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Comecemos pelo óbvio. Todo mundo tem família e ela é a mais velha
instituição das sociedades humanas. Valorizada, temida ou inquietante, a
família existe! No Ocidente cristão, ela sobreviveu ao controle draconiano[1] da
Igreja católica que a queria encerrar na imagem da Sagrada Família;
sobreviveu às utopias que quiseram a substituir por formas de vida coletiva.
Sobreviveu, também, aos anarquistas, que, em maio de 68, decretaram sua
morte. Ela continua, contudo escapando de todas as representações criadas
por sociólogos, antropólogos, psicólogos, economistas... Não foram, por
exemplo, necessários mais do que cinqüenta anos para que o “modelo familiar
de Talcott Parsons”, modelo, segundo ele, perfeito para as sociedades urbanas
e industrializadas voasse pelos ares[2]. Hoje, a família pode ser
monoparental[3] ou recomposta, constituída por casais mistos casados, não
casados, homossexuais, feita de filhos de vários leitos, adotados e “fabricados”,
filhos cuja parentela biológica não corresponde, nem remotamente, à parentela
doméstica.
novo companheiro ou companheira. E junto com eles, em muitos casos, de
filhos de outras uniões.
Nesse cenário, o fato mais importante é que o europeu trazia para o Novo
Mundo uma maneira particular de organizar a família. Esse modelo de família,
constituído por pai e mãe “casados perante a Igreja”, correspondia aos ideais
definidos pela Igreja católica no Concílio de Trento e deveria servir como
instrumento na luta contra a Reforma protestante e a difusão do catolicismo no
Novo Mundo. Apenas dentro deste tipo de família - a sacramentada pelo
matrimônio - seria possível educar cristãmente os filhos, movimentando uma
correia de transmissão pela qual passariam, de geração em geração, as
normas e os valores da Igreja católica. A Igreja católica procurava assim
universalizar suas normas para o casamento e a família.
Mas será que o europeu conseguiu impor esse tipo de família ao Novo Mundo?
Para Gilberto Freyre, a família rural, ou semi-rural foi o mais importante fator de
colonização. Ela era a unidade produtiva que abria espaços na mata, instalava
fazendas, comprava escravos, bois e instrumentos. Agia de forma mais
eficiente para o desbravamento da terra do que qualquer companhia de
comércio. Já Sérgio Buarque de Holanda observou que a família prevalecia
como centro de todas as organizações; os escravos domésticos ou aqueles
que trabalhavam nas plantações juntamente com os demais parentes e
empregados dilatavam o círculo familiar no qual o senhor de engenho era o
todo-poderoso chefe ou o respeitado pater-familias.
da elite senhorial, viviam de outro. Igual mesmo só o hábito de integrarem,
muitas vezes, amigos e parentes à família.
Mas vejamos como tudo isto foi, de fato, vivido. Quando os marinheiros
portugueses chegaram às costas do Brasil e pouco depois, teve início a
colonização, não havia bastantes mulheres européias para constituir famílias.
Uma das soluções foi a de juntar-se às índias tupis. Muitas delas se
entregavam aos brancos, pois os índios consideravam normal a poligamia. Os
tupis, por exemplo, tinham o costume de oferecer uma mulher a todo o
estranho que fosse viver entre eles. Homens, como João Ramalho, que foram
viver “amancebados com as índias” adotaram muitos dos usos e costumes
indígenas. Aprenderam a plantar milho, inhame, abóboras e feijão, a fazer uso
do tabaco de fumo e a preparar com mandioca doce. Dormiam em redes fiadas
pelas companheiras e gostavam de tomar banho de rio. As crianças nascidas
destes “amancebamentos” eram chamadas “curibocas”, na língua tupi. Para os
brancos eles eram “mamelucos”.
dirigiam a uma mulher e perguntavam sobre sua vontade de casar. Se a
resposta fosse positiva, pedia-se permissão do pai ou parente mais próximo. A
permissão sendo dada, os “noivos” se consideravam “casados”. Não havia
cerimônias e se ficassem fartos do convívio consideravam a relação desfeita.
Ambos podiam imediatamente procurar novos parceiros. Embora houvesse
esposos que, quando enfadados de suas mulheres, as presenteassem a outro
homem, os índios tratavam muito bem suas companheiras: protegiam-nas,
andavam juntos com elas dentro e fora da aldeia, se o inimigo aparecesse,
lutavam, dando chance às mulheres de escapar. Quando os casais brigavam,
podiam espancar-se mutuamente, sem interferência de terceiros. O adultério
feminino causava grande horror. O homem enganado podia repudiar, expulsar
e mesmo matar a mulher que tivesse cometido essa falta. Quando as mulheres
engravidavam na relação extraconjugal, a criança era enterrada viva e a
adúltera trucidada, ou abandonada na mão de rapazes. Havia uma grande
liberdade sexual antes do casamento. As moças podiam manter relações com
rapazes índios ou europeus antes do casamento sem que isso lhes provocasse
desonra. Posteriormente, casavam-se sem nenhum constrangimento ou temor
de castigos por parte do esposo.
No Brasil, as coisas não iriam ser diferentes. As “uniões à moda da terra” vão
originar famílias de mestiços e mulatos. Da mesma maneira que as uniões de
brancos com índias, as de brancos, mulatos e negros também não
pressupunham o casamento na Igreja. As pessoas se escolhiam por que se
gostavam, passando a trabalhar juntas e a ter filhos. Muitas delas, só no final
da vida recorriam a Igreja para casar, pois tinham medo de ir para o inferno. Aí
chamavam um padre, pediam a extrema-unção e confessavam os seus
pecados, inclusive o de ter vivido com alguém “fora do sagrado matrimônio”.
Entre brancos pobres, a coisa não era diferente. O fato de no Brasil colonial as
cidades serem distantes uma das outras fazia com que a maioria das pessoas
morassem “pelos matos”. Aquelas que viviam nas áreas rurais, longe das
igrejas, tinham dificuldade em cumprir os preceitos da religião, escapando ao
controle das instituições que pudessem persegui-los. Vinham às cidades no dia
da festa do padroeiro para assistir à quermesse e rezar na procissão. Mas
casar na igreja era raro. Em sua maioria, homens e mulheres viviam juntos,
amigados ou amancebados, antes mesmo de casar. Viver junto antes do
casamento equivalia, na linguagem da época, aos chamados “desponsórios de
futuro”, isto é, uma união tendo em mente um futuro casamento. A inexistência
de anticoncepcionais eficientes acabava por dar lugar a muitos filhos. Nem
todos sobreviviam, pois as condições de vida eram duras e a falta de higiene e
as doenças matavam muitas crianças antes de um ano de vida.
filhos e filhas interferindo na escolha do cônjuge, controlavam o dinheiro, com
que cada membro colaborava para o domicílio, punham em funcionamento
redes de solidariedade, agiam, sós ou em grupo, quando tinham seus
interesses contrariados (caso das partilhas testamentárias ou da legitimação de
filhos “ilegítimos”, por exemplo). Estudos sobre o Reino do Congo ou Angola,
também mostraram etnias matrilineares poderosas, ajudando a consolidar o
padrão da família monoparental, com mulheres na chefia do domicílio.
para acompanhar as transformações da sociedade industrial ou o avanço do
individualismo passando de grandes famílias patriarcais à família reduzida.
Hoje, nos debatemos (como outras culturais ocidentais), entre o desejo de
multiplicidade de parceiros sexuais e a estabilidade sexual necessária aos
filhos. Entre a parentela e a carreira profissional. A contemporaneidade é
marcada, com pequenas variações entre as classes sociais, por um grande
domínio dos destinos individuais e familiares por dois motivos: um sistema de
valores que endossa esta autonomia e condições objetivas (emprego, ambiente
democrático, Estado presente) que autorizam tal domínio. O crescimento de
mulheres no mercado de trabalho, o progresso científico e a contracepção, a
liberalização sexual, ou o divórcio mudaram definitivamente a cara do
casamento e da família. Os valores também se transformaram. Acabou-se o
tempo em que cada um dos membros da família endossava um papel social
definido, fixo: esfera pública para o marido, chefe de família e encarregado de
prover o casal e esfera privada para a mulher, se ocupando de tarefas
domésticas, da educação dos filhos e da submissão destes à autoridade
parental. Desde os anos 70, os valores individualistas miram a liberdade, a
autonomia, à realização de cada um em lugar de normas rígidas. A autoridade
pura e simples foi destronada em favor da negociação, e da partilha de
aspirações. Concepções cada vez mais hedonistas[5] não cessam de se
multiplicar. Nasce uma nova forma de amar. Entre os casais, a união entre dois
indivíduos é reivindicada como uma livre escolha, aquela do amor consentido e
não ditado por imperativos morais ou sociais. É lógico, que deste ponto de
vista, quando o amor deixa de existir os laços também se desfazem para se
refazer com outrem. Passou-se do casal fusional (fusão = união) ao casal
fissional (fissão = separação) ancorado em nova equação: 1+1=3, pois cada
qual guarda metade de sua independência. O casal torna-se um terceiro lugar
onde se faz junto o que se gosta de fazer junto. Hoje, ser um casal significa,
para a maioria das zonas urbanas, ser livre junto, numa parceria onde o Direito
(na forma de contratos e pactos) tem cada vez mais o que dizer. As crianças
também se beneficiaram desta democratização. Mesmo se relações
hierárquicas seguem prevalecendo, a valorização da infância e o respeito da
singularidade dos filhos é uma constante entre pais. E é muito provável que
entre os que transformam o amor conjugal num investimento de curto ou médio
termo, o longo termo se transferiu para os filhos.
Ainda hoje, grandes famílias no mundo político, por exemplo, são uma
realidade. Um pai ou um avô deputados acabam conseguindo eleger seus
netos, perpetuando sua influência política. Há várias regiões do Brasil onde tais
famílias, como as famílias senhoriais de outrora, detém o poder sobre a vida e
a morte das pessoas, distribuindo ordens e favores entre os mais carentes.
[1] excessivamente rigoroso ou drástico
[2] Para Parsons o bom funcionamento do grupo familiar depende de uma distinção total e
assimétrica, embora ele não refira este termo, dos papéis sociais do pai e da mãe, seja
quantitativa seja qualitativamente. Ao pai cabe representar e exercer a autoridade para além de
ser a interiorização dos valores ditos universais. Por seu lado, a mãe possui a função de
assegurar o funcionamento da família através das tarefas de dona-de-casa e de mãe, ficando
restrita ao espaço doméstico.
[3] diz-se esp. de família constituída em torno só da mãe ou só do pai, separados, com ou sem
novo cônjuge.
[5] Doutrinas que concordam na determinação do prazer como o bem supremo, finalidade e
fundamento da vida moral.