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CURITIBA
2007
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CURITIBA
2007
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Marco Antonio Maschio Cardozo Chaga
Coordenador do Curso Circuitos de Teoria Literária
Centro Universitário Campos de Andrade
AGRADECIMENTOS
Aos amigos, em especial, Marcos, José Geraldo e Carlos, pela ajuda nos momentos
de precisão e Aline, pelas palavras de incentivo e confiança.
Aos colegas com quem tive a honra de conviver durante o período de duração do
curso, em especial à Elisa e Eliane pela troca de conhecimentos.
RESUMO
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................8
....................................................................................................................................45
5 CONCLUSÃO.........................................................................................................60
REFERÊNCIAS.......................................................................................................62
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1 INTRODUÇÃO
Ah, e se não fosse, cada acaso, não tivesse sido, qual é então que teria
sido o meu destino seguinte? Coisa vã, que não conforma respostas. Às
vezes essa idéia me põe susto. [...] Eu, quem é que eu era? [...] Como é que
posso com este mundo? (ROSA, 1986, p. 107-129-192)
Quem sou eu? [...] Mas eu, eu o que é que sou? [...] Que fazemos nós na
vida? Que incrível pertinácia nos resolve numa ilusão toda a imensidade do
milagre de estar vivo? [...] que maldição pesa sobre a assunção do nosso
destino?, sobre o nosso confronto connosco mesmos?, sobre a evidência
da nossa condição? Será que é sagrado e intocável o nosso signo animal?”
(FERREIRA, 1983, p. 23-57-217)
Neste sentido é possível confrontar as idéias dos dois narradores, tornando por
assim dizer, Alberto Soares ouvinte do relato de Riobaldo e o jagunço, leitor das
idéias de Alberto, já que suas narrativas se caracterizam por apresentar um caráter
monológico. Partindo desta premissa, o presente trabalho tem por objetivo explorar a
temática filosófico-existencialista e traçar um paralelo entre os discursos ou
enunciados de Riobaldo e Alberto Soares sob a perspectiva do dialogismo
bakthiniano e a corrente filosófica do Existencialismo de Sartre encontrada nas duas
narrativas.
Primeiramente serão analisados alguns fragmentos do discurso dos dois
personagens em suas respectivas narrativas e, em seguida, confrontados entre si a
fim de estabelecer a relação dialógica proposta por Bakhtin. Na seqüência serão
examinados dois episódios que concentram ou revelam metaforicamente, pode-se
dizer assim, o grande problema fundamental a ser resolvido por ambas as
personagens: o pacto de Riobaldo com o demônio nas Veredas Mortas (Altas) e o
ver-se a si mesmo de Alberto frente ao espelho, sendo igualmente confrontados
entre si sob a perspectiva existencialista sartreana.
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(Octavio Paz)
não seja interpretada como palavra impessoal da língua, mas como signo
da posição semântica de um outro, como representante do enunciado de
um outro, ou seja, se ouvimos nela a voz do outro. Por isso, as relações
dialógicas podem penetrar o âmago do enunciado, inclusive no íntimo de
uma palavra isolada se nela se chocam dialogicamente duas vozes.
(BAKHTIN, 1997, p. 184)
É daí que surge o discurso bivocal, isto é, a dupla orientação ou duplo sentido
da palavra, visto que “o discurso não se constrói sobre o mesmo, mas se elabora em
vista do outro”, segundo FIORIN (in BARROS, 2003, p. 29). Bakhtin afirma que por
se encontrarem em nosso discurso as palavras de outro, elas tornam-se bivocais
devido ao fato de estarem vestidas de algo novo, da nossa compreensão e da nossa
avaliação. Assim, “a transmissão da afirmação do outro em forma de pergunta já
leva a um atrito entre duas interpretações numa só palavra, tendo em vista que não
apenas perguntamos como problematizamos a afirmação do outro”. (BAKHTIN,
1997, p. 195)
Podemos afirmar, portanto, que para Bakhtin “a tentativa de religar o sentido e
a vida passa necessariamente pela fala que, dialogicamente, incorpora e representa
os discursos de outros”. (BRAIT in BARROS, 2003, p. 23).
Isto quer dizer que no espaço do texto literário, “o dialogismo decorre da
interação verbal que se estabelece entre o enunciador e o enunciatário, no espaço
do texto” ou “entre o eu e o tu ou entre o eu e o outro”. (BARROS, 2003, p. 2-3)
Bakhtin diz ainda que esse fenômeno se observa tanto em narrativas em
terceira pessoa como em primeira também, nas quais o personagem dialoga consigo
próprio e a réplica está subentendida, recurso este denominado monólogo.
Entretanto, de acordo com as teorias bakhtinianas, neste falar consigo mesmo
encontram-se características bem mais abrangentes e peculiares, pois ele considera
que ao dirigir-se a si próprio, um narrador ou um personagem está desdobrando o
seu “eu” em duas vozes, pressupondo-se uma relação entre o “eu” e o “tu” ou o “eu”
e o “outro”, o que, por conseguinte estabelecerá uma relação de alteridade e
polifonia.
Neste diálogo consigo próprio do narrador ou da personagem, Bakhtin
considera que há um discurso polêmico oculto bivocalizado, pois há uma relação
recíproca entre duas vozes, ou seja:
posso aquietar meu temer de consciência, que sendo bem-assistido, terríveis bons-
espíritos me protegem”. (ROSA, 1986, p. 8)
— ... E de súbito vê-se que não é possível morrer. Que não é possível! [...] A
voz inicial... Ouço-a, sei-a... Mas isto é muito maior que nós, muito maior,
muito maior... [...] E é preciso não estar distraído. Então a gente assusta-se,
a gente sabe que tudo isso existe... (FERREIRA, 1983, p. 209)
Agora, bem: não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso, chega. Mas tem
um porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa
parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto? Não, não é não? Sei
que não há. Falava das favas. Mas gosto de toda boa confirmação. Vender
sua própria alma... invencionice falsa! E alma, o que é? Alma tem de ser
coisa supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se pensa: ah,
alma absoluta! Decisão de vender alma é afoitez vadia, fantasiado de
momento, não tem a obediência legal. [...] Se tem alma, e tem, ela é de
Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não queira. Não é vendível.
O senhor não acha? Me declare, franco, peço. [...] Lhe agradeço, por tanto.
[...] Viver é muito perigoso... (ROSA, 1096, p. 17)
Dos restos do que passou, dos pedaços em que me quebrei, de tudo o que
bateu à minha porta, à pessoa que me habita, a memória sobe, purifica-se,
aquieta-se à minha volta, penetra-me o sangue, estabelece-se em
harmonia, como se fosse de amanhã, como se fosse já de agora que a
revivo à luz da noite. [...] Que esperas tu da vida? [...] <<Sei o que quero,
sei o que sonho>>. <<Que fazes para o atingir?>> [...] <<Não sei, não sei.
Reconheço-me na evidência última da minha condição – saber é já
conquistar. [...] A vida é curta – tanto tempo só para isto, para me desnudar.
[...] Um dia virão os arautos do Grande Dia e lançarão aos ombros nus do
homem a verdade da alegria. [...] <<Que ilusão! A busca indefinida é do
destino do homem.>> <<Sim. Mas outra busca, depois desta. (FERREIRA,
1983, p. 217-219)
RIOBALDO: ― Falar [...] é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo.
Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é
que o muito se fala? (ROSA, 1986, p. 29)
ALBERTO: ― Não, amigo. [...] É preciso vencer esta surpresa que nestes casos nos esmaga.
Ajustar a vida à morte. Achar e ver a harmonia de ambas. Mas achá-la depois de sabermos bem o
que é uma e outra, depois de nos encadearmos na sua iluminação. (FERREIRA, 1983, p. 60)
RIOBALDO: ― Bem, mas o senhor dirá, deve de: e no começo – para pecados e artes, as pessoas
– como por que foi que tanto emendado se começou? [...] Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de
traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo:
ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo,
se economiza! (ROSA, 1986, p. 7-15)
ALBERTO: ― Ninguém pode pagar, nada pode pagar a gratuidade deste milagre de sermos. [...]
Deus morreu, Deus não é a minha meta, é o meu ponto de partida. Assumo a minha fraqueza como
assumo as minhas tripas. Na miséria ou na glória, sou eu! [...] Quero achar a evidência que procuro,
estabelecer nela a minha meta em plenitude. (FERREIRA, 1983, p. 76-93)
RIOBALDO: ― E, alma, o que é? Alma tem de ser coisa interna supremada, muito mais do de
dentro, e é só, do que um se pensa: ah, alma absoluta! (ROSA, 1986, p. 17)
ALBERTO: ― Este <<eu>> solitário que achamos nos instantes de solidão final. [...] A unidade que
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nos pré-existe a cada um, à unidade de sermos. O sonho, o alarme, o mistério, a presença de nós a
nós próprios, a interrogação, o mundo submerso da nossa intimidade. (FERREIRA, 1983, p. 76-99)
RIOBALDO: ― Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda
não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. [...] Ao que, digo
ao senhor, pergunto: em sua vida é assim? [...] Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o
senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá. (ROSA, 1986, p. 84-132)
ALBERTO: ― A minha vida assinala-se em breves pontos de referência. [...] Assim me acontece
às vezes que toda a minha vida de outrora se me revela ilegível. [...] À unidade que nos pré-existe a
cada um, à unidade de sermos, a vida imediata, quotidiana, é uma selva de caminhos, de veredas, de
confusa vegetação. Tão fácil perdermo-nos! O mais grave, porém, é que na sua rede muitas vezes
não sentimos que nos perdemos. Cada caminho impõe-se-nos na sua presença imediata. Um
caminho é ‘o’ caminho em cada instante que passa. (FERREIRA, 1983, p. 70-83)
RIOBALDO: ― Viver é muito perigoso... [...] Eu queria decifrar as coisas que são importantes. [...]
Muita coisa importante falta nome. [...] Quem sabe, tudo o que já está escrito tem constante reforma –
mas que a gente não sabe em que rumo está – em bem ou mal, o todo-o-tempo reformando? (ROSA,
1986, p. 17-82-92-479)
ALBERTO: ― E eu te digo que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz e invenção de
cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando se ergue à nossa face. A vida do
homem é cada instante – eternidade onde tudo se reabsorve, que não cresce nem envelhece –,
centro de irradiação para o sem-fim de outrora e de amanhã. A vida é um milagre fantástico.
Na visão de Bakhtin esse dialogar consigo mesmo pode ser considerado como
um processo de autoconhecimento, pois se existe um “eu” na fala, existe também
um “tu”, que embora oposto a esse “eu”, possibilitará um entendimento, uma
‘aparição’ de si para si próprio, ou seja, implicará numa descoberta de uma
percepção nova da realidade ou de algum fato que antes estava obscuro, encoberto,
mas que com esse diálogo veio à tona.
Deste modo podemos transformar, por assim dizer, Riobaldo no interlocutor
monólogo de Alberto Soares e vice-versa, como demonstrado no diálogo que abre
este capítulo.
Bakhtin diz que:
Num plano mais “real”, poderíamos colocá-los em uma interação verbal face a
face e transformá-los em locutor e interlocutor, respectivamente, visto que “a palavra
é o território comum do locutor e do interlocutor” (BAKHTIN, 2004, p. 113), sendo por
sua vez produto dessa interação.
A palavra não é propriedade exclusiva nem de um nem de outro, cabendo a
cada um deles a sua metade no contexto do diálogo. A cada momento dessa
interação invertem-se os papéis, num jogo de alternância locutor-interlocutor. Assim,
ambos, Riobaldo e Alberto Soares invertem os papéis o tempo todo durante o
decorrer do diálogo.
Para BAKHTIN (1997, p. 203):
seguir:
Diante disso, podemos dizer que a voz de Alberto Soares ecoa no discurso de
Riobaldo e vice-versa, comprovando a teoria de Bakhtin (1997, p. 203) que:
Para o teórico russo, a prosa é uma modalidade de texto literário que possui
uma particularidade muito especial: a possibilidade de utilização de diferentes tipos
de discurso, o que lhe dá a característica de gênero polifônico por excelência, visto
que há um confronto de vozes dentro do texto. Assim, ainda segundo ele “a
orientação dialógica do discurso para os discursos de outrem (em todos os graus e
de diversas maneiras) criou novas e substanciais possibilidades literárias para o
discurso, deu-lhe a sua peculiar artisticidade em prosa”. (BAKHTIN, 1998, p. 85).
Desse modo, o discurso em todas as direções orientado para o seu objeto ao
adentrar este meio dialogicamente perturbado de julgamentos e entonações se
encontra com o discurso de outrem, participando ao lado dele de uma interação viva
e tensa. Segundo Bakhtin “o discurso vivo e corrente está diretamente determinado
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Há, portanto, neste sentido uma correlação entre os temas mais presentes nos
discursos de Riobaldo e de Alberto Soares, que são: a vida, o homem, a morte, o
tempo, entre outros, os quais servem de matéria para as reflexões filosóficas dos
narradores-personagens sobre suas próprias vidas e a condição humana de modo
geral, como é possível observar nestes excertos:
Qual é o caminho certo da gente? [...] Esta vida está cheia de ocultos
caminhos. [...] Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a
gente está num cômpito. [...] Todo o caminho da gente é resvaloso. (ROSA,
1986, p. 78-132-273)
Homem? É coisa que treme. [...] Tem diversas invenções de medo, eu sei, o
senhor sabe. [...] Medo do que pode haver sempre e ainda não há. [...] Só é
possível o que em homem se vê, o que por homem passa. [...] Homem foi
feito para o sozinho? Foi. [...] Mas a lei do homem não é seus instrumentos.
[...] Um homem é escuro, no meio do luar da lua – lasca de breu. Dentro de
mim eu tenho um sono, e mas fora de mim eu vejo um sonho – um sonho
eu tive. O fim das fomes. Ei, boto machado em toda árvore. Eu caminhei
para diante. Em, ô gente, eu dei mais um passo à frente: tudo agora era
possível. (ROSA, 1986, p.130-156-160-263-383)
E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte,
mas de ver nascimento. Medo mistério. [...] Caminhar de noite, no breu, se
jura sabença: o que preza o chão – o pé que adivinha. A gente imagina uns
buracões disformes. A gente espera vozes. [...] Digo ao senhor: a noite é da
morte? Nada pega significado em certas horas. [...] a morte é para os que
morrem. Será? [...] Ah, o senhor pensa que morte é choro e sofisma – terra
funda e ossos quietos... (ROSA, 1986, p. 48-176- 207-525)
Mas o tempo não existe senão no instante em que estou. Que me é todo o
passado senão o que posso ver nele do que me sinto, me sonho, me alegro
ou me sucumbo? Que me é todo o futuro senão o agora que me projecto? O
meu futuro é este instante desértico e apaziguado. [...] A vida do homem é
cada instante – eternidade onde tudo se reabsorve, que não cresce nem
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São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo
recruzado. [...] Os fatos passados obedecem a gente; os em vir, também.
Só o poder do presente é que é furiável? Não. Esse obedece igual – e é o
que é. Isto, já aprendi. [...] O passado – é ossos em redor de ninho de
coruja... [...] Como é que vou saber se é com alegria ou lágrimas que eu lá
estou encaixado morando, no futuro? [...] Tempo? Se as pessoas
esbarrassem, para pensar – tem uma coisa! –: eu vejo é o puro tempo vindo
de baixo, quieto mole, como a enchente duma água... Tempo é a vida da
morte: imperfeição. (ROSA, 1986, p. 159-301-461-494-520)
Pode-se, a partir das teorias de Bakhtin, dizer que o discurso literário sente em
maior ou menor grau o seu ouvinte, leitor ou crítico, servindo como um reflexo de
suas apreciações, objeções antecipadas e pontos de vista. Ainda de acordo com o
teórico russo:
apenas num mundo épico), ele tem sua própria concepção do mundo,
personificada em sua ação e em sua palavra. (BAKHTIN, 1998, p. 136-137)
As palavras são pedras [...] o que nelas vive é o espírito que por elas passa.
[...] Estamos condenados a pensar com palavras, a sentir em palavras, se
queremos pelo menos que os outros sintam connosco. (FERREIRA, 1983,
p. 39-112)
Segundo Sartre, é pelo olhar do outro que o eu se fixa no meio do mundo sem
ter conhecimento ainda de seu ser, de seu lugar no mundo e nem a face do mundo
que se volta para o outro. Como conseqüência disso, o sentido do surgimento do
outro é dado para o eu no e por seu olhar. Assim, é através do mundo que o olhar
do outro atinge o eu, visto como metamorfose total do mundo.
O filósofo diz ainda que o eu alcança o outro em seu próprio ser, quando
emprega qualidades como: malvado, ciumento, simpático, entre outras, para
qualificá-lo. Entretanto, quando o contrário se realiza, isto é, quando essas
características são atribuídas ao eu pela palavra do outro, este eu a princípio não se
reconhece, mas aceita e assume esse estranho que lhe é apresentado, pois se trata
de um eu metamorfoseado, ou seja, um ser com novas modalidades e dimensões de
ser.
Desse modo, cada olhar faz com que o eu experimente de modo concreto e
pela certeza do cogito a sua existência para todos os homens vivos. Portanto, o
olhar coloca o eu no encalço de seu ser-Para-outro, revelando a existência do outro
para quem o eu é. Assim, “se há um Outro em geral, é preciso, antes de tudo, que” o
“eu seja aquele que não é o Outro, e é nesta negação mesmo, operada” pelo eu
sobre o eu, que este eu se faz ser “e o Outro surge como Outro”. (1997, p. 362)
Além disso, a partir do momento em que o eu toma consciência de si mesmo
como uma de suas livres possibilidades e se projeta a si próprio para realizar sua
ipseidade, esse eu passa a ser responsável pela existência do Outro. Nesse sentido,
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pela afirmação de sua livre espontaneidade o eu faz com que haja um Outro, e não
apenas a remissão infinita da consciência a si próprio.
O Outro para Sartre, perde-se no meio do mundo do eu devido ao fato de que o
outro é para esse eu aquele que ele não tem de ser, pois o eu o mantém fora de si
como realidade contemplada e transcendida rumo aos próprios fins desse eu. O
Outro é no meio do mundo então através do eu, que o capta com caracteres reais e
como um ser-em-situação, organizando-o no meio do mundo e apreendendo-o como
unidade objetiva de utensílios e obstáculos, ao passo que ele organiza o mundo
rumo a si próprio.
Como o eu se faz por meio de suas possibilidades, a organização dos
utensílios no mundo é a imagem projetada no Em-si de suas possibilidades, isto é,
daquilo que esse eu é. Entretanto essa imagem mundana não pode ser decifrada
por ele, cabendo apenas adaptar-se a ela através da ação.
Para Alberto Soares essas “aparições” são necessárias, por que segundo ele:
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Decorre daí que para se ter essas “aparições” é necessário transportar-se até a
origem, até a ordem inicial, à verdade primitiva, saindo da realidade imediata para
alcançar o transcendente, que surge através dos instantes-limite, espécies de
alarmes, que revelam a evidência, o milagre da vida, uma vez que, segundo Alberto
Soares, “nada mais há na vida do que beber até ao fim o vinho da iluminação e
renascer outra vez”. (FERREIRA, 1983, p. 43)
Assim é que Alberto Soares no decorrer de seu relato, narra experiências que
segundo ele fazem parte desse processo de encontrar-se a si mesmo, de sentir “nas
vísceras a aparição fantástica das coisas, das idéias” (FERREIRA, 1983, p. 9) e dele
próprio. É nessa perspectiva que o narrador relata a experiência de falar sozinho em
voz alta no silêncio noturno:
[...] Porque é que, no silêncio da noite, nos assusta falar em voz alta? Nunca
fizeste essa experiência? [...] Mergulhados no silêncio nocturno, sentimo-
nos não existir. O que existe é como que o absoluto do mundo, a presença
aguda das coisas. O universo aguarda a vinda do primeiro homem. E
subitamente gritamos: <<Eu estou vivo, EU SOU>>. E falamos connosco,
fazemo-nos perguntas. Sobe-nos então à garganta uma surpresa de terror:
<<Quem sou eu? Quem está aqui comigo?>> Dá vertigens. É como se nos
aparecesse um fantasma e estivesse dentro de nós e fosse alguém a mais e
visse pelos nossos olhos e falasse pela nossa boca. Só os doidos falam
sozinhos, porque não têm medo. O mundo para eles não existe: só existe a
sua loucura. Por isso nós, se falamos, nos sentimos doidos, separados
subitamente do mundo. O que existe então não é o quarto onde estamos,
os livros, a noite; o que existe é este vulcão brutal que sai de nós, o jacto do
deus que nos habita, esta monstruosidade que nos adormecia dentro.
(FERREIRA, 1983, p. 44)
Aqui Alberto Soares explica os riscos, pode-se dizer assim, deste falar sozinho,
pois de acordo com ele, além de não ser uma prática considerada sadia pelo senso
comum, trata-se de uma experiência tão profunda que o homem pode descobrir
coisas ou facetas ocultas de sua personalidade que desconhecia completamente e
por isso, causa medo, angústia, apreensão, receio de se deparar com algo
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“monstruoso”. Outra experiência nessa linha é relatada por Alberto Soares ainda no
mesmo capítulo, ou seja, no capítulo VI de sua narrativa a Carolino, aluno que se
interessara por suas teorias:
[...] Há uma outra experiência [...] – Uma vez, quando era miúdo... Contei.
Nós estávamos sentados na varanda da casa, voltada a oriente.
Tomávamos o fresco, o dia fora abrasador. Detrás da serra a lua ia em
breve aparecer e nós esperávamo-la quase em silêncio. Só meu pai me
repetia a história dos astros, que eu guardava na memória: Antares, Altair,
Deneb, gigantes vermelhas, órbitas no grande vazio dos espaços. A lua veio
enfim. Eu sentara-me no chão, mas apetecera-me deitar-me ao comprido
para ver melhor as estrelas. E minha mãe mandou-me ao quarto procurar a
manta e a almofada dos nossos sonos no campo. A porta estava aberta, a
lua entrava por uma das janelas. Procurei a manta e a almofada numa
cadeira, no canto onde minha mãe as arrumava. Subitamente, porém,
quando ia a erguer-me, eu vi que estava alguém mais no quarto. Dei um
berro, larguei tudo, estatelei-me no corredor. Aos meus gritos acudiu minha
mãe, meu pai, meus irmãos, as criadas, a tia Dulce. E ali, à face de todos,
declarei:
― Está ali um ladrão no meu quarto.
A minha mãe arrebatou o candeeiro a uma criada e fomos todos atrás dela.
Mas, iluminado o quarto, examinados os recantos, o ladrão não apareceu.
― Oh, a imaginação desta criança! – exclamou minha mãe.
[...] Subitamente, meu pai teve uma idéia:
― Onde é que viste o ladrão?
― Ali.
― Põe-te lá onde estavas. Olha agora em frente.
Olhei. Quem estava diante de mim era eu próprio, reflectido no grande
espelho do guarda-fato. Meu pai pôs-me a mão na cabeça com a sua
protecção. Minha mãe voltou a lamentar a minha fantasia. [...] Regressámos
à varanda, tia Dulce regressou à grande sala batida do luar e a cujas
janelas rezava as suas contas. A lua vogava agora em pleno céu. No
grande silêncio, os ralos e os grilos frisavam a noite de gritos. No ar
pairavam ainda as crepitações do calor, com uma memória de cigarras
estalando à luz do sol... Eu, porém, relembrava o meu susto à súbita
presença de alguém que agora sabia ser eu. À hora de deitar meu pai
ordenou-me:
― Tu vais-te deitar sozinho. Tu és um homem.
[...] Cumpri o dever de ser homem e deitei-me sozinho, tendo o cuidado de
não olhar para o guarda-fato. Mas no outro dia, assim que me levantei,
coloquei-me no sítio donde me vira ao espelho e olhei. Diante de mim
estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que
vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me fascinado, olhei de perto. E vi,
vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais
imaginara. Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era
eu, desse ser vivo que até então vivera comigo na absoluta indiferença de
apenas ser e em que agora descobria qualquer coisa mais, que me excedia
e me metia medo. Quantas vezes mais tarde eu repetiria a experiência no
desejo de fixar essa aparição fulminante de mim a mim próprio, essa
entidade misteriosa que eu era e agora absolutamente se me anunciava.
(FERREIRA, 1983, p. 61-64)
Percebe-se no relato do episódio que para Alberto Soares o fato de ter-se visto
de relance e momentaneamente apenas, ao espelho, ilustra a sua idéia acerca das
“aparições”, que se configuram como situações nas quais o ser humano entra em
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E todavia, agora que me descubro vivo, agora que me penso, me sinto, [...]
agora que me sei desde uma distância infinita, me reconheço não limitado
por nada mas presente a mim próprio como se fosse o próprio mundo que
sou eu, agora nada entendo da minha contingência. [...] Como entender que
esta iluminação que sou eu, esta evidência axiomática que é a minha
presença a mim próprio, esta fulguração sem princípio que é eu estar
sendo, como entender que pudesse <<não existir>>? Como pensar que é
nada? A minha vida é eterna porque é só a presença dela a si própria, é a
sua evidente necessidade, é ser eu, EU, esta brutal iluminação de mim e do
mundo, puro acto de me ver em mim, este SER que irradia desde o seu
mais longínquo jacto de aparição, este SER-SER que me fascina e às vezes
me angustia de terror... [...] Conheço uma certa emoção das horas, sei da
aparição dos instantes-limites, das vozes submersas. (FERREIRA, 1983, p.
44 - 71)
Diante disso podemos afirmar ainda que, “Alberto, busca o ‘eu’ essencial
(=sein) – aquele que se oculta sob a forma do existente (=dasein) e cuja verdade
autêntica só é alcançada [...] numa súbita e fugaz ‘aparição’”. (COELHO, 1973, p.
215) Nessa perspectiva, é possível perceber que:
essência. Assim, o homem primeiro existe e ao longo dessa existência é que vai se
construindo através das escolhas que se vê obrigado a fazer o tempo todo, levando-
o a formar e descobrir sua essência. Pode-se dizer, portanto, que a essência do
homem é construída do exterior para o interior, recusando-se a idéia da pré-
determinação por meio da divindade.
Desse modo, sentimentos como a angústia e o desespero são considerados
para o existencialismo sartreano, modos para o homem atingir a sua essência, a
nível particular e universal, sendo então responsável não só pela sua
individualidade, mas também por todos os seus semelhantes. É, pois lícito afirmar
que Alberto Soares busca, como relata em sua história, em si mesmo e na condição
humana em geral as respostas de que precisa para sanar suas dúvidas e
inquietações existenciais, ou seja, para encontrar a sua “aparição”, a sua
“evidência”.
Aparição esta que será buscada incessantemente durante todo o decorrer de
sua narrativa, sendo manifestada em um primeiro momento no episódio em que
olhando extasiado para a água do tanque como se estivesse a mirar-se no espelho,
indagou o pai sobre o sentido de sua existência. E em seguida, ao narrar o episódio
em que numa noite de lua viu-se de relance no espelho de seu quarto escuro,
acreditando ter visto um estranho e não a si mesmo, causando-lhe uma sensação de
terror ante a presença do inesperado.
A referida cena já exposta anteriormente possui para os questionamentos de
Alberto Soares um sentido simbólico muito acentuado, uma vez que a lua e o
espelho são dotados de uma significação bastante profunda. A presença desses
elementos está ligada diretamente ao sentido filosófico da busca pela essência, pela
“aparição” de Alberto Soares de si para si mesmo, pois o vocábulo “espelho”,
derivado do latim “speculum”, significa especular, observar atenta e detidamente;
meditar, refletir.
Originalmente o ato de especular era relacionado à observação do movimento
dos astros no céu com a utilização de espelhos. Todavia com o passar do tempo foi
vinculado às atividades altamente intelectuais, adquirindo então uma simbologia
bastante rica referente ao conhecimento. Partindo dessa idéia, podemos afirmar que
Alberto Soares ao deitar-se no chão “para ver melhor as estrelas”, está em certo
sentido através dessa observação dos astros, procurando entender os mistérios do
universo e a sua presença no mundo, pois que ao ver seu reflexo no espelho
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(considerado também um símbolo lunar) sob a luz da lua, está de certo modo
refletindo uma imagem e um conhecimento de si mesmo, embora momentâneo, que
ainda não possuía.
Devido ao terror que lhe inspira esse conhecimento súbito e inesperado,
Alberto Soares pensa em princípio tratar-se da figura de outra pessoa, impressão
que logo lhe é desfeita pelo pai, mas que lhe causará um impacto profundo, pois no
dia seguinte se colocará novamente em frente ao espelho para especular-se,
observar-se mais detidamente, descobrindo “qualquer coisa mais”, a qual segundo
ele o excedia e metia medo. Assim, o terror inicial de Alberto Soares pode ser
explicado pelo caráter numismático conferido ao espelho bem como à alma, ou seja,
a noção de duas faces, o bem e o mal, levando o indivíduo a assustar-se frente ao
conhecimento de si.
Mais tarde, esta e outras experiências levarão Alberto Soares a chegar à
seguinte conclusão:
E eu! [...] O que sou? [...] Eu, quem é que eu era? [...] Eu, Riobaldo. [...]
quem foi que foi que foi o jagunço Riobaldo? [...] Quem me entende? [...]
Então era só eu? [...] mas, eu, o que é que eu era? Eu ainda não era ainda.
[...] De mim, então, entendia? [...] Nasci para ser. (ROSA, 1986, p. 8-9-129-
272-301-343-505-523)
— E eu não sou nada, não sou nada, não sou nada... Não sou mesmo nada,
nadinha de nada, de nada... Sou a coisinha nenhuma, o senhor sabe? Sou
o nada coisinha mesma nenhuma de nada, o menorzinho de todos. O
senhor sabe? De nada. De nada... De nada... (ROSA, 1986, p. 307)
É, pois, sob essa perspectiva que Riobaldo relata minuciosamente sua curiosa
experiência nas Veredas Mortas (Altas) e o suposto encontro com o demônio:
dos planos de Riobaldo, ou seja, de colocar em ação aquilo que está no plano da
reflexão. O momento em que Riobaldo está escolhendo a si mesmo, por assim dizer.
Continuando sua narração, Riobaldo expõe as dúvidas e inquietações por que
passara ao tomar a decisão do pacto, isto é, a decisão de segundo ele, ser o que
ainda não era:
Percebe-se que Riobaldo faz um volteio, por assim dizer, em sua narração,
procurando causar um efeito de expectativa e apreensão em seu suposto
interlocutor, pois considera esta a experiência mais importante para explicar os fatos
que ocorreram mais tarde em sua trajetória.
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Observa-se ainda sua angústia frente à decisão que resolvera tomar para
encontrar, segundo ele, aquilo que ainda não era, decisão esta que implicará na
construção de sua essência e posterior descoberta através dos instantes de alarme,
descritos por Alberto Soares em seu relato, os quais são, por assim dizer, pontes
que levam ao encontro da “aparição” e desvelamento dessa essência.
Como é possível apreender no excerto abaixo, Riobaldo toma essa decisão
perfeitamente consciente de suas implicações futuras, levando-nos aos princípios
existencialistas de Sartre, que afirmam a responsabilidade do homem sobre suas
escolhas, negando, portanto, a existência de um inconsciente, que tenderia a servir
como válvula de escape para que o homem justifique seus atos, de acordo com as
teorias freudianas:
seguro de sua decisão se encaminha para as Veredas Mortas (Altas), local que julga
ser o mais apropriado para a execução de seu plano, isto é, para agir.
Mais uma vez esse excerto nos remete aos preceitos formulados por Sartre,
sobre os quais o homem só é capaz de construir-se a si mesmo através da ação, do
ato de pôr em prática aquilo que planeja para si, visto que Riobaldo após fazer sua
escolha (fazer ou não fazer o pacto), se dirige ao local descrito para executá-la.
No excerto abaixo, Riobaldo apesar de seguro de sua decisão, manifesta suas
especulações em torno do desconhecido, entretanto com a certeza de que “queria
era – somente ficar sendo”:
Nota-se que Riobaldo, mesmo não tendo visualizado o Diabo sob a forma que
esperava, supõe que o pacto tenha sido feito, pois após o ritual de invocação, sente
a princípio “um gozo de agarro, [...] umas tranqüilidades”, permanecendo ainda por
um tempo no lugar para em seguida sentir sensações como: frio, sede e solidão.
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Além disso, Riobaldo passa após a experiência a enxergar as coisas com mais
nitidez, pois segundo ele, “tudo [...] reluzia com clareza”.
Embora a cena descrita nas palavras de Riobaldo em seu relato adquira uma
conotação sobrenatural, diabólica, em verdade não passa de um momento de
epifania do personagem, no qual, ele tem por assim dizer, uma revelação, uma
“aparição”, assim como a cena de Alberto Soares diante do espelho.
De forma mais aprofundada, o que importa na cena não é a sua conotação
sobrenatural e folclórica, utilizada apenas para encobrir a verdadeira experiência de
Riobaldo, que é o fato de encontrar-se a si mesmo em um local até bastante
apropriado para isso: uma encruzilhada, visto que:
Assim sendo, a experiência de Riobaldo vai muito mais além do que a simples
discussão de ter ou não feito um “pacto” com o demônio, uma vez que vista sob a
ótica folclórica e/ou meramente religiosa-cristã a experiência adquire um caráter de
negatividade, voltado apenas para as tendências más do ser humano, isto é, não
passa de uma experiência direcionada à noção de pecado, de ferimento das leis
divinas. Nesse sentido Riobaldo estaria então indo de encontro aos ensinamentos
cristãos.
Entretanto, sua experiência é muito mais do que isso. Seria, portanto,
comparável à experiência de Alberto Soares, uma vez que de certa forma ambos se
encontram diante de um espelho, reconhecendo facetas de si mesmos que antes
não viam. Diante desse quadro, o que na verdade Riobaldo encontra nas Veredas
Mortas (que mais tarde ele descobrirá chamarem-se na realidade Veredas Altas) não
é a figura do Diabo, mas sim uma nova faceta de seu “eu”, assim como Alberto
Soares a descobre quando se vê refletido de relance no espelho.
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Ó espelho!
Água fria pelo tédio em teu quadro
gelada
Quantas vezes e durante horas,
desolada
Dos sonhos, e buscando minhas
lembranças que são
Como folhas sob teu vidro de poço
profundo
Apareci-me em ti como uma sombra
longínqua
Mas, horror! certas noites, em tua severa
fonte
Conheci a nudez do meu sonhar
disperso!
(Mallarmé)
Riobaldo vê, portanto, através do pacto não realizado uma possibilidade de ser
algo que segundo ele ainda não era, uma vez que ao viver essa experiência purgará
o medo que o impedia de tomar parte dentro do mundo, passando por um momento
de epifania. Assim sendo, o pacto torna-se um encontro com conotações ambíguas,
pois Riobaldo espera encontrar o Diabo, mas na verdade encontra-se consigo
mesmo, visto que:
o demo não existe, ele, Riobaldo, sim. [...] Riobaldo esperava a visão
clássica do demo, do sobrenatural: o vendaval, o tremer da natureza. [...]
Mas o que vem não tem forma, não tem movimento, não tem som. [...] Tudo
movimenta-se internamente, no espírito de Riobaldo. (ARAUJO, 1996, p.
230-234)
Dada a intensa mística em torno dos espelhos, que advém desde a Grécia
Antiga através do mito de Narciso, condenado à morte por admirar sua própria
imagem refletida nas serenas águas de um lago, pode-se afirmar que “sim, são para
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Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo
contente, vaidoso. Descuidado, avistei... Explico-lhe: dois espelhos – um de
parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício – faziam jogo. E
o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável
ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele
homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era – logo
descobri... era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer
essa revelação? (ROSA, 1988, p. 66)
bem sabe quem – diante do espelho – perde toda e qualquer ilusão sobre a
própria juventude. [...] Mas é exatamente essa declarada natureza olímpica,
animal, desumana dos espelhos que nos permite confiar neles. Confiamos
nos espelhos assim como confiamos, em condições normais, nos próprios
órgãos perceptivos. (ECO, 1989, p. 17)
Um dia... [...] Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi.
Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água
limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas,
rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física.
Eu era – o transparente contemplador?... Tirei-me. [...] Com que, então,
durante aqueles meses de repouso, a faculdade, antes buscada, por si em
mim se exercitara! Para sempre? [...] Voltei a querer encarar-me. Nada. E, o
que tomadamente me estarreceu: eu não via os meus olhos. No brilhante e
polido nada, não se me espelhavam nem eles! [...] E a terrível conclusão:
não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu
um... des-almado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era
mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos
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Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de sofrimentos
grandes, de novo me defrontei – não rosto a rosto. [...] E... Sim, vi, a mim
mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor
razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado,
apenas – mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E
era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será
que o senhor nunca compreenderá? (ROSA, 1988, p. 68-69)
Com isso, ele tece suas últimas considerações a respeito de suas experiências
e experimentos com espelhos na busca pela essência do seu eu e suas implicações
na condição humana:
De acordo com o teórico francês, Yves Reuter (2004, p. 87), “toda narrativa
tece relações entre no mínimo duas séries temporais: o tempo fictício da história e o
tempo de sua narração”, uma vez que se encontram três planos em uma narrativa:
história, discurso e narração. O primeiro refere-se ao conteúdo, o segundo a forma
de expressão e o terceiro ao ato de narrar.
Para que a narrativa se desenvolva de forma coerente é preciso que estes três
planos estejam sempre interligados, visto que um depende do outro. Desse modo, o
tempo da história (imaginário) depende do tempo real (plano da história), que por
sua vez se relaciona com o tempo do discurso apresentado através da linguagem.
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Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. [...] Se deu há tanto, imagine: eu
devia de estar com uns quatorze anos, se. [...] Pois tinha sido que eu
acabava de sarar duma doença, e minha mãe feito promessa para eu
cumprir quando ficasse bom: eu carecia de tirar esmola, até perfazer um
tanto – metade para se pagar uma missa, em alguma igreja, metade para se
pôr dentro duma cabaça bem tapada e breada, que se jogava no São
Francisco, a fim de ir, Bahia abaixo, até esbarrar no Santuário do Santo
Senhor Bom-Jesus da Lapa, que na beira do rio tudo pode. Ora, lugar de
tirar esmola era no porto. [...] Aí pois, de repente, vi um menino, encostado
numa árvore, pitando cigarro. [...] Ali estava, com um chapéu-de-couro, de
sujigola baixada, e se ria para mim. Não se mexeu. Antes fui eu que me vim
para perto dele. [...] Disse que ia passear em canoa. [...] Me perguntou se
eu vinha. [...] Sentei lá dentro, de pinto em ovo. Ele se sentou em minha
frente, estávamos virados um para o outro. Notei que a canoa se equilibrava
mal, balançando no estado do rio. [...] O vacilo da canoa me dava um
aumentante receio. [...] Eu não sabia nadar. [...] Tive medo. [...] Medo e
vergonha. [...] Apertei os dedos no pau da canoa. [...] Não pensei em nada.
Eu tive o medo imediato. [...] Quieto, composto, confronte, o menino me via.
— “Carece de ter coragem”... – ele me disse. [...] — “Carece de ter coragem.
Carece de ter muita coragem”... – ele me moderou, tão gentil. [...] E eu não
tinha medo mais. [...] O sério é isto da estória toda [...] eu não sentia nada.
Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome. [...]
Agora, que o senhor ouviu, perguntas faço. Por que foi que eu precisei de
encontrar aquele Menino? (ROSA, 1986, p. 85-92)
dentro da narrativa ajudá-lo, por assim dizer, a entender a experiência do pacto feito
anos mais tarde, já que para tal, ele precisaria de muita coragem.
Fecho a janela, fico a olhar por trás dos vidros. E parece-me subitamente
que o dia não renascerá jamais, que a verdade da vida só ali se cumpre
para sempre, na secreta imobilidade das coisas, na pureza lunar de uma
neve nocturna. [...] A lua desce da serra, entra pela vidraça, derramando-se
pelo soalho em coágulos de gelatina. Por uma noite assim há cerca de vinte
anos... Por vezes, tento reconquistar-me desde o mais remoto passado. [...]
Não falei ainda do meu cão Mondego? Era uma tarde de Junho,
regressávamos os três irmãos da escola. [...] E eis que a certa altura, reparo
que atrás de nós vinha um cão lazarento. [...] Farejava, pois, um dono na
sua inquietação de cão livre. [...] Dei-lhe um nome, o cão olhou-me de
longe, imóvel, com o seu olhar triste e ressentido de velhice. [...]
Estabeleceu-se assim uma comunicação entre nós por uma certa qualidade
de presença, de realidade íntima, de pessoas. Todos os bichos que eu
observara até então eram puros objectos mecânicos, como os grilos, os
ralos, as louva-a-deus; ou matéria, lama com movimento, como os vermes,
as rãs, os sapos; e os que já eram vida, como os pássaros, os bois, mal
tinham estabelecido comigo uma convivência que lhes revelasse, se a
tivessem, a individualidade. Sempre a vida me fascinou, sim. Mas nas
vibráteis lagartixas, cujas caudas cortadas remexem ainda frenéticas, nas
vívidas doninhas, nos ratos estrepitosos, nos pássaros, eu não sentia senão
confusamente uma forma total de vida, a mesma força universal repartida
pelos bichos, esse modo de ser em que o começo e o fim não são um limite
mas elos de uma continuidade. Ora no cão eu pude sentir obscuramente
uma <<pessoa>>. [...] Tinha uma personalidade definida, com simpatias e
antipatias, o conhecimento do que se passava à sua volta, as intenções dos
que se abeiravam dele. Ora um dia, precisamente, descobri meu pai e o
criado conversando ao pé do cão e visivelmente sobre ele. Mondego
adoecera, o pêlo rareava em clareiras leprosas, os olhos bordavam-se-lhe
de escorrências, vomitava freqüentemente. Deram-lhe drogas, mas o pobre
não melhorou. [...] Quando eu me aproximei, meu pai e o criado
interromperam-se. Mas o cão deu-me a notícia, ladrando, rouco, na direcção
dos dois, olhando-me depois com amargura e humildade. [...] Não havia ali,
porém uma acusação. Havia só o reconhecimento de uma evidência serena.
Mas justamente para mim o que era evidente não era a morte, era a vida.
Como podia o cão morrer? Como podia morrer a sua pessoa? (FERREIRA,
1983, p. 121-124)
Já a analepse de Alberto Soares em seu relato, na qual ele volta vinte anos
antes em seu passado tem por função explicar a sua visão a respeito da vida e do
ser humano, pois compara, pode-se dizer assim, a existência do homem com a
existência dos animais. Ao se reportar a esse fato Alberto Soares deixa claro em sua
narrativa seu interesse pela vida, pelo mistério que há por trás da existência, isto é,
pela essência ainda desconhecida daquilo que habita um ser vivo, o seu “eu”.
Alberto Soares já esboça aqui suas primeiras reflexões acerca da condição
humana. Reflexões estas que servem de base para suas teorias e que mais tarde
serão aprofundadas ao longo de seu relato, tendo por objetivo entender sua própria
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Diadorim e eu, nós dois. A gente dava passeios. [...] Diadorim me pôs o
rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. Sei como
sei. [...] Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das brasas. [...] E, aquilo
forte que ele sentia, ia se pegando em mim – mas não como ódio, mais em
mim virando tristeza. [...] Diadorim era mais do ódio do que do amor? Me
lembro, lembro dele nessa hora, nesse dia, tão remarcado. Como foi que
não tive um pressentimento? O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de
ver um corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo
de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum
terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa moça de quem o
senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida?!
Ah, Diadorim... E tantos anos já se passaram. (ROSA, 1986, p. 20-21-165)
Sofia. À luz do meu Inverno, eis que te lembro no teu corpo esguio, no teu
olhar ácido de pecado... Domingos de Primavera pelos campos, noites
quentes de Verão no Alto de São Bento, a planície banhada de uma lua
enorme. [...] Ouço nas vísceras o teu canto ardente. Os céus estremeciam à
anunciação da tua divindade. Os teus olhos vivos, Sofia, a tua face tão
jovem tinham o mistério da vitória e do desastre, da violência do sangue. [...]
Sofia! Como eras estranha! Como o foste até ao fim! Mas agora que
morreste de uma morte inesperada que te evitou o gesto puro de te
matares, agora que relembro toda a tua vida certa, evidente, na mais
atitude, reconheço a verdade antiga, axiomática, de todo o teu raiar a um
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É o que acontece, por exemplo, neste excerto, no qual Riobaldo explica ao seu
interlocutor os motivos sobre os volteios entre passado recente e remoto em seu
relato:
5 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
DÉCIO, J. Vergílio Ferreira: a ficção e o ensaio. 1 ed. São Paulo: Século XXI,
1977.
ROSA, G. J. Grande sertão: veredas. 30 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.