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O MÓBILE:
A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA EM
“THE L WORD”
ADAPTADA A UM ROTEIRO ORIGINAL
JUIZ DE FORA
2º SEMESTRE DE 2007
LILIAN WERNECK RODRIGUES
O MÓBILE:
A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA EM
“THE L WORD”
ADAPTADA A UM ROTEIRO ORIGINAL
JUIZ DE FORA
2º SEMESTRE DE 2007
LILIAN WERNECK RODRIGUES
O MÓBILE:
A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA EM “THE L WORD”
ADAPTADA A UM ROTEIRO ORIGINAL
____________________________________________________
Professor Mestre Cristiano José Rodrigues – UFJF - Orientador
____________________________________________________
Professora Doutora Cláudia Regina Lahni – UFJF – Convidada
____________________________________________________
Professor Doutor Nilson Alvarenga – UFJF – Convidado
JUIZ DE FORA
2º SEMESTRE DE 2007
DEDICATÓRIA
1. INTRODUÇÃO.............................................................................................................10
3. AS SÉRIES DE TV NORTE-AMERICANAS...........................................................50
5.1.1. Admiração...............................................................................................119
5.1.2. Diálogo.....................................................................................................130
5.1.4. Apoio........................................................................................................150
5.1.5. Perdão......................................................................................................156
6. CONCLUSÃO.............................................................................................................168
7. ANEXOS......................................................................................................................171
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................176
MIA KIRSHNER: What does The L Word mean?
ROSE TROCHE: The L Word means the word that's not spoken.
And I love its little badness, I love its euphemistic, like...bad quali-
ty.
PAM GRIER: The L Word is a show about living the life you love,
loving the life you live.
(THE L WORD DEFINED, 2004)
PAM GRIER: The L Word é uma série sobre viver a vida que vo-
cê ama, amar a vida que você vive.
(THE L WORD DEFINED, 2004)
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1. INTRODUÇÃO
Uma mulher toca a campainha da casa. A porta se abre e ela entra. Cumprimenta,
animada, várias amigas que estão sentadas na sala, bebendo refrigerantes e cerveja, conver-
sando agitadamente. Parece que repassam os acontecimentos do episódio anterior. Ela se sen-
ta no meio delas. Enquanto isso, do outro lado da cidade, uma jovem garota, insegura com seu
jeito de vestir, com seu jeito de andar, seu jeito de pensar, seu jeito de gostar de outras garo-
tas, assustada, fecha a porta do quarto. Coloca o som da TV bem baixinho, e fica esperando, o
tempo todo com o controle na mão, já que seu pai ou sua irmã podem entrar a qualquer mo-
mento. Em outro estado, uma mulher em seus trinta e poucos põe seu filho pequeno na cama,
sonolento. Apaga a luz do quarto. Passa pela cozinha e pega a vasilha de pipocas. Entra em
seu quarto. Sua companheira está lá, deitada entre as cobertas, afundada no travesseiro, vendo
TV. Ela entrega-lhe a vasilha e deita, se ajeitando em seus braços. Ela recebe um beijo e sorri.
Em outro país, um casal termina de assistir ao Fantástico, mesmas histórias de sempre. O ma-
rido, meio sonolento, entrega o controle para a mulher que, até então, lia o jornal. Ela resolve
zapear entre os canais e percebe que um certo programa está para começar. Ela olha para o
marido, ele está cochilando. Resolve deixar naquele canal para ver o que, afinal de contas, era
Desde 2004, essas e outras têm sido as rotinas de muitas garotas, mulheres e jo-
vens senhoras em vários países diferentes. Quando começa, a série norte-americana “The L
Word”, mostra de cara um universo antes explorado pouco e, muitas vezes, de forma equivo-
ninas através dos tempos, quanto da história do gênero seriado, produto cultural com signifi-
cativa produção na televisão norte-americana. Para se entender por que essa série se torna esse
Para isso, no segundo capítulo, realizo uma busca através dos diversos significa-
dos que a sexualidade humana vem adquirindo com o tempo. Desde o estabelecimento da
pelo fim desse padrão e pelo reconhecimento das diversidades sexuais, apresento fatos histó-
tos culturais deste estilo já lançados no mercado dos Estados Unidos. Seus sucessos, suas in-
fluências, sua projeção e seu valor de mercado incontestável, garantiram que esse espaço na
televisão fosse ocupado por histórias ousadas, de boa qualidade técnica e temas inovadores.
Perfeito contexto para que as homossexuais pudessem ser inseridas e, com isso, conquistas-
trar. E nenhum lugar poderia ser melhor para aplicar essa visibilidade do que na televisão. Por
que não num gênero que tem como tradição a ousadia e a inovação? Foi assim que “The L
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Word” ganhou voz e projeção na TV. E é essa série com seus perfis identificáveis do universo
Incentivada por essa visibilidade, e acreditando que é possível fazer mais e outras
histórias, um roteiro com cinco histórias de amor entre mulheres foi criado. O processo de
mento da série “The L Word”, assim como os roteiros de “Admiração”, “Diálogo”, “Apoio”,
“Confiança” e “Perdão” seguem descritos no capítulo cinco, como uma proposta de represen-
MIA KIRSHNER: I think that people are fed up with being backed
into a corner and being marginalized and told what their life style
is.
LEISHA HAILEY: I hope that the world really opens their arms...
OFF: Even taking the TV’s biggest gay breakthroughs into ac-
count, there has never been a series like The L Word.
(THE L WORD DEFINED, 2004)
sexualidade? Neste capítulo pretendo levantar uma breve história das sexualidades humanas
com foco principal nas relações entre iguais, entre os mesmos gêneros. Entre as mulheres e os
homens que não se encaixam exatamente nos padrões estabelecidos, sejam pela religião, pelo
Desta forma, é importante antes de tudo, explicar que não vou questionar a fundo
mídia tentam há muitos anos definir se é uma questão de influências, de genes ou de cultura.
Como afirma João Silvério Trevisan, as “causas” da homossexualidade e toda sua discussão
parecem ser dispensáveis e equivocadas. “Quando perguntado a respeito, Jean Genet respon-
deu que buscar a origem da homossexualidade lhe parecia tão irrelevante quanto saber por
que os olhos eram verdes” (2000, pág. 31). Não existem meios de, neste momento, explicar
porque uma mulher prefere ter relações afetivas e sexuais com outra mulher. Mas temos como
através dos tempos procurou transformar o amor gay1 em algo errado, imoral e criminoso. E,
da mesma maneira, levantar a questão de que a realidade não é bem essa, de que na verdade,
Algo importante que também gostaria de deixar claro é que tenho como objetivo
principal concentrar-me nas mulheres lésbicas, por vários motivos. Primeiro, porque são elas
1
A palavra gay é usualmente atribuída aos homens que têm relações homossexuais. Mas essa definição depende do país e da
cultura em que a palavra é inserida. No dicionário on-line Michaelis (http://michaelis.uol.com.br), ao pesquisar gay, aparece
como referência o termo “guei”, cuja definição é: “sm (ingl gay) pop 1 Homossexual masculino. 2 ch Veado, bicha.” Já na
versão americana do site Wikipedia (http://en.wikipedia.org/), “While gay applies in some contexts to all homosexual people,
the term lesbian is sex-specific: it is used exclusively to describe homosexual women. Sometimes gay is used to refer only to
men.” Ou seja, em sua origem inglesa, na qual anteriormente significava feliz ("carefree", "happy", ou"bright and showy"),
gay define as práticas, cultura e pessoas homossexuais, indistintamente. Como o objeto da pesquisa é uma série norte-
americana, que usa muito o termo gay para se referir às mulheres, pretendo aqui usar esse termo com essa significância, não
somente para os homens. Quando esse for o objetivo, usarei complementos para ajudar no entendimento.
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as personagens principais da série “The L Word”, objeto de minha análise. Segundo por ser
este um universo no qual me insiro. Outro motivo é um detalhe específico dos estudos da ho-
mossexualidade, que percebi ao realizar a pesquisa para elaborar essa monografia. Os livros,
textos, artigos que li e sites que visitei, confirmam o fato levantado por Trevisan (2000, pág.
11) de que muito pouco ou quase nada existe em literatura sobre a homossexualidade femini-
na. A maior parte é voltada especificamente para o relato e estudo dos gays masculinos, tra-
vestis ou transexuais. Sobre as mulheres, o máximo que essa literatura dedica é um capítulo
ou citações. Poucos e difíceis de encontrar à venda são os livros que aprofundam o tema, co-
discurso. Mesmo sendo este um livro de bolso, pertencente à coleção “Primeiros Passos” da
Editora Brasiliense, ou seja, de poucas páginas e para leigas, o trabalho da professora e histo-
riadora destaca-se não só como um guia mas também como uma grande fonte de questiona-
mentos sérios sobre a forma que a história lida com as mulheres, lésbicas ou não. Da mesma
forma, encontrei somente na internet outras fontes sobre a lesbianidade3, em sites, teses, traba-
lhos e artigos de professoras e alunas com os mesmos questionamentos que eu: por que se fala
2
O título do livro ainda traz a palavra lesbianismo e, da mesma forma, a palavra é usada em todas as citações. No entanto, o
correto seria retirar da palavra lésbica o sufixo ismo, que é associado à doença. O termo lesbianidade vem sendo adotado
pelas organizações sociais de lesbianas em oposição ao termo lesbianismo por sua associação com a concepção de homosse-
xualidade como doença, que vigorou no CID-10 (Código Internacional de Doenças) até a década de 80.
3
Durante o trabalho, usarei as palavras lesbianidade e lesbianas, mesmo não sendo muito usuais.
16
nando nossa sociedade, sendo encontrado em todos os lugares. Até mesmo no meio homosse-
xual. Por isso, neste capítulo farei apenas citações sobre a história dos gays homens, travestis
e transexuais. Tenho como ideal a igualdade dos gêneros e pretendo aqui não cometer equívo-
cos sexistas que são muitas vezes levados adiante sem que percebamos. Para isso, pretendo
seguir as recomendações de Assumpção e Bocchini (2002). E por isso, tentarei abordar fiel-
mente, e com olhos atuais, a história das mulheres que amam mulheres.
seus vários aspectos, a sexualidade se transformou numa das mais importantes significantes
da cultura humana. Antes de entrar mais detalhadamente em discussões dos diversos papéis
da sexualidade e suas orientações, é importante ter uma noção do que é esse sexo:
O sexo é um nome dado a coisas diversas que aprendemos a reconhecer como sexu-
ais de diversas maneiras. Certas coisas sexuais podem ser mostradas, como, por e-
xemplo, as descrições médico-fisiológicas do aparelho genital. Outras, como descri-
ções de sensações corporais são reconhecidas pela mostração e pela interpretação,
como orgasmo, que aprendemos que é 'algo sexual' mas que poderia ser sinal de
possessão pelo demônio ou espasmo muscular. Outras, como descrições de senti-
mentos afetivos ou amorosos, são puras realidades lingüísticas, que não podem ser
mostradas e nas quais o suporte corporal é absolutamente dispensável como critério
de uso correto dos termos e expressões. Outras, finalmente, como regras de paren-
tesco e valorização moral de condutas dependem do conhecimento prático ou abstra-
to de instituições culturais e sociais complexas, sem relação direta com atos e condu-
tas observáveis. (COSTA, 1996, p. 64)
A partir deste conceito de Jurandir Freire Costa, é possível perceber como as defi-
No entanto, uma das definições é imposta à sociedade ocidental como correta e imutável: a da
divisão binária homem/mulher. Esta divisão, deixa-se claro, não no aspecto físico e biológico,
dão. Como determinantes de papéis sociais, talvez não haja exemplo melhor do que uma soci-
edade paternalista pode fazer com a cultura de um povo. Para os católicos, Eva, a primeira
mulher, surgiu em segundo lugar, a partir de pedaços do corpo de Adão, o primeiro homem.
Este, uma imagem de Deus, seria o ser superior, dominador, aquele que se viu obrigado a cor-
rigir os erros de Eva. Ela, por sua vez, era uma mulher sedutora, fraca, com o único objetivo
de ser um complemento e uma ajuda ao homem, e foi dominada pela tentação. A mulher co-
nhece a Serpente e sua “árvore da ciência e da sabedoria”, come o “fruto proibido”, comete o
“pecado original” e acaba expulsa do paraíso. Numa livre interpretação, Eva toma conheci-
mento de seu real papel no mundo, do direito de tomar decisões, do seu poder e força, de sua
sexualidade e acaba punida por isso, tendo que sofrer as dores do parto e tornando-se cada vez
Judaísmo, encontramos outra versão dos fatos. Segundo o Rabino Manis Friedman4, no livro
dos Gênesis da Torá, ou Bereshit5, Chava (Eva) era ou outro lado da imagem de D’us (Deus).
Ela come o fruto para experimentar o sabor da vida, de estar imersa nela. A transgressão a-
contece pois ela parte de um mundo Divino para um mundo real, onde somente o aqui e o
agora importam, onde não há ponto de vantagem a partir do qual discernir o bem do mal. Ela
teve a coragem de ver o outro lado das coisas. E, com isso, entendeu a mensagem de D’us.
4
Disponível em <http://www.chabad.org.br/biblioteca/artigos/AdaoEva/home.html>, acesso em 15 nov. 2007.
5
Torá (do hebraico ּתֹורה,
ָ significando instrução, apontamento, lei) é o nome dado aos cinco primeiros livros do Tanakh
(também chamados de Hamisha Humshei Torah, חמשה חומשי תורה- as cinco partes da Torá) e que constituem o texto central
do judaísmo. É um substantivo feminino. Já Bereshit תישארב, Bereshit - No princípio conhecido pelo público não-judeu como
Gênesis (disponível em <www.pt.wikipedia.org>, acesso em 19 nov. 2007.)
18
Eva entendeu a necessidade de D'us de que este mundo inferior, um mundo conta-
minado pela morte e pelo pecado, fosse elevado e unido a Ele. Ela entendeu que os
seres humanos devem deixar o Éden e descer ao mundo inferior, e ali criar um lar
para D'us. [...] E assim ela comeu da árvore, e convenceu Adão a fazer o mesmo.
Quando D'us perguntou a Adão: "Tu comeste da árvore?" - não foi uma repreensão
ou censura. Ele estava admirando a sabedoria de Adão em ter tomado a decisão cor-
reta. Adão, em sua inocência, admitiu que fora a sabedoria de Eva, não a sua. "Ela
deu-me o fruto da árvore, e eu comi." [...] O mundo agora pode tornar-se confortável
para Ele, quando as coisas que O definem - Seus mandamentos - são praticados. As-
sim fazendo, preparamos o mundo para nossa suprema redenção. (FRIEDMAN,
200-, disponível em <http://www.chabad.org.br>, acesso em 15 nov. 2007.)
Ora, essa representação da origem da humanidade católica não poderia estar mais
como único objetivo das relações sexuais. O desejo humano se tornara uma “culpa”, um “pe-
construção do social e dos gêneros, dos papéis femininos e masculinos?” (2000, p.28)
Dois pólos, um superior e outro inferior, marcados pelo signo do sexo, da sexualida-
de, da reprodução, cada um em seu papel segundo sua “natureza” dotada do selo di-
vino. A heterossexualidade como norma e as relações assimétricas entre os corpos
sexuados ficam assim instituídos no imaginário ocidental, ordenando as práticas e
relações no Ocidente cristão. (NAVARRO-SWAIN, 2000, p. 17)
uma necessidade em sociedades que buscavam o crescimento do Estado. A partir dela, foi
determinada a forma como as famílias seriam estabelecidas. Se não houvesse a relação entre
homens e mulheres, não haveria novos cidadãos. Sem novos cidadãos, o Estado não seria
formado. Em algumas cidades da Grécia Antiga, como Esparta, por exemplo, era o Estado
19
mente, filhos, já que eles viviam separados e tinham vidas sociais completamente diversas6.
Ainda nesse contexto, somente para exemplificar, a mulher era tão pouco conside-
rada pela sociedade, que para um jovem grego de boa posição social ser iniciado sexualmente,
devia fazê-lo com gregos másculos, adultos, maduros e de boa posição político-sócio-
onde tinham também sua iniciação sexual entre elas. Anos mais cedo, e nesse contexto, viveu
Safo, poetisa grega da ilha de Lesbos, que foi considerada por Platão a Décima Musa7.
Safo era uma mulher emancipada, que participava da política desde os 19 anos e
que cantava em suas poesias o amor pelas mulheres. Era sacerdotisa de Afrodite e participava
de ritos de iniciação na escola de moças que havia fundado, a que é considerada tanto a pri-
meira escola para mulheres, como a primeira escola de aperfeiçoamento da história, com o
ensino de música, canto e poesia. Suas alunas recebiam o nome de hetairai (amigas) e muitas
delas tiveram relações com Safo. A que mais marcou a vida da poetisa foi Átis, que foi retira-
da da escola pelos seus pais. Ao perdê-la, Safo escreveu o poema “Adeus a Átis”, cujos versos
líricos são considerados os mais belos de todos os tempos e são adotados como modelo de
singeleza e de sobriedade da forma literária. Safo, e sua ilha de Lesbos, serviram também para
“práticas sexuais entre mulheres”. A palavra lésbica, por sua vez, veio exatamente do termo
habitantes de Lesbos. Apesar da forte influência e da poesia de rara beleza, e como em muitos
retiradas das páginas dos livros, sua obra denegrida e sua poesia queimada como heresia.
(NAVARRO-SWAIN, 2000)
6
Sobre essa questão, ver Pastre (1987, p81).
7
“Há quem afirme serem nove as musas. Que erro! Pois não vêem que Safo de Lesbos é a décima?” – Platão. Disponível em
<www.pt.wikipedia.org>, acesso em 15 nov. 2007.
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Exatamente por isso, com a visão do Cristianismo Ocidental, essa história tornou-
se lenda, como aconteceu com várias rainhas, sacerdotisas e guerreiras da Era Medieval. Na
versão cristã, muitas vezes elas se tornavam reis, sacerdotes e guerreiros. (IDEM, 2000) Em
seu período de maior poder, na Idade Média a partir do século XI, a Igreja desenvolveu uma
caça contra os homossexuais e todos aqueles que se levantavam contra a moral católica. Re-
solveram, com muita violência, puní-los para que se tornassem exemplos, assim, centenas de
lésbicas foram queimadas como bruxas, e homossexuais em geral eram usados como “lenha”
para as fogueiras purificadoras da santa igreja. Somente a heterossexualidade com fins repro-
herdeiro das propriedades dentro de uma sociedade paternalista e, assim, submeteu as mulhe-
res ao domínio masculino. Com isso, aumentou mais ainda a discriminação em relação a toda
atividade sexual que não tivesse na reprodução “controlada” seu objetivo. Somente a família,
com um pai provedor e forte e uma mãe subjugada e carinhosa poderia existir dentro de uma
Como mostram esses exemplos, através dos tempos, a relação sexual entre ho-
mens e mulheres foi sendo forjada como o padrão de sexualidade, enquanto qualquer outra
Apenas a re-historicização das categorias criadas pela sociedade burguesa pode li-
vrar-nos da inversão de causa e efeito contida na interpretação naturalizante de nossa
sociedade. Os anormais nada mais são do que construções sociais naturalizadas, as
quais derivam de relações de poder que atribuem a eles uma posição de inferioridade
e submissão na ordem social. Nossos corpos socializados trazem o passado ao pre-
sente e contribuem para a manutenção das categorias sociais e da hierarquia imposta
pelo padrão de normalidade burguês. Assim, a desigualdade de poder chega aos in-
divíduos nos seus próprios corpos e no uso destes, dos prazeres e capacidades repro-
dutivas. (MISKOLCI, 2002/2003, p.13)
Mas a toda regra, exceções são bem vindas. Em várias culturas e em diversos
momentos da história, o discurso normativo não se recai somente sobre o sexo, se tornando
este um caráter secundário. Como explica Jurandir Freire Costa, aquilo que unifica e identifi-
ca os atos sexuais como da ordem do sexo na cultura ocidental moderna podem inexistir em
outras culturas.
Os Sambia, uma tribo na Nova Guiné, tem como princípio da vida o sêmen. Conse-
qüentemente, o valor do sêmen é que determina a ordenação moral das práticas se-
xuais. A sua produção e distribuição é feita de diversas maneiras, inclusive aquelas
que, na nossa cultura, estão na ordem da identificação com o sexo. Por exemplo: en-
tre os Sambia é costume haver a transmissão de sêmen de homens adultos aos meni-
nos através da felação para que cresçam, adquiram força e possam ser bons produto-
res de sêmen quando ficarem adultos (COSTA, 1996, p. 67).
de, por ser realizada entre duas pessoas do mesmo sexo, e como pedofilia, por envolver um
adulto e uma criança. Mas para os nativos de Sambia, isso não passa de um ritual da tribo.
Conclusão: expressões sexuais usadas para falar de sexo tais como 'o mesmo sexo' e
o 'outro sexo' naquela cultura soariam tão estranhas quanto nos pareceria estranho
dividir os indivíduos modernos entre 'felaciofílicos' e 'felaciofóbicos' ou definirmos
alguém como 'impotente para a felação', se esse alguém, por acaso, dissesse ter nojo
ou inibição para praticá-la (COSTA, 1996, p. 67).
tanto, sempre existiram homens e mulheres que não se encaixavam nas definições sexuais e
de gênero, que sempre sentiram interesses diversos aos que eram mostrados como “corretos”
22
pelo estado, pela medicina ou pela religião. A diversidade sexual é uma característica huma-
Homens com traços femininos, mulheres com traços masculinos. Homens mascu-
linos que mantinham relações sexuais com outros homens, fossem eles masculinos, femininos
ou travestidos. Pessoas que não se sentiam bem nos corpos que haviam nascido e, por isso,
mudavam de gênero. Mulheres femininas que sentiam atração sexual, e que praticavam sexo,
com outras mulheres, masculinizadas ou não, amigas, professoras, primas, desconhecidas, não
importava. Jovens meninas e meninos que atingiam a maturidade sexual sem entender ao cer-
to por que seu futuro deveria ser com alguém do sexo oposto se seu desejo era pelo mesmo
sexo. Até certo momento da história, esses homens e mulheres não tinham uma categorização
formal. Foi a partir da evolução da noção de sexo que termos e conceitos foram definidos e
ne-sex model, onde os humanos tinham um só sexo e a mulher era entendida como um homem
invertido e, portanto, inferior. (SILVA, 2004) Por essa concepção, todas as relações seriam
homoeróticas, já que envolveriam a fricção de duas partes sexuais iguais, mesmo que uma
fosse o inverso da outra. A partir do século XVIII, concebe-se a noção de sexualidade através
do two-sex model, que mesmo distante da noção atual, já previa uma diferenciação básica
criação de das noções sociais de sexo, identidade, papel e orientação sexual que são conside-
húngaro Karl-Maria Kertbeny8, e vinha para explicar a prática: “do mesmo sexo”. Apesar de
ter sido criado por um ativista dos direitos homossexuais, no ano seguinte a palavra homosse-
xual entra para os anais da Psiquiatria como um desvio sexual e ganha o sufixo “ismo”.
gia e foi incluído em 1870 na Classificação Internacional de Doenças (CID) como Transtorno
Sexual. Bem na verdade, a classificação foi uma desculpa para que os moralistas e preconcei-
tuosos criassem leis que baniam os homossexuais e puniam suas práticas com violência e
crime, o que fez com que milhares de mulheres e de homens fossem mortas e mortos por as-
8
Após o suicídio de um amigo gay que era chantageado por causa de sua orientação sexual, o jornalista começou a se interes-
sar pelo tema. Karl-Maria Kertbeny se tornou um ativista dos direitos dos homossexuais. Em 1869, um de seus panfletos de
militância trouxe o termo homossexual em substituição do pejorativo pederasta. Ele também criou os termos heterossexual e
monossexual (quem se concentra apenas na masturbação).
24
para um lugar obscuro para as lésbicas e os gays masculinos, segundo um dos pais da psicaná-
lise, Sigmund Freud, a pulsão (sexual) não tem objeto pré-determinado no ser humano e tanto
numerosos fenômenos de ordens diversas. Isso porque, segundo ele, todos os indivíduos de
nossa cultura possuem uma corrente libidinosa heterossexual e uma homossexual; sendo que a
te conhecidos. (BARBERO, 1988) E essa análise foi feita no início do século passado, anos
nal, as pessoas consideradas gays foram perseguidas e presas. O Nazismo aumentou em dez
vezes a abrangência do Parágrafo 175 e em 1937 foi criado o triângulo rosa para classificar as
Milhares de alemães morreram nos campos de concentração, sem que fosse pro-
vado se eram “culpados” ou não, dentro dessa concepção eugênica de homossexualidade co-
25
mo transtorno. Mesmo depois do fim da guerra, os que possuíam o triângulo rosa permanece-
ram presos por causa da citada lei, que só foi revogada com a queda do muro de Berlim em
1990.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, entrava em vigor o chamado “Código Hayes”.
Se não de forma direta, pelo menos de forma sugestionada. O problema é que, sempre que
apareciam, era de forma efeminada, caricaturada e como piada, ou então, no caso das lésbicas,
com o único intuito de excitar os homens. Os gays não eram levados a sério, ganhavam apeli-
dos e deboches, e sempre apareciam como vítimas, tristes e agoniados. Por outro lado, se uma
mulher aparecia como homem, era tida como um objeto de apelo sexual para os heterossexu-
ais masculinos. No filme “Morroco”, de 1930, a atriz Marlene Dietrich aparecia belamente
vestida em um smoking, como parte de um show. Singela e sensual, atraía os olhares de todos
na sala, homens ou mulheres. No final da cena, ela dá um beijo de leve em uma das mulheres
da platéia, o que chama a atenção do seu futuro companheiro na trama 9. Mas, mesmo assim,
(MPPDA) decidiu que o cinema precisava de uma “faxina” em prol dos bons costumes e da
moral. Através de Will H. Hayes, a associação em conjunto com a Igreja Católica dos EUA,
lançou uma série de normas que obrigavam os filmes a não usarem palavras de baixo calão,
não mostrar nudez, não insinuar o sexo e, entre outras coisas, a não apresentar perversões se-
xuais (leia-se homossexualidade, transexualide, etc.) nas suas histórias. A censura dentro da
indústria cinematográfica obrigou que partes inteiras de filmes fossem cortadas e que em ne-
nhum momento fosse mencionada a sexualidade das personagens. O “Código Hayes” vigorou
até o ano de 1967, quando foi criada uma nova classificação dos filmes. Essas normas foram
9
Para mais informações sobre a homossexualidade no cinema, ver o documentário “The Celluloid Closet”, de 1995 (HBO),
dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman e baseado no livro homônimo de Vito Russo, de 1981.
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mais um reforço à característica negativa que se atribuía às lésbicas, pois, além de não se po-
der falar no assunto, elas se tornaram as vilãs da história, como em “A Filha de Drácula”, de
1936, ou em “Rebecca”, 1940, ou as que se matavam ao final da história por não agüentarem
Logo após esse período, em 1948, o zoólogo Alfred Charles Kinsey11 lançou um
instituto de estudos da sexualidade e dois livros muito controversos, mas que foram funda-
mentais para a quebra de diversos tabus. “Sexual Behavior in the Human Male” (1948) e “Se-
xual Behavior in the Human Female” (1953) foram responsáveis por escândalos, mas também
por conseguir abalar, pela primeira vez em muitos anos, a heteronormatividade que se instala-
principalmente nos anos 60, que muitos lhe dão mérito pela revolução sexual que ali fora ini-
ciada. Além da valorização do desejo em vez da necessidade de reprodução como uma das
causas das relações sexuais, os estudos foram fundamentais para o entendimento da diversi-
dade sexual de mulheres e homens. Para Kinsey, a classificação da sexualidade humana não
10
Neste filme, Shirley McLaine é Martha, apaixonada por Karen (Audrey Hepburn). Ela se mata após serem chantageadas
por algo que, imagina-se, seja sua orientação sexual. No documentário “The Celluloid Closet” (1995), Shirley McLaine
revela que, na época, a lesbianidade das personagens não foi discutida ou revelada pela equipe do filme. Afirma ainda que, se
tivesse sido, com certeza Martha lutaria por suas escolhas, tentaria uma alternativa ao suicídio. Mas, segundo ela, o tema
nunca foi levantado, nem mesmo em conversas com Hepburn, sua companheira de cena. “The profundity of this subject was
not in the lexicon of our rehearsal period. Audrey and I never talked about this. Isn't that amazing. Truly amazing.” –
(MCLAINE, 1995).
11
Ver <http://www.kinseyinstitute.org/> ou o filme “Kinsey” (2004), de Bill Condon, com Liam Neeson no papel principal.
12
É com base no citado "Relatório Kinsey" que se costuma calcular em 6% as pessoas exclusivamente homossexuais, e 4%
as predominantemente homossexuais, que ocupam os números 5 e 6 da "Escala Kinsey".
27
homossexualidade como uma doença, somente a partir de 1986. O sufixo “ismo” é, então,
retirado da palavra homossexual e, até hoje, luta-se para acabar com o uso em textos e
“tranvestismo” e “lesbianismo”.
Este termo (queer), que em inglês significa torcido ou oblíquo (que em português
poderia ter a tradução mais contextual de esquisita), era usado nos Estados Unidos e
na Inglaterra em tom de rejeição e degradação para se referir às pessoas gays, lésbi-
cas e transgêneros. Entretanto, no final dos anos oitenta foi tomado para si por pes-
quisadores que trabalhavam as temáticas gays e lésbicas e pelas pessoas que eram
alvo da estigmatização, ressignificando-o e reapropriando-se dele de modo afirmati-
vo para se referir a todos aqueles indivíduos cuja sexualidade (e não só orientação
sexual) extrapolasse os limites da heterossexualidade binária. Como uma ave fênix,
este termo se constitui em um espaço de significação aberta e volúvel que incorpora
lésbicas, transgêneros, transexuais, gays, sadomasoquistas, swingers, e todos aqueles
seres que não alcançam o status de sujeitos; seres “abjetos”, em termos de Butler
(2002,19-20), devido à sua condição degradada e excluída, que habitam zonas invi-
síveis ou inabitáveis da vida social, conformando o “exterior constitutivo” da esfera
dos sujeitos. (LACOMBE, 2005, p. 4-5)
“entendida” ganham também as ruas como outras denominações. Em comum, todas elas têm
o aspecto negativo, pejorativo, e surgiram para agredir ou ridicularizar. Mas alguns termos
foram adotados pelas comunidades de lésbicas e de gays masculinos que viraram o jogo e
passaram a ter posturas positivas em relação a essas palavras. Gay, dyke, queer e entendida ou
13
Apesar disso, na CID 10, ainda em vigor, estão descritos vários transtornos de identidade sexual (F64); transtornos de
preferência sexual (F65) e transtornos psicológicos e de comportamento associados ao desenvolvimento e orientações sexuais
(F66).
28
entendido serviram, de certa forma, para que houvesse uma maior aceitação social da
homossexualidade.
Na realidade, muito pouco depende uma relação sexual consensual do termo que a
classifica. Fugindo do conceito forjado de necessidade de procriação, o fato é que ela aconte-
ce na maioria das vezes por haver atração mútua, indiferente se forem homens ou mulheres os
sujeitos dessa atração. Mas, a ciência, o estado e a religião precisam criar nomes determinan-
tes desses sujeitos. Hoje em dia, questionam-se muito as chamadas identidades gays. Não é
possível determinar uma única característica que identifique uma pessoa como homossexual.
Até mesmo o uso deste termo passa a ser questionável. De fato, o que é um homossexual? O
que é ser lésbica? Ou então, como levanta Navarro-Swain, como alguém pode ser uma prática
sexual?
Meu argumento é que o lesbianismo não pode constituir uma identidade, já que esta
denominação não é senão um conjunto de questões, de práticas, diluídas no questio-
namento das categorias mulher e gênero. [...] Afinal, o que é o lesbianismo em uma
rede de sentidos dominada pela heterossexualidade, tal como se apresenta em grande
parte das teorias feministas? [...] Não é possível esquecer a frase de Witting: „Uma
lésbica não é uma mulher‟ (1980:53); definição em negativo, locus maior de resis-
tência ao patriarcado. Mas essa própria afirmação ainda se refere ao quadro de pen-
samento que coloca o lesbianismo num conjunto de práticas cuja referência central
são a sexualidade e o sexo. (NAVARRO-SWAIN, 2000, p.91-93)
As identidades são tão diversas e criadas de forma tão individualizadas, que não é
Mesmo assim, existem, como vimos, vários componentes construídos pelas rela-
ções sociais que acabam por categorizar a sexualidade humana. E é, a partir deles, que quem
Atualmente, a maneira mais generalizada que dispomos para definir quem transa
com o mesmo sexo é a categoria de “homossexual”, com todas as suas limitações.
Por mais daninhas que essa categorização possa ser, enquanto restritiva e negativa,
trata-se de um instrumento linguístico. [...] Se as objeções à “construção de uma
identidade guei” fazem sentido, também é verdade que não se pode negar uma
denominação qualquer ao desejo, ainda que por mera questão de método. [...] Pelo
simples fato de existir o desejo entre pessoas do mesmo sexo, é necessário referir-se
a ele sob algum tipo de denominação; caso contrário, no limite acabaríamos
voltando aos tempos da sufocante e hipócrita invisibilidade (“o anor que não ousa
dizer seu nome”), que só reforçava os mecanismos repressivos. (TREVISAN, 2000,
p. 37-38)
A classificação pelo sexo biológico significa ser macho, fêmea ou ainda interse-
xual ou hermafrodita. A identidade de gênero quer dizer ser mulher ou homem, mas o papel
de gênero já classifica a forma como nos comportamos na sociedade, ou seja, de formas mas-
culina, feminina, andrógina (SUPLICY, 1986). Esse papel pode ser definido por uma série de
questões, como pela vivência pessoal, pela cultura, pelo estado, pela religião, e, na sociedade
ra pessoas do mesmo sexo, do sexo oposto ou ainda para os dois casos. Foi daí que surgiram
30
atração sexual por outra mulher, ela acaba se orientando para ter relações homo afetivas e
eróticas. Mas isso não significa necessariamente que ela precise, para isso, assumir um papel
sexual diferente do seu. O mesmo se aplica com os homens. É nesse sentido que a confusão
sexuais como seres desconfortáveis com suas identidades de gênero, querendo modificar seu
De acordo com alguns autores, estes estereótipos provêm da premissa errônea de que
os componentes da sexualidade humana são inseparáveis, e que se um indivíduo di-
fere da norma em um destes componentes, deve diferir também em todos os outros.
No entanto, a maioria dos homossexuais não está confusa no que se refere à sua i-
dentidade de gênero: tem certeza de serem homens/mulheres, e poucos adotam um
comportamento efeminado/masculinizado. Neste sentido, pode-se dizer que “a tole-
rância para com a homossexualidade seria proveniente de uma mudança de represen-
tação dos sexos, não apenas de suas funções, de seus papéis a nível profissional e
familiar, mas de suas imagens simbólicas”. (ARIÈS, 1985: 80, apud NUNAN, 2003)
Por exemplo, uma mulher pode ser forte, ter cabelos curtos, não usar saias e ter
muitas tatuagens, ou seja, características socialmente masculinas, e, nem por isso, ser homos-
sexual. E, por outro lado, existem mulheres lésbicas extremamente femininas, com cabelos
compridos e que só usam vestidos e jóias. Da mesma forma, um homem pode ter característi-
cas do papel sexual feminino e, mesmo assim, ser heterossexual. São muito comuns hoje em
dia os chamados metrossexuais, que fazem as unhas, pintam os cabelos, usam cremes para o
másculos e machistas que só fazem sexo com outros homens. Qual a diferença essencial entre
esses vários tipos de seres humanos? Volto a afirmar: apenas seu objeto de desejo sexual. As
características assumidas ao longo da vida, como estilo de roupas e cortes de cabelo, são vari-
áveis individuais, construções familiares, sociais e culturais, únicas e singulares. Por isso, a
mulher tem o direito de assumir o papel de gênero que lhe convier, devendo ser respeitada por
A partir dos anos 70, esses vários questionamentos sobre sexo, gênero e identida-
com mais veemência, as mulheres lésbicas começaram a se questionar por que tinham que ser
mente constataram o fato de que eram discriminadas duplamente: por serem mulheres e por
serem lésbicas.
identidades foi o Movimento Feminista, uma revolução do século XX que foi fundamental
não só para a liberdade sexual que aos poucos era criada, como também para a conquista dos
direitos das mulheres, de uma posição mais justa dentro da sociedade e da diminuição da
“Le Deuxième Sexe” (1949; O segundo sexo), da francesa Simone de Beauvoir, e “The Femi-
nine Mystique” (1963; A mística feminina), da americana Betty Friedan. No Reino Unido
(1971; A mulher eunuco), considerado o manifesto mais realista do women's liberation movi-
ment (movimento de libertação da mulher), mundialmente conhecido como women's lib. Nes-
se momento, o que importava mais para as mulheres era descrever sua condição de oprimida
que incluísse também o corpo e os desejos. Além disso, contam-se entre as reivindicações do
ganham forças. O movimento feminista foi o principal responsável pelo início da libertação e
de 1969 e 19 de agosto de 1983. No dia 28 de junho de 1969, um ato de violência foi respon-
sável pela criação da primeira data em comemoração ao orgulho LGBT 14. Nesta data, polici-
ais invadiram, como de costume, o bar gay Stonewall Inn, em Greenwich Village, Nova York
e bateram em vários freqüentadores. Mas dessa vez, eles reagiram. Por quase quatro noites, os
gays se defenderam dos abusos dos policiais na mesma moeda. Um ano após o incidente,
cerca de 10 mil mulheres e homens homossexuais marcharam pelas ruas da cidade pedindo
justiça e pregando o orgulho gay. Foi o início das Paradas do Orgulho LGBT.
Entre os anos de 1969 e 1980, a chamada identidade gay surgiu, nas grandes cidades
brasileiras, juntamente com os primeiros movimentos pelos direitos dos homossexu-
ais. A construção dessa identidade foi um processo gradual, que começou nos anos
50 e 60, mas se estabeleceu na década de 70. Ela aconteceu graças, entre outros fato-
res: ao espaço social conquistado por homossexuais nos anos 60; à difusão de idéias
do movimento gay internacional; e a uma série de mudanças culturais trazidas pela
Revolução Sexual. A partir dela, ativistas homossexuais e diversas feministas alia-
ram-se contra o sexismo e a cultura machista, lançando as bases para a construção de
uma identidade e um movimento homossexual organizado. (SILVA, 2004, p.23)
14
A sigla LGBT, que traz as palavras Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros, é utilizada atualmente para identificar todas
as orientações sexuais minoritárias e manifestações de identidades de gênero divergentes do sexo designado no nascimento.
Incialmente, o termo mais comum era GLBT, mas cada vez mais se usa a versão LGBT com a intenção de reforçar o combate
à dupla discriminação de que são alvo muitas mulheres homossexuais (por serem "mulheres" e por serem "homossexuais").
33
violência policial contra as clientes. Após eles impedirem que elas distribuíssem o boletim
gays, feministas e parlamentares da época para uma passeata em frente ao bar. O jornal Lam-
data vem sendo celebrada por alguns grupos lésbicos como o Dia Nacional do Orgulho Lésbi-
co.
Ambas as datas têm muito em comum: ocorreram em dois grandes centros urbanos,
Nova York e São Paulo, em tempos sombrios (no Brasil ainda vivíamos sob a dita-
dura militar), quando a homossexualidade era considerada doença, pecado ou sem-
vergonhice e vítima de intensa repressão. (MARTINHO, 2007, disponível em
<http://www.umoutroolhar.com.br/28%20de%20junho.htm> , acesso em 10 nov.
2007)
A partir dos anos 70, a criação de movimentos organizados incrementou a luta pe-
los direitos e pelo fim das leis que criminalizavam a homossexualidade. A palavra de ordem
passou a ser assumir-se. Melhorias foram conquistadas. Nos EUA, por exemplo, os movimen-
Psiquiatria, conseguiram que dezoito estados anulassem as leis que puniam criminalmente a
sodomia, e que fossem aprovadas leis proibindo a discriminação em locais de trabalho e mo-
radia. Na França, várias revistas voltadas para as lésbicas surgiram nos anos 70: “Désormais”,
“Quand les femmes s’aiment”, “Bulletin des archives lesbienes”, “La grimoire”, “Lesbia”
nal Lesbian and Gay Association17, uma associação das entidades lesbianas com as entidades
15
. Em 1979, o “LF, Lésbico – Feminista”, lança o jornal “ChanacomChana”, veiculado até 1981. A partir de 1982, o GALF
– Grupo Ação Lésbicas Feministas assume a publicação e a transforma em boletim. (1979-2002..., 2004, disponível em
<www.umoutroolhar.com.br/25anos.htm>, acesso em 10 nov. 2007)
16
Jornal gay vendido no Brasil, de 1978 a 1981. Para mais, ver a tese de Almerindo Simões Jr., disponível em
<http://www.jornalismo.ufsc.br/redealcar/cd4/alternativa/a_simoes_jr.doc> (acesso em 10 out. 2007).
17
O ILGA é uma federação mundial que congrega grupos locais e nacionais dedicados à promoção e defesa dos direitos os
homossexuais, bissexuais e transgêneros. Funcionou por um tempo como órgão consultivo da ONU neste sentido. Ver
<http://www.ilga.org>.
34
gays masculinas que atualmente conta com mais de 600 organizações em cerca de 90 países
do mundo todo. E foi no mesmo ano que Gilbert Baker cria um dos maiores símbolos do ati-
vismo homossexual: a bandeira do arco-íris. Inicialmente com oito cores18, a bandeira gay
(rainbow flag) foi apresentada em 25 de junho de 1978, na “San Francisco Gay Freedon Day
Parade”, sendo carregada por 30 voluntários. Em 1979, ela já possuía somente seis cores e,
1978, dos grupos SOMOS – Grupo de Afirmação Homossexual, em 1979, e do “Grupo Gay
da Bahia”, em 1980, foi criado o primeiro movimento lésbico organizado, o “Grupo LF - Lés-
bico-Feminista”.
Era apenas o começo da luta pelos direitos, mas a palavra orgulho começava a fi-
gurar nos discursos dos homossexuais. Como uma das primeiras conquistas formais, fica o
baixo assinado com mais de 16 mil assinaturas que o Grupo Gay da Bahia, liderados por Luiz
Mott, conseguiu reunir. O Conselho Federal de Medicina não teve como negar a lista de assi-
naturas ao ler nomes como Fernando Henrique Cardoso, Ulysses Guimarães e Mário Covas
entre elas.
18
As cores eram: rosa (sexualidade), vermelho (vida), laranja (poder), amarelo (luz), verde (natureza), turquesa (magia), azul
(serenidade) e violeta (espírito), segundo o criador Baker. (disponível no site <http://en.wikipedia.org>, acesso em 17 nov.
2007)
35
na década seguinte, o que ficou marcado foram os atos de preconceito e homofobia desmedi-
dos. Tudo porque um determinado vírus iria aparecer deixando uma cicatriz profunda na co-
munidade LGBT.
cientização e, para piorar, a Igreja Católica ia contra o uso de preservativos. Da mesma forma,
as mulheres lésbicas não tinham onde se informar sobre as formas de prevenção nas suas rela-
impensada, mas providencial para os moralistas, a doença foi considerada a “peste gay”. Al-
guns homens célebres, como Freddie Mercury, Lauro Corona e Rock Hudson ficaram doentes
e morreram em decorrência do vírus HIV20 nos anos 80. Outros, que pegaram a doença nesta
década, vieram a falecer nos anos 90, como Cazuza, Caio Fernando Abreu e Renato Russo21.
Isso trouxe à tona um fato que eles preferiam manter em segredo por eles, sua orientação se-
xual. Surgia uma nova e maligna forma de “identificar” os homens que faziam sexo com ou-
tros homens.
Não por acaso, a epidemia da AIDS foi imediatamente associada à peste. No decor-
rer da História, o imaginário coletivo sempre encarou as doenças de massa como
castigos impostos. Tal idéia veio cair como uma luva, no caso da AIDS. Seu advento
propiciou, na contemporaneidade, esse raro momento de peste que derruba as más-
caras. Os fenômenos sociais aparentemente novos que a têm acompanhado constitu-
em, na verdade, apenas a revelação de algo que sempre esteve lá, de modo latente,
19
Infelizmente, a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis entre as lésbicas é algo pouco abordado pela mídia ou
pela medicina. Os grupos lesbianos cumprem esse papel informativo. A rede de informações “Um Outro Olhar”, por exem-
plo, desde 1995 desenvolve campanhas de prevenção de DST/AIDS para as mulheres, lésbicas ou não. Ver
<http://www.umoutroolhar.com.br/cartilha.htm>.
20
Vírus da Imonudeficiência Humana ou, em inglês, Human Imunnedeficiency Virus.
21
Rock Hudson, ator norte-americano, faleceu em 1985. Freddie Mercury, vocalista do Queen, e Lauro Corona, ator, morre-
ram em 1989. Cazuza, cantor, em 1991, Caio Fernando Abreu, jornalista e escritor, e Renato Russo, cantor, em 1996. A
maioria deles admitiu ter o vírus da AIDS pouco antes de falecerem.
36
mas rigorosamente camuflado. A AIDS nada criou. Ela está exacerbando elementos
que as convenções sociomorais não deixavam aflorar à luz do dia. In peste veritas:
na peste, o momento da verdade. (TREVISAN, 2000, p.436)
uma doença exclusiva dos grupos de risco. Esses grupos de risco seriam exatamente as pesso-
as que usavam drogas injetáveis ou os homossexuais, que, segundo o senso comum estabele-
cido, teriam uma vida sexual desregrada e inconseqüente, com vários parceiros promíscuos.
Mais uma vez os preconceituosos de plantão colocaram numa mesma categoria as delinqüên-
cias, o uso de drogas pesadas e a prática homossexual. Não adiantava o fato de ter sido retira-
do dos anais médicos como doença, a homossexualidade voltara a ter este estigma.
A visibilidade dos homossexuais passou a ser uma coisa negativa, pois, na maioria
das vezes, eles eram associados a pessoas esqueléticas, com manchas pelo corpo 22, que deve-
riam ser banidos da sociedade, pois continham um vírus mortal. A desinformação fez com que
que o HIV era transmitido pelo beijo, pelo abraço, por um simples carinho. O engano fez com
que muitos homens e mulheres morressem sozinhos, abandonados, sofrendo em silêncio, com
Acredito também que muito do pânico (sexual?) frente à AIDS pode estar relaciona-
do com antigas culpas não resolvidas que, através da condenação do outro (o sujo),
buscam purificar o acusador, num efeito de catarse. Mas a condenação, sejam quais
forem seus motivos, tem efeitos de longo alcance. O terrorismo, usado como eficien-
tíssimo instrumento de controle, irá atingir as gerações futuras muito mais do que as
atuais, forjando-lhes uma imagem basicamente negativa da homossexualidade e, por
extensão, instaurando novas fobias sexuais. (TREVISAN, 2000, p. 439)
22
O sarcoma de Kaposi comumente aparece como uma mancha cor-de-rosa, vermelha ou púrpura, redonda ou oval.
37
Como define muito bem Trevisan em suas palavras, o terrorismo instaurado e in-
centivado principalmente pela classe médica da época, fez com que muitos jovens crescessem
nos anos 80 acreditando que bater em homossexuais não era crime, era “prevenção”. A vio-
lência era agora, não só da polícia, como nos anos anteriores, era também dos amigos do co-
légio, dos vizinhos, de pessoas que passavam nas ruas e simplesmente atacavam um gay an-
dando à noite.
O cinema também não ajudava. Vários foram os filmes que incentivavam a vio-
lência contra os gays, e nos quais palavras como fag, faggot, queer eram usadas igual água
como ofensas. Em 1980, por exemplo, o filme “Parceiros da Noite” (“Cruising”) com Al Pa-
cino, trazia um policial que se infiltrava nos guetos e bares gays para descobrir um assassino
vários gays, causou uma série de protestos do movimento LGBT. Curiosamente, dez anos
antes, o diretor do filme William Friedkin (de “O Exorcista”), havia feito o sensível “Boys in
the Band” (1970), sobre um grupo de amigos gays que preparam uma festa de aniversário.
Segundo o documentário “The Celluloid Closet” (1995), esse foi um dos primeiros filmes em
ser divulgada de forma pejorativa, foi criada a Gays & Lasbians Alliance Against Defamation
(GLAAD)23. Seu objetivo principal era monitorar a mídia em sua forma de abordagem das
questões homossexuais e coibir qualquer tipo de difamação em filmes, jornais, revistas, pro-
gramas de TV, sites ou outros meios de comunicação. A GLAAD também foi responsável
pela criação de cartilhas para que os jornalistas, produtores e escritores aprendessem a usar a
23
Para mais, ver <http://www.glaad.org/>, acesso em 20 nov. 2007.
38
Em meio a esse caos, que trouxe muita tristeza, violência e medo para todos, o
movimento lésbico tenta, a durar penas, manter seu campo de ação através da ação mulheres
como Míriam Botassi, Rosely Roth e Regina Stella Moreira Pires, entre muitas outras. Elas
mantiveram-se engajadas como nunca no movimento pelos direitos, respeito e visibilidade das
porque as primeiras lésbicas brasileiras disseram abertamente “eu amo uma mulher” e não
ficaram somente nisso, também se organizaram. Míriam Martinho, uma das fundadora do
movimento lésbico brasileiro, em artigo publicado em 2006 no site “Um Outro Olhar”, escla-
Lésbico Feminista”, em 1981, este passou a ser o único movimento de mulheres exclusiva-
mente lésbicas do país nos anos 80. No entanto, muitas lésbicas organizadas migraram para o
Movimento Feminista, que manteve em sua pauta momentos de discussão política sobre a
sil, para divulgar a prevenção contra a AIDS e para combater o preconceito. Apesar de não ter
havido mudanças significativas nesta década, foi a partir da luta contra a AIDS que os movi-
mentos se tornaram mais fortes e que as Paradas do Orgulho Lésbico, Gay, Bissexual e
as ruas do mundo todo, celebrando o dia 28 de junho como o Dia Internacional do Orgulho
39
LGBT. Da mesma forma, surgia no Brasil um termo que iria ser fundamental para transformar
A genialidade dessa saída foi introduzir num contexto brasileiro, a idéia americana
de gay friendly, de modo simples e adequado ao nosso jeitinho. Ou seja, uma apro-
priação da popularíssima sigla que qualificava certos modelos de carro nas categori-
as GL (Gran Luxo) e GLS (Gran Luxo Super), bem ao gosto da população média e
de teor profundamente contemporâneo – o que facilitou a disseminação e implanta-
ção do conceito. (TREVISAN, 2000, p. 376)
Nesse sentido, foi estabelecido um critério que permitia que pessoas não necessa-
riamente homossexuais pudessem passear por ambientes gays e lésbicos sem medo de repre-
sálias. Era uma forma de, ao mesmo tempo, democratizar o espaço denominado território gay
de invisibilidade sem que parassem de freqüentar o gueto. (TREVISAN, 2000) A sigla foi
importante também por ter aumentado a divulgação de produções culturais voltadas e feitas
por homossexuais.
O caso mais exemplar foi o Festival Mix Brasil da Diversidade Sexual, um amplo
painel de filmes que investigam expressões marginais da sexualidade, cuja primeira
edição aconteceu em 1993. [...] O que alavancou o Mix Brasil foi o fato de ter inau-
gurado o primeiro site GLS brasileiro na internet, em 1994, garantindo-lhe prestígio
como evento cultural de ponta, que tendia para um underground não apenas glamou-
roso, mas de grande apelo na mídia. (TREVISAN, 2000, p. 376 – 378)
Dentro do Mix Brasil, foi criada a revista eletrônica Cio, voltada para as lésbicas,
veiculada até hoje24. Foram lançados também vários jornais e revistas voltadas para o público
homossexual. Entre elas, a carioca Sui Generes, sobre comportamento, e a paulista G Magazi-
ne, que mostrava em suas páginas homens famosos nus e, com isso, se tornou uma campeã de
24
Ver <http://mixbrasil.uol.com.br/mp/2.shtml>, com destaque para os artigos da cantora e ativista lésbica Vange Leonel.
40
vendas. Da mesma forma, surgiram a primeira livraria exclusivamente gay do pais, a paulista
Futuro Infinito e a Edições GLS, que publicavam livros de ficção e ensaios sobre a homosse-
efetiva de uma real campanha de prevenção contra a AIDS, e, através do Ministério da Saúde
criou, em 1992, o Programa Nacional de Prevenção e Controle da AIDS. Aos poucos, o avan-
ço nas tecnologias em pesquisas científicas e médicas em todo o mundo fizeram com que o
foco saísse dos grupos homossexuais para as mulheres e homens heterossexuais, pessoas que
de de vida aos portadores da AIDS. Desde 1994, os coquetéis com drogas anti-HIV passaram
a ser produzido no país quase que em sua totalidade e distribuído gratuitamente. Aos poucos,
o estigma visual da doença foi desaparecendo, os aidéticos passaram a viver mais tempo e em
çaram a circular com mais freqüência na mídia nacional. Foi nesse momento que os movi-
Durante os anos 1990, uma série de fatores – como o formato de colaboração adota-
do entre Estado e sociedade civil na luta contra a Aids, a visibilidade que a própria
epidemia trouxe ao tema das (homo)sexualidades e a expansão de um mercado seg-
mentado voltado ao público GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) – colaboraram pa-
ra o reflorescimento das iniciativas militantes. Houve um aumento do número de
grupos e organizações e a expansão do movimento por todos os estados do país. Re-
gistra-se uma diversificação de formatos institucionais. (FACCHINI, 2005)
41
Além disso, foi neste contexto que os movimentos lésbicos brasileiros criaram
mais grupos e mais encontros. Longe ainda de ser o ideal, esses grupos pequenos e com pou-
cas mulheres levantaram o tema da visibilidade como nunca em discussões políticas, ideoló-
gicas e sociais. E, no dia 29 de agosto de 1996 foi realizado o primeiro Seminário Nacional de
pantes do evento criaram uma nova data nacional para se homenagear a mulher lésbica. O Dia
2003, com participação de vários grupos do país, como o Mo.Le.Ca., de Campinas, o Nuan-
Dia Nacional da Visibilidade e Orgulho Lésbico ainda é pouco lembrada pelo país.
proporcional nesta década, sendo que de após reunir apenas 02 mil pessoas em 1997 e 07 mil
em 98, em junho de 1999 a 3ª Parada LGBT levou para as avenidas centrais de São Paulo
mais de 30 mil pessoas. (TREVISAN, 2000) Era um lugar não só de comemoração, como
Na esteira das grandes Paradas de São Paulo, que continuaram num crescendo a ca-
da ano, as ativistas lésbicas começam também a movimentar-se para conseguir mar-
car presença. A Rede de Informação Um Outro Olhar inicia esse processo em 1999
se postando no início das Paradas, quando ainda era possível fazer isso, carregando
faixas relativas à liberdade de expressão sexual. Em 2001, faz a Parada numa truck,
tendo em vista a necessidade de distribuir material, no que foi imitada por um outro
veículo (um trenzinho) de um outro grupo de lésbicas. (MARTINHO, 2006, dispo-
nível em <http://www.umoutroolhar.com.br/símbolos_vismal.htm> acesso em 10
nov. 2007)
42
to de 1998, aproveitando as comemorações do Miss Brasil Gay25, o casal formado pelo fun-
cionário público Marco Trajano e pelo publicitário Oswaldo Braga reuniu personalidades do
município como o psicanalista e psicólogo José Eduardo Moreira Amorim, o advogado Mar-
ram a primeira discussão sobre a cidadania e o direito dos homossexuais. Dois anos depois,
foi aprovada também na cidade mineira, uma das primeiras leis nacionais que garantia a mu-
público, com pena prevista para quem coibisse ou discriminasse beijos e carinhos entre o ca-
sal. A lei número 9.791, de 12 de maio de 200026, chamada Lei Rosa, além de ter sido pionei-
ra, permitiu que a cidade entrasse de vez no movimento LGBT. No dia 28 de junho de 2000, a
partir de uma sugestão de membros do Ministério da Saúde, Marco Trajano e Oswaldo Braga
fundaram a organização não-governamental MGM – Movimento Gay de Minas, que até hoje
lhos sobre o poder aquisitivo das lésbicas e dos gays. No início da década de 2000, várias fo-
ram as leis que garantiram o direito dos homossexuais no mundo todo. A união civil entre
casais do mesmo sexo passou a ser permitida em países como o Canadá e a homofobia foi
considerada crime na maioria dos continentes, numa corrente bem contrária a do início dos
25
O Miss Brasil Gay é um concurso criado em 1977, no qual homens transformistas concorrem como misses. O concurso,
que acontece há 31 anos em Juiz de Fora, foi criado como uma brincadeira carnavalesca. Não são aceitas travestis ou “silico-
nizadas”, conforme as regras do concurso. (disponível em <http://www.acessa.com/zonapink/historia.apl>, acesso em 17 nov.
2007)
26
O texto completo da lei pode ser encontrado no site <http://www.mgm.org.br/portal/>.
27
Segundo dados da Polícia Militar, a 5ª Parada do Orgulho GLBT de Juiz de Fora reuniu em 2007 mais de 120 mil pessoas.
Apesar de acontecer há cinco anos, pela primeira vez um trio exclusivo de lésbicas participou da parada. Além disso, a ativis-
ta do MGM Márcia Oliveira foi escolhida pelos homens do grupo a Rainha da Parada, representando tanto a lesbianidade
quanto a raça negra.
43
No Brasil, uma das mais significativas decisões da justiça foi conquistada após a
morte de Cássia Eller. A cantora brasileira, considerada uma das maiores intérpretes do país,
anos de idade.
populares28, a justiça concedeu a guarda definitiva de Chicão, então com 08 anos, para a com-
panheira Eugênia. Foi um caso inédito, que abriu jurisprudência para que outros parecidos
saíssem vitoriosos. Na época, apesar de Cássia Eller não ter deixado um testamento oficial, as
muitas entrevistas em jornais, revistas e televisão serviram como prova do direito de materni-
Casos como esse só foram possíveis porque se criou mais espaço na mídia para o
foram surgindo, com informações vitais para o conhecimento, tanto da causa quanto das ca-
No III Fórum Social Mundial, que aconteceu em Porto Alegre em janeiro de 2003,
nascia a Liga Brasileira de Lésbicas – LBL, durante a Oficina de Visibilidade Lésbica, que
28
Um desses movimentos foi o Projeto Experimental Teoria e Prática pela Emancipação Feminina – EMANCIPAR, da
Universidade Federal de Juiz de Fora, coordenado pela Professora Dr.ª Cláudia Regina Lahni. Na época da disputa judicial,
reuniu um abaixo assinado com mais de 300 assinaturas a favor da adoção de Chicão e enviou para os advogados da cantora.
44
de Lésbicas, que aconteceu em junho do mesmo ano em São Paulo, aconteceram as primeiras
reuniões e plenárias da LBL, que significou a reunião de vários grupos do país que tinham o
mesmo objetivo. Na ocasião, junho de 2003, foi realizada a I Caminhada Lésbica do Brasil,
em São Paulo29.
civil organizada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, foi lançado o “Programa de
xual” 30, que prevê uma série de ações nas áreas da saúde, segurança pública, trabalho, educa-
ção e cidadania. Até hoje, as entidades homossexuais e o Programa Nacional DST/AIDS têm
tempo, as paradas do orgulho LGBT se expandiam para diversas cidades do país e do mundo,
e conseguiam, a cada edição, um número maior de adeptos. Em 2007, segundo dados dos or-
ganizadores, a XI Parada do Orgulho GLBT de São Paulo reuniu na Avenida Paulista 3,5 mi-
lhões de pessoas no dia 10 de junho de 2007. Os dados também apontam esta como sendo a
família, com a homoparentalidade sendo cada dia mais aceita, e com personagens lésbicas
americanas. Nesse contexto, no qual pela primeira vez o gay saía da posição de vítima para se
tornar um dos principais públicos alvo do mercado de consumo, que encontrou nos homosse-
xuais uma oportunidade de vender mais. Segundo pesquisas, eram neles que se concentravam
29
Sobre a Liga Brasileira de Lésbicas e os grupos atuais, ver o documentário “Lésbicas no Brasil” (2004), de Maria Angélica
Lemos, e o vídeo “A Liga Brasileira de Lésbicas”, da mesma diretora, que está disponível no site
<http://br.youtube.com/watch?v=rEPUjKPhp1g>, (acesso em 21 de nov. de 2007)
30
O texto completo do Programa Brasil Sem Homofobia está disponível no site <http://www.aids.gov.br/>, acesso em 21
nov. 2007.
31
Disponível no site <http://www.paradasp.org.br/parada2007/> acesso em 20 nov. 2007
45
a maior renda salarial. Afinal, os casais homossexuais masculinos do novo século têm ótimos
empregos e ganham muito bem, não tendo uma grande família para sustentar. Além disso, são
taxados como pessoas de gosto mais refinado e exigente. Mas isso não é exatamente a reali-
As lésbicas sofrem duplo preconceito, por exemplo, tanto por serem homossexuais
quanto por serem mulheres. A renda dos casais de lésbicas também tende a ser me-
nor porque mulheres geralmente ganham menos que homens e muitas lésbicas pos-
suem filhos pequenos. [...] Por todas essas razões o mercado para lésbicas é diferente
do mercado para gays. Característica principal do mercado homossexual (sobretudo
o masculino) é que pelo fato da maioria não ter filhos a renda disponível no final do
mês para gastar com artigos considerados supérfluos é muito maior. Assim, estes ca-
sais poderiam viajar mais, ou gastar com artigos de luxo, por exemplo. O nível de
exigência deste público também é muito maior, assim como propaganda boca-a-boca
dentro da comunidade homossexual. (NUNAN, 2003)
forma de se enxergar os homossexuais, como alvo de consumo, para expô-los mais. Progra-
mas de TV, comerciais, restaurantes, eventos específicos, entre outros produtos culturais e
comerciais foram lançados para vender mais dentro do universo LGBT. Da mesma maneira, a
chegada do novo século criava uma nova forma de estereótipo para a mulher homossexual.
32
O termo Lesbian Chic foi criado em 1993, pela revista americana “New York Magazine” que abordava o tema e trazia a
cantora lésbica K.D. Lang na capa. Lesbian Chic representava as lésbicas super femininas, ou lésbicas de batom (lipstick
lesbians)
46
que vêem na relação entre duas mulheres uma fantasia sexual trouxe também um novo tipo de
preconceito. Muitos comentários do senso comum dizem que a maior aceitação da imagem
das lésbicas acontece porque elas habitam o imaginário masculino há milênios. Ou não é fato
que a mídia, principalmente através dos filmes eróticos e pornográficos, vende a imagem da
culo XXI? Após tantos anos de opressão à homossexualidade, será que finalmente a visibili-
dade é algo possível de fato? As leis, as paradas, o mercado LGBT, a quantidade de informa-
ções disponíveis sobre o assunto, será que isso tudo indica um novo tempo para a mulher lés-
bica?
A 'lesbian chic' agora está na moda, ou seja, a mídia está dizendo à sociedade que
essa mulher é legal. É legítima. (Claro que se está de olho em uma fatia de mercado
promissora) [...] Se por um lado isso é negativo, por estigmatizar os outros modelos
de comportamento de lésbicas, por outro ajuda a proporcionar a visibilidade de mu-
lheres que, embora obedeçam, na aparência, os critérios de gênero aceitos social-
mente, como maneira de se vestir e comportar (provavelmente sentando de perni-
nhas fechadinhas), em suas relações afetivo-sexuais desobedecem totalmente estes
padrões. São mulheres que não apenas fazem sexo com outras mulheres, mas, o que
é muito mais desconcertante para a sociedade hetero-patriarcal, que não precisam de
homens que as "protejam" que abram seus potes de picles e troquem suas lâmpadas.
Que falem por elas e as sustentem, assim como às suas proles.Enfim, a partir da a-
ceitação deste modelo, o imaginário social pode ser trabalhado para compreender e
legitimar as lésbicas de maneira geral. (FACCO, 2004, disponível em
47
<http://mixbrasil.uol.com.br/cultura/entrevis/entrev/carioca/carioca.asp>, acesso em
20 nov. 2007)
O mais importante disso tudo é tentar entender que, no mundo atual e mais do que
nunca, a mulher está conquistando o direito de ser mulher, de se mostrar como mulher. E,
bem da verdade, assumir-se lésbica é assumir-se mulher acima de tudo. Não significa querer
ser homem. Significa querer ser mulher em toda sua essência, sem se preocupar com os pa-
drões de estilo, vestuário, comportamento. É estar segura do que se quer, e ter a liberdade de
conquistar, o respeito para seguir seu desejo e o prazer de aproveitar sua vida do jeito que
quiser. Muitas vezes a mulher lésbica usa a postura masculina para ser mais bem aceita na
sociedade, para que não sofra a dupla discriminação de ser mulher e de ser lésbica. Porque
sendo forte, sendo como os homens, não há quem se meta com ela. Ou então, usa da sensuali-
dade para que, sendo atraente, não seja alvo de discriminação. Mas até que ponto essas carac-
terizações não são máscaras usadas para tentar achar um lugar na sociedade?
lo XXI que seja voltado para ela podem significar uma ajuda para que fim dos antigos pre-
conceitos seja real. E a quebra dos estereótipos, a re-significação de termos pejorativos, a ga-
rantia através de leis que a violência sexual será punida, juntamente com a conquista da liber-
dade e do respeito, podem permitir que a mulher se valorize como mulher, se mostre mais,
siga seus próprios gostos, entenda seu estilo, se conheça melhor. A visibilidade traz visibili-
dade.
símil, realista e honesta, ela perde o medo de se mostrar, de ser ela mesma.
Numa época em que uma imagem vale mais que mil bla-bla-blás, a homossexuali-
dade feminina ganha espaço estampando as telas de cinema e TV. [...] Na TV, a sé-
rie “The L Word” (também produzida por lésbicas) chega a sua quarta temporada (a-
qui no Brasil assistimos atualmente a terceira). No âmbito da produção nacional de
massa, duas novelas globais tiveram, nos últimos anos, casais de garotas em seus e-
lencos. Uma nova série brasileira da HBO também vai contar com um casal de lés-
48
Com essa imagem lesbiana sendo estabelecida nos anos 2000, é importante, antes de
pode-se entender a importância da série “The L Word” para a identidade da mulher lésbica
contemporânea, para o movimento político das lesbianas, para as representações sociais e para
NARRATOR: "About women and the women who love them" The
L Word is sure to make television history, and it's been a long time
coming. In 1991, TV saw its first lesbian kiss on L.A. Law, shortly
after, CJ, the bisexual lawyer, saw the door. A few years later, Ro-
seanne was kissed, and even Party of Five's very own good girl
got confused. But even the smallest same-sex smooches have been
cause enough for uproar and fallout. But in recent years, with the
success of shows like Queer As Folk, Will & Grace and Queer Eye
For The Straight Guy, America has proven it's ready to experi-
ment... or is it?
ERIC MABIUS: It's the same as watching any other hour-long ex-
cept that there are circumstances that we're not used to seeing on
television. To that extent, it is groundbreaking.
(THE L WORD DEFINED, 2004)
3. AS SÉRIES DE TV NORTE-AMERICANAS
porquês deste gênero de ficção ter ganhado tanto espaço, projeção de mercado e até cursos
Uma feiticeira que torce o nariz e torna tudo possível. Uma bela gênia que sai de sua
garrafa milenar transformando sonhos em realidade. Uma noviça que voa. Uma nave
espacial que vai até nenhum outro homem jamais esteve. Um impagável grupo de
amigos que encanta Nova York. Um detetive compulsivo que não pode ver nada fo-
ra do lugar... São incontáveis as imagens e situações que há décadas povoam o nosso
imaginário coletivo, graças a uma dos maiores manifestações da cultura popular do
nosso século: as séries de televisão. (FURQUIM, 2007, disponível em
<www.planetatela.com.br>, acesso em 16 nov. 2007)
údo, investimento nas produções e sucesso com o público. Atualmente, estão sendo mais elo-
giadas e, de certo modo, assistidas, do que os filmes no cinema. Primeiro por serem mais cur-
tas e por passarem na TV, na comodidade do lar. Segundo por manterem o cuidado de produ-
Escrevo sobre cinema há muito anos e, a certa altura, começou a me inquietar o fato
de todos os meus amigos comentarem quase só sobre séries e eu não saber do que se
tratava. Quando comecei a prestar atenção, vi que havia ali uma nítida ruptura inclu-
sive em relação ao que o cinema americano produziu nos últimos dez anos. Peguei o
assunto e mergulhei em estudos para saber se alguém já havia pesquisado. [...] Não
vejo no cinema americano hoje nada parecido com a ousadia no tratamento e a in-
ventividade formal que as séries trazem. [...] Enquanto um filme envolve uma pro-
dução de centenas de milhões de dólares, uma série, por ser mais barata, dirigida a
públicos menores e mais específicos, pode furar vários sinais, ou seja, tomar muito
mais liberdades que um 'blockbuster'. E isso obviamente se reflete no modo como
elas conseguem reproduzir o mundo em que estamos vivendo. (STARLING, 2006,
disponível em < http://televisao.uol.com.br/ultnot/2006/12/11/ult698u11853.jhtm >
acesso em 16 nov. 2007)
Por ser uma mídia que reconquista o público semanalmente, e por ficarem no ar
por anos, os seriados acabam por criar uma legião de fãs que acompanham todas as tempora-
51
das, não perdem as estréias, antecipam-nas através de donwloads33 na internet, revêem as re-
prises, compram as coleções34 que são lançadas em DVD e continuam a discussão sobre os
de bate-papo. Já por outro lado, percebe-se que é na série de TV que a homossexualidade en-
contra hoje o seu retrato mais verossímil, com personagens que fogem dos estereótipos nega-
tivos.
Minha pretensão neste capítulo é focar nos seriados dos Estados Unidos por ser
este país, desde sempre, o mais tradicional exportador deste produto cultural, com quase duas
mil35 séries de dramas, comédias, policiais, reality shows36, entre outros temas, sendo assisti-
das em vários países, todos os dias. Além disso, é nesse universo que se insere o contexto de
“The L Word”.
É um fenômeno como antes nunca visto, mas ainda pouco estudado nos meios a-
existe de teoria publicada sobre o assunto. Minha maior fonte de conhecimento para este capí-
tulo foram, além da internet, os cadernos de cultura dos jornais, como a Revista da TV, do
Jornal O Globo, que atualmente traz colunas específicas sobre as séries de TV e sobre os ca-
nais por assinatura. Não posso deixar de citar que eu mesma faço parte desta legião de fãs
mencionada acima. E, por isso, coloco em minhas palavras muito da minha vivência pessoal e
33
Os episódios em arquivos do tipo AVI ou MPEG, por exemplo, são baixados de sites da internet.
34
As coleções são as temporadas inteiras das séries, geralmente com 12 a 20 episódios, lançadas em DVD e vendidas nos
chamados Box. Tornaram-se uma febre de vendas e de locações nos últimos anos.
35
Dados obtidos no site <http://epguides.com/>, acessado no dia 15 de novembro de 2007.
36
Apesar de ser gênero não-ficção, o Reality Show também é considerado uma série de TV.
52
te. Segundo ele, esse veículo se sobressai das outras mídias por ser mais perspicaz, já que in-
troduz uma linguagem diferente e responsável primeiro, por atrair o receptor e, depois, por ser
percepção da sociedade e da cultura. Outra característica apontada pelo autor é a tensão entre
Para conseguir esse efeito, antes mérito do cinema, os canais de televisão criaram
gêneros dramatúrgicos específicos para apresentar a ficção. Entre eles, estão o unitário, a mi-
e determinadas, e o seriado a uma coleção de contos com personagens fixos e objetivo autoral
único. (PALOTTINI, 1998). Em comum, eles têm como característica a curta duração de suas
seus roteiros dos brake, ou intervalos comerciais, com seus devidos ganchos narrativos. São
esses ganchos que criam a tensão e expectativa necessárias para que a audiência permaneça na
trama mesmo após esses intervalos e para que não deixe de acompanhar os próximos capítu-
pisódios independentes que têm, cada um em si, uma unidade relativa. O episódio de seriado é
construído de tal forma que permite a possibilidade de assisti-lo com fruição, já que, na maio-
ria das vezes, ele tem começo, meio e fim. Às vezes não é possível entender por completo a
história de uma ou outra personagem, pois ela pode ter sido apresentada em um momento
53
A unidade total, ou temporada, é inerente ao conjunto dos episódios, mas não se-
pesar disso, muitas vezes uma temporada, com duração que varia de 12 a 22 episódios, encer-
ra em si uma parte da trama e aponta os indícios do que vai acontecer no ano37 seguinte. As
séries também são características por não haver um tempo determinado de exibição. Como
exemplo, temos “E.R.”38, sobre um pronto socorro em Chicago, que é produzida há 14 anos
ininterruptos, ou “Friends”, uma das séries mais famosas de todos os tempos, que ficou 10
anos no ar e ainda é vista através de reprises. Da mesma forma, quando as séries não têm su-
cesso comercial ou de público, são prontamente canceladas por seus produtores executivos39.
Algumas nem sequer apresentam um final para a trama, terminando a exibição dos episódios
37
Ano, neste caso, adota o mesmo significado de temporada, apesar de, na escala temporal, não durar necessariamente doze
meses. Podem durar de 12 a 22 episódios, exibidos semanalmente ou não.
38
Para efeito de padronização, adotarei os nomes originais das séries. Muitas tiveram adaptações para o português quando
exibidas no Brasil, mas os nomes variam de canal para canal. Por exemplo, nos canais por assinatura, “ER” permaneceu dessa
forma, enquanto na Rede Globo, o seriado obteve o nome “Plantão Médico”. Nos casos em que os nomes adaptados são mais
conhecidos do que os originais, manterei as duas versões.
39
Nos Estados Unidos, seguindo o modelo hollywoodiano, os produtores executivos são os donos dos canais de televisão.
Eles bancam a produção dos programas, contratam equipe técnica e roteiro e comandam toda a comercialização do produto.
São eles que determinam o tempo que uma série fica no ar, conforme o lucro que ela gera.
54
A unidade total do seriado pode ser dada pelos protagonistas, pelo tema, ou pela
época, ligada, às vezes, ao local de ação. Mas, fundamentalmente, ela se dá por um objetivo
autoral, uma visão de mundo que pretende-se transmitir (PALOTTINI, 1998). Com força co-
mercial expressiva, as séries de televisão estão cada vez mais assumindo o papel que, nos a-
nos 50, era do cinema: o de ditar regras de conduta e comportamento para a sociedade. Seus
roteiros costumam adotar um tema específico, e, como têm muita liberdade de assunto, aca-
bam voltados para um determinado público, existindo séries de drama, de comédia, de ficção,
de suspense, de terror, policiais, sobre a vida de médicos, que contam histórias verídicas, de
outros temas.
Cada uma, em seu contexto, mostra a vida e a cultura com um toque de fantasia,
de humor, de novidade e principalmente, de muita ousadia. O fato é que refletem, muitas ve-
de forma verossímil. Com essa gama de temas e formas de contá-los, as séries televisivas
conquistam um número cada vez maior de espectadores e seguidoras, que acompanham fiel-
Ao longo de sua criação, e através dos episódios, os seriados adquirem seus signi-
ficados totais. Os autores elaboram os casos, os enredos, as tramas que podem envolver aque-
le grupo específico e que tenham a ver com a filosofia geral da série, seu tema principal. Por
sua vez, cada uma das personagens, criada e construída no começo de tudo, amadurece e se
55
modifica ao longo das temporadas. De igual forma, com o passar do tempo, o público que a
dade, de amizade, já que uma pessoa acaba “vivendo” ao lado da outra por muito tempo, co-
nhecendo seus problemas e suas conquistas, torcendo por suas empreitadas, chorando quando
devem partir.
Em “The L Word”, como será visto à frente, cada temporada significa um período
rada, uma tenista assumir sua homossexualidade para a imprensa, enquanto um casal de mu-
enquanto a recém assumida tenista descobre-se apaixonada pela melhor amiga. Já na terceira,
a criança vira o único motivo de vínculo entre as mães, recém separadas, enquanto acompa-
nhamos a jovem e atlética tenista descobrir-se com câncer e falecer, ao final da temporada. Já
no quarto ano, sentimos a falta da personagem tenista, enquanto o bebê já vira uma menininha
e acaba sendo disputada na justiça pelas mães. Enquanto isso, muitas das telespectadoras pas-
sam pelos mesmos processos, principalmente por verem suas vidas representadas na tela com
tanta verdade, e acabam saindo do armário, escolhendo por ter filhos na relação, investigando
para saber se não estão com câncer de mama, chorando por perderem uma “amiga” de tanto
tempo.
identificação com as personagens não puder acontecer, não há o interesse por parte do expec-
tador. As roteiristas e os roteiristas de séries, a todo momento acompanham a vida virtual que
que lhe foi dada, pode acontecer, e de fato aconteceria, àquele individuo de ficção? Ou de que
maneira ele se relacionaria com os demais? A rigor, seriado não tem sinopse. Faz-se uma re-
56
lação muito bem feita dos personagens e suas características, seu desenho pessoal, seu retrato.
Deixa-se bem definido, depois de muita discussão, o que pretende o seriado, qual é a sua filo-
sofia. E o restante é imaginação bastante livre. Os episódios precisam apenas ser interessantes
e não colidir com o que ficou estabelecido como básico e fundamental no caráter dos perso-
nagens, na sua vontade, nos seus objetivos, no chamado piloto da série. (PALOTTINI, 1988)
são e como são; mostrar suas relações com os demais, seu modo de ser, suas crenças, seus
desejos, seus objetivos de vida, o estágio em que estão. Deve-se dar a situação básica da co-
munidade ou do grupo que se quer tratar e, provavelmente, o problema inicial que deu origem
ao estado atual de vida de todos. Esse primeiro episódio chama o espectador e o induz a ver a
série: deve ser interessante, estimulante, curioso. Mostra as personagens e, claro, as atrizes e
os atores que da trama vão participar. Outras atrizes entram posteriormente nas séries e, co-
mumente, há muita troca de elenco entre uma temporada e outra. Já os demais episódios terão
sempre algo a ver com o que foi lançado no primeiro. Se surge uma novidade total, algo que
Com esse formato estabelecido, com essas características tão peculiares, as séries
de TV ocupam um lugar cada vez mais recorrente no imaginário coletivo e nas produções
culturais de massa do século XXI. E tem sido assim desde seus primeiros episódios.
No início da TV, fim dos anos 40, os curtas-metragens produzidos para o cinema
nas décadas anteriores acabaram sendo uma das origens do formato seriado. Comprados e
57
Magro” fizeram sucesso entre os jovens daquela e das gerações seguintes. Mas uma das pri-
meiras séries de TV a ser produzida foi “I Love Lucy”, que acabou se tornando referência do
gênero sitcom, ou comédia de situação40, e é, até hoje, lembrada como um dos maiores suces-
sos televisivos de todo o mundo, estando, inclusive, na lista “The 100 Best TV Shows of ALL-
TIME” da Revista TIME41. “I Love Lucy” estreou em 15 de outubro de 1951 na CBS42 e, de-
pois de 180 episódios, teve sua temporada final em 1957. Neste período, e com suas reprises,
ditou moda no mundo todo ao reforçar a visão consumista, conservadora e machista do “Ame-
rican Way of Life” 43, tão difundido pela mídia americana nos anos 50 e reforçado no cinema
pelo “Código Hayes” e sua censura. A protagonista Lucile Ball e seu companheiro Desi Ar-
naz repetiam o matrimônio da vida real em sua série, onde o marido, um produtor artístico,
era sempre envolvido pelas trapalhadas de sua mulher, desajeitada e doidivanas. E, dessa for-
Essa série acabou definindo praticamente toda a gramática do gênero comédia, in-
clusive no que se refere à gravação dos episódios: três câmeras em um estúdio, com público
ao vivo perante uma claque, cujas risadas gravadas são reproduzidas durante a exibição. As
risadas persistem até hoje na grande maioria das sitcoms. Foi nessa época também que foram
definidos o tempo padrão das séries conforme o gênero, praticado até hoje: as comédias ou
séries com temas do cotidiano têm episódios com duração média de 30 minutos (sem os inter-
(com os descontos dos comerciais, 46 minutos). A partir deste padrão, foram criadas as grades
40
Os sitcoms são comédias de situação, crônicas do cotidiano que a televisão exibe, normalmente sob a forma de seriados,
com apresentação semanal de episódios que variam entre 30 a 40 min., tirando os intervalos comerciais. (DUARTE, 2007)
41
Informação obtida no site http://www.time.com/time/specials/, com acesso em 17 de novembro de 2007. Outras séries que
serão citadas neste capítulo também fazem parte desta lista, como “Dallas”, “Seinfield”, “The X-Files”, “Friends”, “Sex
and the City”, “The Sopranos”, “Six Feet Under”, “24” e “Lost”.
42
CBS é a siga de Columbia Broadcasting System, considerada uma das maiores redes de rádio e TV dos Estados Unidos.
43
Estilo de vida americano, exaltado após os anos 30 nos EUA como sendo ideal da classe média, com a formação de famí-
lias conservadoras e tradicionais nas quais o homem trabalha enquanto a mulher cuida do lar. Era um reforço do capitalismo
americano em depreciação do socialismo. Foi difundido no mundo pelo Cinema e, nos anos 50, pela televisão.
58
exemplos de séries desta época são “Father Knows Best” (“Papai Sabe Tudo”), “Dragnet”, e
“The Honeymooners”.
séries. São deste período grandes sucessos, que ainda seguiam os pontos de vista sexistas e
conservadores das primeiras comédias e dramas, como “Bewitched” (“A Feiticeira”) e “I Dre-
am of Jeannie” (“Jeannie é um Gênio”). Na primeira, uma bruxa faz de tudo para esconder
seu verdadeiro talento e tenta se encaixar nos padrões paternalistas da sociedade, mantendo
uma casa e um marido conservadores. A transgressão acontece nas atitudes de Endora, mãe da
personagem, imortalizada pela atriz Agnes Moorehead. Sua maior questão era tentar entender
simplesmente seguir sua vocação de bruxa. Já a segunda, que também mostrava elementos de
fantasia, trazia uma Jeannie (Barbara Eden) que tudo fazia para conquistar o amor de seu "a-
mo", o Major Nelson (Larry Hagman). Mesmo assim, se forem analisadas profundamente, é
[...] até séries aparentemente ingênuas e não politizadas, como I Love Lucy ou Jea-
nie É um Gênio, retratam mudanças políticas, sociais e comportamentais nos EUA.
Lucy é uma mulher do pós-guerra que quer mudar sua situação na sociedade, quer
ser um agente social e não mais dona de casa. Jeanie é a primeira mulher solteira a
viver na casa de um homem. “A Feiticeira” é uma tentativa de adaptação de diferen-
tes, ligados pelo amor, e traz pela primeira vez um casal que dormia em cama de ca-
sal, coisa impensável até então nos puritanos lares americanos. (ANGELO, 2001,
Jornal da Tarde)
sucesso de “The Twilight Zone” (“Além da Imaginação”). Criada por Rod Sterling em 1959, a
série apresentava episódios isolados que abriam espaço para um comentário crítico sobre a
sociedade de então, mergulhada na paranóia da guerra fria. Esse contexto fantástico acabou
funcionando como pretexto para que outras séries se aprofundassem em alguns temas mais
59
ousados, como a mais importante e influente delas: “Star Trek” (“Jornada nas Estrelas”), que
Gene Rodenberry lançou em 1966. Menos ambiciosas, mas igualmente marcantes foram “Lost
the Sea” (“Viagem ao Fundo do Mar”) e “Land of the Giants” (“Terra de Gigantes”). (SILVA
JR., 2004)
Aproveitando a onda das revoluções, das novas estruturas sociais e sob influência
da cultura pop que se estabelecia na segunda metade dos anos 60, surgiram ainda tentativas
No começo dos anos 70, os roteiristas começaram a ousar um pouco mais nos te-
televisão. Era a vanguarda das séries televisivas, com “The Mary Tyler Moore Show” de 1970,
como o primeiro programa que trazia uma mulher independente, solteira, feminina e trabalha-
dora como protagonista. Já “MASH”, de 1972, veio do cinema e criticava a instituição militar
anos, fixado no imaginário das platéias norte-americanas. Seu episódio final se mantém há
ções cerebrais, eles passam a incorporar o jeito malandro e malicioso das ruas, com ritmo ágil
1976. Trazendo, pela primeira vez, três belas e inteligentes mulheres como heroínas, Charli-
e’s Angels aproveitava as novas configurações sociais conquistadas com a revolução feminista
do fim dos anos 60. As atrizes Kate Jackson (Sabrina Duncan), Jaclyn Smith (Kelly Garrett),
Farrah Fawcett (Jill Munroe), formaram o primeiro e mais famoso trio. As três Panteras eram
tetives Towsend. Resolviam os casos com muita sagacidade e sensualidade, sempre tomando
suas próprias decisões. O dono da agência era Charlie Townsend (na voz de John Forsythe),
que só aparecia através de um aparelho de viva voz, e que passava as coordenadas através de
seu homem de confiança, John Bosley (David Doyle). A série mostrava, numa das primeiras
vezes, as mulheres em primeiro plano, com um chefe que nunca aparecia e um imediato que
teve 114 episódios e trocou de protagonistas várias vezes. Mas é fato que se tornou um suces-
so estrondoso, principalmente por significar um marco da estética dos anos 70: os cabelos
cançar deve-se também ao fato de que, além de produzirem as séries, os Estados Unidos pas-
saram a exportar este produto para outros países. Criou-se o termo “enlatado”, já que os pro-
gramas eram enviados, assim como os filmes, em latas especiais. Na TV brasileira, o valor
alto das produções nacionais, que ainda eram feitas ao vivo, com grande elenco, ocasionou a
compra de muitos seriados importados, que encheram os buracos da programação dos canais.
44
Rede de TV Americam Broadcasting Company.
61
tanto quanto o cinema, não se deve negar seu potencial de produto de exportação e
divulgação da cultura de seu país. Quem cresceu vendo televisão durante as décadas
de 1960 e 1970 foi bombardeado com fortes influências daqueles que se convencio-
nou denominar "enlatados" em seus mais diversos formatos, incluindo séries cômi-
cas, dramáticas, de aventura e de animação (SILVA JR., 2004, disponível em
<http://www.contracampo.com.br/69/serieshistoria.htm>, acesso em 15 nov 2007)
de enlatados foi o próprio governo militar. Durante a chamada Fase Populista da TV (MAT-
programação. Foi um período em que a exibição de “enlatados” atingiu o seu maior índice,
chegando a 50% da programação nos primeiros seis anos do golpe militar, época em que o
governo passou a adotar uma série de medidas econômicas para promover o desenvolvimento.
Os anos 80 chegaram com uma nova onda de conservadorismo nos Estados Uni-
dos. O governo do republicano Ronald Reagan incentivou a volta dos valores tradicionais
americanos numa fase em que a Guerra Fria começava a se tornar uma guerra quente. Como
ção ao que não se encaixasse nas normas padrão. Nessa linha, praticamente todas as sitcoms
dos anos 80 retomam os valores de família e seus episódios tentam mostrar, de alguma forma,
"lições de vida". É o período de “The Cosby Show”, “Family Ties” (“Caras e Caretas”) e “The
Golden Girls” (“Super Gatas”) e “Cheers”, considerada uma das melhores sitcoms de todos os
tempos. Isso porque, após o início moralista como suas contemporâneas, essa série começou a
seguir o caminho do deboche e do humor escancaradamente irônico, linha que deu origem a
62
outro nível de comédias, mais originais e politicamente incorretas, como “Seinfield” e “Frasi-
er”, dos anos 90, “Scrubs”, de 2001, e “The Office”, de 2005, que é um dos maiores sucessos
de crítica da atualidade.
Um fato curioso é que “Cheers”, tão influente nos Estados Unidos, nunca foi exi-
bido no Brasil. A partir do final dos anos 70, a estabilização de uma produção brasileira, prin-
cipalmente através do crescimento da Rede Globo, que já dominava a audiência como rede
nacional, fez diminuir o espaço dedicado aos seriados norte-americanos. Os canais começa-
ram, a exemplo da própria Rede Globo, a criar suas próprias séries semanais, como “Plantão
de Polícia”, “Carga Pesada” e “Malu Mulher”. Os enlatados que fizeram muito sucesso nos
anos 80 foram “Dallas”, “Hart to Hart” (“Casal 20”), “McGyver” (“Profissão Perigo”), “Mo-
onlighting” (“A Gata e o Rato”) ou “Alf” (“Alf – o ETteimoso”), mas mesmo assim eram qua-
se sempre tratados como curinga na programação, sem que fosse respeitada uma seqüência
cronológica nos episódios. Vale também destacar que nenhum desses programas pode ser
principalmente no que diz respeito à exibição em outros países. Uma nova tecnologia se espa-
lhava pelo mundo, chegando também ao Brasil: a TV à cabo por assinatura. Em primeiro de
julho de 1990, acontecem as primeiras concessões de TV pagas no Brasil e o Canal Plus (Ca-
nal +) se torna a primeira TV a cabo do país. Outro fato que modificou a forma como as pes-
soas viam os seriados foi um decreto do então presidente Fernando Collor, permitindo que os
O que isso significou? Que milhares de pessoas, jovens e adultos, que acompa-
nhavam as séries de TV no Brasil, puderam perceber a cultura de seu país de origem através
não só das roupas, locações e histórias, mas principalmente através da linguagem. Houve,
dessa forma, uma aproximação maior do universo americano, pois até então, não só o texto,
Um dos exemplos mais claros nesse sentido foi a série “Primo Cruzado” que pas-
sou por aqui numa sessão especial de enlatados da Rede Globo, a partir de 1987. Para o públi-
co daqui, a série contava a história de Zeca Taylor, um brasileiro do interior de Minas Gerais
que se muda para a casa de seu primo Larry, em Chicago, EUA. Com sotaque caipira carrega-
do, o primo cruzado, numa alusão a moeda corrente no Brasil na época, aparecia vestido de
sombrero e maracas, ou seja, roupas nada brasileiras. Na realidade, a história era completa-
mente diferente. No original, o título era “Perfect Strangers”, algo como estranhos perfeitos, e
Zeca, na verdade era Balki Bartokomous, pastor de ovelhas proveniente de Mypos, uma pe-
quena ilha grega do mediterrâneo, que vai para os Estados Unidos para encontrar seus paren-
tes. Ou seja, além de terem deturpado os termos com traduções muitas vezes estranhas para se
encaixarem na fala das personagens, algumas dublagens de séries desvirtuavam suas verda-
terminado tipo de programação, como notícias, esportes, variedades, filmes, ciência e séries
de televisão. Dessa forma, era possível, pela primeira vez, encontrar em um único canal vários
os seriados de uma vez só. Divididos por gênero, horário e dias da semana, a programação foi
ficando cada vez mais específica, conforme o público alvo que pretendia atingir.
64
Enquanto isso, nos Estados Unidos, estreavam em 1990, as séries que acabaram
de vez com o conservadorismo dos roteiristas: “The Simpsons”, “Twin Peaks” e “Seinfield”.
“The Simpsons”, lançada em 1989, está no ar há 16 anos, sendo a série mais longa
já produzida, e este ano gerou seu primeiro longa metragem. Suas personagens são caricaturas
que provocam em suas sátiras diversas reflexões e questionam a sua própria realidade. Spring-
field, cidade onde se passa a trama da família Simpson, é campo de situações possíveis e im-
possíveis, mas sempre refletem, debocham ou ridicularizam o modo de pensar americano. Sua
ousadia, criatividade, humor e bom conteúdo são temas de diversos estudos no mundo todo.
“Twin Peaks”, criada por David Lynch e Mark Frost, foi muito além do que se
pensava sobre séries policiais até então, mostrando com crueza e veracidade a trama que tra-
zia um investigador do FBI disposto a fazer de tudo para descobrir o assassino da jovem Lau-
ra Palmer. Hoje, a série é considerada um clássico e, apesar do fracasso de sua segunda tem-
porada, figura também como uma das melhores séries já feitas por mostrar tão bem o lado
quatro amigos em Nova York liderados pelo comediante Jerry Seinfield (interpretado pelo
próprio Seinfield). Seus episódios giram em torno de um simples tema: o nada. Assim foi fei-
to o piloto da série e lançado sem pretensões. Em pouco tempo, ela se tornou líder de audiên-
cia, segundo o instituto de pesquisas sobre televisão Nielsen Ratings. Teve nove temporadas
produzidas e foi considerada pela revista TV Guide, especializada em televisão, como o me-
A virada do século traz uma infinidade de outras séries influenciadas por estas a-
cima citadas. E, de fato, isso é algo comum de se perceber: as séries alimentam-se dos temas
umas das outras para poderem representar a sociedade da época em que são produzidas. O que
65
muda é o valor investido, o tipo de narrativa, o tempo de duração e a qualidade das interpreta-
ções e roteiros. Mas suas temáticas se tornaram universais, sendo repetidas ao longo das séries
A novidade fica por conta da abordagem. Uma série que fale sobre sexo hoje em dia
é muito diferente de uma série de até cinco anos atrás. As séries em geral são des-
cendentes de outras produções do passado imediato ou antigo. Dessa forma, pode-
mos pegar um personagem hoje em dia e traçar sua ascendência com muita facilida-
de porque uma série gera outra e assim por diante. Pegue a Carrie de “Sex and the
City”, faça uma linha do tempo, você consegue chegar em séries como “Ally McBe-
al”, “Supergatas”, “A Gata e o Rato”, “Mary Tyler Moore”, “Júlia” e “I Love Lucy”,
entre muitas outras. É a personagem do universo feminino tentando se colocar em
uma sociedade machista dentro do tema dominação do sexo. [...] É a evolução das
séries ou da espécie humana dentro de uma sociedade. Com a chegada da TV a Cabo
as séries começaram a evoluir com mais rapidez. (FURQUIN, 2005, disponível em
<http://www.poucaseboasdamari.com>, acesso em 17 nov. 2007)
Place”, grandes sucessos entre os jovens no final dos anos 90. Podem-se perceber suas influ-
noventa, que tinha como tema principal a amizade entre pessoas de 25 a 30 anos, garantiu o
surgimento de séries como, “Ellen”, “Will & Grace” e “The Class”, das quais falarei mais
Monica Geller (Courteney Cox Arquette), Joey Tribbiani (Matt LeBlanc), Ross Geller (David
Schwimmer) e Chandler Bing (Matthew Perry) conquistaram milhares de fãs e ditaram regras
gonistas, dando igual destaque a todos os seis amigos. Na América Latina, a série ainda é re-
prisada no horário nobre do Warner Channel e suas temporadas lançadas em DVD são cam-
No Brasil, Friends possui grande audiência, apesar de ter sido exibido durante sua
produção apenas por canais fechados (Sony e Warner Channel; neste último é
exibido até hoje, em horário nobre: todos os dias às 19h30). Na TV aberta, já foi
exibido por duas emissoras: pela RedeTV! no ano 2000 e pelo SBT em 2004 e
novamente em 2006. A RedeTV! exibiu apenas as 2 primeiras temporadas e não
houve muito sucesso na versão dublada. O SBT, que também passava a versão
dublada, chegou a exibir o programa: nas manhãs de domingo, nas tardes de segunda
à sexta e nas noites de quarta; só passou até a terceira temporada. Sem muito sucesso
também. (informação disponível em <www.pt.wikipedia.org>, acesso em 17 nov. 2007)
A série teve dez temporadas e fez não só a cabeça de toda uma geração como fez
A importância maior de “Friends” talvez se deva a ser esta série uma das que mais
lucro gerou para seus produtores. Ora, se um episódio da série pode vender um espaço publi-
citário de 30 segundos a US$2 milhões, pensaram seus produtores, por que não criar mais
espaços como estes na programação? Além disso, nunca se viu uma série manter por tanto
tempo um público cativo que a acompanhasse do início ao fim e ainda comprasse os DVDs
lançados com as temporadas. Foi neste momento que as séries de TV começaram a ter ares de
mega produção.
Em "Friends", "Sex and the City", "A Sete Palmos", "Sopranos" e muitas outras, en-
contramos uma espécie de espelho contemporâneo das nossas identidades pessoais.
Eles servem pra gente olhar e se reconhecer ou reconhecer alguém do nosso círculo.
Este é um dos principais truques dos criadores para tornar o público cativo. (JOR-
NALISTA..., 2007, disponível em <http://televisao.uol.com.br/>, acesso em 20 nov.
2007)
67
O século XXI começava nas TVs norte-americanas com muito mais atenção às i-
geométrica. Como conseqüência, os próprios canais por assinatura perceberam que era viável
investir em programação própria. Nesse contexto, surgiram dois canais que se tornariam líde-
O Showtime é o canal responsável pela criação das séries que iriam mudar para
sempre a forma como se representam os gays e as lésbicas nos programas de TV: “Queer as
Folk”, do desenho “Queer Duck” e “The L Word”. Também é responsável pela controversa
“Weeds”, sobre uma dona de casa que contrabandeia maconha, e “Dexter”, um assassino seri-
al de assassinos seriais.
A HBO45, ou Home Box Office, apresentou logo de cara um slogan que marcou o
ideal de programação original: “It’s not TV, It’s HBO”, ou “isto não é TV, é HBO”. Ou seja,
já indicava que este seria um lugar para produções nunca antes imaginadas. As principais de-
las são: “Sex and the City”, o épico realista e aclamado “Roma”, o fantasioso e bem produzi-
do “Carnivale”, “The Sopranos”, a elogiada saga de uma família de mafiosos e “Six Feet
Under” (“A Sete Palmos”), que apresenta com humor negro inteligente, os dilemas da família
As duas séries [“Six Feet Under” e “The Sopranos”] configuram o ápice do gênero,
o que para muito contribuiu o formato HBO de temporadas de tamanho reduzido (13
episódios). Este torna cada capítulo passível de um acabamento artesanal mais re-
buscado, que os aproxima de pequenos filmes, com roteiros muito bem amarrados e
direção que por vezes transcende os limites da eficiência televisiva. A recente De-
adwood (2004) tende a seguir a mesma linha de qualidade. (SILVA JR., 2004, dis-
ponível em http://www.contracampo.com.br, acesso em 15 nov 2007)
45
Atualmente, pertencem à rede de canais da HBO Brasil: AXN, Sony Entertainment Television, Warner Channel, A&E,
Animax, Cinemax, Max Prime, HBO, HBO Brasil, HBO Plus, HBO Family, The History Channel e E! En Entertainment
Television. Ou seja, estão entre eles os principais canais exibidores de séries de TV do país. Nos Estados Unidos, a HBO
pertence ao grupo TIME Inc.
68
Outras da HBO que, apesar de novas, já fazem sucesso considerável são “Califor-
nication” e “Entourage”. Por aqui, o canal HBO Brasil também investiu em produções e lan-
çou, em 2005 e com produção da Conspiração Filmes, duas séries: “Mandrake” e “Filhos do
Com temática voltada para as mulheres, o sucesso estrondoso de “Sex and the
City”, que conta as aventuras sexuais de quatro amigas em Nova York, não só influenciou o
surgimento de “Desperate Housewives” e da série tema deste trabalho, “The L Word”, como
também trouxe a visão da mulher que comanda sua própria vida, que tomas suas decisões sem
se basear em preconceitos sociais, que trabalha e recebe o valor que merece por isso, que
constitui sua família não por pressão, mas por desejo, que segue e atende a seus desejos sexu-
ais com muita liberdade e que fala sobre isso com muita naturalidade. A série também influ-
enciou comportamentos e refletiu as conquistas dos movimentos feministas nas décadas pas-
sadas. No Brasil, sua influência deu origem à série “Mothern”, produzida pelo canal GNT.
Em séries com temática política, destaca-se “The West Wing”, que fez com que
não só o presidente criado pelo ator Martin Sheen fosse considerado como o ideal para os
EUA, como também deu origem a outra série, “Commander in Chief”, na qual Geena Davis
Ainda pode ser citada como série de grande influência sobre outras, a cultuada
“Star Trek”, que incentivou a criação de inúmeras franquias sobre ficção científica, tanto co-
te Atlantis”, a mítica “Xena: Warrior Princess” e a excelente “Battlestar Galactica”, que mis-
X Files” se tornou uma das maiores responsáveis pelo aumento das especulações sobre extra-
69
terrestres e a vida em outros planetas, levando seguidores dos agentes Fox Mulder (David
Duchovny) e Dana Scully no mundo todo. A partir dela, foram lançadas séries como “Taken”,
história de Superman adolescente. Sem falar de “Lost” e “Heroes”, atuais febres entre os se-
mutações genéticas.
“Law & Order” (“Lei e Ordem”) e “C.S.I.”, cada uma com um tema de investigação, como
“Law & Order S.V.U.” e “Law & Order Criminal Intent” ou passando-se em cidades diferen-
tes, como “C.S.I. Miami”, “C.S.I. New York”. Influenciaram também “Bones”, “The Closer”,
“N.C.S.I.” e “Dexter”.
“NY PD” (“Nova York contra o Crime”) e a forte “OZ” permitiram a criação da
violenta e premiada “The Shield”, de “Alias” e de “24” (“24 Horas”), todas séries de ação que
fogem do padrão do policial como herói bonzinho. Em suas cenas, eles fazem de tudo, de su-
Esta última também se destaca por ter introduzido a narrativa do tempo real, de
forma inovadora e ousada, por fazer ressurgir o astro do cinema Kiefer Sutherland e por sua
“24” está em sua sétima temporada, mas uma temporada, neste caso, significa um dia na vida
do agente do FBI Jack Bauer. Ou seja, cada capítulo tem a duração real de uma hora de acon-
tecimentos, sendo 50 minutos da história menos os 10 minutos previstos pelos intervalos co-
merciais. Em cada minuto da trama, acompanha-se, através de quadros paralelos (um recurso
da edição), a resolução de algum caso urgente de importância nacional. A série também foi
responsável por mostrar o primeiro presidente negro da história das séries americanas. Na
70
sétima temporada, que ainda não foi lançada, “24” traz uma mulher lésbica como presidente
mais originais e sucedidas são a sensível e bem humorada “Grey’s Anatomy”, a sarcástica e
inteligente “House” e a ousada e picante “Nip/Tuck”, que realiza com requintes de crueldade,
As séries sobre dramas familiares, lançadas por “Dallas” e “Dinasty” nos anos se-
tenta, tiveram neste século grandes representações como a leve “Gilmore Girls”, “The Sopra-
nos” e “Six Feet Under” (“A Sete Palmos”). Essas duas últimas já pararam de ser produzidas
e venceram grandes categorias das mais tradicionais premiações da televisão, como o Emmy
Awards46.
Atualmente, existem mais de três mil séries de TV sendo exibida no mundo todo,
a sua maioria, produzidas nos EUA, conforme a lista publicada no site americano Epgui-
des.com47. Impossível enumerá-las aqui. As citadas acima são as mais representativas deste
séries. Nos canais norte-americanos de TV, os seriados com maior valor de mercado investido
geralmente estréiam nos meses de setembro e outubro (fall season). Já quando as temporadas
destas séries terminam ou quando há uma pausa em suas produções (hiatus), estréiam as cha-
madas midseason series, ou séries de meia-temporada, nos meses de janeiro a abril. Essas
séries, a princípio, são produzidas apenas para taparem buracos na programação. Mas algumas
ganham tanta projeção com o público, que acabam se transformando em séries maiores e fi-
cando por muitos anos no ar. No Brasil, devido ao atraso dos lançamentos das séries america-
nas, geralmente o midseason acontece a partir de junho e o fall season, a partir de novembro.
46
Ver <http://www.emmys.tv>
47
Site <http://epguides.com/>, acessado em 17 de novembro de 2007.
71
Mas não é só através da TV que essas séries são acompanhadas. A internet au-
pirataria, ou cópia não autorizada dos programas, é algo que preocupa a sociedade e que se
tornou motivo de discussão sobre as atuais leis de direitos autorais em todo o mundo. Ao
logia, é a mesma tecnologia que permite que os dispositivos anti-cópia sejam quebrados, que
res e de fácil envio para outros computadores, que as coleções de séries em DVD sejam loca-
assim como as músicas e os filmes, sofrem do mesmo tipo de problema com a pirataria.
dos entre usuários e baixados pela internet através de programas específicos. Esses torrents,
de séries, filmes, vídeos, músicas, programas, etc., são compartilhados gratuitamente e, muitas
vezes, sem autorização das fontes. Da mesma forma, outros tantos sites se especializam em
para ser baixado diretamente de seu site, gratuitamente, logo após a primeira exibição na TV.
Isso permite que uma série que passe nos Estados Unidos no domingo à noite, por exemplo,
seja visto na segunda-feira de manhã por pessoas no mundo todo. Foi assim que “The L
Word” chegou primeiramente ao Brasil. Enquanto a série lançada em 2004 só foi exibida pela
Warner Channel no meio de 2005, milhares de pessoas já tinham visto a primeira temporada
pela internet.
dentro dos lares das classes com alto poder aquisitivo, que têm TV a cabo e acesso à internet,
72
que antes era ocupado, em sua maioria, pelas telenovelas e pelos filmes. Com produções mais
livres, ousadas, criativas e trazendo atores esquecidos pelo cinema à tona novamente, os seri-
ados estão perdendo o estigma de enlatados, para se tornarem produtos de primeira linha.
lésbica na mídia. Sua importância é levantada até hoje pelas estudiosas da lesbiandade. Um
dos sites americanos mais importantes sobre a homossexualidade feminina na mídia leva exa-
tamente o nome After Ellen (algo como “Após Ellen”)48. Na série, que estreou em 1994 e fi-
cou no ar até 1998, a protagonista Ellen Morgan, vivida pela comediante e apresentadora El-
len DeGeneres, é a neurótica dona de uma livraria que tem que tomar conta não só dos negó-
cios, como também de toda sua família. Em 1997, no episódio “The Puppy Episode”, ela se vê
apaixonada por uma amiga. Numa atitude inesperada, ela se declara: “Susan, I´m gay!” (“Su-
san, eu sou gay!”). A comediante, com essa frase, não só assumiu sua homossexualidade no
programa como na vida real, passando a aparecer nas revistas com sua namorada da época
Anne Heche. O episódio causou comoção nacional entre a comunidade lésbica americana e,
mais tarde, teve seu roteiro premiado pelo Emmy Awards 2007.
48
Ver <http://www.afterellen.com>
73
exibido em 24 de junho de 2007 no canal brasileiro GNT, é possível descobrir que as negoci-
ações para que essa simples frase fosse dita duraram anos. Além disso, pouco tempo depois, a
pós algumas tentativas de retornar com uma série de ficção e a participação em alguns filmes,
em 2003, Ellen lançou o programa de entrevistas “The Ellen DeGeneres Show”, premiado
diversas vezes como melhor programa de entrevistas. Em 2007, foi convidada para ser a anfi-
triã da 79ª Cerimônia do Oscar, sendo a primeira lésbica assumida a apresentar a premiação.
Durante a festa, uma das mais tradicionais de Hollywood, Ellen disse em alto e bom tom:
Que noite maravilhosa, tanta diversidade neste lugar, num ano que que tantas coisas
negativas foram ditas sobre a raça, a religião e a orientação sexual das pessoas. E eu
preciso acrescentar: se não fossem os negros, os judeus e os gays, não haveria os
Oscars, ou alguém chamado Oscar, se você pensar bem. (DEGENERES, 2007, dis-
ponível em <www.pt.wikipedia.org>, acesso e 17 nov. 2007 [tradução nossa])
Nesse pequeno trecho de seu discurso, Ellen atacou as atitudes homofóbicas da po-
wood, que, por tantos anos, mantém escondida a homossexualidade de atores e atrizes famo-
74
sas. Foi um tiro em cheio no falso moralismo dos EUA, e somente Ellen DeGeneres, uma das
passaram a ver mais e mais personagens homossexuais aparecendo nas séries. Numa pesquisa
realizada pelo professor americano David Wyatt49 desde 1999, é possível comprovar esse fa-
to. De 1961 a 1970, apenas 01 personagem gay apareceu em série de TV. Nos anos 70 foram
58, enquanto nos anos 1980 foram 89 os homossexuais como personagens nos seriados. Nos
anos 90, esse número triplica para 337 e a partir de 2000 até agora, já são 372 personagens
gays e lésbicas a aparecerem nas séries de TV. Simples modismo ou maior visibilidade, isso
não há como afirmar. Mas o fato é que essa presença tem ajudado a diminuir o preconceito
das pessoas, a partir do momento em que mostram os homossexuais não mais como caricatu-
ras de seres humanos, estereotipadas e negativas, mas da forma como eles simplesmente são:
pessoas, seres humanos, com seus conflitos, seu bom humor, suas características únicas e seus
anseios. Mesmo não sendo a forma ideal, já que obedece a padrões de consumo, a visibilidade
homossexual nas séries é uma realidade bem vinda nos dias de hoje.
quinta temporada de “L.A. Law”, pela primeira vez se assiste um beijo entre duas mulheres
numa série de TV. As atrizes que o protagonizaram foram Amanda Donohoe (C.J. Lamb) e
Michelle Green (Abbey Perkins). Já “Ally McBeal”, de 1994, também teve um breve romance
lésbico. Mas, no caso, era apenas uma experimentação da personagem Ally (Calista Floc-
khart) para tirar de sua cabeça, a dúvida sobre sua orientação. “Dawson´s Creek” foi respon-
sável pela exibição do primeiro beijo entre dois rapazes, e mostrou vários relacionamentos
49
Segundo Wyatt, para entrar na lista, o personagem tem que aparecer em pelo menos 03 episódios da série e ser assumida-
mente homossexual. Aqueles que apenas parecem ser gays, mas não abrem isso na série, não entram para a compilação. A
lista completa está disponível no site <http://home.cc.umanitoba.ca/~wyatt/tv-characters.html>, acessado em 10 nov. 2007.
75
“Friends” foi também uma das primeiras séries a trazer um casal de lésbicas e um
pai transexual em sua trama, sem que estes fossem carregadas de preconceitos. A personagem
Carol é ex-mulher de Ross Geller e, junto com sua namorada Susan, criam Ben, filho deles. A
série mostra uma relação aberta na qual Ross primeiro questiona, mas depois aceita a criação
de seu filho por elas. Já o pai de Chandler Bing, é cantora em Las Vegas e dona do clube “Vi-
va Las Gaygas”. Charles Bing assume o nome de Helena Handbasket e, quando aparece na
Em 1995, quando “Xena: Warrior Princess” começou a ser produzida, nem os ro-
teiristas nem os produtores tinham em mente a revolução no meio lésbico que ela iria causar.
A série, que contava as aventuras mitológicas de Xena (Lucy Lawless), apresentava como
protagonista uma mulher linda, forte, inteligente, esperta e muito habilidosa com as espadas e
com seu famoso chakram50, vencendo os Deuses do Olímpio sem ter sequer um “super-
poder”, ela era uma mortal como outra qualquer. Era também uma guerreira autêntica, que
começou como uma criminosa e assassina, mas que, ao conviver com a jovem poetisa Gabri-
elle (Renee O‟Connor), foi tornando-se uma heroína de coração aberto e bondoso, conhecida
Com esse contexto apresentado, muitas lésbicas se tornaram fãs da série por verem
ali um relacionamento amoroso entre Xena e Gabrielle. De fato, a forma como lidavam uma
com a outra, incluindo até mesmo as discussões, era uma representação perfeita de um casa-
mento. Criaram-se grupos em vários países do mundo nos quais as lésbicas se reuniam para
assistir aos episódios que acabaram por contribuir muito para a cultura homossexual feminina
dos anos 90. A partir daí, a audiência do seriado aumentou muito. Seus criadores viram nisso
uma oportunidade de manter o sucesso, criando uma insinuação lesbiana em torno da história.
50
Chakram é uma arma indiana, cilíndrica, vazada no centro e afiada, que funciona como um bumerangue. Virou a marca
registrada de Xena.
76
Há seis anos [texto de 2002] ela começou a chamar atenção de um grupo de lésbicas
que se reunia para beber, conversar e dançar na boate Meow Mix, em Nova York.
Poucos meses depois, grupos de fãs na internet já começavam a discutir se a relação
entre ela e sua companheira era simples amizade. Bastou esse agito para as atrizes
Lucy Lawless e Renée O´Connor começarem a colocar “cacos” nas falas de Xena e
Gabrielle, insinuando uma forte paixão homoerótica. Em seguida foram os roteiris-
tas que entraram na dança e passaram a elaborar histórias que explorassem o amor
entre as duas. Dois anos depois de estrear, o seriado inspirou centenas de bolachas
orgulhosas que passaram a desfilar vestidas de Xena e Gabrielle nas paradas gays de
Nova York, San Francisco, Londres e Sidney. (LEONEL, 2002, disponível em
<http://mixbrasil.uol.com.br/cio2000/grrrls/xena_final.shl>, acesso em 20 nov.
2007)
mas gêmeas”, diversas declarações como “eu não posso viver sem você” ou “eu te amo” vi-
nham nas falas tanto de Xena quanto de Gabrielle, e, além disso, vários beijos entre as duas
foram trocados, só que de forma indireta. Num dos episódios, Xena, através da magia, encar-
na no corpo de um homem que acaba tendo um caso com Gabrielle. Somente no último epi-
sódio elas se beijaram de fato, no momento em que Xena morre nos braços de Gabrielle. Ape-
sar disso, “Xena” pode ser considerada como uma das maiores representações lésbicas da TV
americana.
Primeiro, porque Xena foi uma pioneira: Ellen não havia saído do armário, não exis-
tia “Will and Grace” e nem “Sex and the City”. E segundo porque, ao contrário des-
tas séries novas, Xena elevou a relação lésbica a uma instância mitológica: o casal
lésbico, mais que um fenômeno da vida urbana, cotidiana e contemporânea, torna-se
um arquétipo. Assim, com força de símbolo, a relação apaixonada entre as duas he-
roínas ultrapassa a fronteira de tempo e espaço, atingindo as mais variadas culturas,
idades, gostos e, inclusive, orientações sexuais. (LEONEL, 2002, disponível em
<http://mixbrasil.uol.com.br/cio2000/grrrls/xena_final.shl>, acesso em 20 nov.
2007)
televisão norte-americana, que usava a magia como uma metáfora para a lesbianidade. Tara
Maclay (Amber Benson) era uma bruxa iniciante que se apaixona por Willow (Alysson Han-
77
nigan), uma colega mais experiente. Willow, personagem formal da série desde seu início, e
Tara ficam juntas por duas temporadas e meia. Elas se tornaram um dos casais lésbicos mais
Tanto elas quanto a personagem Jack McPhee (Kerr Smith), de “Dawson´s Creek” foram
muito significativos neste contexto por atingir um público alvo até então ignorado pelos pro-
gramas com temática homossexual: os adolescentes. Suas atitudes positivas, sua forma de
entender. E, vendo sua vida representada ali, tendem a ficarem mais confiantes sobre si mes-
mos.
numa série humorística. Com roteiro bem escrito e atores carismáticos, caiu no gosto popular,
apesar de reforçar alguns estereótipos como a do gay efeminado, do cuidado exacerbado com
a aparência, entre outros. A série apresentava a idéia de que toda mulher deve ter na vida um
melhor amigo gay, e, apesar de apresentar elementos recorrentes da chamada cultura gay, a
série não abordava de forma pejorativa as atitudes do protagonista Will Truman (Eric Mc-
Cormack), um advogado de Nova York, e de seu melhor amigo Jack McFarland (Sean Ha-
yes), que fez de tudo um pouco na série. As outras personagens da série, Grace Adler (Debra
Messing) e Karen Walker (Megan Mullally), volta e meia tinham tendências lesbianas. Karen,
Em “Sex and the City”, atriz brasileira Sônia Braga interpretou uma artista lésbica
que teve um relacionamento com Samantha (Kim Cattrall), uma das personagens principais da
trama. Ela aparece em três episódios da quarta temporada (2001), mas, por um lado, não foi
muito positiva a sua participação para a visibilidade lesbiana. No relacionamento que se esta-
78
belece, fica marcado o estereótipo de que as lésbicas não têm uma vida sexual intensa e que a
única coisa que se prevalece na relação é o emocional. Várias vezes Samantha e Maria (Sônia
famosa por ser a mais impulsiva sexualmente da série, se diz cansada dessa relação “onde se
fala muito, toma-se muito banho e sexo, nada”. Em outro episódio, a protagonista Carrie (Sa-
rah Jessica Parker) experimenta beijar uma garota bissexual, interpretada pela cantora Alanis
Morissette, e diz que o beijo “tinha gosto de galinha”. Por outro lado, a série apresenta vários
personagens gays masculinos, e o melhor amigo de Carrie, Stanford Blatch (Willie Garson)
casa-se com um homem e tem um dos relacionamentos mais bem sucedidos de “Sex and the
City”.
“Six Feet Under” mostrou do início ao fim todos os dramas de uma relação amo-
rosa entre dois homens, com muita veracidade. Os protagonistas.Michael C. Hall (David Fi-
sher) e Mathew St. Patrick (Keith Charles) viveram juntos do início ao fim da série, que teve
cinco temporadas. David, o filho do meio da família Fisher, conservador e republicano, era
quem comandava a funerária da família. Ele e seu companheiro exemplificaram na série vá-
rias situações pelas quais passa um casal homossexual e, com isso, ajudaram a quebrar vários
tabus da TV: viver um relacionamento inter-racial, assumir-se para a família e serem aceitos,
sofrer violência por ser gays, fingi ser heterossexuais por causa da igreja ou do trabalho, ter
alguns casos fora do relacionamento, montar uma casa juntos e adotar uma criança. E, o me-
lhor, tudo isso sem olhar preconceituoso, estereotipado e ficando juntos, literalmente, até que
a morte os separasse. Além disso, na quarta temporada, Claire (Lauren Ambrose), a irmã de
David, envolve-se em uma experiência lésbica com Eddie (Mena Suvari), uma amiga da fa-
culdade.
79
Edie é assumidamente lésbica e assumidamente a fim de Claire. Claire, por outro la-
do, não sabe para onde correr: ela admite estar atraída pela amiga e diz se sentir
„inspirada' na companhia de Edie, porém, não sabe se esta atração é sexual. Como
conjecturas não matam a curiosidade nem o desejo de ninguém, Claire e Edie con-
cretamente consumam o fato. Após conferir o lado lés da vida, ambas se dão conta
que Claire veio parar na praia errada. No entanto, todo o envolvimento das duas é
realisticamente bem construído: que mulher hetero já não atravessou esta confusão e
que lésbica já não se viu atraída por uma amiga hetero? (LÉSBICAS NA TV...,
2007, disponível em <http://labris.org/monta.php?idmenu=17>, acesso em 17 nov.
2007)
(Micha Barton) e Alex (Olivia Wilde) tiveram na segunda temporada de “The O.C.” (2003).
Uma das personagens principais da série, a problemática Marissa, sente-se atraída por uma
amiga. Daí, ela resolve a confusão inicial tendo um relacionamento de fato com Alex. Num
determinado momento da trama, elas se assumem para amigos e família, que vivem numa das
mais ricas e tradicionais áreas da Califórnia. Levam adiante o namoro e chegam a morar jun-
tas rapidamente, mas logo depois terminam devido a ciúmes e falta de dinheiro. O estranho é
que, após o término do namoro, e até o fim da série, o assunto não foi mais abordado em mo-
mento algum.
primeira série assumidamente gay: “Queer as Folk”. Produzida primeiramente no Reino Uni-
do e depois nos Estados Unidos (2000), pela Showtime, e com um nome que brinca com um
ditado inglês que diz “there is nought so queer as folk” (“nada é tão estranho quanto as pesso-
as”), a série conta a história de homens gays e um casal de lésbicas. Os gays da série foram
caracterizados de uma forma muito natural, com sua realidade retratada nos mínimos detalhes.
Há quem diga que há sexo demais na série, já que, desde o primeiro episódio, a personagem
de Michael Novotny (Hal Sparks) solta a frase “the thing you need to know is: it’s all about
sex” (“o que você precisa saber é: tudo gira em torno do sexo” [tradução minha]), e logo de-
pois a cena noturna das boates gays invade a tela, mostrando um pouco daquele universo.
80
A abertura de “Queer As Folk” é uma clara referência à vida noturna, a boate. Ho-
mens de corpos atléticos, dançando de tanguinha e chapéu de cowboy, estilo go go
boys, que são ícones das boates GLS, sob um plano de fundo com imagens psicodé-
licas, coloridas em tons rosa, amarelo, lilás, e uma música eletrônica bastante ani-
mada e dançante, é um clipe da própria boate Babylon. O espectador está vendo a
abertura e de repente percebe que se trata da imagem de telão de uma boate, e ali já
começa o primeiro episódio, “New Boy”: Mike apresentando a boate Babylon, o que
toca, quem freqüenta e o que os freqüentadores desejam naquele ambiente. (BAR-
RETO, BEZERRA e RÉGIS, 2006) [grifo nosso]
Mas o fato é que, como nunca, viram-se na TV tantos homens homossexuais vi-
vendo suas vidas e seus dilemas, como a traição, a aceitação das mães, a questão do casamen-
to gay, a paternidade de uma criança criada por duas mães lésbicas, a AIDS, e a descoberta e
prática sexuais em sua mais profunda verdade. “Queer as Folk”, que foi produzida até 2005 e
contou com 83 episódios, teve altos índices de audiência nos Estados Unidos durante seus
cinco anos de exibição. No Brasil, era veiculada pelo canal Cinemax, mas os DVDs com suas
O sucesso da série foi tão grande que o canal produtor, o Showtime resolveu ousar
ERIC MABIUS: It's so much more than you can possibly conceive of
GUINEVERE TURNER: It's a lot less drugs and a lot less dancing...it’s a
show about a group of wonderful women...
LAUREL HOLLOMAN: É simplesmente uma série que você vai ter que
prestar atenção.
JENNIFER BEALS: Eu penso que a série vai definer uma nova categori-
a...
Quando a série “Sex and The City”, estava chegando ao fim, na segunda quinzena
de 2003, logo começaram a surgir boatos sobre um novo programa que seria produzido pela
rede de TV Showtime. A especulação era de que a nova série também seria sobre um grupo de
amigas e suas aventuras sexuais em uma cidade. Mas, dessa vez, essas mulheres teriam, além
de uma cidade diferente como pano de fundo, uma pequena diferença em relação à Carrie,
city” (“mesmo sexo, cidade diferente”). E foram confirmados quando, por volta de outubro
daquele ano, divulgaram o nome da série: “The L Word”. A palavra com L, que se ocultava no
título da novidade, era lésbica. Sim, aquele seria um seriado sobre homossexualidade femini-
na. E a homossexualidade feminina em sua melhor forma: atrizes lindas e elegantes integra-
vam o elenco, cenas sensuais eram divulgadas dos trailers antes do lançamento, muito sexo
viram uma oportunidade de realizar suas fantasias sexuais, as mulheres heterossexuais fica-
ram intrigadas, e as lésbicas se dividiram: “era aquela a realidade? Qual o objetivo de se colo-
car mulheres tão lindas como lésbicas? Onde estão as mulheres masculinas? Será que esse
seriado foi feito pra gente?”. De fato, as opiniões e críticas foram diversas, mas a verdade era
que pela primeira vez se produzia uma série de TV totalmente feita por e para lésbicas.
Lançada pelo canal que anteriormente havia ousado com “Queer as Folk”, a série
foi uma vitória da produtora executiva e roteirista Ilene Chaiken, lésbica assumida, após três
51
Personagens de “Sex and the City”, apresentadas anteriormente neste trabalho.
83
anos de negociação. Quando começou a ser exibida nos Estados Unidos, “The L Word” cau-
sou muito furor e comentários negativos de várias partes. Mas a primeira temporada passou,
veio a segunda, que garantiu a renovação para a terceira, seguida pela quarta e no dia 06 de
janeiro de 2008, “The L Word” estréia sua quinta temporada nos Estados Unidos, com um
status muito positivo, além de muitos patrocínios, adquiridos ao longo dessa jornada.
tada nas quatro temporadas de “The L Word”. Não pretendo, nesta análise, me concentrar
muito na história em si, apesar de, por algumas vezes, relatá-la para dar sentido ao resto do
contexto. Meu foco principal, portanto, se tornam as várias identidades lésbicas que ali foram
exemplificadas e nas diversas situações que, apesar de ficção, refletem bem as conquistas,
dilemas, dúvidas, escolhas e vivências da mulher homossexual contemporânea, seja ela ame-
ricana ou não.
em menos de 1 minuto e meio de programa, um casal de lésbicas dormindo nuas em uma ca-
ma de casal, cobertas apenas por um lençol, e, em cena seguinte, um beijo insinuante entre
ambas que comemorava o fato de uma delas estar ovulando, ou seja, era o momento ideal para
84
tabus sem que estivessem cheios de preconceito, era o presságio do que estava por vir. “The L
Word” se tornou um fenômeno da TV por assinatura e da internet, sendo lançado no ano se-
guinte no Brasil, também no canal fechado. Hoje, indo para sua quinta temporada, o seriado
não precisa mais provar sua rentabilidade financeira e qualidade técnica. Mas quais foram as
principais ferramentas que abriram o caminho para que isso fosse possível, para que as lésbi-
cas tivessem essa visibilidade? Ainda mais estando a homossexualidade à margem do padrão
pela homofobia, como foi visto anteriormente. Teria o formato seriado de TV, como a van-
produzir uma série sobre lésbicas. A produtora Ilene Chaiken, quando apresentou a idéia em
2000, foi considerada louca pelos produtores do canal Showtime. Em entrevista dada em 2005
ao programa “In The Life”, uma revista eletrônica voltada para homossexuais dos Estados
Unidos, Ilene afirmou que os donos da emissora disseram não ser possível conseguir patrocí-
nio para um programa deste tipo. Apesar da primeira negativa, ela insistiu no projeto por três
Folk”, que além audiência, tinha conseguido emplacar no mercado com outros produtos de
mershandising, como CDs, camisas, bonés, adesivos e até bonecos52, seus olhos voltaram a
prestar atenção no projeto de “The L Word”. Mas o apelo principal que viram na série naquele
Segundo o artigo “The Final Frontier: Lesbians”, publicado no N.Y. Daily News
mava que o “sexo lésbico, garota com garota, é um prato cheio para atrair a audiência de ho-
52
Para mais informações sobre os produtos, ver <http://www.sho.com/queer/>
85
mens heterossexuais” (HUFF, 2003 tradução nossa). Ou seja, conforme os donos da TV, a
audiência estaria garantida ao promover a grande fantasia masculina de duas mulheres juntas.
Ainda conforme o artigo, essa audiência masculina seria “educada”, através de histórias pro-
fundas e das interpretações das atrizes, que, no final das contas, iriam mostrar aos homens
heterossexuais como respeitar o estilo de vida da mulher lésbica. Parece mais um discurso
moralista que procura desculpar a existência de uma série sobre o tema. Mas, independente
disso, foi o canal Showtime um dos grandes responsáveis por se falar tanto sobre homossexu-
alidade na TV dos últimos anos. A produtora, neste primeiro momento, sabia que as regras a
seguir seriam essas, senão sua empreitada não seria possível. Ela afirma no mesmo artigo, por
exemplo, acreditar que o Showtime, assim como ela, tinha um gosto especial em contar aque-
las história por ser algo totalmente ousado, inesperado e, como se revelaria aos poucos, pro-
fundamente emocional.
A partir dessa idéia, o episódio piloto foi criado. O mote principal da história era
simples, e a fórmula parecia repetida: a vida de mulheres em uma cidade. Como núcleo prin-
cipal, “The L Word” apresentava um grupo de amigas, na faixa dos 30 anos, lindas, femini-
nas, independentes, ricas, elegantemente vestidas, com trabalhos de projeção e boas moradias
na atual Los Angeles, nos Estados Unidos. Mulheres que, num primeiro olhar, seriam caracte-
Atrizes como Jennifer Beals, Pam Grier e Mia Kirshner foram escolhidas para os
papéis principais. Todas elas heterossexuais, todas elas com uma tradição de personagens
extremamente sensuais, tanto no cinema quanto na TV. A atriz Jennifer Beals havia mexido
com a cabeça de muitos homens e mulheres no clássico dos anos 80 “Flashdance” (1983),
com sua famosa dança e sua atitude independente e forte de construtora civil. Pam Grier, tam-
bém cantora, era a querida de Quentin Tarantino, com quem fez a provocante “Jackie Brown”
86
(1997), uma homenagem aos vários papéis parecidos que havia interpretado nos anos 70. Já
Mia Kirshner foi uma das vilãs de “24 Horas” (2001), na qual também interpretava uma as-
sassina lésbica com muito apelo sexual em suas cenas. Além delas, Karina Lombard, Erin
Daniels, Lauren Holloman, Katherine Moening, que afirmavam ser heterossexuais, foram
escaladas para viverem lésbicas na série. Por outro lado, a única atriz homossexual assumida,
Leisha Hailey, foi convidada a viver uma bissexual. Estava pronto o elenco principal de “The
L Word”, que ainda contava com o ator Eric Mabius. Como detalhe importante, assim como a
palavra lésbica, todos os títulos dos episódios começariam com a letra L53.
internet em suas conexões banda-larga facilitaram muito o acesso às séries de TV bem antes
da sua estréia oficial em outros países. Com “The L Word”, não foi diferente. Uma grande
parte das espectadoras e dos espectadores do seriado, assim como da opinião da crítica espe-
cializada, foi formada praticamente ao mesmo tempo tanto aqui quanto nos Estados Unidos.
Apesar da série só ter sido lançada oficialmente no Brasil no dia 10 de julho de 2005, através
de downloads dos episódios, milhares de pessoas acompanhavam “The L Word” desde sua
primeira exibição, em território americano, já em 2004. Com isso, prefiro neste momento tor-
nar paralelas as exibições e citar os fatos ocorridos nos dois países simultaneamente. Isso por
considerar as reações parecidas, apesar de algumas diferenças pertinentes, o que reforça meu
dos, quando, apesar de ainda não terem visto o piloto, a comunidade lésbica dos Estados Uni-
dos resolveu se manifestar contra a falta de representantes mais masculinizadas na série. Onde
estavam as chamadas “butches” ou “dykes”? Por que todas eram tão lindas, “femmes”, de alto
poder aquisitivo, bem no estilo consumista “lesbian chic” se aquela não era bem a realidade?
53
Apenas o episódio piloto não teve seu título iniciado por L. Os títulos de todos os episódios já lançados, assim como sua
descrição, elenco e convidados, podem ser vistos em <http://www.epguides.com/LWord/> ou no site oficial da série:
<http://www.sho.com/site/lword/episodes.do> , acesso em 20 nov. 2007.
87
Antes de aprofundar nessa questão, quais seriam, então, essas identidades lesbianas, constru-
É possível que a rigidez da divisão binária da sexualidade humana faça com que a
atração por outra mulher crie a necessidade de adotar características masculinas, fí-
sicas e comportamentais, tosca forma de encenar a sedução (BARRET, 1990: 257).
[...] Temos aí o esquema da ordem heterossexual em corpos biologicamente femini-
nos, o casal butch/femme. Outros tipos seriam a esportiva, cuja liberdade corporal
inspira dúvidas, a lesbian chic, meio andrógina, com especial cuidado no visual, e,
quem diria, aquela que não tem nenhum signo externo de suas preferências sexuais
e, neste caso, todas as mulheres podem estar incluídas. Este último tipo é talvez atu-
almente o mais difundido, não como uma forma de esconder a sexualidade, mas para
marcar a privacidade de opção. Afinal, por que a sexualidade teria que ser explicita-
da? (NAVARRO-SWAIN, 2000, p.80-81)
te” (1998), de Susie Bright, existe uma outra concepção dos papéis butch e femme:
Butches não são mulheres que desejariam ser homens. Butches são mulheres que se
sentem mais à vontade com comportamentos tidos como masculinos, mas que na
verdade podem ser praticados tanto por homens quanto por mulheres. [...] Femmes,
do mesmo modo não são mulheres à espera de um homem pra lhes mostrar as mara-
vilhas da vida heterossexual. Femmes, são mulheres que se sentem atraídas por mu-
lheres, e ao mesmo tempo gostam do papel tradicionalmente feminino criado pela
sociedade. Muitas vezes, Femmes se sentem atraídas por Butches e vice-versa, mas
simplesmente porque esta parece ser uma boa combinação de energias, e não porque
desejem imitar modelos heterossexuais. São dois tipos culturais que, é claro, não e-
xistem em estado puro, sendo cada mulher uma mistura das duas tendências de
comportamento e aparência, ou nenhuma delas, como a androginia vem demons-
trando. (BRIGHT, 1998, p. 10)
femme fora rejeitada por ser uma reafirmação da heteronormatividade vigente54. Mas atual-
mente, esses termos são valorizados como polaridades do modo de ser erótico das mulheres
(BRIGHT, 1998). Por isso a falta dessa representação causou tanto furor, porque muitas lésbi-
cas não se viram representadas na série que seria feita para elas.
54
Um bom exemplo dessa rejeição pode ser visto na segunda história do filme “Desejo Proibido” (“If the Walls Could Talk
2”, 2000), em que uma feminista lésbica se apaixona por uma butch e acaba criticada por suas amigas.
88
Isso causou alguma celeuma nos fóruns internacionais, que reclamavam que as lés-
bicas masculinizadas deveriam estar representadas não apenas como figurantes e-
ventuais. Essa discussão, contudo, não teve quorum no Brasil, em que a maior parte
das discussões passou mais pela idéia de que é bom ver mulheres lésbicas bonitas na
TV, uma vez que no imaginário social lésbicas são comumente pensadas como mu-
lheres masculinizadas e descuidadas. Evidentemente, este seria o argumento mais
politizado e pouco citado. A beleza das atrizes geralmente é citada muito mais em
tom de tietagem que qualquer outra coisa. [...] Contudo, apesar dessa ausência, não
se pode pensar em The L Word fora de um movimento de política identitária ameri-
canizado e que tenta representar vários sujeitos diferenciados dentro daquele cenário
social. (VENCATO, 2005, p. 54)
A questão é que “The L Word” realmente foi lançada com um apelo muito forte
para o público heterossexual masculino. E, por isso, essas características acabaram sendo ma-
quiadas para ficarem mais sexualizadas. Tanto as produtoras quanto as diretoras, em sua mai-
oria lésbicas, aparentemente sabiam o que estavam fazendo desde o início. Sabiam que para
emplacar no mercado, sexista e patriarcal como ele é, um produto feito por mulheres lésbicas,
para mulheres lésbicas e com mulheres lésbicas, seria preciso como estratégia, seguir algumas
teve modificada sua forma de abordagem, passando a mostrar lésbicas mais realistas e se tor-
nando uma referência do que acontece na comunidade homossexual feminina. Além disso,
conseguiu, como previa sua produtora Ilene Chaikn, que os homens que procuravam a série
apenas para verem duas mulheres de “pegando” mudassem suas opiniões. Uma delas foi a do
Um ano atrás eu disse neste espaço que a série The L word, que retrata o mundo gay
feminino, era uma buesta, artificial, preconceituosa. Um ano depois, reformulo: é a
melhor série da TV mundial. Mas... Melhorou tanto? Não. Apenas passei a olhar
com atenção a seqüência de episódios, os universos de personagens, e descobri ali
uma bela carga dramática. "Hahahahahaha!", dirão, "Carga dramática o cacilder, é
um punhetódromo com faixa-bônus artística". Em parte terão razão: adoro olhar mu-
lher se amar (até hoje, nas telas), não só por falar-me ao pau, mas também pela bele-
za do evento homofeminino. E, nesse aspecto, The L word capricha: com uma puta
direção de cena, as transas e os sarros são cheios de verdade sem jamais resvalar no
pornô ou na cafonália dos sexy hots não pagos da vida. Além disso, as tramas são
boas mesmo, os diálogos ágeis e livres de bordões, a música ótima, a câmara sutil e
89
a montagem capaz de surpreender. É claro que isso não basta: sem pelo menos duas
trepadas por episódio eu não correria todo domingo às 23h para ver minhas sapati-
nhas na TV, exercendo meu lado lésbico, que é essa mania de adorar mulher e detes-
tar homem. (BLOCH, 2006, disponível em
<http://oglobo.globo.com/blogs/arnaldo/post.asp?cod_Post=12872&a=4>, acesso
em 17 nov. 2007)
gia deu certo. A série foi conquistando seu espaço logo na primeira temporada, e, através de
sua narrativa e viradas nas vidas das personagens, mudando a abordagem proposta pelos do-
A forma como a série mostra a vida sexual das homossexuais de Los Angeles
nunca havia sido adotada antes. Cenas de sexo com as lésbicas, bissexuais e heterossexuais da
série recheiam a trama em todos os episódios. Mas, ao contrário do que se pensa, não são ce-
nas pornográficas ou de simples cunho erótico. São cenas bem dirigidas que, apesar de sutis,
fazem cair por terra duas ultrapassadas concepções: a primeira, de que lésbicas não têm uma
vida sexual ativa, que seu relacionamento é baseado muito mais na afetividade do que no se-
xo; a segunda, de que a relação sexual das lésbicas não é completa, já que não há a presença
do falo.
Uma das idéias preconcebidas e que aparece com freqüência na literatura é que entre
as lésbicas a sexualidade não tem relevância e elas priorizam as carícias amorosas e o
sentimento. Alguns exemplos: „Muitas vezes é o vínculo afetivo que é considerado
mais importante, ou então o contato sexual pode ser mais uma questão de carícias fei-
tas entre as várias regiões do corpo do que um contato voltado essencialmente para os
órgãos genitais‟ (Fry, 1985: 106). Ou ainda: „Mas como muitos casais lésbicos, mes-
mo no século XX, o aspecto sexual de seus relacionamentos não é de importância
primordial. Seus laços são baseados mais no intelecto e nas paixões compartilhadas‟
(Richards, 1993:268). Essas análises dão uma conotação negativa, de seres quase as-
sexuados, e, num mundo onde o sexo é rei, onde a psicanálise faz lei, dar pouca im-
portância à performance sexual reabre o espectro de doença, do antinatural. (NA-
VARRO-SWAIN, 2000, p. 82)
A série entrou fundo na questão, mostrando não só o aspecto afetivo, como tam-
bém os movimentos de conquista, a sedução e todo o processo da relação sexual em si, com
direito ao desfecho final. No episódio piloto da série, por exemplo, a personagem Jenny (Mia
90
Kirshner), faz sexo pela primeira vez com uma mulher. Na cena, além das carícias e dos cari-
nhos, é visível, e bem realista, o momento em que ela chega ao orgasmo. Num misto de culpa,
por estar traindo o noivo, e alegria, por sentir muito prazer, Jenny termina a cena chorando e
sorrindo. Momentos como estes comprovam o que sempre se soube: tudo, na verdade, é ape-
Uma sexualidade problemática, uma recusa do corpo e de seus prazeres, não é mais
comum entre as lesbianas que entre as mulheres heterossexuais, como tantas vezes
se pretende. Enquanto ligadas a experiências e identidades de mulheres, podem ter
sofrido os mesmos traumatismos e violências, os mesmos abusos e assédios que as
heterossexuais, num mundo onde a sexualidade masculina dita as normas. De toda
forma, no processo de socialização, o que é conseqüência é tomado como causa: as
meninas e as mulheres aprendem a controlar, a disciplinar, a negar seus desejos e
seus corpos em nome da moral e dos bons costumes, e toda lésbica foi um dia uma
menina. Uma vez anulados o desejo e a paixão, alega-se que não os possuem. (NA-
VARRO-SWAIN, 2000, p.83)
“The L Word” traz mulheres que podem fazer tudo, menos anular seu desejo e
paixão. Em suas temporadas, mostrou pela primeira vez em tom não pornográfico, situações
como o uso de acessórios e brinquedos sexuais, o sexo a três, uma transexual feminina se re-
lacionando tanto com uma mulher, quanto com um homem, o sadomasoquismo, a realização
outras.
Essa característica da série, as amostras da vida sexual das lesbianas que são por
ela mostradas, foi responsável por um caso particular que já demonstrava o poder de influên-
cia da série.
na América Latina, as fãs que já acompanhavam pela internet levaram um susto. As legendas
pareciam não traduzir exatamente o que estava sendo dito e o texto estava sem sentido. Além
Estranhamente, a versão que a Warner latina está colocando no ar para toda a Amé-
rica do Sul e Central é uma versão “light”, mutilada e picotada! Sim, caras leitoras, a
Warner optou por exibir “The L Word” cortando 90% das cenas de sexo, e não foi
só sexo lésbico que foi deixado de fora: cenas de sexo heterosseuxal também foram
editadas. Não bastassem os cortes, nesta versão “latina” algumas palavras mais for-
tes são dubladas (em inglês mesmo). Termos como “pussy” (boceta), “dick” (pau),
“fuck” (foda) e “dyke” (sapata) são substituídas por outras mais “leves”: “fuck” (fo-
da) virou “fudge” (soda), por exemplo. Para finalizar o show de horrores, a tradução
nas legendas é risível. Como foi muito bem observado por uma amiga, a frase "e-
verything in the way you dress screams lesbian" (tudo no seu jeito de se vestir alar-
deia que você é lésbica) foi traduzida como “suas roupas criam uma barreira”. Ou
seja, o próprio sentido da frase foi invertido! (LEONEL, 2005, disponível em
<http://mixbrasil.uol.com.br/mp/2.shtml>, acesso em 20 de julho de 2005)
A articulista do site Mix Brasil, Vange Leonel, e o site The L Word BR, que as-
sim como várias fãs, consideraram o ato de censura um absurdo, lançaram na internet a cam-
“The L Word”, como está sendo transmitido pela América Latina, perde o sentido, a
graça e a qualidade. A impressão que ficou desses dois primeiros episódios é que a
turma de lésbicas retratada é um grupo infeliz, superficial, enrustido que age sem
motivações razoáveis. Resumindo: a versão que você, leitora, está assistindo pela
Warner Channel é um arremedo, uma obra mutilada. Por acaso nós, lésbicas, temos
que nos conformar com essas mutilações e clitorectomias? De Safo, só sobraram
fragmentos. Nas novelas os beijos lésbicos são proibidos. Quando finalmente é pro-
duzido um seriado que nos retrata de maneira menos envergonhada, a TV local re-
solve exibi-lo com cortes. (LEONEL, 2005, disponível em
<http://mixbrasil.uol.com.br/mp/2.shtml>, acesso em 20 de julho de 2005)
ra que fossem feitas reclamações. Ao mesmo tempo, tentaram saber, assim como outras fãs da
América Latina, por que a série havia sido censurada daquela forma e por que não havia um
horário de reprise dos episódios, algo normal para os outros seriados. A resposta do adminis-
trador do canal teria sido a seguinte: “Acontece que já recebemos as fitas editadas. Isto é, tem
uma edição para o mercado interno dos EUA e outra para o mercado externo, onde nos encai-
Como a resposta não parecia ter o mínimo sentido, a jornalista Martha Vasconsce-
los e sua companheira Luriana, que são as criadoras do site The L Word BR 55, escreveram
O horário em que The L Word vai ao ar já é adequado para que não haja cortes. Se
ainda não for, que se altere o horário! E a Warner é experiente o bastante para tam-
bém não derrapar nas traduções como fez com os episódios exibidos. Reivindicamos
que The L Word seja exibida na íntegra, como acontece nos países desenvolvidos! O
Grupo The L Word BR atualmente tem mais de 1000 pessoas indignadas com essa
atitude de extrema falta de respeito para com os telespectadores da série e do canal.
The L Word sem cortes e sem censura, já!!! (MENSAGEM..., 2005, disponível em
http://www.thelwordbr.com.br/reclame.html, acesso em 20 nov. 2007)
Não só essa mensagem, com centenas de outras chegaram engrossando a lista das
reclamações. Se pararmos para analisar, o fato das pessoas terem visto a série anteriormente
pela internet não atrapalhou a audiência do canal. Muito pelo contrário, centenas de fãs cele-
braram quando “The L Word” começou a ser anunciada no canal latino-americano e, da mes-
Os fóruns da Warner brasileira, latina e do Orkut estão repletos de reclamações de fãs e abai-
xo-assinados para que a rede exiba o seriado sem cortes. Telespectadoras no Chile, México,
Argentina e Brasil tentaram obter da Warner latina uma resposta e tudo o que ouviram foi que
a emissora já recebeu os episódios assim, editados, e que a versão exportação do seriado é di-
ferente da que foi exibida dentro dos Estados Unidos. Por outro lado, fãs que entraram em
contato com a Showtime (produtora de “The L Word” e responsável por sua venda para o ex-
terior) disseram que receberam e-mails da empresa confirmando que não existe “versão alter-
nativa” e que eles vendem a série sem cortes. (LEONEL, 2005, disponível em
<http://mixbrasil.uol.com.br/mp/2.shtml>, acesso em 20 de julho de 2005)
com o reinício da série totalmente sem os cortes ou alterações de falas, como criou um horário
de reprise, outra exigência das fãs. A partir daí, no Brasil a série provocou a criação de diver-
sos sites, blogs e comunidades do Orkut, todos eles para acompanhar cada passo dado pelas
55
Disponível em < http://www.thelwordbr.com.br/>. Martha e Luriana também são as mediadoras do grupo “thelword_br”
do Yahoo (http://br.groups.yahoo.com/group/thelword_br/), que tem 2079 integrantes e do blog
<http://grupothelwordbr.blogspot.com/>. (acesso em 25 nov. 2007)
56
Para conferir a comparação entre os episódios censurados e os completos, ver
<http://www.thelwordbr.com.br/indexcortes.html>, acesso em 25 nov. 2007.
93
meninas de “The L Word”. Mesmo quem já tinha visto, pôde ver de novo pela TV, e, dessa
vez, em sua íntegra. E, mais do que nunca, foram percebendo que ali poderiam encontrar uma
Quais são, então, os tipos de lésbicas que apareciam na série? Quais são as princi-
pais identidades que elas assumem ao longo da história, para que haja essa identificação
mesmo com realidades tão diferentes? Porque de fato, mulheres lésbicas lindas e ricas não são
a maioria no mundo, são na verdade uma ficção criada no universo de “The L Word”.
Acho que há muitas lésbicas que gostariam de ver mais sexo na TV, mais ação, mais
comicidade e mais, porque não estão esperando realidade e sim uma novela e as no-
velas nunca são... Elas têm temas da vida real e coisas com as quais pode se identifi-
car, mas elas podem levar a um lado que você não verá na sua vida. Não quero ver a
minha vida, ela é chata. Eu apenas vou pro trabalho, volto pra casa, sou legal com
todos. Quero mais suspense, drama, sexo e coisas sobre as quais talvez fantasie ou
coisas que posso ver na TV, porque é TV. (THE L..., 2006)
temporada, estão presentes várias representações lesbianas as que assumem o papel de “pro-
vedor” e “provida” numa relação, aquela que é amiga de todo mundo, principalmente para ser
aceita em sua sexualidade ambígua, a que não se atém a relacionamento algum e que acaba
“agindo como um homem agiria”, ou seja, adotando um tipo de vida promíscuo, ou a outra
que não se assume pelo medo, pela insegurança e pela pressão da família conservadora. Tem
também a que é sensual por natureza e tem como prática revelar o lado lésbico em outras mu-
lheres, além daquela que nunca havia pensado em lesbianidade até que experimentou. Isso
sem contar os diversos outros tipos de representação da homossexualidade feminina que apa-
Ainda nos episódios da série podem ser encontradas diversas situações como: as
relações inter-raciais, as grandes diferenças de idade, o homem que nasceu em corpo de mu-
lher, e por isso, torna-se transexual, a mulher casada e mais velha que se descobre homosse-
94
57
xual na terceira idade, a política “don’t ask, don’t tell” (“não pergunte, não diga”) do exér-
cito americano, a do amor entre amigas, a do amor com uma portadora de necessidades espe-
Word Brasil, que tem hoje mais de 13 mil membros, tem como um dos mais populares tópicos
e perguntas e respostas o “quem é ela em The L Word?”, no qual a participante deve dar su-
gestões sobre com qual das personagens a pessoa de cima se parece. Já foram dadas mais de
57
Em 1994, o então presidente americando Bill Clinton aprovou a chamada lei do “não pergunta, não diga”. A lei, em vigor
até hoje no exército dos EUA, proíbe que os homossexuais e bissexuais falem abertamente sobre sua orientação sexual, rela-
cionamentos ou que tenham atitudes de gays assumidos enquanto estiverem servindo às forças armadas. De 1994 a 2005
foram dispensados mais de 11 mil soldados homossexuais das forças armadas dos Estados Unidos. (disponível em
<http://en.wikipedia.org/wiki/Don't_ask,_don't_tell>, acesso em 25 nov. 2007)
95
10.50058 respostas ao fórum. Outro muito interessante é o que sugere atrizes brasileiras caso a
série fosse produzida aqui. Nomes como Ana Paula Arósio, Camila Pitanga, Letícia Sabatella,
Carolina Ferraz e Maria Fernanda Cândido estão entre as sugestões. Na mesma comunidade,
uma outra enquete questiona qual era o maior mérito da série. Com mais votos (45%) estava a
mostra como as lésbicas passaram a se reunir para assistirem aos episódios em diversas cida-
des dos Estados Unidos, como Los Angeles, Salt Lake City, Philadelfia, San Diego e Hous-
ton. Em todos os grupos, formados por lesbianas de diversos tipos, as opiniões eram as mes-
mas: os encontros começaram porque nem todas tinham TV à cabo e serviram para fortalecer
a amizade ou formar novas e, além disso, as personagens e situações da série, apesar de não
Conheço pessoas que estão bravas porque “The L Word” não nos representa e acho
que isso é não entender. A série é como um livro de colorir em que você coloca suas
próprias cores e coisas. Porque a função que teve na minha sociedade, meu grupo, é
que todas nós nos reunimos aos domingos à noite e, sabe, é como um bando de “sa-
pas” tendo um programa para poder rir. É uma reunião de força, e isso é realmente
ótimo. (THE L..., 2006)
Isso mostra que, mesmo não representando exatamente a vida real das lésbicas, o
Quanto mais opções você tiver, mais espécie de modelos poderá ter para o tipo de
homossexual que há por aí, que homossexual você pode ser e seria maravilhoso se
pudéssemos ter cada vez mais. Para que as pessoas soubessem que podem ser quem
elas quiserem, onde quer que estejam. (DEVUN, Leah in: THE L..., 2006)
58
Dados de 25 de novembro de 2007. Disponível em <http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=52139>, acesso em 25
nov. 2007
96
gação dos movimentos e dos locais dedicados às lésbicas existente nos Estados Unidos. Na
primeira temporada, aparecem eventos como o Dinah Shore Weekend,59 realizado anualmente
em Palm Springs e considerada a maior semana lésbica do mundo, com sua famosa “White
Party” (“Festa do Branco”, como mostra o último episódio da primeira temporada), ou como
o Cruzeiro Olívia60, um dos mais antigos eventos turísticos criados para as lésbicas. O Cruzei-
ro Olívia, que aparece no episódio 10 da segunda temporada (“Land Ahoy”), existe desde
1973 e realiza viagens pelo caribe, além de resorts, para clientes exclusivamente lésbicas. As
paradas do orgulho também aparecem, principalmente a Gay Pride Parade 2005 de Los An-
geles, na segunda temporada. Nela aparecem o “Dykes on Bikes”,61 grupo de lésbicas motoci-
clistas que desde 1976 participa das paradas do orgulho LGBT nos Estados Unidos.
pos lésbicos, com uma trilha sonora que também se tornou febre entre as espectadoras. Nomes
como o grupo Betty, criadoras da trilha de abertura do seriado, EZGirls, The Murmurs, Heart,
The Organ, que antes eram desconhecidos, começaram a fazer sucesso após aparição no seri-
ado. Engraçado notar que sempre há um show desses grupos para elas irem e, quando chegam
lá, eles são muito famosos. As integrantes de Betty, inclusive, participam como atrizes de vá-
rios episódios da série, fazendo parcerias musicais com a personagem de Pam Grier (Kit Pot-
59
Disponivel em <http://www.dinahshoreweekend.com/index.php>, acesso em 25 nov. 2007.
60
Disponível em <http://www.olivia.com/default.aspx>, acesso em 25 nov. 2007
61
Disponível em <http://dykesonbikes.org/1_about.html>, acesso em 25 nov. 2007.
97
Aliás, uma das exigências da produtora Ilene Chaiken é exatamente que se dê es-
paço para as lésbicas assumidas participarem de “The L Word”. Sejam como roteiristas, dire-
toras, atrizes, cantoras ou equipe técnica. Por isso costuma-se dizer que a série é feita por lés-
bicas. No documentário “The L World” (2006), Ilene afirma que sua intenção é “tentar traba-
lhar com todas as boas cineastas lésbicas”, quando anuncia em uma festa que o episódio que
seria exibido fora dirigido por Kimberly Peirce, de “Meninos Não Choram” (“Boys Don‟t
Cry”, 1999). Uma das diretoras recorrentes da série, por exemplo, é Rose Troche, que em
1994 dirigiu “Go Fish!” (“O Par Perfeito”), um dos filmes mais cultuados no meio lésbico,
por ter sido quase uma “cartilha de comportamentos”. O filme ainda trazia Guinevere Turner,
também roteirista da série que participou de alguns episódios como Gaby, ex-namorada de
Alice.
Podemos não viver em West Hollywood ou caminhar pelas ruas ensolaradas da Cali-
fornia, mas todas nós já vimos ou vivemos algo assim. Essa identificação foi perce-
bida e quase todos os dias vemos uma dessas usuárias da lista contar algo que prati-
camente reproduz o que vimos na série. Temos percebido também que as fãs hete-
rossexuais, por incrível que pareça, têm se identificado de alguma maneira, e tam-
bém conseguem se ver nos problemas mostrados na série. Muitas até dizem estar
adorando saber que as lésbicas podem ter vidas tão normais quanto qualquer pessoa
hétero. (VASCONCELOS, 2006, disponível em
<http://www.umoutroolhar.com.br>, acesso em 20 nov. 2007)
Concluindo, a série, mais que tudo e com doses bem cuidadas de humor, drama e
realidade, se tornou uma fonte de visibilidade das lésbicas e de seu movimento cultural, polí-
tico e social, assim como de suas diversas identidades. Podemos ainda falar de quantas mulhe-
res conseguiram, a partir da série, aceitar sua homossexualidade e se assumir, pois viram-se
Por isso sua importância pode ser considerada, apesar de tão pouco tempo de exis-
tência. Também no documentário “The L World”, a fundadora dos Cruzeiros Olívia, Judy
Dlugacz, faz a seguinte afirmação: “As lésbicas permanecem um grupo privado de privilégios
neste país, e a mídia conduz hoje a maioria da conscientização. Havendo visibilidade, há mu-
dança. Havendo visibilidade e educação, os outros não podem mais te odiar.” (2006)
A primeira62 temporada de “The L Word” foi exibida nos Estados Unidos de ja-
neiro a abril de 2004 e lançada na América Latina em julho de 2005, teve 14 episódios, sendo
que o piloto foi dividido em primeira e segunda parte. No começo de 2007, foi lançada em
que, além de contarem um pouco da história da homossexualidade, acabam tendo alguma re-
lação intrínseca com algum fato no desenrolar da narrativa. Via de regra, bem no estilo nove-
lístico, existem vários núcleos que desenvolvem suas histórias paralelas e congruentes.
Assim, temos a personagem Bette Potter (Jennifer Beals), que é a diretora do mu-
seu California Art Center - CAC e, há sete anos, vive com Tina Kenard (Laurel Holloman).
Tina abandona seu emprego porque elas decidiram ter um bebê através da inseminação artifi-
cial. Bette, uma mulher afro-americana forte e decidida, que assumiu as contas da casa e da
62
Ver personagens e material gráfico, além do quadro de Alice, no anexo 1.
99
família, vive para o trabalho. Sua rotina intensa e estressante, assim como a longa duração do
casamento, acaba refletindo na vida sexual do casal. Tina, a princípio parece submissa, mas é
ela quem percebe que estão com problemas, ela quem conduz a relação para que dê certo,
inclusive sugerindo a terapia. Juntas, representam o casal de lésbicas que passam a fazer tudo
juntas, que se unem rapidamente, estabelecendo laços afetivos profundos e dependência emo-
cional intensa em pouco tempo. Durante uma das sessões de terapia, no primeiro episódio,
Tina solta uma frase que acaba mostrando bem como a relação duradoura entre lésbicas acaba
se estabelecendo: “the lesbians urge to merge!”, algo como “as lésbicas desejam se fundir”
(tradução nossa).
nizando para terem filhos quando conseguem uma boa situação financeira e uma relação está-
mais acessível, apesar de ainda muito caro, e, por outro lado, as leis estão mais brandas no
caso de adoção. Dessa forma, as mulheres lésbicas hoje em dia têm um direito que muitas
mulheres do passado não tiveram: o de escolher exatamente quando e com quem querem ter
filhos. A gravidez planejada, as novas estruturas familiares do novo século e a educação sexu-
al mais aberta das crianças estão tornando mais fáceis tanto o lado dos pais homossexuais
Como citado, o caso do filho da cantora Cássia Eller abriu precedentes no Brasil
para esse tipo de caso, mas, da mesma forma, isso só foi possível porque a sociedade está ad-
quirindo consciência dessas chamadas “novas famílias”. E abordar esse caso na série é fun-
Jenny Schecter (Mia Kirshner) é uma jovem escritora que se muda para Los An-
geles para morar com o namorado e começar sua carreira. É uma personagem que parece estar
sempre meio perdida, sempre meio à deriva. O seu namorado, Tim (Eric Mabius) é um pro-
fessor de natação carinhoso e atento, que está muito feliz por finalmente ter a amada por per-
to. Logo no primeiro episódio, Jenny conhece Marina, a dona do café gay The Planet, núcleo
européia, que se interessa por artes, livros, música, é dona do café mais popular da região on-
de vivem e, ainda por cima, tem um charme irresistível. Quando Jenny conhece Marina, essa
desperta nela pela primeira vez o desejo sexual por uma mulher. Jenny, conflituosa e instável,
se apaixona perdidamente por ela, mas não termina seu relacionamento com Tim. A impres-
são que se dá nos primeiros episódios é que Tim é o homem perfeito e que Jenny está sendo a
pior das pessoas ao traí-lo. E que Marina tem como passatempo desestabilizar relações. Mas,
quando se apaixona por uma mulher mais experiente, com atrativos intelectuais, boa conversa,
carinho. E que, num determinado momento, tem que deixar de lado o namoradinho de escola,
aparentemente o “genro perfeito”. Seus conflitos são intensos e densos, a personagem cria
viagens literárias onde realiza suas fantasias, seu livro acaba se tornando seu diário, e ela re-
trata, assim, a primeira vez, tanto emotiva, quanto sexual, de uma garota com outra garota. Já
Marina assume o papel da mulher que inicia sexualmente outras mulheres, que “ensina” como
ser lésbica.
Dana Fairbanks (Erin Daniels) é uma tenista profissional que tem muito medo de
se assumir, tanto para a família, quanto para a sociedade, já que isso pode afetar negativamen-
101
te sua carreira. Ela tem poucas experiências sexuais e é a personagem que mais questiona a
lesbianidade ao longo da primeira temporada. Como uma das personagens mais bem construí-
das e carismáticas, é dela que partem várias conversas que mostram o universo comum das
lésbicas. Por exemplo, as características para descobrir se alguém é lésbica, como o tamanho
da unha ou o jeito de andar, o tipo de roupa que uma lésbica supostamente deve usar ou a e-
xistência do chamado gaydar, ou “radar gay”, que, garante o senso comum, faz com que os
exatamente o momento de “sair do armário”, entender o que representa ser lésbica e, a partir
daí, assumir sua própria identidade. Além disso, ela exemplifica a forma como o mercado de
consumo hoje em dia tenta vender a homossexualidade ao se tornar a tenista lésbica garota
propaganda de uma grande marca de automóveis, o que mostra a visibilidade lésbica se tor-
Shane McCutcheon (Katherine Moening) é a que todas desejam, mas que nenhu-
ma tem. Seu lema na primeira temporada é “eu não curto relacionamentos” (“I don’t do rela-
tionships”) e por muitas vezes suas próprias amigas se referem a ela como a arrasadora de
corações, a que conquista e depois abandona. Com jeito andrógeno e papel sexual não defini-
do, a cabeleireira acabou sendo, nesta temporada, a representante que mais se aproxima do
tipo butch, por seu jeito de andar, sua voz grave e sua postura “masculina”. Shane conquistou
as fãs pelo seu estilo inigualável, e acabou influenciando o modo de vestir e o visual de mui-
tas garotas. No documentário “The L World” (THE L..., 2006), uma garota americana explica
que agora existem muitas “shanes” andando por aí. Nas cenas seguintes, diversas garotas apa-
recem com o mesmo corte de cabelo, os óculos Rayban, os tipos de calça, cintos e camisas
que fazem parte do figurino da atriz ao longo da série. Mas ela conquistou também a empatia
por ser, desde sempre, uma das melhores amigas que as outras personagens têm. Sincera, a-
tenciosa e fiel às amigas, Shane não se envolve emocionalmente com as mulheres. Mas sua
102
postura é de que, deixando claro para todas as partes, não há problema nesse tipo de compor-
tamento.
Essa personagem aponta para uma das questões mais criticadas quando se pensa
as garotas com quem ela não se envolve, mas tem relações sexuais. Seria essa uma reafirma-
ção desse estereótipo ou uma verdade ali retratada? A questão é que, infelizmente, não há, em
veis entre as lésbicas. E isso é um problema, pois num programa com tanta influência entre as
garotas mais novas, seria pertinente a educação sem demagogia que ele poderia promover.
Para piorar, Shane, no passado, se prostituía nas ruas de Los Angeles. E, hoje em dia, dorme
com várias garotas sem proteção. Não se trata de uma questão moralista, mas sim de alertar
para o fato de que a série não aproveita a influência que tem para informar sobre um assunto
outras. Jornalista, amiga de todo mundo, freqüenta todos os meios e, apesar de ser representa-
da pela única atriz homossexual assumida da série, é bissexual. Alice aparece na primeira
temporada para explicar uma das coisas mais verdadeiras em “The L Word”: o quadro.
No início do segundo episódio, que tem o nome “Let’s do It”, Alice apresenta pela
primeira vez a sua idéia do quadro. Em diálogo com o editor do jornal em que é freelance, ela
ALICE: São atos aleatórios de sexo, ok? São encontros, romances, casos de uma
noite ou 20 anos de casamento. A qualquer momento, se você reunir um grupo de
lésbicas, pode ter certeza de que alguém já dormiu com alguém, que dormiu com ou-
tra pessoa, que dormiu com outra e assim vai. Diga o nome de uma lésbica que você
conhece. Posso ligá-la à mim em 6 traços.
MARC: Christine Lee.
ALICE: Christine Lee. Fácil! Tá! Deixe-me pensar... Ela esteve com Grace Partrid-
ge, 2 anos atrás. Grace teve uma noite com Anya. Anya namorou com Denise que
morou com Katherine Claymore, que foi minha primeira namorada na faculdade. In-
crível, não?
103
MARC: (SILÊNCIO)
ALICE: Marc, não se trata só de lésbicas. Eu poderia colocar você aqui. E prova-
velmente com 6 traços, fácil! Até um, se você dormiu com Anya.
MARC: E daí?
ALICE: E daí? Daí que estamos todos conectados, vê? Pelo amor, solidão ou aquele
mínimo, lamentável, lapso de julgamento. Todos nós! Em nosso isolamento. Nós
nos alcançamos a partir da escuridão ou alienação da vida moderna ao formar essas
conexões. Acho isso uma declaração profunda sobre a natureza da existência huma-
na. (THE L..., 2004, episódio Let‟s Do It)
Drummond de Andrade: “João amava Tereza que amava Raimundo que amava Maria que
amava Lili que não amava ninguém.” Ou então, baseada na teoria dos seis graus de separação,
que afirma serem precisos apenas seis laços para interligar duas pessoas quaisquer. Mas em
versão lésbica, onde a rede de ligações entre as pessoas se estabelece através do sexo. A idéia
do quadro (“chart”, como é chamado na série), permeia todo o seriado e fala das relações en-
vários contextos da história. Em 2007, os produtores da série resolveram ir além das telas e
63
Disponível em <http://www.ourchart.com/>, acesso em 25 nov. 2007.
104
reiro de 2005 e suas estréias foram ao ar até o dia 15 de maio. No Brasil, foi exibido de julho
a outubro de 2006. Os DVDs também foram lançados no início de 2007, logo após a primeira
temporada. Ao todo, foram 13 episódios. Dessa vez, no início dos episódios, são exibidas ce-
nas de sexo com várias versões diferentes da música tema, que é introduzida pela primeira vez
na abertura da série.
Se a primeira temporada foi repleta de clichês sobre o amor entre mulheres mostran-
do, por exemplo, como identificar lésbicas, investigando suas unhas curtas e a altura
dos saltos dos sapatos, nesta segunda temporada as criadoras da série se concentra-
ram mais nos dramas pessoais de suas personagens. A menina que tinha medo de
compromisso se apaixonou pra valer, o casal que havia rompido passou a temporada
inteira tentando se reconciliar, amigas de longa data descobriram sentir tesão uma
pela outra e, desta maneira, personagens que antes pareciam unidimensionais mos-
traram outras facetas, tornando-se mais verossímeis e menos estereotipados. (LEO-
NEL, 2005, disponível em <http://mixbrasil.uol.com.br/mp/2.shtml>, acesso em 20
de julho de 2005)
atriz Karina Lombard teve com o resto da equipe de “The L Word”. Os fãs não gostaram nada
da saída de uma das atrizes mais bonitas da série, e criticaram bastante o fato em comunidades
e sites especializados. Mas duas novas personagens femininas iriam criar mais representações
Carmem (Sarah Shahi) é uma DJ latia e muito atraente, que chega para, pela pri-
meira vez, envolver Shane em um relacionamento sério. É aquela mulher moderna, antenada,
jovem e que não deixa transparecer sua sexualidade. Sua beleza e sensualidade em conjunto
com o charme misterioso de Shane fizeram das duas o casal mais querido da temporada. Prin-
cipalmente pelas cenas de sexo que protagonizaram. É a primeira referência às mulheres lati-
64
Ver personagens e material gráfico no anexo 2.
105
„Queríamos mostrar uma personagem que retratasse a cultura latina, que tivesse vin-
do ganhar a vida nos EUA com todas as dificuldades e problemas‟, diz Monica Ta-
he, que bolou a personagem juntamente com a produtora e criadora da série, Ilene
Chaiken. Tahe, que dirige um programa voltado pra as comunidades gays dos EUA
com origem latina, africana e asiática da Gladd (Aliança Gay e Lésbica Contra a Di-
famação, na sigla em inglês), acredita que é difícil uma série de TV voltada para o
universo homossexual consiga fugir de alguma politização. „É um assunto normal-
mente ligado a questões políticas‟, diz. (SEGADILHA, 2006, disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u62496.shtml>, acesso em 20
nov. 2007)
ter, além da amizade profunda, uma atração sem tamanho uma pela outra. Juntas, elas exem-
plificam várias fantasias sexuais lesbianas: o uso de pênis de borracha, algemas, vibradores,
uniformes e troca de papéis, entre outras. Nesta temporada, a dose de humor é mais forte, bem
trabalhado através da empatia que o casal provoca. Elas representam essa fina linha que existe
entre amizade e amor no universo lesbiano. Não são poucas as vezes em que amigas de longa
data viram namoradas ou que ex-namoradas viram amigas verdadeiras. A relação de cumpli-
cidade que estabelecem permite que o sexo entre elas seja o “algo a mais” da relação.
milionária inglesa que aparece para, aparentemente, comprar seus amigos. Helena começa a
temporada com uma dose de antipatia, como a antagonista da relação Tina e Bette, que acaba-
ra na temporada anterior. Sendo a típica lésbica poderosa, ela usa seu dinheiro para comprar
seu lugar na sociedade. Ela também usa o discurso demagógico de “ajuda aos necessitados”
para se aproximar dos outros. Helena, que tem dois filhos com sua ex-companheira, acaba se
apaixonando por Tina, que está grávida da inseminação artificial feita na primeira temporada.
É interessante notar a projeção que Helena faz em Tina, ela claramente se diz atraída por ela
porque acha mulheres grávidas sedutoras. Um detalhe curioso é que a atriz que interpreta Tina
realmente estava grávida durante as gravações da segunda temporada. Por isso, sua primeira
exibindo sua barriga. Talvez pelo mesmo motivo, uma das cenas mais aclamadas pelas fãs do
seriado foi a tentativa de reconciliação entre Tina e Bette. Talvez tenha sido a primeira vez
que uma cena de sexo envolvendo uma mulher grávida e sua namorada tenha sido exibida em
TV.
rapaz que se diz cineasta, chega para dividir o apartamento com Shane e Jenny. Ele é o este-
reótipo perfeito do homem machista que vê nas lésbicas apenas uma fantasia sexual. Mark
engana as amigas, apesar de se dizer apaixonado por Shane, e espalha câmeras pela casa toda,
Se boa parte das telespectadoras radicais já mostravam certa insatisfação com os ra-
ros personagens masculinos, Mark despertou o ódio das mais condescendentes ao se
tornar símbolo do vouyerismo macho heterossexual. [...] Como autora, entretanto,
posso entender a introdução deste personagem na história, porque este tipo de confli-
to é muito útil para mostrar o tipo de invasão violenta a que mulheres, não apenas
lésbicas, sofrem no dia-a-dia, desde que Eva e Adão foram expulsos do Paraíso.
Mark conseguiu despertar a ira da feminista que existe em cada uma de nós e, quem
sabe, num esforço de metalingüagem, serviu também para evidenciar o vouyerismo
das próprias criadoras do seriado que, depois de ouvir por anos as aventuras e des-
venturas amorosas de suas amigas, resolveram contá-las num seriado de TV. (LEO-
NEL, 2005, disponível em <http://mixbrasil.uol.com.br/mp/2.shtml>, acesso em 20
de julho de 2005)
chamada Angélica. Numa das cenas mais marcantes do seriado, que é precedida por uma ma-
nifestação feminista, a irmã de Bette, Kit Potter, pega a sobrinha no colo e, em seguida, passa
para cada uma das amigas, que estão em círculo. Após voltar ao colo de Kit, essa diz: “Ah,
Angélica, você vai ter uma vida muito interessante, sabia disso? Porque somos pessoas muito,
muito interessantes. Aqui está sua mãe novamente.” E entrega o bebê à Bette, que mostra ca-
da uma das amigas à filha e diz: “Aqui está sua família”. (THE L...2005, episódio Lacuna)
107
lançada em DVD praticamente na mesma época de sua exibição por aqui. Foram 12 episódios
do ano mais triste da série “The L Word”. No começo dos episódios, a idéia do quadro é reto-
mada, desde os anos 60, traçando uma linha de relacionamentos de uma mulher conservadora,
passando por Bette, Alice e terminando em Dana, assim como a história. Não deixou de ser
Dessa vez, a série se aprofunda em temas mais delicados e comuns ao nosso cotidia-
no, como o rompimento de uma relação estável homossexual, incluindo disputa pela
guarda da filha; dúvidas de uma personagem sobre sua orientação sexual, depois de
anos em uma relação homoafetiva; dependência química causada por antidepressi-
vos, por causa de um relacionamento rompido; doença grave que poderia até ser cu-
rada se diagnosticada no início; transexualidade, entre outros assuntos. (THE L...,
2007, disponível em <http://www.umoutroolhar.com.br/entrevistalword3.htm>, a-
cesso em 20 nov. 2007)
do. Anteriormente, elas apareceram apenas como coadjuvantes, como foi o caso de Ivan (Kel-
ly Linch), nas primeira e segunda temporadas. Moira, interpretada pela atriz também lésbica e
de traços bem masculinos Daniela Sea foi um sucesso logo nos princípio dos episódios. Pri-
meiro por representar finalmente as lésbicas do estilo butch, cuja falta era motivo de crítica
desde o lançamento da série. Segundo por ser a primeira personagem pobre da trama. Essa
representação, num mundo onde todas têm muito dinheiro e são muito femininas mostrou
exatamente que o preconceito também existe entre o meio lésbico. A princípio, ela começa a
namorar Jenny, passa a morar com ela, Shane e Carmem, e vários conflitos por causa de sua
masculinidade são criados. O ponto forte deste preconceito é o episódio de nome “Lobster”,
65
Ver personagens e material gráfico no anexo 3.
108
no qual ela é convidada a jantar com toda a turma. Ficando na cabeceira, Moira, que não tem
dinheiro para comer nada além de uma salada, vê as outras mulheres pedindo pratos caríssi-
mos e várias lagostas. Completamente sem lugar naquele ambiente, ela vai embora, deixando
Jenny para trás. Realmente, dentro do contexto que até então havia sido apresentado pelo seri-
ado, aquele não era o lugar de Moira. Ainda mais porque, apesar de todo discurso feminista à
É um privilégio, para mim, interpretar esse papel e contar uma história que nunca ti-
nha sido contada na TV e fico muito feliz por Ilene e a Showtime terem resolvido
contá-la, pois conheço tantas pessoas que lidam com isso em vários níveis ou suas
amantes ou amigos ou elas mesmas querem fazer uma transição de forma física ou
estão lidando com a idéia de que o gênero é todo um espectro e não pode ser defini-
do apenas nessas caixinhas que nos deram. (SEA, Daniela, in: THE L..., 2006)
nar Max. E inicia, com a ajuda das amigas, o processo de transformação. Finalmente ela en-
contra seu lugar no ciclo das mulheres da série, ou melhor, elas começam a aceitar a força e a
postura de Moira porque percebem o quanto ela sofre por ter nascido em um corpo de mulher.
Nunca vimos um evento beneficente para uma cirurgia de um transexual na TV. Isso
está acontecendo mesmo na comunidade gay. É bom vê-los representados. (DE-
VUN, Leah in: THE L..., 2006)
tleta Dana. A contragosta de várias pessoas do elenco e de milhares de fãs, essa seria a última
temporada de Erin Daniels. Mas, segundo a produtora executiva Ilene Chaiken, as mulheres
precisavam saber que, independente de serem lésbicas, é preciso se conhecer, cuidar do corpo,
perceber que a qualquer momento um câncer pode aparecer e a prevenção é o melhor meio de
se evitar a morte. Não foi o caso de Dana. A atriz representou nesta temporada os piores mo-
mentos da doença com uma coragem inigualável. Da mesma forma, Alice demonstrou ser a
amiga mais fiel que pode existir, deixando claro que, apesar de terem terminado o namoro, o
109
amor entre as duas nunca iria acabar. Mais uma prova da profunda relação que as lésbicas
estabelecem quando têm um envolvimento amoroso real. Situações como a perda do cabelo, a
fraqueza que a faz parar de jogar tênis e, numa das mais fortes cenas já vistas, a exibição do
seio mutilado, fizeram de Dana uma mártir da história. Com certeza, as produtoras da série
deram seu recado, incentivando milhares de mulheres lésbicas a se consultarem com mais
não se preocuparem com as doenças ginecológicas, com a prevenção de DSTs, com o câncer
de mama, talvez por acharem que essas são doenças de “mulherzinhas”. Um preconceito mais
a questão que merece ser refletida pelo meio: as lésbicas precisam valorizar seus corpos.
Eu fui para parada do orgulho, levantei a blusa, coloquei os peitos pra fora e disse
“mulheres, metam os peitos”, porque as próprias lésbicas têm preconceito com o que
elas são. Elas não valorizam o corpo, elas têm vergonha, parece. E eu tenho orgulho
de ser mulher. (LÉSBICAS..., 2003)
A quarta66 temporada da série foi exibida nos canais americanos no começo deste
ano, de 07 de janeiro a 25 de março e ainda não foi exibida no Brasil ou lançada em DVD.
Para assisti-la no Brasil, por enquanto, somente através de downloads na internet ou adquirin-
leves e menos traumáticos. A saída de Dana parece ter dado efeito na história, que apesar de
mais leve, não apresenta mais tanto humor. Outra personagem que abandona a série foi Car-
66
Ver personagens e material gráfico no anexo 4.
110
Jodi, uma artista surda, Tasha, uma oficial do exército americano, bem masculina e Phyllis,
Jodi, vivida pela atriz ganhadora do Oscar por “Filhos do Silêncio” (1986) Marlee
Matlin é uma artista renomada que dá aulas na faculdade em que Bette é reitora. Ela é surda e
se apaixona por Bette, após um momento conflitante entre as duas. A sua importância na série
se dá tanto pela sua diferença quanto pela carga dramática que a dificuldade de comunicação
das duas se estabelece. Como manter uma relação entre uma ouvinte e uma não-ouvinte é a
grande sacada da forma como a duas se envolvem. Primeiramente, um intérprete ajuda Bette a
conversar com Jodi. Depois, Bette penosamente aprende a entender o que Jodi lhe diz. Essa é
a questão: a série em momento algum coloca Jodi como “deficiente”. Muito pelo contrário.
Sendo uma mulher forte, decidida e, tanto quanto Bette, independente, a relação entre elas se
torna o contrário do que havia com Tina. Bette é a mulher que aprende a lidar com Jodi, é
quem parece ser diferente, quem tem que correr atrás para poder se encaixar no mundo da
mulher por quem se apaixona. Para o público, os episódios são tão bem dirigidos que não é
preciso legendas, entende-se perfeitamente tudo o que a personagem surda diz, mesmo que
que acabou de voltar do Iraque. Masculina, tensa e sempre preocupada com a questão do “não
pergunte, não responda”, que pode fazer com que seja dispensada das forças armadas, Tasha
acaba se envolvendo com Alice. No relacionamento das duas, o que sobressai são as críticas
abertas feitas tanto ao governo americano quanto à política preconceituosa do Exército. Alice
se torna a revolucionária que ataca, que não entende, que não concorda com o envio de solda-
dos para a guerra, enquanto Tasha se torna a defensora, refletindo a postura de vários soldados
Phyllis, vivida pela atriz Cybill Shepherd que se imortalizou como a gata de “A
Gata e o Rato”, é a conselheira acadêmica e superior à Bette, que nesta temporada assume a
reitoria de uma faculdade de artes. Phyllis se aproxima de Bette por que sabe de sua homosse-
verdade pura, Phyllis acaba tendo sua iniciação sexual com outra mulher através de Alice. No
dia seguinte, ótima representação do que acontece quando uma mulher assume a lesbianidade,
Phyllis começa a perceber a beleza das garotas que encontra no corredor da faculdade com
outros olhos, com olhos de desejo. Uma personagem mais velha era desejo das fãs desde o
início da série. No documentário “The L World”(2006), duas senhoras que estão no Cruzeiro
Olívia conversam com Ilene Chaiken e questionam porque tanto “sexo, sexo, sexo, cama, ca-
ma, cama”. Segundo elas, as meninas de vinte anos deitavam na cama apenas pelo sexo, mas
as mulheres mais velhas deitavam e dormiam. Elas queriam ver representadas as histórias das
lésbicas da terceira idade. Coincidência ou não, o documentário foi feito pouco tempo antes
Ou seja, isso reflete um fato constatado ao longo das quatro temporadas produzi-
das. Conforme as fãs e espectadoras iam colocando suas necessidades, vontades, reclamações
público lésbico tem muita importância para a construção dos roteiros. As participações, as
A série se encaminha para a quinta temporada como um dos mais importantes es-
paços de visibilidade lesbiana, algo conquistado com muita luta e que sempre foi direito das
mulheres homossexuais. A televisão, como meio de comunicação, é talvez a janela mais aber-
ta a mostrar essas questões. O fato de existir, neste mercado consumista e na sociedade ma-
ERIN: There are people trying to figure out how to label them-
selves career wise...
LEISHA: Having a job is having a job. I think things in life are the
same pretty much across the board.
MIA: We've all come to a place in our lives, where we meet some-
body whom is in a relationship, or that person is in a relation-
ship... where they sorta shake our world, and it's a choice we
make whether to continue on that path...
ERIN: You find yourself going... "I've SO been there! I totally un-
derstand what she is feeling, or what he is feeling, in some cases."
(THE L WORD DEFINED, 2004)
ERIN: Você vai se pegar pensando... "Eu passei por isso! Eu en-
tendo perfeitamente o que ela está sentindo, ou o que ele está sen-
tindo, em alguns casos".
(THE L WORD DEFINED, 2004)
113
apaixonada pelo cinema e pela televisão, já me tornara uma aficionada pelo gênero série de
com a devida roupagem que, muitas vezes, faltava ao cinema. Dessa forma, não só acompa-
Quando vi pela primeira vez a série, aquele episódio cortado exibido pela Warner
Channel em julho de 2005, percebi que alguma coisa diferente era lançada. Diferente e perti-
nente: era preciso falar no assunto. Após tantos anos de invisibilidade, finalmente permitiram
que as lésbicas se mostrassem como realmente são, com uma verdade como nunca havia sido
mostrada na TV. Imediatamente procurei mais informações sobre o assunto e, assustada, per-
cebi que a comunidade do Orkut dedicada ao seriado já possuía um número enorme de inte-
grantes. Ao me associar, conheci pessoas interessantes que achavam importante, assim como
eu, existir uma série que falasse das lésbicas com verdade e, ao mesmo tempo, beleza. Na
mesma comunidade, aprendi como assistir aos episódios pela internet. Foi quando percebi o
quão censurado ele tinha sido exibido pela primeira vez no Brasil. Pesquisando mais, vi que já
havia várias reclamações para que o canal voltasse atrás e acompanhei a conquista das fãs.
Neste momento, passei a ver a série pela internet, depois pela televisão e ainda, logo depois da
exibição do episódio, participar dos fóruns do Orkut, para saber quais tinham sido as opiniões
das espectadoras. Vivi, por um tempo, um fenômeno comum hoje quando o assunto é série de
televisão, já que muitos fãs de várias séries continuam a viver suas temporadas mesmo quan-
do não são exibidas, em salas de bate papo, sites e comunidades de relacionamento. E, com
isso, aprendi a valorizar mais ainda o gênero seriado. Era nele que estávamos tendo o nosso
espaço.
114
Esse acompanhamento tão próximo foi importante porque me deu a certeza de que
era possível falar no assunto. A lesbianidade não estava mais tão enfurnada nos livros invisí-
veis da história do mundo, não possuía mais um caráter negativo ou anormal, pelo menos no
meio televisivo.
Com a ajuda de uma amiga, conhecida através do Orkut, comecei a pensar sobre
um roteiro com histórias de amor entre mulheres que fossem passadas na minha cidade, na
minha realidade, a partir de minhas vivências. Vi aqui em Juiz de Fora um ambiente ideal pois
há anos a cidade possuía uma tradição de “aceitar bem” os homossexuais. Após longos papos
on-line, diversas pesquisas sobre o assunto e a descoberta de que, na verdade, muito pouco era
falado sobre a mulher lésbica no Brasil e no mundo, começou a nascer em meus pensamentos
a história de “O Móbile”.
ve sua primeira versão finalizada em março de 2006. Desde o início, pensava em escrever
cinco histórias diferentes de amor entre mulheres, passadas na cidade de Juiz de Fora. E assim
o fiz. O objetivo principal é que se tornasse uma série de TV, mas como no Brasil esse forma-
to ainda é pouco produzido e financiado através das leis de incentivo à cultura, preferi focar
Master Scenes de formatação de roteiro, que é o que mais se aproxima das produções norte-
americanas de TV, já que é o padrão utilizado pelo cinema de Hollywod. O Master Scenes
permite uma contagem de tempo do filme através da quantidade de páginas do roteiro, e, des-
67
Ver blog <www.omobile.blogspot.com> e material gráfico e artes no anexo 5.
115
sa forma, estabelece que uma página equivalha a um minuto do filme. Também estabelece os
conceitos de story line, argumento, perfil das personagens, cenas e diálogos68. A partir desse
formato, as cinco histórias foram escritas sempre tendo como critério o tempo máximo de 15
minutos.
Por que usar o Master Scenes? Por que é um sistema simples, muito usado (qualquer
pessoa da área de cinema que vê-lo vai saber que é um roteiro) e permite ao roteiris-
ta se concentrar mais no que é o dever dele: contar uma história. Como regra, corte o
máximo possível de indicações técnicas e se concentra ao máximo no enredo do ro-
teiro. Sempre há algum modo de sugerir algo ao diretor, fotógrafo, ator, editor e ou-
tros da área, e realmente não é necessário usar explicitamente um termo técnico...
Use o bom senso.(CONCEITOS FUNDAMENTAIS..., 200?, disponível em
<http://www.cinemanet.com.br/guialayoutmasterscenes.asp>,acesso em 20 nov.
2007)
Apenas a idéia que seriam histórias sobre lésbicas e cinco substantivos: “Admiração”, “Diálo-
go”, “Apoio”, “Confiança” e “Perdão”. A partir dessas palavras, cada história foi elaborada,
opinião. Primeiro, conhece-se uma pessoa e passa-se a admirá-la. Quando a coragem vem,
aproxima-se dessa pessoa e estabelece-se uma conversa, um diálogo. Com o primeiro momen-
to do romance, o passo mais importante se torna confiar na pessoa que está ao seu lado. E, por
possível perdoar. Porque os defeitos podem acabar com um amor, de uma hora para outra.
E as personagens? Seriam dez as principais, cada uma com sua particular caracte-
rística. Os perfis psicológicos foram sendo criados, assim com suas profissões e os casais dos
quais fariam parte: uma artista plástica e uma pintora, uma dona-de-casa e uma arquiteta, duas
jovens, uma surda e outra cega, duas senhoras, uma escritora e outra jardineira, uma cantora e
68
Story Line é um resumo da história central do roteiro apresentada em, no máximo, 05 linhas. Argumento é a apresentação
da história através de uma narrativa linear na qual as situações dramáticas serão descritas. O perfil das personagens mostra
quem é o sujeito da ação narrativa. Já as cenas são todas as ações estabelecidas em um determinado momento e em uma
locação, por isso em seu cabeçalho devem vir as indicações INTERNA/EXTERNA, DIA/NOITE e o LOCAL onde a ação se
passa. O diálogo são todas as falas dos personagens, que podem também estar em OFF, ou seja, ele não aparece na cena.
116
uma fotógrafa. Os nomes, na verdade, vieram antes de seu físico, tinham mais a ver com sua
personalidade do que com qualquer coisa. Difícil escolher dentre tantos nomes fortes e espe-
ciais de mulher, mas assim ficaram: Bárbara e Nina, Ísis e Estela, Clara e Olívia, Anita e Sofi-
ria que seria contada. Nesse ponto, com a imagem de um móbile com as cinco palavras flutu-
ando surgiu o título “O Móbile”, um retrato do amor em constante movimento. Esse elemento
visual foi, então, inserido no contexto da personagem e, ao longo das histórias, representam
suas identidades.
Juiz de Fora, neste ínterim, se mostrou o pano de fundo ideal para essas histórias
Rainbow Fest, realizada pelo MGM - Movimento Gay de Minas, em parceria com a
Rumos, empresa júnior do Curso de Turismo da UFJF, o concurso “Miss Brasil Gay” e o
evento “Rainbow Fest” atrairam em 2006 cerca de 10 mil turistas que injetaram mais de
Parada do Orgulho GLBT”, reuniu cerca de 120 mil pessoas nas ruas do centro de Juiz de
Fora. E não podemos esquecer a lei municipal n° 9.791, citada no capítulo 2 desse
17 de outubro de 200769, aprenta grupos que lutam pela cidadania e respeito dos gays.
ção não-governamental MGM – Movimento Gay de Minas, para que fosse garantidas a veros-
69
Ver a polêmica absurda no site <http://www.mgm.org.br/portal/modules.php?name=News&file=article&sid=474>, acesso
em 17 nov. 2007.
117
Nesse sentido, as personagens foram criadas com caráter forte e perfil coeso na
por parte das espectadoras. Elas são mulheres reais, que se tornam exemplos por suas pos-
turas e, sem querer influenciar ou determinar nada, trazem em cada gesto uma amostra do
universo feminino, homossexual ou não. São mulheres que não se prendem a estereótipos
e que não têm medo de suas opções e desejos. Demonstram seus sentimentos e opiniões
livremente no mundo contemporâneo, amam, e sofrem por amor. Por isso, são persona-
público de uma realidade em que a mulher homossexual escolhe e respeita seu caminho
Em “Admiração”, Bárbara é uma pintora que faz quadros inspirados nas interpre-
tações de uma atriz. Por sua vez, Nina, a atriz, constrói seus personagens a partir das pinturas
de Bárbara. Quando finalmente se conhecem em uma exposição, descobrem que são, na ver-
dade, apaixonadas uma pela outra. Mas não aceitam viver o relacionamento, com medo de
perderem o talento e a inspiração. Vivem, então, sua história nas telas e nas peças, distantes,
apenas na admiração.
arquiteta e tem 27 anos. Ísis é heterossexual, vive um casamento fracassado e tem mais de 40
anos. Mesmo com essas diferenças iniciais, passam a conversar muito e se apaixonam pelas
palavras uma da outra. No entanto, Ísis sente medo da novidade e dos estranhos sentimentos
118
que tomam conta de seu coração. Decidem finalmente se encontrar, vencem o medo e dão
lugar a uma paixão arrebatadora. Na vida, nada muda demais. Só o amor volta a acontecer.
Em “Confiança”, Clara é surda. Olívia é cega. Fazem juntas aulas de ginástica es-
pecial, mas nunca se conheceram de fato. Na primeira vez que fazem um exercício juntas, ao
se tocarem, sentem algo inexplicável. Apaixonam-se e tentam viver esse amor aparentemente
impossível. A mãe de Clara não aceita o relacionamento da filha. Depois de um acidente onde
há 51 anos. Numa manhã, Sofia levanta-se e chama a companheira. Mas Anita não acorda.
Em meio à dor, Sofia prepara tudo para as homenagens e partida da mulher amada. E, depois
de concluir os preparativos, ela acompanha seu grande amor e morre ao lado do caixão de
Anita.
Luisa, cantora de sucesso, há cinco anos. Numa das brigas, Renata sai de casa e Malu transa
com o baixista de sua banda. Elas terminam. A cantora descobre que está grávida. E somente
o nascimento da filha de Maria Luiza traz o perdão da fotógrafa e renova a felicidade no rela-
foi registrado em meu nome no Escritório de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional (regis-
tro número: 381.857 / livro 709 / folha 17) em abril de 2006. Em Maio do mesmo ano, teve
projeto inscrito na Lei Municipal de Incentivo à Cultura Murilo Mendes, sem aprovação, e em
Junho teve projeto contemplado pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais
te, não foi possível captar os recursos da Lei Estadual, já que o projeto previa a produção dos
para sua realização. No momento, para tornar viável a realização dos curtas em breve, outros
projetos estão sendo apresentados tanto à Lei Rouanet – Lei Federal de Incentivo à Cultura,
a cada releitura. É a chamada “guerra do papel”, comum no meio profissional, onde cada ver-
são do roteiro se recria e se estabelece conforme um novo olhar sobre o texto. Acredito que,
de fato, a história final dos curtas de “O Móbile” só será estabelecida no momento de seus
lançamentos. O texto, a narrativa, a interpretação, a direção, tudo isso torna-se fluido, também
filme.
O roteiro como está hoje, em novembro de 2007, segue a seguir, dividido por cada
apresentado segue, em parte, as regras do Master Scenes. Apenas o tipo de fonte, indicada
para ser a Courier New de tipo 12, foi mantida como em todo o resto do texto deste trabalho
5.1.1. Admiração
Nina Maya sempre quis ser atriz. Fez cursos de teatro, participou de grupos locais
e nacionais. Aos poucos, se tornou conhecida do grande público e requisitada pelos melhores
diretores. Hoje, aos 26 anos, é considerada a atriz de maior expressão em Juiz de Fora e uma
das melhores do Brasil. Tem olhos profundos, mas sua principal marca são os gestos, precisos
e delicados, fortes e sensíveis. Cada personagem que interpreta entra em sua alma, toma conta
120
de seu corpo e a transforma por completo. Sua expressão corporal só não é mais completa do
que seu poder de sedução no palco. Todos que a assistem se apaixonam, de uma forma ou de
outra. Ela, por sua vez, sempre teve a impressão de que fica melhor dentro das personagens do
que em seu papel na vida real. A insegurança sempre atrapalhou um pouco Nina a ter um re-
lacionamento tranqüilo e saudável. Ela não conseguiu assumir sua homossexualidade e vive
apenas casos eventuais, sem nunca ter se apaixonado por alguém. Como uma mulher ligada à
cultura, Nina lê muito e adora artes plásticas. Sua pintora preferida é Bárbara Oliveira, conter-
rânea e única na arte de retratar mulheres. Desde que viu suas obras pela primeira vez, acom-
panha sua produção e é apaixonada por suas pinturas. Encontrou em seus traços a inspiração
que faltava à suas personagens, o toque mágico. No momento, Nina ensaia para a estréia do
espetáculo “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant”, de Rainer Werner Fassbinder, no
ra, mas pinta desde criança. Aos 30 anos, já se considera uma mulher realizada. Bonita, ativa,
divertida e feminina, Bárbara sempre foi uma mulher de convicções fortes. Aos 21 anos as-
sumiu sua homossexualidade ao namorar Catarina, sua produtora. Já havia tido vários relacio-
namentos pequenos, mas nada que a fizesse se abrir para os pais e para a família. Com Catari-
na, seu valor no mercado aumentou, mas logo os problemas de trabalho começaram a interfe-
rir no relacionamento. Catarina e Bárbara terminaram o namoro há mais de dois anos, mas
continuam sendo muito amigas e a trabalharem juntas. Suas obras retratam mulheres de diver-
sas etnias e culturas, sempre em traços pouco definidos e cores fortes. Como num retrato fos-
co, embaçado, em que é preciso fixar os olhos, se aproximar, entrar e conhecer para poder
perceber toda a beleza e delicadeza daquelas mulheres. Já fez exposições em todo o país e se
prepara para mandar suas principais obras para um museu no exterior. Um grande coleciona-
dor comprou todas as peças, até as de arquivo pessoal, e prometeu mantê-las unidas, nesse
121
museu. Aquela se tornaria uma exposição permanente de Bárbara. Somente por isso ela acei-
tou. Principalmente porque as obras vendidas foram as principais pintadas a partir das atua-
ções de sua musa inspiradora: a atriz Nina Maya. Em silêncio, Bárbara acompanha a carreira e
as peças da atriz e, de cada personagem que assiste nos palcos, cria algo novo nas pinturas.
Na história, o ano é 2006, a cidade é Juiz de Fora. Nina Maya ensaia compulsiva-
mente para seu novo espetáculo: “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant”, de Rainer Wer-
ner Fassbinder. Há dois anos, a atriz tem como inspiração principal as pinturas de uma artista
de sua cidade. A partir dos retratos de mulheres pintados em traços pouco definidos e cores
fortes, a atriz cria suas personagens e interpretações. Nina se inspira em uma foto de um dos
quadros da pintora.
Bárbara Oliveira é essa pintora. A artista, por outro lado, tem como musa a atriz
Nina. Sempre acompanha suas peças, sempre observa seus gestos, falas, sentimentos e cria
seus quadros com essa inspiração. Há, em seu atelier, uma parede inteira de fotos, recordações
e notícias de Nina Maya. Elas não se conhecem pessoalmente e nem imaginam o que uma
Para celebrar a venda da maioria de suas obras, e para relembrar seu trabalho, Ca-
tarina, que é produtora e ex-namorada de Bárbara, organiza uma exposição em uma galeria de
Juiz de Fora. Ao saber que os originais de Bárbara iriam para a França e que não os veria tão
cedo, Nina resolve visitar a exposição e se apresentar à Bárbara. Na verdade, ela tem medo do
bara fica sem palavras, não acredita que a atriz está ali, ao lado dela. Ao se encontrarem, Bár-
bara e Nina se apaixonam. Saem para uma boate e, em meio a uma dança sensual, ficam jun-
criação das duas começa a declinar. Nina não consegue mais alcançar o texto, as falas da sua
122
personagem Petra. Seu diretor, preocupado, tenta saber onde foi parar o talento da atriz. Ela
sabe. E Bárbara não consegue mais pintar. Fica por horas parada diante da tela vazia, enquan-
to sua produtora cobra serviço. Bárbara também tem idéia do que possa estar acontecendo,
mas não acredita nisso. O que elas sabem é que a fonte de admiração foi alcançada. O que era
impossível tornou-se real. Enquanto elas se admiravam e se seduziam sem saber, a mágica da
criação funcionava perfeitamente. Mas agora que tinham finalmente se tocado e se preenchi-
do, a mágica da inspiração tinha ido embora. Numa tentativa desesperada de fazer o tempo
voltar, elas têm uma discussão e terminam o namoro. Nina abandona Bárbara para não abrir
Elas se separam com dor, com frustração, com muito sofrimento. O talento volta,
elas passam a produzir como nunca. Mas nada mais é igual. O espetáculo de Nina Maya es-
tréia, e em cada interpretação os gestos são indefinidos e as cores fortes até demais. Em todas
Bárbara e Nina passam a viver somente na admiração daquele grande amor que
NINA
Dou-te tempo, Karin. Tempo é o que não nos falta. Temos imenso tempo.
Mistura a cor vermelha com a preta. Leva o pincel até uma tela branca e faz um traço forte e
indefinido. Ao fundo, no atelier, há uma parede recoberta de fotos e recortes com as perfor-
mances da atriz Nina Maya.
NINA
Ainda nunca, nunca, senti amor por uma mulher. Sou louca, Karin, louca!
Bárbara molha o pincel mais uma vez, olha para a tela. Depois, pinta compulsivamente. Ter-
mina pintando a pupila de um dos olhos. Pára e olha para a pintura. No canto inferior direito,
Bárbara assina seu nome: Bárbara Oliveira.
EDUARDO
Você está bem?
Nina apenas balança a cabeça afirmativamente. Ela olha para Eduardo e sorri, enquanto ele
sobe no palco.
EDUARDO
Nina, vamos parar por hoje.
EDUARDO
Você foi além do que eu esperava, Nina.
124
NINA
Não sei, Eduardo. É estranho. A Petra, essa personagem, o que ela vive, é tudo muito
forte pra mim. (pausa) Esse lance dela ser apaixonada pela Karín. (pausa mais longa)
Sabe?
EDUARDO
Deveria ser mais fácil pra você, não?
NINA
Eu acho que é pior. Você sabe que eu nunca consegui assumir isso pra mim, apesar de
querer muito. Às vezes.
EDUARDO
Mas exatamente o quê você sente quando pensa em ficar com outra mulher?
NINA
Não sei. (pausa) Medo. Medo de ser isso mesmo que eu quero pra mim. (sorri) Ah!!
Deixa pra lá. Vamos embora? Pra mim deu por hoje.
Nina dá um beijo no rosto de Eduardo e pega o texto do chão. Levanta-se e começa a sair em
direção à coxia.
EDUARDO
Nina?
EDUARDO
Eu preciso que você supere esse medo, Nina. A Petra precisa disso. E principalmente
você precisa disso. Não há nada errado em se amar uma mulher.
Eduardo pisca o olho com carinho. Nina sorri, enrola o texto que está em suas mãos e se vira
para a coxia.
CATARINA
(olhando para os papéis)
Já tá tudo certo, a exposição começa na quinta-feira. O coquetel está acertado, os con-
vites já foram enviados. O comprador chega amanhã no Rio e eu já acertei sua vinda
pra cá. Ele é ótimo! O museu que ele vai abrir em Paris, com todas as suas obras, Bár-
bara!! Imagina isso!
Bárbara parece não ouvir o que Catarina diz. Catarina pára de falar e olha para a Bárbara.
125
CATARINA
Mas qual é o problema, Bárbara?
BÁRBARA
Difícil não pensar que essa é minha última exposição na cidade. Vai demorar pra eu
ter um catálogo como esse de novo. Não sei se eu consigo mais pintar desse jeito.
Catarina olha para Bárbara e ri. Balança a cabeça negativamente e toma um gole de café.
BÁRBARA
O que foi? Eu tô falando sério!
CATARINA
Bárbara, eu sinceramente não sei o porquê. Mas desde que você montou aquele, sei lá,
memorial Nina Maya na parede do seu atelier, você pinta um quadro novo todos os di-
as! Eu acho duas coisas. (toma mais um gole) Primeiro que você vai produzir como
nunca agora. E depois, bom, que você está apaixonada.
BÁRBARA
Não seja ridícula! Pela Nina? Eu nem a conheço!
CATARINA
Mas eu te conheço, Bárbara. Nunca se esqueça disso.
Bárbara olha com ar de reprovação para Catarina e volta para os seus documentos na mesa.
Catarina ri com ironia mais uma vez e deixa a xícara na mesa.
NINA
(para si mesma)
Nossa. É inexplicável! Eu só vi esse original uma vez na vida, mas eu nunca mais me
esqueci. Nunca.
Bárbara pára repentinamente de conversar com as pessoas reconhecendo a voz. Olha devagar
para o lado, procura a voz que ouviu. Vê Nina parada ao lado dela. Fica sem palavras, olhan-
126
do para Nina.
NINA
É a obra mais linda que já vi.
Bárbara aproxima-se de Nina. Pára ao seu lado e sorri, extasiada. Nina percebe sua presença e
olha rapidamente para Bárbara, como num susto.
NINA
(muito sem graça)
É... Oi! É... Me desculpe. Eu fico completamente fora de mim quando vejo seus qua-
dros. Pareço uma idiota. Nem me apresentei, meu nome é...
BÁRBARA
(interrompe)
Nina Maya. Eu sei quem você é. E sou uma grande fã sua.
NINA
(ri, mais sem graça)
Não. Essas palavras são minhas.
BÁRBARA
(sedutora)
Admiro muito o seu trabalho. (aproxima-se mais) Os seus gestos, a sua voz. É difícil
explicar como as suas interpretações mexem comigo. É um prazer enorme te conhecer,
Nina.
Bárbara estende a mão. Nina olha para seus olhos, depois para sua mão. Observa as unhas
bem feitas, mas curtas, e um anel muito bonito no dedo indicador. Estende sua mão com u-
nhas compridas e bem pintadas. Cumprimentam-se. Nina tenta desviar o olhar dos olhos de
Bárbara, mas não consegue.
NINA
Nossa. Você conseguiu me deixar sem graça.
NINA
Na verdade, eu tenho que confessar. Minha inspiração é maravilhosa.
Retira a foto do clipe e entrega para Bárbara, que olha para a foto e depois para o quadro perto
das duas.
BÁRBARA
Essa foto? O meu quadro! Como assim?
NINA
Eu visitei uma exposição sua há algum tempo. Mas você, infelizmente, não estava. Fi-
quei horas olhando pra essa pintura, para os traços, para as cores. (envergonhada) Sen-
127
ti coisas que... (pausa) É difícil explicar, né? Mas, enfim. Depois que saí da exposição,
procurei por meses por uma foto dele. E desde então, você me acompanha.
Nina pega a foto das mãos de Bárbara. Sutilmente seus dedos se tocam. Bárbara olha bem no
fundo dos olhos de Nina. Bárbara se aproxima de Nina, fala ao seu ouvido. Nina sorri, fe-
chando os olhos. Um garçom passa e Bárbara pega duas taças de champagne. Entrega uma
para Nina. Elas brindam. O som ambiente fica mais evidente. Nina e Bárbara conversam, sor-
riem e seduzem-se enquanto os convidados apreciam as obras expostas. O som ambiente tor-
na-se mais agitado.
bara. Derrubam uma lata de tinta vermelha. A tinta escorre pelo chão e encharca o texto de
Nina, enquanto ouve-se um gemido de prazer.
CATARINA
Eu só queria entender o que está acontecendo contigo.
BÁRBARA
Não tem nada acontecendo comigo.
CATARINA
Ah, é? (se aproxima) Há quantos meses você não pinta nada? Bárbara, você tem que
produzir alguma coisa, cara!
BÁRBARA
Não adianta me pressionar. Aliás, você não é mais minha namorada pra falar assim
comigo.
Então, calma lá!
CATARINA
(respira fundo)
Sim. Não sou. Sou sua empresária. Cuido do seu trabalho. E é o meu que tá na reta se
você não produz nada. Então eu posso falar assim com você sim! E eu acho que você
não ta sabendo escolher. Fica o dia todo por conta da Nina. E aí?
BÁRBARA
A Nina não tem nada a ver com isso, Catarina.
CATARINA
Claro que tem! Você sabe que tem. Então cai na real e descobre onde foi parar a porra
da sua inspiração.
Catarina sai e bate a porta com fúria. Bárbara fica olhando para a porta fechada, pensativa.
Vira-se com raiva e joga o pincel na parede de fotos da Nina.
EDUARDO
Você quer conversar?
NINA
Na boa, não. Só não tô conseguindo. A estréia está chegando e eu não sei onde está
129
minha cabeça, meu corpo, nada. Não sei Edu, não sei.
EDUARDO
Nina, você é a atriz mais talentosa com quem já trabalhei. Confio plenamente no que
você faz lá em cima. Mas eu tô preocupado sim. A Petra é complicada. Ela é mais ve-
lha, é densa, vive um amor impossível. Você tem que sentir essa dor que ela sente. E
onde está isso?
NINA
Eu não sei.
EDUARDO
Mas vai saber meu anjo, vai saber. Vamos com calma.
Nina olha para as lágrimas de espuma do cenário, que balançam no vazio do palco.
BÁRBARA
Oi, amor. Não te vi chegar.
NINA
Eu sei que não. Hei, vem cá.
NINA
Precisamos conversar...
BÁRBARA
Não, não precisamos. Não começa!
BÁRBARA
Não faz isso, amor... Não faz isso com a gente.
Nina nada diz. Apenas olha para a porta, para o armário, para a parede. Tenta segurar o choro.
BÁRBARA
Eu amo você.
NINA
Eu também amo você. Amo muito.
NINA
Mas não dá mais. Eu queria... Como eu queira... Mas eu não consigo. Desculpa.
Nina se levanta novamente. Pega a bolsa na cadeira e vai para a porta. Pára por alguns segun-
dos. Uma lágrima desce pelo seu rosto. Sem olhar para trás, ela sai. Bárbara fica olhando para
a porta, sem acreditar.
5.1.2. Diálogo
Em “Diálogo”, a personagem principal é Ísis dos Santos, uma mulher com pouco mais
de 40 anos, mas que, infelizmente, aparenta mais. Isso por viver a rotina doméstica sem gran-
des pretensões e por ter um casamento frustrado. Seu marido, Henrique, é um bom homem,
mas muito calado. Quase não saem, quase não conversam e o sexo não é muito bom. Ísis
sempre gostou de aventura, mas nunca teve coragem de correr atrás de seus sonhos. Por isso
Um dia ela decide dar um pequeno passo de mudança: compra um computador. O que
parecia bobeira se torna o grande amigo de Ísis. Ela passa horas conhecendo o mundo através
da internet e decide, da mesma forma, conhecer pessoas. Conhece Estela, uma arquiteta muito
131
sedutora com as palavras, com um jeito de falar especial e único. Ísis se apaixona pelas pala-
vras, pela foto, pelo jeito de Estela, mas sofre por sentir isso. Primeiro porque é casada, se-
gundo por nunca ter sentido nada por nenhuma mulher antes. Os desejos vêm em seus sonhos,
a vontade aumenta e ela se torna, finalmente, uma mulher corajosa a ponto se ouvir seu pró-
prio coração.
Estela tem 27 anos, tem um escritório de arquitetura e seu trabalho é muito reconheci-
do em Juiz de Fora. É responsável por prédios e casas noturnas tidas como referência arquite-
tônica no país. Muito nova, terminou sua faculdade e dedicou a vida ao trabalho. Uma mulher
extremamente elegante e bem sucedida. Tem um estilo esporte fino com requintes de casuali-
dade. Homossexual, Estela sempre teve uma queda por mulheres mais velhas. Morou por
tempos com uma de 45 anos, se envolveu alguns namoros breves e hoje em dia está solteira.
Já teve alguns relacionamentos pela internet, mas nunca acreditou nesse meio. Só que ulti-
mamente troca correspondência constante com Ísis, uma mulher casada. Tem medo do que
Eles moram atualmente em Juiz de Fora. Sua rotina não deixa a dever a nenhuma empregada
doméstica. Varrer, passar, lavar, cozinhar e cuidar do marido. Um dia, Ísis compra de presente
pra si mesma um computador. O marido simplesmente ignora o fato, o que frustra Ísis ainda
mais. Com o novo brinquedo, ela encontra uma ótima fuga da rotina. Tem um prazer enorme
de mexer nos programas e de aprender aos poucos como desvendar a internet. Enquanto isso,
o marido percebe que está perdendo espaço na casa para a máquina, mas pouco faz pra mudar
permanece em nenhuma. Até que se vê num chat para homossexuais femininas. A princípio,
Ísis reluta. Mas depois aceita conversar com uma mulher que chama sua atenção. Essa mulher
132
é a arquiteta Estela, que é mais nova, lésbica e solteira. Com muita conversa e horas de bate-
papo, a sedução por palavras faz com que se apaixonem. Começam a sentir saudades uma da
temente proibido. Paralelamente, Ísis não entende muito bem o que se passa e tenta manter a
normalidade de seu casamento. Mas isso já não é possível. Ela só consegue pensar na mulher
da internet, que a cada dia a conquista mais. Quando não agüentam mais de ansiedade e dese-
jo, Estela propõe de se conhecerem. Ísis, morrendo de medo, aceita, pois tem que saber o que
está sentindo.
primeiro, esperando ansiosa, por Ísis. Na verdade, pensa que ela não vai aparecer. Mas Ísis
vai. Enfrenta o medo e aparece para ver Estela. Não é preciso mais palavras. Não importa
mais o que têm a dizer. Ísis aceita a paixão que sente. E num momento exaltado, Ísis beija
Estela.
Após o encontro, novos rumos se estabelecem na vida das duas. Elas passam a vi-
ver um relacionamento de carinho e respeito. Vão morar juntas e com isso, dividir a vida, des-
cobrir segredos e compartilhar sentimentos. A rotina de Ísis não muda radicalmente só por
estar com uma mulher. A diferença é que agora ela ama e se sente amada. Com isso, encontra
ÍSIS
(alto)
Vou à feira. Quer alguma coisa?
Henrique levanta-se rápido do sofá, vai até Ísis, abraça-lhe com carinho e beija sua testa.
HENRIQUE
Meu amor, eu vou pra você!!
Volta à cena anterior. Henrique sentado no sofá, inerte, vendo televisão. Ísis pára de sonhar
acordada.
ÍSIS
(alto)
Vou à feira. Quer alguma coisa?
Ísis espera uma reação do marido, mas ele nem olha pra trás. Apenas levanta a mão e dá um
tchau. Ela sai com a bolsa na mão.
ÍSIS
(cínica)
Comprei um computador com seu cartão de crédito, ta, benhê!
HENRIQUE
Hein?
HENRIQUE
Cadê o almoço, Ísis?
ÍSIS
(sem olhar para ele)
Está no microondas, Henrique.
HENRIQUE
Comida requentada de novo. Mas que saco, hein?
ÍSIS
(irônica, sussurrando)
Vai se acostumando, meu filho.
Henrique está sentado na mesa, fazendo contas. Ísis chega por trás dele e o abraça. Ele apenas
sorri e volta para as contas. Ísis suspira e senta ao lado dele. Entrega-lhe o CD dentro de uma
capinha de plástico.
HENRIQUE
O que é isso? Um CD pirata?
HENRIQUE
Eu já te falei pra não comprar essas porcarias, Ísis! Fica jogando dinheiro no lixo.
Ele pega o CD e joga do outro lado da mesa, voltando para as contas. Ísis faz que vai explicar,
mas desiste. Pega o CD na mesa e com tristeza nos olhos, sai da sala.
ÍSIS
Ai! Será? Hum... Então tá. (escreve e fala) Alô!
ESTELA
Alô? Como assim? (ri) Agora curiosa fiquei eu. (escreve) Oi, como se chama?
ÍSIS
É... Por que não?... (escreve e fala) Meu nome é Ísis. Eu não sou lésbica. (pára de es-
crever) Ai! Que ridículo. Sou muito velha pra essas coisas. (apaga parte do texto).
136
ESTELA
Ísis. Quem é você, Ísis? (volta a escrever) Você só está curiosa? (debochando) Ou quer
descobrir de verdade o que é gostar de uma mulher?
Estela enche um pouco mais a própria taça de vinho, rindo do que acaba de escrever.
ÍSIS
Ai, meu Deus, o que eu tô fazendo. E a outra me pergunta isso de cara!
Ela olha para a porta, ouve o som de novela na maior altura. Vai até a porta e a fecha.
ÍSIS
Ah! Quer saber?
Ísis senta-se novamente no computador e escreve: “EU SOU CASADA. COM UM HO-
MEM”. Sorri, pensativa. Aperta a tecla ENTER. Ísis faz cara de vergonha. O som anuncia que
uma nova mensagem chegou. Ísis lê atenta.
ÍSIS
Abusada essa Estela...(pausa) Hum, gostei.
Ísis volta a digitar, com um sorriso maroto no rosto. Vários momentos passam, imagens das
duas teclando. Ísis na sala, Estela no seu quarto.
ESTELA
Sérgio, é o seguinte. Aquele móvel parma não vai ficar legal na sala. Contrasta muito
com as cores da parede.
A secretária de Estela entra pela porta e pede licença. Estela a chama com a mão. A secretária
entra e deixa um documento na mesa. Estela agradece com a mão, pega o documento e senta-
137
se na mesa. Continua ao telefone, prestando atenção. Abre o envelope, tira algumas folhas de
um projeto e começa a folhear. O laptop na mesa avisa o recebimento de uma mensagem.
Estela larga as folhas e puxa o laptop pra mais perto.
ESTELA
Sérgio? Desculpe, mas eu preciso desligar. Depois conversamos na reunião. (pausa)
Pode deixar. Um abraço!
Estela tira o fone do ouvido, e mexe no laptop para abrir a mensagem. Uma foto de Isis apare-
ce na tela. Estela olha para a foto interessada. Sorri, gostando do que vê. Pega um cigarro,
acende. Senta-se. Continua a olhar para a foto, rodando na cadeira, com ar apaixonado.
ÍSIS
Você viu aquele filme que passou ontem?
ESTELA
Pára com isso...
ÍSIS
Seu cabelo fica lindo preso desse jeito.
ESTELA
A primeira vez que eu fiquei com uma mulher, eu tinha 17 anos.
ÍSIS
Eu queria sentir seu perfume...
ESTELA
Eu gosto de ouvir MPB, um pouco de Jazz.
ÍSIS
Você é linda, sabia?
ESTELA
Queria te levar pra jantar... agora! É! Agora!
ÍSIS
Paulinho Moska, Lenine.... Bethânia? Nossa!! Amo!!!
ÍSIS
Nossa, aquele bar, foi você quem projetou? É lindo!
ESTELA
Você já viu “O Triciclo”? É espetacular...
138
ÍSIS
Eu gosto de documentários, de séries de tv.
ÍSIS
Eu casei muito nova.
ESTELA
Adoro cozinhar. Adoro! Acho que eu daria uma ótima chef.
ÍSIS
A gente podia ir pra Ibitipoca. Acredita que eu não conheço?
ESTELA
Quero te dar um beijo.
ÍSIS
Eu também quero te beijar...
ÍSIS
Meu Deus! Quer me matar do coração, criatura?
HENRIQUE
O que você tem, hein? Fica o dia todo aí, nesse computador. Nem parece que eu tô a-
qui.
ÍSIS
(irônica)
Ah! Agora você sabe o que eu sinto, né?
139
HENRIQUE
Quê isso, amorzim. Pôxa, não fala assim comigo. (se aproxima dela) Vem cá, tô com
saudade de você.
Ísis faz cara de nojo quando o marido a abraça. Mas se arrepende, retribui o abraço e lhe dá
um beijo. O marido começa a beijar com maior insistência. Ísis muda de idéia novamente e
empurra o marido.
HENRIQUE
Quê foi???
ÍSIS
Tô cansada. Vou tomar um banho.
Ela sai pelo corredor, o marido vai atrás. Ela entra no banheiro da casa e bate a porta na cara
do marido.
HENRIQUE
Ísis, você tá muito estranha! Fala comigo! Hei, Ísis!
ESTELA
Que loucura. Não posso sentir saudade assim dessa mulher, meu Deus... (escreve) Vo-
cê me faz falta.
Ela espera e lê a resposta de Ísis que diz: “EU QUERIA TER CORAGEM PRA TE ENCON-
TRAR. MAS O MEDO É TANTO!”.
ESTELA
Eu também tenho medo. Muito medo.
Estela escreve: “POSSO TE LIGAR? AGORA?” E espera. Instantes depois, ela lê “SIM” na
tela. Pega o telefone.
ÍSIS
Não. Ele tá no trabalho. Que bom ouvir sua voz. (sorri) Sabe, eu preciso...
140
ÍSIS
Eu preciso te conhecer. Saber o que é isso tudo. Eu tenho sonhado com você!! E só te
vi nas fotos, pela web cam. Eu sou casada. E, pior, eu nunca gostei de mulher na mi-
nha vida! Eu tô ficando completamente maluca.
ESTELA
Eu... Eu também quero muito, eu preciso olhar seus olhos, sentir seu cheiro. Eu, eu...
ESTELA
(em êxtase)
Sim! Claro! Agora!
HENRIQUE
Onde você vai assim?
ÍSIS
(sem graça)
Ah.. É... Não te interessa!
HENRIQUE
(assustado com a reação)
Quê isso, Ísis!
ÍSIS
Ai! Desculpa, Henrique, eu tô atrasada, depois te falo.
Ela vai falando enquanto passa entre o marido e a porta, quase correndo. Ele olha para a porta
espantado.
5.1.3. Apoio
As personagens de “Apoio” são as jovens Clara e Olívia. Clara é uma linda garota de
20 anos. Alegre, inteligente, corajosa e surda. Desde nascença apresentava problemas auditi-
vos, mas aos 10 anos teve uma febre altíssima que lhe deixou surda dos dois ouvidos e que
afetou também sua capacidade de fala. Gesticula as vogais e consoantes com precisão, mas o
som não sai de sua boca. Na verdade, a surdez não é um problema. Filha de pais atenciosos,
teve uma criação tranqüila, com muito amor e paciência. Moram em uma grande casa com
piscina num bairro afastado. Mas Clara não sabe nadar. Ficar embaixo d‟água sempre lhe
trouxe aflição. Clara sabe que sua mãe é uma mulher difícil e faz de tudo para não decepcio-
ná-la. Sem assumir sua lesbianidade, ela já teve alguns breves namoros. Sempre desejou sair
de casa, ser independente para poder viver isso de forma mais tranqüila. Mas sabe que, por
enquanto, isso não é possível. Ela participa de grupos de apoio às necessidades especiais e
começou recentemente a faculdade de psicologia. No momento vive uma boa fase de sua vi-
da, começando a vida adulta com tranqüilidade e sabedoria. Às vezes sente ímpetos de loucu-
Olívia tem 22 anos, toca violino na orquestra de Câmara do Pró-Música, é uma mulher
linda com um talento nato para a música. Cega de nascença, Olívia soube desenvolver bem
seus outros sentidos, sendo uma artista talentosa e sensível. Seu melhor amigo é também seu
professor de ginástica especial. Freqüenta suas aulas há mais de dois anos. Gosta de dançar e
é muito feminina. Suave. Uma mulher delicada, mas que pode ser forte e decidida, como o
toque do violino. Ela nunca teve problemas em assumir que era lésbica. Ela pensa que, como
não enxerga, não vê o preconceito nos olhos dos outros. Por isso se dá tão bem com sua orien-
tação sexual. Mas, como ainda é nova e não conheceu a pessoa ideal, a pessoa em quem con-
fiar, está solteira. Seu último relacionamento foi conturbado, e houve traição por parte da ex-
143
namorada. Então ela se reserva pra poder confiar em alguém. É uma pessoa apaixonada pela
vida e apaixonante, nunca se sentiu diferente por nada e soube se adaptar a todas as dificulda-
das as terças e quintas, ele se reúne para participar das aulas de ginástica do professor Márcio.
Ele realiza esse trabalho com portadores de necessidades especiais em Juiz de Fora há alguns
anos. Pelas mãos e orientação do professor, todas as diferenças somem e todos se tornam um
só. Freqüentam essas aulas, Clara e Olívia. Clara ficou surda quando era criança, o que afetou
também sua capacidade de falar. Olívia é cega desde nascença e desenvolveu seus outros sen-
tidos como ninguém. Ambas aceitam muito bem suas diferenças, assim como a maioria dos
que fazem as aulas de ginástica. Clara e Olívia nunca fizeram um exercício juntas e, por isso,
Numa quinta despretensiosa do ano de 2006, Márcio une Clara e Olívia num exer-
cício de confiança. Uma teria que conduzir a outra como uma marionete. Clara se candidata,
então, a ser a marionete, o que deixa Olívia muito feliz. Nunca haviam confiado nela pra con-
duzir antes. Logo no primeiro toque, algo inesperado acontece. As peles se estremecem. Os
corpos se aquecem. Clara se deixa levar pelas mãos de Olívia, seduzida pelos movimentos, o
coração acelerado numa dança bela e completa. Algo que não necessita de luzes ou de sons
para se entender.
Depois da aula, Clara pede ajuda a Márcio para conversar com Olívia. Pede um
contato, explica que quer conhecê-la melhor e a recíproca é verdadeira. Olívia sente que esse
interesse não é apenas por uma amizade. Seu coração ficou abalado também. No primeiro
momento, dúvida. Mas depois de mais algumas aulas, não há mais o que negar. Elas se gos-
tam de verdade. E declaram seu amor, começando a namorar escondido. A mãe de Clara nun-
ca aceitou o fato de a filha ser lésbica. Clara, por sua vez, tenta ignorar o preconceito da mãe e
144
duas, agride Olívia e a manda embora de sua casa. Desorientada e assustada, Olívia sai cor-
rendo pelo quintal da casa de Clara, que tenta impedi-la. Olívia não percebe a grande piscina
que está à sua frente, tropeça na escada e cai dentro da água. Clara se desespera porque não
sabe nadar. Ela não consegue gritar por ajuda, está presa e limitada, enquanto Olívia, incons-
ciente, está se afogando. O momento é esse. Não há palavras, sons, sinais, nada que a faça
pedir ajuda. Somente ela pode salvar Olívia. E seu amor por ela prova ser maior que tudo.
Clara se joga na água, quase afogando e alcança Olívia. Segura-a, como Olívia fez com ela na
primeira aula. Tenta puxá-la para a beirada, mas Olívia está realmente desorientada. Clara,
fraca, busca toda a sua adrenalina para salvar Olívia. E consegue finalmente puxar seu corpo
A mãe de Clara acaba aceitando a filha, pois percebe sua felicidade com aquele
amor. Resolve, assim, apoiá-las. Conclusão: nenhuma diferença é capaz de estragar o amor
que sentem.
OLIVIA
145
Márcio dá um beijo no rosto de Olívia e orienta sua mão direita até o rosto de Clara. Oliva faz
o reconhecimento facial com delicadeza.
MÁRCIO
Olívia! Essa é Clara. Ela vai fazer o exercício contigo hoje, ok?
OLÍVIA
E aí, Clara. Tudo bem?
MÁRCIO
Ela não ouvir a gente, Olívia. Mas tenho certeza que isso não vai ser um problema pra
vocês. (para o resto da turma, dizendo em LIBRAS ao mesmo tempo) Vamos começar
hoje com exercícios de confiança.
Márcio dá um exemplo do exercício onde um tem que guiar os gestos do outro como numa
marionete. Clara segura no ombro esquerdo de Olívia. Dá um leve apertão, indicando que
quer ser guiada primeiro. Olívia sorri e, com sua mão direita segura na mão de Clara a puxan-
do para sua frente. Elas ficam frente a frente. Clara fecha os olhos. As mãos se cruzam acima
do corpo, se soltam e começam a dançarem juntas no ar, como num espelho. As palmas se
encostam, Clara sorri. Olívia também. A mãe de Clara observa o exercício das duas. Clara
aproxima seu corpo de Olívia que a abraça. Clara fica mole como uma boneca. Olívia ergue
com suavidade o corpo de Clara e começam a dançar pelo salão, como num tango. Clara man-
tém os olhos fechados enquanto Olívia guia seus passos. Olívia sorri. Ela passa suavemente
sua mão direita nas costas de Clara, num carinho sutil. A mãe de Clara nota o gesto e fecha a
cara com desconfiança. Elas dançam por mais algum tempo, indiferentes ao resto da turma. A
música pára, mas Clara não desfaz o abraço de Olívia. Abre os olhos e sorri. Eleva a mão pelo
ombro de Olívia, passa pela nuca e chega a seu rosto. Sente a pele de Olívia com a mão por
alguns segundos. Elas se separam, deixando as mãos por último. Márcio, ao fundo, prepara
outro exercício.
MÁRCIO
(em LIBRAS ao mesmo tempo)
Clara! Olívia gostaria de se encontrar com você para se conhecerem melhor! O que
você acha?
Clara responde em LIBRAS que sim, e pergunta para Márcio se ele pode passar o número do
telefone para ela. Ele responde que sim, em LIBRAS.
MÁRCIO
A Clara tem em casa um telefone que transforma o que você diz em texto. Ela pediu
para te dar o número, daí, vocês podem conversar!
146
A mãe de Clara se aproxima dos três e chama, em LIBRAS, Clara para ir embora.
MÃE
Tchau, Márcio! Até a aula que vem.
OLÍVIA
(sussurrando)
Queria que você me ouvisse pra dizer que pensei em você. Desde o dia que te conheci.
Queria saber te dizer. Queria ter te telefonado. Mas. Não, não tive coragem.
Clara parece entender o que Olívia diz e sorri, olhando para baixo. Olha em volta e percebe
que os alunos estão alheios às duas. Olívia calça o outro tênis. Clara pega sua mão e a puxa
para perto de seu peito. Clara coloca a mão de Olívia sobre seu coração e a segura com as
duas mãos, fazendo um carinho sutil. Olívia fecha os olhos sentindo o carinho de Clara. Clara
olha mais uma vez e se levanta. Pega a mão de Olívia e a coloca em seu ombro. Começa a
guiar Olívia para o jardim ao lado da sala de ginástica.
barulho vindo da sala de ginástica. Pára de repente. Volta o corpo para trás. Clara estende a
mão até o coração de Olívia. Balança a cabeça negativamente. Puxa o corpo de Olívia para
mais perto. Abraça-lhe com paixão. Ficam abraçadas por alguns segundos, de olhos fechados.
Separam-se. Clara passa a mão no rosto de Olívia e sai. Olívia fica parada sorrindo.
MÃE
(em LIBRAS ao mesmo tempo)
Pra quê você tá querendo aprender isso?
Clara responde em LIBRAS “PORQUE EU QUERO, ORAS”. A mãe olha para a filha e puxa
uma cadeira. Senta-se perto dela. Clara desvia os olhos, fingindo que a mãe não está ali. A
mãe toca mais uma vez no ombro de Clara.
MÃE
(em LIBRAS ao mesmo tempo)
Como assim porque você quer? Que desaforo! Já sei! É aquela menina, né? A cega!!!
Clara se levanta, colocando a cadeira com raiva para mais perto da mesa. Olha para a mãe
com indignação.
MÃE
(em LIBRAS ao mesmo tempo)
Eu não acredito. A gente já conversou tanto sobre isso. Você não gosta de mulher!!
Entendeu?
Clara chega bem perto da mãe e diz em LIBRAS “E SE EU FOR LÉSBICA?”. A mãe se le-
vanta.
MÃE
(em LIBRAS ao mesmo tempo)
Se você for lésbica? O que você quer dizer com se você for lésbica? Qual o seu pro-
blema, Clara? Você não acha que já é difícil demais pra mim você ser... (pára de falar)
Clara, com calma e ironia, em LIBRAS, completa a frase da mãe. “EU SER SURDA?”.
MÃE
(em LIBRAS ao mesmo tempo)
Não, minha filha. Desculpe. Não.
Clara junta seu material da mesa e sai da sala. A mãe fica sentada, sem saber o que fazer.
a procura de um dos bancos. Ao longe, Clara observa Olívia comprar as flores. Ela se aproxi-
ma silenciosamente.
OLÍVIA
Não adianta chegar de mansinho. Eu sei que é você quem está aí.
Clara sorri. Olívia entrega-lhe o buquê. Elas se abraçam. Olívia fecha os olhos. Clara segura
sua mão, meio que escondido dos outros.
OLÍVIA
Fico imaginando qual a cor dos seus olhos. Qual o jeito do seu cabelo. Quais os tons
que gosta de usar. Eu sei que você não escuta o que estou falando. Mas eu sei que você
me sente. Eu sei. E você sabe o que eu sinto.
Clara tira um papel do bolso e entrega para Olívia. Ela abre e sente algo escrito em Braile.
Enquanto ela lê o que está escrito, seus olhos se enchem de lágrimas.
OLÍVIA
Sim. Eu quero. Quero ser sua namorada.
Elas se abraçam. As rosas nas mãos de Clara e a carta nas mãos de Olívia.
OLÍVIA
Então tem uma piscina aqui e um cachorro no fundo da casa. Deve ser bonito aqui.
(pega o furador e a régua e escreve em braile) Você gosta de nadar?
Olívia entrega o papel à Clara que lê com os olhos e com os dedos e balança a cabeça negati-
vamente. Escreve algo.
OLÍVIA
Você não sabe nadar? Nossa. Eu vivo batendo nas beiradas. (ri) Até que tá aprendendo
rápido o braile! Hei, lê isso aqui.
Olívia pega o material na frente dela e escreve em braile algo como “QUER DORMIR CO-
MIGO HOJE?”. E entrega para Clara. Ela tenta ler e vai rindo enquanto descobre o que está
escrito. Pega um lápis e escreve embaixo para não esquecer: “QUER DORMIR COMIGO
HOJE”. Depois, pega o furador e escreve na frente, em braile: “SIM. ONDE?”. E entrega o
papel para Olívia.
OLÍVIA
Faz pergunta difícil não.
149
Olívia se vira e dá um beijo no rosto de Clara. Ela não percebe que a mãe de Clara acabou de
chegar em casa e observa as duas na piscina. A mãe larga a bolsa e a sacola que traz nas
mãos.
MÃE
(gritando)
Clara!! Clara! Solta essa menina!
Olívia escuta e se assusta. Levanta e deixa cair os papéis e o furador. Clara não entende o que
acontece. Vira pra trás e vê sua mãe andando em direção às duas. Pede para a mãe parar com
as mãos. A mãe se aproxima das duas mas não pára e empurra a filha para o lado. Dirige-se à
Olívia.
MÃE
Hei, mocinha! Quem você pensa que é! Você está na minha casa e me desrespeita as-
sim! Sai daqui!
OLÍVIA
Me desculpe. Não foi minha intenção!!
MÃE
Eu vou entrar e fingir que nada aconteceu. Você vai embora agora. Entendeu?
A mãe vira às costas e entra na casa. Clara se aproxima de Olívia e a abraça, tentando impedir
que vá embora. Olívia segura as mãos de Clara com nervoso e a afasta.
OLÍVIA
(nervosa)
Não. Eu vou embora. Não me segura, por favor!
Olívia solta as mãos de Clara e sai correndo, sem saber ao certo para onde ir. Clara tenta gritar
por ela, mas os sons são inaudíveis. Olívia corre na direção da piscina, desorientada. Não vê a
escada e tropeça. Bate a cabeça na borda e cai dentro da piscina. Clara se desespera e tenta
gritar pela mãe. Chega perto da piscina e tenta alcançar o corpo de Olívia que se afunda deva-
gar. Clara percebe que Olívia está inconsciente. Grita em silêncio mais uma vez. Olha para os
lados, tenta enxergar ajuda. Toma coragem, se levanta e se joga na água, tentando nadar como
pode. Clara alcança Olívia e a puxa, mas quase se afoga. Recupera-se como pode e chega na
beirada da piscina. A mãe de Clara chega na janela e vê a filha salvando Olívia. Enquanto
isso, Clara segura a cabeça de Olívia e tenta acordá-la. Ela começa a recobrar a consciência e
vê Clara na sua frente. Clara a beija e enxuga seu rosto. A mãe chega na piscina e estende a
mão para ajudar Olívia. Clara conduz a mão de Olívia até a mão de sua mãe. Ela ajuda Olívia
a subir na escada. Clara a segue e a abraça. A mãe observa a felicidade da filha. Passa a mão
pelos cabelos e cruza os braços.
MÃE
Fazer o quê, né? (se abaixa perto das meninas) Eu amo você, minha filha, do jeito que
você é. Se é o que você quer... (sorri)
Clara não ouve a mãe mas entende o que ela fala. Segura sua mão. Olívia tosse um pouco.
150
MÃE
(carinhosa)
Olívia, você está bem, menina?
OLÍVIA
Sim, senhora. Eu tropecei. Desculpe.
MÃE
Não precisa se desculpar. Mas, você gosta mesmo de Clara, menina?
OLÍVIA
Eu amo sua filha. Amo de verdade.
Clara observa a conversa das duas. Sua mãe se vira e diz em LIBRAS para Clara “ELA
GOSTA DE VOCÊ” e sorri. Clara abraça a mãe. Elas se separam e a mãe se levanta para bus-
car uma toalha. Clara fica ao lado de Olívia, no chão da piscina, sentindo os cabelos da namo-
rada com carinho. Beija sua testa e coloca sua cabeça próxima ao coração. Olívia fecha os
olhos e sorri.
5.1.4. Confiança
Em “Confiança”, Anita, 84 anos é escritora e tem como grande paixão sua mulher
Sofia. Além dos livros, passa seu tempo produzindo móbiles de cristais com animais em
origami, que distribui pela casa e dá para as amigas. Nasceu em plena “Semana da Arte
Moderna” do Brasil e seu nome é uma homenagem à pintora brasileira Anita Malfatti. Seus
pais eram artistas e ativistas do Modernismo e fizeram questão dos estudos da filha. Ela
formou-se em filosofia em Paris. Voltou ao Brasil em 1948, quando terminou seus estudos.
Publicou diversos romances no Brasil e escreve até os dias de hoje. Apesar de viajar muito
por todo o país, escolheu Juiz de Fora para morar desde seu retorno ao Brasil. Anita se
apaixonou por Sofia assim que a conheceu. Mas fez a côrte por muito tempo antes de se
declarar. Ia até a floricultura de Sofia e levava livros, presentes e bombons para ela. Saíram
algumas vezes para conversar, se encotraram muitas vezes para tomar um café, e o namoro
por olhares durou meses. Quando Anita tomou coragem para revelar seu amor, Sofia já estava
Sofia tem 79 anos e uma origem humilde. Os pais vieram do campo e sempre
trabalharam em fazendas com criação de gados e plantas. Quando se mudaram para Juiz de
Fora, Sofia já sabia que seguiria os passos da família. O pai montou uma floricultura, que
Sofia fez questão de manter. Sofia continua criando plantas exóticas em casa. É apaixonada
Foi conquistada por Anita aos poucos. Abriu seu coração para essa nova
experiência e se apaixonou completamente, passando logo após a dividir sua casa com ela.
Casadas desde 1955, aprenderam muito juntas. Sofia fez somente o primário, mas Anita
ensinou a ela tudo o que sabia sobre arte, cultura, letras e filosofia.
Juiz de Fora com muita discrição. Apesar de Anita se tornado uma escritora famosa e, com
isso, ter enfrentado preconceitos por sua orientação sexual. No entanto, nem Anita, nem Sofia
faziam questão de abrir ou de esconder seu relacionamento. Eram mulheres muito ativas e
felizes, casadas em amor. Atualmente, Anita está terminando um livro que tem como tema o
sopro da vida. Numa noite, Anita sofre um ataque de coração. Ao acordar, Sofia percebe que
Mesmo com dor e a tristeza, Sofia prepara tudo para que a companheira possa
descansar em paz. Enfrenta até mesmo o preconceito das agências funerárias ao querer
comprar um lote duplo no cemitério, para serem enterradas lado a lado. Para ajudar nos
preparativos, Rafaela, a sobrinha preferida de Anita vai passar uns dias com Sofia. Ela sempre
da história sobre a qual haviam conversado tantas vezes, Sofia senta-se à maquina de escrever
sempre pensando no momento em que poderá ficar a sós com ela. Quando isso finalmente
acontece, Sofia entrega-lhe o livro e declara seu amor eterno, desejando que em breve se
reencontrem. Sofia senta-se ao lado do corpo de Anita, segura-lhe as mãos e parte para
encontrá-la em outra vida. Seu desejo é cumprido. Anita e Sofia continuam unidas, para todo
o sempre.
ANITA
Boa noite, meu amor.
SOFIA
Durma bem, minha amada.
SOFIA
Amada, está na hora. O café já está pronto.
SOFIA
Anita? Vamos, querida!
Sofia passa sua mão sobre as cobertas, mexendo em Anita. Ela não reage. Sofia insiste. Anita
continua sem reagir, os olhos fechados. Sofia coloca a mão sobre o rosto de Anita. Pára de
repente. Afasta-se devagar. Pára e se levanta. Olha para Anita, balançando a cabeça, sem a-
creditar. Ela se afasta ainda mais, chegando à janela. Sofia chora.
AGENTE
Bom, senhora Sofia. Esta é a melhor opção para a sua amiga. (vira o catálogo para So-
fia) Um caixão belíssimo. O preço é um pouco alto, mas te asseguro que compensa.
Sofia continua com os olhos fixos no catálogo. O silêncio se estabelece por alguns segundos.
AGENTE
Se a senhora quiser, tenho outras opções mais em conta.
SOFIA
Eu quero saber sobre o cemitério. (para si mesma) Não entendo porque nunca nos pre-
ocupamos com isso. (ri sem graça) Era de nosso desejo sermos enterradas juntas.
AGENTE
Ah...Desculpe. Não está disponível nesse caso.
154
SOFIA.
Eu que peço desculpas, mas que caso?
AGENTE
Cova dupla somente para casais. Sinto muito.
Sofia ajeita os óculos com paciência. Respira fundo mais uma vez.
SOFIA
Meu rapaz, seja ao menos sensível. É o mínimo que sua profissão lhe pede. Não preci-
so ser mais clara! Preciso?
Sofia olha no fundo dos olhos do agente. Ele desvia os olhos, procura em documentos, coça a
cabeça e sorri sem graça.
AGENTE
Será arranjado, senhora Sofia. Não se preocupe, por favor.
O agente volta para os papéis e Sofia retira os óculos, coçando os olhos com impaciência.
RAFAELA
Eu vim assim que soube, Sofia. O que aconteceu com minha tia?
SOFIA
Os médicos não me explicaram direito. Disseram que foi um ataque do coração. Mas
eu não entendo. Ela estava bem na noite anterior, sabe? Ela estava bem.
RAFAELA
Eu sinto muito, sinto mesmo. Eu nem sei direito o que dizer. Ou o que eu posso fazer.
SOFIA
..(se levanta)
Rafaela, sua tia te amava muito. Você sabe disso, né?
155
Vai até o aparador e pega uma foto de Anita com Rafaela criança. Admira a foto. Vira-se e
entrega a foto para Rafaela.
RAFAELA
Sim, eu sei. Ela adorava brincar comigo. Leu milhares de livros pra mim.
SOFIA
..(senta-se no sofá)
Que bom que você pôde vir. Eu fico muito, muito feliz.
RAFAELA
Sofia, nunca se esqueça que você é minha tia também. Eu quero ajudar, no que for.
Vou ficar aqui até tudo se resolver, tá?
SOFIA
Oh! Minha filha... Obrigada! Eu tô tão cansada.
Sofia olha para a máquina de escrever em cima da mesa. Sorri. Levanta-se e vai até a máqui-
na. Retira o papel da máquina.
RAFAELA
Esse era o livro que ela estava escrevendo?
SOFIA
Sim, uma história linda como sempre. Ela me contou tudo o que ela queria escrever.
Passamos dias conversando sobre o assunto. Era sobre o sopro de vida. Aquele que
surge quando uma criança nasce. Ou que nos assusta quando a gente se apaixona. E
quando a gente se arrisca! Ou quando escapamos da morte.
Sente-se tonta e segura na cadeira. O agente funerário vai ajudá-la. Juntos, caminham por en-
tre as cadeiras até uma poltrona, ao lado do caixão. Rafaela agradece ao agente funerário e
auxilia Sofia a se sentar. Sofia coloca o maço de folhas no colo e sobre ele, as flores. Algumas
pessoas chegam, passam pelo caixão, cumprimentam Sofia e Rafaela e se vão. Sofia não tira
os olhos do caixão de Anita. O salão fica vazio novamente. Rafaela acompanha duas senhoras
até a porta. O agente funerário cochicha algo com Sofia, que diz que sim com a cabeça. O
agente abre delicadamente a tampa superior do caixão e se retira. Anita está muito bonita,
quase um sorriso nos lábios. Sofia se levanta e puxa com dificuldades a cadeira em que estava
para mais perto do caixão. Ela coloca as flores sobre o corpo de Anita. Senta-se com os papéis
em suas mãos. Sofia olha para o rosto de Anita. Ajeita o cabelo que cai na testa da mulher.
Faz um carinho nas mãos de Anita. Segura suas mãos por alguns instantes
SOFIA
Anita, você me ensinou a amar. A amar a nossa vida, amar as palavras. A amar ainda
mais minhas plantinhas! Amar tudo o que passamos, tudo. Todos os momentos, ruins,
bons, nossos. Você me ensinou que o amor é esse móbile que fazemos de pedras, pa-
péis, linhas. Sempre diferente, a cada dia inigualável. Ai, Anita. Você foi o único e
verdadeiro amor de toda a minha alma. (pára e olha para o maço de papéis) Eu não sei
se era bem isso que você queria, mas é a sua história. A nossa história. Obrigada por
sempre ser você mesma, Anita, minha amada. (coloca os papéis ao lado das flores)
Espero te reencontrar logo, meu amor.
Sofia senta-se ao lado do corpo, a mão direita ainda unida às de Anita. Olha por alguns instan-
tes para o rosto de Anita. Beija a ponta dos dedos da mão esquerda e delicadamente toca nos
lábios de Anita. Sofia recosta seu rosto em seu braço direito. Adormece. Rafaela volta ao sa-
lão e vê Sofia. Aproxima-se e a chama. Tenta uma vez, Sofia não responde. Tenta outra vez, e
ainda nada. Na terceira tentativa, o braço direito de Sofia pende ao lado de seu corpo. Rafaela
se afasta ao perceber a morte de Sofia.
5.1.5. Perdão
Maria Luisa Cordeiro é essa cantora de 28 anos, com uma carreira sólida e público
fiel. Mulher envolvente, voz sensual, feminilidade mesclada com masculinidade. Faz sucesso
principalmente entre jovens, com repertório pop-rock. Além de dar voz a canções de outros
compositores, tem suas próprias músicas e conquista a cada dia novos fãs. Adora MPB, blues,
soul, rock antigo, jazz. Seu estilo é uma mistura gostosa desses ritmos com um toque eletrôni-
co. Começou a cantar nos barzinhos de Juiz de Fora e já tem três discos gravados. É uma mu-
muito bem onde pisar e o que fazer pra conseguir o que quer. Mas, por outro lado, é um pouco
inconseqüente no amor. Já fez muitas loucuras e não se arrepende delas. Vive, há cinco anos,
com a fotógrafa Renata, com que tem um relacionamento estável mas desgastado. Somente
com essa mulher conseguiu sossegar um pouco, depois de trocar infinitas vezes de namorada.
Ela não se considera bissexual, mas teve alguns breves encontros sexuais com homens.
uma pulseira de couro que sempre a acompanha. Presente da mãe, amuleto de sorte. No palco,
é uma mulher sensual e forte. Sexy, na medida certa, seduz sua platéia como ninguém. Ela
sabe que precisa amadurecer um pouco pra valorizar o amor que sente por Renata. Nunca
Renata tem 32 anos, é jornalista e repórter fotográfica. Trabalha num jornal de Ju-
iz de Fora e faz trabalhos free-lance para agências de notícias do mundo todo. Seu trabalho é
admirado como um dos mais realistas e sensíveis do país. É uma mulher sensata, calma e com
forte personalidade. Difícil tirá-la do sério, e uma das coisas contra a qual tem lutado é o ciú-
me que sente de Malu. Conheceu a cantora num de seus shows, quando foi contratada para
fotografá-la para uma revista. Apaixonaram-se rápido, e um ano depois foram morar juntas.
Mas Renata já passou por momentos de traição com Malu. Somente ela para saber o quanto
perdoou e o quanto ainda ama a mulher. Ela é o braço forte, a estabilidade de Malu, e tem
opiniões bem colocadas e decididas. Ponderada, demora a tomar decisões. Mas quando as
toma, sabe que é pra valer. Como quando assumiu sua homossexualidade, para os pais e para
os irmãos. Foi repreendida, expulsa de casa. Mas, como ela já conhecia a família, só contou
quando tinha estabilidade financeira e um apartamento montado. Então, enfrentou bem a si-
tuação e hoje em dia tem um convívio tranqüilo com a mãe e com os irmãos.
Renata sabe que seu relacionamento não está indo bem. Há tempos não se sente
valorizada por Malu e sente falta da namorada. Já passou por cima de muita coisa pra ficar
158
com ela. Só que agora a paciência está se esgotando, o limite está chegando e Renata sente
que precisa tomar uma atitude. Mesmo porque pensa em, algum dia, ter filhos com Malu e
com a estabilidade atual, não é possível. Mais racional do que emotiva, Renata sabe que pre-
shows de Malu Cordeiro, que está com platéia lotada. Ela entra no palco da casa de shows
mais famosa de Juiz de Fora e todos vão à loucura. O solo do guitarrista introduz os primeiros
acordes da canção. No palco, entre caixas de som e os outros integrantes da banda, Malu en-
canta e empolga seu público. Com 28 anos, já é uma cantora de muito sucesso e sua voz grave
e forte agita todos na casa de shows. Iluminação marcante, a música toma conta de tudo. No
fundo da coxia, Renata, namorada de Malu, acompanha o show com sua câmera fotográfica.
O baixista da banda, sempre teve uma quedinha pela cantora, mas ela está com Renata há
recentemente, uma proposta irrecusável de emprego em outra cidade. Malu, sem saber de
nada ainda, continua seus shows, onde faz questão de ser agradável até demais com as fãs. O
ciúme já causou muitas discussões, mas atualmente, elas passam pela fase da indiferença,
O solo da bateria encerra o show. Malu é ovacionada por sua platéia, composta na
maioria por jovens garotas. Renata aplaude com carinho, mas não deixa de sentir a costumeira
pontada ao ver o assédio das meninas. Após o show, a conversa mais séria sobre o futuro.
Uma conversa que acaba em discussão, em descontrole, em lágrimas. Malu, como sempre,
ameaça ir embora e sai de casa. Mas, dessa vez, quem realmente vai é Renata. Ela junta suas
coisas e deixa um bilhete. Enquanto isso, Malu sai pelos bares da cidade e acaba encontrando
159
o baixista de sua banda. Para se vingar de Renata, Malu vai para a cama com Giovane. Quan-
do volta pra casa, vê que Renata pegou suas coisas e saiu de casa. Elas se separam, Renata
Após algumas semanas, Malu começa a passar mal. Sem acreditar muito na pos-
sibilidade, descobre que está grávida. Grávida de seu baixista, que, nessa altura do campeona-
to, voltou a ser apenas seu baixista. Renata continua fora do país e elas pouco se falam. Malu
não consegue parar de pensar no quanto queria sua namorada por perto, em como errou e no
que poderia fazer pra que Renata a perdoasse. E, aos poucos começa a se apaixonar pela idéia
de criar uma filha com ela. Mas ainda não tem coragem de contar da gravidez.
Um dia, andando pela rua, elas se encontram. Renata, mais abatida, com malas,
acaba de voltar para a cidade. Malu, já com oito meses, denuncia a gravidez em uma linda
barriga. Renata não consegue acreditar no que vê. Malu diz que é uma menina e pede à Rena-
ta que escolha um nome para sua filha. Mas ela fica sem reação e foge, sem entender o que
O resto da gravidez ocorre sem problemas, mas Renata ainda não sabe se volta ou
não para Malu. No dia em que a menina nasce ela aparece no hospital. Renata leva um móbile
de presente para a filha. E diz que gostaria que a menina se chamasse Myriam. Ao se reen-
contrarem, decidem esquecer todo o passado. Tudo o que Renata quer é sua família de volta,
pisca o olho para ela. Renata gesticula com os lábios “EU TE AMO” de dentro da coxia. Malu
sorri e pega o microfone da mão do assistente de palco. Ela entra animada no palco. Os aplau-
sos e gritos tomam conta da casa de shows. O outro assistente de palco lhe entrega o violão
folk e ela rapidamente passa a correia pelas costas. A música alucina o público, mulheres gri-
tam por todos os lados pedidos de casamento e elogios mais ardorosos. Renata fotografa a
platéia de dentro da coxia e passa as mãos no cabelo. Balança a cabeça com reprovação. Ma-
lu, empolgada, se aproxima do baixista e finge uma cena de sedução com ele. Com os instru-
mentos frente a frente, chega o rosto bem perto do dele e canta bem perto de seu ouvido. Gio-
vane, o baixista, aproveita o momento e aproxima mais seu corpo do dela. Ela pára de tocar e
dá um estalinho nos lábios do baixista. Renata fotografa a cena, abaixa a câmera e visualiza a
foto no visor LCD. Pensa por alguns instantes e apaga a foto. A música acaba no palco. Malu
levanta os braços e a platéia aplaude de pé.
MALU
Valeu! Obrigada!! É sempre uma delícia tocar pra vocês!! Boa noite!!!
Os outros músicos se aproximam de Malu e a abraçam. Giovane faz questão de ficar ao lado
dela. Eles agradecem juntos e saem do palco. Antes de entrar na coxia, Malu sente um puxão
no braço. Olha e vê uma menina com seus 18 anos, bonita, de boné, e sorri. Vai para a ponta
do palco, tentando se esconder de Renata, que a espera na coxia. Enquanto isso, Renata con-
versa com a empresária de Malu, que, empolgada, fala sem parar. Ela percebe que Malu sai
com a menina e tenta se desviar da empresária, mas ela não a deixa sair. Malu, na beirada do
palco, conversa intimamente com a menina, que ri e vira o rosto. Malu passa as mãos pela
costa da menina e sobe até sua nuca. Renata, ao longe, vê a cena, ainda tentado sair da con-
versa da empresária. Malu chega mais perto da menina, e dá um estalinho no canto de sua
boca, enquanto pega o papel e caneta das mãos dela e escreve, além do autógrafo, um número
de telefone celular. Ela fala algo no ouvido de Malu, que se afasta sorrindo e entra na coxia.
Malu se aproxima e dá um beijo carinhoso em Renata, que parece meio relutante, mas finge
que está tudo bem. No fundo, está magoada com a atitude da namorada. Giovane, de dentro
da coxia, observa com malícia, enquanto abre uma garrafa de cerveja. Ele vira a garrafa sem
tirar os olhos das duas. Elas param de se beijar. Renata olha por trás dos ombros a menina que
estava antes perto de Malu correr para as amigas com o papel na mão. Ela volta para a frente,
sorri amarelo e sai abraçada com Malu para o camarim.
MALU
Ai... Eu não agüento mais isso. Ainda bem que esse foi o último show.
RENATA
Por enquanto, né, amor. Daqui a pouco começa tudo de novo. (ela senta no braço do
sofá) E, vem cá, você gosta. Vai, confessa!
MALU
É... Eu gosto... Sinto-me, sei lá, viva.
RENATA
É, eu sei. Pena que eu não consiga fazer isso com você.
MALU
Hei, o quê é isso? De onde você tirou essa idéia infeliz?
Renata se levanta, bebe mais um gole do whisky e chega perto da janela. Observa a vista, com
pensamento longe.
RENATA
Você sabe que a gente não tá bem, Malu. Há quanto tempo a gente... (hesita) não tran-
sa?
MALU
Ai, não. (ela se levanta) Rê, a gente tá junta há cinco anos, cara. É difícil mesmo. Sei
lá, rotina, trabalho, estresse. Isso tudo atrapalha. Você mesma não tá afim!
RENATA
Meu anjo, não fala isso. Você sabe o quanto eu quero você, sempre. (se aproxima de
Malu) E você sempre me escapa. Arranja uma desculpa. Por quê? (falando mais baixo,
quase sussurrando) Aliás, eu sei o porquê. Porque você fica com essas menininhas por
aí... (pausa) E, sinceramente, (aumenta bem a voz) eu não agüento mais.
Malu vira às costas e pega o maço de cigarros em cima da mesa. Acende um. Malu olha pra
ela, como se não soubesse de nada. Renata olha para ela por uns instantes, depois volta a olhar
pela janela.
RENATA
O problema é que eu amo você mais do que eu me amo, né? Você vive jogando isso na
minha cara.
Malu continua quieta, parada, atônita, sem acreditar que a namorada sabe de suas traições.
Vira de costas.
RENATA
Mas sabe, Malu. Sério. Eu cansei. Eu vou mudar. (pausa longa) Hoje eu... (hesita) hoje
eu recebi uma proposta de emprego no Canadá.
MALU
(se vira rápido)
Como é que é?
RENATA
Uma revista de exploração científica. Quer minhas fotos. Lembra? Eu já mandei al-
gumas pra lá. Agora eles querem me contratar.
162
MALU
E você só me diz isso hoje? Como assim? É lógico que você disse não, né?
RENATA
Eu ainda não respondi. Mas eu tô pensando. Eu sempre quis trabalhar com isso. (pau-
sa) E, na boa, será que vale a pena eu desistir? Pela gente? Pela família que eu sempre
quis ter e você não?
Malu fica exaltada. Pega o maço de cigarros e acende mais um. Vai até o bar e completa seu
copo com mais whisky. Vira num gole só. Renata observa, silenciosa. Malu vai ao som e co-
loca um CD de rock. Aumenta o volume quase no máximo e começa a gritar a música. Renata
fecha os olhos, com impaciência.
RENATA
Pára com isso, Maria Luiza. Toda vez é a mesma coisa.
Malu continua a gritar, indiferente. Renata acaba de tomar seu whisky e continua na janela.
Malu vai para o quarto, cantando alto a música. Renata enche mais uma vez, calmamente, seu
copo. Ela vai atrás de Malu.
RENATA
(calma)
Onde você vai?
MALU
Eu vou embora. Quer saber? (grita) Eu vou embora!
Malu pega a bolsa e se dirige para a porta do quarto. Renata tenta impedi-la, mas Malu a afas-
ta.
RENATA
(com calma e ironia)
Você sempre vai embora assim. Faz as mesmas gracinhas e depois volta, como se nada
tivesse acontecido. Me pede desculpas e, como eu te amo, eu sempre digo que sim.
MALU
Não se preocupa! Dessa vez é pra valer.
Malu sai do quarto. Renata continua bebendo seu whisky. A porta do apartamento bate com
força na sala. Renata atira o copo na parede, quebrando-o com raiva.
163
GIOVANE
Oi, linda!
MALU
Gio!! Meu gato!! (sussurrando) Me tira daqui.
Giovane puxa Malu pela mão até a parte de cima do bar, onde o DJ anima a pista. Começa a
dançar com ela. Insinuante, Giovane passa a mão pelo corpo de Malu. Ela está meio bêbada e
não liga. Também se insinua para ele. Um casal de lésbicas atrás faz comentários estranhando
os dois juntos. Giovane se aproveita da bebedeira de Malu e a beija. Malu recobra a consciên-
cia e dá um tapa no rosto de Giovane. Ele ri, sem entender. Malu vai para um canto, cambale-
ando. Giovane vai atrás. Ela o abraça, pedindo desculpas. E beija-o.
EMPRESÁRIA
164
Malu faz que sim com a cabeça, mas continua com a mão sobre a boca.
EMPRESÁRIA
Você tem passado mal direto. Tem que ver isso! (pausa) Eu sei que é estranho te per-
guntar, mas você tá grávida?
Malu tira a mão da boca, olha pra empresária e fica sem reação. Olha para os lados, olha no-
vamente nos olhos da empresária e, com os olhos cheios d‟água, balança a cabeça afirmando
que sim.
EMPRESÁRIA
Ai! Meu Deus.
Malu vira-se de frente para o muro e coloca a mão sobre os olhos. A empresária olha para o
estúdio e grita.
EMPRESÁRIA
Aí, galera! Por hoje chega, ok?!
Ouve-se barulho de vozes dentro do estúdio. Os músicos saem. Giovane vem andando com a
case na mão e olha para Malu. Ela continua de costas. Giovane pára por alguns segundos. A
empresária chega e dá um tapinha nas costas de Giovane. Aponta educadamente a porta. A
empresária se coloca atrás de Malu e cruza os braços.
EMPRESÁRIA
Malu, me explica. O que aconteceu?
MALU
Eu não sei! Foi um vacilo! Eu não sei onde tava com a cabeça, cara.
EMPRESÁRIA
(chega mais perto)
Vocês estavam tentando? A Renata queria? Você nunca comentou nada comigo!
MALU
(virando-se com raiva)
Eu nunca quis! E nem sei se quero. Ela queria. Tentou me convencer por muito tempo,
ela ia engravidar, a gente ia adotar, sei lá. Mas ela queria muito. E agora? Onde ela es-
tá? O que eu faço? (senta-se) Tudo o que eu queria era ela de volta.
EMPRESÁRIA
Mas ela já sabe?
EMPRESÁRIA
E quando é que você vai ligar pra ela? E vai falar isso tudo que me falou?
165
MALU
Eu não vou contar nada. Ela nunca vai entender.
EMPRESÁRIA
(pega as mãos de Malu)
Você não conhece a sua namorada.
MALU
Hei. Só queria dizer que sinto saudades de você. Todos os dias. Eu errei, amor. Muito.
Mas... (passa a mão na barriga) ...eu preciso de você. Volta pro Brasil, volta pra mim.
Me liga, pelo menos. Você sabe que eu te amo. (com a voz sumindo) Por favor.
Malu desliga o telefone e olha para trás. Um carrinho de bebê, algumas sacolas com fraldas e
uma caixa de um berço estão no meio da sala esperando para serem arrumados. Ela faz cari-
nhos na barriga, sentindo o bebê. Fecha os olhos e sorri.
RENATA
Maria Luiza?
Malu para bruscamente, não acreditando na voz. Vira-se procurando Renata. Encontra seus
olhos e abre um sorriso de felicidade e carinho. Ela se prepara pra falar algo, mas vê o olhar
de Renata se desviar para sua barriga. Malu o acompanha olhando para baixo. Elas se aproxi-
mam.
MALU
Eu não quis te contar por telefone.
Renata não consegue falar. Estende a mão e sente a barriga de Malu.
MALU
É uma menina. Eu queria que você escolhesse o nome.
Renata balança a cabeça em reprovação. Ela dá um abraço em Malu. Fica por alguns segun-
dos, mas Renata a afasta delicadamente. Sem olhar pra seu rosto, pega sua mala e vai embora
pela rua. Malu acompanha com os olhos, sem saber o que fazer.
166
EMPRESÁRIA
Ai! Que coisa mais linda essa menina. Benza Deus. (brincando com a menina) Como é
que essa coisinha fofa vai chamar?
Renata está parada na porta, mas só agora Malu percebe sua presença. Ela traz um presente
nas mãos.
RENATA
Eu pensei em Myriam. O que você acha?
Malu não contém as lágrimas. Chama Renata para perto dela e se abraçam. A empresária pede
delicadamente licença e sai do quarto. Renata chora. Ela sente o rostinho da filha e Malu a
entrega com carinho. Renata segura desajeitada a menina.
MALU
Eu acho perfeito. É maravilhoso, meu amor.
RENATA
Me perdoe. Fica comigo. Eu não sei viver sem você. (olhando para o bebê) E quero
mais do que nunca amar você.
MALU
Eu quem tenho que te pedir perdão. Por tudo, sempre. Você é a mulher da minha vida.
E eu preciso de você. Nossa filha. Nossa filha precisa de você. Volta pra sua casa.
Elas se beijam. Renata pega o presente e entrega para Malu. Ela abre. É um móbile de peque-
nos duendes pendurados em luas. Renata pendura o móbile perto das duas e se senta ao lado
de Malu e de Myriam. Elas se abraçam. O móbile balança suavemente na brisa de fim de tarde
que entra pela janela.
167
ILENE CHAIKEN: People who are gay, at one time or another, have dealt
with those issues of sexuality, in a way that has dominated their lives,
more than the people who never have to go through the process of coming
out.
LAUREL HOLLOMAN: Sexuality in our show it's sort of two things: it can
be the driving force for one character, but it might be the aspect, for
another character.
KATE MOENING: They have more things going on than just their sexuali-
ty, like every human being does in their life.
MIA KIRSHNER: I can only speak for Jenny, but I don’t think the charac-
ter's journey is about what her sexual orientation is; it's about where her
life is going and who rocks her world...
KATE MOENING: And that's what I like...it that it doesn't just end with
the sexuality.
ERIN DANIELS: There are a lot of issues that are talked on the show that
anyone can relate to. I mean, there's a couple trying to get pregnant, that's
having a hard time.
MIA KIRSHNER: Eu só posso falar pela Jenny, mas eu não acho que a
jornada da personagem é sobre sua orientação sexual; é sobre pra onde sua
vida está seguindo e quem balança seu mundo...
ERIN DANIELS: Se você é uma mulher que ama, não importa se está a-
mando um homem ou uma mulher, continua sendo amor. A emoção não é
diferente.
ERIN DANIELS: Existe tanto assunto falado na série que nunca foi abor-
dado antes. Eu quero dizer, há um casal de lésbicas tentando engravidar, e
estão passando por um período difícil.
(THE L WORD DEFINED, 2004)
168
6. CONCLUSÃO
feminina, e conhecê-la melhor, a certeza que tenho é que as coisas mudam. O tempo e a luta
permitem transformações nos pensamentos, na forma como lidar uns com os outros, na reali-
dade que o ser humano vive dentro de uma sociedade, dentro de um estado, dentro de uma
família. A homossexualidade hoje é, visivelmente, mais aceita do que nos séculos passados,
isso é fato. Mas ainda há muito que alcançar, mudar, re-significar, construir no que diz respei-
to a identidades, papéis, gêneros. No que diz respeito à forma como as pessoas lidam com o
sexo e com suas vertentes. Na maneira como um ser humano é taxado pela sociedade em que
vive conforme suas características físicas, emocionais e sexuais. Os seres humanos são todos
diferentes, isso é uma verdade incontestável. Não há ninguém no mundo igual a outra pessoa,
Nesse mundo de diferenças, onde, como já foi dito por Tânia Navarro-Swain, o
sexo é rei, a televisão se tornou através dos tempos um dos mais fortes meios de conscientiza-
ção social. Ditando regras, modismos e valores morais, a TV tomou com força total o lugar do
cinema no quesito influência do espectador. Por isso, quando um produto cultural tipicamente
televisivo, mas com características cinematográficas como o seriado surge, não é possível
mericano desde os anos 50 e do brasileiro desde os anos 70, com seus diversos enlatados. Ho-
je, mais do que nunca, a série norte-americana toma conta das rodas de conversa, dos estudos
de comunicação, das salas de TV e dos sites da internet. Antes restrita aos canais fechados,
agora elas são acessíveis por downloads e voltaram a ser exibidas em poucos canais abertos
brasileiros.
Numa forma de juntar as duas histórias paralelas, surge a primeira série sobre lés-
bicas do mundo. “The L Word” mostrou pela primeira vez a vida das mulheres homossexuais
169
e, apesar de algumas críticas, o fez com muita fidelidade. As pessoas se viram ali retratadas e
se vêem até hoje. É fundamental perceber a importância de mercado que a série teve, já que,
mesmo com um tema tão difícil, ainda, de ser abordado, segue para sua quinta temporada.
Coisa que muitas séries importantes não conseguiram. É um fato a ser comemorado pelo mo-
vimento LGBT e pelos movimentos lesbianos, como a Liga Brasileira de Lésbicas. Se ver na
TV é uma conquista para as mulheres que, tanto por serem mulheres, quanto por serem lésbi-
cas, foram tão e duramente discriminadas ao longo dos anos. E, como não podia deixar de ser,
a visibilidade traz visibilidade. E outras pessoas perceberam que era bom, importante, essen-
Hoje existem mais livros sendo lançados, apesar de ainda poucos sendo distribuí-
dos para as grandes livrarias. Quadrinhos sobre lésbicas estão sendo feitos, filmes com gran-
des e consagradas atrizes são lançados, mais séries de TV vão surgindo. Dois exemplos de
Terra TV, na qual cada episódio tem 10 minutos e só é exibido pela internet, e na americana e
engraçada “Exes & Ohs”71, lançada por um dos primeiros canais a cabo voltados para o públi-
co homossexual, a rede LOGO. “Exes & Ohs” foi criado a partir do curta metragem “The Ten
Rules: A Lesbian Survival Guide”, de 2002 e seu título é uma gíria americana para beijos e
abraço. As duas séries têm suas características próprias, mas trazem mulheres reais, lésbicas,
Nesse contexto atual de sociedade em que vivemos, não foi preciso muito para ver
que era possível escrever um roteiro sobre lésbicas. Por isso “O Móbile” foi criado. Ressalto
aqui a importância de se perceber ser esta apenas a proposta de uma representação da realida-
de homossexual, não necessariamente a ideal. Assim como a sociedade, eu, como autora, te-
nho meus próprios vícios que foram estabelecidos através de anos e anos de histórias mal con-
70
Ver em <http://chicabuscachica.terra.es/temporada-serie/>, acesso em 26 nov. 2007.
71
Ver em < http://www.logoonline.com/shows/dyn/exes_and_ohs/videos.jhtml>, acesso em 26 nov. 2007
170
enraizados em nossa geração, mesmo com toda a informação e visibilidade que a mídia, atra-
vés de produtos culturais como a série de TV, tem oferecido à comunidade LGBT. Minha
curtas histórias que têm o seu lado de fantasia. E com personagens das mais diversas identi-
dades, assim como é a própria lesbianidade. Outra pretensão, que vem como conseqüência, é
que se criem, com essas personagens, novos perfis identitários, assim como vem acontecendo
com “The L Word”. A visibilidade lesbiana vem provocando uma nova forma de se enxergar a
mulher lésbica, que deixa de ser “caminhoneira”, “sapatão”, “sandalinha”, “vampira”, “bola-
cha”, “fancha”, “entendida” e passa a ser, dentro de suas milhares e milhares de personalida-
Essa abordagem pode até ser vista como idealizada demais, com poucos proble-
mas sendo enfrentados pelas personagens, com um mundo que encara com demasiada tranqüi-
lidade a existência de relações lésbicas. Mas é essa exatamente a proposta. Apesar das
histórias parecerem positivistas demais, mostrando, assim como na série, uma sociedade que
não existe de fato, a idéia é criar uma realidade diegética em que as mulheres, ou os homens,
Ou seja, através da ficção retratar um tipo de relação social que, espera-se, um dia
se torne verdadeira. A mesma que os movimentos lésbicos e gays buscaram ao longo das dé-
cadas, a mesma relação que vem sendo retratada através da série “The L Word”. A relação
social que não vê na orientação sexual uma característica determinante do ser humano perante
a sociedade, a igreja e a família, que permite que isso seja apenas mais uma das características
que ele apresenta. Relações que valorizam a mulher e apresentam seu papel de merecido des-
7. ANEXOS
172
173
174
175
176
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