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David Foster Wallace

A LIBERDADE DE VER OS OUTROS
.“Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido 
contrário. Ele os cumprimenta e diz:
– Bom dia, meninos. Como está a água?
Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:
– Água? Que diabo é isso?
Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica 
o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos 
peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. 
Enunciada dessa ­forma, a frase soa como uma platitude – mas é fato que, nas trincheiras do dia­a­
dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.
Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. 
Vou  dar   como exemplo uma de minhas convicções  automáticas: tudo à minha volta respalda a 
crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais 
vital e essencial a viver hoje.  Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois  
parece  socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar  a todos nós. Ele faz parte de  nossa 
configuração padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.
Querem ver? Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um ponto central 
absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser experimentado está diante de vocês, ou 
atrás,   à   esquerda   ou   à   direita,   na   sua   tevê,   no   seu   monitor,   ou   onde   for.   Os   pensamentos   e 
sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês 
sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um 
sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras “virtudes”. Essa não é uma questão de virtude 
–   trata­se   de   optar   por   tentar   alterar   minha   configuração   padrão   original,   impressa   nos   meus 
circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e 
interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.
Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa 
configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de 
uma formação acadêmica – pelo menos no meu caso – é que ela reforça a tendência a intelectualizar 
demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção 
ao que está ocorrendo bem na minha frente.
Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de 
hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da 
minha formatura vim a entender que o surrado clichê de “ensinar os alunos como pensar” é, na 
verdade, uma simplificação de uma idéia bem mais profunda e séria. “Aprender a pensar” significa 
aprender  como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa.  Significa ter  plena 
consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer 
esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva.

Lembrem o velho clichê: “A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível.” Como tantos 
clichês,   também   esse   soa   inconvincente   e   sem   graça.   Mas   ele   expressa   uma   grande   e   terrível 
verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam 
com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de 
apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as 
bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer 
uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado 
pela nossa configuração padrão – a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.
Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é 
que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do significado real do que seja viver um dia 
após o outro.  Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de 
formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.
Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi 
para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, 
estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por 
umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra 
que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora 
precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.
Quando   você   finalmente   chega   lá,  o   supermercado   está   lotado,   horrivelmente   iluminado   com 
lâmpadas   fluorescentes   e  impregnado   de  uma   música  ambiente  de  matar.   É   o  último   lugar   do 
mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer 
todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de 
compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus 
próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as 
pessoas   desnorteadas, e os  adolescentes  hiperativos  que bloqueiam o corredor, e você tem  que 
ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os 
suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, 
o que é absurdo e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à 
beira de um ataque de nervos.
De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou 
o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um “boa noite, volte sempre” numa voz que 
tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.
É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. 
O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. 
Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que 
for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem 
respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre 
que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, 
quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes 
as que falam alto nos celulares.
Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e 
utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques 
de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, 
que  sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos  motoristas mais feios, 
desatenciosos   e  agressivos,  que  costumam   falar  no  celular   enquanto  fecham   os  outros,  só   para 
avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos 
nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente 
estragarmos o clima, e quão mal­acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como 
tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.
Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim – 
só que pensar dessa maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela 
deriva da minha configuração padrão.
Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que 
os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, 
algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que 
eu.
Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias 
não conseguirão fazê­lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem 
atentos   o   bastante   para   escolher,   poderão   preferir   olhar   melhor   para   essa   mulher   gorducha, 
inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja 
habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do 
marido   que   está   morrendo.   Ou   talvez   essa   mulher   seja   a   funcionária   mal   remunerada   do 
Departamento   de   Trânsito   que,   ontem   mesmo,   por   meio   de   um   pequeno   gesto   de   bondade 
burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.
Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram 
levar em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês, 
assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e irritantes.  Mas, se 
vocês   aprenderam   como   pensar,   saberão   que   têm   outras   opções.  Está   ao   alcance   de   vocês 
vivenciarem   uma   situação   “inferno   do   consumidor”   não   apenas   como   significativa,   mas   como 
iluminada pela mesma força que acendeu as estrelas.
Relevem o tom aparentemente místico.  A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês 
precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.
Na trincheira do dia­a­dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como “não venerar”. Todo 
mundo venera.  A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos 
algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar – seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum 
conjunto inviolável de princípios éticos – é que todo outro objeto de veneração  te engolirá vivo. 
Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o 
suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá 
feio – e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes 
de ser efetivamente enterrado.
No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e 
parábolas.  Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais  
poder sobre os outros para afastar o medo.  Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente,  
acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.
O   insidioso   dessas   formas   de   veneração   não   está   em   serem   pecaminosas   –   e   sim   em   serem 
inconscientes.  São o tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por 
gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, 
sem ter plena consciência de que está fazendo uma escolha.
O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, 
do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que 
cada um faz de si mesmo.  A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir 
riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos 
reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.
Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais 
preciosa,   vocês   pouco   ouvirão   no   grande   mundo   adulto   movido   a   sucesso   e   exibicionismo.  A 
liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente 
se importar com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco 
excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma 
coisa infinita.
Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de 
certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida 
depois da morte.  A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a  
chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça.  Diz respeito à 
consciência – consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor 
– daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: “Isto é água, isto é água.”
É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro.”
­x­
 

 
Um dos escritores mais admirados de sua geração, o americano David Foster Wallace se suicidou  
no mês passado, aos 46 anos, enforcando­se. Este texto foi tirado de seu discurso de paraninfo para 
formandos do Kenyon College, há três anos.

[Revista Piauí,outubro de 2008]

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