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Pequena história de famílias no Brasil

Comecemos pelo óbvio. Todo mundo tem família e ela é a mais velha
instituição das sociedades humanas. Valorizada, temida ou inquietante, a
família existe! No Ocidente cristão, ela sobreviveu ao controle draconiano[1] da
Igreja católica que a queria encerrar na imagem da Sagrada Família;
sobreviveu às utopias que quiseram a substituir por formas de vida coletiva.
Sobreviveu, também, aos anarquistas, que, em maio de 68, decretaram sua
morte. Ela continua, contudo escapando de todas as representações criadas
por sociólogos, antropólogos, psicólogos, economistas... Não foram, por
exemplo, necessários mais do que cinqüenta anos para que o “modelo familiar
de Talcott Parsons”, modelo, segundo ele, perfeito para as sociedades urbanas
e industrializadas voasse pelos ares[2]. Hoje, a família pode ser
monoparental[3] ou recomposta, constituída por casais mistos casados, não
casados, homossexuais, feita de filhos de vários leitos, adotados e “fabricados”,
filhos cuja parentela biológica não corresponde, nem remotamente, à parentela
doméstica.

Se formos, contudo, examinar a história do Brasil, veremos que, diferentemente


da idéia de uma família ideal, congelada em padrões no passado, teremos que
pensar no plural: em famílias. Em nossa terra, diferentes tipos de família se
constituíram, entre os séculos XVI e inícios do século XIX. Diferentes, sem
dúvida, na sua função social, das famílias que vemos hoje. Mas, tendo
guardado algumas semelhanças, pois o que vale sublinhar é que a despeito
das diferentes condições vividas por nossos antepassados, conservarmos
deles permanências que hoje consideraríamos como extremamente modernas.
A mais curiosa delas sendo o fato de que tal como hoje, as pessoas viviam em
grupos estáveis, mas, em grupos onde se admitia, também, a chegada de um

 
 

 
 
 
 
 
 
novo companheiro ou companheira. E junto com eles, em muitos casos, de
filhos de outras uniões.

No período de que vamos tratar alguns acontecimentos marcaram o rosto do


país em construção. O primeiro deles, é claro, foi a chegada dos portugueses à
costa. A ele se seguiu a instalação da agro-manufatura do açúcar e a
importação de milhões de escravos africanos para trabalhar nos engenhos que
se espalharam pelo litoral. Depois veio a expansão territorial dos séculos XVII e
XVIII em direção ao interior da Colônia, expansão motivada pela descoberta
das minas de ouro e da pecuária. A partir dos meados do século XVIII, teve
início a urbanização da Colônia. Essas diferentes situações históricas
promoveram enormes ondas migratórias que obrigavam os colonizadores,
sobretudo os homens, a locomover-se da costa para o interior da Colônia, em
busca de trabalho e ocupação. Tais deslocamentos bruscos e violentos
alteravam a estrutura demográfica das populações, ao incentivar o
aparecimento de formas diferentes de família, de acordo com as realidades
econômicas, sociais e culturais de cada região.

Nesse cenário, o fato mais importante é que o europeu trazia para o Novo
Mundo uma maneira particular de organizar a família. Esse modelo de família,
constituído por pai e mãe “casados perante a Igreja”, correspondia aos ideais
definidos pela Igreja católica no Concílio de Trento e deveria servir como
instrumento na luta contra a Reforma protestante e a difusão do catolicismo no
Novo Mundo. Apenas dentro deste tipo de família - a sacramentada pelo
matrimônio - seria possível educar cristãmente os filhos, movimentando uma
correia de transmissão pela qual passariam, de geração em geração, as
normas e os valores da Igreja católica. A Igreja católica procurava assim
universalizar suas normas para o casamento e a família.

Mas será que o europeu conseguiu impor esse tipo de família ao Novo Mundo?
Para Gilberto Freyre, a família rural, ou semi-rural foi o mais importante fator de
colonização. Ela era a unidade produtiva que abria espaços na mata, instalava
fazendas, comprava escravos, bois e instrumentos. Agia de forma mais
eficiente para o desbravamento da terra do que qualquer companhia de
comércio. Já Sérgio Buarque de Holanda observou que a família prevalecia
como centro de todas as organizações; os escravos domésticos ou aqueles

 
 

 
 
 
 
 
 
que trabalhavam nas plantações juntamente com os demais parentes e
empregados dilatavam o círculo familiar no qual o senhor de engenho era o
todo-poderoso chefe ou o respeitado pater-familias.

Para esses dois estudiosos, a família estava no centro do processo de


colonização: segundo eles, a soma da tradição patriarcal portuguesa com a
colonização agrária e escravista resultou no chamado patriarcalismo brasileiro.
Tanto no interior quanto no litoral era ele que garantia a união entre parentes, a
obediência dos escravos e a influência política de um grupo familiar sobre os
demais. Uma grande família reunida em torno de um chefe, pai e senhor forte e
temido impunha a sua lei e a sua ordem nos domínios que lhe pertenciam. Era
a família patriarcal.

Instalada geralmente, em engenhos ou fazendas, ela se concentrou na área


rural até o século XVIII. O chefe da família cuidava dos negócios e tinha
absoluta autoridade sobre a mulher, os filhos, os escravos, empregados e
agregados. Sua influência era enorme e se estendia, muitas vezes, a famílias
do mesmo tipo, localizadas em regiões próximas. A família patriarcal,
caracterizada pela estabilidade e pela manutenção de valores morais muito
tradicionais, foi assim resumida por Capistrano de Abreu: “pai soturno, mulher
submissa, filhos aterrados”. A singularidade da família patriarcal é que ela não
se restringia ao trio mencionado. Pai, mãe e filhos constituíam apenas o núcleo
central. A família incluía também os parentes, os filhos ilegítimos ou os de
criação, os afilhados, empregados e amigos com quem se tinha uma relação
de compadrio (isto é, padrinhos ou madrinhas), os agregados e escravos.
Havia uma relação de dependência e solidariedade entre seus membros.
Interessante destacar que estudos africanistas vem comprovando que este não
é um modelo ibérico, mas, africano: casa grande com grande homem, mulher,
concubinas, escravos domésticos e do eito[4].

Embora se reconheça a importância deste modelo, outros tipos de família


vicejavam na mesma época: famílias pequenas, famílias de solteiros e viúvos,
famílias de mães e filhos vivendo sem pais ou companheiros, famílias de
escravos. Ou seja, também no passado, a noção de família variou de acordo
com os diferentes grupos sociais e de acordo com as diferentes regiões do
país. Os escravos, homens forros ou livres, viviam de um jeito, os poderosos

 
 

 
 
 
 
 
 
da elite senhorial, viviam de outro. Igual mesmo só o hábito de integrarem,
muitas vezes, amigos e parentes à família.

Entre as camadas mais pobres da população eram comuns as ligações


transitórias ou consensuais, instaladas, sobretudo nas áreas de passagem,
urbanização acelerada ou mineração. Havia também a família constituída por
homens livres e pobres, em zonas agrárias, cuja necessidade de estabilidade a
fazia muito semelhante à família patriarcal, com exceção do número de
escravos. Viver numa família onde faltara a benção do padre e o casamento na
igreja não queria absolutamente dizer viver na precariedade. As ligações, então
chamadas de concubinárias, em que as pessoas viviam juntas sem estar
casadas perante a Igreja, podiam ser e eram muito estáveis. Havia consenso
entre os companheiros. Havia divisão de papéis e partilha de tarefas. O que era
precário e instável era a situação material dessas famílias, a obrigação de
muitos homens terem que abandonar suas mulheres para ganhar a vida em
outras localidades. Mas a estima, o respeito e a solidariedade eram
características que se encontravam tanto num tipo de família, quanto no outro.
Assim como as tensões ou violências, presentes, em ambas, também.

Mas vejamos como tudo isto foi, de fato, vivido. Quando os marinheiros
portugueses chegaram às costas do Brasil e pouco depois, teve início a
colonização, não havia bastantes mulheres européias para constituir famílias.
Uma das soluções foi a de juntar-se às índias tupis. Muitas delas se
entregavam aos brancos, pois os índios consideravam normal a poligamia. Os
tupis, por exemplo, tinham o costume de oferecer uma mulher a todo o
estranho que fosse viver entre eles. Homens, como João Ramalho, que foram
viver “amancebados com as índias” adotaram muitos dos usos e costumes
indígenas. Aprenderam a plantar milho, inhame, abóboras e feijão, a fazer uso
do tabaco de fumo e a preparar com mandioca doce. Dormiam em redes fiadas
pelas companheiras e gostavam de tomar banho de rio. As crianças nascidas
destes “amancebamentos” eram chamadas “curibocas”, na língua tupi. Para os
brancos eles eram “mamelucos”.

Já que estamos falando de famílias é bom não esquecer alguns aspectos


importantes da vida dos indígenas, antes da chegada dos europeus. O
casamento era proibido entre filho e mãe, filho e irmã, pai e filha. Tios,
diferentemente do que acontecia na Europa, podiam desposar sobrinhas. Os
“casamentos” seguiam regras bem simples: desejando se unir, os homens se

 
 

 
 
 
 
 
 
dirigiam a uma mulher e perguntavam sobre sua vontade de casar. Se a
resposta fosse positiva, pedia-se permissão do pai ou parente mais próximo. A
permissão sendo dada, os “noivos” se consideravam “casados”. Não havia
cerimônias e se ficassem fartos do convívio consideravam a relação desfeita.
Ambos podiam imediatamente procurar novos parceiros. Embora houvesse
esposos que, quando enfadados de suas mulheres, as presenteassem a outro
homem, os índios tratavam muito bem suas companheiras: protegiam-nas,
andavam juntos com elas dentro e fora da aldeia, se o inimigo aparecesse,
lutavam, dando chance às mulheres de escapar. Quando os casais brigavam,
podiam espancar-se mutuamente, sem interferência de terceiros. O adultério
feminino causava grande horror. O homem enganado podia repudiar, expulsar
e mesmo matar a mulher que tivesse cometido essa falta. Quando as mulheres
engravidavam na relação extraconjugal, a criança era enterrada viva e a
adúltera trucidada, ou abandonada na mão de rapazes. Havia uma grande
liberdade sexual antes do casamento. As moças podiam manter relações com
rapazes índios ou europeus antes do casamento sem que isso lhes provocasse
desonra. Posteriormente, casavam-se sem nenhum constrangimento ou temor
de castigos por parte do esposo.

Brancos e índias continuavam se amancebando até a chegada de um novo


grupo: o dos africanos escravizados. As africanas, por sua vez, vieram
engrossar as corriqueiras “uniões à moda da terra”. Os portugueses já estavam
familiarizados com as mulheres negras, pois desde o século XV, elas eram
enviadas para Portugal. Trabalhando como escravas em serviços domésticos e
artesanais, elas acabavam amancebando-se ou casando-se com homens
brancos.

No Brasil, as coisas não iriam ser diferentes. As “uniões à moda da terra” vão
originar famílias de mestiços e mulatos. Da mesma maneira que as uniões de
brancos com índias, as de brancos, mulatos e negros também não
pressupunham o casamento na Igreja. As pessoas se escolhiam por que se
gostavam, passando a trabalhar juntas e a ter filhos. Muitas delas, só no final
da vida recorriam a Igreja para casar, pois tinham medo de ir para o inferno. Aí
chamavam um padre, pediam a extrema-unção e confessavam os seus
pecados, inclusive o de ter vivido com alguém “fora do sagrado matrimônio”.
Entre brancos pobres, a coisa não era diferente. O fato de no Brasil colonial as
cidades serem distantes uma das outras fazia com que a maioria das pessoas
morassem “pelos matos”. Aquelas que viviam nas áreas rurais, longe das

 
 

 
 
 
 
 
 
igrejas, tinham dificuldade em cumprir os preceitos da religião, escapando ao
controle das instituições que pudessem persegui-los. Vinham às cidades no dia
da festa do padroeiro para assistir à quermesse e rezar na procissão. Mas
casar na igreja era raro. Em sua maioria, homens e mulheres viviam juntos,
amigados ou amancebados, antes mesmo de casar. Viver junto antes do
casamento equivalia, na linguagem da época, aos chamados “desponsórios de
futuro”, isto é, uma união tendo em mente um futuro casamento. A inexistência
de anticoncepcionais eficientes acabava por dar lugar a muitos filhos. Nem
todos sobreviviam, pois as condições de vida eram duras e a falta de higiene e
as doenças matavam muitas crianças antes de um ano de vida.

Para alguns homens, sobretudo os moradores de áreas rurais pobres,


engravidar a companheira era importante, pois permitia avaliar se ela lhe daria
muitos filhos ou não. Como a maioria vivia nas roças e campos, os filhos
ajudavam na lavoura, pois, seus pais e mães não tinham condições de comprar
escravos. Se, eventualmente não se importavam com a virgindade, os homens
ligavam muito para a fidelidade da companheira. Quando se sentiam traídos
era comum ameaçar e espancar suas mulheres. Mas elas davam o troco.
Abandonadas, não hesitavam em tentar envenená-los ou pediam ajudam aos
irmãos e parentes para aplicar-lhes uma boa surra.

Graças às grandes ondas migratórias, as cidades (de algumas capitânias)


ficavam com mais mulheres do que homens. Sozinhas, cuidavam do pequeno
comércio, da lavoura, da plantação e dos animais domésticos. Também
prestavam pequenos serviços como lavar, costurar, tecer, bordar, fazer doces
ou eram padeiras, tintureiras, prostitutas e agricultoras. Algumas, mais
abastadas, eram fazendeiras, comerciantes de escravos e de tropas, que
transportavam, para o interior, produtos comprados no porto do Rio de Janeiro.
Enfim, trabalhando em casa ou na rua, as mulheres ajudavam na sobrevivência
de suas famílias e eram membros destacados da economia informal que existia
então. A existência de mulheres sozinhas nas pequenas cidades coloniais dava
uma característica especial às famílias, que se constituíam, muitas vezes,
apenas de mãe e filhos, ou avó. Ou seja, se tratava de lares monoparentais
exclusivamente femininos. Algumas destas famílias, cujo chefe, portanto,
poderia ser uma mulher, incluíam escravos e escravas. Outras incluíam
parentes ou compadres e comadres “agregados”. O que vale registrar é que ao
contrário de ser sinônimo de fragilidade social, tais famílias permitiam as
matriarcas traçar agendas extremamente assertivas para os seus: casavam

 
 

 
 
 
 
 
 
filhos e filhas interferindo na escolha do cônjuge, controlavam o dinheiro, com
que cada membro colaborava para o domicílio, punham em funcionamento
redes de solidariedade, agiam, sós ou em grupo, quando tinham seus
interesses contrariados (caso das partilhas testamentárias ou da legitimação de
filhos “ilegítimos”, por exemplo). Estudos sobre o Reino do Congo ou Angola,
também mostraram etnias matrilineares poderosas, ajudando a consolidar o
padrão da família monoparental, com mulheres na chefia do domicílio.

A Igreja Católica não só permitia como defendia o direito dos escravos de se


casarem, inclusive com pessoas livres. Os senhores mais ricos costumavam
casar seus escravos no mesmo dia em que batizavam as crianças nascidas no
engenho. Assim, chamava-se um padre que realizava as duas cerimônias e
depois havia uma “função”. A função era uma festa ao som de batuques, violas
e atabaques. O trabalho na lavoura, a época de colheita ou de moagem da
cana servia para que homens e mulheres se encontrassem. De maneira geral,
nas grandes fazendas, havia mais homens do que mulheres nas senzalas. A
escolha de uma mulher muitas vezes causava disputas violentas entre os
homens: brigas de faca, ameaças e até mortes. Os escravos preferiam unir-se
em casamento ou concubinatos com companheiros da mesma origem étnica.
Chama-se a este fenômeno endogamia. Escravos de origem nagô se casavam
com nagô; os de origem haussá, com haussá, e assim por diante. Essa
escolha, ditada por afinidades culturais e religiosas, permitia ao casal organizar
seu mundo com os mesmos hábitos e tradições da sua região de origem na
África.

Nas cidades, as uniões entre homens e mulheres escravos, ou entre escravos


(as) e alforriados (as) ou livres, também vão ser correntes. Aí também
prevalecia o padrão endogâmico de casamento do qual falamos. A família
escrava apoiava-se numa forma de solidariedade muito forte: a espiritual.
Escolhendo para padrinhos ou madrinhas de seus filhos amigos ou
companheiros de trabalho ou de etnia, os descendentes de africanos formavam
um tipo de família onde laços com a tradição africana eram muito importantes.
Os padrinhos e madrinhas ficavam encarregados de proteger e ajudar o
afilhado até o final da vida servindo para forjar uma rede de informações das
diversas “nações” que fazia circular as notícias sobre os familiares vendidos a
proprietários diferentes. Havia sempre a possibilidade de reencontrarem-se
irmãos, pais e mães ou outros parentes.

 
 

 
 
 
 
 
 

Os filhos das uniões não sacramentadas eram considerados ilegítimos, pela


Igreja. Para se ter uma idéia de como os índices de ilegitimidade eram
elevados, em Salvador, na Bahia, entre 1830 e 1874, 4/5 das crianças negras e
mulatas eram ilegítimas e em São Paulo, entre 1745 e 1845 elas perfaziam
39% dos nascimentos, e em Vila Rica, Minas Gerais, em 1804 eram mais de
98% das crianças escravas. Juntando o jornal, os escravos conseguiam,
muitas vezes, comprar a liberdade de um companheiro ou companheira com o
qual se casavam. Casais assim formados conseguiam sobreviver
razoavelmente. Alugavam um quarto em um cortiço ou casinha nos arredores
da cidade e criavam seus filhos. Para não atrapalhar o trabalho de seus pais,
as crianças eram, muitas vezes, educadas por amigas ou parentes livres, em
cujas casas cresciam e aprendiam os primeiros ofícios. Tal “circulação de
crianças” prenunciava hábitos ainda hoje muito arraigados entre mães pobres.

A família senhorial apresentava algumas características também encontradas


no restante da sociedade. Elas podiam ser “extensas”, englobando familiares e
agregados, parentes pobres ou solteiros, filhos bastardos e concubinas. Ou
elas podiam ser ainda, famílias de elite monoparentais, ou seja, aquelas em
que havia, apenas, um dos membros do casal. Essas eram em geral lideradas
por viúvas que viviam com seus filhos e irmãos ou irmãs solteiras. Em ambos
os casos eram comuns as núpcias entre parentes próximos, primos e até
meios-irmãos. Graças aos casamentos “endogâmicos”, as famílias senhoriais
aumentavam sua área de influência, aumentando também suas terras,
escravos e bens. O casamento com “gente igual” era altamente recomendável
e poucos eram os jovens que rompiam com essa tradição. O dia-a-dia das
famílias senhoriais transcorria em meio a grande número de pessoas. As
mulheres pouco saiam de suas casas, empregando seu tempo em bordados e
costuras, ou no preparo de doces, bolos e frutas em conservas. Eram
chamadas de “minha senhora”, pelos maridos. Sentadas em esteiras no chão,
com as pernas cruzadas, vestidas simplesmente com camisolões e chinelos,
elas passavam as horas em trabalhos manuais. À sua volta, crianças brancas e
escravas engatinhavam e brincavam juntas.

Concluindo: no passado, viver em família era diferente! Mas será que, de lá


para cá tudo mudou? Permanências ou transformações? Prefiro permanências
& transformações. Comecemos pelas últimas. Hoje a família modernizou-se

 
 

 
 
 
 
 
 
para acompanhar as transformações da sociedade industrial ou o avanço do
individualismo passando de grandes famílias patriarcais à família reduzida.
Hoje, nos debatemos (como outras culturais ocidentais), entre o desejo de
multiplicidade de parceiros sexuais e a estabilidade sexual necessária aos
filhos. Entre a parentela e a carreira profissional. A contemporaneidade é
marcada, com pequenas variações entre as classes sociais, por um grande
domínio dos destinos individuais e familiares por dois motivos: um sistema de
valores que endossa esta autonomia e condições objetivas (emprego, ambiente
democrático, Estado presente) que autorizam tal domínio. O crescimento de
mulheres no mercado de trabalho, o progresso científico e a contracepção, a
liberalização sexual, ou o divórcio mudaram definitivamente a cara do
casamento e da família. Os valores também se transformaram. Acabou-se o
tempo em que cada um dos membros da família endossava um papel social
definido, fixo: esfera pública para o marido, chefe de família e encarregado de
prover o casal e esfera privada para a mulher, se ocupando de tarefas
domésticas, da educação dos filhos e da submissão destes à autoridade
parental. Desde os anos 70, os valores individualistas miram a liberdade, a
autonomia, à realização de cada um em lugar de normas rígidas. A autoridade
pura e simples foi destronada em favor da negociação, e da partilha de
aspirações. Concepções cada vez mais hedonistas[5] não cessam de se
multiplicar. Nasce uma nova forma de amar. Entre os casais, a união entre dois
indivíduos é reivindicada como uma livre escolha, aquela do amor consentido e
não ditado por imperativos morais ou sociais. É lógico, que deste ponto de
vista, quando o amor deixa de existir os laços também se desfazem para se
refazer com outrem. Passou-se do casal fusional (fusão = união) ao casal
fissional (fissão = separação) ancorado em nova equação: 1+1=3, pois cada
qual guarda metade de sua independência. O casal torna-se um terceiro lugar
onde se faz junto o que se gosta de fazer junto. Hoje, ser um casal significa,
para a maioria das zonas urbanas, ser livre junto, numa parceria onde o Direito
(na forma de contratos e pactos) tem cada vez mais o que dizer. As crianças
também se beneficiaram desta democratização. Mesmo se relações
hierárquicas seguem prevalecendo, a valorização da infância e o respeito da
singularidade dos filhos é uma constante entre pais. E é muito provável que
entre os que transformam o amor conjugal num investimento de curto ou médio
termo, o longo termo se transferiu para os filhos.

Apesar de tantas transformações, tal como no período colonial, a família


brasileira continua sendo a correia de transmissão de valores e tradições. Hoje,
é ainda “em casa” que aprendemos sobre o certo e o errado, o “bem” e o “mal”,
sobre nossa cultura e nosso passado. A família é também uma forma de poder.

 
 

 
 
 
 
 
 
Ainda hoje, grandes famílias no mundo político, por exemplo, são uma
realidade. Um pai ou um avô deputados acabam conseguindo eleger seus
netos, perpetuando sua influência política. Há várias regiões do Brasil onde tais
famílias, como as famílias senhoriais de outrora, detém o poder sobre a vida e
a morte das pessoas, distribuindo ordens e favores entre os mais carentes.

No Brasil, sobretudo no Brasil rural, encontramos também famílias grandes,


onde o papel dos “agregados” - padrinhos e madrinhas, afilhados, parentes
pobres - ainda é muito forte. Seguem e têm cada vez mais visibilidade as
famílias constituídas por mulheres independentes com seus filhos, cujas filhas,
reproduzem as condições de vida familiar (maternidades precoces), e a
pobreza de suas mães, incrementando a circulação de crianças, inclusive nas
ruas. E amanhã? A família continuará a existir? Os historiadores dizem que a
modernização das sociedades não é feita contra a família, mas com a família.
Ora local de residência, ora rede de solidariedades, a família é um ponto de
apoio para todos os indivíduos. É também uma forma de resposta da instituição
familiar às novas condições econômicas e sociais de vida. As crises
matrimoniais poderiam representar um risco para as famílias? Talvez não. Ao
contrário do que se possa imaginar, elas parecem reforçar os laços de
parentesco que unem avós e netos, sobrinhos e tios em torno mães ou pais
que tenham que criar, sozinhos, os seus filhos.

Todas as sociedades - inclusive a nossa - exprimem a preocupação em


assegurar sua perpetuação. A busca de continuidade é um dos grandes
desafios da humanidade e cada homem, ou cada mulher, possui o mesmo
desejo de garantir sua descendência. Eis porque, em todas as sociedades,
existe sempre um sistema de alianças de casamento para organizar a
procriação de filhos. Procurar compreender esses sistemas, - como tentamos
fazer aqui - ajuda-nos a perceber como os homens constroem o seu mundo e
se organizam em torno da família.

 
 

 
 
 
 
 
 
[1] excessivamente rigoroso ou drástico

[2] Para Parsons o bom funcionamento do grupo familiar depende de uma distinção total e
assimétrica, embora ele não refira este termo, dos papéis sociais do pai e da mãe, seja
quantitativa seja qualitativamente. Ao pai cabe representar e exercer a autoridade para além de
ser a interiorização dos valores ditos universais. Por seu lado, a mãe possui a função de
assegurar o funcionamento da família através das tarefas de dona-de-casa e de mãe, ficando
restrita ao espaço doméstico.

[3] diz-se esp. de família constituída em torno só da mãe ou só do pai, separados, com ou sem
novo cônjuge.

[4] plantação em que os escravos

[5] Doutrinas que concordam na determinação do prazer como o bem supremo, finalidade e
fundamento da vida moral.

 
 

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