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«Tinha aprendido sem esforço inglês, francês, português, e


latim. Suspeito, no entanto, de que não era muito capaz de
pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar,
abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia se não
pormenores, quase imediatos.
Jorge Luís Borges, Funes ou a Memória, in “Ficções”

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Introdução

$ ue nos resta para recordar na anunciada aurora do fim dos tempos? Que mais
vãs ou forjadas vozes do passado evocarão os poderes para justificarem os
meios e os fins de quaisquer actos. Qual é pois, a fronteira, ou melhor, quais os limites
da memória humana?
Se, por um lado, constantemente, aqui e ali, se constroem edifícios do saber sob
a capa dessa memórias, usando e abusando do passado, por outro vivemos na sociedade
do aqui e do agora, da aceleração do tempo até ao infinito. Ou seja existem, na
sociedade hodierna, duas atitudes antagónicas para com a Memória e o Esquecimento:
uma idolatra-a e para ela transfere a responsabilidades das acções humanas; a outra
tende a esboroar a necessidade de memória, como se o Homem fosse por natureza um
ser amnésico. Ora, se somos esse ser amnésico temos necessidade, fome de memória
porque ela é um dos elementos que definem a nossa identidade.
Não somos, nem suponho que viremos a ser, qual Funes de Borges, dotados de
memória prodigiosa. Esta perturbante personagem literária permite-nos descrever à
partida um limite da memória humana – o limite fisiológico. Ao contrário do que se
possa pensar tal limite, ou melhor, tais limites não são fácies de estabelecer e dentro da
própria psicologia, da neurobiologia ou das ciências afins e geram ainda hoje grande
polémica.1 Pretendemos não uma análise técnica e profunda da questão, para a qual nem
sequer possuímos as necessárias bases científicas, mas sim um panorama geral e
coerente sobre o actual estado da problemática da memória no campo das ciências
psíquicas. Entrámos assim no que optámos por chamar de Problemática da Memória,
neste primeiro ponto faremos uma breve análise dos processos memorativas de actual
estado busca neurológica dos limites da memória.
Não serão, no entanto, esses limites neurofisiólogicos que movem o nosso
estudo, mas sim, já no título o identificámos, o limite ético ou moral dos discursos
memorativos. Ainda dentro da Problemática da Memória e já com fito nesse limite
1
vejam-se as pesquisas de Luria, A. R., “O caso do homem que memorizava tudo”

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ético, propomo-nos revistar as simbióticas relações entre a Memória e a História.


Colocando a priori uma nova questão, deverá o historiador impor uma perspectiva ética
na construção do seu discurso? Ou seja, que valor, ou valores, limitam a acção
historiográfica enquanto discurso memorativo? Por outro lado, se sem Memória não há
possibilidade de História, o inverso já não fará sentido, dado que as memórias humanas
não são necessariamente História. Serão talvez História em potência, na medida da sua
referenciabilidade e veracidade.
Outro aspecto essencial, desta nossa abordagem da Problemática da Memória,
será a sua presença desconcertante nos discursos do poder; dos poderes de hoje, dos
poderes de ontem, dos poderes de amanhã. Todo o discurso totalitário, por exemplo,
tem essa veleidade de abusar da memória, controlá-la, redefini-la, a seu belo prazer, mas
que respostas lhe dão os discursos de poder das nossas democracias? Que passados
pretendem exumar? Não se apropriam eles da memória, como outrora os déspotas que
forjaram passados para a sua glória pessoal? Estamos de novo perante as duas atitudes,
já referidas para com a memória, mas o papel dual desta terá que ser resolvido,
sobretudo pelos discursos de poder, sob pena de cairmos em novos totalitarismos que
chocam o ovo da serpente, não no abuso da memória, mas na amnésia social.
A ideia de tempo será agora chamada colação, juntamente como novo conceito
de sociedade de informação, pois destes dois aspectos da cultura contemporânea
dependem as nossas atitudes para com a memória. O lugar da memória da sociedade de
informação, tanto pode ser uma realidade descartável com a aceleração do tempo social
que os novos tempos pressupõem; como o ídolo de pés de barro das novas concepções
de conhecimento do todo holístico. De facto, o culto do conservar de dados pelas
memórias prodigiosas não é novo nas sociedades humanas. No entanto, Memória
implica Esquecimento, ou seja a perda de informação é parte integrante do processo
anamenésico. Deste modo, o excesso de informação nunca conduzirá a construção de
um conhecimento mais sólido, nem a memórias sociais saudáveis, mas apenas ao
comemorativismo fanático que esconde a real amnésia social das sociedades
ocidentais.2
Daqui partiremos para o leitmotiv, deste nosso escorço, a análise da
problemática da memória à luz do conceito de limite. Desde logo nos deparamos com
duas tendências claras. Uma aponta para abdicação desses limites nos discursos

2
Todorov, Tzvetzan, «Lés abus de la Mémoire»

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memorativos, com uma clara tendência para o assumir da ilimitação da memória. A


outra assume-se como tendência de demarcação de limites assente numa perspectiva de
regulação do tempo, inerente às relações entre Tempo e Direito. Será, no discernir das
diferenças entre o tempo da História e o tempo do Direito, e do modo como ambos os
discursos se apropriam da memória, que pretendemos convocar eticidade, agora
transformada em novo limite dos discursos mnésicos. Importa também afirmar que essa
eticidade está intimamente ligada ao valor da Verdade e à necessidade de
Esquecimento.3
Não procuramos respostas finais, nem pedras filosofais, mas novas questões, na
linha do que temos por paradigma epistémico. Identificámos os problemas e contamos a
partir de agora conduzir, sob as areias movediças da razão, a nossa linha de pensamento
a bom porto.

3
Auge, Marc, «As Formas de Esquecimento»

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Relembrar não é a reexcitação de inúmeros traços


fragmentados inertes e fixos. É uma reconstrução
imaginativa criada a partir da relação da nossa atitude
para com toda uma massa activa de reacções ou
experiências passadas organizadas.
Frederic C. Bartlett,
citado por Eric Kandel e Larry Squire in
“Memória – da Mente às Moléculas”, pp. 14

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simples acto de recordar tem à partida mais implicações para a vida do que
poderíamos supor. De facto o conhecimento do passado é vital para que os
organismos vivos sobrevivam e evoluam ao longo do tempo, do ponto de vista
biológico, a memória é uma capacidade vital para qualquer ser vivo. Neste caso
poderemos falar de apreender com o passado relembrado para prever e prover o futuro,
não numa ânsia de o controlar, mas de lhe sobreviver. Ou seja, todo o tipo de memórias
que qualquer ser vivo possui, desde do início dos tempos tem servido como capacidade
natural de adaptação ao meio e forma de assegurar a sobrevivência.4
Por outro lado, quando falamos da memória humana, outra grave consideração a
ser tida em conta é que desde a aurora do pensamento filosófico esta foi definida como
base do conhecimento. Sócrates define todo o conhecimento como reminiscência – ou
anamenese – de uma verdade última anterior à vida presente.5 Portanto, aspecto
essencial à vida, elemento basilar na constituição da identidade e para muitos, base
epistémica de todo o saber, a memória sempre constituiu problema filosófico de suma
importância. Contudo, só ultrapassando os métodos da filosofia e chamando para o
debate ciências experimentais como a psicologia, a neurologia ou a própria biologia, se
conseguiu chegar a conclusões consensuais sobre o funcionamento da memória humana.
Como nos lembramos? Porque duram umas memórias mais do que outras? Onde no
cérebro humano se localiza a memória? Será possível memória sem esquecimento? Será
toda a memória real, ou por definição ficção dos próprios sujeitos cognoscentes? Têm
sido estas as questões principais das ciências que estudam a memória desse ponto de
vista biológico. Para muitas, o espírito arguto de génios desvendou, nos interstícios da
mente humana, as respostas, outras permanecem em aberto. Pretendemos aqui uma
síntese centrada na evolução histórica do estudo físico da memória e a partir daí abordar
as relações problemáticas entre memória, verdade e identidade à luz das mais recentes
descobertas da neurologia.

4
Dennet, Daniel e Westbury, Crish, Mining the past to consctrut the future, in “Memory, Brain and
Belief”, pp. 11 a 32
5
Dennet, Daniel e Westbury, Crish, ob. cit., in ibidem, idem

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Quando a psicologia era ainda criança travessa e dava os seus primeiros passos como
ciência autónoma da especulação filosófica, o estudo da memória foi um dos
vectores essenciais da acção dos pioneiros da psicologia e da psiquiatria. Foi
psicólogo experimentalista, H. Ebbinghaus, que, ainda durante a década de 80 do
século XIX, através de experiências nas quais ele próprio serviu de cobaia, descobriu
dois princípios chave acerca do
funcionamento da memória. O primeiro
distinguia entre dois tipos de uma
memória: memória a curto prazo e
memória de longa duração. O segundo
postulava que a “prática conduz à
perfeição”; ou seja, quantas mais
tentativas de memorização de um
determinado facto, objecto – ou no caso
das experiências de Ebbinghaus uma lista
de sílabas –, mais longa e perene será
memória dos mesmos. Estas
investigações antecipam as conclusões do
filósofo americano William James, que Imagem I
considera a memória a curto prazo como Hermann Ebbinghaus (1850 – 1909),
pioneiro do estudo da Memória Humana
uma extensão do imediato, ainda ligada,
de um ponto de vista ontológico, ao presente; só a memória de longa duração teria
essa relação ôntica com o passado.6 No final do século XIX, seria o psiquiatra russo
Korsakoff a iniciar um novo método do estudo da memória, analisando as disfunções
da memória humana com o intuito de alcançar a compreensão dos mecanismos de
funcionamento desta.7

Entretanto as experiências do psicólogo americano Eric Throndike e de outro russo, o


fisiólogo Ivan Pavlov, iriam conduzir a uma revolução epistémica no campo da

6
cf. Kandel, Eric; Squire, Larry, “Memória: da Mente ás Moléculas”, pp. 12
7
Este método, centrado nas conclusões do estudo das disfunções memorativas ainda corrente nos estudos
neurológicos sobre a memória, e não só, como por exemplo nas investigações de Aleksandr Luira,
António Damásio ou Daniel Schacter

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psicologia. Muito centrada nas teorias do condicionamento clássico e do


condicionamento operante, surge a escola behaviorista (ou comportamentalista),
teorizada por John Watson, este movimento centrava o objecto epistémico da
psicologia apenas nas acções e comportamentos observáveis. Claro que desta óptica,
a memória é em si mesma realidade ininteligível, apenas existente desse ponto de
vista comportamental, que se pretendia o único mensurável e passível de
experiências laboratoriais, tendo por isso maior cunho de “cientificidade”. Por muito
que tenha contribuído para a evolução epistémica da psicologia, o behaviorismo, foi
no estudo da memória expressão de um cientismo atroz, que ignora a humanidade
dos objectos de estudo e ignorando também todos os processos mentais na base da
construção de memórias, ignora o construir da identidade dos Homens. Reacção
antagónica ao paradigma comportamental surgiu com o psicólogo britânico F.
Bartlett. Conhecida como psicologia cognitiva, a sua escola contesta a linear relação
de causa efeito entre estímulos e comportamentos – tão cara a Watson - e centrou os
seus estudos no impacto do meio ambiente, do estado de espírito e de outros agentes
nas acções humanas, particularmente no processo de construção de memória. A
memória é recriação, defende Bartlett, e, raramente, fiel relato de factos passados;
para ele a criatividade é parte do processo memorativo.8 Ou seja, punha-se, agora, em
causa, de um ponto de vista científico, a veracidade e referenciabilidade da memória
humana.

Este aspecto assume vital importância, no nosso estudo, de facto, a componente


criativa da memória humana implica por definição inverdade; ou seja, não é uma
consciente alteração dos factos, mas uma deturpação destes, inerente ao processo
memorativo. Por outro lado, do ponto de vista da construção da identidade, terá essa
valência imaginativa uma propensão para a criação de arquétipo ideal de nós
próprios perdido nas brumas ontológicas do passado? Adiante analisaremos essa
questão, contudo, desde já concluímos, a comprovar-se a perspectiva de Bartlett, no
assumir da subjectividade como fronteira inexorável da memória humana.
Independentemente, dos processos biológicos dentro de dos nossos cérebros, ou da
capacidade quase ilimitada de memória que possamos ter, a anamenese será sempre
um processo com elevado grau de subjectividade.9 Daí a necessidade de
esquecimento, escape de um hipotético todo social que deificasse a memória e por
8
cf. Kandel, Eric; Squire, Larry, ob cit., 12 a 14
9
cf. Luira, A. R., “O caso do Homem que memorizava tudo”, pp. 39 a 40

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consequência implicasse do ponto de vista gnoseológico um generalizado solipsismo


– ou seja, destino similar a uma sociedade flagelada pela amnésia global.

Ainda nos anos 60, surgiram importantes contributos para estudo da memória vindos
do campo da biologia. Descobertas chave como: as leis Mendel, a resolução da
estrutura do ADN ou o identificar do ARN; associadas a avanços técnicos, como os
exames de ressonância magnética, permitiram passos de gigante no estudo da
memória. As novas técnicas contribuíram para
o comprovar definitivo da doutrina do
neurónio, do fisiólogo espanhol Ramón y
Cájal. Segundo essa tese, o cérebro é
constituído por neurónios, células que
constituem sinalizadores elementares e
desenvolvem entre si relações simbióticas,
hoje conhecidas como sinapses. As sinapses
serão, posteriormente, identificadas como a
base elementar dos processos memorativos a
nível biológico. De facto, os postulados de
Ramón y Cájal, deitavam por terra a busca da
localização da memória no interior da
geografia encefálica e corroboravam as teses
Imagem II
Ramon y Cájal(1852 – 1934), de Hebb. Este defendia que a memória não
neurologista espanhol, defensor da dependia de uma, mas sim de várias regiões do
Teoria do Neurónio
cérebro. Contudo, as investigações de
Penfiled, e posteriormente de Brenda Miller, contribuíram para a identificação
definitiva do lobo temporal como região cerebral essencial na construção de
memórias. Por outro lado, verificou-se que, mesmo nas mais graves lesões do lobo
temporal, apesar de uma destruição assustadora da memória, um nível elementar
desta permanece e é susceptível de ser, inconscientemente, recuperado.10 Deste modo
renovou-se e consolidou-se a velha distinção entre memória a curto prazo e a longo
prazo. Só que, agora, não era apenas este nível de duração temporal que as
distinguia, mas o próprio processo memorativo e a consciência deste.

10
cf. Kandel, Eric; Squire, Larry, ob. cit, pp. 18 a 22.

11
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A memória imediata não depende da vontade do sujeito, é evocada mecanicamente


pelo organismo quando estimulado; a outra designada como declarativa, apesar da
necessária componente inconsciente, depende de uma declaração de vontade dos
indivíduos.11 Esta dimensão da memória é humana por definição, e processo
subjectivo que nos define enquanto “eus” individuais e autónomos, mas
simuladamente sedentários e sociais. Será apenas o estudo da chamada memória
declarativa que importa aqui evocar. De facto a memória não declarativa é
mecanismo automático, quase reflexo às necessidades mnésicas do quotidiano, ou
como diria William James extensão ontológica do presente. Apesar disso, é claro que
o seu estudo contribuirá para uma visão de conjunto mais global e coerente dos
12
processos de construção da memória no interior do cérebro. Pelas razões já
apontadas e também por economia de espaço aqui apresentamos, sinteticamente, uma
súmula do actual estado da investigação no campo da memória declarativa.

Definimos há pouco memória declarativa como uma memória humana, não por
ser exclusiva aos seres humanos, mas por se apresentar como um processo que implica
capacidades normalmente associadas a estes. A memória declarativa pode definir-se
como memória voluntária dos factos, objectos ou estados de consciência passados, ou
nas palavras de William James “o conhecimento de um evento ou facto no qual não
pensávamos, com a consciência adicional de que já pensámos nele ou já o
experimentamos antes.”13 Ou seja, quando recordamos não evocamos apenas a
realidade passada, temos também consciência disso o que implica uma concepção
tridimensional do tempo e o gerar de ideia de continum que lhe é inerente. Será na base
dessa ideia que construímos a identidade do que somos.14
Hoje sabe-se que esta memória declarativa assenta em processos formais ao
nível cerebral descritos por Eric Kandel e Larry Squire, na sua obra de referência

11
Adoptamos as designações de memória não declarativa e memória declarativa de Eric Kandel e Larry
Squire, in ob. cit., pp. 23, por serem as que em nosso entender demonstram melhor o aspecto voluntário e
subjectivo da memória que aqui pretendemos analisar neste escorço, cf.
12
Para mais informações sobre memória não declarativa veja-se Kandel, Eric; Squire, Larry, ob. cit., pp.
31 a 76 e Hitier, Raphël; Petit, Florian e Pret, Thomas, Memories of a Fly, in Scientific American – Mind,
special edition, pp. 78 a 85.
13
citado por Kandel, Eric e Larry, Squire, in ob. cit., pp.78
14
veja-se Gyau, M. “La genèse de l’idée du temps“, pp. 17 a 28 ; Catroga, Fernando, “Memória, História
e Historiografia“, pp. 20 a 22

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“Memória: da Mente ás Moléculas”. Tais processos consistem na codificação, no


armazenamento, na evocação e no esquecimento, aqui apresentamos um breve síntese
dos mesmos, seguido de perto as explicações dos mestres acima citados.15
A codificação, passa pela conversão da informação mnésica num código
passível de ser posteriormente lido pelos mecanismos cerebrais quando nos lembramos.
Quanto mais vívida for a memória evocada, mais complexo foi o processo de
codificação levado a cabo pelo cérebro. Um aspecto a ter em conta será a dependência
deste processo codificador dos interesses particulares dos sujeitos cognoscentes. De
facto, duas pessoas poderão do mesmo episódio desenvolver memórias
substancialmente díspares. Nestes casos, cada sujeito recordará o que estiver mais
relacionado consigo ou com os seus interesses específicos. De novo observamos que a
memória se constrói sob os signos da individualidade e da subjectividade.16
No que diz respeito ao armazenamento, toda investigação, como já vimos,
concluiu da inexistência de um espaço físico específico no córtex cerebral para o
guardar das nossas memórias. De facto, várias zonas do cérebro são utilizadas nos
processos memorativos, isto apesar das relações anteriormente explicitadas entre o lobo
temporal, o hipocampo e a memória declarativa, esta não depende exclusivamente
dessas regiões cerebrais. Na verdade, as regiões encefálicas que participam no processo
inicial de codificação da informação são as mesmas que participarão no acto
anamenésico dessa informação. O conjunto de todos estes processos cerebrais é
tecnicamente designado por engrama.
Recordemos o princípio de Ebbinghaus, segundo o qual, em memória, a prática
conduz à perfeição. Aplicando-o ao conceito de engrama, facilmente se compreenderá a
tendência de especialização da memória declarativa. Tomemos por exemplo o clássico
jogo de tabuleiro “Trivial Pursuit”, que consiste em séries temáticas de perguntas de
cultura geral e suponhamos a seguinte experiência. Constituímos dois grupos de
jogadores: uns experientes, outros que jogam pela primeira vez; aos quais eram feitas
perguntas sucessivas, umas retiradas do jogo, outras que não faziam parte deste.
Antecipando o resultado, os jogadores experientes obteriam uma maior percentagem de
respostas certas nas perguntas do jogo; ao passo que ambos os grupos teriam uma
percentagem similar de respostas certas nas perguntas que não faziam parte do jogo. A
este exemplo imaginário poderemos juntar experiências já realizadas com jogadores de

15
referimo-nos ao capítulo Memória Declarativa in Kandel, Eric; Larry Squire, ob. cit., pp. 79 a 89
16
veja-se sobre a codificação os processos mentais usados pelo paciente C. in Luria, A. R., ob. cit.

13
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xadrez e de scrable, que vem comprovar as tendências de especialização do processo


mnésico de armazenamento. Esta tendência para a crescente especialização da memória
constituirá, em nosso entender, outro limite da memória que se define na clara
ilimitação das capacidades de armazenamento de memórias que possuímos. Ou seja,
quanto mais a nossa memória for treinada no sentido de recordar determinadas
lembranças que correspondam a um arquétipo de memória, teremos maior capacidade
de recordarmos esses arquétipos. Neste sentido a tendência para a especialização é uma
fronteira dúbia e preclitante da memória, porque se poderá conduzir a capacidades
memorativas excepcionais em certos domínios, quando treinada; também poderá, se nos
habituáramos a recordar apenas o vazio ou a realidade atávica do mundo
contemporâneo, ser o caminho para o tal homo amnesicus – personificação de uma
tendência actual do todo social.
A evocação define-se como o próprio acto anamenésico e tem sido alvo de
múltiplas investigações. De facto, este processo torna-se o mais delicado no que toca à
integridade da memória original. Na verdade o ambiente social, o estado de espírito e
múltiplas variáveis relacionadas com os sujeitos cognoscentes poderão condicionar, e
até deturpar toda a informação salvaguardada nos processos anteriores de codificação e
de armazenamento. Voltamos a sentir o espectro frio da subjectividade inerente à
memória humana, mas não só, está também em causa o grau de veracidade desta. Até
que ponto as memórias são reconstruções fiéis do passado ou meras construções
oníricas colocadas por nós, topicamente, nesse outro tempo que já não é? As
investigações actuais no tendem para concluir da importância fundamental do contexto
na evocação, quanto ao problema da verdade este permanece em aberto. Adiante o
abordaremos de uma forma mais concreta, e na sua relação simbiótica com a construção
identitária do “eu”.
Quando falamos de esquecimento a sua definição parece óbvia – o esquecimento
constitui o enfraquecimento ou o desaparecimento progressivo da memória ao longo do
tempo. Contudo, durante várias décadas a generalidade dos cientistas acreditava que
toda a memória era recuperável e molecularmente não existia perda de informação ou
seja o esquecimento não tinha qualquer correspondência biológica. Este preconceito
derivava sobretudo da influência da teoria psicanalítica de Freud. Na verdade, só na
década de 90, do século XX, algumas experiências com animais, que apontam para a
realidade molecular e sináptica de uma efectiva perda de informação, vieram abalar o
anterior paradigma.

14
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Esta crença generalizada da comunidade científica remete-nos para a utopia da


“memória total”, personificada no paciente C. de Aleksandr Luria.17 Essa memória
prodigiosa capaz de recordar tudo ou quase tudo durante anos e anos com mínimas
margens de erro não deixa de nos fascinar. No entanto, apesar de incómodo o
esquecimento é o limite necessário da memória. Se fosse impossível esquecer, seria
impossível a generalização inerente à conceptualização e o pensamento abstracto seria
muito difícil de realizar, para além disso a vida quotidiana sofreria profundas alterações.
Marc Augé defende inclusive o dever do esquecimento, barreira última contra os usos e
abusos da memória, permite-nos o regresso ontológico ao presente, e será no acto de
esquecer que se desenha o limite ético dos discursos memorativos.18

Das realidades que temos vindo a observar, ao nível dos nossos comportamentos
mnésicos, decorrem várias questões. Desde logo a irredutível subjectividade inerente
aos processos de anamenese, a qual implica o questionar da veracidade e da
referenciabilidade das nossas recordações.19 Por outro lado, a memória assume um pilar
fundamental na construção identitária do “eu” ontológico que somos. Por isso é
“escolha selectiva do passado”, já que nós temos uma natural propensão para construir
um passado aprazível do que fomos e das nossas vivências pretéritas.20 Além disso,
como já vimos, várias circunstâncias podem influenciar o processo de rememoração
comprometendo a realidade dos factos que este pretende evocar.
Muitos psicólogos, partilham a opinião da irrealidade geral dos conteúdos
mnésicos, que não sendo na totalidade registos ficcionais, muito devem à criatividade
dos indivíduos. A escola cognitiva de Bartlett teve um papel activo na difusão desta
teoria. Actualmente, o tema das memórias falsas é objecto de debate sobretudo a nível
dos processos psicanalíticos, no entanto as pesquisas de Daniel Schacter, apontam
várias perturbações comuns da memória que influenciam a sua veracidade. De facto por
vezes lembramo-nos de situações ou factos inexistentes, confundimos recordações
oníricas com a realidade, ou trocamos situações e locais no nosso passado.21

17
cf. Luira, A. ob. cit.
18
cf. Augé, Marc, “As formas de Esquecimento”, pp. 103 a 106; Catroga, Fernando, ob. cit., pp. 22 a 23
19
cf. Schacter, Daniel, “The Seven Sins of Memory”, pp. 5 a 11
20
cf. Catroga, Fernando, ob. cit., idem; Ross, Michael e Wilson Anne, “Constructing and appraising past
selfs”, in “Memory, Brain and Belief”, pp. 232 a 242
21
cf. Schacter, Daniel, ob. cit., idem

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Recentemente, alguns psicólogos forjaram uma teoria que qualifica a memória


em três tipos, de acordo com o seu grau de veracidade. O primeiro corresponderá a uma
memória de um facto ou situação passada efectivamente real e terá tendência a
corromper-se com o tempo. Alguns defendem que este tipo de memória consubstancia
apenas uma memória de curta duração ou não declarativa, ligada ontologicamente ao
presente. O segundo tipo seria uma memória parcialmente reinventada do passado, com
base num substrato do real acontecido, mas deturpada por circunstâncias várias, ligadas
aos factos recordados ou a ao momento da evocação mnésica. O terceiro tipo de
memória será o da chamada memória-falsa, ou falsa-memória, por corresponder a um
reconstrução completamente ficcional do passado. Este tipo de memória é comum e, na
maior parte dos casos, os sujeitos cognoscentes não tem a consciência da irrealidade do
que recordam. Não se trata de mentira deliberada pois a mentira não é um processo de
recordação, mas apenas um relato ficcional que pode, ou não, colocado, topicamente, no
passado. Aqui, estamos perante o recordar de uma realidade ficcional, mas com a
consciência de que esta efectivamente aconteceu. Muitas vezes estas memórias
preenchem lapsos de tempo vazio no tal continum temporal em que se baseia a
identidade do “eu”.22
Esta tridimensionalidade da memória, continua a ser questionável, e muitos
cientistas aceitam apenas os dois últimos tipos de memória, não dando crédito à
possibilidade de uma memória efectiva da realidade que se pretende evocar. Para estes,
esse passado será sempre ininteligível. Contudo, temos a concordar com este paradigma
da divisão dos conteúdos mnésicos em três graus de veracidade, ou melhor, de
referenciabilidade, sobretudo porque para aí apontam as últimas investigações
neurobiológicas.23
Assim teremos de ter em conta que é nossa necessidade de construção do “eu”
que condiciona a efectiva referenciabilidade das nossas memórias. Ou seja,
sacrificamos, naturalmente, a verdade em prol de um conteúdo identitário que satisfaça
a unidade do “eu” perante o passado recordado, e também perante consciência do outro
nesse passado. No entanto, a memória não constitui apenas relato ficcional e um grau de
veracidade considerável existe nos nossos conteúdos mnésicos.24 Daí defender-mos que
a memória individual, ou colectiva, será História em potência, na medida do seu grau de

22
cf. Resende, Mário, “De que nos lembramos quando nos lembramos – a fragilidade da memória em
psicoterapia”, pp. 1 a 4
23
cf. Schacter, Daniel, ob. cit.
24
cf. Catroga, Fernando, idem, ibidem

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referenciabilidade, cabendo ao Historiador, no elaborar do discurso historiográfico, a


salvaguarda do valor da Verdade. Será, portanto, sob o signo axiológico da verdade que
abordaremos as relações simbióticas entre História e Memória.

Imagem III
Localização do lobo temporal e do hipocampo no cérebro humano –
in Eric Kandel e Larry Squire, “Memória - da Mente às Moléculas”, pp.
21

17
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% & # ' #"$ ( )# # ##

) istória e Memória são realidades conceptuais ligadas numa relação privilegiada,


já que a segunda é objecto epistémico da primeira. Neste ponto, não nos interessa
reeditar as problemáticas relacionadas com a cientificidade da História ou com as
suas diferenças epistemológicas com outros discursos mnésicos.

Entendemos, por tudo o que aqui já foi afirmado, que a História produz memória
e é simultaneamente produto desta. Contudo, Memória não será necessariamente
História. Na realidade, a História postula o conhecimento da verdade do passado
humano portanto, a memória só será historicizável na medida da sua verdade ou
referenciabilidade ao passado real dos homens. Daí, que neste contexto, analisaremos as
relações entre memória e história sob o signo da Verdade, não só na sua vertente
conceptual, mas também no seu sentido axiológico.

Hoje, vários estudiosos definem três níveis de memória humana, entendida de


um ponto de vista epistémico. Assim teríamos a proto-memória, a memória
propriamente dita, e a meta-memória.25 Os dois primeiros níveis estão conceptualmente
ligados às noções biológicas de memória não declarativa e memória declarativa, e
correspondem a processos mnésicos nos cérebros humanos.
Quanto à chamada meta-memória, que será uma expressão clara da dimensão
colectiva da memória, como poderemos sustentar a sua existência? De facto, do ponto
de vista da neurologia nada aponta para essa realidade colectiva das memórias – se bem
que experiências com animais, como as formigas, admitem a sua possibilidade, nesse
plano biológico.26 Contudo, não nos parece ser nesse plano biológico que devemos
questionar a dimensão colectiva da memória. Na verdade, já Halbwachs postulava a
individualidade irredutível dos actos anamenésicos, entendidos de um ponto de vista
epistémico, no entanto alterou as suas teses iniciais.27 Ou seja, a questão que nos move,
será o discernir da efectiva existência ontológica de uma dimensão colectiva da

25
cf. Catroga, Fernando, ob. cit., pp. 15
26
veja-se Petit, Florian e Pret, Thomas, ob. cit. in ibidem pp. 78 a 85
27
cf. Namer, Gérard, ”Préface”, in Halbwachs, Maurice, ”La Memória Colective”, pp. 7 a 12

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memória. Já que ela poderá constituir mera expressão das necessidades identitárias do
todo social e resumir-se a uma efabulação holística e não a conteúdos mnésicos comuns
a determinada sociedade ou grupo social.
Como já vimos, o acto anamenésico será sempre individual, subjectivo e para
além do mais passo fundamental na construção da identidade do “eu”. No entanto, e
como salienta Fernando Catroga, esse exercício de recordação não pressupõe o “eu”
isolado do “outro”, num passado vazio, mas implica a consciência da alteridade, que
também é fundada com a anamenese.28 Portanto, a memória não poderá ser vista apenas
na perspectiva da individualidade do “eu”, já que o relaciona com outros “eus” e o faz
ter consciências destes.
Para além do atrás exposto, não somos ascetas solipsistas arreigados na gruta a
um manancial de recordações estanques de qualquer contágio social. Na realidade, as
sociedades, as ideologias, os sistemas estruturais de organização social reflectem-se nos
conteúdos mnésicos de todos, na medida em que nos identificamos, ou não, com essas
realidades. Modelo paradigmático da dimensão colectiva da memória será a chamada
“memória-nacional”, que identifica determinados conteúdos memorativos com a
realidade da nação e com uma inerente necessidade de preservação desta. Nessa
perspectiva, o estado-nação será mais um usurpador da memória, usando e abusando
desta consoante as suas necessidade de poder.29 Encontrada está resposta que
buscávamos, na medida em que às realidades holísticas subjaz um conteúdo mnésico
inerente às suas necessidades de identidade e de afirmação.30 Daí, a existência de uma
memória colectiva, ou de memórias colectiva, que são a expressão clara dessas
necessidades.
De seguida questionaremos o papel da História na salvaguarda da Memória, e

pretendemos definir a nossa ciência na relação simbiótica, do ponto de vista

gnoseológico, entre Memória e Verdade. Posteriormente, partiremos para a

desconstrução da presença indelével da Memória nos discursos de poder.

28
cf. Catroga, Fernando, ob. cit., pp. 16 a 20
29
cf. Todorov, Tzvetan, “Memória do Mal, Tentação do Bem”, pp. 139 a 145
30
cf. Fentress, James e Wickham, Chris, ob. cit., pp. 156 a 168, 211 a 244

19
# !"

A cientificidade dos discursos historiográficos assenta no paradigma moderno da


objectividade do conhecimento histórico. Contudo, já se provou que as relações entre
sujeito e objecto implicam um grau de subjectividade que é inerente à própria
concepção do conhecimento. Ou seja, um grau zero de subjectividade só seria possível
com a ausência do sujeito cognoscente e assim o conhecimento seria impossível. Do
ponto de vista da História, o problema da objectividade radica na realidade que se quer
conhecer e prende-se não só com o sujeito epistémico – o historiador –, mas também,
como é óbvio, com o objecto epistémico – o Homem, ou melhor o passado do Homem.
Daí a interminável querela da real cientificidade e objectividade dos discursos
historiográficos, ou do lugar da História no todo científico do edifício do saber, debate
que aqui não queremos evocar. 31
À margem destas questões, sugerimos uma outra, que diferencia a História dos
restantes discursos memorativos ou narrativos sobre o passado. Todo o discurso
historiográfico é, mal ou bem, consciente ou inconscientemente, orientado pelo valor
gnoseológico da Verdade. Para além das estruturas, dos sistemas, das sínteses, das
hipóteses, do processo histórico, o que nos move na busca do passado é a realidade
do acontecido. Ou seja, por mais que queira, o historiador não pode que fugir a esse
ditame quase ético do seu labor, não lhe interessa a mera especulação sobre o
passado, mas a realidade que se esconde nos rastos dos Homens de outrora.

Assumimos, aqui, uma postura clara, para nós, os discursos da História são
expressão de duas realidades conceptuais. Por um lado, desse valor da Verdade que
perpassa, indelével, todo o processo de formação do conhecimento histórico. Por outro,
da Memória, porque à falta de um objecto que não o abstracto Homem do passado, é ela
que, para a História, assume esse papel. Desse labor historiográfico que à luz da verdade
constrói da memória um passado humano, nascerá a Memória Histórica. Assim, a
História poderá definir-se como uma relação epistémica entre Memória e Verdade.
Concluímos, na linha de Paul Ricoeur, que de ora em diante a objectividade, exigida ao
Historiador, não será componente lógica, mas sim ética do seu discurso.32

31
veja-se sobre esse aspecto Le Goff, Jacques, História, in Enciclopédia Einaudi, vol 1, pp. 158 a 162;
Schaff, Adam, História e Verdade, pp. 229 a 262
32
citado por Adam Schaff in, ob. cit., pp. 231

20
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*+
, # # # % # $ $!

* emos vindo a observar que os discursos de poder se apropriam da Memória e,


por vezes, a recriam numa perspectiva de auto-afirmação e de justificação
das suas políticas. De facto, não é só o “estado-nação” a forjar uma hipotética “memória
nacional”, onde irá fundar as suas bases identitárias. Todas as ideologias da
modernidade recorrem a conteúdos mnésicos de modo a produzirem uma noção de
colectivo, que se baseia nessas memórias comuns, mais ou menos falsificadas. O
passado é o elemento chave do “homem novo” que os totalitarismos pressupõem, seja
ele o proletário livre de grilhetas ou o ariano puro do Terceiro Reich. Na verdade, se
Primo Levi define o regime nazi como uma luta constante contra a Memória, essa luta
desemboca na criação de um novo passado, agora expurgado de tudo o que poderia
constituir ameaça ao “Estado Total”.33 Mesmo o comunismo, na sua vertente teórica,
assenta no fim escatológico dos tempos tido como o ano zero de um novo passado. Para
Marx, a história ainda não começou e só terá início com o fim da exploração do homem
pelo homem no advento da sociedade comunista.34 Aqui a memória assume-se como
base identitária da consciência de classe e promessa futura de salvação, muito à
semelhança dos milenarismos medievais.
Por outro lado, se os totalitarismos do século XX se basearam nesse “abuso da
memória”, qual é para com ela a atitude dos poderes democráticos? Na senda de
respostas sobre os conteúdos mnésicos dos discursos de poder analisaremos, após uma
síntese breve, as teses propostas pelo sociólogo Tzvetan Todorov.35

Para Todorov a Memória assume-se como problema da relação do passado com


o presente.36 Por isso todos os discursos de poder desenvolvem para com ela uma
atitude vigilante. Se os totalitarismos controlavam a Memória, forjando no passado as
razões de ser da nova ordem social; as democracias evocam o “dever da memória”,

33
citado por Todorov, Tzvetan, Memória do Mal, Tentação do Bem, pp. 139
34
cf. Catroga, Fernando, Caminhos do Fim da História, pp. 102 a 111
35
Referimo-nos as teses relacionadas directamente com a Memória e os discursos de Poder, expressas nas
obras Les Abus de la Mémoire e Memória do Mal, Tentação do Bem – Uma análise do século XX para as
quais remetemos ao longo do texto.
36
cf. Todorov, Tzvetan, ob. cit., pp. 145

21
# !"

idolatrando de tal modo o passado que se esquecem de esquecer. No entanto memória é,


também para Todorov, processo interactivo entre a recordação e o esquecimento e
nunca simples acumular de dados.37 Definindo assim Memória, ele irá depois sustentar
que esta é a vida do passado no presente – ou seja a memória humana torna-se
expressão da existência ontológica do passado no presente. As democracias liberais não
têm uma a atitude clara para com o passado, obliteram o esquecimento e a
superabundância de informação que proporcionam conduzirá a um apocalíptico “régne
de l’oublie”.38 Os comemorativismos, de hoje em dia, constituirão, neste sentido, um
passo para esse “reino do esquecimento”, já que ao tudo comemorar-mos a memória
deixa de o ser, por se eliminar a escolha voluntário do processo memorativo. Todorov
chega a ironizar com esta situação, afirmando que os dias do calendário serão esgotados
com tanta comemoração.39
Para além disso, a Memória assume um papel estruturante de toda a actividade
humana. Das chamadas “ciências da memória” (História e Geografia), passando pela
Arte, às fundações da nossa noção de cultura a Memória, enquanto elemento
mediatizante do passado, está presente. Daí, que seja também estrutural nos discursos de
poder e simultaneamente fonte desse poder.40
Todorov alerta-nos para o papel da vítima na sociedade contemporânea. A
vitimização social, seja por um passado de perseguições – como a dos judeus ou a dos
ciganos – ou por actuais formas de descriminação, assume-se, segundo ele, como forma
de poder sobre a colectividade. Na verdade, para certos grupos sociais, a memória é
memória de opressão de onde nascem, não só sentimentos de identidade colectiva, como
também a reivindicação de uma justiça que reponha o satu quo ante. Deste modo ser
vítima é, nas sociedades hodiernas, factor social de poder, quer para os indivíduos, quer
para os grupos sociais ostracizados.41 Dentro desta lógica perigosa fundam-se noções
tão incoerentes como a “discriminação positiva”.
Contudo, o dever da memória não é, para Todorov, nem baseado nessa noção de
justiça, nem no culto bacoco da ritual comemoração de um passado total. Esse dever
está axiologicamente consagrado ao Bem. Ou seja, Memória e Esquecimento deverão
ser expressão do passado no presente, evocada com o propósito final da Justiça. O

37
cf. Todorov, Tzvetan, Les abus de la Mémoire, pp. 14
38
cf. idem, ibidem, pp. 13
39
cf. idem, ibidem, pp. 51
40
cf. idem, ibidem, pp. 17 a 22
41
cf. idem, ibidem, pp. 57 a 58

22
# !"

trabalho do Historiador será dirigido não para a Verdade, mas para o Bem que surge
como valor universal.42 Todorov aponta-nos uma clara fronteira ética que os discursos
memorativos devem seguir, orientando a própria História sob o paradigma de uma
Justiça eterna, que se transforma em justificação da responsabilidade de recordar.43
Por mais que concordemos com esta noção de dever da memória, muito criada à
custa do Holocausto e do Gulag, não podemos concordar com o desvirtuar do labor
historiográfico. O discurso da História está, para nós, subordinado ao valor de Verdade
e a busca do passado não pode submeter-se a qualquer outra perspectiva axiológica que
não essa – sob pena sairmos do campo da historiografia para caminharmos nas águas
turvas da ficção. Fazer da recordação um dever moral de justiça, será também
transformar o Historiador no polícia dessa memória e orientar a História para um fim
que implica o deturpar do passado. Desse modo, por melhores que fossem as nossas
intenções cairíamos num novo abuso da memória. Só a Verdade poderá constituir limite
ético dos discursos memorativos, sem os comprometer com um determinado objectivo,
social político ou outro. Por outro lado para além do dever da memória, falemos antes
no dever do esquecimento como a fuga necessária para o presente. E será à luz desse
presente que deveremos equacionar o lugar e o papel da Memória nas sociedades
humanas.44

Imagem IV
Tzvetan Todorov (1939 - ), sociólogo
búlgaro exilado em França
Fotografia de A. Sagalyn

42
cf. idem, ibidem, pp. 50
43
cf. idem, ibidem, pp. 61; Todorov, Tzvetan, Memória do Mal, Tentação do Bem, pp. 246
44
cf. Augé, Marc, ob. cit., pp. 103 a 106

23
# !"

+ "

24
# !"

A partir do homo sapiens, a constituição de uma


utensilagem da memória social domina todos os problemas
da evolução humana.
Leroi-Gourham, in
«Le geste et la parole», pp. 24

25
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-+
* $ .$ # " % /

, os séculos XIX e XX, as sociedades humanas, sofreram as maiores


transformações estruturais desde do período Neolítico. A revolução
industrial, o domínio europeu do mundo, as duas guerras mundiais, o colapso
subsequente desse “euromundo”, a “guerra fria”, o triunfo inexorável do sistema
capitalista e a revolução informática em que vivemos conduziram à criação de um
sociedade à escala planetária, a chamada aldeia global.45 Subsistem ainda, é certo,
velhas realidades como por exemplo o estado-nação assente no, agora vago, princípio
da territorialidade. Contudo, tal existência assemelha-se mais a um lento agonizar, qual
canto do cisne perante as novas formas de organização social que se perfilam no
horizonte dos tempos.
Decorrente da derrocada dessas velhas fronteiras e da reinvenção de novas
fronteiras ligadas a novos espaços de poder; nos escombros dos poderes da antiga
ordem um novo poder parece definir as chamadas sociedades ocidentais neste início do
século XXI. Referimo-nos, como é óbvio, à informação, factor essencial de poder nas
sociedades contemporâneas. Desenha-se, no horizonte, uma nova linha de tensão entre
os velhos estados-nação; entre os indivíduos que os constituem; ou entre as novas
realidades de poder; a fronteira do conhecimento. Esta baseia-se na capacidade de
acesso à informação e terá tendência a acentuar as assimetrias económicas quer entre
nações, quer entre cidadãos dentro do tecido social dos próprios países ditos
desenvolvidos. Por outro lado, irá criar, progressivamente, uma clara distinção, entre os
que consomem e os produzem (ou manipulam) a informação. Ou seja, os escravos e os
senhores da nova ordem social, permita-se-nos a liberdade literária.
No contexto de uma sociedade global, ou globalizante, em que factores de
estruturação social - como os económicos – parecem depender da informação e da livre
circulação desta, será fácil compreender o papel vital da Memória na entificação do todo
social. O fim das barreiras comunicacionais à escala do Mundo, associado à clara
tendência de uma nação hegemónica para exportar o seu modus vivendi, provocou uma
crise uma identitária na generalidade sociedades ocidentais. É natural que essas

45
Rémond, René, “Introdução à História do Nosso Tempo”; Gates, Bill, “Estradas do Futuro”

26
# !"

sociedades recorram a um nível colectivo de memória – já anteriormente abordado por


nós – onde se funda a identidade específica desses estados-nação, agora reactivado
como mecanismo de auto-sobrevivência. Daí, assistir-mos ao recrudescer de
nacionalismos exacerbados um pouco por toda a Europa; ou a uma febre comemorativa
generalizada. De novo se observa o papel dual da memória neste contexto social. Tanto
pode ser usada como valor justificativo do imobilismo social, expresso na manutenção
de estruturas sociais ancestrais baseado numa espécie de memória histórica sacralizada,
umbilicalmente, ligada ao arquétipo da tradição que urge preservar a qualquer custo.
Como poderá surgir associada a tendências escatológicas, herdeiras das antigas
filosofias da história, que apresentam o passado humano como narração com princípio,
meio e fim. A Memória, na sua dimensão colectiva e histórica, é agora a argamassa
desse continum, que se pretende, que seja o passado humano; e a sociedade actual vista
como o eschaton social há séculos almejado por muitos. Este milenarismo hodierno;
político e social, baseia a sua argumentação na continuidade lógica da sucessão entre
passado, presente e futuro; na qual a memória histórica será sempre factor evolutivo
factor evolutivo, motor do progresso humano; ao passo que a História,
transcendentalmente entendida, terminará na apoteose final do espírito humano, que
conduzirá – ou já conduziu – à sociedade perfeita.46
Em suma, por todos nós, a Memória, veículo de informação, é manipulada,
usurpada, ou glorificada, como meio estratégico de um determinado fim social – seja ele
político, económico ou qualquer outro. Deste modo, as sociedades contemporâneas
interpretam e reinterpretam memórias que não são as suas, mas as forjadas pelos
poderes reais à margem de qualquer verdade ou facto. Daí, a necessidade de uma ética
para os discursos mnésicos, da qual o Historiador será sempre o guardião, por assim
dizer. A ele se pede que participe na construção da memória-histórica sob um fundo de
veracidade e referenciabilidade, noções que terão de ser apropriadas pelos actuais
discursos memorativos. Vejamos pois que processos poderão permitir, na sociedade de
informação, o estabelecimento dessa fronteira axiológica nos discursos memorativos.

46
sobre estes aspectos veja-se Catroga, Fernando, “Caminhos do Fim da História”; Fukuyama, Francis,
“O Fim da História e o Último Homem”; Pereira, Miguel Baptista, Filosofia e memória nos caminhos do
milénio

27
# !"

! "

Inerente à noção de Sociedade de Informação surge o processo de aceleração do


Tempo. De facto, as novas tecnologias ajudaram o Homem dominar o Espaço e,
posteriormente, o Tempo. Hoje em dia, se por um lado certas sociedades vivem o tempo
do instante, centrado no aqui e no agora do “soundbyte” informativo; outras
permanecem num tempo newtoniano, quase desligado do Homem e que se lhes afigura
autónomo deste.47 Especula-se acerca de uma hipotética fronteira do tempo, nesse
sentido teríamos: as sociedades ocidentais a viverem num presente eterno que implica a
generalizada falta de tempo; e as outras reféns de uma noção pré-kantiana de tempo,
consubstanciada num tempo real efectivamente mais lento.
Contudo, é outra, a perspectiva de tempo que aqui chamamos à colação. De
facto, a ideia tradicional de tempo, fundada em Santo Agostinho, supõe o presente como
a única dimensão real da temporalidade; na medida em que o passado é somente
48
recordação e o futuro apenas esperança. Os tempos de hoje parecem, de forma
terrível, comprovar esta visão. Na realidade, nem passado, nem futuro existem na
sociedade de informação, mas apenas o instante que corresponde ao presente eterno dos
mass media.
Esta deturpação da tridimensionalidade do tempo será consequência última da
referida aceleração que este tem vindo a sofrer. No final pressupõe o aniquilar do
passado e do futuro, em prol de um presente que se sucede a si próprio, eternamente.
Este culto do efémero é a base de temporal de todos os Fascismos e constituirá o berço
de novas formas ditatoriais.
Deste modo, o novo tempo, que se resume à dimensão Presente, busca a
aniquilação da memória, aniquilando o esquecimento através do excesso de informação.
Por isso, se o dever de esquecimento surge como fuga do passado para o presente, não
deverá superar o dever de memória, e só no ponto de equilíbrio entre os dois
constituiremos uma relação saudável entre as sociedades humanas e o seu próprio
passado.

47
cf. Ramonet, Ignatio, ob. cit., pp. 85 a 97
48
cf. Gyau, M. ob. cit, pp. 17 a 28

28
# !"

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as realidades que já analisámos urge tirar as conclusões necessárias. De facto,


equacionar o lugar da Memória na Sociedade de Informação, será também
questionar o papel social da História e do Historiador.
Como já concluímos, Memória é na realidade um processo interactivo entre
Recordação e Esquecimento. Só, através dos dois se constituem memórias do passado,
estas, analisadas à luz de um paradigma gnoseológico de Verdade, permitirão ao
Historiador produzir o seu discurso histórico.
Ora, uma sociedade que privilegia o fluxo contínuo de informação, o culto
comemorativo do passado, e, simultaneamente, parece viver num presente eterno,
permitirá a sobrevivência da Memória? Na realidade, as necessidades conjunturais dos
Homens mudam, com as alterações estruturais, decorrentes da mudança social; mas as
suas necessidades identitárias, individuais ou colectivas, permanecem. Por isso, ainda
não assistimos ao crepúsculo final da Memória, subjugada pela imponência da
superabundância de informação, que não permite o Esquecimento.49 Por ser elemento
base da identidade humana, a Memória apresenta-se como necessidade; ora, deveremos
transformá-la em responsabilidade. Daí, que a perspectiva ética se afigure como limite
dos discursos memorativos em geral.50
Esquecimento e Recordação devem actuar como processos compósitos, na nossa
relação como passado, definindo, a priori, que passado pretendemos evocar.51 Do ponto
de vista da História, surgirá uma espécie de império da Verdade, na base da exumação
dos cadáveres desse passado. Reformulada nesta perspectiva da História, e da Memória,
como elementos mediatizantes entre passado, presente e futuro, a sociedade de
informação poderia consubstanciar-se em sociedade do conhecimento.

49
cf. Todorov, Tzvetan, Les abus de la Mémoire, pp. 13 a 15
50
cf. idem, ibidem, pp. 61
51
cf. Augé, Marc, ob. cit., idem

29
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30
# !"

Somos a memória que temos e a responsabilidade que


assumimos, sem memória não existimos, sem
responsabilidade não mereceríamos existir.
José Saramago, in
Diários de Lanzarote III, p. 35

31
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ecorrente das realidades que temos vindo a analisar existe um


comportamento dual para com a Memória, nas sociedades contemporâneas.
Essas atitudes consubstanciam-se em duas tendências; uma de imposição de limites aos
discursos mnésicos, outra de abdicação dos mesmos – analisaremos, neste ponto, a
segunda.
As tendências para a abdicação de limites nos discursos da Memória estão,
intimamente, ligadas à ideia de Tempo e à interpretação desta pelo o todo social. Ou
seja, um tempo, progressivamente, autónomo da vontade dos indivíduos, sujeito a
contínuos processos de aceleração e de desaceleração, conduzirá à ilusão da ilimitação
da Memória. Na verdade, teremos de ter presentes duas vertentes díspares dessas
tendências de abdicação de limites nos discursos mnésicos. A primeira relaciona-se com
a velocidade da informação, postulando a ausência da Memória através do culto do
efémero e do imediato. A segunda assume-se como espécie de reacção à primeira, e
baseia-se no idolatrar da Memória, através de um comemorativismo exacerbado. Este é,
na verdade, expressão visível de um, mais ou menos declarado, historicismo ancestral.

Como já comprovámos, no capítulo anterior, a informação, e a sua liberdade de


circulação, definem as sociedades ocidentais – que exportam o seu modelo de
organização social. Essa informação é valida em tempo próprio, ditado pelos meios de
informação. A chamada tirania do soundbyte remete-nos, essencialmente, para a
velocidade de transmissão da informação, que perde o seu valor sendo, rapidamente,
substituída por outra.52 Este fenómeno de aceleração do tempo, que ulteriormente
analisámos, conduzirá à pura e simples ausência de memória. Ou seja, toda a
informação se torna, progressivamente, demasiado banal para ser recordavél. Por outro
lado, outros sustentam a tentação de tudo recordar, fundada no mito da memória total,
que destruiria as nossas capacidades de abstracção e de generalização conceptual

52
cf. Eco, Humberto, Sobre a Imprensa, in ob. cit., pp. 55 a 88; Ramonet, Ignatio, ob. cit., pp. 39 a 50

32
# !"

decorrentes do próprio esquecimento.53 De facto, o tempo ultrasónico dos novos meios


de comunicação pressupõe essa memória total que nada esquece – assumindo,
claramente, uma hipotética ilimitação da memória humana e a abdicação de quaisquer
limites nos discursos memorativos. Esta atitude terá como consequência, ou uma
efectiva memória desmesurada que não nos permitirá pensar – nem regressar ao
presente –; ou a amnésia social, para a qual nos remetia Todorov.54
Daí, que o Poder e a organização estrutural da sociedade tenham reagido contra
esta tendência de abdicação de limites nos discursos mnésicos, com medidas de
regulação do tempo centradas num hipotético grau zero da memória.55

A atitude, que descrevemos no ponto anterior, corresponde a um enérgico culto


do efémero. Este presentismo pressupõe uma visão do tempo agostiniana, onde só o
presente terá efectiva existência ontológica.56 Daí, a ilimitação da Memória, pois, sendo
expressão do passado no presente, é a única forma de conhecermos esse tempo que já
não é. Esse passado, que existe nas diversas formas de Memória, é o objecto epistémico
dos discursos memorativos, como o historiográfico. Contudo, o culto do presente cedo
se transformará, no passo fatal em direcção ao vazio da amnésia social, por ignorar as
necessidades de esquecimento.57
Como reacção a esta perspectiva temos vindo assistir a um deificar da memória,
como representação do passado humano. Essa sacralização dos conteúdos mnésicos é
expressa no comemorativismo das sociedades contemporâneas, sendo, na maior parte
das vezes, um reforço da afirmação identitária das realidades nacionais. “Urge
preservar o passado através da tradição” é o mote dado novos guardiães da verdade,
que elevariam a peça de museu qualquer lasca de sílex. O recordar o todo passado é tão
impossível como preservar todo o passado. Daí, que este comemorativismo seja a face
visível de um historicismo atávico, quase ridículo, que glorifica o passado na vã
esperança de evitar o futuro.58

53
cf. Luria, A., ob. cit.
54
veja-se Todorov, Tzvetan, ob. cit., pp. 61
55
cf. Ost, François, O Tempo do Direito, pp. 146 a 158
56
cf. Gyau, M. ob. cit., idem
57
cf. Todorov, Tzvetan, ob. cit., pp. 13 a 15
58
cf. idem, Memória do Mal, Tentação do Bem, pp. 155 a 160

33
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- # $ 23 # $

ontrapondo-se a essas tendências de abdicação de limites, nos discursos


memorativos, têm vindo a surgir, nas sociedades contemporâneas, tentativas
de demarcação desses limites. Ligados ao tempo, entendido como instituição social,
essas normas de regulação da Memória, são fundadas nas relações entre Tempo e
Direito.59
Poderemos também incluir este nosso escorço como uma dessas tentativas de
demarcação de limites nos discursos da Memória. Contudo, o limite que pretendemos
impor será o da eticidade, baseada no valor conceptual da verdade e fundada nas
relações epistémicas entre História e Memória.
Por isso, só discernindo as diferenças concretas entre o Tempo do Direito e o
Tempo da História, poderemos distinguir qualitativamente os limites que ambas as
dimensões temporais propõem ao passado.
Esta regulação da Memória, não poderá jamais esquecer o Esquecimento, como
parte integrante do processo memorativo. Assim, entre o dever de recordar e o dever de
esquecer, fica o compromisso entre Perdão e Memória, entendidos como dimensões
temporais do Direito.60

$ " "

O Tempo começou com a figura mítica Kronos a devorar, eternamente, os seus


filhos. Daí, que o Tempo da História fosse associado à ideia de progresso e a
tridimensionalidade do tempo fosse representada por estádios ontologicamente
superiores uns aos outros. Ou seja, o presente era superior ao passado, e o futuro seria
salto qualitativo em relação ao presente.61 Contudo, o futuro é esperança contida,
promessa adiada e a sua transformação em presente veio abalar essas crenças. A
falência da ideia de progresso pôs em causa a linearidade do tempo histórico e deitou
por terra a superioridade ôntica do presente em relação ao passado.62

59
cf. Ost, François, ob. cit., pp. 12
60
cf. idem, ibidem, pp. 41 a 46
61
cf. Gyau, M. ob. cit., pp. 29 a 48; Pomian, Krzysztof, Temporalidade Histórica/Tempo, in Chartier,
Roger; Le Goff, Jacques e Rével, Jacques (dir), Nova História, pp. 580 a 582
62
cf. Catroga, Fernando, Caminhos do Fim da História, pp. 11 a 13 ; Pomian, Krzysztof, ob. cit., ibidem,
pp. 580 a 582

34
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Hoje o Tempo da História, numa concepção braudeliana, é o tempo das


estruturas, das conjunturas e dos acontecimentos. O tempo histórico assume, assim, três
dimensões dependendo da longa e curta duração e da própria realidade histórica
analisada – deste modo é simultaneamente tempo estacionário, cíclico e linear.63
Contudo, a ideia de Tempo, em História, funda-se na Memória que lhe serve de
base. Daí, que a História seja vista, a priori, como uma narratividade linear, da mesma
forma que olhamos o continum do nosso próprio passado.64 Deste modo o Tempo da
História, seja qual for a nossa concepção teórica ou filosófica do mesmo, está na sua
génese, ligado, umbilicalmente, ao Tempo da Memória.
Quanto ao Tempo do Direito é, desde logo, entendido como fenómeno social,
instituído pelo Homem, por isso terá, à partida, uma realidade jurídica.65 De facto, o
Tempo assume-se como componente base da Ordem Jurídica, sendo ideia inerente a
noções como: retroactividade da lei, memória futura, caducidade da lei, prescrição,
etc.66 A lei dispõe para o futuro, regra geral, assumindo, assim as ânsias colectivas do
todo social, a Esperança torna-se dimensão temporal do direito sob forma de Promessa.
No entanto, como já vimos, o futuro é imprevisível e daí surgirem necessidades
constantes de Requestionamento do jurídico; assumidas como outra dimensão temporal
do Direito, ligada ainda ao Futuro.67 O passado será evocado como forma de Memória
vigilante, consubstanciação temporal da sede universal de Justiça. A Memória será,
deste modo, uma das dimensões pretéritas do Tempo do Direito, contrapondo-se ao
Perdão, assumido desligar do passado.68
Por outro lado, esta temporização instituída pelo Direito viverá sempre sob a
ameaça da destemporarização. Nesta concepção do Tempo do Direito, delineada por
François Ost, o presente surge ponte mediatizante entre o passado e futuro de um tempo
jurídico tetradimensional.69

63
cf. Pomian, Krzysztof, ob. cit., ibidem, pp. 580 a 582
64
cf. Gyau, M., ob. cit., pp. 49 a 60
65
cf. Ost, François, ob. cit., pp. 12
66
cf. Machado, J. Baptista, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pp. 219 a 226
67
cf. Ost, François, ob. cit., pp. 15 a 18 e 41 a 46
68
cf. idem, ibidem, pp. 15 a 18 e 41 a 46
69
cf. idem, ibidem, pp. 19

35
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Decorrente deste quadro conceptual nasceu uma clara tentativa de demarcação

de limites nos discursos memorativos e nas relações sociais com o passado, as

Comissões de Verdade e Reconciliação. Estas realidades sociais e jurídicas derivam do

poder que a vitimização social exerce sobre o todo holístico.70 Contudo, ao contrário da

exigência de justiça, expressa no dever da memória, evocado pelas vítimas do

Holocausto nazi; as Comissões de Verdade e Reconciliação baseiam-se numa amnistia

sem amnésia.71 De facto, pretendem instaurar o ano zero da Memória, sem, contudo

apagar o passado ou a responsabilidade perante esse passado. Assumem um papel de

catarse colectiva da sociedade perante os crimes que permanecem vivos nas memórias

dos Homens. Este é o passado do Perdão, entendido como tempo jurídico, no qual, se

funda a própria noção de Justiça, que de ora em diante engloba castigo e absolvição.72

Será, no entanto, esse grau zero do passado possível ou mera imposição jurídica

sem eco concreto no quadro social da Memória? Sinceramente, não nos parece

exequível que essa demarcação de limites instaure, efectivamente, tais limites; quer nos

discurso memorativos, quer na própria relação dos indivíduos com as suas memórias.

Daí, que possamos concluir que os limites éticos dos discursos memorativos nascem no

processo anamenésico da sua construção, e não lhes são impostos por agentes externos

– com a Ordem Jurídica. Se na História, essa componente ética depende, do valor

gnoseológico da Verdade; na individualidade do “eu” está subordinada às nossas

necessidades identitárias.

70
cf. Todorov, Tzvetan, ob. cit., pp. 57 a 58
71
cf. idem, ibidem , pp. 57 a 58 e Ost, François, ob. cit., pp. 139
72
cf. Ost, François, ob. cit., pp. 146 a 148

36
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questões.
, o início deste nosso périplo pelas questões que ensombram o, que designámos
por, crepúsculo da Memória traçámos objectivos sob a forma primordial de

Na nossa análise geral do tema da Memória fomos, aqui e ali, surpreendendo as


figuras do limite nos discursos memorativos. A subjectividade inerente ao processo
anamenésico e a tendência de especialização da memória, foram limites quase
biológicos que desvendámos. Por outro lado, a veracidade dos conteúdos mnésicos
revelou-se questionável, quer do ponto de vista da construção identitária do “eu”, quer
do da construção do discurso historiográfico. Defendemos, por sua vez, que esse
discurso radica a sua base epistémica no conceito de Memória subordinando a uma
lógica, agora já ética, de Verdade.73 Fomos encontrar ainda a presença da Memória
como elemento mediatizante do passado nos discursos de poder, que a reformulam e
manipulam constantemente. Também o Direito, na sua relação dialéctica com o Tempo,
tenta impor limites aos discursos memorativos que produz.
Constatámos a realidade efectiva da contradição social que é Memória, expressa
em duas tendências antagónicas: uma de abdicação, outra de demarcação de limites. Por
um lado, o deificar do passado sacralizando; uma memória ilimitada numa espécie de
rito comemorativo do pretérito total. Por outro, o proclamar do grau zero do tempo, no
qual a memória é quase despida do seu valor ontológico. A ideia de aceleração do
tempo revelou-se a máquina fatal, que tritura, no culto do efémero, as nossas
necessidades mnésicas – lembrando as palavras perturbadoras de Pierre Nora: «só se
fala tanto de Memória, pela razão dela já não existir».74
Duas características centrais perpassam toda esta problemática da Memória e
dos seus limites: a invisibilidade e a mobilidade destes. Estas figuras, propriedades da
noção de fronteira, estão, indelevelmente, associadas aos limites dos discursos
memorativos. Na realidade, éticos ou não, subjectivos ou objectivos, jurídicos ou

73
cf. Ricoeur, Paul, citado por Schaff, Adam, ob. cit. pp. 231
74
citado por Ost, François, ob. cit., pp. 30

37
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filosóficos os limites da Memória são invisíveis e movem-se consonantes as


necessidades demarcatórias dos discursos que os produzem. Daí, que a objectividade do
discurso historiográfico, não seja um limite que lhe é imposto, mas que surge no próprio
processo de construção desse discurso. A História subordina a Memória à Verdade e
essa relação terá expressão num dimensão ética do trabalho do Historiador na
construção do seu discurso.
Concluindo, para além de todas as fronteiras o limite intrínseco da Memória é o
Esquecimento. Porque esse Esquecimento é parte dialéctica essencial no processo
anamenésico e caminho de regresso do passado para o presente . Deste modo, só
encontrando o ponto de equilíbrio entre o dever de memória e a necessidade de
esquecer evitaremos o, inelutável, crepúsculo da memória na sociedade de
informação.75

75
cf. Augé, Marc, ob. cit., pp. 103 a 106

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Índice Iconográfico

Páginas
Imagem da Capa
“A Memória”,
óleo sobre tela, René Magritte, 1963

Imagem da Capa do Capítulo I


“A Persistência da Memória”,
óleo sobre tela de Salvador Dali, 1931

6
Imagem I
Hermann Ebbinghaus (1850 – 1909),
pioneiro do estudo da Memória Humana
9
Imagem II
Ramon y Cájal (1852 – 1934),
neurologista espanhol, defensor da Teoria do Neurónio
11
Imagem III
Localização do lobo temporal e do hipocampo no cérebro humano –
in Eric Kandel e Larry Squire,
“Memória - da Mente às Moléculas”, pp. 21
17
Imagem IV
Tzvetan Todorov (1939 - ), sociólogo búlgaro exilado em França
Fotografia de A. Sagalyn
23

Imagem da Capa do Capítulo II


“A aceleração do tempo”,
montagem gráfica, Miguel Raimundo, 2004

Imagem da Capa do Capítulo III


“A Desintegração da Memória”,
óleo sobre tela, Salvador

43
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Índice

Introdução
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Conclusão
Dos limites da Memória ou da necessidade de Esquecimento
37 a 38

Bibliografia
39 a 42

Índice Iconográfico
43
Índice
44 a 45
Agradecimentos
46

45
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Gostaria de agradecer, especialmente, à Sofia


Costa pelas noções gerais de psicologia que me soube
transmitir e por me ter relembrado do conto de Borges;
à Catarina Fonseca as preciosas referências
bibliográficas da Scientific American; ao Ricardo
Carrilho pelo inexcedível apoio na digitalização de
imagens; ao Dr. José Correia Noras, meu pai, pela ajuda
na revisão do texto e ao Pedro Carvalho Jesus as
infindáveis, mas frutíferas discussões sobre História e
Memória.

Palavras especiais de apreço para as funcionárias,


da Biblioteca da Faculdade de Psicologia e de Ciências
da Educação da Universidade de Coimbra; do Instituto
de História e Teoria das Ideias da Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra e do Instituto de Estudos
Filosóficos da mesma faculdade

E porque citar é por força omitir a todos os que de


alguma forma me ajudaram e peço desculpa de, por
lapso, aqui não nomear.

46

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