual. No documentário “The Celluloid Closet” (1995), Shirley McLaine
revela que, na época, a lesbianidade das personagens não foi discutida ou revelada pela equipe do filme. Afirma ainda que, se
tivesse sido, com certeza Martha lutaria por suas escolhas, tentaria uma alternativa ao suicídio. Mas, segundo ela, o tema
nunca foi levantado, nem mesmo em conversas com Hepburn, sua companheira de cena. “The profundity of this subject was
not in the lexicon of our rehearsal period. Audrey and I never talked about this. Isn't that amazing. Truly amazing.” –
(MCLAINE, 1995).
11
Ver <http://www.kinseyinstitute.org/> ou o filme “Kinsey” (2004), de Bill Condon, com Liam Neeson no papel principal.
12
É com base no citado "Relatório Kinsey" que se costuma calcular em 6% as pessoas exclusivamente homossexuais, e 4%
as predominantemente homossexuais, que ocupam os números 5 e 6 da "Escala Kinsey".
27

homossexual e um heterossexual é o seu objeto de desejo. Mas o fato é que como um

resultado prático dos estudos de Kinsey, em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria

removeu a homossexualidade da lista de desordens mentais13. O mesmo aconteceu com a

Organização Mundial de Saúde (OMS), que também passou a não considerar a

homossexualidade como uma doença, somente a partir de 1986. O sufixo “ismo” é, então,

retirado da palavra homossexual e, até hoje, luta-se para acabar com o uso em textos e

notícias da imprensa dos termos “homossexualismo” e de suas associações: “transexualismo”,

“tranvestismo” e “lesbianismo”.

Ao mesmo tempo, ganhavam força Estados Unidos outras denominações, como

butch (lésbica masculinizada), dyke (correspondente ao pejorativo “sapatão”), gay, faggot ou

fag (correspondente ao “bicha”) e, na Inglaterra, o termo queer (estranho).

Este termo (queer), que em inglês significa torcido ou oblíquo (que em português
poderia ter a tradução mais contextual de esquisita), era usado nos Estados Unidos e
na Inglaterra em tom de rejeição e degradação para se referir às pessoas gays, lésbi-
cas e transgêneros. Entretanto, no final dos anos oitenta foi tomado para si por pes-
quisadores que trabalhavam as temáticas gays e lésbicas e pelas pessoas que eram
alvo da estigmatização, ressignificando-o e reapropriando-se dele de modo afirmati-
vo para se referir a todos aqueles indivíduos cuja sexualidade (e não só orientação
sexual) extrapolasse os limites da heterossexualidade binária. Como uma ave fênix,
este termo se constitui em um espaço de significação aberta e volúvel que incorpora
lésbicas, transgêneros, transexuais, gays, sadomasoquistas, swingers, e todos aqueles
seres que não alcançam o status de sujeitos; seres “abjetos”, em termos de Butler
(2002,19-20), devido à sua condição degradada e excluída, que habitam zonas invi-
síveis ou inabitáveis da vida social, conformando o “exterior constitutivo” da esfera
dos sujeitos. (LACOMBE, 2005, p. 4-5)

No Brasil, as palavras “viado”, “bicha”, “boiola” “sapatão”, “fanchona” e

“entendida” ganham também as ruas como outras denominações. Em comum, todas elas têm

o aspecto negativo, pejorativo, e surgiram para agredir ou ridicularizar. Mas alguns termos

foram adotados pelas comunidades de lésbicas e de gays masculinos que viraram o jogo e

passaram a ter posturas positivas em relação a essas palavras. Gay, dyke, queer e entendida ou

13
Apesar disso, na CID 10, ainda em vigor, estão descritos vários transtornos de identidade sexual (F64); transtornos de
preferência sexual (F65) e transtornos psicológicos e de comportamento associados ao desenvolvimento e orientações sexuais
(F66).
28

entendido serviram, de certa forma, para que houvesse uma maior aceitação social da

homossexualidade.

Segundo antropólogos, o entendido rejeitava os termos pejorativos, ligados ao gêne-


ro, tais como viado, louca ou bicha, assim como o comportamento vistoso e afetado.
Ao contrário, o entendido preferia um termo de definição de sua identidade que re-
fletisse uma persona pública mais resguardada. Além disso, MacRae sugeriu que o
entendido adotava um novo comportamento sexual „igualitário‟, que não imitava a
díade ativo/passivo, masculino/feminino associada à interação tradicional, hierárqui-
ca, homem/bicha. (GREEN, 1999, p. 308)

Na realidade, muito pouco depende uma relação sexual consensual do termo que a

classifica. Fugindo do conceito forjado de necessidade de procriação, o fato é que ela aconte-

ce na maioria das vezes por haver atração mútua, indiferente se forem homens ou mulheres os

sujeitos dessa atração. Mas, a ciência, o estado e a religião precisam criar nomes determinan-

tes desses sujeitos. Hoje em dia, questionam-se muito as chamadas identidades gays. Não é

possível determinar uma única característica que identifique uma pessoa como homossexual.

Até mesmo o uso deste termo passa a ser questionável. De fato, o que é um homossexual? O

que é ser lésbica? Ou então, como levanta Navarro-Swain, como alguém pode ser uma prática

sexual?

Meu argumento é que o lesbianismo não pode constituir uma identidade, já que esta
denominação não é senão um conjunto de questões, de práticas, diluídas no questio-
namento das categorias mulher e gênero. [...] Afinal, o que é o lesbianismo em uma
rede de sentidos dominada pela heterossexualidade, tal como se apresenta em grande
parte das teorias feministas? [...] Não é possível esquecer a frase de Witting: „Uma
lésbica não é uma mulher‟ (1980:53); definição em negativo, locus maior de resis-
tência ao patriarcado. Mas essa própria afirmação ainda se refere ao quadro de pen-
samento que coloca o lesbianismo num conjunto de práticas cuja referência central
são a sexualidade e o sexo. (NAVARRO-SWAIN, 2000, p.91-93)

As identidades são tão diversas e criadas de forma tão individualizadas, que não é

possível generalizar estabelecendo conceitos definidos sobre o que seja a pessoa

heterossexual, o gay, a lésbica, o transexual, o bissexual, entre outros.


29

Neste mundo instituído por representações, a identidade é uma ficção e a incerteza e


o paradoxo são as conquistas maiores de nosso tempo para desmascarar as verdades
de todos os tempos. Identidades múltiplas, circunstanciais, deslocamentos
imprevisíveis das pulsões em torno da pessoa, não de sexos definidos, assim seriam
identidades múltiplas construtoras de uma nova ordem sexual. (NAVARRO-
SWAIN, 2000, p. 95)

Mesmo assim, existem, como vimos, vários componentes construídos pelas rela-

ções sociais que acabam por categorizar a sexualidade humana. E é, a partir deles, que quem

não se encaixa em algum padrão tenta encontrar seu lugar no mundo.

Atualmente, a maneira mais generalizada que dispomos para definir quem transa
com o mesmo sexo é a categoria de “homossexual”, com todas as suas limitações.
Por mais daninhas que essa categorização possa ser, enquanto restritiva e negativa,
trata-se de um instrumento linguístico. [...] Se as objeções à “construção de uma
identidade guei” fazem sentido, também é verdade que não se pode negar uma
denominação qualquer ao desejo, ainda que por mera questão de método. [...] Pelo
simples fato de existir o desejo entre pessoas do mesmo sexo, é necessário referir-se
a ele sob algum tipo de denominação; caso contrário, no limite acabaríamos
voltando aos tempos da sufocante e hipócrita invisibilidade (“o anor que não ousa
dizer seu nome”), que só reforçava os mecanismos repressivos. (TREVISAN, 2000,
p. 37-38)

A classificação pelo sexo biológico significa ser macho, fêmea ou ainda interse-

xual ou hermafrodita. A identidade de gênero quer dizer ser mulher ou homem, mas o papel

de gênero já classifica a forma como nos comportamos na sociedade, ou seja, de formas mas-

culina, feminina, andrógina (SUPLICY, 1986). Esse papel pode ser definido por uma série de

questões, como pela vivência pessoal, pela cultura, pelo estado, pela religião, e, na sociedade

ocidental paternalista, temos as seguintes predominâncias:

O papel de gênero que predomina para homem é de trabalhador, provedor, chefe da


família e líder, atividades que requerem traços de personalidade considerados mas-
culinos, tais como assertividade, confiança, racionalidade, seriedade, força, coragem
e independência. A mulher deveria se responsabilizar pelo cuidado com os filhos, a
casa e os relacionamentos familiares, pois tem traços femininos como dependência,
cooperação, afetividade, sensibilidade e lealdade. (NUNAN, 2003)

Já a orientação sexual é exatamente a tendência de o desejo sexual ser voltada pa-

ra pessoas do mesmo sexo, do sexo oposto ou ainda para os dois casos. Foi daí que surgiram
30

os termos homossexualidade, heterossexualidade e bissexualidade. Quando uma mulher sente

atração sexual por outra mulher, ela acaba se orientando para ter relações homo afetivas e

eróticas. Mas isso não significa necessariamente que ela precise, para isso, assumir um papel

sexual diferente do seu. O mesmo se aplica com os homens. É nesse sentido que a confusão

entre papel de gêneros e orientação sexual se estabelece. Os estereótipos mostram os homos-

sexuais como seres desconfortáveis com suas identidades de gênero, querendo modificar seu

sexo biológico (NUNAN, 2003).

De acordo com alguns autores, estes estereótipos provêm da premissa errônea de que
os componentes da sexualidade humana são inseparáveis, e que se um indivíduo di-
fere da norma em um destes componentes, deve diferir também em todos os outros.
No entanto, a maioria dos homossexuais não está confusa no que se refere à sua i-
dentidade de gênero: tem certeza de serem homens/mulheres, e poucos adotam um
comportamento efeminado/masculinizado. Neste sentido, pode-se dizer que “a tole-
rância para com a homossexualidade seria proveniente de uma mudança de represen-
tação dos sexos, não apenas de suas funções, de seus papéis a nível profissional e
familiar, mas de suas imagens simbólicas”. (ARIÈS, 1985: 80, apud NUNAN, 2003)

Por exemplo, uma mulher pode ser forte, ter cabelos curtos, não usar saias e ter

muitas tatuagens, ou seja, características socialmente masculinas, e, nem por isso, ser homos-

sexual. E, por outro lado, existem mulheres lésbicas extremamente femininas, com cabelos

compridos e que só usam vestidos e jóias. Da mesma forma, um homem pode ter característi-

cas do papel sexual feminino e, mesmo assim, ser heterossexual. São muito comuns hoje em

dia os chamados metrossexuais, que fazem as unhas, pintam os cabelos, usam cremes para o

rosto e corpo e cuidam excessivamente da imagem. E existem aqueles homens musculosos,

másculos e machistas que só fazem sexo com outros homens. Qual a diferença essencial entre

esses vários tipos de seres humanos? Volto a afirmar: apenas seu objeto de desejo sexual. As

características assumidas ao longo da vida, como estilo de roupas e cortes de cabelo, são vari-

áveis individuais, construções familiares, sociais e culturais, únicas e singulares. Por isso, a

mulher tem o direito de assumir o papel de gênero que lhe convier, devendo ser respeitada por

isso. E, de forma clara, isso não depende de sua orientação sexual.


31

A partir dos anos 70, esses vários questionamentos sobre sexo, gênero e identida-

de começaram a ser mais explícitos socialmente, os preconceitos começaram a ser combatidos

com mais veemência, as mulheres lésbicas começaram a se questionar por que tinham que ser

taxadas negativamente ou simplesmente excluídas da História que é ensinada. E principal-

mente constataram o fato de que eram discriminadas duplamente: por serem mulheres e por

serem lésbicas.

2.3. O início do movimento LGBT

Um dos grandes responsáveis pelo início deste questionamento a respeito de

identidades foi o Movimento Feminista, uma revolução do século XX que foi fundamental

não só para a liberdade sexual que aos poucos era criada, como também para a conquista dos

direitos das mulheres, de uma posição mais justa dentro da sociedade e da diminuição da

violência física e moral a que eram submetidas normalmente.

Após a segunda guerra mundial, o feminismo sofre a influência de obras como

“Le Deuxième Sexe” (1949; O segundo sexo), da francesa Simone de Beauvoir, e “The Femi-

nine Mystique” (1963; A mística feminina), da americana Betty Friedan. No Reino Unido

destacou-se Germaine Greer, australiana de nascimento, autora de “The Female Eunuch”

(1971; A mulher eunuco), considerado o manifesto mais realista do women's liberation movi-

ment (movimento de libertação da mulher), mundialmente conhecido como women's lib. Nes-

se momento, o que importava mais para as mulheres era descrever sua condição de oprimida

pela cultura masculina, de revelar os mecanismos psicológicos e psicossociais dessa margina-

lização e de projetar estratégias capazes de proporcionar às mulheres uma liberação integral,

que incluísse também o corpo e os desejos. Além disso, contam-se entre as reivindicações do

moderno movimento feminista a interrupção voluntária da gravidez, a radical igualdade nos


32

salários e o acesso a postos de responsabilidade. A partir deste momento, as lésbicas também

ganham forças. O movimento feminista foi o principal responsável pelo início da libertação e

visibilidade das mulheres gays.

A história do movimento das mulheres mostra a presença constante de lesbianas tan-


to nas práticas quanto nas políticas de reivindicações como nas reflexões teóricas.
[...] O feminismo cunhou a categoria gênero, cultural, opondo-se a sexo, biológico, e
assim desfez em parte a noção de essência, de um fundamento intrínseco para os se-
res, que definiria mulheres e homens conferindo-lhes papéis segundo sua natureza.
(NAVARRO-SWAIN, 2000, p.87)

É importante citar também, neste contexto revolucionário, duas datas: 28 de junho

de 1969 e 19 de agosto de 1983. No dia 28 de junho de 1969, um ato de violência foi respon-

sável pela criação da primeira data em comemoração ao orgulho LGBT 14. Nesta data, polici-

ais invadiram, como de costume, o bar gay Stonewall Inn, em Greenwich Village, Nova York

e bateram em vários freqüentadores. Mas dessa vez, eles reagiram. Por quase quatro noites, os

gays se defenderam dos abusos dos policiais na mesma moeda. Um ano após o incidente,

cerca de 10 mil mulheres e homens homossexuais marcharam pelas ruas da cidade pedindo

justiça e pregando o orgulho gay. Foi o início das Paradas do Orgulho LGBT.

Entre os anos de 1969 e 1980, a chamada identidade gay surgiu, nas grandes cidades
brasileiras, juntamente com os primeiros movimentos pelos direitos dos homossexu-
ais. A construção dessa identidade foi um processo gradual, que começou nos anos
50 e 60, mas se estabeleceu na década de 70. Ela aconteceu graças, entre outros fato-
res: ao espaço social conquistado por homossexuais nos anos 60; à difusão de idéias
do movimento gay internacional; e a uma série de mudanças culturais trazidas pela
Revolução Sexual. A partir dela, ativistas homossexuais e diversas feministas alia-
ram-se contra o sexismo e a cultura machista, lançando as bases para a construção de
uma identidade e um movimento homossexual organizado. (SILVA, 2004, p.23)

Já no dia 19 de agosto de 1983, um grupo de mulheres realizou a primeira mani-

festação contra o preconceito às lésbicas. Os donos do Ferro‟s Bar, localizado no centro de

14
A sigla LGBT, que traz as palavras Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros, é utilizada atualmente para identificar todas
as orientações sexuais minoritárias e manifestações de identidades de gênero divergentes do sexo designado no nascimento.
Incialmente, o termo mais comum era GLBT, mas cada vez mais se usa a versão LGBT com a intenção de reforçar o combate
à dupla discriminação de que são alvo muitas mulheres homossexuais (por serem "mulheres" e por serem "homossexuais").
33

São Paulo e tradicionalmente freqüentado por lésbicas, agrediam verbalmente e usavam de

violência policial contra as clientes. Após eles impedirem que elas distribuíssem o boletim

lésbico “ChanacomChana”15 no estabelecimento, as mulheres reuniram, nesta data, ativistas

gays, feministas e parlamentares da época para uma passeata em frente ao bar. O jornal Lam-

pião de Esquina16 chamou o movimento de “nosso pequeno Stonewall Inn”. Atualmente, a

data vem sendo celebrada por alguns grupos lésbicos como o Dia Nacional do Orgulho Lésbi-

co.

Ambas as datas têm muito em comum: ocorreram em dois grandes centros urbanos,
Nova York e São Paulo, em tempos sombrios (no Brasil ainda vivíamos sob a dita-
dura militar), quando a homossexualidade era considerada doença, pecado ou sem-
vergonhice e vítima de intensa repressão. (MARTINHO, 2007, disponível em
<http://www.umoutroolhar.com.br/28%20de%20junho.htm> , acesso em 10 nov.
2007)

A partir dos anos 70, a criação de movimentos organizados incrementou a luta pe-

los direitos e pelo fim das leis que criminalizavam a homossexualidade. A palavra de ordem

passou a ser assumir-se. Melhorias foram conquistadas. Nos EUA, por exemplo, os movimen-

tos forçaram a retirada da classificação de doença da homossexualidade pela Sociedade de

Psiquiatria, conseguiram que dezoito estados anulassem as leis que puniam criminalmente a

sodomia, e que fossem aprovadas leis proibindo a discriminação em locais de trabalho e mo-

radia. Na França, várias revistas voltadas para as lésbicas surgiram nos anos 70: “Désormais”,

“Quand les femmes s’aiment”, “Bulletin des archives lesbienes”, “La grimoire”, “Lesbia”

(NAVARRO-SWAIN, 2000). Em 1978 também foi fundado na Europa o ILGA – Internatio-

nal Lesbian and Gay Association17, uma associação das entidades lesbianas com as entidades

15
. Em 1979, o “LF, Lésbico – Feminista”, lança o jornal “ChanacomChana”, veiculado até 1981. A partir de 1982, o GALF
– Grupo Ação Lésbicas Feministas assume a publicação e a transforma em boletim. (1979-2002..., 2004, disponível em
<www.umoutroolhar.com.br/25anos.htm>, acesso em 10 nov. 2007)
16
Jornal gay vendido no Brasil, de 1978 a 1981. Para mais, ver a tese de Almerindo Simões Jr., disponível em
<http://www.jornalismo.ufsc.br/redealcar/cd4/alternativa/a_simoes_jr.doc> (acesso em 10 out. 2007).
17
O ILGA é uma federação mundial que congrega grupos locais e nacionais dedicados à promoção e defesa dos direitos os
homossexuais, bissexuais e transgêneros. Funcionou por um tempo como órgão consultivo da ONU neste sentido. Ver
<http://www.ilga.org>.
34

gays masculinas que atualmente conta com mais de 600 organizações em cerca de 90 países

do mundo todo. E foi no mesmo ano que Gilbert Baker cria um dos maiores símbolos do ati-

vismo homossexual: a bandeira do arco-íris. Inicialmente com oito cores18, a bandeira gay

(rainbow flag) foi apresentada em 25 de junho de 1978, na “San Francisco Gay Freedon Day

Parade”, sendo carregada por 30 voluntários. Em 1979, ela já possuía somente seis cores e,

assim, ficou conhecida no mundo todo rapidamente.

No Brasil, os anos 70 também foram considerados a “Década de Ouro” para o

moderno movimento de afirmação homossexual. Além da criação do jornal “O Lampião”, em

1978, dos grupos SOMOS – Grupo de Afirmação Homossexual, em 1979, e do “Grupo Gay

da Bahia”, em 1980, foi criado o primeiro movimento lésbico organizado, o “Grupo LF - Lés-

bico-Feminista”.

A organização lésbica brasileira se inicia no começo de 1979 quando algumas mu-


lheres ingressam no primeiro grupo homossexual do país, o SOMOS, formando um
subgrupo que recebeu várias denominações (facção lésbica-feminista, subgrupo lés-
bico-feminista, ação lésbica-feminista) até fixar-se, em sua breve vida (de 1979 a
meados de 1981) com o nome de Grupo Lésbico-Feminista (LF). Este grupo será pi-
oneiro no tratamento da questão homossexual, dentro do Movimento Feminista, e da
questão da mulher, dentro do Movimento Homossexual, bem como na elaboração da
primeira publicação lésbica do país, intitulada ChanacomChana (MARTINHO,
2004, disponível em <www.umoutroolhar.com.br/25anos.htm>, acesso em 10 nov.
2007)

Era apenas o começo da luta pelos direitos, mas a palavra orgulho começava a fi-

gurar nos discursos dos homossexuais. Como uma das primeiras conquistas formais, fica o

fim da classificação de homossexualidade como doença no Brasil, em 1985, devido a um a-

baixo assinado com mais de 16 mil assinaturas que o Grupo Gay da Bahia, liderados por Luiz

Mott, conseguiu reunir. O Conselho Federal de Medicina não teve como negar a lista de assi-

naturas ao ler nomes como Fernando Henrique Cardoso, Ulysses Guimarães e Mário Covas

entre elas.
18
As cores eram: rosa (sexualidade), vermelho (vida), laranja (poder), amarelo (luz), verde (natureza), turquesa (magia), azul
(serenidade) e violeta (espírito), segundo o criador Baker. (disponível no site <http://en.wikipedia.org>, acesso em 17 nov.
2007)
35

Ao contrário do que se imaginava com a organização do movimento homossexual,

na década seguinte, o que ficou marcado foram os atos de preconceito e homofobia desmedi-

dos. Tudo porque um determinado vírus iria aparecer deixando uma cicatriz profunda na co-

munidade LGBT.

A revolução sexual dos anos 70 trouxe como conseqüência, além da liberdade, a

irresponsabilidade sexual. Muitos homossexuais masculinos se descuidaram ou simplesmente

ignoraram a prevenção às doenças sexualmente transmissíveis, não havia campanhas de cons-

cientização e, para piorar, a Igreja Católica ia contra o uso de preservativos. Da mesma forma,

as mulheres lésbicas não tinham onde se informar sobre as formas de prevenção nas suas rela-

ções19. Ou seja, o vírus da AIDS (SIDA – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) se proli-

ferou tão rapidamente entre os homossexuais, principalmente os masculinos, que de forma

impensada, mas providencial para os moralistas, a doença foi considerada a “peste gay”. Al-

guns homens célebres, como Freddie Mercury, Lauro Corona e Rock Hudson ficaram doentes

e morreram em decorrência do vírus HIV20 nos anos 80. Outros, que pegaram a doença nesta

década, vieram a falecer nos anos 90, como Cazuza, Caio Fernando Abreu e Renato Russo21.

Isso trouxe à tona um fato que eles preferiam manter em segredo por eles, sua orientação se-

xual. Surgia uma nova e maligna forma de “identificar” os homens que faziam sexo com ou-

tros homens.

Não por acaso, a epidemia da AIDS foi imediatamente associada à peste. No decor-
rer da História, o imaginário coletivo sempre encarou as doenças de massa como
castigos impostos. Tal idéia veio cair como uma luva, no caso da AIDS. Seu advento
propiciou, na contemporaneidade, esse raro momento de peste que derruba as más-
caras. Os fenômenos sociais aparentemente novos que a têm acompanhado constitu-
em, na verdade, apenas a revelação de algo que sempre esteve lá, de modo latente,

19
Infelizmente, a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis entre as lésbicas é algo pouco abordado pela mídia ou
pela medicina. Os grupos lesbianos cumprem esse papel informativo. A rede de informações “Um Outro Olhar”, por exem-
plo, desde 1995 desenvolve campanhas de prevenção de DST/AIDS para as mulheres, lésbicas ou não. Ver
<http://www.umoutroolhar.com.br/cartilha.htm>.
20
Vírus da Imonudeficiência Humana ou, em inglês, Human Imunnedeficiency Virus.
21
Rock Hudson, ator norte-americano, faleceu em 1985. Freddie Mercury, vocalista do Queen, e Lauro Corona, ator, morre-
ram em 1989. Cazuza, cantor, em 1991, Caio Fernando Abreu, jornalista e escritor, e Renato Russo, cantor, em 1996. A
maioria deles admitiu ter o vírus da AIDS pouco antes de falecerem.
36

mas rigorosamente camuflado. A AIDS nada criou. Ela está exacerbando elementos
que as convenções sociomorais não deixavam aflorar à luz do dia. In peste veritas:
na peste, o momento da verdade. (TREVISAN, 2000, p.436)

A forma como a AIDS foi associada à homossexualidade masculina serviu para

reforçar os sistemas morais e políticos, como o núcleo familiar-monogâmico, ameaçado nas

sociedades consideradas permissivas (TREVISAN, 2000). No Ocidente, ela era considerara

uma doença exclusiva dos grupos de risco. Esses grupos de risco seriam exatamente as pesso-

as que usavam drogas injetáveis ou os homossexuais, que, segundo o senso comum estabele-

cido, teriam uma vida sexual desregrada e inconseqüente, com vários parceiros promíscuos.

Mais uma vez os preconceituosos de plantão colocaram numa mesma categoria as delinqüên-

cias, o uso de drogas pesadas e a prática homossexual. Não adiantava o fato de ter sido retira-

do dos anais médicos como doença, a homossexualidade voltara a ter este estigma.

A visibilidade dos homossexuais passou a ser uma coisa negativa, pois, na maioria

das vezes, eles eram associados a pessoas esqueléticas, com manchas pelo corpo 22, que deve-

riam ser banidos da sociedade, pois continham um vírus mortal. A desinformação fez com que

o preconceito aumentasse desproporcionalmente, já que, muitas vezes, as pessoas achavam

que o HIV era transmitido pelo beijo, pelo abraço, por um simples carinho. O engano fez com

que muitos homens e mulheres morressem sozinhos, abandonados, sofrendo em silêncio, com

as dores das doenças que contraíam em decorrência da AIDS.

Acredito também que muito do pânico (sexual?) frente à AIDS pode estar relaciona-
do com antigas culpas não resolvidas que, através da condenação do outro (o sujo),
buscam purificar o acusador, num efeito de catarse. Mas a condenação, sejam quais
forem seus motivos, tem efeitos de longo alcance. O terrorismo, usado como eficien-
tíssimo instrumento de controle, irá atingir as gerações futuras muito mais do que as
atuais, forjando-lhes uma imagem basicamente negativa da homossexualidade e, por
extensão, instaurando novas fobias sexuais. (TREVISAN, 2000, p. 439)

22
O sarcoma de Kaposi comumente aparece como uma mancha cor-de-rosa, vermelha ou púrpura, redonda ou oval.
37

Como define muito bem Trevisan em suas palavras, o terrorismo instaurado e in-

centivado principalmente pela classe médica da época, fez com que muitos jovens crescessem

nos anos 80 acreditando que bater em homossexuais não era crime, era “prevenção”. A vio-

lência era agora, não só da polícia, como nos anos anteriores, era também dos amigos do co-

légio, dos vizinhos, de pessoas que passavam nas ruas e simplesmente atacavam um gay an-

dando à noite.

O cinema também não ajudava. Vários foram os filmes que incentivavam a vio-

lência contra os gays, e nos quais palavras como fag, faggot, queer eram usadas igual água

como ofensas. Em 1980, por exemplo, o filme “Parceiros da Noite” (“Cruising”) com Al Pa-

cino, trazia um policial que se infiltrava nos guetos e bares gays para descobrir um assassino

serial de homossexuais. O filme, que mostrava abertamente e com violência o assassinato de

vários gays, causou uma série de protestos do movimento LGBT. Curiosamente, dez anos

antes, o diretor do filme William Friedkin (de “O Exorcista”), havia feito o sensível “Boys in

the Band” (1970), sobre um grupo de amigos gays que preparam uma festa de aniversário.

Segundo o documentário “The Celluloid Closet” (1995), esse foi um dos primeiros filmes em

que nenhum homossexual era vítima, vilão ou morria no final.

Em 1985, exatamente para impedir que a imagem do homossexual continuasse a

ser divulgada de forma pejorativa, foi criada a Gays & Lasbians Alliance Against Defamation

(GLAAD)23. Seu objetivo principal era monitorar a mídia em sua forma de abordagem das

questões homossexuais e coibir qualquer tipo de difamação em filmes, jornais, revistas, pro-

gramas de TV, sites ou outros meios de comunicação. A GLAAD também foi responsável

pela criação de cartilhas para que os jornalistas, produtores e escritores aprendessem a usar a

imagem de gays e lésbicas com sabedoria e através de retratos mais reais.

23
Para mais, ver <http://www.glaad.org/>, acesso em 20 nov. 2007.
38

Em meio a esse caos, que trouxe muita tristeza, violência e medo para todos, o

movimento lésbico tenta, a durar penas, manter seu campo de ação através da ação mulheres

como Míriam Botassi, Rosely Roth e Regina Stella Moreira Pires, entre muitas outras. Elas

mantiveram-se engajadas como nunca no movimento pelos direitos, respeito e visibilidade das

lésbicas. Como afirma a ativista Soraya Menezes no documentário “Lésbicas no Brasil”

(2004), de Maria Angélica Lemos, a criação de movimentos lésbico-feministas só foi possível

porque as primeiras lésbicas brasileiras disseram abertamente “eu amo uma mulher” e não

ficaram somente nisso, também se organizaram. Míriam Martinho, uma das fundadora do

movimento lésbico brasileiro, em artigo publicado em 2006 no site “Um Outro Olhar”, escla-

rece que após a transformação do LF – “Lésbico Feminista” em GALF – “Grupo de Ação

Lésbico Feminista”, em 1981, este passou a ser o único movimento de mulheres exclusiva-

mente lésbicas do país nos anos 80. No entanto, muitas lésbicas organizadas migraram para o

Movimento Feminista, que manteve em sua pauta momentos de discussão política sobre a

lesbianidade brasileira. Em 1989, começam a surgir outros movimentos lesbianos, como a

Rede de Informações Um Outro Olhar.

No resto do mundo, os movimentos homossexuais se mobilizaram, como no Bra-

sil, para divulgar a prevenção contra a AIDS e para combater o preconceito. Apesar de não ter

havido mudanças significativas nesta década, foi a partir da luta contra a AIDS que os movi-

mentos se tornaram mais fortes e que as Paradas do Orgulho Lésbico, Gay, Bissexual e

Transgêneros começaram a ganhar adeptos em todos os países.

2.4. O orgulho das mulheres que amam mulheres

Os anos 90 trouxeram uma palavra de ordem: orgulho. As paradas conquistaram

as ruas do mundo todo, celebrando o dia 28 de junho como o Dia Internacional do Orgulho
39

LGBT. Da mesma forma, surgia no Brasil um termo que iria ser fundamental para transformar

os homossexuais em um mercado consumidor desejado pela sociedade: a sigla GLS. Trazendo

além das palavras “Gays” e “Lésbicas”, a nova identificação Simpatizantes, acrescentava um

ar moderno, despreocupado e abrangente à comunidade homossexual.

A genialidade dessa saída foi introduzir num contexto brasileiro, a idéia americana
de gay friendly, de modo simples e adequado ao nosso jeitinho. Ou seja, uma apro-
priação da popularíssima sigla que qualificava certos modelos de carro nas categori-
as GL (Gran Luxo) e GLS (Gran Luxo Super), bem ao gosto da população média e
de teor profundamente contemporâneo – o que facilitou a disseminação e implanta-
ção do conceito. (TREVISAN, 2000, p. 376)

Nesse sentido, foi estabelecido um critério que permitia que pessoas não necessa-

riamente homossexuais pudessem passear por ambientes gays e lésbicos sem medo de repre-

sálias. Era uma forma de, ao mesmo tempo, democratizar o espaço denominado território gay

e, ao mesmo tempo e negativamente, permitir que as “enrustidas” mantivessem sua condição

de invisibilidade sem que parassem de freqüentar o gueto. (TREVISAN, 2000) A sigla foi

importante também por ter aumentado a divulgação de produções culturais voltadas e feitas

por homossexuais.

O caso mais exemplar foi o Festival Mix Brasil da Diversidade Sexual, um amplo
painel de filmes que investigam expressões marginais da sexualidade, cuja primeira
edição aconteceu em 1993. [...] O que alavancou o Mix Brasil foi o fato de ter inau-
gurado o primeiro site GLS brasileiro na internet, em 1994, garantindo-lhe prestígio
como evento cultural de ponta, que tendia para um underground não apenas glamou-
roso, mas de grande apelo na mídia. (TREVISAN, 2000, p. 376 – 378)

Dentro do Mix Brasil, foi criada a revista eletrônica Cio, voltada para as lésbicas,

veiculada até hoje24. Foram lançados também vários jornais e revistas voltadas para o público

homossexual. Entre elas, a carioca Sui Generes, sobre comportamento, e a paulista G Magazi-

ne, que mostrava em suas páginas homens famosos nus e, com isso, se tornou uma campeã de

24
Ver <http://mixbrasil.uol.com.br/mp/2.shtml>, com destaque para os artigos da cantora e ativista lésbica Vange Leonel.
40

vendas. Da mesma forma, surgiram a primeira livraria exclusivamente gay do pais, a paulista

Futuro Infinito e a Edições GLS, que publicavam livros de ficção e ensaios sobre a homosse-

xualidade. (TREVISAN, 2000)

Ao mesmo tempo, o governo brasileiro começava a enxergar a necessidade mais

efetiva de uma real campanha de prevenção contra a AIDS, e, através do Ministério da Saúde

criou, em 1992, o Programa Nacional de Prevenção e Controle da AIDS. Aos poucos, o avan-

ço nas tecnologias em pesquisas científicas e médicas em todo o mundo fizeram com que o

foco saísse dos grupos homossexuais para as mulheres e homens heterossexuais, pessoas que

contraíam cada vez mais o vírus HIV.

Desmoronava assim a fantasia da peste guei. Fenômeno previsível e óbvio, o vírus


não manifestava predileções sexuais, atacando indistintamente homos e heteros – pa-
ra desencanto dos arautos da homofobia. A generalização da epidemia assustou mui-
tas áreas até então consideradas imunes e certamente as levou a se integrar com a-
finco numa luta que passou a ser de todos e não mais dos chamados grupos de risco.
[...] Ficou claro que a humanidade era um único e imenso grupo de risco. (TREVI-
SAN, 2000, p. 456)

O Brasil tornou-se um exemplo no mundo no sentido de dar uma melhor qualida-

de de vida aos portadores da AIDS. Desde 1994, os coquetéis com drogas anti-HIV passaram

a ser produzido no país quase que em sua totalidade e distribuído gratuitamente. Aos poucos,

o estigma visual da doença foi desaparecendo, os aidéticos passaram a viver mais tempo e em

melhores condições de saúde do que na década anterior. E as campanhas de prevenção come-

çaram a circular com mais freqüência na mídia nacional. Foi nesse momento que os movi-

mentos homossexuais ganharam mais força no mundo.

Durante os anos 1990, uma série de fatores – como o formato de colaboração adota-
do entre Estado e sociedade civil na luta contra a Aids, a visibilidade que a própria
epidemia trouxe ao tema das (homo)sexualidades e a expansão de um mercado seg-
mentado voltado ao público GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) – colaboraram pa-
ra o reflorescimento das iniciativas militantes. Houve um aumento do número de
grupos e organizações e a expansão do movimento por todos os estados do país. Re-
gistra-se uma diversificação de formatos institucionais. (FACCHINI, 2005)
41

Além disso, foi neste contexto que os movimentos lésbicos brasileiros criaram

mais grupos e mais encontros. Longe ainda de ser o ideal, esses grupos pequenos e com pou-

cas mulheres levantaram o tema da visibilidade como nunca em discussões políticas, ideoló-

gicas e sociais. E, no dia 29 de agosto de 1996 foi realizado o primeiro Seminário Nacional de

Lésbicas (SENALE), no Rio de Janeiro. Em homenagem ao I SENALE, as lésbicas partici-

pantes do evento criaram uma nova data nacional para se homenagear a mulher lésbica. O Dia

Nacional da Visibilidade e do Orgulho Lésbico, desde então, passou a ser o 29 de Agosto.

Efetivamente, a data só começou a ser comemorada sete anos depois, no V SENALE, em

2003, com participação de vários grupos do país, como o Mo.Le.Ca., de Campinas, o Nuan-

ces, de Porto Alegre e o Além de Minas, de Belo Horizonte.Infelizmente, a comemoração do

Dia Nacional da Visibilidade e Orgulho Lésbico ainda é pouco lembrada pelo país.

As paradas do Orgulho LGBT tiveram, da mesma forma, seu maior crescimento

proporcional nesta década, sendo que de após reunir apenas 02 mil pessoas em 1997 e 07 mil

em 98, em junho de 1999 a 3ª Parada LGBT levou para as avenidas centrais de São Paulo

mais de 30 mil pessoas. (TREVISAN, 2000) Era um lugar não só de comemoração, como

também de muita reivindicação política, de respeito e de visibilidade lésbica e gay.

Na esteira das grandes Paradas de São Paulo, que continuaram num crescendo a ca-
da ano, as ativistas lésbicas começam também a movimentar-se para conseguir mar-
car presença. A Rede de Informação Um Outro Olhar inicia esse processo em 1999
se postando no início das Paradas, quando ainda era possível fazer isso, carregando
faixas relativas à liberdade de expressão sexual. Em 2001, faz a Parada numa truck,
tendo em vista a necessidade de distribuir material, no que foi imitada por um outro
veículo (um trenzinho) de um outro grupo de lésbicas. (MARTINHO, 2006, dispo-
nível em <http://www.umoutroolhar.com.br/símbolos_vismal.htm> acesso em 10
nov. 2007)
42

Em Juiz de Fora, o movimento ganha também suas forças e expressões. Em agos-

to de 1998, aproveitando as comemorações do Miss Brasil Gay25, o casal formado pelo fun-

cionário público Marco Trajano e pelo publicitário Oswaldo Braga reuniu personalidades do

município como o psicanalista e psicólogo José Eduardo Moreira Amorim, o advogado Mar-

cos Amaral e representantes do Programa DST/Aids na Câmara dos Vereadores e promove-

ram a primeira discussão sobre a cidadania e o direito dos homossexuais. Dois anos depois,

foi aprovada também na cidade mineira, uma das primeiras leis nacionais que garantia a mu-

lheres e homens homossexuais, transexuais e bissexuais o direito de manifestar carinho em

público, com pena prevista para quem coibisse ou discriminasse beijos e carinhos entre o ca-

sal. A lei número 9.791, de 12 de maio de 200026, chamada Lei Rosa, além de ter sido pionei-

ra, permitiu que a cidade entrasse de vez no movimento LGBT. No dia 28 de junho de 2000, a

partir de uma sugestão de membros do Ministério da Saúde, Marco Trajano e Oswaldo Braga

fundaram a organização não-governamental MGM – Movimento Gay de Minas, que até hoje

promove o “Juiz de Fora Rainbow Fest” e a Parada do Orgulho GLBT da cidade27.

A virada do século e as paradas do orgulho e da visibilidade trouxeram novos o-

lhos sobre o poder aquisitivo das lésbicas e dos gays. No início da década de 2000, várias fo-

ram as leis que garantiram o direito dos homossexuais no mundo todo. A união civil entre

casais do mesmo sexo passou a ser permitida em países como o Canadá e a homofobia foi

considerada crime na maioria dos continentes, numa corrente bem contrária a do início dos

tempos, onde o criminoso era o homossexual.

25
O Miss Brasil Gay é um concurso criado em 1977, no qual homens transformistas concorrem como misses. O concurso,
que acontece há 31 anos em Juiz de Fora, foi criado como uma brincadeira carnavalesca. Não são aceitas travestis ou “silico-
nizadas”, conforme as regras do concurso. (disponível em <http://www.acessa.com/zonapink/historia.apl>, acesso em 17 nov.
2007)
26
O texto completo da lei pode ser encontrado no site <http://www.mgm.org.br/portal/>.
27
Segundo dados da Polícia Militar, a 5ª Parada do Orgulho GLBT de Juiz de Fora reuniu em 2007 mais de 120 mil pessoas.
Apesar de acontecer há cinco anos, pela primeira vez um trio exclusivo de lésbicas participou da parada. Além disso, a ativis-
ta do MGM Márcia Oliveira foi escolhida pelos homens do grupo a Rainha da Parada, representando tanto a lesbianidade
quanto a raça negra.
43

No Brasil, uma das mais significativas decisões da justiça foi conquistada após a

morte de Cássia Eller. A cantora brasileira, considerada uma das maiores intérpretes do país,

era assumidamente homossexual, e tinha um relacionamento de 14 anos com Maria Eugênia

Vieira Martins. As duas se tornaram mães de Francisco, filho de Cássia. Em 29 de dezembro

de 2001, em decorrência de três ataques cardíaco-respiratórios, Cássia Eller morreu aos 39

anos de idade.

Após um período turbulento, de grande repercussão na imprensa e de movimentos

populares28, a justiça concedeu a guarda definitiva de Chicão, então com 08 anos, para a com-

panheira Eugênia. Foi um caso inédito, que abriu jurisprudência para que outros parecidos

saíssem vitoriosos. Na época, apesar de Cássia Eller não ter deixado um testamento oficial, as

muitas entrevistas em jornais, revistas e televisão serviram como prova do direito de materni-

dade de Eugênia sobre Francisco.

Em entrevista à revista Marie Claire, de outubro de 2001, Cássia, em tom profético,


dizia que gostaria de se casar formalmente com Eugênia ou de pelo menos ter um
documento legal que assegurasse à companheira a posse dos bens e a guarda do me-
nino: „No caso de separação ou de morte, a Eugênia não tem nenhum documento
que prove que estamos casadas há 14 anos‟, disse. „É claro que, se me acontecer al-
guma coisa, meus bens têm que ir para ela e meu filho. E a guarda do meu filho tem
que ser dela, é ela a mãe. (BELO e LANDI, 2005, p. 37)

Casos como esse só foram possíveis porque se criou mais espaço na mídia para o

assunto “homossexualidade”. Ao mesmo tempo, no mundo todo, milhares de sites na internet

foram surgindo, com informações vitais para o conhecimento, tanto da causa quanto das ca-

racterísticas do universo LGBT. Isso aumentou, e muito, a chance do homossexual falar de

forma sincera sobre ele mesmo em um espaço de livre acesso a todos.

No III Fórum Social Mundial, que aconteceu em Porto Alegre em janeiro de 2003,

nascia a Liga Brasileira de Lésbicas – LBL, durante a Oficina de Visibilidade Lésbica, que

28
Um desses movimentos foi o Projeto Experimental Teoria e Prática pela Emancipação Feminina – EMANCIPAR, da
Universidade Federal de Juiz de Fora, coordenado pela Professora Dr.ª Cláudia Regina Lahni. Na época da disputa judicial,
reuniu um abaixo assinado com mais de 300 assinaturas a favor da adoção de Chicão e enviou para os advogados da cantora.
44

contou com a participação de dezenas de mulheres homossexuais e bissexuais de vários esta-

dos do Brasil e de alguns países da América Latina. Já no V SENALE – Seminário Nacional

de Lésbicas, que aconteceu em junho do mesmo ano em São Paulo, aconteceram as primeiras

reuniões e plenárias da LBL, que significou a reunião de vários grupos do país que tinham o

mesmo objetivo. Na ocasião, junho de 2003, foi realizada a I Caminhada Lésbica do Brasil,

em São Paulo29.

Em 2005, como resultado de uma parceria entre o Governo Federal e sociedade

civil organizada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, foi lançado o “Programa de

Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e de Promoção da Cidadania Homosse-

xual” 30, que prevê uma série de ações nas áreas da saúde, segurança pública, trabalho, educa-

ção e cidadania. Até hoje, as entidades homossexuais e o Programa Nacional DST/AIDS têm

trabalhado pela implementação do programa no âmbito do Ministério da Saúde. Ao mesmo

tempo, as paradas do orgulho LGBT se expandiam para diversas cidades do país e do mundo,

e conseguiam, a cada edição, um número maior de adeptos. Em 2007, segundo dados dos or-

ganizadores, a XI Parada do Orgulho GLBT de São Paulo reuniu na Avenida Paulista 3,5 mi-

lhões de pessoas no dia 10 de junho de 2007. Os dados também apontam esta como sendo a

maior parada do orgulho já realizada no mundo31.

No século XXI, a mídia começou a mostrar ao mundo as novas configurações de

família, com a homoparentalidade sendo cada dia mais aceita, e com personagens lésbicas

mais verdadeiras sendo inseridas em novelas, filmes, programas de TV e séries norte-

americanas. Nesse contexto, no qual pela primeira vez o gay saía da posição de vítima para se

tornar um dos principais públicos alvo do mercado de consumo, que encontrou nos homosse-

xuais uma oportunidade de vender mais. Segundo pesquisas, eram neles que se concentravam

29
Sobre a Liga Brasileira de Lésbicas e os grupos atuais, ver o documentário “Lésbicas no Brasil” (2004), de Maria Angélica
Lemos, e o vídeo “A Liga Brasileira de Lésbicas”, da mesma diretora, que está disponível no site
<http://br.youtube.com/watch?v=rEPUjKPhp1g>, (acesso em 21 de nov. de 2007)
30
O texto completo do Programa Brasil Sem Homofobia está disponível no site <http://www.aids.gov.br/>, acesso em 21
nov. 2007.
31
Disponível no site <http://www.paradasp.org.br/parada2007/> acesso em 20 nov. 2007
45

a maior renda salarial. Afinal, os casais homossexuais masculinos do novo século têm ótimos

empregos e ganham muito bem, não tendo uma grande família para sustentar. Além disso, são

taxados como pessoas de gosto mais refinado e exigente. Mas isso não é exatamente a reali-

dade das mulheres.

As lésbicas sofrem duplo preconceito, por exemplo, tanto por serem homossexuais
quanto por serem mulheres. A renda dos casais de lésbicas também tende a ser me-
nor porque mulheres geralmente ganham menos que homens e muitas lésbicas pos-
suem filhos pequenos. [...] Por todas essas razões o mercado para lésbicas é diferente
do mercado para gays. Característica principal do mercado homossexual (sobretudo
o masculino) é que pelo fato da maioria não ter filhos a renda disponível no final do
mês para gastar com artigos considerados supérfluos é muito maior. Assim, estes ca-
sais poderiam viajar mais, ou gastar com artigos de luxo, por exemplo. O nível de
exigência deste público também é muito maior, assim como propaganda boca-a-boca
dentro da comunidade homossexual. (NUNAN, 2003)

A questão é que, de certa forma, a sociedade capitalista aproveitou dessa nova

forma de se enxergar os homossexuais, como alvo de consumo, para expô-los mais. Progra-

mas de TV, comerciais, restaurantes, eventos específicos, entre outros produtos culturais e

comerciais foram lançados para vender mais dentro do universo LGBT. Da mesma maneira, a

chegada do novo século criava uma nova forma de estereótipo para a mulher homossexual.

Foi a época do Lesbian Chic32 no Brasil, estava em voga gostar de mulher.

A mesma sociedade machista que as acusava de sapatões por reivindicarem direitos


iguais para as mulheres acabou, 26 anos depois, transformando as lésbicas em feti-
che da mídia e tirando as feministas e o feminismo da pauta das redações. Prova de
que não vale a pena fazer certas barganhas. Principalmente do início do milênio para
cá, à parte toda a evidência trazida pelas Paradas do Orgulho LGBT, começaram a
surgir personagens lésbicas em novelas, seriados, atrizes e cantoras dando selinhos
em amigas, cantoras hétero se fazendo passar por lésbicas, como jogada de marke-
ting, até chegarmos recentemente à novelinha lésbica que é o seriado americano The
L Word, onde sobram cenas tórridas de sexo entre mulheres em plena TV. Quem di-
ria, não? (MARTINHO, 2006, <www.umoutroolhar.com.br/>, acesso em 10 nov.
2007)

32
O termo Lesbian Chic foi criado em 1993, pela revista americana “New York Magazine” que abordava o tema e trazia a
cantora lésbica K.D. Lang na capa. Lesbian Chic representava as lésbicas super femininas, ou lésbicas de batom (lipstick
lesbians)
46

Com o aumento exposição de mulheres lésbicas na mídia, o assédio dos homens

que vêem na relação entre duas mulheres uma fantasia sexual trouxe também um novo tipo de

preconceito. Muitos comentários do senso comum dizem que a maior aceitação da imagem

das lésbicas acontece porque elas habitam o imaginário masculino há milênios. Ou não é fato

que a mídia, principalmente através dos filmes eróticos e pornográficos, vende a imagem da

mulher lésbica feminina, sensual e provocadora para os homens?

A presença de personagens lésbicas ou que passam por um momento de curiosida-


de/confusão sobre sua sexualidade já virou algo tão comum na TV e no cinema que
comentar a respeito é quase como chover no molhado. Na TV brasileira, as lésbicas
surgiram timidamente na novela “Vale Tudo”, há mais de 10 anos atrás, e tiveram
sua melhor representação no casal Jennifer e Eleonora, que trouxeram a público
questões como adoção e parceria civil. Na TV européia ou americana, contar as per-
sonagens sáficas seria bobagem. Mais ousados e provocadores do que seus colegas
tupiniquins, os produtores norte-americanos e europeus sacaram de cara o potencial
das lésbicas na TV: ao mesmo tempo que trazem a audiência do público GL, elas a-
tendiam às fantasias masculinas e das hetero curiosas, acrescentado ao horário nobre
um quê de sensualidade e desejo provocantes porém inócuos. (LÉSBICAS NA
TV..., 2007, disponível em <http://labris.org/monta.php?idmenu=17>, acesso em 17
nov. 2007)

Nesse momento, o questionamento que se faz é: qual é a imagem da lésbica no sé-

culo XXI? Após tantos anos de opressão à homossexualidade, será que finalmente a visibili-

dade é algo possível de fato? As leis, as paradas, o mercado LGBT, a quantidade de informa-

ções disponíveis sobre o assunto, será que isso tudo indica um novo tempo para a mulher lés-

bica?

A 'lesbian chic' agora está na moda, ou seja, a mídia está dizendo à sociedade que
essa mulher é legal. É legítima. (Claro que se está de olho em uma fatia de mercado
promissora) [...] Se por um lado isso é negativo, por estigmatizar os outros modelos
de comportamento de lésbicas, por outro ajuda a proporcionar a visibilidade de mu-
lheres que, embora obedeçam, na aparência, os critérios de gênero aceitos social-
mente, como maneira de se vestir e comportar (provavelmente sentando de perni-
nhas fechadinhas), em suas relações afetivo-sexuais desobedecem totalmente estes
padrões. São mulheres que não apenas fazem sexo com outras mulheres, mas, o que
é muito mais desconcertante para a sociedade hetero-patriarcal, que não precisam de
homens que as "protejam" que abram seus potes de picles e troquem suas lâmpadas.
Que falem por elas e as sustentem, assim como às suas proles.Enfim, a partir da a-
ceitação deste modelo, o imaginário social pode ser trabalhado para compreender e
legitimar as lésbicas de maneira geral. (FACCO, 2004, disponível em
47

<http://mixbrasil.uol.com.br/cultura/entrevis/entrev/carioca/carioca.asp>, acesso em
20 nov. 2007)

O mais importante disso tudo é tentar entender que, no mundo atual e mais do que

nunca, a mulher está conquistando o direito de ser mulher, de se mostrar como mulher. E,

bem da verdade, assumir-se lésbica é assumir-se mulher acima de tudo. Não significa querer

ser homem. Significa querer ser mulher em toda sua essência, sem se preocupar com os pa-

drões de estilo, vestuário, comportamento. É estar segura do que se quer, e ter a liberdade de

conquistar, o respeito para seguir seu desejo e o prazer de aproveitar sua vida do jeito que

quiser. Muitas vezes a mulher lésbica usa a postura masculina para ser mais bem aceita na

sociedade, para que não sofra a dupla discriminação de ser mulher e de ser lésbica. Porque

sendo forte, sendo como os homens, não há quem se meta com ela. Ou então, usa da sensuali-

dade para que, sendo atraente, não seja alvo de discriminação. Mas até que ponto essas carac-

terizações não são máscaras usadas para tentar achar um lugar na sociedade?

A presença da lésbica na mídia e a existência de um mercado consumidor no sécu-

lo XXI que seja voltado para ela podem significar uma ajuda para que fim dos antigos pre-

conceitos seja real. E a quebra dos estereótipos, a re-significação de termos pejorativos, a ga-

rantia através de leis que a violência sexual será punida, juntamente com a conquista da liber-

dade e do respeito, podem permitir que a mulher se valorize como mulher, se mostre mais,

siga seus próprios gostos, entenda seu estilo, se conheça melhor. A visibilidade traz visibili-

dade.

E quando uma lésbica se vê representada em diversas identidades de forma veros-

símil, realista e honesta, ela perde o medo de se mostrar, de ser ela mesma.

Numa época em que uma imagem vale mais que mil bla-bla-blás, a homossexuali-
dade feminina ganha espaço estampando as telas de cinema e TV. [...] Na TV, a sé-
rie “The L Word” (também produzida por lésbicas) chega a sua quarta temporada (a-
qui no Brasil assistimos atualmente a terceira). No âmbito da produção nacional de
massa, duas novelas globais tiveram, nos últimos anos, casais de garotas em seus e-
lencos. Uma nova série brasileira da HBO também vai contar com um casal de lés-
48

bicas maduras no enredo. (LEONEL, 2007, disponível no site <


http://mixbrasil.uol.com.br/mp/upload/noticia/2_164_62389.shtml>, acesso em 20
nov. 2007)

Com essa imagem lesbiana sendo estabelecida nos anos 2000, é importante, antes de

qualquer coisa, conhecer um pouco da história das séries de TV norte-americanas. Assim,

pode-se entender a importância da série “The L Word” para a identidade da mulher lésbica

contemporânea, para o movimento político das lesbianas, para as representações sociais e para

o imaginário coletivo do novo século.


49

NARRATOR: "About women and the women who love them" The
L Word is sure to make television history, and it's been a long time
coming. In 1991, TV saw its first lesbian kiss on L.A. Law, shortly
after, CJ, the bisexual lawyer, saw the door. A few years later, Ro-
seanne was kissed, and even Party of Five's very own good girl
got confused. But even the smallest same-sex smooches have been
cause enough for uproar and fallout. But in recent years, with the
success of shows like Queer As Folk, Will & Grace and Queer Eye
For The Straight Guy, America has proven it's ready to experi-
ment... or is it?

GUINEVERE TURNER: I really don't understand where this trend


is coming from!

JENNIFER BEALS: I think it's clear that things are changing...

ERIN DANIELS: I'd like to believe that America is becoming more


open...

GUINEVERE TURNER: It's really hard to believe but it may be


true...

ROSE TROCHE: QAF is SO responsible for making the show ever


hit the air! If it wasn't for that show, the show wouldn't go on first.

ERIN DANIELS: America's been exposed more and more, and


realizing that...guess what?! Who we sleep with doesn't define who
we are.

ERIC MABIUS: It's the same as watching any other hour-long ex-
cept that there are circumstances that we're not used to seeing on
television. To that extent, it is groundbreaking.
(THE L WORD DEFINED, 2004)

NARRATOR: "Sobre as mulheres e as mulheres que as amam"


The L Word com certeza fará história na Televisão, ainda mais
após um longo caminho percorrido. Em 1991, a TV viu seu pri-
meiro beijo lésbico em L.A. Law, pouco depois, a advogada bis-
sexual viu a rua. Alguns anos mais tarde, Roseanne beijou e mes-
mo a garota de “Party of Five” se viu confusa a respeito disso.
Mas mesmo as pequenas aproximações do mesmo sexo causaram
muita controvérsia e confusão. Somente nos anos recentes, com o
sucesso de séries como “Queer as Folk”, “Will & Grace” e “Que-
er Eye for the Straight Guy”, a América provou que estava pronta
para experimentar... será?

GUINEVERE TURNER: Eu realmente não entendo de onde essa


tendência esta vindo!

JENNIFER BEALS: Eu acho que está claro que as coisas estão


mudando...

ERIN DANIELS: Eu prefiro acreditar que a América está se tor-


nando mais aberta...

GUINEVERE TURNER: É realmente difícil de acreditar, mas po-


de ser verdade...

ROSE TROCHE: Queer As Folk é tão responsábel por fazer essa


série estourar no ar! Se não fosse essa série, The L Word não iria
adiante.

ERIN DANIELS: A América está sendo mais e mais exposta, e


percebendo que...adivinhe?! Com quem dormimos não define
quem nós somos.
(THE L WORD DEFINED, 2004)
50

3. AS SÉRIES DE TV NORTE-AMERICANAS

Através de um breve histórico das séries norte-americanas, tentarei mostrar os

porquês deste gênero de ficção ter ganhado tanto espaço, projeção de mercado e até cursos

especializados no Brasil e no mundo.

Uma feiticeira que torce o nariz e torna tudo possível. Uma bela gênia que sai de sua
garrafa milenar transformando sonhos em realidade. Uma noviça que voa. Uma nave
espacial que vai até nenhum outro homem jamais esteve. Um impagável grupo de
amigos que encanta Nova York. Um detetive compulsivo que não pode ver nada fo-
ra do lugar... São incontáveis as imagens e situações que há décadas povoam o nosso
imaginário coletivo, graças a uma dos maiores manifestações da cultura popular do
nosso século: as séries de televisão. (FURQUIM, 2007, disponível em
<www.planetatela.com.br>, acesso em 16 nov. 2007)

Algumas afirmações da crítica especializada de cinema e TV apontam as séries

americanas como superiores às produções cinematográficas da atualidade em ousadia, conte-

údo, investimento nas produções e sucesso com o público. Atualmente, estão sendo mais elo-

giadas e, de certo modo, assistidas, do que os filmes no cinema. Primeiro por serem mais cur-

tas e por passarem na TV, na comodidade do lar. Segundo por manterem o cuidado de produ-

ção e interpretação recorrente nos grandes filmes.

Escrevo sobre cinema há muito anos e, a certa altura, começou a me inquietar o fato
de todos os meus amigos comentarem quase só sobre séries e eu não saber do que se
tratava. Quando comecei a prestar atenção, vi que havia ali uma nítida ruptura inclu-
sive em relação ao que o cinema americano produziu nos últimos dez anos. Peguei o
assunto e mergulhei em estudos para saber se alguém já havia pesquisado. [...] Não
vejo no cinema americano hoje nada parecido com a ousadia no tratamento e a in-
ventividade formal que as séries trazem. [...] Enquanto um filme envolve uma pro-
dução de centenas de milhões de dólares, uma série, por ser mais barata, dirigida a
públicos menores e mais específicos, pode furar vários sinais, ou seja, tomar muito
mais liberdades que um 'blockbuster'. E isso obviamente se reflete no modo como
elas conseguem reproduzir o mundo em que estamos vivendo. (STARLING, 2006,
disponível em < http://televisao.uol.com.br/ultnot/2006/12/11/ult698u11853.jhtm >
acesso em 16 nov. 2007)

Por ser uma mídia que reconquista o público semanalmente, e por ficarem no ar

por anos, os seriados acabam por criar uma legião de fãs que acompanham todas as tempora-
51

das, não perdem as estréias, antecipam-nas através de donwloads33 na internet, revêem as re-

prises, compram as coleções34 que são lançadas em DVD e continuam a discussão sobre os

capítulos exibidos em sites de relacionamento, de trocas de arquivo, fóruns de debates e salas

de bate-papo. Já por outro lado, percebe-se que é na série de TV que a homossexualidade en-

contra hoje o seu retrato mais verossímil, com personagens que fogem dos estereótipos nega-

tivos.

Minha pretensão neste capítulo é focar nos seriados dos Estados Unidos por ser

este país, desde sempre, o mais tradicional exportador deste produto cultural, com quase duas

mil35 séries de dramas, comédias, policiais, reality shows36, entre outros temas, sendo assisti-

das em vários países, todos os dias. Além disso, é nesse universo que se insere o contexto de

“The L Word”.

É um fenômeno como antes nunca visto, mas ainda pouco estudado nos meios a-

cadêmicos de Comunicação. Infelizmente, e assim como sobre as mulheres lésbicas, pouco

existe de teoria publicada sobre o assunto. Minha maior fonte de conhecimento para este capí-

tulo foram, além da internet, os cadernos de cultura dos jornais, como a Revista da TV, do

Jornal O Globo, que atualmente traz colunas específicas sobre as séries de TV e sobre os ca-

nais por assinatura. Não posso deixar de citar que eu mesma faço parte desta legião de fãs

mencionada acima. E, por isso, coloco em minhas palavras muito da minha vivência pessoal e

de meu gosto pelas séries de TV norte-americanas.

33
Os episódios em arquivos do tipo AVI ou MPEG, por exemplo, são baixados de sites da internet.
34
As coleções são as temporadas inteiras das séries, geralmente com 12 a 20 episódios, lançadas em DVD e vendidas nos
chamados Box. Tornaram-se uma febre de vendas e de locações nos últimos anos.
35
Dados obtidos no site <http://epguides.com/>, acessado no dia 15 de novembro de 2007.
36
Apesar de ser gênero não-ficção, o Reality Show também é considerado uma série de TV.
52

3.1. A dramaturgia seriada: definições

O jornalista Ciro Marcondes Filho caracteriza a televisão como um meio fascinan-

te. Segundo ele, esse veículo se sobressai das outras mídias por ser mais perspicaz, já que in-

troduz uma linguagem diferente e responsável primeiro, por atrair o receptor e, depois, por ser

incorporada por ele. Nessa medida, a TV muda completamente os hábitos de recepção e de

percepção da sociedade e da cultura. Outra característica apontada pelo autor é a tensão entre

momentos de fantasia liberada e o restabelecimento do esquema da ordem, o que seria exata-

mente o fascinante da TV. (MARCONDES FILHO, 1988).

Para conseguir esse efeito, antes mérito do cinema, os canais de televisão criaram

gêneros dramatúrgicos específicos para apresentar a ficção. Entre eles, estão o unitário, a mi-

nissérie, a telenovela e o seriado. Por definição, o unitário é o conto da ficção televisiva, a

telenovela corresponde ao romance-folhetim, a minissérie ao romance de dimensões regulares

e determinadas, e o seriado a uma coleção de contos com personagens fixos e objetivo autoral

único. (PALOTTINI, 1998). Em comum, eles têm como característica a curta duração de suas

unidades (capítulos ou episódios) em relação às produções cinematográficas e a previsão em

seus roteiros dos brake, ou intervalos comerciais, com seus devidos ganchos narrativos. São

esses ganchos que criam a tensão e expectativa necessárias para que a audiência permaneça na

trama mesmo após esses intervalos e para que não deixe de acompanhar os próximos capítu-

los, garantindo assim o lucro com a produção.

As séries de TV, como também são chamados os seriados, são estruturadas em e-

pisódios independentes que têm, cada um em si, uma unidade relativa. O episódio de seriado é

construído de tal forma que permite a possibilidade de assisti-lo com fruição, já que, na maio-

ria das vezes, ele tem começo, meio e fim. Às vezes não é possível entender por completo a

história de uma ou outra personagem, pois ela pode ter sido apresentada em um momento
53

anterior ou no piloto, ou episódio número um da série. No episódio ainda é possível enfocar

determinado ângulo da vida da protagonista ou de determinadas personagens do seu mundo,

uma de cada vez.

A unidade total, ou temporada, é inerente ao conjunto dos episódios, mas não se-

guem necessariamente uma seqüência obrigatória, como as minisséries ou as telenovelas. A-

pesar disso, muitas vezes uma temporada, com duração que varia de 12 a 22 episódios, encer-

ra em si uma parte da trama e aponta os indícios do que vai acontecer no ano37 seguinte. As

séries também são características por não haver um tempo determinado de exibição. Como

exemplo, temos “E.R.”38, sobre um pronto socorro em Chicago, que é produzida há 14 anos

ininterruptos, ou “Friends”, uma das séries mais famosas de todos os tempos, que ficou 10

anos no ar e ainda é vista através de reprises. Da mesma forma, quando as séries não têm su-

cesso comercial ou de público, são prontamente canceladas por seus produtores executivos39.

Algumas nem sequer apresentam um final para a trama, terminando a exibição dos episódios

sem dar explicações para o público do desfecho da história.

A TV é um produto comercial, é um grande veículo de “classificados”, se sustenta


disso. É usado como veículo de propaganda do governo em épocas e países de dita-
duras, é usado como divulgador de programas criados com o intuito de vender al-
gum produto é um adaptador de ideologias ou crenças. É uma grande e poderosa vi-
trine e seu foco depende de quem está no comando do veículo. Era normal nos anos
50 um episódio de uma série entrar em seu intervalo comercial e aparecer o ator da-
quela mesma série (usando a roupa do personagem) e fazer anúncio do produto do
patrocinador. [...] foi a partir dos anos 60 que eles começaram a vender espaços co-
merciais por minutos e não mais o programa inteiro. Assim se livraram da depen-
dência limitada de patrocínio. Com a concorrência de produtos cada vez maior fica
mais fácil conseguir anunciantes. Mas em compensação o cancelamento de um pro-
grama é mais rápido devido à obrigatoriedade de se fazer sucesso imediato. (FUR-
QUIN, 2005, disponível em <http://www.poucaseboasdamari.com>, acesso em 17
nov. 2007)

37
Ano, neste caso, adota o mesmo significado de temporada, apesar de, na escala temporal, não durar necessariamente doze
meses. Podem durar de 12 a 22 episódios, exibidos semanalmente ou não.
38
Para efeito de padronização, adotarei os nomes originais das séries. Muitas tiveram adaptações para o português quando
exibidas no Brasil, mas os nomes variam de canal para canal. Por exemplo, nos canais por assinatura, “ER” permaneceu dessa
forma, enquanto na Rede Globo, o seriado obteve o nome “Plantão Médico”. Nos casos em que os nomes adaptados são mais
conhecidos do que os originais, manterei as duas versões.
39
Nos Estados Unidos, seguindo o modelo hollywoodiano, os produtores executivos são os donos dos canais de televisão.
Eles bancam a produção dos programas, contratam equipe técnica e roteiro e comandam toda a comercialização do produto.
São eles que determinam o tempo que uma série fica no ar, conforme o lucro que ela gera.
54

A unidade total do seriado pode ser dada pelos protagonistas, pelo tema, ou pela

época, ligada, às vezes, ao local de ação. Mas, fundamentalmente, ela se dá por um objetivo

autoral, uma visão de mundo que pretende-se transmitir (PALOTTINI, 1998). Com força co-

mercial expressiva, as séries de televisão estão cada vez mais assumindo o papel que, nos a-

nos 50, era do cinema: o de ditar regras de conduta e comportamento para a sociedade. Seus

roteiros costumam adotar um tema específico, e, como têm muita liberdade de assunto, aca-

bam voltados para um determinado público, existindo séries de drama, de comédia, de ficção,

de suspense, de terror, policiais, sobre a vida de médicos, que contam histórias verídicas, de

romances épicos, de famílias mafiosas, de amigos, de gays e de lésbicas, entre milhares de

outros temas.

Cada uma, em seu contexto, mostra a vida e a cultura com um toque de fantasia,

de humor, de novidade e principalmente, de muita ousadia. O fato é que refletem, muitas ve-

zes, a sociedade em que estão inseridas, recortando um trecho da realidade e representando-a

de forma verossímil. Com essa gama de temas e formas de contá-los, as séries televisivas

conquistam um número cada vez maior de espectadores e seguidoras, que acompanham fiel-

mente a trama em cada episódio. E que a cada dia querem mais.

A apreensão de um programa de TV se dá dentro de características da contempora-


neidade ausentes do literário em termos de realização, de utilização de tecnologias,
de inserção de programas em uma vasta grade de programação. A TV constitui um
dos veículos mais caracterizados pela voracidade que a obriga a alimentar a grade de
programação diariamente de inúmeros textos de diferentes gêneros a uma velocidade
de elaboração e apreensão inimagináveis em outros veículos, daí sua produção ser
serializada, e baseada nas estéticas da repetição (Omar Calabrese) e da interrupção
(Paul Virilio) para dar lugar aos comerciais. (BALOGH, 2006)

Ao longo de sua criação, e através dos episódios, os seriados adquirem seus signi-

ficados totais. Os autores elaboram os casos, os enredos, as tramas que podem envolver aque-

le grupo específico e que tenham a ver com a filosofia geral da série, seu tema principal. Por

sua vez, cada uma das personagens, criada e construída no começo de tudo, amadurece e se
55

modifica ao longo das temporadas. De igual forma, com o passar do tempo, o público que a

acompanha também se modifica, cresce. A relação que acaba se estabelecendo é de cumplici-

dade, de amizade, já que uma pessoa acaba “vivendo” ao lado da outra por muito tempo, co-

nhecendo seus problemas e suas conquistas, torcendo por suas empreitadas, chorando quando

devem partir.

Em “The L Word”, como será visto à frente, cada temporada significa um período

na vida das protagonistas. Durante cada um destes períodos, relações se estabelecem ou se

desfazem e vidas se modificam. Como exemplo, é possível acompanhar, na primeira tempo-

rada, uma tenista assumir sua homossexualidade para a imprensa, enquanto um casal de mu-

lheres decide engravidar. Já na segunda, acompanhamos a gravidez e o nascimento do bebê,

enquanto a recém assumida tenista descobre-se apaixonada pela melhor amiga. Já na terceira,

a criança vira o único motivo de vínculo entre as mães, recém separadas, enquanto acompa-

nhamos a jovem e atlética tenista descobrir-se com câncer e falecer, ao final da temporada. Já

no quarto ano, sentimos a falta da personagem tenista, enquanto o bebê já vira uma menininha

e acaba sendo disputada na justiça pelas mães. Enquanto isso, muitas das telespectadoras pas-

sam pelos mesmos processos, principalmente por verem suas vidas representadas na tela com

tanta verdade, e acabam saindo do armário, escolhendo por ter filhos na relação, investigando

para saber se não estão com câncer de mama, chorando por perderem uma “amiga” de tanto

tempo.

Por isso, as séries, em sua maioria, são criadas a partir da verossimilhança. Se a

identificação com as personagens não puder acontecer, não há o interesse por parte do expec-

tador. As roteiristas e os roteiristas de séries, a todo momento acompanham a vida virtual que

suas personagens adquirem. E pensam, em contrapartida à realidade, no que, dentro da forma

que lhe foi dada, pode acontecer, e de fato aconteceria, àquele individuo de ficção? Ou de que

maneira ele se relacionaria com os demais? A rigor, seriado não tem sinopse. Faz-se uma re-
56

lação muito bem feita dos personagens e suas características, seu desenho pessoal, seu retrato.

Deixa-se bem definido, depois de muita discussão, o que pretende o seriado, qual é a sua filo-

sofia. E o restante é imaginação bastante livre. Os episódios precisam apenas ser interessantes

e não colidir com o que ficou estabelecido como básico e fundamental no caráter dos perso-

nagens, na sua vontade, nos seus objetivos, no chamado piloto da série. (PALOTTINI, 1988)

Esse piloto, ou o primeiro episódio de um seriado é, portanto, capital; nele deve-se

apresentar clara e eficientemente todos os personagens principais, identificá-los, dizer o que

são e como são; mostrar suas relações com os demais, seu modo de ser, suas crenças, seus

desejos, seus objetivos de vida, o estágio em que estão. Deve-se dar a situação básica da co-

munidade ou do grupo que se quer tratar e, provavelmente, o problema inicial que deu origem

ao estado atual de vida de todos. Esse primeiro episódio chama o espectador e o induz a ver a

série: deve ser interessante, estimulante, curioso. Mostra as personagens e, claro, as atrizes e

os atores que da trama vão participar. Outras atrizes entram posteriormente nas séries e, co-

mumente, há muita troca de elenco entre uma temporada e outra. Já os demais episódios terão

sempre algo a ver com o que foi lançado no primeiro. Se surge uma novidade total, algo que

se oponha e contradiga o que foi estabelecido no primeiro episódio em termos de caracteriza-

ção das personagens ou de história é mal recebido. (IDEM)

Com esse formato estabelecido, com essas características tão peculiares, as séries

de TV ocupam um lugar cada vez mais recorrente no imaginário coletivo e nas produções

culturais de massa do século XXI. E tem sido assim desde seus primeiros episódios.

3.2. Os primeiros anos e o conservadorismo americano

No início da TV, fim dos anos 40, os curtas-metragens produzidos para o cinema

nas décadas anteriores acabaram sendo uma das origens do formato seriado. Comprados e
57

exibidos semanalmente, filmes de Charles Chaplin, de “Os Três Patetas” e de “O Gordo e o

Magro” fizeram sucesso entre os jovens daquela e das gerações seguintes. Mas uma das pri-

meiras séries de TV a ser produzida foi “I Love Lucy”, que acabou se tornando referência do

gênero sitcom, ou comédia de situação40, e é, até hoje, lembrada como um dos maiores suces-

sos televisivos de todo o mundo, estando, inclusive, na lista “The 100 Best TV Shows of ALL-

TIME” da Revista TIME41. “I Love Lucy” estreou em 15 de outubro de 1951 na CBS42 e, de-

pois de 180 episódios, teve sua temporada final em 1957. Neste período, e com suas reprises,

ditou moda no mundo todo ao reforçar a visão consumista, conservadora e machista do “Ame-

rican Way of Life” 43, tão difundido pela mídia americana nos anos 50 e reforçado no cinema

pelo “Código Hayes” e sua censura. A protagonista Lucile Ball e seu companheiro Desi Ar-

naz repetiam o matrimônio da vida real em sua série, onde o marido, um produtor artístico,

era sempre envolvido pelas trapalhadas de sua mulher, desajeitada e doidivanas. E, dessa for-

ma, reproduziam a “forma como a família americana deve ser”.

Essa série acabou definindo praticamente toda a gramática do gênero comédia, in-

clusive no que se refere à gravação dos episódios: três câmeras em um estúdio, com público

ao vivo perante uma claque, cujas risadas gravadas são reproduzidas durante a exibição. As

risadas persistem até hoje na grande maioria das sitcoms. Foi nessa época também que foram

definidos o tempo padrão das séries conforme o gênero, praticado até hoje: as comédias ou

séries com temas do cotidiano têm episódios com duração média de 30 minutos (sem os inter-

valos, 23 minutos) e os dramas, policiais, westerns e suspenses teriam a duração de 1 hora

(com os descontos dos comerciais, 46 minutos). A partir deste padrão, foram criadas as grades

40
Os sitcoms são comédias de situação, crônicas do cotidiano que a televisão exibe, normalmente sob a forma de seriados,
com apresentação semanal de episódios que variam entre 30 a 40 min., tirando os intervalos comerciais. (DUARTE, 2007)
41
Informação obtida no site http://www.time.com/time/specials/, com acesso em 17 de novembro de 2007. Outras séries que
serão citadas neste capítulo também fazem parte desta lista, como “Dallas”, “Seinfield”, “The X-Files”, “Friends”, “Sex
and the City”, “The Sopranos”, “Six Feet Under”, “24” e “Lost”.
42
CBS é a siga de Columbia Broadcasting System, considerada uma das maiores redes de rádio e TV dos Estados Unidos.
43
Estilo de vida americano, exaltado após os anos 30 nos EUA como sendo ideal da classe média, com a formação de famí-
lias conservadoras e tradicionais nas quais o homem trabalha enquanto a mulher cuida do lar. Era um reforço do capitalismo
americano em depreciação do socialismo. Foi difundido no mundo pelo Cinema e, nos anos 50, pela televisão.
58

de programação reproduzidas continuamente pelas redes de TV (SILVA JR., 2004). Outros

exemplos de séries desta época são “Father Knows Best” (“Papai Sabe Tudo”), “Dragnet”, e

“The Honeymooners”.

Os anos 60 e 70 trouxeram um aumento significativo das produções televisivas de

séries. São deste período grandes sucessos, que ainda seguiam os pontos de vista sexistas e

conservadores das primeiras comédias e dramas, como “Bewitched” (“A Feiticeira”) e “I Dre-

am of Jeannie” (“Jeannie é um Gênio”). Na primeira, uma bruxa faz de tudo para esconder

seu verdadeiro talento e tenta se encaixar nos padrões paternalistas da sociedade, mantendo

uma casa e um marido conservadores. A transgressão acontece nas atitudes de Endora, mãe da

personagem, imortalizada pela atriz Agnes Moorehead. Sua maior questão era tentar entender

por que Samantha (Elisabeth Montgomery) se submetia às vontades do marido em vez de

simplesmente seguir sua vocação de bruxa. Já a segunda, que também mostrava elementos de

fantasia, trazia uma Jeannie (Barbara Eden) que tudo fazia para conquistar o amor de seu "a-

mo", o Major Nelson (Larry Hagman). Mesmo assim, se forem analisadas profundamente, é

possível perceber traços de ousadia em suas abordagens.

[...] até séries aparentemente ingênuas e não politizadas, como I Love Lucy ou Jea-
nie É um Gênio, retratam mudanças políticas, sociais e comportamentais nos EUA.
Lucy é uma mulher do pós-guerra que quer mudar sua situação na sociedade, quer
ser um agente social e não mais dona de casa. Jeanie é a primeira mulher solteira a
viver na casa de um homem. “A Feiticeira” é uma tentativa de adaptação de diferen-
tes, ligados pelo amor, e traz pela primeira vez um casal que dormia em cama de ca-
sal, coisa impensável até então nos puritanos lares americanos. (ANGELO, 2001,
Jornal da Tarde)

Neste período, destacaram-se também as séries de ficção científica, lideradas pelo

sucesso de “The Twilight Zone” (“Além da Imaginação”). Criada por Rod Sterling em 1959, a

série apresentava episódios isolados que abriam espaço para um comentário crítico sobre a

sociedade de então, mergulhada na paranóia da guerra fria. Esse contexto fantástico acabou

funcionando como pretexto para que outras séries se aprofundassem em alguns temas mais
59

ousados, como a mais importante e influente delas: “Star Trek” (“Jornada nas Estrelas”), que

Gene Rodenberry lançou em 1966. Menos ambiciosas, mas igualmente marcantes foram “Lost

in Space” (“Perdidos no Espaço”) e os programas de Irwin Allen: “Voyage to the Bottom of

the Sea” (“Viagem ao Fundo do Mar”) e “Land of the Giants” (“Terra de Gigantes”). (SILVA

JR., 2004)

Aproveitando a onda das revoluções, das novas estruturas sociais e sob influência

da cultura pop que se estabelecia na segunda metade dos anos 60, surgiram ainda tentativas

bem humoradas de brincar com a realidade.

O advento da cultura pop não passou despercebido e veio mesmo aflorar na TV da


segunda metade desta década com as comédias, onde parecia haver um maior espaço
para que fossem testadas inovações. Nesse momento surge Batman com seu exagero
camp. E também The Monkees, que une a linguagem dos filmes que Richard Lester
dirigiu com os Beatles a um psicodelismo então emergente. E o fenômeno James
Bond inspirou Buck Henry e Mel Brooks a gerarem a melhor série cômica da déca-
da, Get Smart (Agente 86). Vale lembrar que todos os programas citados nesse pará-
grafo fogem ao modelo de sitcom gravado ao vivo. (SILVA JR., 2004, disponível
em http://www.contracampo.com.br, acesso em 15 nov 2007)

No começo dos anos 70, os roteiristas começaram a ousar um pouco mais nos te-

mas, acompanhando a onda da revolução sexual e de padrões culturais. Da mesma forma, no

cinema hollywoodiano, o fim da auto-censura facilitou a entrada de temas mais liberais na

televisão. Era a vanguarda das séries televisivas, com “The Mary Tyler Moore Show” de 1970,

como o primeiro programa que trazia uma mulher independente, solteira, feminina e trabalha-

dora como protagonista. Já “MASH”, de 1972, veio do cinema e criticava a instituição militar

em pleno período da guerra no Vietnã. O programa resistiu à guerra e ficou no ar durante 11

anos, fixado no imaginário das platéias norte-americanas. Seu episódio final se mantém há

mais de 20 anos como um recorde insuperável de audiência. Os seriados policiais também

modificam um pouco a forma de apresentar seus protagonistas. Antes calcados em investiga-

ções cerebrais, eles passam a incorporar o jeito malandro e malicioso das ruas, com ritmo ágil

dos filmes de ação.


60

Importante neste momento é a criação de “Charlie’s Angels” (“As Panteras”), em

1976. Trazendo, pela primeira vez, três belas e inteligentes mulheres como heroínas, Charli-

e’s Angels aproveitava as novas configurações sociais conquistadas com a revolução feminista

do fim dos anos 60. As atrizes Kate Jackson (Sabrina Duncan), Jaclyn Smith (Kelly Garrett),

Farrah Fawcett (Jill Munroe), formaram o primeiro e mais famoso trio. As três Panteras eram

ex-policiais, graduadas com honras na Academia de Polícia, e integrantes da Agência de De-

tetives Towsend. Resolviam os casos com muita sagacidade e sensualidade, sempre tomando

suas próprias decisões. O dono da agência era Charlie Townsend (na voz de John Forsythe),

que só aparecia através de um aparelho de viva voz, e que passava as coordenadas através de

seu homem de confiança, John Bosley (David Doyle). A série mostrava, numa das primeiras

vezes, as mulheres em primeiro plano, com um chefe que nunca aparecia e um imediato que

era completamente submisso a elas. A série estreou na TV ABC44 em 22 de setembro de 1976,

teve 114 episódios e trocou de protagonistas várias vezes. Mas é fato que se tornou um suces-

so estrondoso, principalmente por significar um marco da estética dos anos 70: os cabelos

ondulados e rebeldes, as tradicionais pantalonas, as blusas de frente-única e as echarpes dita-

ram e ditam moda até hoje.

Essa influência na cultura e na maneira de se vestir que as séries começaram a al-

cançar deve-se também ao fato de que, além de produzirem as séries, os Estados Unidos pas-

saram a exportar este produto para outros países. Criou-se o termo “enlatado”, já que os pro-

gramas eram enviados, assim como os filmes, em latas especiais. Na TV brasileira, o valor

alto das produções nacionais, que ainda eram feitas ao vivo, com grande elenco, ocasionou a

compra de muitos seriados importados, que encheram os buracos da programação dos canais.

Se a história da TV no Brasil confunde-se com a história das telenovelas, no caso da


TV americana, as séries semanais configuram-se como seu principal produto de con-
sumo no mercado interno e, em especial, para os demais países do mundo. Quase

44
Rede de TV Americam Broadcasting Company.
61

tanto quanto o cinema, não se deve negar seu potencial de produto de exportação e
divulgação da cultura de seu país. Quem cresceu vendo televisão durante as décadas
de 1960 e 1970 foi bombardeado com fortes influências daqueles que se convencio-
nou denominar "enlatados" em seus mais diversos formatos, incluindo séries cômi-
cas, dramáticas, de aventura e de animação (SILVA JR., 2004, disponível em
<http://www.contracampo.com.br/69/serieshistoria.htm>, acesso em 15 nov 2007)

De fato, percebe-se que um dos maiores responsáveis por esse bombardeamento

de enlatados foi o próprio governo militar. Durante a chamada Fase Populista da TV (MAT-

TOS, 1982a), a ditadura obrigava os canais a produzirem programas de auditório de baixo

nível cultural e censuravam a exibição de filmes da indústria cinematográfica em sua grade de

programação. Foi um período em que a exibição de “enlatados” atingiu o seu maior índice,

chegando a 50% da programação nos primeiros seis anos do golpe militar, época em que o

governo passou a adotar uma série de medidas econômicas para promover o desenvolvimento.

No Brasil, durante os 21 anos de regime militar (1964-1985), o financiamento dos


"mass media" foi um poderoso veículo de controle estatal, em razão da vinculação
entre os bancos e o governo. A concessão de licenças para a importação de materiais
e equipamentos e o provisionamento, por parte do governo, de subsídios para cada
importação têm influenciado a ponto de levarem os meios de comunicação de massa
a adotarem uma posição de sustentação às medidas governamentais (MATTOS,
1982a, apud ______, 1990, p.13).

Os anos 80 chegaram com uma nova onda de conservadorismo nos Estados Uni-

dos. O governo do republicano Ronald Reagan incentivou a volta dos valores tradicionais

americanos numa fase em que a Guerra Fria começava a se tornar uma guerra quente. Como

citei no capítulo anterior, o advento da AIDS provocou o crescimento do preconceito em rela-

ção ao que não se encaixasse nas normas padrão. Nessa linha, praticamente todas as sitcoms

dos anos 80 retomam os valores de família e seus episódios tentam mostrar, de alguma forma,

"lições de vida". É o período de “The Cosby Show”, “Family Ties” (“Caras e Caretas”) e “The

Golden Girls” (“Super Gatas”) e “Cheers”, considerada uma das melhores sitcoms de todos os

tempos. Isso porque, após o início moralista como suas contemporâneas, essa série começou a

seguir o caminho do deboche e do humor escancaradamente irônico, linha que deu origem a
62

outro nível de comédias, mais originais e politicamente incorretas, como “Seinfield” e “Frasi-

er”, dos anos 90, “Scrubs”, de 2001, e “The Office”, de 2005, que é um dos maiores sucessos

de crítica da atualidade.

Um fato curioso é que “Cheers”, tão influente nos Estados Unidos, nunca foi exi-

bido no Brasil. A partir do final dos anos 70, a estabilização de uma produção brasileira, prin-

cipalmente através do crescimento da Rede Globo, que já dominava a audiência como rede

nacional, fez diminuir o espaço dedicado aos seriados norte-americanos. Os canais começa-

ram, a exemplo da própria Rede Globo, a criar suas próprias séries semanais, como “Plantão

de Polícia”, “Carga Pesada” e “Malu Mulher”. Os enlatados que fizeram muito sucesso nos

anos 80 foram “Dallas”, “Hart to Hart” (“Casal 20”), “McGyver” (“Profissão Perigo”), “Mo-

onlighting” (“A Gata e o Rato”) ou “Alf” (“Alf – o ETteimoso”), mas mesmo assim eram qua-

se sempre tratados como curinga na programação, sem que fosse respeitada uma seqüência

cronológica nos episódios. Vale também destacar que nenhum desses programas pode ser

incluído entre o que as redes de TV norte-americanas produziram de mais expressivo no perí-

odo. (SILVA JR., 2004)

3.3. O começo da ousadia e a explosão da TV por assinatura

A década de 90 foi um grande marco para a história das séries norte-americanas,

principalmente no que diz respeito à exibição em outros países. Uma nova tecnologia se espa-

lhava pelo mundo, chegando também ao Brasil: a TV à cabo por assinatura. Em primeiro de

julho de 1990, acontecem as primeiras concessões de TV pagas no Brasil e o Canal Plus (Ca-

nal +) se torna a primeira TV a cabo do país. Outro fato que modificou a forma como as pes-

soas viam os seriados foi um decreto do então presidente Fernando Collor, permitindo que os

canais brasileiros de rádio e televisão veiculassem programas nas línguas estrangeiras.


63

No mês de agosto de 1990, o Governo Collor modificou também o Decreto Nº.


52.795, de 1963, permitindo, a partir daí que as emissoras de rádio e televisão pos-
sam transmitir programas em idiomas estrangeiros. Por serem recentes [o texto data
de 1990], estas mudanças ainda não permitem que se possa avaliar que tipo de influ-
ência exercerão nos meios de comunicação de massa de modo geral e na televisão
especificamente. (MATTOS, 1990, p. 18) [grifo nosso]

O que isso significou? Que milhares de pessoas, jovens e adultos, que acompa-

nhavam as séries de TV no Brasil, puderam perceber a cultura de seu país de origem através

não só das roupas, locações e histórias, mas principalmente através da linguagem. Houve,

dessa forma, uma aproximação maior do universo americano, pois até então, não só o texto,

como também a realidade da série era dublada para a língua portuguesa.

Um dos exemplos mais claros nesse sentido foi a série “Primo Cruzado” que pas-

sou por aqui numa sessão especial de enlatados da Rede Globo, a partir de 1987. Para o públi-

co daqui, a série contava a história de Zeca Taylor, um brasileiro do interior de Minas Gerais

que se muda para a casa de seu primo Larry, em Chicago, EUA. Com sotaque caipira carrega-

do, o primo cruzado, numa alusão a moeda corrente no Brasil na época, aparecia vestido de

sombrero e maracas, ou seja, roupas nada brasileiras. Na realidade, a história era completa-

mente diferente. No original, o título era “Perfect Strangers”, algo como estranhos perfeitos, e

Zeca, na verdade era Balki Bartokomous, pastor de ovelhas proveniente de Mypos, uma pe-

quena ilha grega do mediterrâneo, que vai para os Estados Unidos para encontrar seus paren-

tes. Ou seja, além de terem deturpado os termos com traduções muitas vezes estranhas para se

encaixarem na fala das personagens, algumas dublagens de séries desvirtuavam suas verda-

deiras histórias. Algo que, com a TV a cabo, pôde ser corrigido.

Além do mais, a TV por assinatura permitiu que canais se concentrassem em de-

terminado tipo de programação, como notícias, esportes, variedades, filmes, ciência e séries

de televisão. Dessa forma, era possível, pela primeira vez, encontrar em um único canal vários

os seriados de uma vez só. Divididos por gênero, horário e dias da semana, a programação foi

ficando cada vez mais específica, conforme o público alvo que pretendia atingir.
64

Enquanto isso, nos Estados Unidos, estreavam em 1990, as séries que acabaram

de vez com o conservadorismo dos roteiristas: “The Simpsons”, “Twin Peaks” e “Seinfield”.

Uma série em animação, um suspense policial e uma comédia sobre o nada.

“The Simpsons”, lançada em 1989, está no ar há 16 anos, sendo a série mais longa

já produzida, e este ano gerou seu primeiro longa metragem. Suas personagens são caricaturas

que provocam em suas sátiras diversas reflexões e questionam a sua própria realidade. Spring-

field, cidade onde se passa a trama da família Simpson, é campo de situações possíveis e im-

possíveis, mas sempre refletem, debocham ou ridicularizam o modo de pensar americano. Sua

ousadia, criatividade, humor e bom conteúdo são temas de diversos estudos no mundo todo.

“Twin Peaks”, criada por David Lynch e Mark Frost, foi muito além do que se

pensava sobre séries policiais até então, mostrando com crueza e veracidade a trama que tra-

zia um investigador do FBI disposto a fazer de tudo para descobrir o assassino da jovem Lau-

ra Palmer. Hoje, a série é considerada um clássico e, apesar do fracasso de sua segunda tem-

porada, figura também como uma das melhores séries já feitas por mostrar tão bem o lado

obscuro da sociedade americana.

Já “Seinfield” por si só já mereceria uma tese inteira. A série traz um grupo de

quatro amigos em Nova York liderados pelo comediante Jerry Seinfield (interpretado pelo

próprio Seinfield). Seus episódios giram em torno de um simples tema: o nada. Assim foi fei-

to o piloto da série e lançado sem pretensões. Em pouco tempo, ela se tornou líder de audiên-

cia, segundo o instituto de pesquisas sobre televisão Nielsen Ratings. Teve nove temporadas

produzidas e foi considerada pela revista TV Guide, especializada em televisão, como o me-

lhor programa da televisão americana de todos os tempos.

A virada do século traz uma infinidade de outras séries influenciadas por estas a-

cima citadas. E, de fato, isso é algo comum de se perceber: as séries alimentam-se dos temas

umas das outras para poderem representar a sociedade da época em que são produzidas. O que
65

muda é o valor investido, o tipo de narrativa, o tempo de duração e a qualidade das interpreta-

ções e roteiros. Mas suas temáticas se tornaram universais, sendo repetidas ao longo das séries

e por suas influências.

A novidade fica por conta da abordagem. Uma série que fale sobre sexo hoje em dia
é muito diferente de uma série de até cinco anos atrás. As séries em geral são des-
cendentes de outras produções do passado imediato ou antigo. Dessa forma, pode-
mos pegar um personagem hoje em dia e traçar sua ascendência com muita facilida-
de porque uma série gera outra e assim por diante. Pegue a Carrie de “Sex and the
City”, faça uma linha do tempo, você consegue chegar em séries como “Ally McBe-
al”, “Supergatas”, “A Gata e o Rato”, “Mary Tyler Moore”, “Júlia” e “I Love Lucy”,
entre muitas outras. É a personagem do universo feminino tentando se colocar em
uma sociedade machista dentro do tema dominação do sexo. [...] É a evolução das
séries ou da espécie humana dentro de uma sociedade. Com a chegada da TV a Cabo
as séries começaram a evoluir com mais rapidez. (FURQUIN, 2005, disponível em
<http://www.poucaseboasdamari.com>, acesso em 17 nov. 2007)

Como exemplo, temos “Beverly Hills, 90210” (“Barrados no Baile”) e “Melrose

Place”, grandes sucessos entre os jovens no final dos anos 90. Podem-se perceber suas influ-

ências em “Dawson´s Creek”, “Buff – a caça-vampiros”, “The O.C.”, e, atualmente, em “One

Three Hill” e “Gossip Girl”.

Já “Friends”, de 1994, um dos maiores sucessos da televisão mundial nos anos

noventa, que tinha como tema principal a amizade entre pessoas de 25 a 30 anos, garantiu o

surgimento de séries como, “Ellen”, “Will & Grace” e “The Class”, das quais falarei mais

adiante. No momento, é importante destacar algumas características de “Friends”.

As aventuras de Rachel Green (Jennifer Aniston), Phoebe Buffay (Lisa Kudrow),

Monica Geller (Courteney Cox Arquette), Joey Tribbiani (Matt LeBlanc), Ross Geller (David

Schwimmer) e Chandler Bing (Matthew Perry) conquistaram milhares de fãs e ditaram regras

de comportamento e vestuário. Como diferencial, a série trouxe a descentralização dos prota-

gonistas, dando igual destaque a todos os seis amigos. Na América Latina, a série ainda é re-

prisada no horário nobre do Warner Channel e suas temporadas lançadas em DVD são cam-

peãs de venda e locação.


66

No Brasil, Friends possui grande audiência, apesar de ter sido exibido durante sua
produção apenas por canais fechados (Sony e Warner Channel; neste último é
exibido até hoje, em horário nobre: todos os dias às 19h30). Na TV aberta, já foi
exibido por duas emissoras: pela RedeTV! no ano 2000 e pelo SBT em 2004 e
novamente em 2006. A RedeTV! exibiu apenas as 2 primeiras temporadas e não
houve muito sucesso na versão dublada. O SBT, que também passava a versão
dublada, chegou a exibir o programa: nas manhãs de domingo, nas tardes de segunda
à sexta e nas noites de quarta; só passou até a terceira temporada. Sem muito sucesso
também. (informação disponível em <www.pt.wikipedia.org>, acesso em 17 nov. 2007)

A série teve dez temporadas e fez não só a cabeça de toda uma geração como fez

milionários os seis protagonistas e os produtores do programa.

Friends é um dos casos mais bem-sucedidos da história da televisão mundial. Ao fim


da 10ª temporada da série, cada um dos seis atores recebia US$ 1,000,000 por
episódio (totalizando 18 milhões de dólares para cada um dos 6 atores principais na
última temporada). Propagandas nos intervalos do episódio final, que atraiu um
audiência de mais de 52 milhões de espectadores, custaram em média US$
2,000,000 a cada trinta segundos nos Estados Unidos e CAD$ 190,000 no Canadá.
(informação disponível em <www.pt.wikipedia.org>, acesso em 17 nov. 2007)

A importância maior de “Friends” talvez se deva a ser esta série uma das que mais

lucro gerou para seus produtores. Ora, se um episódio da série pode vender um espaço publi-

citário de 30 segundos a US$2 milhões, pensaram seus produtores, por que não criar mais

espaços como estes na programação? Além disso, nunca se viu uma série manter por tanto

tempo um público cativo que a acompanhasse do início ao fim e ainda comprasse os DVDs

lançados com as temporadas. Foi neste momento que as séries de TV começaram a ter ares de

mega produção.

Em "Friends", "Sex and the City", "A Sete Palmos", "Sopranos" e muitas outras, en-
contramos uma espécie de espelho contemporâneo das nossas identidades pessoais.
Eles servem pra gente olhar e se reconhecer ou reconhecer alguém do nosso círculo.
Este é um dos principais truques dos criadores para tornar o público cativo. (JOR-
NALISTA..., 2007, disponível em <http://televisao.uol.com.br/>, acesso em 20 nov.
2007)
67

O século XXI começava nas TVs norte-americanas com muito mais atenção às i-

déias que surgiam de roteiristas e produtores. Os novos lançamentos proliferarem em escala

geométrica. Como conseqüência, os próprios canais por assinatura perceberam que era viável

investir em programação própria. Nesse contexto, surgiram dois canais que se tornariam líde-

res em premiações por suas séries originais: a HBO e o Showtime.

O Showtime é o canal responsável pela criação das séries que iriam mudar para

sempre a forma como se representam os gays e as lésbicas nos programas de TV: “Queer as

Folk”, do desenho “Queer Duck” e “The L Word”. Também é responsável pela controversa

“Weeds”, sobre uma dona de casa que contrabandeia maconha, e “Dexter”, um assassino seri-

al de assassinos seriais.

A HBO45, ou Home Box Office, apresentou logo de cara um slogan que marcou o

ideal de programação original: “It’s not TV, It’s HBO”, ou “isto não é TV, é HBO”. Ou seja,

já indicava que este seria um lugar para produções nunca antes imaginadas. As principais de-

las são: “Sex and the City”, o épico realista e aclamado “Roma”, o fantasioso e bem produzi-

do “Carnivale”, “The Sopranos”, a elogiada saga de uma família de mafiosos e “Six Feet

Under” (“A Sete Palmos”), que apresenta com humor negro inteligente, os dilemas da família

Fisher, donos de uma funerária.

As duas séries [“Six Feet Under” e “The Sopranos”] configuram o ápice do gênero,
o que para muito contribuiu o formato HBO de temporadas de tamanho reduzido (13
episódios). Este torna cada capítulo passível de um acabamento artesanal mais re-
buscado, que os aproxima de pequenos filmes, com roteiros muito bem amarrados e
direção que por vezes transcende os limites da eficiência televisiva. A recente De-
adwood (2004) tende a seguir a mesma linha de qualidade. (SILVA JR., 2004, dis-
ponível em http://www.contracampo.com.br, acesso em 15 nov 2007)

45
Atualmente, pertencem à rede de canais da HBO Brasil: AXN, Sony Entertainment Television, Warner Channel, A&E,
Animax, Cinemax, Max Prime, HBO, HBO Brasil, HBO Plus, HBO Family, The History Channel e E! En Entertainment
Television. Ou seja, estão entre eles os principais canais exibidores de séries de TV do país. Nos Estados Unidos, a HBO
pertence ao grupo TIME Inc.
68

Outras da HBO que, apesar de novas, já fazem sucesso considerável são “Califor-

nication” e “Entourage”. Por aqui, o canal HBO Brasil também investiu em produções e lan-

çou, em 2005 e com produção da Conspiração Filmes, duas séries: “Mandrake” e “Filhos do

Carnaval”. Elas foram as primeiras séries a seguir o padrão norte-americano de investimento e

produção, sendo filmada em película e com altos orçamentos disponíveis.

Com temática voltada para as mulheres, o sucesso estrondoso de “Sex and the

City”, que conta as aventuras sexuais de quatro amigas em Nova York, não só influenciou o

surgimento de “Desperate Housewives” e da série tema deste trabalho, “The L Word”, como

também trouxe a visão da mulher que comanda sua própria vida, que tomas suas decisões sem

se basear em preconceitos sociais, que trabalha e recebe o valor que merece por isso, que

constitui sua família não por pressão, mas por desejo, que segue e atende a seus desejos sexu-

ais com muita liberdade e que fala sobre isso com muita naturalidade. A série também influ-

enciou comportamentos e refletiu as conquistas dos movimentos feministas nas décadas pas-

sadas. No Brasil, sua influência deu origem à série “Mothern”, produzida pelo canal GNT.

Em séries com temática política, destaca-se “The West Wing”, que fez com que

não só o presidente criado pelo ator Martin Sheen fosse considerado como o ideal para os

EUA, como também deu origem a outra série, “Commander in Chief”, na qual Geena Davis

foi eleita a primeira presidente mulher do país.

Ainda pode ser citada como série de grande influência sobre outras, a cultuada

“Star Trek”, que incentivou a criação de inúmeras franquias sobre ficção científica, tanto co-

mo continuações ou “gerações” da mesma história, quanto de outras originais, como “Starga-

te Atlantis”, a mítica “Xena: Warrior Princess” e a excelente “Battlestar Galactica”, que mis-

tura viagem pelo espaço, suspense e política em ótimos roteiros.

Seguindo o lado da ficção, mas investigando o paranormal e o desconhecido, “The

X Files” se tornou uma das maiores responsáveis pelo aumento das especulações sobre extra-
69

terrestres e a vida em outros planetas, levando seguidores dos agentes Fox Mulder (David

Duchovny) e Dana Scully no mundo todo. A partir dela, foram lançadas séries como “Taken”,

de Steven Spielberg, “Surface” e as adolescentes “Supernatural” e “Smallville”, que conta a

história de Superman adolescente. Sem falar de “Lost” e “Heroes”, atuais febres entre os se-

rimaníacos, campeãs de audiência, que misturam muito suspense com paranormalidades e

mutações genéticas.

Dentro ainda dessa tendência, temos as franquias de investigação policial, com

“Law & Order” (“Lei e Ordem”) e “C.S.I.”, cada uma com um tema de investigação, como

“Law & Order S.V.U.” e “Law & Order Criminal Intent” ou passando-se em cidades diferen-

tes, como “C.S.I. Miami”, “C.S.I. New York”. Influenciaram também “Bones”, “The Closer”,

“N.C.S.I.” e “Dexter”.

“NY PD” (“Nova York contra o Crime”) e a forte “OZ” permitiram a criação da

violenta e premiada “The Shield”, de “Alias” e de “24” (“24 Horas”), todas séries de ação que

fogem do padrão do policial como herói bonzinho. Em suas cenas, eles fazem de tudo, de su-

bornos a torturas, para conseguir resolver seus casos.

Esta última também se destaca por ter introduzido a narrativa do tempo real, de

forma inovadora e ousada, por fazer ressurgir o astro do cinema Kiefer Sutherland e por sua

direção primorosa, produção cuidadosa e altos investimentos em marketing e propaganda.

“24” está em sua sétima temporada, mas uma temporada, neste caso, significa um dia na vida

do agente do FBI Jack Bauer. Ou seja, cada capítulo tem a duração real de uma hora de acon-

tecimentos, sendo 50 minutos da história menos os 10 minutos previstos pelos intervalos co-

merciais. Em cada minuto da trama, acompanha-se, através de quadros paralelos (um recurso

da edição), a resolução de algum caso urgente de importância nacional. A série também foi

responsável por mostrar o primeiro presidente negro da história das séries americanas. Na
70

sétima temporada, que ainda não foi lançada, “24” traz uma mulher lésbica como presidente

dos Estados Unidos.

As séries médicas começaram com “E.R.” e também se multiplicaram. Hoje, as

mais originais e sucedidas são a sensível e bem humorada “Grey’s Anatomy”, a sarcástica e

inteligente “House” e a ousada e picante “Nip/Tuck”, que realiza com requintes de crueldade,

uma reflexão da mania das cirurgias plásticas estéticas.

As séries sobre dramas familiares, lançadas por “Dallas” e “Dinasty” nos anos se-

tenta, tiveram neste século grandes representações como a leve “Gilmore Girls”, “The Sopra-

nos” e “Six Feet Under” (“A Sete Palmos”). Essas duas últimas já pararam de ser produzidas

e venceram grandes categorias das mais tradicionais premiações da televisão, como o Emmy

Awards46.

Atualmente, existem mais de três mil séries de TV sendo exibida no mundo todo,

a sua maioria, produzidas nos EUA, conforme a lista publicada no site americano Epgui-

des.com47. Impossível enumerá-las aqui. As citadas acima são as mais representativas deste

gênero, porém a quantidade se modifica a cada semana, com as estréias e os cancelamentos de

séries. Nos canais norte-americanos de TV, os seriados com maior valor de mercado investido

geralmente estréiam nos meses de setembro e outubro (fall season). Já quando as temporadas

destas séries terminam ou quando há uma pausa em suas produções (hiatus), estréiam as cha-

madas midseason series, ou séries de meia-temporada, nos meses de janeiro a abril. Essas

séries, a princípio, são produzidas apenas para taparem buracos na programação. Mas algumas

ganham tanta projeção com o público, que acabam se transformando em séries maiores e fi-

cando por muitos anos no ar. No Brasil, devido ao atraso dos lançamentos das séries america-

nas, geralmente o midseason acontece a partir de junho e o fall season, a partir de novembro.

46
Ver <http://www.emmys.tv>
47
Site <http://epguides.com/>, acessado em 17 de novembro de 2007.
71

Mas não é só através da TV que essas séries são acompanhadas. A internet au-

mentou a proporção de expectadores e expectadoras de forma impossível de ser mensurada. A

pirataria, ou cópia não autorizada dos programas, é algo que preocupa a sociedade e que se

tornou motivo de discussão sobre as atuais leis de direitos autorais em todo o mundo. Ao

mesmo tempo em que as distribuidoras e os canais de TV tentam combatê-la através de tecno-

logia, é a mesma tecnologia que permite que os dispositivos anti-cópia sejam quebrados, que

a programação seja gravada diretamente nos computadores e convertidos em arquivos meno-

res e de fácil envio para outros computadores, que as coleções de séries em DVD sejam loca-

das, clonadas e vendidas abertamente em sites de relacionamento, como o Orkut. As séries,

assim como as músicas e os filmes, sofrem do mesmo tipo de problema com a pirataria.

Existe uma infinidade de sites com os chamados torrents, arquivos compartilha-

dos entre usuários e baixados pela internet através de programas específicos. Esses torrents,

de séries, filmes, vídeos, músicas, programas, etc., são compartilhados gratuitamente e, muitas

vezes, sem autorização das fontes. Da mesma forma, outros tantos sites se especializam em

produzir as legendas para os episódios, assim que são exibidos.

Percebendo a impossibilidade de se impedir esse compartilhamento, alguns ca-

nais, como o Showtime e a Warner Channel, no Brasil, passaram a disponibilizar o programa

para ser baixado diretamente de seu site, gratuitamente, logo após a primeira exibição na TV.

Isso permite que uma série que passe nos Estados Unidos no domingo à noite, por exemplo,

seja visto na segunda-feira de manhã por pessoas no mundo todo. Foi assim que “The L

Word” chegou primeiramente ao Brasil. Enquanto a série lançada em 2004 só foi exibida pela

Warner Channel no meio de 2005, milhares de pessoas já tinham visto a primeira temporada

pela internet.

Ou seja, as séries de TV norte-americanas estão começando a ocupar um lugar

dentro dos lares das classes com alto poder aquisitivo, que têm TV a cabo e acesso à internet,
72

que antes era ocupado, em sua maioria, pelas telenovelas e pelos filmes. Com produções mais

livres, ousadas, criativas e trazendo atores esquecidos pelo cinema à tona novamente, os seri-

ados estão perdendo o estigma de enlatados, para se tornarem produtos de primeira linha.

Existe essa questão de que a TV influencia a sociedade e vice-versa. No início exis-


tiram programas, principalmente americanos, que eram produzidos com o intuito de
direcionar o comportamento social. Pode até ter conseguido em algumas camadas e
por algum tempo, mas a sociedade não deixou de mudar por conta disso. [...] Em re-
lação às séries de televisão, mais especificamente a americana, eles levavam uma
década inteira para abordar um determinado comportamento. Muito embora os te-
mas considerados tabus sempre estivessem camuflados nas entrelinhas. A vantagem
da televisão é conseguir trazer para dentro das casas das pessoas situações nas quais
elas podem se identificar e (se Deus quiser) permitir que elas se questionem; é levar
para dentro das casas das pessoas um mundo de informações e imagens às quais elas
não teriam acesso por falta de tempo, interesse, geografia, dinheiro ou cultura. Cabe
à televisão saber utilizar essa vantagem. (FURQUIN, 2005, disponível em
<http://www.poucaseboasdamari.com>, acesso em 17 nov. 2007)

3.4. A homossexualidade nas séries americanas

Há exatos dez anos, a comédia “Ellen”, se tornava um marco para a visibilidade

lésbica na mídia. Sua importância é levantada até hoje pelas estudiosas da lesbiandade. Um

dos sites americanos mais importantes sobre a homossexualidade feminina na mídia leva exa-

tamente o nome After Ellen (algo como “Após Ellen”)48. Na série, que estreou em 1994 e fi-

cou no ar até 1998, a protagonista Ellen Morgan, vivida pela comediante e apresentadora El-

len DeGeneres, é a neurótica dona de uma livraria que tem que tomar conta não só dos negó-

cios, como também de toda sua família. Em 1997, no episódio “The Puppy Episode”, ela se vê

apaixonada por uma amiga. Numa atitude inesperada, ela se declara: “Susan, I´m gay!” (“Su-

san, eu sou gay!”). A comediante, com essa frase, não só assumiu sua homossexualidade no

programa como na vida real, passando a aparecer nas revistas com sua namorada da época

Anne Heche. O episódio causou comoção nacional entre a comunidade lésbica americana e,

mais tarde, teve seu roteiro premiado pelo Emmy Awards 2007.

48
Ver <http://www.afterellen.com>
73

No entanto, através do documentário “Como Ellen DeGeneres Saiu do Armário”,

exibido em 24 de junho de 2007 no canal brasileiro GNT, é possível descobrir que as negoci-

ações para que essa simples frase fosse dita duraram anos. Além disso, pouco tempo depois, a

série, de boa audiência, foi cancelada sem maiores explicações.

O arranha-céu espinhoso que Ellen e a equipe de seu programa tiveram de escalar


para tornar público algo que todo mundo [ao menos todos os gays que assistiam à
série] já sabia é muito comum. Quantos gays atualmente ocupam cargos bem-
sucedidos e vão a festas de empresas com seus verdadeiros parceiros? Acho que são
poucos. [...] Segundo o documentário, que explica não ter o outro lado porque a Dis-
ney não quis se pronunciar sobre o ocorrido, foram meses de negociações secretas
até que o capítulo em que Ellen diz "I'm gay" ("Eu sou gay") fosse ao ar. "I'm gay"
caiu feito uma bomba e o programa "Ellen" foi extirpado. Lamentável a decisão da
Disney de encerrar um produto que rendia audiência porque parcelas radicais da so-
ciedade americana ameaçaram boicotar a empresa para não ouvir o que Ellen queria
e, segundo ela própria, precisava dizer. (BRASLAUKAS, 2007, disponível em
<www.folha.com.br>, acesso em 18 nov. 2007)

A comediante, em vez de se recolher, passou a se mostrar mais do que nunca. A-

pós algumas tentativas de retornar com uma série de ficção e a participação em alguns filmes,

em 2003, Ellen lançou o programa de entrevistas “The Ellen DeGeneres Show”, premiado

diversas vezes como melhor programa de entrevistas. Em 2007, foi convidada para ser a anfi-

triã da 79ª Cerimônia do Oscar, sendo a primeira lésbica assumida a apresentar a premiação.

Durante a festa, uma das mais tradicionais de Hollywood, Ellen disse em alto e bom tom:

Que noite maravilhosa, tanta diversidade neste lugar, num ano que que tantas coisas
negativas foram ditas sobre a raça, a religião e a orientação sexual das pessoas. E eu
preciso acrescentar: se não fossem os negros, os judeus e os gays, não haveria os
Oscars, ou alguém chamado Oscar, se você pensar bem. (DEGENERES, 2007, dis-
ponível em <www.pt.wikipedia.org>, acesso e 17 nov. 2007 [tradução nossa])

Nesse pequeno trecho de seu discurso, Ellen atacou as atitudes homofóbicas da po-

lítica norte-americana e, ao mesmo tempo, o coração conservador e preconceituoso de Holly-

wood, que, por tantos anos, mantém escondida a homossexualidade de atores e atrizes famo-
74

sas. Foi um tiro em cheio no falso moralismo dos EUA, e somente Ellen DeGeneres, uma das

mais poderosas mulheres do país, poderia dizê-lo naquela circunstância.

Como influência de sua atitude positiva ao assumir sua lesbianidade, as pessoas

passaram a ver mais e mais personagens homossexuais aparecendo nas séries. Numa pesquisa

realizada pelo professor americano David Wyatt49 desde 1999, é possível comprovar esse fa-

to. De 1961 a 1970, apenas 01 personagem gay apareceu em série de TV. Nos anos 70 foram

58, enquanto nos anos 1980 foram 89 os homossexuais como personagens nos seriados. Nos

anos 90, esse número triplica para 337 e a partir de 2000 até agora, já são 372 personagens

gays e lésbicas a aparecerem nas séries de TV. Simples modismo ou maior visibilidade, isso

não há como afirmar. Mas o fato é que essa presença tem ajudado a diminuir o preconceito

das pessoas, a partir do momento em que mostram os homossexuais não mais como caricatu-

ras de seres humanos, estereotipadas e negativas, mas da forma como eles simplesmente são:

pessoas, seres humanos, com seus conflitos, seu bom humor, suas características únicas e seus

anseios. Mesmo não sendo a forma ideal, já que obedece a padrões de consumo, a visibilidade

homossexual nas séries é uma realidade bem vinda nos dias de hoje.

Algumas dessas personagens e séries foram significativas. Em 1991, durante a

quinta temporada de “L.A. Law”, pela primeira vez se assiste um beijo entre duas mulheres

numa série de TV. As atrizes que o protagonizaram foram Amanda Donohoe (C.J. Lamb) e

Michelle Green (Abbey Perkins). Já “Ally McBeal”, de 1994, também teve um breve romance

lésbico. Mas, no caso, era apenas uma experimentação da personagem Ally (Calista Floc-

khart) para tirar de sua cabeça, a dúvida sobre sua orientação. “Dawson´s Creek” foi respon-

sável pela exibição do primeiro beijo entre dois rapazes, e mostrou vários relacionamentos

gays durante a série.

49
Segundo Wyatt, para entrar na lista, o personagem tem que aparecer em pelo menos 03 episódios da série e ser assumida-
mente homossexual. Aqueles que apenas parecem ser gays, mas não abrem isso na série, não entram para a compilação. A
lista completa está disponível no site <http://home.cc.umanitoba.ca/~wyatt/tv-characters.html>, acessado em 10 nov. 2007.
75

“Friends” foi também uma das primeiras séries a trazer um casal de lésbicas e um

pai transexual em sua trama, sem que estes fossem carregadas de preconceitos. A personagem

Carol é ex-mulher de Ross Geller e, junto com sua namorada Susan, criam Ben, filho deles. A

série mostra uma relação aberta na qual Ross primeiro questiona, mas depois aceita a criação

de seu filho por elas. Já o pai de Chandler Bing, é cantora em Las Vegas e dona do clube “Vi-

va Las Gaygas”. Charles Bing assume o nome de Helena Handbasket e, quando aparece na

série, é vivida pela atriz Kathleen Turner.

Em 1995, quando “Xena: Warrior Princess” começou a ser produzida, nem os ro-

teiristas nem os produtores tinham em mente a revolução no meio lésbico que ela iria causar.

A série, que contava as aventuras mitológicas de Xena (Lucy Lawless), apresentava como

protagonista uma mulher linda, forte, inteligente, esperta e muito habilidosa com as espadas e

com seu famoso chakram50, vencendo os Deuses do Olímpio sem ter sequer um “super-

poder”, ela era uma mortal como outra qualquer. Era também uma guerreira autêntica, que

começou como uma criminosa e assassina, mas que, ao conviver com a jovem poetisa Gabri-

elle (Renee O‟Connor), foi tornando-se uma heroína de coração aberto e bondoso, conhecida

por ajudar a todos.

Com esse contexto apresentado, muitas lésbicas se tornaram fãs da série por verem

ali um relacionamento amoroso entre Xena e Gabrielle. De fato, a forma como lidavam uma

com a outra, incluindo até mesmo as discussões, era uma representação perfeita de um casa-

mento. Criaram-se grupos em vários países do mundo nos quais as lésbicas se reuniam para

assistir aos episódios que acabaram por contribuir muito para a cultura homossexual feminina

dos anos 90. A partir daí, a audiência do seriado aumentou muito. Seus criadores viram nisso

uma oportunidade de manter o sucesso, criando uma insinuação lesbiana em torno da história.

50
Chakram é uma arma indiana, cilíndrica, vazada no centro e afiada, que funciona como um bumerangue. Virou a marca
registrada de Xena.
76

Há seis anos [texto de 2002] ela começou a chamar atenção de um grupo de lésbicas
que se reunia para beber, conversar e dançar na boate Meow Mix, em Nova York.
Poucos meses depois, grupos de fãs na internet já começavam a discutir se a relação
entre ela e sua companheira era simples amizade. Bastou esse agito para as atrizes
Lucy Lawless e Renée O´Connor começarem a colocar “cacos” nas falas de Xena e
Gabrielle, insinuando uma forte paixão homoerótica. Em seguida foram os roteiris-
tas que entraram na dança e passaram a elaborar histórias que explorassem o amor
entre as duas. Dois anos depois de estrear, o seriado inspirou centenas de bolachas
orgulhosas que passaram a desfilar vestidas de Xena e Gabrielle nas paradas gays de
Nova York, San Francisco, Londres e Sidney. (LEONEL, 2002, disponível em
<http://mixbrasil.uol.com.br/cio2000/grrrls/xena_final.shl>, acesso em 20 nov.
2007)

Em vários momentos da série, as personagens se referiam uma à outra como “al-

mas gêmeas”, diversas declarações como “eu não posso viver sem você” ou “eu te amo” vi-

nham nas falas tanto de Xena quanto de Gabrielle, e, além disso, vários beijos entre as duas

foram trocados, só que de forma indireta. Num dos episódios, Xena, através da magia, encar-

na no corpo de um homem que acaba tendo um caso com Gabrielle. Somente no último epi-

sódio elas se beijaram de fato, no momento em que Xena morre nos braços de Gabrielle. Ape-

sar disso, “Xena” pode ser considerada como uma das maiores representações lésbicas da TV

americana.

Primeiro, porque Xena foi uma pioneira: Ellen não havia saído do armário, não exis-
tia “Will and Grace” e nem “Sex and the City”. E segundo porque, ao contrário des-
tas séries novas, Xena elevou a relação lésbica a uma instância mitológica: o casal
lésbico, mais que um fenômeno da vida urbana, cotidiana e contemporânea, torna-se
um arquétipo. Assim, com força de símbolo, a relação apaixonada entre as duas he-
roínas ultrapassa a fronteira de tempo e espaço, atingindo as mais variadas culturas,
idades, gostos e, inclusive, orientações sexuais. (LEONEL, 2002, disponível em
<http://mixbrasil.uol.com.br/cio2000/grrrls/xena_final.shl>, acesso em 20 nov.
2007)

Em “Buff – a caça-vampiros” foi introduzido o primeiro casal lésbico assumido da

televisão norte-americana, que usava a magia como uma metáfora para a lesbianidade. Tara

Maclay (Amber Benson) era uma bruxa iniciante que se apaixona por Willow (Alysson Han-
77

nigan), uma colega mais experiente. Willow, personagem formal da série desde seu início, e

Tara ficam juntas por duas temporadas e meia. Elas se tornaram um dos casais lésbicos mais

cultuados entre os jovens de toda a TV norte-americana, virando ícones da cultura popular.

Tanto elas quanto a personagem Jack McPhee (Kerr Smith), de “Dawson´s Creek” foram

muito significativos neste contexto por atingir um público alvo até então ignorado pelos pro-

gramas com temática homossexual: os adolescentes. Suas atitudes positivas, sua forma de

assumir a orientação sexual ajudaram a muitos jovens a se assumirem também.

Aliás, esse é um aspecto importante da presença de personagens gays na televisão.

Através da identificação, as pessoas encontram uma melhor maneira de se conhecer, de se

entender. E, vendo sua vida representada ali, tendem a ficarem mais confiantes sobre si mes-

mos.

“Will & Grace” apresentou o primeiro protagonista assumidamente homossexual

numa série humorística. Com roteiro bem escrito e atores carismáticos, caiu no gosto popular,

apesar de reforçar alguns estereótipos como a do gay efeminado, do cuidado exacerbado com

a aparência, entre outros. A série apresentava a idéia de que toda mulher deve ter na vida um

melhor amigo gay, e, apesar de apresentar elementos recorrentes da chamada cultura gay, a

série não abordava de forma pejorativa as atitudes do protagonista Will Truman (Eric Mc-

Cormack), um advogado de Nova York, e de seu melhor amigo Jack McFarland (Sean Ha-

yes), que fez de tudo um pouco na série. As outras personagens da série, Grace Adler (Debra

Messing) e Karen Walker (Megan Mullally), volta e meia tinham tendências lesbianas. Karen,

inclusive, teve como amante Liz, vivida pela cantora Madonna.

Em “Sex and the City”, atriz brasileira Sônia Braga interpretou uma artista lésbica

que teve um relacionamento com Samantha (Kim Cattrall), uma das personagens principais da

trama. Ela aparece em três episódios da quarta temporada (2001), mas, por um lado, não foi

muito positiva a sua participação para a visibilidade lesbiana. No relacionamento que se esta-
78

belece, fica marcado o estereótipo de que as lésbicas não têm uma vida sexual intensa e que a

única coisa que se prevalece na relação é o emocional. Várias vezes Samantha e Maria (Sônia

Braga), aparecem tomando banho em uma banheira. Em determinado momento, a americana,

famosa por ser a mais impulsiva sexualmente da série, se diz cansada dessa relação “onde se

fala muito, toma-se muito banho e sexo, nada”. Em outro episódio, a protagonista Carrie (Sa-

rah Jessica Parker) experimenta beijar uma garota bissexual, interpretada pela cantora Alanis

Morissette, e diz que o beijo “tinha gosto de galinha”. Por outro lado, a série apresenta vários

personagens gays masculinos, e o melhor amigo de Carrie, Stanford Blatch (Willie Garson)

casa-se com um homem e tem um dos relacionamentos mais bem sucedidos de “Sex and the

City”.

“Six Feet Under” mostrou do início ao fim todos os dramas de uma relação amo-

rosa entre dois homens, com muita veracidade. Os protagonistas.Michael C. Hall (David Fi-

sher) e Mathew St. Patrick (Keith Charles) viveram juntos do início ao fim da série, que teve

cinco temporadas. David, o filho do meio da família Fisher, conservador e republicano, era

quem comandava a funerária da família. Ele e seu companheiro exemplificaram na série vá-

rias situações pelas quais passa um casal homossexual e, com isso, ajudaram a quebrar vários

tabus da TV: viver um relacionamento inter-racial, assumir-se para a família e serem aceitos,

sofrer violência por ser gays, fingi ser heterossexuais por causa da igreja ou do trabalho, ter

alguns casos fora do relacionamento, montar uma casa juntos e adotar uma criança. E, o me-

lhor, tudo isso sem olhar preconceituoso, estereotipado e ficando juntos, literalmente, até que

a morte os separasse. Além disso, na quarta temporada, Claire (Lauren Ambrose), a irmã de

David, envolve-se em uma experiência lésbica com Eddie (Mena Suvari), uma amiga da fa-

culdade.
79

Edie é assumidamente lésbica e assumidamente a fim de Claire. Claire, por outro la-
do, não sabe para onde correr: ela admite estar atraída pela amiga e diz se sentir
„inspirada' na companhia de Edie, porém, não sabe se esta atração é sexual. Como
conjecturas não matam a curiosidade nem o desejo de ninguém, Claire e Edie con-
cretamente consumam o fato. Após conferir o lado lés da vida, ambas se dão conta
que Claire veio parar na praia errada. No entanto, todo o envolvimento das duas é
realisticamente bem construído: que mulher hetero já não atravessou esta confusão e
que lésbica já não se viu atraída por uma amiga hetero? (LÉSBICAS NA TV...,
2007, disponível em <http://labris.org/monta.php?idmenu=17>, acesso em 17 nov.
2007)

Outro exemplo de uma experimentação da lesbianidade foi o caso que Marissa

(Micha Barton) e Alex (Olivia Wilde) tiveram na segunda temporada de “The O.C.” (2003).

Uma das personagens principais da série, a problemática Marissa, sente-se atraída por uma

amiga. Daí, ela resolve a confusão inicial tendo um relacionamento de fato com Alex. Num

determinado momento da trama, elas se assumem para amigos e família, que vivem numa das

mais ricas e tradicionais áreas da Califórnia. Levam adiante o namoro e chegam a morar jun-

tas rapidamente, mas logo depois terminam devido a ciúmes e falta de dinheiro. O estranho é

que, após o término do namoro, e até o fim da série, o assunto não foi mais abordado em mo-

mento algum.

Em 1999, surgia aquela que se tornaria um marco para a comunidade LGBT, a

primeira série assumidamente gay: “Queer as Folk”. Produzida primeiramente no Reino Uni-

do e depois nos Estados Unidos (2000), pela Showtime, e com um nome que brinca com um

ditado inglês que diz “there is nought so queer as folk” (“nada é tão estranho quanto as pesso-

as”), a série conta a história de homens gays e um casal de lésbicas. Os gays da série foram

caracterizados de uma forma muito natural, com sua realidade retratada nos mínimos detalhes.

Há quem diga que há sexo demais na série, já que, desde o primeiro episódio, a personagem

de Michael Novotny (Hal Sparks) solta a frase “the thing you need to know is: it’s all about

sex” (“o que você precisa saber é: tudo gira em torno do sexo” [tradução minha]), e logo de-

pois a cena noturna das boates gays invade a tela, mostrando um pouco daquele universo.
80

A abertura de “Queer As Folk” é uma clara referência à vida noturna, a boate. Ho-
mens de corpos atléticos, dançando de tanguinha e chapéu de cowboy, estilo go go
boys, que são ícones das boates GLS, sob um plano de fundo com imagens psicodé-
licas, coloridas em tons rosa, amarelo, lilás, e uma música eletrônica bastante ani-
mada e dançante, é um clipe da própria boate Babylon. O espectador está vendo a
abertura e de repente percebe que se trata da imagem de telão de uma boate, e ali já
começa o primeiro episódio, “New Boy”: Mike apresentando a boate Babylon, o que
toca, quem freqüenta e o que os freqüentadores desejam naquele ambiente. (BAR-
RETO, BEZERRA e RÉGIS, 2006) [grifo nosso]

Mas o fato é que, como nunca, viram-se na TV tantos homens homossexuais vi-

vendo suas vidas e seus dilemas, como a traição, a aceitação das mães, a questão do casamen-

to gay, a paternidade de uma criança criada por duas mães lésbicas, a AIDS, e a descoberta e

prática sexuais em sua mais profunda verdade. “Queer as Folk”, que foi produzida até 2005 e

contou com 83 episódios, teve altos índices de audiência nos Estados Unidos durante seus

cinco anos de exibição. No Brasil, era veiculada pelo canal Cinemax, mas os DVDs com suas

temporadas ainda não foram lançados aqui.

O sucesso da série foi tão grande que o canal produtor, o Showtime resolveu ousar

um pouco mais. E, em 2004, lançou a série “The L Word”.


81

LEISHA HAILEY: People are gonna call it a lot of things...

LAUREL HOLLOMAN: Luscious

KATE MOENING: How do I describe it...?

LAUREL HOLLOMAN: Lusty

JENNIFER BEALS: Lusty, it certainly is one at times.

LAUREL HOLLOMAN: It just simply a show that you'd have to watch

ERIC MABIUS: It's so much more than you can possibly conceive of

ERIN DANIELS: This is NOT a female Queer as Folk!

GUINEVERE TURNER: It's a lot less drugs and a lot less dancing...it’s a
show about a group of wonderful women...

ILENE CHAIKEN: ...and also this guy...never forget the guy...

GUINEVERE TURNER: The L Word is the first of its kind.

JENNIFER BEALS: I think the show defies any kinda category...

NARRATOR: This January the buzzword is The L Word, a new Showtime


original series that will have America talking... or... leave it speechless.
LEISHA HAILEY: I look at it as THE biggest thrill of my life, pretty much.
(THE L WORD DEFINED, 2004)

LEISHA HAILEY: As pessoas irão chamá-la de várias coisas...

LAUREL HOLLOMAN: Sexy.

KATE MOENING: Como eu posso descrevê-la?...?

LAUREL HOLLOMAN: Sensual

JENNIFER BEALS: Sensual, certamente assim às vezes.

LAUREL HOLLOMAN: É simplesmente uma série que você vai ter que
prestar atenção.

ERIC MABIUS: É, assim, muito mais do que você poderia imaginar.

ERIN DANIELS: NÃO é um Queer as Folk de mulheres!

GUINEVERE TURNER: Tem muito menos drogas e menos dança tam-


bém... É uma série sobre um grupo de mulheres maravilhosas...

ILENE CHAIKEN: ...e tem também aquele cara...nunca se esqueça do ca-


ra

GUINEVERE TURNER: The L Word é a primeira desse tipo.

JENNIFER BEALS: Eu penso que a série vai definer uma nova categori-
a...

NARRATOR: Neste janeiro, o burburinho do momento é The L Word,


uma nova série original de Showtime que vai dar o que falar na América...
ou...deixá-la sem palavras.

LEISHA HAILEY: Eu vejo isso como A grande emoção da minha vida,


grande mesmo.
(THE L WORD DEFINED, 2004)
82

4. A PRIMEIRA SÉRIE LÉSBICA DA TV

Quando a série “Sex and The City”, estava chegando ao fim, na segunda quinzena

de 2003, logo começaram a surgir boatos sobre um novo programa que seria produzido pela

rede de TV Showtime. A especulação era de que a nova série também seria sobre um grupo de

amigas e suas aventuras sexuais em uma cidade. Mas, dessa vez, essas mulheres teriam, além

de uma cidade diferente como pano de fundo, uma pequena diferença em relação à Carrie,

Samantha, Charlotte e Miranda51: elas seriam lésbicas.

Os rumores aumentaram quando a campanha de marketing que começava, aos

poucos, a tomar conta da internet e da TV norte-americanas anunciava: “Same sex, different

city” (“mesmo sexo, cidade diferente”). E foram confirmados quando, por volta de outubro

daquele ano, divulgaram o nome da série: “The L Word”. A palavra com L, que se ocultava no

título da novidade, era lésbica. Sim, aquele seria um seriado sobre homossexualidade femini-

na. E a homossexualidade feminina em sua melhor forma: atrizes lindas e elegantes integra-

vam o elenco, cenas sensuais eram divulgadas dos trailers antes do lançamento, muito sexo

explorado de forma direta aparecia nas chamadas.

Os conservadores acharam que aquilo um absurdo, alguns homens heterossexuais

viram uma oportunidade de realizar suas fantasias sexuais, as mulheres heterossexuais fica-

ram intrigadas, e as lésbicas se dividiram: “era aquela a realidade? Qual o objetivo de se colo-

car mulheres tão lindas como lésbicas? Onde estão as mulheres masculinas? Será que esse

seriado foi feito pra gente?”. De fato, as opiniões e críticas foram diversas, mas a verdade era

que pela primeira vez se produzia uma série de TV totalmente feita por e para lésbicas.

Lançada pelo canal que anteriormente havia ousado com “Queer as Folk”, a série

foi uma vitória da produtora executiva e roteirista Ilene Chaiken, lésbica assumida, após três

51
Personagens de “Sex and the City”, apresentadas anteriormente neste trabalho.
83

anos de negociação. Quando começou a ser exibida nos Estados Unidos, “The L Word” cau-

sou muito furor e comentários negativos de várias partes. Mas a primeira temporada passou,

veio a segunda, que garantiu a renovação para a terceira, seguida pela quarta e no dia 06 de

janeiro de 2008, “The L Word” estréia sua quinta temporada nos Estados Unidos, com um

status muito positivo, além de muitos patrocínios, adquiridos ao longo dessa jornada.

Quando se fala em mídia internacional especializada, não é incomum que se retrate


The L Word como um “Sex and the city lésbico” ou um “Sex and the city lésbico,
mas menos moralista”. Essa comparação pode ser feita, inclusive, no que tange a
padrões de consumo, modelos estéticos e pertencimento de classe. Contudo, as lés-
bicas de The L Word embora estabeleçam relações de longo prazo em alguns mo-
mentos, ou desejem isso, não pautam seu discurso na idéia de “só ser uma mulher
completa dentro de uma relação”, mas partem da idéia de que a orientação sexual
cria uma série de inserções sociais que não poderiam ser pensadas fora desse contex-
to, um lugar diferenciado no mundo, cujo instrumento principal de agência é a idéia
de que é bom ter este estilo de vida e que é bom estar fora do armário. (VENCATO,
2005, p. 54)

Ao longo deste capítulo, pretendo analisar a homossexualidade feminina represen-

tada nas quatro temporadas de “The L Word”. Não pretendo, nesta análise, me concentrar

muito na história em si, apesar de, por algumas vezes, relatá-la para dar sentido ao resto do

contexto. Meu foco principal, portanto, se tornam as várias identidades lésbicas que ali foram

exemplificadas e nas diversas situações que, apesar de ficção, refletem bem as conquistas,

dilemas, dúvidas, escolhas e vivências da mulher homossexual contemporânea, seja ela ame-

ricana ou não.

4.1. A Palavra L: lésbicas com glamour e verossimilhança

No dia 18 de janeiro de 2004, os americanos puderam ver, na TV por assinatura,

em menos de 1 minuto e meio de programa, um casal de lésbicas dormindo nuas em uma ca-

ma de casal, cobertas apenas por um lençol, e, em cena seguinte, um beijo insinuante entre

ambas que comemorava o fato de uma delas estar ovulando, ou seja, era o momento ideal para
84

fazer a inseminação artificial. Se em tão pouco tempo, um programa de TV apresentava tantos

tabus sem que estivessem cheios de preconceito, era o presságio do que estava por vir. “The L

Word” se tornou um fenômeno da TV por assinatura e da internet, sendo lançado no ano se-

guinte no Brasil, também no canal fechado. Hoje, indo para sua quinta temporada, o seriado

não precisa mais provar sua rentabilidade financeira e qualidade técnica. Mas quais foram as

principais ferramentas que abriram o caminho para que isso fosse possível, para que as lésbi-

cas tivessem essa visibilidade? Ainda mais estando a homossexualidade à margem do padrão

heterossexual de sociedade, estabelecido através dos tempos e reforçado pelo preconceito e

pela homofobia, como foi visto anteriormente. Teria o formato seriado de TV, como a van-

guarda da televisão, contribuído para essa abertura?

Apesar de vanguardista, nem mesmo a televisão aceitou prontamente a idéia de se

produzir uma série sobre lésbicas. A produtora Ilene Chaiken, quando apresentou a idéia em

2000, foi considerada louca pelos produtores do canal Showtime. Em entrevista dada em 2005

ao programa “In The Life”, uma revista eletrônica voltada para homossexuais dos Estados

Unidos, Ilene afirmou que os donos da emissora disseram não ser possível conseguir patrocí-

nio para um programa deste tipo. Apesar da primeira negativa, ela insistiu no projeto por três

anos. Somente quando os executivos constataram o inegável valor comercial de “Queer as

Folk”, que além audiência, tinha conseguido emplacar no mercado com outros produtos de

mershandising, como CDs, camisas, bonés, adesivos e até bonecos52, seus olhos voltaram a

prestar atenção no projeto de “The L Word”. Mas o apelo principal que viram na série naquele

momento era outro.

Segundo o artigo “The Final Frontier: Lesbians”, publicado no N.Y. Daily News

em 2003, o vice-presidente da programação original do canal Showtime, Gary Lavine, afir-

mava que o “sexo lésbico, garota com garota, é um prato cheio para atrair a audiência de ho-

52
Para mais informações sobre os produtos, ver <http://www.sho.com/queer/>
85

mens heterossexuais” (HUFF, 2003 tradução nossa). Ou seja, conforme os donos da TV, a

audiência estaria garantida ao promover a grande fantasia masculina de duas mulheres juntas.

Na bandeja, a série levaria a gays, lésbicas e mulheres heterossexuais a assistirem também.

Ainda conforme o artigo, essa audiência masculina seria “educada”, através de histórias pro-

fundas e das interpretações das atrizes, que, no final das contas, iriam mostrar aos homens

heterossexuais como respeitar o estilo de vida da mulher lésbica. Parece mais um discurso

moralista que procura desculpar a existência de uma série sobre o tema. Mas, independente

disso, foi o canal Showtime um dos grandes responsáveis por se falar tanto sobre homossexu-

alidade na TV dos últimos anos. A produtora, neste primeiro momento, sabia que as regras a

seguir seriam essas, senão sua empreitada não seria possível. Ela afirma no mesmo artigo, por

exemplo, acreditar que o Showtime, assim como ela, tinha um gosto especial em contar aque-

las história por ser algo totalmente ousado, inesperado e, como se revelaria aos poucos, pro-

fundamente emocional.

A partir dessa idéia, o episódio piloto foi criado. O mote principal da história era

simples, e a fórmula parecia repetida: a vida de mulheres em uma cidade. Como núcleo prin-

cipal, “The L Word” apresentava um grupo de amigas, na faixa dos 30 anos, lindas, femini-

nas, independentes, ricas, elegantemente vestidas, com trabalhos de projeção e boas moradias

na atual Los Angeles, nos Estados Unidos. Mulheres que, num primeiro olhar, seriam caracte-

rizadas como heterossexuais. Mulheres que, “apesar disso”, eram lésbicas.

Atrizes como Jennifer Beals, Pam Grier e Mia Kirshner foram escolhidas para os

papéis principais. Todas elas heterossexuais, todas elas com uma tradição de personagens

extremamente sensuais, tanto no cinema quanto na TV. A atriz Jennifer Beals havia mexido

com a cabeça de muitos homens e mulheres no clássico dos anos 80 “Flashdance” (1983),

com sua famosa dança e sua atitude independente e forte de construtora civil. Pam Grier, tam-

bém cantora, era a querida de Quentin Tarantino, com quem fez a provocante “Jackie Brown”
86

(1997), uma homenagem aos vários papéis parecidos que havia interpretado nos anos 70. Já

Mia Kirshner foi uma das vilãs de “24 Horas” (2001), na qual também interpretava uma as-

sassina lésbica com muito apelo sexual em suas cenas. Além delas, Karina Lombard, Erin

Daniels, Lauren Holloman, Katherine Moening, que afirmavam ser heterossexuais, foram

escaladas para viverem lésbicas na série. Por outro lado, a única atriz homossexual assumida,

Leisha Hailey, foi convidada a viver uma bissexual. Estava pronto o elenco principal de “The

L Word”, que ainda contava com o ator Eric Mabius. Como detalhe importante, assim como a

palavra lésbica, todos os títulos dos episódios começariam com a letra L53.

Neste momento, é importante fazer um parêntese. Como já citado anteriormente, a

internet em suas conexões banda-larga facilitaram muito o acesso às séries de TV bem antes

da sua estréia oficial em outros países. Com “The L Word”, não foi diferente. Uma grande

parte das espectadoras e dos espectadores do seriado, assim como da opinião da crítica espe-

cializada, foi formada praticamente ao mesmo tempo tanto aqui quanto nos Estados Unidos.

Apesar da série só ter sido lançada oficialmente no Brasil no dia 10 de julho de 2005, através

de downloads dos episódios, milhares de pessoas acompanhavam “The L Word” desde sua

primeira exibição, em território americano, já em 2004. Com isso, prefiro neste momento tor-

nar paralelas as exibições e citar os fatos ocorridos nos dois países simultaneamente. Isso por

considerar as reações parecidas, apesar de algumas diferenças pertinentes, o que reforça meu

ponto de vista da série como uma representação mais global da lesbianidade.

Fechado o parêntese, volto à campanha de lançamento da série nos Estados Uni-

dos, quando, apesar de ainda não terem visto o piloto, a comunidade lésbica dos Estados Uni-

dos resolveu se manifestar contra a falta de representantes mais masculinizadas na série. Onde

estavam as chamadas “butches” ou “dykes”? Por que todas eram tão lindas, “femmes”, de alto

poder aquisitivo, bem no estilo consumista “lesbian chic” se aquela não era bem a realidade?

53
Apenas o episódio piloto não teve seu título iniciado por L. Os títulos de todos os episódios já lançados, assim como sua
descrição, elenco e convidados, podem ser vistos em <http://www.epguides.com/LWord/> ou no site oficial da série:
<http://www.sho.com/site/lword/episodes.do> , acesso em 20 nov. 2007.
87

Antes de aprofundar nessa questão, quais seriam, então, essas identidades lesbianas, constru-

ções sociais ou estereótipos, que vigoram em nossa cultura?

É possível que a rigidez da divisão binária da sexualidade humana faça com que a
atração por outra mulher crie a necessidade de adotar características masculinas, fí-
sicas e comportamentais, tosca forma de encenar a sedução (BARRET, 1990: 257).
[...] Temos aí o esquema da ordem heterossexual em corpos biologicamente femini-
nos, o casal butch/femme. Outros tipos seriam a esportiva, cuja liberdade corporal
inspira dúvidas, a lesbian chic, meio andrógina, com especial cuidado no visual, e,
quem diria, aquela que não tem nenhum signo externo de suas preferências sexuais
e, neste caso, todas as mulheres podem estar incluídas. Este último tipo é talvez atu-
almente o mais difundido, não como uma forma de esconder a sexualidade, mas para
marcar a privacidade de opção. Afinal, por que a sexualidade teria que ser explicita-
da? (NAVARRO-SWAIN, 2000, p.80-81)

No prefácio à edição brasileira do livro “Sexo entre Mulheres: um guia irreveren-

te” (1998), de Susie Bright, existe uma outra concepção dos papéis butch e femme:

Butches não são mulheres que desejariam ser homens. Butches são mulheres que se
sentem mais à vontade com comportamentos tidos como masculinos, mas que na
verdade podem ser praticados tanto por homens quanto por mulheres. [...] Femmes,
do mesmo modo não são mulheres à espera de um homem pra lhes mostrar as mara-
vilhas da vida heterossexual. Femmes, são mulheres que se sentem atraídas por mu-
lheres, e ao mesmo tempo gostam do papel tradicionalmente feminino criado pela
sociedade. Muitas vezes, Femmes se sentem atraídas por Butches e vice-versa, mas
simplesmente porque esta parece ser uma boa combinação de energias, e não porque
desejem imitar modelos heterossexuais. São dois tipos culturais que, é claro, não e-
xistem em estado puro, sendo cada mulher uma mistura das duas tendências de
comportamento e aparência, ou nenhuma delas, como a androginia vem demons-
trando. (BRIGHT, 1998, p. 10)

Ainda conforme explica Bright, durante a revolução feminista, a relação butch e

femme fora rejeitada por ser uma reafirmação da heteronormatividade vigente54. Mas atual-

mente, esses termos são valorizados como polaridades do modo de ser erótico das mulheres

(BRIGHT, 1998). Por isso a falta dessa representação causou tanto furor, porque muitas lésbi-

cas não se viram representadas na série que seria feita para elas.

54
Um bom exemplo dessa rejeição pode ser visto na segunda história do filme “Desejo Proibido” (“If the Walls Could Talk
2”, 2000), em que uma feminista lésbica se apaixona por uma butch e acaba criticada por suas amigas.
88

Isso causou alguma celeuma nos fóruns internacionais, que reclamavam que as lés-
bicas masculinizadas deveriam estar representadas não apenas como figurantes e-
ventuais. Essa discussão, contudo, não teve quorum no Brasil, em que a maior parte
das discussões passou mais pela idéia de que é bom ver mulheres lésbicas bonitas na
TV, uma vez que no imaginário social lésbicas são comumente pensadas como mu-
lheres masculinizadas e descuidadas. Evidentemente, este seria o argumento mais
politizado e pouco citado. A beleza das atrizes geralmente é citada muito mais em
tom de tietagem que qualquer outra coisa. [...] Contudo, apesar dessa ausência, não
se pode pensar em The L Word fora de um movimento de política identitária ameri-
canizado e que tenta representar vários sujeitos diferenciados dentro daquele cenário
social. (VENCATO, 2005, p. 54)

A questão é que “The L Word” realmente foi lançada com um apelo muito forte

para o público heterossexual masculino. E, por isso, essas características acabaram sendo ma-

quiadas para ficarem mais sexualizadas. Tanto as produtoras quanto as diretoras, em sua mai-

oria lésbicas, aparentemente sabiam o que estavam fazendo desde o início. Sabiam que para

emplacar no mercado, sexista e patriarcal como ele é, um produto feito por mulheres lésbicas,

para mulheres lésbicas e com mulheres lésbicas, seria preciso como estratégia, seguir algumas

regras preconceituosas. Infelizmente, essa ainda é a realidade. Felizmente, a equipe de “The L

Word” não se manteve submissa ao mercado.

Para alívio da comunidade lesbiana, a série se transformou logo no primeiro ano e

teve modificada sua forma de abordagem, passando a mostrar lésbicas mais realistas e se tor-

nando uma referência do que acontece na comunidade homossexual feminina. Além disso,

conseguiu, como previa sua produtora Ilene Chaikn, que os homens que procuravam a série

apenas para verem duas mulheres de “pegando” mudassem suas opiniões. Uma delas foi a do

articulista do jornal O Globo, Arnaldo Bloch.

Um ano atrás eu disse neste espaço que a série The L word, que retrata o mundo gay
feminino, era uma buesta, artificial, preconceituosa. Um ano depois, reformulo: é a
melhor série da TV mundial. Mas... Melhorou tanto? Não. Apenas passei a olhar
com atenção a seqüência de episódios, os universos de personagens, e descobri ali
uma bela carga dramática. "Hahahahahaha!", dirão, "Carga dramática o cacilder, é
um punhetódromo com faixa-bônus artística". Em parte terão razão: adoro olhar mu-
lher se amar (até hoje, nas telas), não só por falar-me ao pau, mas também pela bele-
za do evento homofeminino. E, nesse aspecto, The L word capricha: com uma puta
direção de cena, as transas e os sarros são cheios de verdade sem jamais resvalar no
pornô ou na cafonália dos sexy hots não pagos da vida. Além disso, as tramas são
boas mesmo, os diálogos ágeis e livres de bordões, a música ótima, a câmara sutil e
89

a montagem capaz de surpreender. É claro que isso não basta: sem pelo menos duas
trepadas por episódio eu não correria todo domingo às 23h para ver minhas sapati-
nhas na TV, exercendo meu lado lésbico, que é essa mania de adorar mulher e detes-
tar homem. (BLOCH, 2006, disponível em
<http://oglobo.globo.com/blogs/arnaldo/post.asp?cod_Post=12872&a=4>, acesso
em 17 nov. 2007)

Como mostra bem esse exemplo de pensamento masculino e machista, a estraté-

gia deu certo. A série foi conquistando seu espaço logo na primeira temporada, e, através de

sua narrativa e viradas nas vidas das personagens, mudando a abordagem proposta pelos do-

nos do canal. Mesmo assim, uma coisa permaneceu: o sexo.

A forma como a série mostra a vida sexual das homossexuais de Los Angeles

nunca havia sido adotada antes. Cenas de sexo com as lésbicas, bissexuais e heterossexuais da

série recheiam a trama em todos os episódios. Mas, ao contrário do que se pensa, não são ce-

nas pornográficas ou de simples cunho erótico. São cenas bem dirigidas que, apesar de sutis,

fazem cair por terra duas ultrapassadas concepções: a primeira, de que lésbicas não têm uma

vida sexual ativa, que seu relacionamento é baseado muito mais na afetividade do que no se-

xo; a segunda, de que a relação sexual das lésbicas não é completa, já que não há a presença

do falo.

Uma das idéias preconcebidas e que aparece com freqüência na literatura é que entre
as lésbicas a sexualidade não tem relevância e elas priorizam as carícias amorosas e o
sentimento. Alguns exemplos: „Muitas vezes é o vínculo afetivo que é considerado
mais importante, ou então o contato sexual pode ser mais uma questão de carícias fei-
tas entre as várias regiões do corpo do que um contato voltado essencialmente para os
órgãos genitais‟ (Fry, 1985: 106). Ou ainda: „Mas como muitos casais lésbicos, mes-
mo no século XX, o aspecto sexual de seus relacionamentos não é de importância
primordial. Seus laços são baseados mais no intelecto e nas paixões compartilhadas‟
(Richards, 1993:268). Essas análises dão uma conotação negativa, de seres quase as-
sexuados, e, num mundo onde o sexo é rei, onde a psicanálise faz lei, dar pouca im-
portância à performance sexual reabre o espectro de doença, do antinatural. (NA-
VARRO-SWAIN, 2000, p. 82)

A série entrou fundo na questão, mostrando não só o aspecto afetivo, como tam-

bém os movimentos de conquista, a sedução e todo o processo da relação sexual em si, com

direito ao desfecho final. No episódio piloto da série, por exemplo, a personagem Jenny (Mia
90

Kirshner), faz sexo pela primeira vez com uma mulher. Na cena, além das carícias e dos cari-

nhos, é visível, e bem realista, o momento em que ela chega ao orgasmo. Num misto de culpa,

por estar traindo o noivo, e alegria, por sentir muito prazer, Jenny termina a cena chorando e

sorrindo. Momentos como estes comprovam o que sempre se soube: tudo, na verdade, é ape-

nas uma questão de desejos.

Uma sexualidade problemática, uma recusa do corpo e de seus prazeres, não é mais
comum entre as lesbianas que entre as mulheres heterossexuais, como tantas vezes
se pretende. Enquanto ligadas a experiências e identidades de mulheres, podem ter
sofrido os mesmos traumatismos e violências, os mesmos abusos e assédios que as
heterossexuais, num mundo onde a sexualidade masculina dita as normas. De toda
forma, no processo de socialização, o que é conseqüência é tomado como causa: as
meninas e as mulheres aprendem a controlar, a disciplinar, a negar seus desejos e
seus corpos em nome da moral e dos bons costumes, e toda lésbica foi um dia uma
menina. Uma vez anulados o desejo e a paixão, alega-se que não os possuem. (NA-
VARRO-SWAIN, 2000, p.83)

“The L Word” traz mulheres que podem fazer tudo, menos anular seu desejo e

paixão. Em suas temporadas, mostrou pela primeira vez em tom não pornográfico, situações

como o uso de acessórios e brinquedos sexuais, o sexo a três, uma transexual feminina se re-

lacionando tanto com uma mulher, quanto com um homem, o sadomasoquismo, a realização

de diversas fantasias sexuais e a descoberta do sexo homossexual na terceira idade, dentre

outras.

Essa característica da série, as amostras da vida sexual das lesbianas que são por

ela mostradas, foi responsável por um caso particular que já demonstrava o poder de influên-

cia da série.

Em 2005, quando o canal Warner da TV por assinatura começou a exibir a série

na América Latina, as fãs que já acompanhavam pela internet levaram um susto. As legendas

pareciam não traduzir exatamente o que estava sendo dito e o texto estava sem sentido. Além

disso, o intervalo comercial entrava justamente na hora “h”.


91

Estranhamente, a versão que a Warner latina está colocando no ar para toda a Amé-
rica do Sul e Central é uma versão “light”, mutilada e picotada! Sim, caras leitoras, a
Warner optou por exibir “The L Word” cortando 90% das cenas de sexo, e não foi
só sexo lésbico que foi deixado de fora: cenas de sexo heterosseuxal também foram
editadas. Não bastassem os cortes, nesta versão “latina” algumas palavras mais for-
tes são dubladas (em inglês mesmo). Termos como “pussy” (boceta), “dick” (pau),
“fuck” (foda) e “dyke” (sapata) são substituídas por outras mais “leves”: “fuck” (fo-
da) virou “fudge” (soda), por exemplo. Para finalizar o show de horrores, a tradução
nas legendas é risível. Como foi muito bem observado por uma amiga, a frase "e-
verything in the way you dress screams lesbian" (tudo no seu jeito de se vestir alar-
deia que você é lésbica) foi traduzida como “suas roupas criam uma barreira”. Ou
seja, o próprio sentido da frase foi invertido! (LEONEL, 2005, disponível em
<http://mixbrasil.uol.com.br/mp/2.shtml>, acesso em 20 de julho de 2005)

A articulista do site Mix Brasil, Vange Leonel, e o site The L Word BR, que as-

sim como várias fãs, consideraram o ato de censura um absurdo, lançaram na internet a cam-

panha para que os executivos da Warner Channel voltassem atrás.

“The L Word”, como está sendo transmitido pela América Latina, perde o sentido, a
graça e a qualidade. A impressão que ficou desses dois primeiros episódios é que a
turma de lésbicas retratada é um grupo infeliz, superficial, enrustido que age sem
motivações razoáveis. Resumindo: a versão que você, leitora, está assistindo pela
Warner Channel é um arremedo, uma obra mutilada. Por acaso nós, lésbicas, temos
que nos conformar com essas mutilações e clitorectomias? De Safo, só sobraram
fragmentos. Nas novelas os beijos lésbicos são proibidos. Quando finalmente é pro-
duzido um seriado que nos retrata de maneira menos envergonhada, a TV local re-
solve exibi-lo com cortes. (LEONEL, 2005, disponível em
<http://mixbrasil.uol.com.br/mp/2.shtml>, acesso em 20 de julho de 2005)

Em seguida, no artigo, eram divulgados vários endereços, físicos e eletrônicos, pa-

ra que fossem feitas reclamações. Ao mesmo tempo, tentaram saber, assim como outras fãs da

América Latina, por que a série havia sido censurada daquela forma e por que não havia um

horário de reprise dos episódios, algo normal para os outros seriados. A resposta do adminis-

trador do canal teria sido a seguinte: “Acontece que já recebemos as fitas editadas. Isto é, tem

uma edição para o mercado interno dos EUA e outra para o mercado externo, onde nos encai-

xamos. Eis a diferença.” (THE L ..., 2005)


92

Como a resposta não parecia ter o mínimo sentido, a jornalista Martha Vasconsce-

los e sua companheira Luriana, que são as criadoras do site The L Word BR 55, escreveram

uma carta para a Warner, na qual reivindicavam o fim da censura.

O horário em que The L Word vai ao ar já é adequado para que não haja cortes. Se
ainda não for, que se altere o horário! E a Warner é experiente o bastante para tam-
bém não derrapar nas traduções como fez com os episódios exibidos. Reivindicamos
que The L Word seja exibida na íntegra, como acontece nos países desenvolvidos! O
Grupo The L Word BR atualmente tem mais de 1000 pessoas indignadas com essa
atitude de extrema falta de respeito para com os telespectadores da série e do canal.
The L Word sem cortes e sem censura, já!!! (MENSAGEM..., 2005, disponível em
http://www.thelwordbr.com.br/reclame.html, acesso em 20 nov. 2007)

Não só essa mensagem, com centenas de outras chegaram engrossando a lista das

reclamações. Se pararmos para analisar, o fato das pessoas terem visto a série anteriormente

pela internet não atrapalhou a audiência do canal. Muito pelo contrário, centenas de fãs cele-

braram quando “The L Word” começou a ser anunciada no canal latino-americano e, da mes-

ma forma, criticaram o canal quando este passou a exibir a versão cortada.

Os fóruns da Warner brasileira, latina e do Orkut estão repletos de reclamações de fãs e abai-
xo-assinados para que a rede exiba o seriado sem cortes. Telespectadoras no Chile, México,
Argentina e Brasil tentaram obter da Warner latina uma resposta e tudo o que ouviram foi que
a emissora já recebeu os episódios assim, editados, e que a versão exportação do seriado é di-
ferente da que foi exibida dentro dos Estados Unidos. Por outro lado, fãs que entraram em
contato com a Showtime (produtora de “The L Word” e responsável por sua venda para o ex-
terior) disseram que receberam e-mails da empresa confirmando que não existe “versão alter-
nativa” e que eles vendem a série sem cortes. (LEONEL, 2005, disponível em
<http://mixbrasil.uol.com.br/mp/2.shtml>, acesso em 20 de julho de 2005)

Após a exibição de três episódios56, a Warner Channel mudou de idéia, não só

com o reinício da série totalmente sem os cortes ou alterações de falas, como criou um horário

de reprise, outra exigência das fãs. A partir daí, no Brasil a série provocou a criação de diver-

sos sites, blogs e comunidades do Orkut, todos eles para acompanhar cada passo dado pelas

55
Disponível em < http://www.thelwordbr.com.br/>. Martha e Luriana também são as mediadoras do grupo “thelword_br”
do Yahoo (http://br.groups.yahoo.com/group/thelword_br/), que tem 2079 integrantes e do blog
<http://grupothelwordbr.blogspot.com/>. (acesso em 25 nov. 2007)
56
Para conferir a comparação entre os episódios censurados e os completos, ver
<http://www.thelwordbr.com.br/indexcortes.html>, acesso em 25 nov. 2007.
93

meninas de “The L Word”. Mesmo quem já tinha visto, pôde ver de novo pela TV, e, dessa

vez, em sua íntegra. E, mais do que nunca, foram percebendo que ali poderiam encontrar uma

identificação possível com seu mundo.

Quais são, então, os tipos de lésbicas que apareciam na série? Quais são as princi-

pais identidades que elas assumem ao longo da história, para que haja essa identificação

mesmo com realidades tão diferentes? Porque de fato, mulheres lésbicas lindas e ricas não são

a maioria no mundo, são na verdade uma ficção criada no universo de “The L Word”.

Acho que há muitas lésbicas que gostariam de ver mais sexo na TV, mais ação, mais
comicidade e mais, porque não estão esperando realidade e sim uma novela e as no-
velas nunca são... Elas têm temas da vida real e coisas com as quais pode se identifi-
car, mas elas podem levar a um lado que você não verá na sua vida. Não quero ver a
minha vida, ela é chata. Eu apenas vou pro trabalho, volto pra casa, sou legal com
todos. Quero mais suspense, drama, sexo e coisas sobre as quais talvez fantasie ou
coisas que posso ver na TV, porque é TV. (THE L..., 2006)

De forma resumida, neste momento, é possível perceber que, logo na primeira

temporada, estão presentes várias representações lesbianas as que assumem o papel de “pro-

vedor” e “provida” numa relação, aquela que é amiga de todo mundo, principalmente para ser

aceita em sua sexualidade ambígua, a que não se atém a relacionamento algum e que acaba

“agindo como um homem agiria”, ou seja, adotando um tipo de vida promíscuo, ou a outra

que não se assume pelo medo, pela insegurança e pela pressão da família conservadora. Tem

também a que é sensual por natureza e tem como prática revelar o lado lésbico em outras mu-

lheres, além daquela que nunca havia pensado em lesbianidade até que experimentou. Isso

sem contar os diversos outros tipos de representação da homossexualidade feminina que apa-

recem através das coadjuvantes ou figurantes.

Ainda nos episódios da série podem ser encontradas diversas situações como: as

relações inter-raciais, as grandes diferenças de idade, o homem que nasceu em corpo de mu-

lher, e por isso, torna-se transexual, a mulher casada e mais velha que se descobre homosse-
94

57
xual na terceira idade, a política “don’t ask, don’t tell” (“não pergunte, não diga”) do exér-

cito americano, a do amor entre amigas, a do amor com uma portadora de necessidades espe-

ciais, da dor da descoberta de um câncer de mama e a da homoparentalidade, tanto no caso de

inseminação artificial, quanto no caso de uma das mulheres já ter filhos.

A série se esforça em inserir personagens de etnias diversas, discute família, raça,


sado-masoquismo, traição, homoparentalidade, etc., tentando dar um tom inclusivo a
práticas sexuais diversas. A série traz, também, discussões acerca do sexo conjugal e
do sex for fun (sexo pelo sexo), sem tentar, de modo geral, legitimar uma e deslegi-
timar a outra. Não há uma narrativa sobre sexo seguro na trama, nem sobre doenças
sexualmente transmissíveis. O seriado gira em torno de algumas narrativas pertinen-
tes ao grupo: homoparentalidade (no caso, com reprodução assistida), (construção
de/ relação com) família, sair do armário - visibilidade, práticas sexuais, conjugali-
dade - traição, uso de drogas (álcool e outras), homossexualidade e trabalho, homos-
sexualidade e lazer, homossexualidade e consumo. (VENCATO, 2005, p. 54)

Essas identidades, representadas pelas atrizes do seriado, foram somadas a outras

já existentes. No processo de identificação com as personagens por parte das espectadoras,

passou-se a questionar quem são as meninas de “The L Word” na vida real.

Quem fez o cabelo da personagem Shane na primeira temporada transformou-a na


Rachel de “Friends” para as lésbicas. [...] Acho que “The L Word” virou uma grande
parte da cultura lésbica. Pois podemos nos identificar com ele. Então todo mundo fi-
ca: “Ela é uma Carmem, ela é uma Shane, ela é uma Bette, ela, Tina. É realista para
nós E me dei conta de que é uma coisa de idealização. Tipo, todas dizem: “Quero ser
como ela.”, entende? É estranho como se tornou parte da vida de todo mundo. (THE
L..., 2006)

Assim como em outros fóruns, a comunidade brasileira da série no Orkut, The L

Word Brasil, que tem hoje mais de 13 mil membros, tem como um dos mais populares tópicos

e perguntas e respostas o “quem é ela em The L Word?”, no qual a participante deve dar su-

gestões sobre com qual das personagens a pessoa de cima se parece. Já foram dadas mais de

57
Em 1994, o então presidente americando Bill Clinton aprovou a chamada lei do “não pergunta, não diga”. A lei, em vigor
até hoje no exército dos EUA, proíbe que os homossexuais e bissexuais falem abertamente sobre sua orientação sexual, rela-
cionamentos ou que tenham atitudes de gays assumidos enquanto estiverem servindo às forças armadas. De 1994 a 2005
foram dispensados mais de 11 mil soldados homossexuais das forças armadas dos Estados Unidos. (disponível em
<http://en.wikipedia.org/wiki/Don't_ask,_don't_tell>, acesso em 25 nov. 2007)
95

10.50058 respostas ao fórum. Outro muito interessante é o que sugere atrizes brasileiras caso a

série fosse produzida aqui. Nomes como Ana Paula Arósio, Camila Pitanga, Letícia Sabatella,

Carolina Ferraz e Maria Fernanda Cândido estão entre as sugestões. Na mesma comunidade,

uma outra enquete questiona qual era o maior mérito da série. Com mais votos (45%) estava a

resposta “tornar a comunidade homossexual unida”.

De fato, esse é um aspecto importante. O documentário “The L World”, de 2006,

mostra como as lésbicas passaram a se reunir para assistirem aos episódios em diversas cida-

des dos Estados Unidos, como Los Angeles, Salt Lake City, Philadelfia, San Diego e Hous-

ton. Em todos os grupos, formados por lesbianas de diversos tipos, as opiniões eram as mes-

mas: os encontros começaram porque nem todas tinham TV à cabo e serviram para fortalecer

a amizade ou formar novas e, além disso, as personagens e situações da série, apesar de não

serem perfeitas, retratavam suas vidas, desejos e anseios.

Conheço pessoas que estão bravas porque “The L Word” não nos representa e acho
que isso é não entender. A série é como um livro de colorir em que você coloca suas
próprias cores e coisas. Porque a função que teve na minha sociedade, meu grupo, é
que todas nós nos reunimos aos domingos à noite e, sabe, é como um bando de “sa-
pas” tendo um programa para poder rir. É uma reunião de força, e isso é realmente
ótimo. (THE L..., 2006)

Isso mostra que, mesmo não representando exatamente a vida real das lésbicas, o

processo de identificação é positivo e necessário. No mesmo documentário, a historiadora e

ativista Leah Devun afirma:

Quanto mais opções você tiver, mais espécie de modelos poderá ter para o tipo de
homossexual que há por aí, que homossexual você pode ser e seria maravilhoso se
pudéssemos ter cada vez mais. Para que as pessoas soubessem que podem ser quem
elas quiserem, onde quer que estejam. (DEVUN, Leah in: THE L..., 2006)

58
Dados de 25 de novembro de 2007. Disponível em <http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=52139>, acesso em 25
nov. 2007
96

Desde suas primeiras exibições, o seriado também se tornou um espaço de divul-

gação dos movimentos e dos locais dedicados às lésbicas existente nos Estados Unidos. Na

primeira temporada, aparecem eventos como o Dinah Shore Weekend,59 realizado anualmente

em Palm Springs e considerada a maior semana lésbica do mundo, com sua famosa “White

Party” (“Festa do Branco”, como mostra o último episódio da primeira temporada), ou como

o Cruzeiro Olívia60, um dos mais antigos eventos turísticos criados para as lésbicas. O Cruzei-

ro Olívia, que aparece no episódio 10 da segunda temporada (“Land Ahoy”), existe desde

1973 e realiza viagens pelo caribe, além de resorts, para clientes exclusivamente lésbicas. As

paradas do orgulho também aparecem, principalmente a Gay Pride Parade 2005 de Los An-

geles, na segunda temporada. Nela aparecem o “Dykes on Bikes”,61 grupo de lésbicas motoci-

clistas que desde 1976 participa das paradas do orgulho LGBT nos Estados Unidos.

Diferente da idéia de uma lésbica descuidada, as lésbicas ali retratadas constroem


carreiras sexuais pautadas num tipo de consumo gay comum ao modelo americano:
cruzeiros lésbicos, festas em resorts dirigidos ao público homossexual feminino e,
mesmo, o acesso e realização de certas fantasias sexuais que envolvem uso de aces-
sórios, lugares inusitados eventualmente, mas uma sexualidade que pode ser vivida
intensamente pois todas, solteiras ou não, possuem sua própria casa montada, palco
para encontros de uma noite ou relações mais duradouras. (VENCATO, 2005, p.56)

A série também é responsável pelo lançamento de várias cantoras e de vários gru-

pos lésbicos, com uma trilha sonora que também se tornou febre entre as espectadoras. Nomes

como o grupo Betty, criadoras da trilha de abertura do seriado, EZGirls, The Murmurs, Heart,

The Organ, que antes eram desconhecidos, começaram a fazer sucesso após aparição no seri-

ado. Engraçado notar que sempre há um show desses grupos para elas irem e, quando chegam

lá, eles são muito famosos. As integrantes de Betty, inclusive, participam como atrizes de vá-

rios episódios da série, fazendo parcerias musicais com a personagem de Pam Grier (Kit Pot-

ter), que é cantora, ou se envolvendo em algum romance ocasional.

59
Disponivel em <http://www.dinahshoreweekend.com/index.php>, acesso em 25 nov. 2007.
60
Disponível em <http://www.olivia.com/default.aspx>, acesso em 25 nov. 2007
61
Disponível em <http://dykesonbikes.org/1_about.html>, acesso em 25 nov. 2007.
97

Aliás, uma das exigências da produtora Ilene Chaiken é exatamente que se dê es-

paço para as lésbicas assumidas participarem de “The L Word”. Sejam como roteiristas, dire-

toras, atrizes, cantoras ou equipe técnica. Por isso costuma-se dizer que a série é feita por lés-

bicas. No documentário “The L World” (2006), Ilene afirma que sua intenção é “tentar traba-

lhar com todas as boas cineastas lésbicas”, quando anuncia em uma festa que o episódio que

seria exibido fora dirigido por Kimberly Peirce, de “Meninos Não Choram” (“Boys Don‟t

Cry”, 1999). Uma das diretoras recorrentes da série, por exemplo, é Rose Troche, que em

1994 dirigiu “Go Fish!” (“O Par Perfeito”), um dos filmes mais cultuados no meio lésbico,

por ter sido quase uma “cartilha de comportamentos”. O filme ainda trazia Guinevere Turner,

também roteirista da série que participou de alguns episódios como Gaby, ex-namorada de

Alice.

Podemos não viver em West Hollywood ou caminhar pelas ruas ensolaradas da Cali-
fornia, mas todas nós já vimos ou vivemos algo assim. Essa identificação foi perce-
bida e quase todos os dias vemos uma dessas usuárias da lista contar algo que prati-
camente reproduz o que vimos na série. Temos percebido também que as fãs hete-
rossexuais, por incrível que pareça, têm se identificado de alguma maneira, e tam-
bém conseguem se ver nos problemas mostrados na série. Muitas até dizem estar
adorando saber que as lésbicas podem ter vidas tão normais quanto qualquer pessoa
hétero. (VASCONCELOS, 2006, disponível em
<http://www.umoutroolhar.com.br>, acesso em 20 nov. 2007)

Concluindo, a série, mais que tudo e com doses bem cuidadas de humor, drama e

realidade, se tornou uma fonte de visibilidade das lésbicas e de seu movimento cultural, polí-

tico e social, assim como de suas diversas identidades. Podemos ainda falar de quantas mulhe-

res conseguiram, a partir da série, aceitar sua homossexualidade e se assumir, pois viram-se

refletidas nas situações ali mostradas.

Não acredito que a mídia influencie nefasta e negativamente a telespectadores ino-


centes e que por isso essas mulheres enganadas pelas artimanhas da mídia cruel pas-
sem a ter esse desejo que antes não tinham. Penso que, de fato, o que acontece é que
a mídia pode abrir um espaço de diálogo, apontar possibilidades, propiciar a inser-
ção num universo antes desconhecido e que, a partir do momento em que se torna
conhecido, pode se transformar em algo muito mais próximo e, quem sabe, tão pró-
98

ximo a ponto de se tornar pessoal. Se a lógica da luta contra o preconceito é tornar


experiências outras, distantes, em mais próximas e menos exóticas; retratar modos
de vida que divergem do normativo como possíveis e legítimas, de modo a fazer com
que deixem de ser vistas como marginais, tem sido comum ao seriado. (VENCATO, 2005,
p.57)

Por isso sua importância pode ser considerada, apesar de tão pouco tempo de exis-

tência. Também no documentário “The L World”, a fundadora dos Cruzeiros Olívia, Judy

Dlugacz, faz a seguinte afirmação: “As lésbicas permanecem um grupo privado de privilégios

neste país, e a mídia conduz hoje a maioria da conscientização. Havendo visibilidade, há mu-

dança. Havendo visibilidade e educação, os outros não podem mais te odiar.” (2006)

4.1.1. Primeira Temporada – a rede das meninas

A primeira62 temporada de “The L Word” foi exibida nos Estados Unidos de ja-

neiro a abril de 2004 e lançada na América Latina em julho de 2005, teve 14 episódios, sendo

que o piloto foi dividido em primeira e segunda parte. No começo de 2007, foi lançada em

DVD no Brasil, numa coleção que trazia 04 DVDs e poucos extras.

Primeiramente, a temporada serviu para apresentar as personagens principais e

ambientar as histórias. No começo de cada episódio, a diretora criou situações do passado

que, além de contarem um pouco da história da homossexualidade, acabam tendo alguma re-

lação intrínseca com algum fato no desenrolar da narrativa. Via de regra, bem no estilo nove-

lístico, existem vários núcleos que desenvolvem suas histórias paralelas e congruentes.

Assim, temos a personagem Bette Potter (Jennifer Beals), que é a diretora do mu-

seu California Art Center - CAC e, há sete anos, vive com Tina Kenard (Laurel Holloman).

Tina abandona seu emprego porque elas decidiram ter um bebê através da inseminação artifi-

cial. Bette, uma mulher afro-americana forte e decidida, que assumiu as contas da casa e da

62
Ver personagens e material gráfico, além do quadro de Alice, no anexo 1.
99

família, vive para o trabalho. Sua rotina intensa e estressante, assim como a longa duração do

casamento, acaba refletindo na vida sexual do casal. Tina, a princípio parece submissa, mas é

ela quem percebe que estão com problemas, ela quem conduz a relação para que dê certo,

inclusive sugerindo a terapia. Juntas, representam o casal de lésbicas que passam a fazer tudo

juntas, que se unem rapidamente, estabelecendo laços afetivos profundos e dependência emo-

cional intensa em pouco tempo. Durante uma das sessões de terapia, no primeiro episódio,

Tina solta uma frase que acaba mostrando bem como a relação duradoura entre lésbicas acaba

se estabelecendo: “the lesbians urge to merge!”, algo como “as lésbicas desejam se fundir”

(tradução nossa).

Elas representam também a questão da homoparentalidade, com os casais se orga-

nizando para terem filhos quando conseguem uma boa situação financeira e uma relação está-

vel. A tecnologia e os avanços da medicina permitiram que esse procedimento se tornasse

mais acessível, apesar de ainda muito caro, e, por outro lado, as leis estão mais brandas no

caso de adoção. Dessa forma, as mulheres lésbicas hoje em dia têm um direito que muitas

mulheres do passado não tiveram: o de escolher exatamente quando e com quem querem ter

filhos. A gravidez planejada, as novas estruturas familiares do novo século e a educação sexu-

al mais aberta das crianças estão tornando mais fáceis tanto o lado dos pais homossexuais

quanto de seus filhos.

Como citado, o caso do filho da cantora Cássia Eller abriu precedentes no Brasil

para esse tipo de caso, mas, da mesma forma, isso só foi possível porque a sociedade está ad-

quirindo consciência dessas chamadas “novas famílias”. E abordar esse caso na série é fun-

damental para essa conscientização.

No caso das famílias homoparentais e dos outros tipos de famílias “alternativas”, o


trabalho de desconstrução das representações sociais se faz extremamente urgente. A
sociedade, em constante transformação, precisa de novos paradigmas que compor-
tem essas outras estruturas familiares. Muito já tem sido feito pela constante luta de
associações GLBT por direitos e por maior visibilidade e por magistrados, que inde-
100

pendente do amparo no código civil, legislam sobre o assunto. Mas é necessário


mais. A sociedade deve estar atenta a essas questões e se mobilizar para abarcar es-
sas crianças e pais no intuito de diminuir o preconceito e a discriminação. (SERRA,
2007)

Jenny Schecter (Mia Kirshner) é uma jovem escritora que se muda para Los An-

geles para morar com o namorado e começar sua carreira. É uma personagem que parece estar

sempre meio perdida, sempre meio à deriva. O seu namorado, Tim (Eric Mabius) é um pro-

fessor de natação carinhoso e atento, que está muito feliz por finalmente ter a amada por per-

to. Logo no primeiro episódio, Jenny conhece Marina, a dona do café gay The Planet, núcleo

principal de encontro das personagens da série.

Marina (Karina Lombard) é uma linda, sedutora e misteriosa mulher, de origem

européia, que se interessa por artes, livros, música, é dona do café mais popular da região on-

de vivem e, ainda por cima, tem um charme irresistível. Quando Jenny conhece Marina, essa

desperta nela pela primeira vez o desejo sexual por uma mulher. Jenny, conflituosa e instável,

se apaixona perdidamente por ela, mas não termina seu relacionamento com Tim. A impres-

são que se dá nos primeiros episódios é que Tim é o homem perfeito e que Jenny está sendo a

pior das pessoas ao traí-lo. E que Marina tem como passatempo desestabilizar relações. Mas,

em comparação à realidade, Jenny representa a adolescente que se descobre homossexual

quando se apaixona por uma mulher mais experiente, com atrativos intelectuais, boa conversa,

carinho. E que, num determinado momento, tem que deixar de lado o namoradinho de escola,

aparentemente o “genro perfeito”. Seus conflitos são intensos e densos, a personagem cria

viagens literárias onde realiza suas fantasias, seu livro acaba se tornando seu diário, e ela re-

trata, assim, a primeira vez, tanto emotiva, quanto sexual, de uma garota com outra garota. Já

Marina assume o papel da mulher que inicia sexualmente outras mulheres, que “ensina” como

ser lésbica.

Dana Fairbanks (Erin Daniels) é uma tenista profissional que tem muito medo de

se assumir, tanto para a família, quanto para a sociedade, já que isso pode afetar negativamen-
101

te sua carreira. Ela tem poucas experiências sexuais e é a personagem que mais questiona a

lesbianidade ao longo da primeira temporada. Como uma das personagens mais bem construí-

das e carismáticas, é dela que partem várias conversas que mostram o universo comum das

lésbicas. Por exemplo, as características para descobrir se alguém é lésbica, como o tamanho

da unha ou o jeito de andar, o tipo de roupa que uma lésbica supostamente deve usar ou a e-

xistência do chamado gaydar, ou “radar gay”, que, garante o senso comum, faz com que os

homossexuais se reconheçam apenas de se olhar. O processo de auto-descoberta de Dana é

exatamente o momento de “sair do armário”, entender o que representa ser lésbica e, a partir

daí, assumir sua própria identidade. Além disso, ela exemplifica a forma como o mercado de

consumo hoje em dia tenta vender a homossexualidade ao se tornar a tenista lésbica garota

propaganda de uma grande marca de automóveis, o que mostra a visibilidade lésbica se tor-

nando muito positiva em sua vida.

Shane McCutcheon (Katherine Moening) é a que todas desejam, mas que nenhu-

ma tem. Seu lema na primeira temporada é “eu não curto relacionamentos” (“I don’t do rela-

tionships”) e por muitas vezes suas próprias amigas se referem a ela como a arrasadora de

corações, a que conquista e depois abandona. Com jeito andrógeno e papel sexual não defini-

do, a cabeleireira acabou sendo, nesta temporada, a representante que mais se aproxima do

tipo butch, por seu jeito de andar, sua voz grave e sua postura “masculina”. Shane conquistou

as fãs pelo seu estilo inigualável, e acabou influenciando o modo de vestir e o visual de mui-

tas garotas. No documentário “The L World” (THE L..., 2006), uma garota americana explica

que agora existem muitas “shanes” andando por aí. Nas cenas seguintes, diversas garotas apa-

recem com o mesmo corte de cabelo, os óculos Rayban, os tipos de calça, cintos e camisas

que fazem parte do figurino da atriz ao longo da série. Mas ela conquistou também a empatia

por ser, desde sempre, uma das melhores amigas que as outras personagens têm. Sincera, a-

tenciosa e fiel às amigas, Shane não se envolve emocionalmente com as mulheres. Mas sua
102

postura é de que, deixando claro para todas as partes, não há problema nesse tipo de compor-

tamento.

Essa personagem aponta para uma das questões mais criticadas quando se pensa

em universo homossexual: a promiscuidade. São diversas e, em algumas vezes, simultâneas,

as garotas com quem ela não se envolve, mas tem relações sexuais. Seria essa uma reafirma-

ção desse estereótipo ou uma verdade ali retratada? A questão é que, infelizmente, não há, em

momento algum da série, a discussão sobre a prevenção de doenças sexualmente transmissí-

veis entre as lésbicas. E isso é um problema, pois num programa com tanta influência entre as

garotas mais novas, seria pertinente a educação sem demagogia que ele poderia promover.

Para piorar, Shane, no passado, se prostituía nas ruas de Los Angeles. E, hoje em dia, dorme

com várias garotas sem proteção. Não se trata de uma questão moralista, mas sim de alertar

para o fato de que a série não aproveita a influência que tem para informar sobre um assunto

tão importante e ainda tão obscuro.

Alice Pieszecki (Leisha Hailey) é a personagem que, literalmente, une todas as

outras. Jornalista, amiga de todo mundo, freqüenta todos os meios e, apesar de ser representa-

da pela única atriz homossexual assumida da série, é bissexual. Alice aparece na primeira

temporada para explicar uma das coisas mais verdadeiras em “The L Word”: o quadro.

No início do segundo episódio, que tem o nome “Let’s do It”, Alice apresenta pela

primeira vez a sua idéia do quadro. Em diálogo com o editor do jornal em que é freelance, ela

tenta convencê-lo de que é uma ótima idéia para uma matéria.

ALICE: São atos aleatórios de sexo, ok? São encontros, romances, casos de uma
noite ou 20 anos de casamento. A qualquer momento, se você reunir um grupo de
lésbicas, pode ter certeza de que alguém já dormiu com alguém, que dormiu com ou-
tra pessoa, que dormiu com outra e assim vai. Diga o nome de uma lésbica que você
conhece. Posso ligá-la à mim em 6 traços.
MARC: Christine Lee.
ALICE: Christine Lee. Fácil! Tá! Deixe-me pensar... Ela esteve com Grace Partrid-
ge, 2 anos atrás. Grace teve uma noite com Anya. Anya namorou com Denise que
morou com Katherine Claymore, que foi minha primeira namorada na faculdade. In-
crível, não?
103

MARC: (SILÊNCIO)
ALICE: Marc, não se trata só de lésbicas. Eu poderia colocar você aqui. E prova-
velmente com 6 traços, fácil! Até um, se você dormiu com Anya.
MARC: E daí?
ALICE: E daí? Daí que estamos todos conectados, vê? Pelo amor, solidão ou aquele
mínimo, lamentável, lapso de julgamento. Todos nós! Em nosso isolamento. Nós
nos alcançamos a partir da escuridão ou alienação da vida moderna ao formar essas
conexões. Acho isso uma declaração profunda sobre a natureza da existência huma-
na. (THE L..., 2004, episódio Let‟s Do It)

Na prática, a idéia do quadro é parecida com a do poema “Quadrilha”, de Carlos

Drummond de Andrade: “João amava Tereza que amava Raimundo que amava Maria que

amava Lili que não amava ninguém.” Ou então, baseada na teoria dos seis graus de separação,

que afirma serem precisos apenas seis laços para interligar duas pessoas quaisquer. Mas em

versão lésbica, onde a rede de ligações entre as pessoas se estabelece através do sexo. A idéia

do quadro (“chart”, como é chamado na série), permeia todo o seriado e fala das relações en-

dogâmicas que se estabelecem no meio homossexual feminino.

É interessante pensar nesse quadro e como de fato corresponde a algo extremamente


comum no universo lésbico (não apenas o troca-troca, mas também desenhar o qua-
dro). A prática do troca-troca é, inclusive, bastante discutida nesse meio: sempre ci-
tada jocosamente, muito criticada e pouco defendida. Há argumentos que tentam de-
fender essa prática, que normalmente falam da ausência de mulheres disponíveis no
mercado, o que estimularia esta certa endogamia afetivo-sexual. Outro discurso co-
mum é o de que é mais fácil estabelecer relações dentro do próprio grupo porque o
meio gay tem muita gente que “não presta” e, nesse contexto, seria mais fácil ficar
com alguém “decente” quando se está ficando com alguém já conhecido. (VENCA-
TO, 2005, p.54)

A prática virou moda entre as fãs do seriado, e o quadro continua aparecendo em

vários contextos da história. Em 2007, os produtores da série resolveram ir além das telas e

criaram o site OurCart.com63, no qual é possível reproduzir exatamente o quadro de relações

criado por Alice.

63
Disponível em <http://www.ourchart.com/>, acesso em 25 nov. 2007.
104

4.1.2. Segunda Temporada – a amizade e o amor

A segunda64 temporada da série começou a ser exibido nos EUA em 20 de feve-

reiro de 2005 e suas estréias foram ao ar até o dia 15 de maio. No Brasil, foi exibido de julho

a outubro de 2006. Os DVDs também foram lançados no início de 2007, logo após a primeira

temporada. Ao todo, foram 13 episódios. Dessa vez, no início dos episódios, são exibidas ce-

nas de sexo com várias versões diferentes da música tema, que é introduzida pela primeira vez

na abertura da série.

Se a primeira temporada foi repleta de clichês sobre o amor entre mulheres mostran-
do, por exemplo, como identificar lésbicas, investigando suas unhas curtas e a altura
dos saltos dos sapatos, nesta segunda temporada as criadoras da série se concentra-
ram mais nos dramas pessoais de suas personagens. A menina que tinha medo de
compromisso se apaixonou pra valer, o casal que havia rompido passou a temporada
inteira tentando se reconciliar, amigas de longa data descobriram sentir tesão uma
pela outra e, desta maneira, personagens que antes pareciam unidimensionais mos-
traram outras facetas, tornando-se mais verossímeis e menos estereotipados. (LEO-
NEL, 2005, disponível em <http://mixbrasil.uol.com.br/mp/2.shtml>, acesso em 20
de julho de 2005)

A personagem Marina sai da trama de forma misteriosa, devido à problemas que a

atriz Karina Lombard teve com o resto da equipe de “The L Word”. Os fãs não gostaram nada

da saída de uma das atrizes mais bonitas da série, e criticaram bastante o fato em comunidades

e sites especializados. Mas duas novas personagens femininas iriam criar mais representações

das identidades lésbicas.

Carmem (Sarah Shahi) é uma DJ latia e muito atraente, que chega para, pela pri-

meira vez, envolver Shane em um relacionamento sério. É aquela mulher moderna, antenada,

jovem e que não deixa transparecer sua sexualidade. Sua beleza e sensualidade em conjunto

com o charme misterioso de Shane fizeram das duas o casal mais querido da temporada. Prin-

cipalmente pelas cenas de sexo que protagonizaram. É a primeira referência às mulheres lati-

no-americanas em “The L Word”

64
Ver personagens e material gráfico no anexo 2.
105

„Queríamos mostrar uma personagem que retratasse a cultura latina, que tivesse vin-
do ganhar a vida nos EUA com todas as dificuldades e problemas‟, diz Monica Ta-
he, que bolou a personagem juntamente com a produtora e criadora da série, Ilene
Chaiken. Tahe, que dirige um programa voltado pra as comunidades gays dos EUA
com origem latina, africana e asiática da Gladd (Aliança Gay e Lésbica Contra a Di-
famação, na sigla em inglês), acredita que é difícil uma série de TV voltada para o
universo homossexual consiga fugir de alguma politização. „É um assunto normal-
mente ligado a questões políticas‟, diz. (SEGADILHA, 2006, disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u62496.shtml>, acesso em 20
nov. 2007)

O sexo e o amor também uniram as personagens de Alice e Dana, que descobrem

ter, além da amizade profunda, uma atração sem tamanho uma pela outra. Juntas, elas exem-

plificam várias fantasias sexuais lesbianas: o uso de pênis de borracha, algemas, vibradores,

uniformes e troca de papéis, entre outras. Nesta temporada, a dose de humor é mais forte, bem

trabalhado através da empatia que o casal provoca. Elas representam essa fina linha que existe

entre amizade e amor no universo lesbiano. Não são poucas as vezes em que amigas de longa

data viram namoradas ou que ex-namoradas viram amigas verdadeiras. A relação de cumpli-

cidade que estabelecem permite que o sexo entre elas seja o “algo a mais” da relação.

A outra personagem que entra na história é Helena Peabody (Rachel Shelley), a

milionária inglesa que aparece para, aparentemente, comprar seus amigos. Helena começa a

temporada com uma dose de antipatia, como a antagonista da relação Tina e Bette, que acaba-

ra na temporada anterior. Sendo a típica lésbica poderosa, ela usa seu dinheiro para comprar

seu lugar na sociedade. Ela também usa o discurso demagógico de “ajuda aos necessitados”

para se aproximar dos outros. Helena, que tem dois filhos com sua ex-companheira, acaba se

apaixonando por Tina, que está grávida da inseminação artificial feita na primeira temporada.

É interessante notar a projeção que Helena faz em Tina, ela claramente se diz atraída por ela

porque acha mulheres grávidas sedutoras. Um detalhe curioso é que a atriz que interpreta Tina

realmente estava grávida durante as gravações da segunda temporada. Por isso, sua primeira

cena é de um realismo impressionante, com ela apenas de lingerie, no consultório médico,


106

exibindo sua barriga. Talvez pelo mesmo motivo, uma das cenas mais aclamadas pelas fãs do

seriado foi a tentativa de reconciliação entre Tina e Bette. Talvez tenha sido a primeira vez

que uma cena de sexo envolvendo uma mulher grávida e sua namorada tenha sido exibida em

TV.

Um personagem novo causou muita polêmica na segunda temporada. Mark, um

rapaz que se diz cineasta, chega para dividir o apartamento com Shane e Jenny. Ele é o este-

reótipo perfeito do homem machista que vê nas lésbicas apenas uma fantasia sexual. Mark

engana as amigas, apesar de se dizer apaixonado por Shane, e espalha câmeras pela casa toda,

filmando tudo o que se possa imaginar.

Se boa parte das telespectadoras radicais já mostravam certa insatisfação com os ra-
ros personagens masculinos, Mark despertou o ódio das mais condescendentes ao se
tornar símbolo do vouyerismo macho heterossexual. [...] Como autora, entretanto,
posso entender a introdução deste personagem na história, porque este tipo de confli-
to é muito útil para mostrar o tipo de invasão violenta a que mulheres, não apenas
lésbicas, sofrem no dia-a-dia, desde que Eva e Adão foram expulsos do Paraíso.
Mark conseguiu despertar a ira da feminista que existe em cada uma de nós e, quem
sabe, num esforço de metalingüagem, serviu também para evidenciar o vouyerismo
das próprias criadoras do seriado que, depois de ouvir por anos as aventuras e des-
venturas amorosas de suas amigas, resolveram contá-las num seriado de TV. (LEO-
NEL, 2005, disponível em <http://mixbrasil.uol.com.br/mp/2.shtml>, acesso em 20
de julho de 2005)

A temporada termina com o nascimento da filha de Tina e Bette, uma menina

chamada Angélica. Numa das cenas mais marcantes do seriado, que é precedida por uma ma-

nifestação feminista, a irmã de Bette, Kit Potter, pega a sobrinha no colo e, em seguida, passa

para cada uma das amigas, que estão em círculo. Após voltar ao colo de Kit, essa diz: “Ah,

Angélica, você vai ter uma vida muito interessante, sabia disso? Porque somos pessoas muito,

muito interessantes. Aqui está sua mãe novamente.” E entrega o bebê à Bette, que mostra ca-

da uma das amigas à filha e diz: “Aqui está sua família”. (THE L...2005, episódio Lacuna)
107

4.1.3. Terceira Temporada – tristes dilemas, histórias reais

A terceira65 temporada foi exibida de 15 de janeiro a 26 de março de 2006 nos Es-

tados Unidos e de 30 de julho a 29 de outubro de 2007 no Brasil. Também teve temporada

lançada em DVD praticamente na mesma época de sua exibição por aqui. Foram 12 episódios

do ano mais triste da série “The L Word”. No começo dos episódios, a idéia do quadro é reto-

mada, desde os anos 60, traçando uma linha de relacionamentos de uma mulher conservadora,

passando por Bette, Alice e terminando em Dana, assim como a história. Não deixou de ser

uma homenagem à personagem que se despedia.

Dessa vez, a série se aprofunda em temas mais delicados e comuns ao nosso cotidia-
no, como o rompimento de uma relação estável homossexual, incluindo disputa pela
guarda da filha; dúvidas de uma personagem sobre sua orientação sexual, depois de
anos em uma relação homoafetiva; dependência química causada por antidepressi-
vos, por causa de um relacionamento rompido; doença grave que poderia até ser cu-
rada se diagnosticada no início; transexualidade, entre outros assuntos. (THE L...,
2007, disponível em <http://www.umoutroolhar.com.br/entrevistalword3.htm>, a-
cesso em 20 nov. 2007)

Como personagem nova, entra Moira, a primeira protagonista transexual do seria-

do. Anteriormente, elas apareceram apenas como coadjuvantes, como foi o caso de Ivan (Kel-

ly Linch), nas primeira e segunda temporadas. Moira, interpretada pela atriz também lésbica e

de traços bem masculinos Daniela Sea foi um sucesso logo nos princípio dos episódios. Pri-

meiro por representar finalmente as lésbicas do estilo butch, cuja falta era motivo de crítica

desde o lançamento da série. Segundo por ser a primeira personagem pobre da trama. Essa

representação, num mundo onde todas têm muito dinheiro e são muito femininas mostrou

exatamente que o preconceito também existe entre o meio lésbico. A princípio, ela começa a

namorar Jenny, passa a morar com ela, Shane e Carmem, e vários conflitos por causa de sua

masculinidade são criados. O ponto forte deste preconceito é o episódio de nome “Lobster”,

65
Ver personagens e material gráfico no anexo 3.
108

no qual ela é convidada a jantar com toda a turma. Ficando na cabeceira, Moira, que não tem

dinheiro para comer nada além de uma salada, vê as outras mulheres pedindo pratos caríssi-

mos e várias lagostas. Completamente sem lugar naquele ambiente, ela vai embora, deixando

Jenny para trás. Realmente, dentro do contexto que até então havia sido apresentado pelo seri-

ado, aquele não era o lugar de Moira. Ainda mais porque, apesar de todo discurso feminista à

sua volta, ela desejava ser homem.

É um privilégio, para mim, interpretar esse papel e contar uma história que nunca ti-
nha sido contada na TV e fico muito feliz por Ilene e a Showtime terem resolvido
contá-la, pois conheço tantas pessoas que lidam com isso em vários níveis ou suas
amantes ou amigos ou elas mesmas querem fazer uma transição de forma física ou
estão lidando com a idéia de que o gênero é todo um espectro e não pode ser defini-
do apenas nessas caixinhas que nos deram. (SEA, Daniela, in: THE L..., 2006)

Em determinado momento da terceira temporada, Moira decide realmente se tor-

nar Max. E inicia, com a ajuda das amigas, o processo de transformação. Finalmente ela en-

contra seu lugar no ciclo das mulheres da série, ou melhor, elas começam a aceitar a força e a

postura de Moira porque percebem o quanto ela sofre por ter nascido em um corpo de mulher.

Nunca vimos um evento beneficente para uma cirurgia de um transexual na TV. Isso
está acontecendo mesmo na comunidade gay. É bom vê-los representados. (DE-
VUN, Leah in: THE L..., 2006)

Outra história que marcou a temporada foi a descoberta do câncer de mama na a-

tleta Dana. A contragosta de várias pessoas do elenco e de milhares de fãs, essa seria a última

temporada de Erin Daniels. Mas, segundo a produtora executiva Ilene Chaiken, as mulheres

precisavam saber que, independente de serem lésbicas, é preciso se conhecer, cuidar do corpo,

perceber que a qualquer momento um câncer pode aparecer e a prevenção é o melhor meio de

se evitar a morte. Não foi o caso de Dana. A atriz representou nesta temporada os piores mo-

mentos da doença com uma coragem inigualável. Da mesma forma, Alice demonstrou ser a

amiga mais fiel que pode existir, deixando claro que, apesar de terem terminado o namoro, o
109

amor entre as duas nunca iria acabar. Mais uma prova da profunda relação que as lésbicas

estabelecem quando têm um envolvimento amoroso real. Situações como a perda do cabelo, a

fraqueza que a faz parar de jogar tênis e, numa das mais fortes cenas já vistas, a exibição do

seio mutilado, fizeram de Dana uma mártir da história. Com certeza, as produtoras da série

deram seu recado, incentivando milhares de mulheres lésbicas a se consultarem com mais

freqüência. Infelizmente, no imaginário popular do universo lesbiano, é comum as mulheres

não se preocuparem com as doenças ginecológicas, com a prevenção de DSTs, com o câncer

de mama, talvez por acharem que essas são doenças de “mulherzinhas”. Um preconceito mais

que equivocado. No documentário “Lésbicas do Brasil”, a cantora Laura Finocchiaro levantou

a questão que merece ser refletida pelo meio: as lésbicas precisam valorizar seus corpos.

Eu fui para parada do orgulho, levantei a blusa, coloquei os peitos pra fora e disse
“mulheres, metam os peitos”, porque as próprias lésbicas têm preconceito com o que
elas são. Elas não valorizam o corpo, elas têm vergonha, parece. E eu tenho orgulho
de ser mulher. (LÉSBICAS..., 2003)

4.1.4. Quarta Temporada – vidas paralelas

A quarta66 temporada da série foi exibida nos canais americanos no começo deste

ano, de 07 de janeiro a 25 de março e ainda não foi exibida no Brasil ou lançada em DVD.

Para assisti-la no Brasil, por enquanto, somente através de downloads na internet ou adquirin-

do a versão importada. Após o drama da terceira temporada, os episódios começaram mais

leves e menos traumáticos. A saída de Dana parece ter dado efeito na história, que apesar de

mais leve, não apresenta mais tanto humor. Outra personagem que abandona a série foi Car-

mem, após ter sido largada no altar por Shane.

66
Ver personagens e material gráfico no anexo 4.
110

O mérito da quarta temporada é a entrada de algumas personagens importantes:

Jodi, uma artista surda, Tasha, uma oficial do exército americano, bem masculina e Phyllis,

uma professora de 57 anos.

Jodi, vivida pela atriz ganhadora do Oscar por “Filhos do Silêncio” (1986) Marlee

Matlin é uma artista renomada que dá aulas na faculdade em que Bette é reitora. Ela é surda e

se apaixona por Bette, após um momento conflitante entre as duas. A sua importância na série

se dá tanto pela sua diferença quanto pela carga dramática que a dificuldade de comunicação

das duas se estabelece. Como manter uma relação entre uma ouvinte e uma não-ouvinte é a

grande sacada da forma como a duas se envolvem. Primeiramente, um intérprete ajuda Bette a

conversar com Jodi. Depois, Bette penosamente aprende a entender o que Jodi lhe diz. Essa é

a questão: a série em momento algum coloca Jodi como “deficiente”. Muito pelo contrário.

Sendo uma mulher forte, decidida e, tanto quanto Bette, independente, a relação entre elas se

torna o contrário do que havia com Tina. Bette é a mulher que aprende a lidar com Jodi, é

quem parece ser diferente, quem tem que correr atrás para poder se encaixar no mundo da

mulher por quem se apaixona. Para o público, os episódios são tão bem dirigidos que não é

preciso legendas, entende-se perfeitamente tudo o que a personagem surda diz, mesmo que

seja na língua de sinais.

Já Tasha (Rose Rollins) é uma fechada e aparentemente brava oficial do exército

que acabou de voltar do Iraque. Masculina, tensa e sempre preocupada com a questão do “não

pergunte, não responda”, que pode fazer com que seja dispensada das forças armadas, Tasha

acaba se envolvendo com Alice. No relacionamento das duas, o que sobressai são as críticas

abertas feitas tanto ao governo americano quanto à política preconceituosa do Exército. Alice

se torna a revolucionária que ataca, que não entende, que não concorda com o envio de solda-

dos para a guerra, enquanto Tasha se torna a defensora, refletindo a postura de vários soldados

americanos. É um dos momentos mais políticos em “The L Word”.


111

Phyllis, vivida pela atriz Cybill Shepherd que se imortalizou como a gata de “A

Gata e o Rato”, é a conselheira acadêmica e superior à Bette, que nesta temporada assume a

reitoria de uma faculdade de artes. Phyllis se aproxima de Bette por que sabe de sua homosse-

xualidade e, na verdade, está bem interessada em experimentar. Em cenas ótimas, de uma

verdade pura, Phyllis acaba tendo sua iniciação sexual com outra mulher através de Alice. No

dia seguinte, ótima representação do que acontece quando uma mulher assume a lesbianidade,

Phyllis começa a perceber a beleza das garotas que encontra no corredor da faculdade com

outros olhos, com olhos de desejo. Uma personagem mais velha era desejo das fãs desde o

início da série. No documentário “The L World”(2006), duas senhoras que estão no Cruzeiro

Olívia conversam com Ilene Chaiken e questionam porque tanto “sexo, sexo, sexo, cama, ca-

ma, cama”. Segundo elas, as meninas de vinte anos deitavam na cama apenas pelo sexo, mas

as mulheres mais velhas deitavam e dormiam. Elas queriam ver representadas as histórias das

lésbicas da terceira idade. Coincidência ou não, o documentário foi feito pouco tempo antes

da personagem de Cybill Shepher entra na trama.

Ou seja, isso reflete um fato constatado ao longo das quatro temporadas produzi-

das. Conforme as fãs e espectadoras iam colocando suas necessidades, vontades, reclamações

e críticas, “The L Word” ia amadurecendo e apresentando esses pedidos. Desde o início, o

público lésbico tem muita importância para a construção dos roteiros. As participações, as

enquetes, os blogs, a interação televisão e internet aproximaram mais ainda a produção do

seriado da realidade das lesbianas.

A série se encaminha para a quinta temporada como um dos mais importantes es-

paços de visibilidade lesbiana, algo conquistado com muita luta e que sempre foi direito das

mulheres homossexuais. A televisão, como meio de comunicação, é talvez a janela mais aber-

ta a mostrar essas questões. O fato de existir, neste mercado consumista e na sociedade ma-

chista um programa como “The L Word” deve ser comemorado e lembrado.


112

ILENE: I think those stories will resonate to people who aren't


gay.

MIA: What a rare opportunity, to get to do a show with a bunch of


women who are interested in doing a show about real women!

GUINEVERE: I think usually what attracts people to shows is


unique voices, is interesting writing...

ERIN: There are people trying to figure out how to label them-
selves career wise...

LEISHA: Having a job is having a job. I think things in life are the
same pretty much across the board.

MIA: We've all come to a place in our lives, where we meet some-
body whom is in a relationship, or that person is in a relation-
ship... where they sorta shake our world, and it's a choice we
make whether to continue on that path...

ERIN: You find yourself going... "I've SO been there! I totally un-
derstand what she is feeling, or what he is feeling, in some cases."
(THE L WORD DEFINED, 2004)

ILENE: Eu acho que as histórias vão refletir em quem não é gay.

MIA: Que rara oportunidade, participar de um programa feito por


um grupo de mulheres que estão interessadas em fazer uma série
sobre mulheres reais!

GUINEVERE: Eu penso que o que atrai as pessoas pra série são


as vozes únicas e o roteiro interessante...

ERIN: Existem pessoas tentando descobrir como rotular sua vida...

LEISHA: Trabalhar é trabalhar. Eu acho que há coisas na vida


bem parecidas com o que passa na tela.

MIA: Nós todos passamos por um momento em que, estando em


um relacionamento, conhecemos alguém em outro relacionamen-
to... e que esse alguém meio que mexe com nosso mundo, e é uma
escolha que fazemos, continuar ou ir a outro nível.

ERIN: Você vai se pegar pensando... "Eu passei por isso! Eu en-
tendo perfeitamente o que ela está sentindo, ou o que ele está sen-
tindo, em alguns casos".
(THE L WORD DEFINED, 2004)
113

5. “O MÓBILE”: A INSPIRAÇÃO ENCORAJA O NOVO

Antes mesmo de assistir a “The L Word”, como estudante de jornalismo e como

apaixonada pelo cinema e pela televisão, já me tornara uma aficionada pelo gênero série de

TV norte-americano. Percebia ali uma grande oportunidade de se abordar assuntos sérios e

com a devida roupagem que, muitas vezes, faltava ao cinema. Dessa forma, não só acompa-

nhava como adquiria os seriados lançados posteriormente.

Quando vi pela primeira vez a série, aquele episódio cortado exibido pela Warner

Channel em julho de 2005, percebi que alguma coisa diferente era lançada. Diferente e perti-

nente: era preciso falar no assunto. Após tantos anos de invisibilidade, finalmente permitiram

que as lésbicas se mostrassem como realmente são, com uma verdade como nunca havia sido

mostrada na TV. Imediatamente procurei mais informações sobre o assunto e, assustada, per-

cebi que a comunidade do Orkut dedicada ao seriado já possuía um número enorme de inte-

grantes. Ao me associar, conheci pessoas interessantes que achavam importante, assim como

eu, existir uma série que falasse das lésbicas com verdade e, ao mesmo tempo, beleza. Na

mesma comunidade, aprendi como assistir aos episódios pela internet. Foi quando percebi o

quão censurado ele tinha sido exibido pela primeira vez no Brasil. Pesquisando mais, vi que já

havia várias reclamações para que o canal voltasse atrás e acompanhei a conquista das fãs.

Neste momento, passei a ver a série pela internet, depois pela televisão e ainda, logo depois da

exibição do episódio, participar dos fóruns do Orkut, para saber quais tinham sido as opiniões

das espectadoras. Vivi, por um tempo, um fenômeno comum hoje quando o assunto é série de

televisão, já que muitos fãs de várias séries continuam a viver suas temporadas mesmo quan-

do não são exibidas, em salas de bate papo, sites e comunidades de relacionamento. E, com

isso, aprendi a valorizar mais ainda o gênero seriado. Era nele que estávamos tendo o nosso

espaço.
114

Esse acompanhamento tão próximo foi importante porque me deu a certeza de que

era possível falar no assunto. A lesbianidade não estava mais tão enfurnada nos livros invisí-

veis da história do mundo, não possuía mais um caráter negativo ou anormal, pelo menos no

meio televisivo.

Com a ajuda de uma amiga, conhecida através do Orkut, comecei a pensar sobre

um roteiro com histórias de amor entre mulheres que fossem passadas na minha cidade, na

minha realidade, a partir de minhas vivências. Vi aqui em Juiz de Fora um ambiente ideal pois

há anos a cidade possuía uma tradição de “aceitar bem” os homossexuais. Após longos papos

on-line, diversas pesquisas sobre o assunto e a descoberta de que, na verdade, muito pouco era

falado sobre a mulher lésbica no Brasil e no mundo, começou a nascer em meus pensamentos

a história de “O Móbile”.

5.1. As cinco peças de “O Móbile” – o roteiro

O roteiro original “O Móbile”67 começou a ser escrito em dezembro de 2005 e te-

ve sua primeira versão finalizada em março de 2006. Desde o início, pensava em escrever

cinco histórias diferentes de amor entre mulheres, passadas na cidade de Juiz de Fora. E assim

o fiz. O objetivo principal é que se tornasse uma série de TV, mas como no Brasil esse forma-

to ainda é pouco produzido e financiado através das leis de incentivo à cultura, preferi focar

minha redação do roteiro no formato curta de ficção.

Através de disciplinas voltadas para roteirização, tomei conhecimento do estilo

Master Scenes de formatação de roteiro, que é o que mais se aproxima das produções norte-

americanas de TV, já que é o padrão utilizado pelo cinema de Hollywod. O Master Scenes

permite uma contagem de tempo do filme através da quantidade de páginas do roteiro, e, des-

67
Ver blog <www.omobile.blogspot.com> e material gráfico e artes no anexo 5.
115

sa forma, estabelece que uma página equivalha a um minuto do filme. Também estabelece os

conceitos de story line, argumento, perfil das personagens, cenas e diálogos68. A partir desse

formato, as cinco histórias foram escritas sempre tendo como critério o tempo máximo de 15

minutos.

Por que usar o Master Scenes? Por que é um sistema simples, muito usado (qualquer
pessoa da área de cinema que vê-lo vai saber que é um roteiro) e permite ao roteiris-
ta se concentrar mais no que é o dever dele: contar uma história. Como regra, corte o
máximo possível de indicações técnicas e se concentra ao máximo no enredo do ro-
teiro. Sempre há algum modo de sugerir algo ao diretor, fotógrafo, ator, editor e ou-
tros da área, e realmente não é necessário usar explicitamente um termo técnico...
Use o bom senso.(CONCEITOS FUNDAMENTAIS..., 200?, disponível em
<http://www.cinemanet.com.br/guialayoutmasterscenes.asp>,acesso em 20 nov.
2007)

No princípio, não havia um nome em comum, um título maior que as definisse.

Apenas a idéia que seriam histórias sobre lésbicas e cinco substantivos: “Admiração”, “Diálo-

go”, “Apoio”, “Confiança” e “Perdão”. A partir dessas palavras, cada história foi elaborada,

seguindo uma linha de pensamento que se compara à um relacionamento amoroso, na minha

opinião. Primeiro, conhece-se uma pessoa e passa-se a admirá-la. Quando a coragem vem,

aproxima-se dessa pessoa e estabelece-se uma conversa, um diálogo. Com o primeiro momen-

to do romance, o passo mais importante se torna confiar na pessoa que está ao seu lado. E, por

conseqüência, a apoiá-la em suas decisões, atitudes, escolhas de vida. Com o relacionamento

estabelecido, a confiança conquistada, o apoio já formalizado, só se mantém um amor se for

possível perdoar. Porque os defeitos podem acabar com um amor, de uma hora para outra.

E as personagens? Seriam dez as principais, cada uma com sua particular caracte-

rística. Os perfis psicológicos foram sendo criados, assim com suas profissões e os casais dos

quais fariam parte: uma artista plástica e uma pintora, uma dona-de-casa e uma arquiteta, duas

jovens, uma surda e outra cega, duas senhoras, uma escritora e outra jardineira, uma cantora e

68
Story Line é um resumo da história central do roteiro apresentada em, no máximo, 05 linhas. Argumento é a apresentação
da história através de uma narrativa linear na qual as situações dramáticas serão descritas. O perfil das personagens mostra
quem é o sujeito da ação narrativa. Já as cenas são todas as ações estabelecidas em um determinado momento e em uma
locação, por isso em seu cabeçalho devem vir as indicações INTERNA/EXTERNA, DIA/NOITE e o LOCAL onde a ação se
passa. O diálogo são todas as falas dos personagens, que podem também estar em OFF, ou seja, ele não aparece na cena.
116

uma fotógrafa. Os nomes, na verdade, vieram antes de seu físico, tinham mais a ver com sua

personalidade do que com qualquer coisa. Difícil escolher dentre tantos nomes fortes e espe-

ciais de mulher, mas assim ficaram: Bárbara e Nina, Ísis e Estela, Clara e Olívia, Anita e Sofi-

a, Malu (Maria Luiza) e Renata.

Quando a linha de pensamento estava pronta, foi o momento de se definir a histó-

ria que seria contada. Nesse ponto, com a imagem de um móbile com as cinco palavras flutu-

ando surgiu o título “O Móbile”, um retrato do amor em constante movimento. Esse elemento

visual foi, então, inserido no contexto da personagem e, ao longo das histórias, representam

suas identidades.

Juiz de Fora, neste ínterim, se mostrou o pano de fundo ideal para essas histórias

de amor entre mulheres. Conforme dados da 6ª Pesquisa de Demanda Turística no

Rainbow Fest, realizada pelo MGM - Movimento Gay de Minas, em parceria com a

Rumos, empresa júnior do Curso de Turismo da UFJF, o concurso “Miss Brasil Gay” e o

evento “Rainbow Fest” atrairam em 2006 cerca de 10 mil turistas que injetaram mais de

R$ 4 milhões na economia da cidade. Em agosto de 2007, segundo a Polícia Militar, a “5ª

Parada do Orgulho GLBT”, reuniu cerca de 120 mil pessoas nas ruas do centro de Juiz de

Fora. E não podemos esquecer a lei municipal n° 9.791, citada no capítulo 2 desse

trabalho. Ou seja, a cidade, apesar da atitude negativa de alguns governantes e políticos,

que usam de preceitos evangélicos para atacarem os homossexuais, como aconteceu em

17 de outubro de 200769, aprenta grupos que lutam pela cidadania e respeito dos gays.

No processo de preparação e pré-produção do roteiro, foram envolvidos estudan-

tes e profissionais de cinema, teatro e jornalismo da cidade, além de integrantes da Organiza-

ção não-governamental MGM – Movimento Gay de Minas, para que fosse garantidas a veros-

similhança das histórias e o teor de entretenimento.

69
Ver a polêmica absurda no site <http://www.mgm.org.br/portal/modules.php?name=News&file=article&sid=474>, acesso
em 17 nov. 2007.
117

Nesse sentido, as personagens foram criadas com caráter forte e perfil coeso na

tentativa de passar a credibilidade e empatia necessárias para que houvesse identificação

por parte das espectadoras. Elas são mulheres reais, que se tornam exemplos por suas pos-

turas e, sem querer influenciar ou determinar nada, trazem em cada gesto uma amostra do

universo feminino, homossexual ou não. São mulheres que não se prendem a estereótipos

e que não têm medo de suas opções e desejos. Demonstram seus sentimentos e opiniões

livremente no mundo contemporâneo, amam, e sofrem por amor. Por isso, são persona-

gens marcantes e verdadeiras. A pretensão é criar uma experiência compartilhada com o

público de uma realidade em que a mulher homossexual escolhe e respeita seu caminho

sem precisar se colocar à margem da sociedade.

A idéia ou story line que apresenta o roteiro é a seguinte:

Amor entre mulheres. Encontros e desencontros, paixão, medo, descoberta, prazer.


Cinco histórias de amor que se entrelaçam a partir de cinco palavras: ADMIRA-
ÇÃO, DIÁLOGO, CONFIANÇA, APOIO E PERDÃO. Juntos, os cinco substanti-
vos formam um “móbile perfeito”. Bailando ao vento, tão livre e ao mesmo tempo
resistente. Sensibilidade e força em peças entrelaçadas pelo fio do amor. Todo rela-
cionamento deveria ter como base as cinco atitudes traduzidas pelas cinco palavras.
Esse é o retrato desta série de curtas metragens, que pretende ser uma representação
fiel e contemporânea da homossexualidade feminina. (WERNECK, 2006)

Em “Admiração”, Bárbara é uma pintora que faz quadros inspirados nas interpre-

tações de uma atriz. Por sua vez, Nina, a atriz, constrói seus personagens a partir das pinturas

de Bárbara. Quando finalmente se conhecem em uma exposição, descobrem que são, na ver-

dade, apaixonadas uma pela outra. Mas não aceitam viver o relacionamento, com medo de

perderem o talento e a inspiração. Vivem, então, sua história nas telas e nas peças, distantes,

apenas na admiração.

Em “Diálogo”, duas mulheres se conhecem num chat da internet. Estela é lésbica,

arquiteta e tem 27 anos. Ísis é heterossexual, vive um casamento fracassado e tem mais de 40

anos. Mesmo com essas diferenças iniciais, passam a conversar muito e se apaixonam pelas

palavras uma da outra. No entanto, Ísis sente medo da novidade e dos estranhos sentimentos
118

que tomam conta de seu coração. Decidem finalmente se encontrar, vencem o medo e dão

lugar a uma paixão arrebatadora. Na vida, nada muda demais. Só o amor volta a acontecer.

Em “Confiança”, Clara é surda. Olívia é cega. Fazem juntas aulas de ginástica es-

pecial, mas nunca se conheceram de fato. Na primeira vez que fazem um exercício juntas, ao

se tocarem, sentem algo inexplicável. Apaixonam-se e tentam viver esse amor aparentemente

impossível. A mãe de Clara não aceita o relacionamento da filha. Depois de um acidente onde

Olívia quase morre afogada, Clara assume o namoro e passam a se completar.

Em “Apoio”, Anita e Sofia vivem um relacionamento de amor, respeito e amizade

há 51 anos. Numa manhã, Sofia levanta-se e chama a companheira. Mas Anita não acorda.

Em meio à dor, Sofia prepara tudo para as homenagens e partida da mulher amada. E, depois

de concluir os preparativos, ela acompanha seu grande amor e morre ao lado do caixão de

Anita.

Já em “Perdão”, Renata é uma fotógrafa que tem um relacionamento com Maria

Luisa, cantora de sucesso, há cinco anos. Numa das brigas, Renata sai de casa e Malu transa

com o baixista de sua banda. Elas terminam. A cantora descobre que está grávida. E somente

o nascimento da filha de Maria Luiza traz o perdão da fotógrafa e renova a felicidade no rela-

cionamento. Passam por cima de tudo e continuam a viver seu amor.

O roteiro do filme “O Móbile – Admiração, Diálogo, Confiança, Apoio e Perdão”,

foi registrado em meu nome no Escritório de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional (regis-

tro número: 381.857 / livro 709 / folha 17) em abril de 2006. Em Maio do mesmo ano, teve

projeto inscrito na Lei Municipal de Incentivo à Cultura Murilo Mendes, sem aprovação, e em

Junho teve projeto contemplado pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais

(número de registro 1510/001/2006), com o valor de captação em R$120.000,00. Infelizmen-

te, não foi possível captar os recursos da Lei Estadual, já que o projeto previa a produção dos

roteiros como um longa-metragem e isso necessitaria de um volume muito maior de recursos


119

para sua realização. No momento, para tornar viável a realização dos curtas em breve, outros

projetos estão sendo apresentados tanto à Lei Rouanet – Lei Federal de Incentivo à Cultura,

quanto à Ancine – Agência Nacional do Cinema e Lei do Audiovisual do Brasil.

Por enquanto, em fase de pré-produção, e com a ajuda de mais pesquisas sobre a

lesbianidade e suas representações contemporâneas, o roteiro vai se tornando mais elaborado

a cada releitura. É a chamada “guerra do papel”, comum no meio profissional, onde cada ver-

são do roteiro se recria e se estabelece conforme um novo olhar sobre o texto. Acredito que,

de fato, a história final dos curtas de “O Móbile” só será estabelecida no momento de seus

lançamentos. O texto, a narrativa, a interpretação, a direção, tudo isso torna-se fluido, também

em movimento constante, se direcionando através das interações de toda a equipe técnica do

filme.

O roteiro como está hoje, em novembro de 2007, segue a seguir, dividido por cada

história e apresentando, anteriormente a ele, suas personagens e seus argumentos. O formato

apresentado segue, em parte, as regras do Master Scenes. Apenas o tipo de fonte, indicada

para ser a Courier New de tipo 12, foi mantida como em todo o resto do texto deste trabalho

para não haver quebra de padrão.

5.1.1. Admiração

As personagens principais de “Admiração” são Nina Maya e Bárbara Oliveira.

Nina Maya sempre quis ser atriz. Fez cursos de teatro, participou de grupos locais

e nacionais. Aos poucos, se tornou conhecida do grande público e requisitada pelos melhores

diretores. Hoje, aos 26 anos, é considerada a atriz de maior expressão em Juiz de Fora e uma

das melhores do Brasil. Tem olhos profundos, mas sua principal marca são os gestos, precisos

e delicados, fortes e sensíveis. Cada personagem que interpreta entra em sua alma, toma conta
120

de seu corpo e a transforma por completo. Sua expressão corporal só não é mais completa do

que seu poder de sedução no palco. Todos que a assistem se apaixonam, de uma forma ou de

outra. Ela, por sua vez, sempre teve a impressão de que fica melhor dentro das personagens do

que em seu papel na vida real. A insegurança sempre atrapalhou um pouco Nina a ter um re-

lacionamento tranqüilo e saudável. Ela não conseguiu assumir sua homossexualidade e vive

apenas casos eventuais, sem nunca ter se apaixonado por alguém. Como uma mulher ligada à

cultura, Nina lê muito e adora artes plásticas. Sua pintora preferida é Bárbara Oliveira, conter-

rânea e única na arte de retratar mulheres. Desde que viu suas obras pela primeira vez, acom-

panha sua produção e é apaixonada por suas pinturas. Encontrou em seus traços a inspiração

que faltava à suas personagens, o toque mágico. No momento, Nina ensaia para a estréia do

espetáculo “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant”, de Rainer Werner Fassbinder, no

qual interpreta a personagem principal.

Já Bárbara Oliveira fez faculdade de Artes na Universidade Federal de Juiz de Fo-

ra, mas pinta desde criança. Aos 30 anos, já se considera uma mulher realizada. Bonita, ativa,

divertida e feminina, Bárbara sempre foi uma mulher de convicções fortes. Aos 21 anos as-

sumiu sua homossexualidade ao namorar Catarina, sua produtora. Já havia tido vários relacio-

namentos pequenos, mas nada que a fizesse se abrir para os pais e para a família. Com Catari-

na, seu valor no mercado aumentou, mas logo os problemas de trabalho começaram a interfe-

rir no relacionamento. Catarina e Bárbara terminaram o namoro há mais de dois anos, mas

continuam sendo muito amigas e a trabalharem juntas. Suas obras retratam mulheres de diver-

sas etnias e culturas, sempre em traços pouco definidos e cores fortes. Como num retrato fos-

co, embaçado, em que é preciso fixar os olhos, se aproximar, entrar e conhecer para poder

perceber toda a beleza e delicadeza daquelas mulheres. Já fez exposições em todo o país e se

prepara para mandar suas principais obras para um museu no exterior. Um grande coleciona-

dor comprou todas as peças, até as de arquivo pessoal, e prometeu mantê-las unidas, nesse
121

museu. Aquela se tornaria uma exposição permanente de Bárbara. Somente por isso ela acei-

tou. Principalmente porque as obras vendidas foram as principais pintadas a partir das atua-

ções de sua musa inspiradora: a atriz Nina Maya. Em silêncio, Bárbara acompanha a carreira e

as peças da atriz e, de cada personagem que assiste nos palcos, cria algo novo nas pinturas.

Na história, o ano é 2006, a cidade é Juiz de Fora. Nina Maya ensaia compulsiva-

mente para seu novo espetáculo: “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant”, de Rainer Wer-

ner Fassbinder. Há dois anos, a atriz tem como inspiração principal as pinturas de uma artista

de sua cidade. A partir dos retratos de mulheres pintados em traços pouco definidos e cores

fortes, a atriz cria suas personagens e interpretações. Nina se inspira em uma foto de um dos

quadros da pintora.

Bárbara Oliveira é essa pintora. A artista, por outro lado, tem como musa a atriz

Nina. Sempre acompanha suas peças, sempre observa seus gestos, falas, sentimentos e cria

seus quadros com essa inspiração. Há, em seu atelier, uma parede inteira de fotos, recordações

e notícias de Nina Maya. Elas não se conhecem pessoalmente e nem imaginam o que uma

sente em relação à outra.

Para celebrar a venda da maioria de suas obras, e para relembrar seu trabalho, Ca-

tarina, que é produtora e ex-namorada de Bárbara, organiza uma exposição em uma galeria de

Juiz de Fora. Ao saber que os originais de Bárbara iriam para a França e que não os veria tão

cedo, Nina resolve visitar a exposição e se apresentar à Bárbara. Na verdade, ela tem medo do

que de fato possa sentir por ela.

Na noite de abertura da exposição, Nina e Bárbara finalmente se conhecem. Bár-

bara fica sem palavras, não acredita que a atriz está ali, ao lado dela. Ao se encontrarem, Bár-

bara e Nina se apaixonam. Saem para uma boate e, em meio a uma dança sensual, ficam jun-

tas. Passam a se encontrar sempre, numa química desconcertante. No entanto, o trabalho de

criação das duas começa a declinar. Nina não consegue mais alcançar o texto, as falas da sua
122

personagem Petra. Seu diretor, preocupado, tenta saber onde foi parar o talento da atriz. Ela

sabe. E Bárbara não consegue mais pintar. Fica por horas parada diante da tela vazia, enquan-

to sua produtora cobra serviço. Bárbara também tem idéia do que possa estar acontecendo,

mas não acredita nisso. O que elas sabem é que a fonte de admiração foi alcançada. O que era

impossível tornou-se real. Enquanto elas se admiravam e se seduziam sem saber, a mágica da

criação funcionava perfeitamente. Mas agora que tinham finalmente se tocado e se preenchi-

do, a mágica da inspiração tinha ido embora. Numa tentativa desesperada de fazer o tempo

voltar, elas têm uma discussão e terminam o namoro. Nina abandona Bárbara para não abrir

mão do seu talento.

Elas se separam com dor, com frustração, com muito sofrimento. O talento volta,

elas passam a produzir como nunca. Mas nada mais é igual. O espetáculo de Nina Maya es-

tréia, e em cada interpretação os gestos são indefinidos e as cores fortes até demais. Em todas

as pinturas de Bárbara, as lágrimas aparecem.

Bárbara e Nina passam a viver somente na admiração daquele grande amor que

poderiam ter vivido.

5.1.1.1. Roteiro “Admiração”

1. INT. DIA. TEATRO.


No palco de um teatro vazio, um gigantesco móbile de lágrimas de espuma balança lentamen-
te. Sozinha, no palco, Nina segura um texto que traz o título "As Lágrimas Amargas de Petra
von Kant", de Fassbinder. O texto traz uma foto de uma pintura presa com um clipe. Na pla-
téia, o diretor está sentado a algumas fileiras do palco. Ele também lê o texto, com concentra-
ção. A atriz se prepara para sua fala. Ela suspira profundamente. O diretor passa a observá-la.

NINA
Dou-te tempo, Karin. Tempo é o que não nos falta. Temos imenso tempo.

2. INT. DIA.(AO MESMO TEMPO) ATELIÊR.


Um móbile de vidro vermelho balança perto da escada. Através dele vê-se várias pinturas,
latas de tintas e pincéis espalhados por uma grande mesa central. Num cavalete próximo à
janela há uma tela grande e branca. Bárbara molha um grosso pincel em uma paleta de tinta.
123

Mistura a cor vermelha com a preta. Leva o pincel até uma tela branca e faz um traço forte e
indefinido. Ao fundo, no atelier, há uma parede recoberta de fotos e recortes com as perfor-
mances da atriz Nina Maya.

NINA (EM OFF)


Tempo para nos conhecer uma à outra. Havemos de amar-nos.

3. INT. DIA. TEATRO.


Nina se movimenta pelo palco. O diretor olha com atenção para a atriz. Coça a barba, num
sinal de preocupação.

NINA
Ainda nunca, nunca, senti amor por uma mulher. Sou louca, Karin, louca!

4. INT. DIA.(AO MESMO TEMPO) ATELIÊR.


Na tela, o traço de Bárbara lentamente forma o rosto de uma mulher de expressão consterna-
da. A pintora pára e olha para a parede de fotos. Admira o rosto da atriz numa das fotos.

NINA (EM OFF)


Mas é belo ser louco.

Bárbara molha o pincel mais uma vez, olha para a tela. Depois, pinta compulsivamente. Ter-
mina pintando a pupila de um dos olhos. Pára e olha para a pintura. No canto inferior direito,
Bárbara assina seu nome: Bárbara Oliveira.

NINA (EM OFF)


É loucamente belo ser louco.

5. INT. DIA. TEATRO.


Nina termina a leitura da cena. Volta à capa e olha fixamente a foto que está presa ao texto.
Fecha os olhos por alguns segundos. Eduardo, o diretor, olha para Nina pensativo. Nina atira
o texto no chão e finalmente percebe-se que a pintura na foto é de Bárbara Oliveira pela assi-
natura igual à da pintura da seqüência número 04. Eduardo levanta-se e se aproxima da boca
de cena. Nina senta-se na beira do palco.

EDUARDO
Você está bem?

Nina apenas balança a cabeça afirmativamente. Ela olha para Eduardo e sorri, enquanto ele
sobe no palco.

EDUARDO
Nina, vamos parar por hoje.

Ele senta-se ao lado dela. No teatro, apenas os dois.

EDUARDO
Você foi além do que eu esperava, Nina.
124

NINA
Não sei, Eduardo. É estranho. A Petra, essa personagem, o que ela vive, é tudo muito
forte pra mim. (pausa) Esse lance dela ser apaixonada pela Karín. (pausa mais longa)
Sabe?

Eduardo olha com carinho para Nina. Ela ri sem graça.

EDUARDO
Deveria ser mais fácil pra você, não?

NINA
Eu acho que é pior. Você sabe que eu nunca consegui assumir isso pra mim, apesar de
querer muito. Às vezes.

EDUARDO
Mas exatamente o quê você sente quando pensa em ficar com outra mulher?

NINA
Não sei. (pausa) Medo. Medo de ser isso mesmo que eu quero pra mim. (sorri) Ah!!
Deixa pra lá. Vamos embora? Pra mim deu por hoje.

Nina dá um beijo no rosto de Eduardo e pega o texto do chão. Levanta-se e começa a sair em
direção à coxia.

EDUARDO
Nina?

Nina pára e olha para Eduardo, com ar cansado.

EDUARDO
Eu preciso que você supere esse medo, Nina. A Petra precisa disso. E principalmente
você precisa disso. Não há nada errado em se amar uma mulher.

Eduardo pisca o olho com carinho. Nina sorri, enrola o texto que está em suas mãos e se vira
para a coxia.

6. EXT. NOITE. CAFETERIA.


Bárbara está sentada com sua produtora Catarina. Elas tomam um café, em meio a papéis pela
mesa. Bárbara olha para o vazio, com uma taça na mão. Catarina pega um convite e lê atenta.
Nele está escrito: “EXPOSIÇÃO BÁRBARA OLIVEIRA: ANTES DAQUELA VIAGEM”.

CATARINA
(olhando para os papéis)
Já tá tudo certo, a exposição começa na quinta-feira. O coquetel está acertado, os con-
vites já foram enviados. O comprador chega amanhã no Rio e eu já acertei sua vinda
pra cá. Ele é ótimo! O museu que ele vai abrir em Paris, com todas as suas obras, Bár-
bara!! Imagina isso!

Bárbara parece não ouvir o que Catarina diz. Catarina pára de falar e olha para a Bárbara.
125

CATARINA
Mas qual é o problema, Bárbara?

BÁRBARA
Difícil não pensar que essa é minha última exposição na cidade. Vai demorar pra eu
ter um catálogo como esse de novo. Não sei se eu consigo mais pintar desse jeito.

Catarina olha para Bárbara e ri. Balança a cabeça negativamente e toma um gole de café.

BÁRBARA
O que foi? Eu tô falando sério!

CATARINA
Bárbara, eu sinceramente não sei o porquê. Mas desde que você montou aquele, sei lá,
memorial Nina Maya na parede do seu atelier, você pinta um quadro novo todos os di-
as! Eu acho duas coisas. (toma mais um gole) Primeiro que você vai produzir como
nunca agora. E depois, bom, que você está apaixonada.

BÁRBARA
Não seja ridícula! Pela Nina? Eu nem a conheço!

CATARINA
Mas eu te conheço, Bárbara. Nunca se esqueça disso.

Bárbara olha com ar de reprovação para Catarina e volta para os seus documentos na mesa.
Catarina ri com ironia mais uma vez e deixa a xícara na mesa.

7. EXT. NOITE. ENTRADA DO MUSEU DE ARTE MODERNA.


Nina está parada em frente ao portão do MAM, meio que escondida. Ela olha para o convite
da exposição de Bárbara em suas mãos. Dá dois passos para frente, se arrepende, pára, volta e
pára novamente. Repreende-se balançando negativamente a cabeça e decide finalmente entrar
no museu.

8. INT. NOITE. MUSEU PETRILLO.


Nina entra no museu, admirada e nervosa. Ao longe, Bárbara, de costas, conversa com algu-
mas pessoas. Sem ver Bárbara, Nina passa por um garçom, pega um copo de champagne, be-
be rapidamente e devolve na bandeja de outro garçom, mais à frente. Ela pára, estarrecida.
Reconhece à sua frente o mesmo quadro que aparece na foto presa ao seu texto. Ela coloca a
mão na bolsa, como que se fosse pegar o texto, mas desiste. Vai lentamente em direção ao
quadro. Pára embaixo da pintura, que parece enorme na parede. Nina observa admirada cada
detalhe do quadro. Bárbara está próxima a ela conversando com visitantes, mas não percebe
sua presença. Nina, sem saber que Bárbara está perto dela, olha fixamente para a pintura.

NINA
(para si mesma)
Nossa. É inexplicável! Eu só vi esse original uma vez na vida, mas eu nunca mais me
esqueci. Nunca.

Bárbara pára repentinamente de conversar com as pessoas reconhecendo a voz. Olha devagar
para o lado, procura a voz que ouviu. Vê Nina parada ao lado dela. Fica sem palavras, olhan-
126

do para Nina.

NINA
É a obra mais linda que já vi.

Bárbara aproxima-se de Nina. Pára ao seu lado e sorri, extasiada. Nina percebe sua presença e
olha rapidamente para Bárbara, como num susto.

NINA
(muito sem graça)
É... Oi! É... Me desculpe. Eu fico completamente fora de mim quando vejo seus qua-
dros. Pareço uma idiota. Nem me apresentei, meu nome é...

BÁRBARA
(interrompe)
Nina Maya. Eu sei quem você é. E sou uma grande fã sua.

NINA
(ri, mais sem graça)
Não. Essas palavras são minhas.

BÁRBARA
(sedutora)
Admiro muito o seu trabalho. (aproxima-se mais) Os seus gestos, a sua voz. É difícil
explicar como as suas interpretações mexem comigo. É um prazer enorme te conhecer,
Nina.

Bárbara estende a mão. Nina olha para seus olhos, depois para sua mão. Observa as unhas
bem feitas, mas curtas, e um anel muito bonito no dedo indicador. Estende sua mão com u-
nhas compridas e bem pintadas. Cumprimentam-se. Nina tenta desviar o olhar dos olhos de
Bárbara, mas não consegue.

NINA
Nossa. Você conseguiu me deixar sem graça.

Nina tira da bolsa o texto, já amarrotado, com a foto da pintura anexada.

NINA
Na verdade, eu tenho que confessar. Minha inspiração é maravilhosa.

Retira a foto do clipe e entrega para Bárbara, que olha para a foto e depois para o quadro perto
das duas.

BÁRBARA
Essa foto? O meu quadro! Como assim?

NINA
Eu visitei uma exposição sua há algum tempo. Mas você, infelizmente, não estava. Fi-
quei horas olhando pra essa pintura, para os traços, para as cores. (envergonhada) Sen-
127

ti coisas que... (pausa) É difícil explicar, né? Mas, enfim. Depois que saí da exposição,
procurei por meses por uma foto dele. E desde então, você me acompanha.

Nina pega a foto das mãos de Bárbara. Sutilmente seus dedos se tocam. Bárbara olha bem no
fundo dos olhos de Nina. Bárbara se aproxima de Nina, fala ao seu ouvido. Nina sorri, fe-
chando os olhos. Um garçom passa e Bárbara pega duas taças de champagne. Entrega uma
para Nina. Elas brindam. O som ambiente fica mais evidente. Nina e Bárbara conversam, sor-
riem e seduzem-se enquanto os convidados apreciam as obras expostas. O som ambiente tor-
na-se mais agitado.

9. INT. NOITE. BOATE.


O som ambiente cresce até tomar conta da boate. Bárbara entra na pista de dança com uma
garrafa long neck na mão. É seguida por Nina, que olha um pouco nervosa para os lados. A
música está cada vez mais agitada, a pista está cheia e as pessoas dançam freneticamente.
Bárbara toma um gole da garrafa, oferece para Nina que recusa educadamente. Ela deixa a
garrafa numa das mesas. Vira-se para Nina, que está bem perto dela. Nina parece hipnotizada
pelos olhos de Bárbara. O som fica mais intenso, abafado. Nina desvia o olhar, sem graça.
Bárbara pega a mão de Nina e leva até seu rosto. A mão de Nina desliza sobre a pele de Bár-
bara, seus dedos tocam os lábios da pintora. Ela fecha os olhos e beija suavemente a ponta dos
dedos de Nina, que aproxima na mesma hora a outra mão e segura o rosto de Bárbara com
delicadeza. Elas se aproximam mais e se beijam, lenta e sensualmente. Elas páram de se beijar
e se olham. Nenhuma palavra, nenhum som se ouve. Apenas os olhos se penetram. Elas se
dão as mãos, sorriem e dançam lentamente, alheias ao ritmo da música. Imagens se fundem
com o beijo das duas.

10. INT. NOITE. QUARTO.(EM FLASHES)


As duas se amam numa cama toda branca. Apenas detalhes, dos corpos se encontrando, se
tocando à meia luz. De frente uma para a outra, Nina beija o pescoço de Bárbara. Bárbara
abraça fortemente o corpo de Nina. As mãos de Nina descem pelas costas nuas de Bárbara.
Bárbara conduz a mão direita de Nina até sua coxa. Nina sente Bárbara com ansiedade. Fecha
os olhos e solta um gemido. Bárbara sorri com malícia. Ela beija Nina com furor.

11. INT. DIA. QUARTO.


O sol entra por entre a cortina transparente. Ao longe, gargalhadas, sussurros e gemidos que
vai ficando mais próximos. Na cama, por debaixo dos lençóis, Nina e Bárbara se amam mais
uma vez. Os gemidos ficam mais uma vez abafados.

12. INT. DIA. CAMARIM DO TEATRO.


Nina está sentada na bancada do camarim. Pelo espelho vê-se seu corpo se contorcer de pra-
zer. De repente, suas mãos puxam o rosto de Bárbara para cima e Nina a beija.

13. INT. NOITE. ATELIÊR.


Nina passa o texto para Bárbara, que ri, achando graça. Ela por alguns instantes. Bárbara sus-
surra algum segredo no ouvido de Nina, que ri, dando um leve tapinha no ombro de Bárbara.
Ela ri de volta e se vira de costas. Nina joga o texto no chão e a abraça por trás e ficam por
alguns segundos nessa posição, sentindo uma à outra. Nina começa a passar as mãos na cintu-
ra de Bárbara, sobe pelo seu peito até chegar ao seu pescoço. Percebe-se que as unhas de Nina
estão mais curtas. Bárbara vira somente o rosto e se beijam. Nina a vira de frente com fúria e
a empurra para cima da mesa do atelier, derrubando algumas latas vazias de tinta. Bárbara
afasta tudo o que está na mesa, sem parar de beijar Nina. Deitam-se na mesa, Nina sobre Bár-
128

bara. Derrubam uma lata de tinta vermelha. A tinta escorre pelo chão e encharca o texto de
Nina, enquanto ouve-se um gemido de prazer.

14. INT. DIA. ATELIÊR.


Em frente a uma tela grande e vazia, está Bárbara. Sozinha no atelier, ela passa as mãos pelos
cabelos. Pára por alguns segundos, pensativa. Pega o pincel. Não consegue agir, não mexe os
braços. Vira às costas para a tela e vê Catarina, que está parada na porta. Catarina, de braços
cruzados olha para Bárbara.

CATARINA
Eu só queria entender o que está acontecendo contigo.

BÁRBARA
Não tem nada acontecendo comigo.

CATARINA
Ah, é? (se aproxima) Há quantos meses você não pinta nada? Bárbara, você tem que
produzir alguma coisa, cara!

BÁRBARA
Não adianta me pressionar. Aliás, você não é mais minha namorada pra falar assim
comigo.
Então, calma lá!

CATARINA
(respira fundo)
Sim. Não sou. Sou sua empresária. Cuido do seu trabalho. E é o meu que tá na reta se
você não produz nada. Então eu posso falar assim com você sim! E eu acho que você
não ta sabendo escolher. Fica o dia todo por conta da Nina. E aí?

BÁRBARA
A Nina não tem nada a ver com isso, Catarina.

CATARINA
Claro que tem! Você sabe que tem. Então cai na real e descobre onde foi parar a porra
da sua inspiração.

Catarina sai e bate a porta com fúria. Bárbara fica olhando para a porta fechada, pensativa.
Vira-se com raiva e joga o pincel na parede de fotos da Nina.

15. EXT. NOITE. TEATRO.


Nina está sentada na platéia do teatro. Olha para o texto, olha para o palco com o cenário.
Eduardo chega e senta do lado dela.

EDUARDO
Você quer conversar?

NINA
Na boa, não. Só não tô conseguindo. A estréia está chegando e eu não sei onde está
129

minha cabeça, meu corpo, nada. Não sei Edu, não sei.

EDUARDO
Nina, você é a atriz mais talentosa com quem já trabalhei. Confio plenamente no que
você faz lá em cima. Mas eu tô preocupado sim. A Petra é complicada. Ela é mais ve-
lha, é densa, vive um amor impossível. Você tem que sentir essa dor que ela sente. E
onde está isso?

NINA
Eu não sei.

Nina cobre os olhos com as mãos. Eduardo a abraça com carinho.

EDUARDO
Mas vai saber meu anjo, vai saber. Vamos com calma.

Nina olha para as lágrimas de espuma do cenário, que balançam no vazio do palco.

16. INT. DIA. QUARTO.


Bárbara está sentada na cama, de frente para a janela. Nina chega e a vê. Pára por uns instan-
tes. Depois, chega perto da cama, ajoelha-se no colchão e abraça Bárbara por trás. Dá-lhe um
beijo na nuca.

BÁRBARA
Oi, amor. Não te vi chegar.

NINA
Eu sei que não. Hei, vem cá.

Bárbara se vira e Nina a puxa para o centro do colchão.

NINA
Precisamos conversar...

BÁRBARA
Não, não precisamos. Não começa!

Nina se levanta. Vira de costas para Bárbara, quase chorando.

BÁRBARA
Não faz isso, amor... Não faz isso com a gente.

Nina nada diz. Apenas olha para a porta, para o armário, para a parede. Tenta segurar o choro.

BÁRBARA
Eu amo você.

Nina se vira. Olha para Bárbara. Chega perto dela na cama.


130

NINA
Eu também amo você. Amo muito.

Nina beija Bárbara suavemente. E se afasta, olhando para baixo.

NINA
Mas não dá mais. Eu queria... Como eu queira... Mas eu não consigo. Desculpa.

Nina se levanta novamente. Pega a bolsa na cadeira e vai para a porta. Pára por alguns segun-
dos. Uma lágrima desce pelo seu rosto. Sem olhar para trás, ela sai. Bárbara fica olhando para
a porta, sem acreditar.

17. INT. NOITE. TEATRO.


A platéia está lotada, em silêncio e somente as luzes do palco a iluminam. Uma espectadora
abre o flyer que traz o nome da peça “AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA VON
KANT” COM NINA MAYA: GRANDE ESTRÉIA. No palco, Nina interpreta a última cena
do espetáculo. Com muita intensidade traz uma Petra sofrida e amarga. A personagem gesti-
cula, aponta, acusa, chora, colore cada detalhe de suas falas. Após um momento de clímax, ela
se joga no chão. A platéia levanta, e aplaude com furor. A cortina se fecha num repente. Por
trás da cortina, ela chora, desesperadamente.

18. INT. DIA. ATELIER.


Bárbara pega uma lata de tinta vermelha. Joga com fúria numa tela grande branca. A tinta
escorre, como lágrimas. Bárbara estende a mão e começa a fazer um traço que lembra o rosto
de uma mulher. Ela pára. Olha para a imagem. Chora. Ao fundo, dezenas de quadros da artista
mostram mulheres tristes. Bárbara começa a pintar com as mãos. Com tinta preta sobre a
vermelha, ela desenha uma grande lágrima caindo do rosto da mulher.

5.1.2. Diálogo

Em “Diálogo”, a personagem principal é Ísis dos Santos, uma mulher com pouco mais

de 40 anos, mas que, infelizmente, aparenta mais. Isso por viver a rotina doméstica sem gran-

des pretensões e por ter um casamento frustrado. Seu marido, Henrique, é um bom homem,

mas muito calado. Quase não saem, quase não conversam e o sexo não é muito bom. Ísis

sempre gostou de aventura, mas nunca teve coragem de correr atrás de seus sonhos. Por isso

se acomodou na situação e, aparentemente, vive uma felicidade superficial.

Um dia ela decide dar um pequeno passo de mudança: compra um computador. O que

parecia bobeira se torna o grande amigo de Ísis. Ela passa horas conhecendo o mundo através

da internet e decide, da mesma forma, conhecer pessoas. Conhece Estela, uma arquiteta muito
131

sedutora com as palavras, com um jeito de falar especial e único. Ísis se apaixona pelas pala-

vras, pela foto, pelo jeito de Estela, mas sofre por sentir isso. Primeiro porque é casada, se-

gundo por nunca ter sentido nada por nenhuma mulher antes. Os desejos vêm em seus sonhos,

a vontade aumenta e ela se torna, finalmente, uma mulher corajosa a ponto se ouvir seu pró-

prio coração.

Estela tem 27 anos, tem um escritório de arquitetura e seu trabalho é muito reconheci-

do em Juiz de Fora. É responsável por prédios e casas noturnas tidas como referência arquite-

tônica no país. Muito nova, terminou sua faculdade e dedicou a vida ao trabalho. Uma mulher

extremamente elegante e bem sucedida. Tem um estilo esporte fino com requintes de casuali-

dade. Homossexual, Estela sempre teve uma queda por mulheres mais velhas. Morou por

tempos com uma de 45 anos, se envolveu alguns namoros breves e hoje em dia está solteira.

Já teve alguns relacionamentos pela internet, mas nunca acreditou nesse meio. Só que ulti-

mamente troca correspondência constante com Ísis, uma mulher casada. Tem medo do que

está sentindo, da falta que essa mulher faz em sua vida.

Na história de “Diálogo”, Ísis vive um relacionamento frustrante com Henrique.

Eles moram atualmente em Juiz de Fora. Sua rotina não deixa a dever a nenhuma empregada

doméstica. Varrer, passar, lavar, cozinhar e cuidar do marido. Um dia, Ísis compra de presente

pra si mesma um computador. O marido simplesmente ignora o fato, o que frustra Ísis ainda

mais. Com o novo brinquedo, ela encontra uma ótima fuga da rotina. Tem um prazer enorme

de mexer nos programas e de aprender aos poucos como desvendar a internet. Enquanto isso,

o marido percebe que está perdendo espaço na casa para a máquina, mas pouco faz pra mudar

o quadro. Continua preso à sua telenovela de todo dia.

Curiosa, Ísis começa a entrar em salas de bate-papo. Mas, desinteressada, não

permanece em nenhuma. Até que se vê num chat para homossexuais femininas. A princípio,

Ísis reluta. Mas depois aceita conversar com uma mulher que chama sua atenção. Essa mulher
132

é a arquiteta Estela, que é mais nova, lésbica e solteira. Com muita conversa e horas de bate-

papo, a sedução por palavras faz com que se apaixonem. Começam a sentir saudades uma da

outra, apesar de nunca terem se encontrado. Vivenciam no computador um romance aparen-

temente proibido. Paralelamente, Ísis não entende muito bem o que se passa e tenta manter a

normalidade de seu casamento. Mas isso já não é possível. Ela só consegue pensar na mulher

da internet, que a cada dia a conquista mais. Quando não agüentam mais de ansiedade e dese-

jo, Estela propõe de se conhecerem. Ísis, morrendo de medo, aceita, pois tem que saber o que

está sentindo.

Numa tarde, se encontram no Mirante do Cristo de Juiz de Fora. Estela chega

primeiro, esperando ansiosa, por Ísis. Na verdade, pensa que ela não vai aparecer. Mas Ísis

vai. Enfrenta o medo e aparece para ver Estela. Não é preciso mais palavras. Não importa

mais o que têm a dizer. Ísis aceita a paixão que sente. E num momento exaltado, Ísis beija

Estela.

Após o encontro, novos rumos se estabelecem na vida das duas. Elas passam a vi-

ver um relacionamento de carinho e respeito. Vão morar juntas e com isso, dividir a vida, des-

cobrir segredos e compartilhar sentimentos. A rotina de Ísis não muda radicalmente só por

estar com uma mulher. A diferença é que agora ela ama e se sente amada. Com isso, encontra

a felicidade há tanto esquecida.

5.1.2.1. Roteiro “Diálogo”

1. INT. DIA. SALA DA CASA.


No canto da sala, um móbile brega de vidro balança perto da janela. Ísis está varrendo o chão,
com ar de cansada. Uma música triste toca ao fundo, misturada com barulho de noticiário da
tv. Ela pára e olha para o marido sentado no sofá. Ele está lendo o jornal e vendo TV ao mes-
mo tempo. Incomodado pelo barulho do rádio, ele vira a cabeça, olha para Íris e resmunga
algo inaudível. Volta para frente, balança a cabeça negativamente e aumenta a TV. Ísis respira
fundo, balança a cabeça, retira os óculos e coça os olhos. Continua a varrer sem pressa na
direção da cozinha.
133

2. INT. DIA. COZINHA DA CASA.


No fogão, a panela de pressão começa a apitar. O rádio ao lado da pia continua tocando a
mesma música triste. Ísis despeja o lixo da pá dentro da lixeira. Abaixa o fogo do feijão e des-
liga o rádio. Ela abre a torneira e começa a lavar a louça. Suspira contrariada, torcendo a boca.

3. INT. DIA. QUARTO DA CASA.


Ísis se olha no espelho pra passar um batom. Retira os óculos. Repara numa ruguinha acima
do olho. Ao longe, o som da TV continua alto e Henrique dá gargalhadas. Ísis suspira mais
uma vez, larga o batom e pega um creme para peles maduras. Passa no rosto, alisando a pele
como se isso fosse rejuvenescê-la instantaneamente. Finalmente passa o batom e ajeita o ca-
belo.

4. INT. DIA. SALA DA CASA.


Ísis pega dinheiro e um cartão de crédito na carteira de Henrique em cima da mesa e coloca
em sua bolsa. Ela vai em direção à porta.

ÍSIS
(alto)
Vou à feira. Quer alguma coisa?

Henrique levanta-se rápido do sofá, vai até Ísis, abraça-lhe com carinho e beija sua testa.

HENRIQUE
Meu amor, eu vou pra você!!

Volta à cena anterior. Henrique sentado no sofá, inerte, vendo televisão. Ísis pára de sonhar
acordada.

ÍSIS
(alto)
Vou à feira. Quer alguma coisa?

Ísis espera uma reação do marido, mas ele nem olha pra trás. Apenas levanta a mão e dá um
tchau. Ela sai com a bolsa na mão.

5. EXT. DIA. FEIRA.


Ísis procura maçãs perfeitas, cheira mangas, escolhe abacaxis. Pára em frente à banca de flo-
res e admira as orquídeas. Uma em especial, branca, chama sua atenção. Ela se aproxima e
sente a textura da flor. Suspira. Deixa pra lá e vai em direção às verduras, cumprimentando a
dona da barraquinha.

6. EXT. DIA. RUA PERTO DA FEIRA.


Ísis volta para a casa com sacolas na mão. Passa em frente a uma loja de informática e vê um
computador na vitrine. Ísis pára e olha. No monitor LCD de 20 polegadas, um comercial mos-
tra uma mulher deitada na beira da piscina, com o laptop no colo. No filme, a mulher sorri,
enquanto um garçom muito bonito traz um suco de frutas numa bandeja. De repente, quem
está sentada na espreguiçadeira é a própria Ísis exatamente como a mulher estava vestida. Ela
pega o suco e sorri, oferecendo para a tela do computador. Aparecem os créditos no monitor
“QUINTA-FEIRA - 14 HORAS - REUNIÃO DE EQUIPE”. Ísis, do lado de fora da loja, a-
cha graça do comercial. Na tela, aparece: “COMPUTER – TRABALHO E PRAZER DE
134

UMA SÓ VEZ”. Ísis sorri e entra na loja com as sacolas.

7. INT. DIA. SALA DA CASA.


Ísis entra em casa com as sacolas da feira. A TV está muito alta. Ela passa pelo marido en-
quanto fala, quase gritando.

ÍSIS
(cínica)
Comprei um computador com seu cartão de crédito, ta, benhê!

HENRIQUE
Hein?

8. INT. DIA. QUARTO DE HÓSPEDES.


Numa escrivaninha adaptada, Ísis ajeita orgulhosa o seu mais novo brinquedo. Na mesa, vá-
rios livros como “APRENDA COMPUTADOR NUM SEGUNDO”, “INTERNET PARA
LEIGOS” e manuais de programas estão espalhados, ao lado de folhas rabiscadas. Ísis olha
para a tela atenta, olha para o teclado. Ela consulta num dos livros e clica num site para fazer
uma conta de e-mail. Cata letras tentando se cadastrar. Esfrega as mãos, achando tudo muito
divertido. Volta a teclar, devagar. O marido chega na porta do quarto.

HENRIQUE
Cadê o almoço, Ísis?

ÍSIS
(sem olhar para ele)
Está no microondas, Henrique.

HENRIQUE
Comida requentada de novo. Mas que saco, hein?

Ele se vira e sai.

ÍSIS
(irônica, sussurrando)
Vai se acostumando, meu filho.

Ela continua digitando empolgada.

9. INT. DIA. QUARTO DE HÓSPEDES.


Na tela do computador, um site de viagens mostra lindas fotos de Paris, Londres, Nova York.
Ísis, encantada, abre uma por uma, salva na sua pasta de arquivos. Demonstra que já domina
mais o computador. Ela se levanta, vai até a estante e pega numa gaveta um CD virgem. Ela
coloca no drive do computador e abre o programa de gravar CDS. Ela seleciona algumas mú-
sicas de seu arquivo e grava o CD. Quando ele fica pronto, ela tira-o da bandeja e escreve
“PARA MEU MARIDÃO” com uma caneta preta. Ela sorri empolgada e sai.

10. INT. DIA. SALA DA CASA


135

Henrique está sentado na mesa, fazendo contas. Ísis chega por trás dele e o abraça. Ele apenas
sorri e volta para as contas. Ísis suspira e senta ao lado dele. Entrega-lhe o CD dentro de uma
capinha de plástico.

HENRIQUE
O que é isso? Um CD pirata?

Ísis tenta falar, mas Henrique não deixa, interrompendo-a.

HENRIQUE
Eu já te falei pra não comprar essas porcarias, Ísis! Fica jogando dinheiro no lixo.

Ele pega o CD e joga do outro lado da mesa, voltando para as contas. Ísis faz que vai explicar,
mas desiste. Pega o CD na mesa e com tristeza nos olhos, sai da sala.

11. INT. NOITE. QUARTO DE HÓSPEDES.


Ísis está mais uma vez no computador. Ela navega na internet e entra num site de bate-papo.
Olha pela porta aberta, vendo se o marido está por perto. Começa pela sala de “MULHERES
CASADAS”. Não acha interessante, sai. Entra na sala “MAIORES DE 40”, faz cara de des-
confiada. Sai de novo. Vê então, a sala “SEXO”. Dá um risinho safado e decide entrar. Ob-
serva que há uma sala com o nome “LÉSBICAS”. Pensa por alguns segundos. Coça a cabeça,
e decide escrever o apelido “CURIOSA HETERO”. Ela clica o Enter, rindo sem graça. Logo
que se conecta, uma mulher a convida para conversar em particular. O nome que aparece é
ESTELA, piscando por alguns segundos.

ÍSIS
Ai! Será? Hum... Então tá. (escreve e fala) Alô!

12. INT. NOITE. SALA DE ESTELA


Num escritório de arquitetura muito elegante, a única luz do ambiente vem de uma luminária
de cristal moderna e colorida, que lembra um móbile. Estela está sentada na frente de seu lap-
top. Um blues ao fundo, um copo de vinho ao seu lado e um cigarro na mão. Ela olha na tela
do laptop escrito: “CURIOSA HETERO DIZ: ALÔ!”. Ela descansa o cigarro no cinzeiro.

ESTELA
Alô? Como assim? (ri) Agora curiosa fiquei eu. (escreve) Oi, como se chama?

Estela toma um gole de vinho.

13. INT. NOITE. QUARTO DE HÓSPEDES.


Ísis responde no computador: “DEVO DIZER MEU NOME ASSIM, LOGO DE CARA?”. E
vê a resposta: “POR QUE NÃO? VOCÊ JÁ SABE O MEU...”.

ESTELA (EM OFF)


Por que não? Você já sabe o meu...

ÍSIS
É... Por que não?... (escreve e fala) Meu nome é Ísis. Eu não sou lésbica. (pára de es-
crever) Ai! Que ridículo. Sou muito velha pra essas coisas. (apaga parte do texto).
136

14. INT. NOITE. ESCRITÓRIO DE ESTELA


Estela observa, com os cotovelos na mesa, o computador. Vê a resposta de Ísis: “MEU NO-
ME É ÍSIS”.

ÍSIS (EM OFF)


Meu nome é Ísis.

ESTELA
Ísis. Quem é você, Ísis? (volta a escrever) Você só está curiosa? (debochando) Ou quer
descobrir de verdade o que é gostar de uma mulher?

Estela enche um pouco mais a própria taça de vinho, rindo do que acaba de escrever.

15. INT. NOITE. QUARTO DE HÓSPEDES.


Ísis lê a pergunta de Estela. Levanta-se.

ÍSIS
Ai, meu Deus, o que eu tô fazendo. E a outra me pergunta isso de cara!

Ela olha para a porta, ouve o som de novela na maior altura. Vai até a porta e a fecha.

ÍSIS
Ah! Quer saber?

Ísis senta-se novamente no computador e escreve: “EU SOU CASADA. COM UM HO-
MEM”. Sorri, pensativa. Aperta a tecla ENTER. Ísis faz cara de vergonha. O som anuncia que
uma nova mensagem chegou. Ísis lê atenta.

ESTELA (EM OFF)


Bom, isso não quer dizer nada. Nós podemos conversar, nos conhecer. Quero saber
mais sobre você, Ísis. Quantos anos, de onde é. Tenho a noite toda pra descobrir.

Ísis faz cara de surpresa ao terminar de ler.

ÍSIS
Abusada essa Estela...(pausa) Hum, gostei.

Ísis volta a digitar, com um sorriso maroto no rosto. Vários momentos passam, imagens das
duas teclando. Ísis na sala, Estela no seu quarto.

16. INT. DIA. ESCRITÓRIO DE ESTELA.


Estela está com o fone do celular no ouvido, andando pelo escritório. Uma grande planta bai-
xa está aberta sobre a mesa. Estela aponta para detalhes da planta enquanto fala.

ESTELA
Sérgio, é o seguinte. Aquele móvel parma não vai ficar legal na sala. Contrasta muito
com as cores da parede.

A secretária de Estela entra pela porta e pede licença. Estela a chama com a mão. A secretária
entra e deixa um documento na mesa. Estela agradece com a mão, pega o documento e senta-
137

se na mesa. Continua ao telefone, prestando atenção. Abre o envelope, tira algumas folhas de
um projeto e começa a folhear. O laptop na mesa avisa o recebimento de uma mensagem.
Estela larga as folhas e puxa o laptop pra mais perto.

ESTELA
Sérgio? Desculpe, mas eu preciso desligar. Depois conversamos na reunião. (pausa)
Pode deixar. Um abraço!

Estela tira o fone do ouvido, e mexe no laptop para abrir a mensagem. Uma foto de Isis apare-
ce na tela. Estela olha para a foto interessada. Sorri, gostando do que vê. Pega um cigarro,
acende. Senta-se. Continua a olhar para a foto, rodando na cadeira, com ar apaixonado.

17. INT. NOITE. SALA DO COMPUTADOR/QUARTO DE ESTELA


Ísis e Estela conversam pelo computador. Elas teclam em diferentes momentos, com roupas
diferentes, indicando a passagem de vários dias. Enquanto isso, elas trocam confidências. Ísis
tenta arrumar o foco da WebCam. Estela ri do outro lado, enquanto passa a mão na tela do
laptop.
Elas se vêem e escrevem. Frases em Off preenchem a cena.

ÍSIS
Você viu aquele filme que passou ontem?

ESTELA
Pára com isso...

ÍSIS
Seu cabelo fica lindo preso desse jeito.

ESTELA
A primeira vez que eu fiquei com uma mulher, eu tinha 17 anos.
ÍSIS
Eu queria sentir seu perfume...

ESTELA
Eu gosto de ouvir MPB, um pouco de Jazz.

ÍSIS
Você é linda, sabia?

ESTELA
Queria te levar pra jantar... agora! É! Agora!

ÍSIS
Paulinho Moska, Lenine.... Bethânia? Nossa!! Amo!!!

ÍSIS
Nossa, aquele bar, foi você quem projetou? É lindo!

ESTELA
Você já viu “O Triciclo”? É espetacular...
138

ÍSIS
Eu gosto de documentários, de séries de tv.

ÍSIS
Eu casei muito nova.

ESTELA
Adoro cozinhar. Adoro! Acho que eu daria uma ótima chef.

ÍSIS
A gente podia ir pra Ibitipoca. Acredita que eu não conheço?
ESTELA
Quero te dar um beijo.

ÍSIS
Eu também quero te beijar...

18. EXT. DIA. RUA DA FEIRA.


Ísis volta para casa com o carrinho cheio de frutas. A rua está cheia de gente. Ísis observa com
atenção as pessoas que passam por ela. Uma mulher loura, alta e muito bonita passa ao lado
de Ísis, que vira os olhos para acompanhar. Ísis imagina a mulher loura olhando com jeito
sensual para ela, piscando o olho. Ísis balança a cabeça e vê que a mulher não estava olhando
de verdade. Volta os olhos correndo. Continua andando. Duas meninas mais novas vêm an-
dando atrás de Ísis. Riem e conversam próximas uma à outra. Ao ultrapassarem Ísis, observa-
se, no polegar das duas, anéis iguais. Ísis sorri e continua andando. Ela pára para atravessar a
rua. Do outro lado, uma mulher de cabelos curtos está esperando o sinal abrir e olha para Ísis.
Ísis percebe. Vira para os lados procurando outra pessoa. Do outro lado, a mulher sorri para
ela. Ísis fica sem graça e olha para baixo, sorrindo. O sinal fecha. A mulher atravessa em dire-
ção à Ísis, que fica parada. Ao chegar mais perto, a mulher olha nos olhos de Ísis e pára em
frente à ela. Ela pega as duas mãos e segura o rosto de Ísis, se aproximando para beijá-la. Ísis
acorda. A mulher continua do outro lado da rua. Ela atravessa com pressa e passa ao lado de
Ísis, que a acompanha virando o rosto. Ísis coça a cabeça e sorri, espantada com a própria
reação.

19. INT. NOITE. CORREDOR DA CASA.


Ísis sai da sala do computador e fecha a porta, como se escondesse algo. Vira-se e dá de cara
com o marido. Leva um susto.

ÍSIS
Meu Deus! Quer me matar do coração, criatura?

HENRIQUE
O que você tem, hein? Fica o dia todo aí, nesse computador. Nem parece que eu tô a-
qui.

ÍSIS
(irônica)
Ah! Agora você sabe o que eu sinto, né?
139

HENRIQUE
Quê isso, amorzim. Pôxa, não fala assim comigo. (se aproxima dela) Vem cá, tô com
saudade de você.

Ísis faz cara de nojo quando o marido a abraça. Mas se arrepende, retribui o abraço e lhe dá
um beijo. O marido começa a beijar com maior insistência. Ísis muda de idéia novamente e
empurra o marido.

HENRIQUE
Quê foi???

ÍSIS
Tô cansada. Vou tomar um banho.

Ela sai pelo corredor, o marido vai atrás. Ela entra no banheiro da casa e bate a porta na cara
do marido.

HENRIQUE
Ísis, você tá muito estranha! Fala comigo! Hei, Ísis!

20. INT. NOITE. BANHEIRO DA CASA.


Ísis pára na frente do espelho do banheiro. Olha pelo reflexo a tampa do vaso levantada. Num
sinal de impaciência, coça os olhos. Ísis tira as mãos dos olhos e se observa por instantes. Vai
ate o chuveiro e abre as torneiras ao máximo. Ela abaixa a tampa do vaso sanitário e se senta,
com a cabeça entre as mãos, enquanto a água cai no box vazio.

21. INT. DIA. ESCRITÓRIO DE ESTELA.


Estela está no trabalho, revendo algumas plantas baixas. Um barulho no computador anuncia
a chegada de Ísis num programa de bate papo. Ela larga a planta de lado e começa a teclar no
laptop. Fala sozinha no escritório.

ESTELA
Que loucura. Não posso sentir saudade assim dessa mulher, meu Deus... (escreve) Vo-
cê me faz falta.

Ela espera e lê a resposta de Ísis que diz: “EU QUERIA TER CORAGEM PRA TE ENCON-
TRAR. MAS O MEDO É TANTO!”.

ESTELA
Eu também tenho medo. Muito medo.

Estela escreve: “POSSO TE LIGAR? AGORA?” E espera. Instantes depois, ela lê “SIM” na
tela. Pega o telefone.

22. INT. DIA. SALA DA CASA DE ÍSIS.


Ísis está no telefone, olhando pela janela. Enrola o fio como uma adolescente apaixonada.
Sorri animadamente.

ÍSIS
Não. Ele tá no trabalho. Que bom ouvir sua voz. (sorri) Sabe, eu preciso...
140

Ela pára e anda até o meio da sala, respirando fundo.

ÍSIS
Eu preciso te conhecer. Saber o que é isso tudo. Eu tenho sonhado com você!! E só te
vi nas fotos, pela web cam. Eu sou casada. E, pior, eu nunca gostei de mulher na mi-
nha vida! Eu tô ficando completamente maluca.

23. INT. DIA. ESCRITÓRIO DE ESTELA.


Estela levanta, vai para a janela. Há um sino dos ventos do lado de fora, com um som harmo-
nioso. Ela olha para fora, pensativa. Sorri, como que tomando coragem.

ESTELA
Eu... Eu também quero muito, eu preciso olhar seus olhos, sentir seu cheiro. Eu, eu...

ÍSIS (pelo telefone)


Eu quero te ver agora.

ESTELA
(em êxtase)
Sim! Claro! Agora!

24. INT. DIA. SALA DA CASA


Ísis está maquiada, com uma roupa bonita, extremamente elegante. Ela passa apressada, pega
a bolsa no sofá e procura algo como a chave de casa. Quando está perto da porta, ela se abre e
seu marido entra. Ísis olha para ele assustada.

HENRIQUE
Onde você vai assim?

ÍSIS
(sem graça)
Ah.. É... Não te interessa!

HENRIQUE
(assustado com a reação)
Quê isso, Ísis!

ÍSIS
Ai! Desculpa, Henrique, eu tô atrasada, depois te falo.

Ela vai falando enquanto passa entre o marido e a porta, quase correndo. Ele olha para a porta
espantado.

25. INT. DIA. RUA DA CASA DE ÍSIS.


Ísis corre pela rua, segurando sua bolsa, como se estivesse fugindo de algo. Olha para os la-
dos, correndo sem parar. Avista um ponto de táxi e acelera o passo. Pára em frente a um car-
ro. O taxista olha espantado para ela. Ela pede para ele esperar, respira, tentando descansar.
Faz um sinal de “deixa pra lá” e entra no carro.
141

26. EXT. DIA (TARDE). CAFÉ DA MATA


Estela está sentada numa das mesas do café, fumando um cigarro. Ela olha ansiosa para a en-
trada, esperando por Ísis. O céu está azul-roseado pelo fim da tarde.

27. EXT. DIA (TARDE). ENTRADA CAFÉ DA MATA CRISTO.


Ísis chega de táxi, desce do carro, agradece ao motorista e dá uma última ajeitada no cabelo,
olhando o reflexo no vidro do carro. Ela está muito bonita. O táxi vai embora e Ísis caminha
tensa para a porta de entrada.

28. EXT. DIA (TARDE). CAFÉ DA MATA.


Ísis chega no caminho para o café. Vê, ao longe, Estela sentada na mesa e de costas para ela.
Ísis sorri, satisfeita por estar ali e um pouco mais relaxada. Ela caminha devagar até Estela,
que percebe a presença de Ísis e se vira. Estela, então, caminha também para encontrar Ísis.
As duas se encontram e se olham. Ísis estende a mão, meio sem graça, sem saber ao certo co-
mo agir. Estela segura a mão de Ísis, cumprimenta, mas não larga. Estela olha para as mãos
unidas. Dá um sorriso. Puxa Ísis para perto e lhe dá um gostoso abraço. Ísis aproveita o abra-
ço e faz um carinho nas costas de Estela. Elas se afastam novamente. Admiram-se, os olhos, a
boca, o cabelo. Percebem cada detalhe uma da outra. Estela tenta dizer algo, mas Ísis a cala
com os dedos. Ela chega perto do rosto de Estela e elas se beijam apaixonadamente. Ao longe,
o garçom do café olha desconfiado. Ele dá uma risadinha e volta para o trabalho. Ísis e Estela
sentam no café, e conversam carinhosamente enquanto a noite cai.

29. INT. DIA. COZINHA DA CASA.


No fogão, a panela de pressão começa a apitar. No rádio, toca uma canção romântica da
MPB. Ísis lava a louça. De olhos fechados, ela sente a música enquanto enxágua o prato. Um
braço chega por trás de sua cintura e a abraça. Ela sorri e faz um carinho, percebe-se que Ísis
está sem aliança. Ísis continua de olhos fechados, como estivesse sonhando. Estela carinho-
samente beija o pescoço de Ísis, que abre os olhos. Estela pega o prato de sua mão. Ísis tenta
pegar, Estela rouba um beijo dela. Estela aumenta o som do rádio e assume a louça. Ísis fica
ao seu lado, sorrindo, passando as mãos nas costas dela. Pega o pano de prato e ajuda Estela.

30. INT. DIA. QUARTO DE HOTEL.


Henrique assiste à televisão. Na TV, passa um filme antigo em preto e branco. A barba de
Henrique está por fazer, sua cara é de insone. Ele toma uma lata de cerveja.

31. EXT. DIA. FEIRA.


Estela caminha na frente, escolhendo mangas. Ísis chega perto dela e a ensina a pegar a certa.
Estela faz uma careta de sem graça. Ísis paga as frutas. As duas andam pela feira com sacolas
na mão. Ísis pára perto da banca de morangos. Estela continua adiante, e pára na banca de
flores. Olha um vaso de orquídeas brancas. Pede para o vendedor embrulhar. Ísis se aproxima
por trás de Estela. Ela dá o vaso para Ísis, que a abraça. As pessoas olham desinteressadamen-
te para as duas abraçadas. Elas caminham entre as barracas e pessoas. O vaso de orquídeas
pende dentro da sacola.
142

5.1.3. Apoio

As personagens de “Apoio” são as jovens Clara e Olívia. Clara é uma linda garota de

20 anos. Alegre, inteligente, corajosa e surda. Desde nascença apresentava problemas auditi-

vos, mas aos 10 anos teve uma febre altíssima que lhe deixou surda dos dois ouvidos e que

afetou também sua capacidade de fala. Gesticula as vogais e consoantes com precisão, mas o

som não sai de sua boca. Na verdade, a surdez não é um problema. Filha de pais atenciosos,

teve uma criação tranqüila, com muito amor e paciência. Moram em uma grande casa com

piscina num bairro afastado. Mas Clara não sabe nadar. Ficar embaixo d‟água sempre lhe

trouxe aflição. Clara sabe que sua mãe é uma mulher difícil e faz de tudo para não decepcio-

ná-la. Sem assumir sua lesbianidade, ela já teve alguns breves namoros. Sempre desejou sair

de casa, ser independente para poder viver isso de forma mais tranqüila. Mas sabe que, por

enquanto, isso não é possível. Ela participa de grupos de apoio às necessidades especiais e

começou recentemente a faculdade de psicologia. No momento vive uma boa fase de sua vi-

da, começando a vida adulta com tranqüilidade e sabedoria. Às vezes sente ímpetos de loucu-

ra, como toda garota de 20 anos.

Olívia tem 22 anos, toca violino na orquestra de Câmara do Pró-Música, é uma mulher

linda com um talento nato para a música. Cega de nascença, Olívia soube desenvolver bem

seus outros sentidos, sendo uma artista talentosa e sensível. Seu melhor amigo é também seu

professor de ginástica especial. Freqüenta suas aulas há mais de dois anos. Gosta de dançar e

é muito feminina. Suave. Uma mulher delicada, mas que pode ser forte e decidida, como o

toque do violino. Ela nunca teve problemas em assumir que era lésbica. Ela pensa que, como

não enxerga, não vê o preconceito nos olhos dos outros. Por isso se dá tão bem com sua orien-

tação sexual. Mas, como ainda é nova e não conheceu a pessoa ideal, a pessoa em quem con-

fiar, está solteira. Seu último relacionamento foi conturbado, e houve traição por parte da ex-
143

namorada. Então ela se reserva pra poder confiar em alguém. É uma pessoa apaixonada pela

vida e apaixonante, nunca se sentiu diferente por nada e soube se adaptar a todas as dificulda-

des. Um exemplo a ser seguido por todos.

A história começa com os encontros de um grupo de pessoas muito especiais. To-

das as terças e quintas, ele se reúne para participar das aulas de ginástica do professor Márcio.

Ele realiza esse trabalho com portadores de necessidades especiais em Juiz de Fora há alguns

anos. Pelas mãos e orientação do professor, todas as diferenças somem e todos se tornam um

só. Freqüentam essas aulas, Clara e Olívia. Clara ficou surda quando era criança, o que afetou

também sua capacidade de falar. Olívia é cega desde nascença e desenvolveu seus outros sen-

tidos como ninguém. Ambas aceitam muito bem suas diferenças, assim como a maioria dos

que fazem as aulas de ginástica. Clara e Olívia nunca fizeram um exercício juntas e, por isso,

não tiveram oportunidade de se conhecer.

Numa quinta despretensiosa do ano de 2006, Márcio une Clara e Olívia num exer-

cício de confiança. Uma teria que conduzir a outra como uma marionete. Clara se candidata,

então, a ser a marionete, o que deixa Olívia muito feliz. Nunca haviam confiado nela pra con-

duzir antes. Logo no primeiro toque, algo inesperado acontece. As peles se estremecem. Os

corpos se aquecem. Clara se deixa levar pelas mãos de Olívia, seduzida pelos movimentos, o

coração acelerado numa dança bela e completa. Algo que não necessita de luzes ou de sons

para se entender.

Depois da aula, Clara pede ajuda a Márcio para conversar com Olívia. Pede um

contato, explica que quer conhecê-la melhor e a recíproca é verdadeira. Olívia sente que esse

interesse não é apenas por uma amizade. Seu coração ficou abalado também. No primeiro

momento, dúvida. Mas depois de mais algumas aulas, não há mais o que negar. Elas se gos-

tam de verdade. E declaram seu amor, começando a namorar escondido. A mãe de Clara nun-

ca aceitou o fato de a filha ser lésbica. Clara, por sua vez, tenta ignorar o preconceito da mãe e
144

se empenha em descobrir maneiras de se comunicar com Olívia. Começa a aprender o Braile

e tenta ensinar para Clara a LIBRAS.

Um dia, na casa de Clara, as duas estão juntas e a mãe chega. Surpreendendo as

duas, agride Olívia e a manda embora de sua casa. Desorientada e assustada, Olívia sai cor-

rendo pelo quintal da casa de Clara, que tenta impedi-la. Olívia não percebe a grande piscina

que está à sua frente, tropeça na escada e cai dentro da água. Clara se desespera porque não

sabe nadar. Ela não consegue gritar por ajuda, está presa e limitada, enquanto Olívia, incons-

ciente, está se afogando. O momento é esse. Não há palavras, sons, sinais, nada que a faça

pedir ajuda. Somente ela pode salvar Olívia. E seu amor por ela prova ser maior que tudo.

Clara se joga na água, quase afogando e alcança Olívia. Segura-a, como Olívia fez com ela na

primeira aula. Tenta puxá-la para a beirada, mas Olívia está realmente desorientada. Clara,

fraca, busca toda a sua adrenalina para salvar Olívia. E consegue finalmente puxar seu corpo

para a beira. Olívia retoma a consciência e é beijada por Clara.

A mãe de Clara acaba aceitando a filha, pois percebe sua felicidade com aquele

amor. Resolve, assim, apoiá-las. Conclusão: nenhuma diferença é capaz de estragar o amor

que sentem.

5.1.3.1. Roteiro “Apoio”

1. INT. DIA. SALA DE GINÁSTICA.


Um móbile de fotos dos alunos balança em frente ao espelho da sala. Vários portadores de
necessidades especiais fazem exercícios de alongamento. Uma música suave toca ao fundo e
há caixas de som viradas para o chão. Márcio, o professor, passa pelos alunos, ora ajudando
um, ora orientando outro. Ele une alguns alunos em duplas. Olívia, de olhos fechados, alonga
os braços. Mais atrás, Clara a observa. Ela vira para a mãe que está sentada no banco de espe-
ra e, em LIBRAS, diz “HOJE A AULA VAI SER BOA!”. A mãe sorri e responde que sim.
Márcio chega mais perto de Clara. Faz “OI” em LIBRAS. Clara o abraça. Ele chama, com as
mãos, Clara para fazer o exercício com Olívia. Chega perto de Olívia e coloca a mão em seu
ombro. Ela abre os olhos e aproxima as mãos do rosto de Márcio.

OLIVIA
145

E aí, Marcinho! Beleza?

Márcio dá um beijo no rosto de Olívia e orienta sua mão direita até o rosto de Clara. Oliva faz
o reconhecimento facial com delicadeza.

MÁRCIO
Olívia! Essa é Clara. Ela vai fazer o exercício contigo hoje, ok?

OLÍVIA
E aí, Clara. Tudo bem?

Clara diz “OI” em LIBRAS, enquanto gesticula com a boca.

MÁRCIO
Ela não ouvir a gente, Olívia. Mas tenho certeza que isso não vai ser um problema pra
vocês. (para o resto da turma, dizendo em LIBRAS ao mesmo tempo) Vamos começar
hoje com exercícios de confiança.

Márcio dá um exemplo do exercício onde um tem que guiar os gestos do outro como numa
marionete. Clara segura no ombro esquerdo de Olívia. Dá um leve apertão, indicando que
quer ser guiada primeiro. Olívia sorri e, com sua mão direita segura na mão de Clara a puxan-
do para sua frente. Elas ficam frente a frente. Clara fecha os olhos. As mãos se cruzam acima
do corpo, se soltam e começam a dançarem juntas no ar, como num espelho. As palmas se
encostam, Clara sorri. Olívia também. A mãe de Clara observa o exercício das duas. Clara
aproxima seu corpo de Olívia que a abraça. Clara fica mole como uma boneca. Olívia ergue
com suavidade o corpo de Clara e começam a dançar pelo salão, como num tango. Clara man-
tém os olhos fechados enquanto Olívia guia seus passos. Olívia sorri. Ela passa suavemente
sua mão direita nas costas de Clara, num carinho sutil. A mãe de Clara nota o gesto e fecha a
cara com desconfiança. Elas dançam por mais algum tempo, indiferentes ao resto da turma. A
música pára, mas Clara não desfaz o abraço de Olívia. Abre os olhos e sorri. Eleva a mão pelo
ombro de Olívia, passa pela nuca e chega a seu rosto. Sente a pele de Olívia com a mão por
alguns segundos. Elas se separam, deixando as mãos por último. Márcio, ao fundo, prepara
outro exercício.

2. INT. DIA. SAÍDA DA SALA DE GINÁSTICA.


Márcio se despede das alunas. Olívia pára para conversar com ele. Clara vem andando com
sua mãe ao lado, conversam sobre algo em LIBRAS. A mãe pára com outras alunas e Clara se
aproxima de Márcio e Olívia.

MÁRCIO
(em LIBRAS ao mesmo tempo)
Clara! Olívia gostaria de se encontrar com você para se conhecerem melhor! O que
você acha?

Clara responde em LIBRAS que sim, e pergunta para Márcio se ele pode passar o número do
telefone para ela. Ele responde que sim, em LIBRAS.

MÁRCIO
A Clara tem em casa um telefone que transforma o que você diz em texto. Ela pediu
para te dar o número, daí, vocês podem conversar!
146

A mãe de Clara se aproxima dos três e chama, em LIBRAS, Clara para ir embora.

MÃE
Tchau, Márcio! Até a aula que vem.

Clara dá um abraço de despedida em Olívia. A mãe observa e dá um suspiro de impaciência.


Clara dá um beijo em Márcio e diz tchau em LIBRAS. Elas se afastam.
OLÍVIA
Gostei muito dela, Márcio. Achei que a gente se deu bem, sabe. Gostei dela. (pausa)
Mesmo.

Márcio ri com uma sutil ironia.

3. INT. DIA. QUARTO DE OLÍVIA.


Olívia está ensaiando violino. Toca uma melodia suave. Ela pára e olha para o telefone, na
mesinha ao lado. Solta o violino em cima da cama. Pega o fone do gancho. Sente as teclas do
aparelho. Pára. Volta com o fone para o gancho. Balança a cabeça negativamente. Passa as
mãos no próprio rosto e dá um leve sorriso de reprovação. Vira de costas para o telefone. Vol-
ta e tenta pegar o fone mais uma vez. Chega a mão perto, mas desiste. Vira e sai de perto.

4. INT. DIA. SALA DA CASA DE CLARA.


Clara está sentada ao lado do telefone, com um livro na mão. Ela eventualmente olha para o
aparelho ao lado do telefone, que indica chamada recebida. Não há indicação de chamadas.
Clara suspira profundamente e volta os olhos para o livro. Fica por alguns segundos e olha
novamente para o telefone.

5. INT. DIA. SALA DE GINÁSTICA.


Olívia está sentada, calçando seu tênis. Clara se aproxima dela e senta ao seu lado. Sorri ao
olhar para o rosto de Olívia, que percebe sua presença e pára com o tênis na mão. Clara olha
fixamente para os lábios de Olívia.

OLÍVIA
(sussurrando)
Queria que você me ouvisse pra dizer que pensei em você. Desde o dia que te conheci.
Queria saber te dizer. Queria ter te telefonado. Mas. Não, não tive coragem.

Clara parece entender o que Olívia diz e sorri, olhando para baixo. Olha em volta e percebe
que os alunos estão alheios às duas. Olívia calça o outro tênis. Clara pega sua mão e a puxa
para perto de seu peito. Clara coloca a mão de Olívia sobre seu coração e a segura com as
duas mãos, fazendo um carinho sutil. Olívia fecha os olhos sentindo o carinho de Clara. Clara
olha mais uma vez e se levanta. Pega a mão de Olívia e a coloca em seu ombro. Começa a
guiar Olívia para o jardim ao lado da sala de ginástica.

6. EXT. DIA. JARDIM DA SALA DE GINÁSTICA.


Clara pára onde ninguém mais pode ver as duas. Coloca-se de frente para Olívia e pega mais
uma vez em sua mão direita. A aproxima de seu rosto. Olívia desce os dedos suavemente pe-
los traços de Clara. Sente as sobrancelhas, os olhos, a curva do nariz e chega aos lábios. Olí-
via subitamente aproxima seu rosto do rosto de Clara. Pára por uns instantes, sentindo a respi-
ração de Clara, tentando achar sua boca. Os lábios se tocam, se reconhecendo. Olívia ouve um
147

barulho vindo da sala de ginástica. Pára de repente. Volta o corpo para trás. Clara estende a
mão até o coração de Olívia. Balança a cabeça negativamente. Puxa o corpo de Olívia para
mais perto. Abraça-lhe com paixão. Ficam abraçadas por alguns segundos, de olhos fechados.
Separam-se. Clara passa a mão no rosto de Olívia e sai. Olívia fica parada sorrindo.

7. INT. NOITE. CASA DE CLARA


Clara está sentada na mesa da sala e escreve algo. Sua mãe se aproxima e observa textos que
ensinam braile sobre a mesa. Ela pára ao lado da filha e toca seu ombro. Clara olha para ela.

MÃE
(em LIBRAS ao mesmo tempo)
Pra quê você tá querendo aprender isso?

Clara responde em LIBRAS “PORQUE EU QUERO, ORAS”. A mãe olha para a filha e puxa
uma cadeira. Senta-se perto dela. Clara desvia os olhos, fingindo que a mãe não está ali. A
mãe toca mais uma vez no ombro de Clara.

MÃE
(em LIBRAS ao mesmo tempo)
Como assim porque você quer? Que desaforo! Já sei! É aquela menina, né? A cega!!!

Clara se levanta, colocando a cadeira com raiva para mais perto da mesa. Olha para a mãe
com indignação.

MÃE
(em LIBRAS ao mesmo tempo)
Eu não acredito. A gente já conversou tanto sobre isso. Você não gosta de mulher!!
Entendeu?

Clara chega bem perto da mãe e diz em LIBRAS “E SE EU FOR LÉSBICA?”. A mãe se le-
vanta.

MÃE
(em LIBRAS ao mesmo tempo)
Se você for lésbica? O que você quer dizer com se você for lésbica? Qual o seu pro-
blema, Clara? Você não acha que já é difícil demais pra mim você ser... (pára de falar)

Clara, com calma e ironia, em LIBRAS, completa a frase da mãe. “EU SER SURDA?”.

MÃE
(em LIBRAS ao mesmo tempo)
Não, minha filha. Desculpe. Não.

Clara junta seu material da mesa e sai da sala. A mãe fica sentada, sem saber o que fazer.

8. EXT. DIA. PRAÇA DO BOM PASTOR.


Olívia está andando pela praça. Pára na barraquinha de flores. Sente a superfície das folhas,
cheira algumas rosas. Sente a textura da pétala. Sorri. Chama a vendedora e indica o buquê
que quer levar. A vendedora faz o arranjo e entrega para Olívia. Esta tira a carteira da bolsa e
conta as notas dobradas. Entrega para a vendedora duas notas de R$10,00. Agradece e se vira
148

a procura de um dos bancos. Ao longe, Clara observa Olívia comprar as flores. Ela se aproxi-
ma silenciosamente.

OLÍVIA
Não adianta chegar de mansinho. Eu sei que é você quem está aí.

Clara sorri. Olívia entrega-lhe o buquê. Elas se abraçam. Olívia fecha os olhos. Clara segura
sua mão, meio que escondido dos outros.

OLÍVIA
Fico imaginando qual a cor dos seus olhos. Qual o jeito do seu cabelo. Quais os tons
que gosta de usar. Eu sei que você não escuta o que estou falando. Mas eu sei que você
me sente. Eu sei. E você sabe o que eu sinto.

Clara tira um papel do bolso e entrega para Olívia. Ela abre e sente algo escrito em Braile.
Enquanto ela lê o que está escrito, seus olhos se enchem de lágrimas.

OLÍVIA
Sim. Eu quero. Quero ser sua namorada.

Elas se abraçam. As rosas nas mãos de Clara e a carta nas mãos de Olívia.

9. EXT. NOITE. QUINTAL DA CASA DE CLARA


Clara e Olívia estão sentadas no num banco, na beira da piscina. Clara está sentada por trás de
Olívia e a abraça. Na frente das duas há papéis, uma régua de braile e um furador. Olívia pega
o papel e lê com os dedos.

OLÍVIA
Então tem uma piscina aqui e um cachorro no fundo da casa. Deve ser bonito aqui.
(pega o furador e a régua e escreve em braile) Você gosta de nadar?

Olívia entrega o papel à Clara que lê com os olhos e com os dedos e balança a cabeça negati-
vamente. Escreve algo.

OLÍVIA
Você não sabe nadar? Nossa. Eu vivo batendo nas beiradas. (ri) Até que tá aprendendo
rápido o braile! Hei, lê isso aqui.

Olívia pega o material na frente dela e escreve em braile algo como “QUER DORMIR CO-
MIGO HOJE?”. E entrega para Clara. Ela tenta ler e vai rindo enquanto descobre o que está
escrito. Pega um lápis e escreve embaixo para não esquecer: “QUER DORMIR COMIGO
HOJE”. Depois, pega o furador e escreve na frente, em braile: “SIM. ONDE?”. E entrega o
papel para Olívia.

OLÍVIA
Faz pergunta difícil não.
149

Olívia se vira e dá um beijo no rosto de Clara. Ela não percebe que a mãe de Clara acabou de
chegar em casa e observa as duas na piscina. A mãe larga a bolsa e a sacola que traz nas
mãos.

MÃE
(gritando)
Clara!! Clara! Solta essa menina!
Olívia escuta e se assusta. Levanta e deixa cair os papéis e o furador. Clara não entende o que
acontece. Vira pra trás e vê sua mãe andando em direção às duas. Pede para a mãe parar com
as mãos. A mãe se aproxima das duas mas não pára e empurra a filha para o lado. Dirige-se à
Olívia.

MÃE
Hei, mocinha! Quem você pensa que é! Você está na minha casa e me desrespeita as-
sim! Sai daqui!

OLÍVIA
Me desculpe. Não foi minha intenção!!

MÃE
Eu vou entrar e fingir que nada aconteceu. Você vai embora agora. Entendeu?

A mãe vira às costas e entra na casa. Clara se aproxima de Olívia e a abraça, tentando impedir
que vá embora. Olívia segura as mãos de Clara com nervoso e a afasta.

OLÍVIA
(nervosa)
Não. Eu vou embora. Não me segura, por favor!

Olívia solta as mãos de Clara e sai correndo, sem saber ao certo para onde ir. Clara tenta gritar
por ela, mas os sons são inaudíveis. Olívia corre na direção da piscina, desorientada. Não vê a
escada e tropeça. Bate a cabeça na borda e cai dentro da piscina. Clara se desespera e tenta
gritar pela mãe. Chega perto da piscina e tenta alcançar o corpo de Olívia que se afunda deva-
gar. Clara percebe que Olívia está inconsciente. Grita em silêncio mais uma vez. Olha para os
lados, tenta enxergar ajuda. Toma coragem, se levanta e se joga na água, tentando nadar como
pode. Clara alcança Olívia e a puxa, mas quase se afoga. Recupera-se como pode e chega na
beirada da piscina. A mãe de Clara chega na janela e vê a filha salvando Olívia. Enquanto
isso, Clara segura a cabeça de Olívia e tenta acordá-la. Ela começa a recobrar a consciência e
vê Clara na sua frente. Clara a beija e enxuga seu rosto. A mãe chega na piscina e estende a
mão para ajudar Olívia. Clara conduz a mão de Olívia até a mão de sua mãe. Ela ajuda Olívia
a subir na escada. Clara a segue e a abraça. A mãe observa a felicidade da filha. Passa a mão
pelos cabelos e cruza os braços.

MÃE
Fazer o quê, né? (se abaixa perto das meninas) Eu amo você, minha filha, do jeito que
você é. Se é o que você quer... (sorri)

Clara não ouve a mãe mas entende o que ela fala. Segura sua mão. Olívia tosse um pouco.
150

MÃE
(carinhosa)
Olívia, você está bem, menina?

OLÍVIA
Sim, senhora. Eu tropecei. Desculpe.

MÃE
Não precisa se desculpar. Mas, você gosta mesmo de Clara, menina?

OLÍVIA
Eu amo sua filha. Amo de verdade.

Clara observa a conversa das duas. Sua mãe se vira e diz em LIBRAS para Clara “ELA
GOSTA DE VOCÊ” e sorri. Clara abraça a mãe. Elas se separam e a mãe se levanta para bus-
car uma toalha. Clara fica ao lado de Olívia, no chão da piscina, sentindo os cabelos da namo-
rada com carinho. Beija sua testa e coloca sua cabeça próxima ao coração. Olívia fecha os
olhos e sorri.

5.1.4. Confiança

Em “Confiança”, Anita, 84 anos é escritora e tem como grande paixão sua mulher

Sofia. Além dos livros, passa seu tempo produzindo móbiles de cristais com animais em

origami, que distribui pela casa e dá para as amigas. Nasceu em plena “Semana da Arte

Moderna” do Brasil e seu nome é uma homenagem à pintora brasileira Anita Malfatti. Seus

pais eram artistas e ativistas do Modernismo e fizeram questão dos estudos da filha. Ela

formou-se em filosofia em Paris. Voltou ao Brasil em 1948, quando terminou seus estudos.

Publicou diversos romances no Brasil e escreve até os dias de hoje. Apesar de viajar muito

por todo o país, escolheu Juiz de Fora para morar desde seu retorno ao Brasil. Anita se

apaixonou por Sofia assim que a conheceu. Mas fez a côrte por muito tempo antes de se

declarar. Ia até a floricultura de Sofia e levava livros, presentes e bombons para ela. Saíram

algumas vezes para conversar, se encotraram muitas vezes para tomar um café, e o namoro

por olhares durou meses. Quando Anita tomou coragem para revelar seu amor, Sofia já estava

completamente apaixonada e não resistiu por um segundo em aceitar o romance.


151

Sofia tem 79 anos e uma origem humilde. Os pais vieram do campo e sempre

trabalharam em fazendas com criação de gados e plantas. Quando se mudaram para Juiz de

Fora, Sofia já sabia que seguiria os passos da família. O pai montou uma floricultura, que

Sofia fez questão de manter. Sofia continua criando plantas exóticas em casa. É apaixonada

por suculentas e tem a criação mais elogiada da cidade.

Foi conquistada por Anita aos poucos. Abriu seu coração para essa nova

experiência e se apaixonou completamente, passando logo após a dividir sua casa com ela.

Casadas desde 1955, aprenderam muito juntas. Sofia fez somente o primário, mas Anita

ensinou a ela tudo o que sabia sobre arte, cultura, letras e filosofia.

Em “Apoio”, Anita e Sofia são duas senhoras que se amam há 51 anos.

Apaixonaram-se e construíram juntas toda uma vida. Sempre conviveram na sociedade de

Juiz de Fora com muita discrição. Apesar de Anita se tornado uma escritora famosa e, com

isso, ter enfrentado preconceitos por sua orientação sexual. No entanto, nem Anita, nem Sofia

faziam questão de abrir ou de esconder seu relacionamento. Eram mulheres muito ativas e

felizes, casadas em amor. Atualmente, Anita está terminando um livro que tem como tema o

sopro da vida. Numa noite, Anita sofre um ataque de coração. Ao acordar, Sofia percebe que

a amada está morta.

Mesmo com dor e a tristeza, Sofia prepara tudo para que a companheira possa

descansar em paz. Enfrenta até mesmo o preconceito das agências funerárias ao querer

comprar um lote duplo no cemitério, para serem enterradas lado a lado. Para ajudar nos

preparativos, Rafaela, a sobrinha preferida de Anita vai passar uns dias com Sofia. Ela sempre

amou as duas com muito respeito e carinho.

Numa noite, antes de se deitar, Sofia lê o livro inacabado de Anita. Lembrando-se

da história sobre a qual haviam conversado tantas vezes, Sofia senta-se à maquina de escrever

e termina com suas próprias palavras a obra de Anita.


152

No dia do funeral, Sofia recebe os cumprimentos ao lado do caixão de Anita,

sempre pensando no momento em que poderá ficar a sós com ela. Quando isso finalmente

acontece, Sofia entrega-lhe o livro e declara seu amor eterno, desejando que em breve se

reencontrem. Sofia senta-se ao lado do corpo de Anita, segura-lhe as mãos e parte para

encontrá-la em outra vida. Seu desejo é cumprido. Anita e Sofia continuam unidas, para todo

o sempre.

5.1.4.1. Roteiro “Confiança”

1. EXT. DIA. QUINTAL DA CASA.


Na viga de madeira da varanda, um móbile, de origamis e cristais, balança suavemente. Um
disco de vinil antigo toca na vitrola. Sofia remexe na terra de um vaso. Ao lado, há uma muda
de suculenta sobre uma bandeja de isopor. Anita está deitada numa espreguiçadeira, ao fundo.
Ela lê um livro, ri sozinha. Sofia escuta o riso e se vira para olhar Anita. Sorri com carinho,
enquanto passa a mão na testa enxugando o suor. Um risco marrom de terra marca a testa.
Anita percebe o risco e se levanta. Caminha lentamente até Sofia. Pega um lenço em cima da
mesa e delicadamente limpa a testa de Sofia. Sofia beija as mãos de Anita, pegando de volta o
pano. Sorri. Anita balança a cabeça, achando graça.

1. INT. DIA. COZINHA DA CASA.


Anita pega a água fervente na leiteira e entorna sobre um filtro com pó de café. A fumaça do
café toma conta do ambiente. Sofia se aproxima ao lado de Anita com duas xícaras vazias.
Espera pelo café. Anita faz sinal de “calma” com as mãos. Sofia espera encostada na pia, o-
lhando para Anita.

2. INT. NOITE (FIM DE TARDE). SALA DA CASA.


Anita digita vagarosamente na máquina de escrever antiga. Pára e observa a folha escrita até o
meio que está na máquina. Na mesma mesa, uma pilha de folhas, algumas xícaras vazias, fo-
lhas dobradas e, vários origamis pequenos jogados. Atrás de Anita, uma grande estante, com
livros assinados com seu nome: ANITA DE OLIVEIRA. Na mesma sala, ao lado da estante,
Sofia está fazendo pontos de tricô. Uma música clássica envolve o ambiente, onde vários mó-
biles de origamis estão pendurados no teto. Anita pára por alguns segundos, sentindo dores no
braço esquerdo. Respira fundo e volta a escrever.

3. INT. NOITE. QUARTO DA CASA.


Sofia está sentada na penteadeira. Tira aos poucos as presilhas que seguram seu coque, se
olhando no espelho. Coloca uma por uma as presilhas dentro de uma caixinha de música so-
bre a penteadeira. Anita chega por trás de Sofia. Coloca carinhosamente as mãos sobre seus
ombros. Pega a escova que está sobre a penteadeira. Começa a mexer nos cabelos de Sofia,
procura por outras presilhas. Solta o coque de Sofia, que fecha os olhos sentindo o carinho.
Anita escova lentamente os cabelos de Sofia.
153

4. INT. NOITE (MAIS TARDE). QUARTO DA CASA – CAMA DO CASAL.


Sofia está deitada lendo uma revista de plantas à meia luz. Na mesinha de cabeceira, fotos em
preto e branco das duas mais jovens. Anita senta-se na beira da cama e ora por alguns segun-
dos. Sofia olha para Anita e sorri. Anita se deita ao lado de Sofia, que solta a revista, vira-se
para ela e a abraça por trás. Dá-lhe um beijo no rosto.

ANITA
Boa noite, meu amor.

SOFIA
Durma bem, minha amada.

5. INT. DIA. QUARTO DO CASAL.


A luz entra suave pela janela. Anita ainda está deitada. Sofia entra no quarto vagarosamente.
Vai até a janela.

SOFIA
Amada, está na hora. O café já está pronto.

Senta-se ao lado de Anita.

SOFIA
Anita? Vamos, querida!

Sofia passa sua mão sobre as cobertas, mexendo em Anita. Ela não reage. Sofia insiste. Anita
continua sem reagir, os olhos fechados. Sofia coloca a mão sobre o rosto de Anita. Pára de
repente. Afasta-se devagar. Pára e se levanta. Olha para Anita, balançando a cabeça, sem a-
creditar. Ela se afasta ainda mais, chegando à janela. Sofia chora.

6. INT. DIA. ESCRITÓRIO DA CASA FUNERÁRIA.


O agente funerário está sentado na mesa, em meio a catálogos de caixões e coroas. Sofia está
sentada à sua frente, olhando fixamente para as fotos dos catálogos. O agente parece procurar
algo. Sofia respira profundamente.

AGENTE
Bom, senhora Sofia. Esta é a melhor opção para a sua amiga. (vira o catálogo para So-
fia) Um caixão belíssimo. O preço é um pouco alto, mas te asseguro que compensa.

Sofia continua com os olhos fixos no catálogo. O silêncio se estabelece por alguns segundos.

AGENTE
Se a senhora quiser, tenho outras opções mais em conta.

SOFIA
Eu quero saber sobre o cemitério. (para si mesma) Não entendo porque nunca nos pre-
ocupamos com isso. (ri sem graça) Era de nosso desejo sermos enterradas juntas.

AGENTE
Ah...Desculpe. Não está disponível nesse caso.
154

Sofia se aproxima mais do agente, a mesa e os catálogos entre eles.

SOFIA.
Eu que peço desculpas, mas que caso?

AGENTE
Cova dupla somente para casais. Sinto muito.

Sofia ajeita os óculos com paciência. Respira fundo mais uma vez.

SOFIA
Meu rapaz, seja ao menos sensível. É o mínimo que sua profissão lhe pede. Não preci-
so ser mais clara! Preciso?

Sofia olha no fundo dos olhos do agente. Ele desvia os olhos, procura em documentos, coça a
cabeça e sorri sem graça.

AGENTE
Será arranjado, senhora Sofia. Não se preocupe, por favor.

O agente volta para os papéis e Sofia retira os óculos, coçando os olhos com impaciência.

7. EXT. NOITE. JARDIM DA CASA.


A noite está clara. Sofia está sentada na espreguiçadeira onde Anita sentava-se sempre. Ob-
serva ao lado o livro que ela estava lendo. Pega o livro e abre na pagina marcada. Leva o livro
ao coração. O vento forte faz barulho no móbile. Um dos origamis do móbile se desprende e
cai no chão. Sofia se levanta, pega o origami do chão e o coloca entre as páginas do livro.

8. INT. DIA. SALA DA CASA.


Toca a campainha. Sofia se apressa para atender. Abre a porta e vê uma garota jovem bonita
parada, com malas na mão. Rafaela, a garota, entra e abraça Sofia. Rafaela deixa as malas no
chão. Sofia fecha a porta e indica o sofá, convidando-a para sentar. Elas se sentam.

RAFAELA
Eu vim assim que soube, Sofia. O que aconteceu com minha tia?

SOFIA
Os médicos não me explicaram direito. Disseram que foi um ataque do coração. Mas
eu não entendo. Ela estava bem na noite anterior, sabe? Ela estava bem.

RAFAELA
Eu sinto muito, sinto mesmo. Eu nem sei direito o que dizer. Ou o que eu posso fazer.

SOFIA
..(se levanta)
Rafaela, sua tia te amava muito. Você sabe disso, né?
155

Vai até o aparador e pega uma foto de Anita com Rafaela criança. Admira a foto. Vira-se e
entrega a foto para Rafaela.

RAFAELA
Sim, eu sei. Ela adorava brincar comigo. Leu milhares de livros pra mim.

SOFIA
..(senta-se no sofá)
Que bom que você pôde vir. Eu fico muito, muito feliz.

Rafaela segura as mãos de Sofia.

RAFAELA
Sofia, nunca se esqueça que você é minha tia também. Eu quero ajudar, no que for.
Vou ficar aqui até tudo se resolver, tá?

SOFIA
Oh! Minha filha... Obrigada! Eu tô tão cansada.

Sofia olha para a máquina de escrever em cima da mesa. Sorri. Levanta-se e vai até a máqui-
na. Retira o papel da máquina.

RAFAELA
Esse era o livro que ela estava escrevendo?

SOFIA
Sim, uma história linda como sempre. Ela me contou tudo o que ela queria escrever.
Passamos dias conversando sobre o assunto. Era sobre o sopro de vida. Aquele que
surge quando uma criança nasce. Ou que nos assusta quando a gente se apaixona. E
quando a gente se arrisca! Ou quando escapamos da morte.

Sofia não se contém em lágrimas. Rafaela se aproxima e lhe abraça.

9. INT. NOITE. CORREDOR DA CASA – SALA DA CASA.


Sofia sai do quarto e fecha a porta. Está vestindo uma camisola, preparada para dormir. Com
um copo vazio na mão, se dirige à cozinha. Na parede do corredor, várias fotos de Anita e
Sofia. Fotos delicadas das duas juntas, a maioria em preto e branco, sempre muito bonitas.
Sofia passa pelas fotos de cabeça baixa, não querendo olhar. Ao chegar na sala, pára olhando
para a mesa da máquina de escrever. Aproxima-se. Pega o papel escrito até a metade que está
sobre a mesa. Puxa a cadeira e senta-se. Observa a pilha de folhas ao lado da máquina. Come-
ça a lê-las, uma a uma. Primeiro devagar, depois mais rápido. Pega a folha escrita pela metade
e recoloca na máquina. Começa a escrever na máquina. Suspira fundo, escreve a página toda.
Troca a página por uma em branco e continua a escrever. A noite cai enquanto Sofia termina
o livro de Anita.

10. INT. DIA. CASA FUNERÁRIA.


A sala está repleta de cadeiras vazias. Ao fundo, uma grande coroa de flores ao lado de um
caixão de madeira reluzente. O agente funerário distribui santinhos pelas cadeiras. Rafaela
ajeita as flores, olha para o caixão. Suspira fundo, olhos fixos na janelinha da tampa. Sofia
chega e pára na porta, um maço de folhas na mão esquerda, um arranjo de flores na outra.
156

Sente-se tonta e segura na cadeira. O agente funerário vai ajudá-la. Juntos, caminham por en-
tre as cadeiras até uma poltrona, ao lado do caixão. Rafaela agradece ao agente funerário e
auxilia Sofia a se sentar. Sofia coloca o maço de folhas no colo e sobre ele, as flores. Algumas
pessoas chegam, passam pelo caixão, cumprimentam Sofia e Rafaela e se vão. Sofia não tira
os olhos do caixão de Anita. O salão fica vazio novamente. Rafaela acompanha duas senhoras
até a porta. O agente funerário cochicha algo com Sofia, que diz que sim com a cabeça. O
agente abre delicadamente a tampa superior do caixão e se retira. Anita está muito bonita,
quase um sorriso nos lábios. Sofia se levanta e puxa com dificuldades a cadeira em que estava
para mais perto do caixão. Ela coloca as flores sobre o corpo de Anita. Senta-se com os papéis
em suas mãos. Sofia olha para o rosto de Anita. Ajeita o cabelo que cai na testa da mulher.
Faz um carinho nas mãos de Anita. Segura suas mãos por alguns instantes

SOFIA
Anita, você me ensinou a amar. A amar a nossa vida, amar as palavras. A amar ainda
mais minhas plantinhas! Amar tudo o que passamos, tudo. Todos os momentos, ruins,
bons, nossos. Você me ensinou que o amor é esse móbile que fazemos de pedras, pa-
péis, linhas. Sempre diferente, a cada dia inigualável. Ai, Anita. Você foi o único e
verdadeiro amor de toda a minha alma. (pára e olha para o maço de papéis) Eu não sei
se era bem isso que você queria, mas é a sua história. A nossa história. Obrigada por
sempre ser você mesma, Anita, minha amada. (coloca os papéis ao lado das flores)
Espero te reencontrar logo, meu amor.

Sofia senta-se ao lado do corpo, a mão direita ainda unida às de Anita. Olha por alguns instan-
tes para o rosto de Anita. Beija a ponta dos dedos da mão esquerda e delicadamente toca nos
lábios de Anita. Sofia recosta seu rosto em seu braço direito. Adormece. Rafaela volta ao sa-
lão e vê Sofia. Aproxima-se e a chama. Tenta uma vez, Sofia não responde. Tenta outra vez, e
ainda nada. Na terceira tentativa, o braço direito de Sofia pende ao lado de seu corpo. Rafaela
se afasta ao perceber a morte de Sofia.

5.1.5. Perdão

As protagonistas de “Perdão” são uma cantora e uma fotógrafa.

Maria Luisa Cordeiro é essa cantora de 28 anos, com uma carreira sólida e público

fiel. Mulher envolvente, voz sensual, feminilidade mesclada com masculinidade. Faz sucesso

principalmente entre jovens, com repertório pop-rock. Além de dar voz a canções de outros

compositores, tem suas próprias músicas e conquista a cada dia novos fãs. Adora MPB, blues,

soul, rock antigo, jazz. Seu estilo é uma mistura gostosa desses ritmos com um toque eletrôni-

co. Começou a cantar nos barzinhos de Juiz de Fora e já tem três discos gravados. É uma mu-

lher talentosa em todos os sentidos, principalmente na administração da própria carreira. Sabe


157

muito bem onde pisar e o que fazer pra conseguir o que quer. Mas, por outro lado, é um pouco

inconseqüente no amor. Já fez muitas loucuras e não se arrepende delas. Vive, há cinco anos,

com a fotógrafa Renata, com que tem um relacionamento estável mas desgastado. Somente

com essa mulher conseguiu sossegar um pouco, depois de trocar infinitas vezes de namorada.

Ela não se considera bissexual, mas teve alguns breves encontros sexuais com homens.

Como marca registrada, as mãos fortes, os dedos alongados, anéis expressivos e

uma pulseira de couro que sempre a acompanha. Presente da mãe, amuleto de sorte. No palco,

é uma mulher sensual e forte. Sexy, na medida certa, seduz sua platéia como ninguém. Ela

sabe que precisa amadurecer um pouco pra valorizar o amor que sente por Renata. Nunca

pensou em ter filhos.

Renata tem 32 anos, é jornalista e repórter fotográfica. Trabalha num jornal de Ju-

iz de Fora e faz trabalhos free-lance para agências de notícias do mundo todo. Seu trabalho é

admirado como um dos mais realistas e sensíveis do país. É uma mulher sensata, calma e com

forte personalidade. Difícil tirá-la do sério, e uma das coisas contra a qual tem lutado é o ciú-

me que sente de Malu. Conheceu a cantora num de seus shows, quando foi contratada para

fotografá-la para uma revista. Apaixonaram-se rápido, e um ano depois foram morar juntas.

Mas Renata já passou por momentos de traição com Malu. Somente ela para saber o quanto

perdoou e o quanto ainda ama a mulher. Ela é o braço forte, a estabilidade de Malu, e tem

opiniões bem colocadas e decididas. Ponderada, demora a tomar decisões. Mas quando as

toma, sabe que é pra valer. Como quando assumiu sua homossexualidade, para os pais e para

os irmãos. Foi repreendida, expulsa de casa. Mas, como ela já conhecia a família, só contou

quando tinha estabilidade financeira e um apartamento montado. Então, enfrentou bem a si-

tuação e hoje em dia tem um convívio tranqüilo com a mãe e com os irmãos.

Renata sabe que seu relacionamento não está indo bem. Há tempos não se sente

valorizada por Malu e sente falta da namorada. Já passou por cima de muita coisa pra ficar
158

com ela. Só que agora a paciência está se esgotando, o limite está chegando e Renata sente

que precisa tomar uma atitude. Mesmo porque pensa em, algum dia, ter filhos com Malu e

com a estabilidade atual, não é possível. Mais racional do que emotiva, Renata sabe que pre-

cisa ouvir mais seu coração.

A história de “Perdão” começa na última apresentação da temporada 2006 de

shows de Malu Cordeiro, que está com platéia lotada. Ela entra no palco da casa de shows

mais famosa de Juiz de Fora e todos vão à loucura. O solo do guitarrista introduz os primeiros

acordes da canção. No palco, entre caixas de som e os outros integrantes da banda, Malu en-

canta e empolga seu público. Com 28 anos, já é uma cantora de muito sucesso e sua voz grave

e forte agita todos na casa de shows. Iluminação marcante, a música toma conta de tudo. No

fundo da coxia, Renata, namorada de Malu, acompanha o show com sua câmera fotográfica.

O baixista da banda, sempre teve uma quedinha pela cantora, mas ela está com Renata há

mais de cinco anos.

Pode-se dizer que têm um relacionamento estável, mas enfrentam as dificuldades

da rotina e do trabalho estressante. Renata é repórter fotográfica do jornal local e recebeu,

recentemente, uma proposta irrecusável de emprego em outra cidade. Malu, sem saber de

nada ainda, continua seus shows, onde faz questão de ser agradável até demais com as fãs. O

ciúme já causou muitas discussões, mas atualmente, elas passam pela fase da indiferença,

uma das piores de um relacionamento.

O solo da bateria encerra o show. Malu é ovacionada por sua platéia, composta na

maioria por jovens garotas. Renata aplaude com carinho, mas não deixa de sentir a costumeira

pontada ao ver o assédio das meninas. Após o show, a conversa mais séria sobre o futuro.

Uma conversa que acaba em discussão, em descontrole, em lágrimas. Malu, como sempre,

ameaça ir embora e sai de casa. Mas, dessa vez, quem realmente vai é Renata. Ela junta suas

coisas e deixa um bilhete. Enquanto isso, Malu sai pelos bares da cidade e acaba encontrando
159

o baixista de sua banda. Para se vingar de Renata, Malu vai para a cama com Giovane. Quan-

do volta pra casa, vê que Renata pegou suas coisas e saiu de casa. Elas se separam, Renata

aceita o novo trabalho e vai morar no Canadá

Após algumas semanas, Malu começa a passar mal. Sem acreditar muito na pos-

sibilidade, descobre que está grávida. Grávida de seu baixista, que, nessa altura do campeona-

to, voltou a ser apenas seu baixista. Renata continua fora do país e elas pouco se falam. Malu

não consegue parar de pensar no quanto queria sua namorada por perto, em como errou e no

que poderia fazer pra que Renata a perdoasse. E, aos poucos começa a se apaixonar pela idéia

de criar uma filha com ela. Mas ainda não tem coragem de contar da gravidez.

Um dia, andando pela rua, elas se encontram. Renata, mais abatida, com malas,

acaba de voltar para a cidade. Malu, já com oito meses, denuncia a gravidez em uma linda

barriga. Renata não consegue acreditar no que vê. Malu diz que é uma menina e pede à Rena-

ta que escolha um nome para sua filha. Mas ela fica sem reação e foge, sem entender o que

aconteceu. Malu tenta, porém não consegue segurar a namorada.

O resto da gravidez ocorre sem problemas, mas Renata ainda não sabe se volta ou

não para Malu. No dia em que a menina nasce ela aparece no hospital. Renata leva um móbile

de presente para a filha. E diz que gostaria que a menina se chamasse Myriam. Ao se reen-

contrarem, decidem esquecer todo o passado. Tudo o que Renata quer é sua família de volta,

seu amor e agora, sua filha.

5.1.5.1. Roteiro “Perdão”

1. INT. NOITE. CASA DE SHOWS.


Luzes diversas desenham um móbile de cores por entre a nuvem de fumaça. A platéia lotada
aplaude animadamente. A bateria começa um solo, e logo em seguida é acompanhada por
acordes do guitarrista. O baixista começa a marcar o compasso. Na coxia, Malu Cordeiro en-
xuga o suor do rosto enquanto bebe uma garrafa de água com gás. Renata está do outro lado
do palco, dentro da coxia, com a câmera fotográfica profissional na mão. Ela focaliza o rosto
de Malu quando ela bebe a água e bate uma foto. Malu se prepara para entrar, vê Renata e
160

pisca o olho para ela. Renata gesticula com os lábios “EU TE AMO” de dentro da coxia. Malu
sorri e pega o microfone da mão do assistente de palco. Ela entra animada no palco. Os aplau-
sos e gritos tomam conta da casa de shows. O outro assistente de palco lhe entrega o violão
folk e ela rapidamente passa a correia pelas costas. A música alucina o público, mulheres gri-
tam por todos os lados pedidos de casamento e elogios mais ardorosos. Renata fotografa a
platéia de dentro da coxia e passa as mãos no cabelo. Balança a cabeça com reprovação. Ma-
lu, empolgada, se aproxima do baixista e finge uma cena de sedução com ele. Com os instru-
mentos frente a frente, chega o rosto bem perto do dele e canta bem perto de seu ouvido. Gio-
vane, o baixista, aproveita o momento e aproxima mais seu corpo do dela. Ela pára de tocar e
dá um estalinho nos lábios do baixista. Renata fotografa a cena, abaixa a câmera e visualiza a
foto no visor LCD. Pensa por alguns instantes e apaga a foto. A música acaba no palco. Malu
levanta os braços e a platéia aplaude de pé.

MALU
Valeu! Obrigada!! É sempre uma delícia tocar pra vocês!! Boa noite!!!

Os outros músicos se aproximam de Malu e a abraçam. Giovane faz questão de ficar ao lado
dela. Eles agradecem juntos e saem do palco. Antes de entrar na coxia, Malu sente um puxão
no braço. Olha e vê uma menina com seus 18 anos, bonita, de boné, e sorri. Vai para a ponta
do palco, tentando se esconder de Renata, que a espera na coxia. Enquanto isso, Renata con-
versa com a empresária de Malu, que, empolgada, fala sem parar. Ela percebe que Malu sai
com a menina e tenta se desviar da empresária, mas ela não a deixa sair. Malu, na beirada do
palco, conversa intimamente com a menina, que ri e vira o rosto. Malu passa as mãos pela
costa da menina e sobe até sua nuca. Renata, ao longe, vê a cena, ainda tentado sair da con-
versa da empresária. Malu chega mais perto da menina, e dá um estalinho no canto de sua
boca, enquanto pega o papel e caneta das mãos dela e escreve, além do autógrafo, um número
de telefone celular. Ela fala algo no ouvido de Malu, que se afasta sorrindo e entra na coxia.
Malu se aproxima e dá um beijo carinhoso em Renata, que parece meio relutante, mas finge
que está tudo bem. No fundo, está magoada com a atitude da namorada. Giovane, de dentro
da coxia, observa com malícia, enquanto abre uma garrafa de cerveja. Ele vira a garrafa sem
tirar os olhos das duas. Elas param de se beijar. Renata olha por trás dos ombros a menina que
estava antes perto de Malu correr para as amigas com o papel na mão. Ela volta para a frente,
sorri amarelo e sai abraçada com Malu para o camarim.

2. INT. NOITE. APARTAMENTO MALU E RENATA.


Uma música suave acalma o ambiente. Renata coloca duas pedras de gelo num copo. Depois,
mais três em outro. Pega a garrafa de whisky e enche os copos. Mexe com os dedos as pedras
e pega os copos. Malu, que acabou de sair do banho, chega por trás, beija a nuca de Renata e
rouba um dos copos de sua mão. Renata sorri. Malu se deita no grande sofá. Renata bebe seu
whisky, com olhar distante.

MALU
Ai... Eu não agüento mais isso. Ainda bem que esse foi o último show.

RENATA
Por enquanto, né, amor. Daqui a pouco começa tudo de novo. (ela senta no braço do
sofá) E, vem cá, você gosta. Vai, confessa!

Malu senta e se aproxima de Renata. Passa a mão em sua coxa.


161

MALU
É... Eu gosto... Sinto-me, sei lá, viva.

RENATA
É, eu sei. Pena que eu não consiga fazer isso com você.

MALU
Hei, o quê é isso? De onde você tirou essa idéia infeliz?

Renata se levanta, bebe mais um gole do whisky e chega perto da janela. Observa a vista, com
pensamento longe.

RENATA
Você sabe que a gente não tá bem, Malu. Há quanto tempo a gente... (hesita) não tran-
sa?

MALU
Ai, não. (ela se levanta) Rê, a gente tá junta há cinco anos, cara. É difícil mesmo. Sei
lá, rotina, trabalho, estresse. Isso tudo atrapalha. Você mesma não tá afim!

RENATA
Meu anjo, não fala isso. Você sabe o quanto eu quero você, sempre. (se aproxima de
Malu) E você sempre me escapa. Arranja uma desculpa. Por quê? (falando mais baixo,
quase sussurrando) Aliás, eu sei o porquê. Porque você fica com essas menininhas por
aí... (pausa) E, sinceramente, (aumenta bem a voz) eu não agüento mais.

Malu vira às costas e pega o maço de cigarros em cima da mesa. Acende um. Malu olha pra
ela, como se não soubesse de nada. Renata olha para ela por uns instantes, depois volta a olhar
pela janela.

RENATA
O problema é que eu amo você mais do que eu me amo, né? Você vive jogando isso na
minha cara.

Malu continua quieta, parada, atônita, sem acreditar que a namorada sabe de suas traições.
Vira de costas.

RENATA
Mas sabe, Malu. Sério. Eu cansei. Eu vou mudar. (pausa longa) Hoje eu... (hesita) hoje
eu recebi uma proposta de emprego no Canadá.

MALU
(se vira rápido)
Como é que é?

RENATA
Uma revista de exploração científica. Quer minhas fotos. Lembra? Eu já mandei al-
gumas pra lá. Agora eles querem me contratar.
162

Malu apaga o cigarro no cinzeiro com raiva e se aproxima de Renata.

MALU
E você só me diz isso hoje? Como assim? É lógico que você disse não, né?

RENATA
Eu ainda não respondi. Mas eu tô pensando. Eu sempre quis trabalhar com isso. (pau-
sa) E, na boa, será que vale a pena eu desistir? Pela gente? Pela família que eu sempre
quis ter e você não?

Malu fica exaltada. Pega o maço de cigarros e acende mais um. Vai até o bar e completa seu
copo com mais whisky. Vira num gole só. Renata observa, silenciosa. Malu vai ao som e co-
loca um CD de rock. Aumenta o volume quase no máximo e começa a gritar a música. Renata
fecha os olhos, com impaciência.

RENATA
Pára com isso, Maria Luiza. Toda vez é a mesma coisa.

Malu continua a gritar, indiferente. Renata acaba de tomar seu whisky e continua na janela.
Malu vai para o quarto, cantando alto a música. Renata enche mais uma vez, calmamente, seu
copo. Ela vai atrás de Malu.

3. INT. NOITE. QUARTO DE MALU E RENATA.


Renata pára na porta do quarto, bebe mais um gole. Malu pega roupas dentro do armário e
coloca numa bolsa de viagem. Renata respira fundo, parada na porta. Malu continua a pegar
roupas no armário. Ela fecha a mala e olha para Renata.

RENATA
(calma)
Onde você vai?

MALU
Eu vou embora. Quer saber? (grita) Eu vou embora!

Malu pega a bolsa e se dirige para a porta do quarto. Renata tenta impedi-la, mas Malu a afas-
ta.

RENATA
(com calma e ironia)
Você sempre vai embora assim. Faz as mesmas gracinhas e depois volta, como se nada
tivesse acontecido. Me pede desculpas e, como eu te amo, eu sempre digo que sim.

Malu olha bem fundo nos olhos de Renata.

MALU
Não se preocupa! Dessa vez é pra valer.

Malu sai do quarto. Renata continua bebendo seu whisky. A porta do apartamento bate com
força na sala. Renata atira o copo na parede, quebrando-o com raiva.
163

4. EXT. NOITE. PORTA DO BAR.


Malu para o carro na porta do bar. Sai de óculos escuros do carro. Olha para os lados e entra
apressada no bar.

5. INT. NOITE. BAR.


Malu pára no balcão e pede uma dose de whisky. Uma fã chega perto dela e começa a puxar
papo. Ela tenta ser simpática, mas demonstra impaciência olhando para os lados. Giovane está
parado do outro lado e vê Malu no balcão. Ele se aproxima.

GIOVANE
Oi, linda!

MALU
Gio!! Meu gato!! (sussurrando) Me tira daqui.
Giovane puxa Malu pela mão até a parte de cima do bar, onde o DJ anima a pista. Começa a
dançar com ela. Insinuante, Giovane passa a mão pelo corpo de Malu. Ela está meio bêbada e
não liga. Também se insinua para ele. Um casal de lésbicas atrás faz comentários estranhando
os dois juntos. Giovane se aproveita da bebedeira de Malu e a beija. Malu recobra a consciên-
cia e dá um tapa no rosto de Giovane. Ele ri, sem entender. Malu vai para um canto, cambale-
ando. Giovane vai atrás. Ela o abraça, pedindo desculpas. E beija-o.

6. INT. DIA. QUARTO DE GIOVANE.


Malu fuma um cigarro na janela, somente com uma camiseta. Olha para trás. Giovane está
deitado na cama, dormindo, coberto somente pelo lençol. Malu pega suas roupas no chão e sai
do quarto, sem acordar o baixista.

7. INT. DIA. CASA DE MALU E RENATA.


Malu chega em seu apartamento com a mala na mão e procura por Renata. Olha na sala, na
cozinha e no quarto, mas ela não está. Pára em frente da cama e percebe a porta do armário de
Renata entreaberto. Abre a porta e vê o armário vazio. Um bilhete está pregado no espelho.
Malu lê o bilhete: “EU SABIA QUE VOCÊ IA VOLTAR. MAS DESSA VEZ É DIFEREN-
TE. PENSE MAIS EM QUEM VOCÊ AMA ANTES DE FAZER SUAS BESTEIRAS. EU
PENSEI. PENSEI EM MIM MESMA E VOU CUIDAR DA MINHA VIDA. CHEGA DE
FINGIR QUE ESTÁ TUDO BEM. AMO VOCÊ.”. Malu têm as mãos trêmulas. Ela amassa o
papel após ler o recado e se abaixa encostada no armário. Entre as mãos, as lágrimas caem do
rosto de Malu.

8. INT. DIA. ESTÚDIO DE GRAVAÇÃO.


A banda de Malu ensaia no estúdio. Malu está abatida, mas leva a música de forma tranqüila.
Giovane olha de vez em quando pra ela, tentado puxar seu olhar. Malu tenta ignorar a presen-
ça dele. O guitarrista erra um acorde e Malu perde a paciência. Joga o microfone de lado e sai
do estúdio. Os músicos fazem que não entendem.

9. EXT. DIA. JARDIM DO ESTÚDIO.


Malu toma um ar no jardim. Coloca a mão sobre a boca como se segurasse um vômito. Respi-
ra fundo. Sente enjôo. Encosta-se na parede. A empresária da banda se aproxima dela.

EMPRESÁRIA
164

Malu? Tudo bem aí?

Malu faz que sim com a cabeça, mas continua com a mão sobre a boca.

EMPRESÁRIA
Você tem passado mal direto. Tem que ver isso! (pausa) Eu sei que é estranho te per-
guntar, mas você tá grávida?

Malu tira a mão da boca, olha pra empresária e fica sem reação. Olha para os lados, olha no-
vamente nos olhos da empresária e, com os olhos cheios d‟água, balança a cabeça afirmando
que sim.

EMPRESÁRIA
Ai! Meu Deus.

Malu vira-se de frente para o muro e coloca a mão sobre os olhos. A empresária olha para o
estúdio e grita.

EMPRESÁRIA
Aí, galera! Por hoje chega, ok?!

Ouve-se barulho de vozes dentro do estúdio. Os músicos saem. Giovane vem andando com a
case na mão e olha para Malu. Ela continua de costas. Giovane pára por alguns segundos. A
empresária chega e dá um tapinha nas costas de Giovane. Aponta educadamente a porta. A
empresária se coloca atrás de Malu e cruza os braços.

EMPRESÁRIA
Malu, me explica. O que aconteceu?

MALU
Eu não sei! Foi um vacilo! Eu não sei onde tava com a cabeça, cara.

EMPRESÁRIA
(chega mais perto)
Vocês estavam tentando? A Renata queria? Você nunca comentou nada comigo!

MALU
(virando-se com raiva)
Eu nunca quis! E nem sei se quero. Ela queria. Tentou me convencer por muito tempo,
ela ia engravidar, a gente ia adotar, sei lá. Mas ela queria muito. E agora? Onde ela es-
tá? O que eu faço? (senta-se) Tudo o que eu queria era ela de volta.

EMPRESÁRIA
Mas ela já sabe?

Malu faz que não com a cabeça.

EMPRESÁRIA
E quando é que você vai ligar pra ela? E vai falar isso tudo que me falou?
165

MALU
Eu não vou contar nada. Ela nunca vai entender.

EMPRESÁRIA
(pega as mãos de Malu)
Você não conhece a sua namorada.

Malu olha para a parede, sem reação.

10. INT. NOITE. CASA DE MALU E RENATA.


Malu está deitada no sofá. Ela está com seis meses e sua barriga começa a aparecer. Uma mú-
sica tranqüila toca ao fundo. Malu pega o porta-retratos na mesinha ao lado com uma foto de
Renata. Ela abraça o porta-retratos com ternura por alguns segundos. Malu pega o telefone
celular, se levanta e digita um número de 15 dígitos. Após alguns toques, uma voz em francês
anuncia a secretária eletrônica de Renata. Malu espera o bip.

MALU
Hei. Só queria dizer que sinto saudades de você. Todos os dias. Eu errei, amor. Muito.
Mas... (passa a mão na barriga) ...eu preciso de você. Volta pro Brasil, volta pra mim.
Me liga, pelo menos. Você sabe que eu te amo. (com a voz sumindo) Por favor.

Malu desliga o telefone e olha para trás. Um carrinho de bebê, algumas sacolas com fraldas e
uma caixa de um berço estão no meio da sala esperando para serem arrumados. Ela faz cari-
nhos na barriga, sentindo o bebê. Fecha os olhos e sorri.

11. EXT. DIA. CALÇADÃO.


Malu caminha apressada por entre as pessoas. Está com sacolas na mão, a barriga já denuncia
os oito meses de gravidez. Renata vem pelo outro lado, puxando uma mala de rodinhas. De
repente, ela vê Malu, que não percebe Renata. Ela vê a barriga e se assusta. Malu continua
andando, sem olhar pra frente e passa por Renata. Ela chama por Malu.

RENATA
Maria Luiza?

Malu para bruscamente, não acreditando na voz. Vira-se procurando Renata. Encontra seus
olhos e abre um sorriso de felicidade e carinho. Ela se prepara pra falar algo, mas vê o olhar
de Renata se desviar para sua barriga. Malu o acompanha olhando para baixo. Elas se aproxi-
mam.

MALU
Eu não quis te contar por telefone.
Renata não consegue falar. Estende a mão e sente a barriga de Malu.

MALU
É uma menina. Eu queria que você escolhesse o nome.

Renata balança a cabeça em reprovação. Ela dá um abraço em Malu. Fica por alguns segun-
dos, mas Renata a afasta delicadamente. Sem olhar pra seu rosto, pega sua mala e vai embora
pela rua. Malu acompanha com os olhos, sem saber o que fazer.
166

12. INT. NOITE. APART-HOTEL.


Renata olha para a cidade da janela do quarto. Sobre a mesa há um copo de whisky, um par de
óculos de grau jogado e várias ampliações de fotos de Malu e de Renata. Renata se aproxima
da mesa, bebe um pouco do whisky e coloca os óculos. Observa as fotos cuidadosamente.
Pega uma foto em que ela aparece abraçando Malu. Renata suspira fundo. Pega outra foto
onde Malu está sozinha. Passa delicadamente os dedos sobre a barriga de Malu na foto. Segu-
ra o choro olhando para o rosto de Malu na foto.

13. INT. DIA. QUARTO DO HOSPITAL.


Malu está deitada no quarto do hospital. Sua empresária está ao seu lado, com uma câmera
digital. A enfermeira traz o bebê. A empresária acompanha o bebê com a câmera. Malu acon-
chega sua filha em seus braços. Empresária chega mais perto.

EMPRESÁRIA
Ai! Que coisa mais linda essa menina. Benza Deus. (brincando com a menina) Como é
que essa coisinha fofa vai chamar?

Renata está parada na porta, mas só agora Malu percebe sua presença. Ela traz um presente
nas mãos.

RENATA
Eu pensei em Myriam. O que você acha?

Malu não contém as lágrimas. Chama Renata para perto dela e se abraçam. A empresária pede
delicadamente licença e sai do quarto. Renata chora. Ela sente o rostinho da filha e Malu a
entrega com carinho. Renata segura desajeitada a menina.

MALU
Eu acho perfeito. É maravilhoso, meu amor.

Renata beija Malu.

RENATA
Me perdoe. Fica comigo. Eu não sei viver sem você. (olhando para o bebê) E quero
mais do que nunca amar você.

MALU
Eu quem tenho que te pedir perdão. Por tudo, sempre. Você é a mulher da minha vida.
E eu preciso de você. Nossa filha. Nossa filha precisa de você. Volta pra sua casa.

Elas se beijam. Renata pega o presente e entrega para Malu. Ela abre. É um móbile de peque-
nos duendes pendurados em luas. Renata pendura o móbile perto das duas e se senta ao lado
de Malu e de Myriam. Elas se abraçam. O móbile balança suavemente na brisa de fim de tarde
que entra pela janela.
167

ILENE CHAIKEN: People who are gay, at one time or another, have dealt
with those issues of sexuality, in a way that has dominated their lives,
more than the people who never have to go through the process of coming
out.

JENNIFER BEALS: It infiltrates every aspect of your life.

LAUREL HOLLOMAN: Sexuality in our show it's sort of two things: it can
be the driving force for one character, but it might be the aspect, for
another character.

KATE MOENING: They have more things going on than just their sexuali-
ty, like every human being does in their life.

MIA KIRSHNER: I can only speak for Jenny, but I don’t think the charac-
ter's journey is about what her sexual orientation is; it's about where her
life is going and who rocks her world...

KATE MOENING: And that's what I like...it that it doesn't just end with
the sexuality.

MIA KIRSHNER: I never wanted to be a part of a series that was about


gay women, because I think it marginalizes gay women. I wanted to do a
show of people's relationships with one another.

ERIN DANIELS: If you're a woman feeling love, regardless of loving a


man or a woman, it's still love. The emotion doesn't change.

ROSE TROCHE: We understand desire from within ourselves. We have it


in us.

ERIN DANIELS: There are a lot of issues that are talked on the show that
anyone can relate to. I mean, there's a couple trying to get pregnant, that's
having a hard time.

ILENE CHAIKEN: As pessoas que são homossexuais, uma hora ou outra,


teve que lidar com essas questões da sexualidade, de uma forma que isso
foi dominante em suas vidas, mais do que para as pessoas que nunca tive-
ram que passar pelo processo de se assumir.

JENNIFER BEALS: Isso está infiltrado em todos os aspectos da sua vida.

LAUREL HOLLOMAN: A sexualidade na nossa série é um pouco de duas


coisas: pode ser a energia de uma personagem, como também pode ser o
aspecto de outra.

KATE MOENING: Existe coisas mais importantes do que suas orienta-


ções sexuais, como cada ser humano que entra em suas vidas.

MIA KIRSHNER: Eu só posso falar pela Jenny, mas eu não acho que a
jornada da personagem é sobre sua orientação sexual; é sobre pra onde sua
vida está seguindo e quem balança seu mundo...

KATE MOENING: E é isto que eu gosto. Ela não encontra justificativa


apenas no sexo e sexualidade.

MIA KIRSHNER: Eu nunca quis fazer parte de um série sobre lésbicas


porque eu achava que elas marginalizavam as mulheres homossexuais. Eu
queria fazer uma série sobre os relacionamentos de uma pessoa com ou-
tras.

ERIN DANIELS: Se você é uma mulher que ama, não importa se está a-
mando um homem ou uma mulher, continua sendo amor. A emoção não é
diferente.

ROSE TROCHE: Nós compreendemos o desejo que existe dentro de nós.


Nós temos esse desejo em nós.

ERIN DANIELS: Existe tanto assunto falado na série que nunca foi abor-
dado antes. Eu quero dizer, há um casal de lésbicas tentando engravidar, e
estão passando por um período difícil.
(THE L WORD DEFINED, 2004)
168

6. CONCLUSÃO

Após passear um pouco sobre a história da homossexualidade, principalmente da

feminina, e conhecê-la melhor, a certeza que tenho é que as coisas mudam. O tempo e a luta

permitem transformações nos pensamentos, na forma como lidar uns com os outros, na reali-

dade que o ser humano vive dentro de uma sociedade, dentro de um estado, dentro de uma

família. A homossexualidade hoje é, visivelmente, mais aceita do que nos séculos passados,

isso é fato. Mas ainda há muito que alcançar, mudar, re-significar, construir no que diz respei-

to a identidades, papéis, gêneros. No que diz respeito à forma como as pessoas lidam com o

sexo e com suas vertentes. Na maneira como um ser humano é taxado pela sociedade em que

vive conforme suas características físicas, emocionais e sexuais. Os seres humanos são todos

diferentes, isso é uma verdade incontestável. Não há ninguém no mundo igual a outra pessoa,

nem mesmo se for sua irmã gêmea.

Nesse mundo de diferenças, onde, como já foi dito por Tânia Navarro-Swain, o

sexo é rei, a televisão se tornou através dos tempos um dos mais fortes meios de conscientiza-

ção social. Ditando regras, modismos e valores morais, a TV tomou com força total o lugar do

cinema no quesito influência do espectador. Por isso, quando um produto cultural tipicamente

televisivo, mas com características cinematográficas como o seriado surge, não é possível

deixar de lado sua importância. As séries de TV foram construindo o imaginário coletivo a-

mericano desde os anos 50 e do brasileiro desde os anos 70, com seus diversos enlatados. Ho-

je, mais do que nunca, a série norte-americana toma conta das rodas de conversa, dos estudos

de comunicação, das salas de TV e dos sites da internet. Antes restrita aos canais fechados,

agora elas são acessíveis por downloads e voltaram a ser exibidas em poucos canais abertos

brasileiros.

Numa forma de juntar as duas histórias paralelas, surge a primeira série sobre lés-

bicas do mundo. “The L Word” mostrou pela primeira vez a vida das mulheres homossexuais
169

e, apesar de algumas críticas, o fez com muita fidelidade. As pessoas se viram ali retratadas e

se vêem até hoje. É fundamental perceber a importância de mercado que a série teve, já que,

mesmo com um tema tão difícil, ainda, de ser abordado, segue para sua quinta temporada.

Coisa que muitas séries importantes não conseguiram. É um fato a ser comemorado pelo mo-

vimento LGBT e pelos movimentos lesbianos, como a Liga Brasileira de Lésbicas. Se ver na

TV é uma conquista para as mulheres que, tanto por serem mulheres, quanto por serem lésbi-

cas, foram tão e duramente discriminadas ao longo dos anos. E, como não podia deixar de ser,

a visibilidade traz visibilidade. E outras pessoas perceberam que era bom, importante, essen-

cial contar as histórias das lésbicas nos meios de comunicação.

Hoje existem mais livros sendo lançados, apesar de ainda poucos sendo distribuí-

dos para as grandes livrarias. Quadrinhos sobre lésbicas estão sendo feitos, filmes com gran-

des e consagradas atrizes são lançados, mais séries de TV vão surgindo. Dois exemplos de

influência direta de “The L Word” são a latino-americana “ChicabuscaChica”70, exibida pela

Terra TV, na qual cada episódio tem 10 minutos e só é exibido pela internet, e na americana e

engraçada “Exes & Ohs”71, lançada por um dos primeiros canais a cabo voltados para o públi-

co homossexual, a rede LOGO. “Exes & Ohs” foi criado a partir do curta metragem “The Ten

Rules: A Lesbian Survival Guide”, de 2002 e seu título é uma gíria americana para beijos e

abraço. As duas séries têm suas características próprias, mas trazem mulheres reais, lésbicas,

verossímeis e relatos de ficção e comédia, mas em tom muito verdadeiro.

Nesse contexto atual de sociedade em que vivemos, não foi preciso muito para ver

que era possível escrever um roteiro sobre lésbicas. Por isso “O Móbile” foi criado. Ressalto

aqui a importância de se perceber ser esta apenas a proposta de uma representação da realida-

de homossexual, não necessariamente a ideal. Assim como a sociedade, eu, como autora, te-

nho meus próprios vícios que foram estabelecidos através de anos e anos de histórias mal con-

70
Ver em <http://chicabuscachica.terra.es/temporada-serie/>, acesso em 26 nov. 2007.
71
Ver em < http://www.logoonline.com/shows/dyn/exes_and_ohs/videos.jhtml>, acesso em 26 nov. 2007
170

tadas sobre a homossexualidade feminina. É difícil e dolorosa a retirada desses pré-conceitos

enraizados em nossa geração, mesmo com toda a informação e visibilidade que a mídia, atra-

vés de produtos culturais como a série de TV, tem oferecido à comunidade LGBT. Minha

pretensão torna-se experimentar uma nova abordagem da homossexualidade feminina em

curtas histórias que têm o seu lado de fantasia. E com personagens das mais diversas identi-

dades, assim como é a própria lesbianidade. Outra pretensão, que vem como conseqüência, é

que se criem, com essas personagens, novos perfis identitários, assim como vem acontecendo

com “The L Word”. A visibilidade lesbiana vem provocando uma nova forma de se enxergar a

mulher lésbica, que deixa de ser “caminhoneira”, “sapatão”, “sandalinha”, “vampira”, “bola-

cha”, “fancha”, “entendida” e passa a ser, dentro de suas milhares e milhares de personalida-

des nômades e modificáveis, de fato mulher.

Essa abordagem pode até ser vista como idealizada demais, com poucos proble-

mas sendo enfrentados pelas personagens, com um mundo que encara com demasiada tranqüi-

lidade a existência de relações lésbicas. Mas é essa exatamente a proposta. Apesar das

histórias parecerem positivistas demais, mostrando, assim como na série, uma sociedade que

não existe de fato, a idéia é criar uma realidade diegética em que as mulheres, ou os homens,

tenham a liberdade de se amarem e se desejarem.

Ou seja, através da ficção retratar um tipo de relação social que, espera-se, um dia

se torne verdadeira. A mesma que os movimentos lésbicos e gays buscaram ao longo das dé-

cadas, a mesma relação que vem sendo retratada através da série “The L Word”. A relação

social que não vê na orientação sexual uma característica determinante do ser humano perante

a sociedade, a igreja e a família, que permite que isso seja apenas mais uma das características

que ele apresenta. Relações que valorizam a mulher e apresentam seu papel de merecido des-

taque no mundo. Enfim, relações de amor, simples e puramente.


171

7. ANEXOS
172
173
174
175
176

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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