Vous êtes sur la page 1sur 46

Igreja Ortodoxa

Bernardo Sartorius

I
(pp. 7-122)

Conteúdo: Prefácio.
Capítulo primeiro: Esboço histórico. Capítulo segundo: Um pensamento vivido.
o A Igreja primitiva o A Fé ortodoxa: Pensamento analítico ou
o Os concílios sintético?
o O Cisma o Sentido da história
o Bizâncio o Cosmos
o A missão bizantina o Liturgia
o Depois de 1453 o Os ícones
o A Igreja russa o Conclusão
o A situação atual das Igrejas ortodo-
xas
o Conclusão

Prefácio
Esta obra integra-se numa série de publicações consagradas às religiões do homem de hoje. Por
outro lado, ela dirige-se aos não teólogos, mesmo aos não crentes, a todos aqueles cuja busca
pessoal de um sentido para a vida incitou a adquirir esta série de publicações. Este duplo estado
de coisas determina, por si só já a óptica do presente livro: ele quer ser uma introdução geral ao
pensamento do cristianismo oriental, na medida em que este é portador de uma mensagem sus-
ceptível de interpelar muito particularmente o homem de hoje. Não nos caberá, pois, dar uma
descrição “objetiva” da fé ortodoxa (poderá falar-se de “descrição objetiva” no domínio da fé?),
mas antes, e deliberadamente, pôr o acento sobre as dimensões da fé cristã ortodoxa que levan-
tam questões estimulantes ao homem ocidental de hoje, por um lado, e que respondem às suas
aspirações profundas, por outro. Inserido numa série de obras sobre a “religião do homem de ho-
je,” este livro desejaria pois, na medida do possível, contribuir para responder a esta questão es-
caldante: Que significa a “religião” para os nossos contemporâneos?
O seu autor é protestante, o que, pela força das coisas, contribui para orientar esta publica-
ção numa perspectiva ecumênica. Com efeito, contrariamente a um membro da Igreja ortodoxa,
o autor não poderá apresentar a compreensão oriental do Evangelho como á única maneira de
responder fielmente a Cristo, mas esforçar-se-á por mostrar, e é assim que ele entende definir a
palavra “ecumenismo,” que a Ortodoxia constitui um enriquecimento decisivo e indispensável da
fé cristã ocidental — protestante e católica romana. Assim, tentaremos, muito modestamente ali-
ás, integrar-nos nesta busca mundial da unidade cristã que longe de visar um nivelamento e uma
uniformização das diversas expressões da vida e da fé cristã, busca, ao contrário, promover o seu
enriquecimento, a sua fecundação recíproca. Escusado será dizer que um tal tratamento se fun-
damenta sobre a convicção — muito protestante — de que, pela força das coisas e pela inautenti-
cidade dos homens, o seu “pecado,” a presença divina deu origem a expressões de fé e de vida
divergentes, mas que, no fundo, para além da sua contradição lógica, são complementares.
Se tal é a óptica deste modesto trabalho — busca, num contexto ecumênico, do que a Orto-
doxia poderá dizer ao homem contemporâneo, — é preciso sublinhar que ele foi precedido por
numerosos outros escritos de origem ortodoxa que dão ao leitor ocidental uma informação mais
circunstanciada e mais profunda, porque vivida do interior (Ver a bibliografia no fim deste volume). A
sua leitura é muito vivamente recomendada a quem desejar aprofundar a sua busca da fé cristã
oriental. Se o nosso livro lhe provocar esse gosto, terá certamente justificada a sua existência a
par dos seus predecessores, melhor documentados e entroncados diretamente nos Padres da Igre-
ja e nos Staretz russos... De qualquer forma, e isto legitima os nossos propósitos, como diz o teó-
logo ortodoxo Meyendorff “já não é Bizâncio como tal que interessa aos cristãos do Ocidente,
mas a verdadeira fé cristã” (Jean Meyendorff: Orthodoxie et Gutholicité. Pari. 1963. p. 96).

Bernard Sartorius
Natal de 1967

Capítulo primeiro
Esboço histórico
A Igreja primitiva
Quando a Igreja se constitui progressivamente, sob o impulso da doutrina de Cristo e da cer-
teza da sua presença, ela era una, se bem que múltipla, una ainda que diversificada, homogênea
apesar das particularidades locais evidentes. Inserida no quadro do Império romano, alastrou
muito cedo tanto para leste como para oeste da bacia do Mediterrâneo, ora sofrendo influências
judaizantes, ora tomando à sua conta e transformando-o o património helénico ambiente. Então,
no decorrer dos três primeiros séculos, não se tratava tanto de falar da “Igreja do Oriente” ou da
“Igreja do Ocidente;” era a única e mesma comunidade, englobando um conjunto de comunida-
des locais unidas por uma mesma fé e um mesmo dinamismo missionário.
Sabe-se que a primeira comunidade cristã foi fundada em Jerusalém, sob o impulso dos dis-
cípulos do próprio Cristo, no quadro do judaísmo da época, mas já em ruptura radical em relação
a ele. Um acontecimento inteiramente novo, a certeza da presença total de Deus nas palavras e na
pessoa de um homem chamado Jesus de Nazaré, fez despedaçar-se, a partir entretanto desse
mesmo meio, o legalismo rígido das comunidades judaicas dessa época. Todavia, ao mesmo
tempo, esta novidade radical inscreve-se na continuidade profunda dos escritos bíblicos de que
os livros proféticos — Isaías, Ezequiel e outros — davam testemunho e conhecimento. Aparece
já a dialética entre o antigo e o novo, entre o acontecido e o inédito, exprimindo-se este através
daquele e distinguindo-se dele, dialética que marcará toda a história do pensamento cristão.
Tudo era acontecimento, passagem do antigo ao novo, vida nova. O Batismo marcava a en-
trada do crente na nova realidade. Por um lado, sinal de arrependimento, isto é, de “conversão,”
no sentido etimológico do termo, este rito significava que o candidato estava disposto a renunciar
ao antigo estilo de vida, marcado pelo egocentrismo, e a abrir-se para uma nova dimensão do

2
amor manifestado por Cristo. Enquanto tal, este rito incorporava o candidato na comunidade dos
batizados, ela própria manifestação concreta do amor do próximo vivida fraternalmente. Ao
mesmo tempo, a imersão total na água indicava que só uma verdadeira “morte” em si mesmo,
seguida de uma vida nova inteiramente recebida e não “ganha,” era susceptível de conferir ao
homem a qualidade de “cristão.” Enquanto tal, o Batismo significava, pois, desde as origens, que
só a novidade radical de Deus, concedida sem que o homem a possa merecer, era capaz de trans-
formar progressivamente o homem antigo numa “criatura nova,” vivendo no e pelo amor.
A refeição comum, a “Ceia,” o partir do pão e a partilha do vinho, sinal instituído pelo pró-
prio Jesus, devia ser o símbolo eficaz da vida nova de comunhão com Deus e de uns com os ou-
tros. Este ato comunitário tinha lugar ao “domingo,” o “dia do Senhor,” que se situava no dia se-
guinte ao sábado judaico, para indicar bem que, daqui para o futuro, a vida nova ultrapassava o
quadro das leis judaicas, que devia inscrever-se na própria vida, a vida familiar, social e profis-
sional. Sendo o pão e o vinho elementos tomados da vida quotidiana, o seu consumo comunitá-
rio, significava que o acontecimento Cristo — a presença de Deus no homem não era um assunto
“religioso,” no sentido judaico do termo, isto é um aspecto da vida distinto dos outros, mas que
se situava bem no coração da própria vida.
A comunidade primitiva era, pois, uma comunidade fraterna, na verdadeira acepção da pa-
lavra, e todos os seus responsáveis eram “ministros,” isto é, “servidores” dos outros. Eles eram
servidores na medida em que, por um lado — era a função dos Doze, depois dos “bispos” — as-
seguravam à comunidade a sua coesão interna e a sua fidelidade à vida nova em Cristo, cuja pos-
sibilidade lhe era sempre novamente oferecida nos “sacramentos,” isto é, os “sinais” do Batismo
e da Ceia, assim como na recordação das palavras do Mestre. Eles eram também servidores, na
medida em que, pelo seu exemplo e pela sua natural autoridade, inspiravam a vida interna da
comunidade e a sua expansão missionária. Enfim, eram servidores os diáconos encarregados das
necessidades materiais da comunidade e, mais particularmente, da assistência aos seus membros
mais desfavorecidos. Comunidade de homens que descobriram a possibilidade, não só de falar,
mas ainda de viver na fraternidade e no respeito mútuo, a Igreja primitiva dotou-se de ministérios
que, só por si mesmos, são a expressão da vida nova inaugurada por Jesus de Nazaré.
Homens que fizeram uma tal descoberta iam necessariamente difundi-la no seu meio ambi-
ente imediato, iam necessariamente transpor as barreiras tradicionais entre as raças, as classes e
os sistemas religiosos e filosóficos. A certeza de que esta novidade de vida era destinada a todos
os homens — eles acreditavam então que, num futuro muito próximo. o próprio Senhor a mani-
festaria a todo o mundo — devia dar aos primeiros cristãos” uma visão universalista. Saulo de
Tarso, Paulo após a sua conversão, foi o primeiro a apanhar-lhe todas as profundas implicações
e, ao mesmo tempo e em conseqüência, a dar aos seus irmãos na fé a convicção de que a sua
mensagem de vida era mais completa, mais radical, mais universal do que a do judaísmo ligado,
apesar das exceções (os “prosélitos”), a uma propriedade da raça judaica. A expansão missioná-
ria da Igreja devia, pois, marcar, ao mesmo tempo, a sua ruptura definitiva com o judaísmo. Das
viagens do Apóstolo em torno da bacia mediterrânica iriam nascer numerosas comunidades cris-
tãs cujos membros eram de origem não judaica. A extensão da Igreja não deixou, por isso de a
obrigar a exprimir e a viver a sua descoberta em função, e no contexto, de um mundo estranho a
Jesus de Nazaré, do mundo greco-romano, cujas categorias de pensamento, marcadas pelo hele-
nismo, eram radicalmente diferentes das do seu fundador, ou seja, semíticas. Como viver a des-
coberta da presença de Deus no próximo, enquanto Grego e Romano? Tal devia ser a preocupa-
ção maior de Paulo e dos teólogos que lhe sucederam.

3
A grande tentação dos novos convertidos de origem pagã era quererem compreender o E-
vangelho de Cristo como um simples aprofundamento das numerosas religiões orientais já exis-
tentes, e portanto não tomarem totalmente a sério a novidade radical da nova religião, a qual, im-
plicitamente, pretendia significar o fim de qualquer religião.
O gnosticismo, espécie de sincretismo que combinava elementos de religiões tradicionais
com certos aspectos do judaísmo, iria pois ser combatido no interior da mesma igreja. Para lhe
limitar a influência, a Igreja primitiva fixou o número de escritos que passavam a constituir o
Novo Testamento, devendo qualquer outro documento ser julgado à luz deste último. Tal devia
ser a argumentação dos teólogos como Ireneu, por exemplo, contra os “gnósticos,” cuja doutrina,
diz ele, é contrária à doutrina dos Apóstolos consignada nas Escrituras. Da mesma forma que os
primeiros discípulos se tinham distanciado radicalmente do judaísmo, reformulando os modos de
pensar, também os seus sucessores marcavam a separação radical do Evangelho com o helenis-
mo ambiente, utilizando para o efeito as categorias de pensamento do adversário que eles comba-
tiam. A busca da sua própria identidade em relação ao ambiente contemporâneo será, em todos
os tempos, a tarefa da teologia.
É na teologia de Orígenes (que faleceu em 215) que o esforço de tradução da mensagem
cristã com a ajuda das categorias helênicas, aparece muito nitidamente, do mesmo modo que os
perigos inerentes a esta operação. Será ele que exprimirá de maneira sistemática o pensamento
cristão em termos de “essência” de energia, de substância de “idéia,” outras tantas noções colhi-
das da filosofia grega que faltavam por assim dizer, totalmente, ao pensamento cristão hebraico.
O acontecimento puro, que parece ter sido o objeto da pregação da comunidade primitiva e que
interpelava o homem a decidir-se pela vida nova, ia doravante ser analisado quanto à sua “natu-
reza” e quanto à “idéia” que exprime. Insensivelmente, e sem que se deva ver nisso necessaria-
mente uma traição — pois era preciso “traduzir” bem o Evangelho — começa-se a refletir sobre
a fé de maneira objetiva, em lugar de se contentar em vivê-la, espontaneamente e apaixonada-
mente. A poesia cultural, das quais as primeiras confissões de fé, tornar-se-á igualmente afirma-
ção dogmática normativa: a teologia, existencial, subjetiva mesmo no sentido de “vivida,” pre-
tenderá descrever cada vez mais um conjunto de realidades objetavas, “essenciais.” Entretanto,
pertencerá à parte oriental da Igreja, conforme se verá, nunca perder de vista, no próprio quadro
dos seus desenvolvimentos dogmáticos, o caráter eminentemente pessoal, existencial, da realida-
de da nova vida anunciada e vivida, pela primeira vez, em todas as suas exigências por Cristo.

Os concílios
A conversão do imperador Constantino à fé cristã, no ano de 313, pôs fim às perseguições
de que os cristãos, perigosos para a ordem estabelecida, tinham sido vítimas até ao momento, e
fez do cristianismo a religião oficial do Império romano. Este acontecimento capital acelerará o
movimento dos teólogos para uma reflexão cada vez mais impelida sobre o mistério de Cristo,
com a ajuda das categorias gregas de pensamento da época, e bem assim para a sua cristalização
doutrinal. Este movimento resultante da tensão sempre renovada entre interpretações unilaterais
do Evangelho, as “heresias,” por um lado, e o esforço de correção das intuições autenticamente
evangélicas, por outro, será vivido por toda a Igreja nos “concílios,” assembléias cujos membros
representavam as diferentes regiões do mundo cristão da época. Para corrigir o erro de Ario, que
punha em questão a identificação total de Deus em Cristo, afirmando que este último não era
Deus “de uma forma perfeita,” o Concílio de Nicéia (em 325) proclamou que Cristo era “da
mesma natureza,” que Deus Pai. Salvaguardará assim, com a ajuda das categorias de pensamento

4
“objetivas,” o mistério do Evangelho: Deus não é uma realidade abstrata “no céu,” mas Ele é tal
como Jesus o manifestou na sua pessoa, na sua vida e na sua morte humanas. Esta elaboração
doutrinal iria levantar a questão de saber como é que Deus, uno e único, poderia aparecer ao
mesmo tempo sob o aspecto de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo.
O 1.° Concílio de Constantinopla (em 381, the second Eucumenical Council), seguindo os
grandes teólogos da Capadócia, Basílio, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo, responde
que em Deus a unidade absoluta é inseparável de uma diversidade de “pessoas” não menos abso-
luta. Este paradoxo sublinha que, para o Evangelho, a realidade de “Deus” não se pode comparar
à fria unicidade matemática do número “um,” mas que Deus é em si mesmo plenitude de amor e
de comunhão recíproca. Muito naturalmente, na seqüência destas tomadas de consciência dog-
máticas, os teólogos interrogaram-se perante as especulações por vezes aberrantes das multidões,
como definir a pessoa de Cristo, sem todavia afetar o seu mistério. Foi obra dos concílios seguin-
tes realizar, após muitas discussões, por vezes bem confusas para o espírito do homem de hoje,
esta explicação necessária. O Concílio de Éfeso (431) insistiu sobre a pessoa real de Cristo —
Jesus não é uma espécie de fantasma teleguiado por Deus — enquanto que o Concílio de Calce-
dônia (451) deveria formular de maneira paradoxal — as categorias da fé não são as da razão —
o escândalo da irrupção de Deus na realidade do homem, tal como ele apareceu na mesma pessoa
de Jesus: “Cristo” é “verdadeiro Deus e verdadeiro homem,” “que se dá a conhecer em duas na-
turezas, sem mistura, sem alteração, indizivelmente, inseparavelmente...” Assim foi mantida,
contra todos aqueles que, por dúvida inconsciente, queriam fazer de Cristo ou um super-homem,
ou, o que ia dar no mesmo, um pequeno deus, a intuição fundamental dos Evangelhos que nós
encontramos desde as origens do Cristianismo: a pessoa, a vida, a morte e a pregação de Jesus de
Nazaré significam que, claramente, e sem nenhum compromisso, o “Absoluto,” a “última reali-
dade,” “Deus,” não se deve procurar no céu, mas no meio da realidade terrestre, humana. Os
concílios seguintes (realizados em Constantinopla em 553 e 680) aprofundaram esta explicitação,
sublinhando particularmente que a Encarnação de Deus quer ser compreendida de forma dinâmi-
ca: em Cristo, a “energia” de Deus penetra na natureza humana e a humanidade encontra-se
transformada “como o ferro vermelho pelo fogo.” Em resposta aos “destruidores de imagens,”
pertencerá ao último concílio ecumênico, realizado em Nicéia. em 784 — último concílio “ecu-
mênico.” uma vez que todos os que se lhe seguiram não reuniram mais do que uma fração da
cristandade e já não a sua totalidade — tirar a derradeira conseqüência da penetração de Deus no
mundo criado: A presença de Deus não é somente comunicada pela palavra humana, mas tam-
bém por representações artísticas executadas num espírito de oração, os ícones. Estas representa-
ções de Cristo e dos santos, diz o concílio, servem para “provar a Encarnação verdadeira e não
ilusória de Deus o Verbo.” O Deus do Evangelho não se opõe, por isso, à matéria que como toda
a realidade, é da ordem do Reino.
Se a conversão de Constantino permitiu à Igreja aprofundar em paz e segurança o mistério
da nova fé, a proclamação do cristianismo como religião do Império terá, entretanto, muito gra-
ves conseqüências, pelo fato da identificação crescente entre a Igreja e o Estado – e também in-
tervenções que, por esta razão, os imperadores se permitirão na vida interna da Igreja. E sobretu-
do, em vez de permanecer a Novidade absoluta que põe radicalmente em questão o homem que
ela confronta, a presença de Deus tenderá cada vez mais a fundamentar uma moral mais ou me-
nos aceitável para todos, uma moral, já nesta época, marcadamente burguesa: é “cristão” aquele
que não faz mal, aquele que se ocupa tranqüilamente dos seus negócios pessoais sem comprome-
ter a segurança do Império cristão. Deste modo, a Igreja aceitou, por assim dizer sem pestanejar,
a brutal repressão pela polícia imperial, da “heresia” donatista de que os adeptos norte-africanos

5
estavam desejosos, certamente de uma forma unilateral e exagerada, de preservar a exigência de
absoluto do cristianismo, recusando particularmente a reintegração na comunidade da Igreja à-
queles que tivessem renegado a sua fé por medo das perseguições. Assim devia nascer o corpus
cristianun, a “cristandade.” em cujo quadro a irrupção em Cristo de uma vida nova que obriga o
homem a tomar uma decisão pessoal era doravante identificada, ao menos parcialmente, à cria-
ção de instituições, leis, obras a que se daria o qualificativo muitas vezes abusivo de “cristãs.”
A instalação confortável da Igreja no Império, a perda que daí resultou da mensagem irredu-
tível e absolutamente incômoda do Evangelho, devia forçar então muitos cristãos sinceros a viver
a exigência da sua fé, não mais no martírio, agora impossível, mas na vida solitária, no deserto.
Era lá, no seguimento de S. Antão (nascido em 250), e sobretudo de S. Pacômio, que milhares de
crentes iam viver, na sua própria existência, o anúncio profético do Reino de Deus que havia de
vir. O deserto hostil julgava-se estar povoado de demônios de toda a espécie que o eremita cris-
tão era chamado a combater em campo. O combate sangrento das arenas dava lugar ao combate
não menos exigente, e por vezes mortal, do monge contra as forças interiores do nada que habi-
tam em cada homem, mas que segundo as concepções da época, eram “visualizadas,” projetadas
nas aparições demoníacas. A castidade destes atletas(tratava-se de um qualificativo que freqüen-
temente lhes era dado) bem como os seus jejuns e as suas mortificações solitárias eram outros
tantos sinais para eles mesmos e para o mundo de que, em Cristo, a nova realidade de Deus não
podia nascer no homem senão através da morte, provisória, do homem natural. Os excessos aos
quais estas práticas por vezes deram lugar — é o caso dos “estilitas” (monges que passavam a
vida empoleirados no cimo de uma coluna), os “dendritas” (que habitavam nas árvores), etc. —
não devem fazer-nos esquecer que o monaquismo primitivo recordou efetivamente à Igreja da
época o caráter absoluto da interpelação evangélica.

O Cisma
Se a Igreja, espalhada no conjunto da bacia mediterrânica e organizada em redor dos seus
cinco patriarcados (Roma. Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém), soube guardar no
princípio a sua unidade global, (seguramente, largos sectores da parte oriental da Igreja desliga-
ram-se dela após o Concílio de Calcedônia — as Igrejas da Armênia, da Etiópia, do Egito), esta
unidade tornar-se-á mais aleatória depois da queda do Império romano do Ocidente. As diver-
gências culturais — uso do latim no Ocidente, do grego no Oriente bem depressa cederão o pas-
so às divergências de ordem político-religiosa que resultaram da separação do mundo mediterrâ-
nico em entidades políticas distintas. A anarquia merovíngia no Ocidente que, por muitas vezes,
fez do papa o único elemento estável, reforça a autoridade jurídica do primeiro romano, o qual
anteriormente desfrutava apenas de uma primazia de honra. O desenvolvimento do Império de
Carlos Magno (séculos VIII e IX) havia de acentuar esta tendência para ver na parte ocidental da
Igreja o modelo e o guia de toda a Igreja. Na impossibilidade de se fazer reconhecer por Bizân-
cio, Carlos Magno será tentado a utilizar argumentos teológicos para demonstrar o caráter de su-
bordinação do Império do Oriente, e, por conseqüência, igualmente da sua Igreja. E muito embo-
ra os papas desta época tenham ainda reagido contra a introdução oficial de tais argumentos nos
cânones da Igreja, o pomo de discórdia lançado pelos “livros de Carlos Magno” — a questão do
Filioque — dividirá cada vez mais o Ocidente e o Oriente cristãos.
O Filioque — “o Espírito Santo procede do Pai e do Filho” — é um acrescentamento tardio,
feito por um sínodo ocidental (Toledo, século VI), ao texto primitivo do Concílio de Nicéia que
afirma que o “Espírito Santo procede do Pai.” A ofensa pareceu muito grave aos olhos da parte

6
oriental da Igreja, e isso por duas razões. Por um lado, um órgão eclesiástico — ocidental, na o-
corrência — arrogou-se o direito, sem consultar o conjunto do corpo eclesial, de modificar uma
formulação doutrinal elaborada por um concílio ecumênico que representava a Igreja universal.
A introdução do “Filioque” constituía, já só por si, uma ferida aberta na unidade da Igreja. Por
outro lado, o próprio conteúdo do acrescento manifesta uma divergência doutrinal profunda so-
bre a natureza de Deus. Se para os Padres do Concílio de Nicéia o Espírito Santo não pode pro-
ceder senão do Pai porque Deus é, primeiro que tudo, pessoal — Pai, Filho e Espírito Santo, an-
tes de ser Essência divina única — para os teólogos ocidentais de Toledo que seguem sobre este
ponto o grande teólogo ocidental Sto Agostinho, Deus é, antes do mais, Essência divina única, o
que permite então falar de uma dupla origem do Espírito Santo — do Pai “e do Filho.” A intro-
dução progressiva do “Filioque” no Ocidente será o índice das divergências doutrinais cada vez
mais profundas que, por seu turno, terão repercussões sobre a doutrina da Igreja, pregada respec-
tivamente pelas duas partes da cristandade, estas doutrinas divergentes que alargam reciproca-
mente o fosso que se vai cavar cada vez mais.
Na sua reação contra o cesaropapismo carolíngio. os papas acabarão por chegar a confundir
cada vez mais a sua autoridade espiritual de patriarcas do Ocidente com uma autoridade jurídica
de coerção, o seu primado de honra com o poder universal e absoluto. Em conseqüência, con-
forme já se disse ‘ , “reformando a Igreja do Ocidente, os papas tentaram estender as suas refor-
mas ao Oriente e fracassaram. Este fracasso contribuiu ainda para apertar a unidade de uma cris-
tandade ocidental monolítica e fechada sobre si mesma.” Um dos incidentes maiores desta luta
manhosa devia ser a tentativa feita pelo papa Nicolau I de depor o patriarca de Constantinopla,
Fócio, eleito regularmente, que respondeu com uma “encíclica,” acusando o papa de heresia.
Compreendiam-se cada vez menos, faltando cada vez mais uma linguagem comum. Em 1014,
por ocasião da coroação do imperador Henrique II, a Igreja ocidental introduziu oficialmente na
sua liturgia o uso do Filioque, decisão que precipitou o movimento de ruptura. agora inevitável.
Apesar do espírito muito compreensivo de alguns pontífices (como João VIII, 872-882) e do de-
sejo dos Orientais de continuarem a ver na pessoa do Papa o primado de honra de toda a Igreja,
as divergências culturais, doutrinais, políticas e eclesiásticas que cavavam um fosso cada vez
mais profundo entre a parte ocidental e oriental da única Igreja de Cristo, acabaram por provocar
a ruptura. Paradoxalmente, estas divergências aparecerão, no momento do drama, sob a forma de
querelas incidentes sobre questões menores relativas aos ritos exteriores, tais como o uso do pão
sem fermento, o celibato dos padres, etc. Para regular estes diferendos, legados do papa Leão IX
dirigiram-se a Constantinopla em 1054 onde, perante as reticências do patriarca que punha em
dúvida a sua boa-fé, os emissários de Roma depuseram sobre o altar de Santa Sofia a bula de ex-
comunhão que acusava os Gregos, entre outras coisas, de terem “subtraído (sic) o Filioque” da
confissão de fé e de admitirem o casamento dos padres. Em 1204, por ocasião do saque de Cons-
tantinopla pelos Cruzados latinos, o irreparável — sob o ponto de vista humano será consumado:
não se falará mais, daí para diante, da Igreja de Cristo, mas da Igreja latina romana à qual faz
frente a Igreja oriental ortodoxa. Os concílios “de união” (Lião e Florença, nos séculos XIV e
XV), pelos seus fracassos, apenas tornam mais doloroso o escândalo do primeiro grande cisma
da Igreja que, rompendo o equilíbrio interno do Corpo de Cristo, abrirá a porta aos cismas poste-
riores da cristandade ocidental — a Reforma e as seqüelas de outras divisões. Daqui por diante,
as duas partes da cristandade evoluirão separadamente.

7
Bizâncio
A Igreja oriental, chamada, depois do cisma, “ortodoxa” (isto é, a que oferece ao Senhor “o
verdadeiro louvor”), foi profundamente marcada, nas suas estruturas hierárquicas, canônicas e
litúrgicas, pela época em que era a Igreja oficial do Império bizantino. Como diz o padre Sch-
memann, “a Igreja ortodoxa contemporânea é — sob o ponto de vista do historiador a Igreja de
Bizâncio que sobreviveu ao Império bizantino durante cinco séculos” (Alexander Schmemann: The Historical
of Eastern Orthodoxy, Londres, 1963, p. 199) É a época — que vai do século V até à tomada de Constantinopla
pelos Turcos, em 1453 — durante a qual se cristalizaram os aspectos principais da Igreja orien-
tal, alguns dos quais ainda mesmo antes de acontecer o cisma com a Igreja do Ocidente; é então
que, na continuidade em relação à Igreja primitiva, se constituiu a Igreja ortodoxa propriamente
dita. Depois da ocupação das dioceses dos três antigos patriarcados de Jerusalém, de Antioquia e
de Alexandria pelos Árabes muçulmanos, no século VII, a Igreja de Constantinopla, ou Bizâncio,
torna-se o centro da vida da Igreja e da teologia oriental. A sua história será marcada, por um la-
do, por uma nova era de controvérsias teológicas, e por outro, pela estruturação definitiva da I-
greja como Igreja do Império, isto é, como centro de um Estado cristão em que o Estado e a Igre-
ja vivem em “sintonia,” em situação de “coabitação” e de colaboração estreitas. A elaboração
doutrinal prossegue neste período, particularmente sob a forma de uma tomada de consciência
cada vez mais impulsionada das diversas incidências sobre a vida da Igreja e do mundo, da real
presença do próprio coração do homem e do mundo material. A controvérsia a respeito dos “íco-
nes,” a que o sétimo concílio pôs termo, indicou, pela sua própria violência (o imperador Cons-
tantino Coprónimo foi até ao ponto de perseguir os “iconólatras” e de fazer destruir milhares de
quadros sagrados), o que é que estava verdadeiramente em jogo: Deus, que encarnou em Cristo,
pode ou não manifestar-se através de um suporte criado pela mão do homem, nesta conjuntura,
através de um ícone” É interessante verificar que seriam sobretudo os meios laicos, ainda forte-
mente influenciados pelo espiritualismo grego, a opor-se à veneração dos ícones, uma vez que a
sua defesa estava assegurada pelos meios monásticos que tinham sabido conservar e desenvolver
as intuições dos padres da época clássica. Uma tensão análoga entre uma teologia “mundana,”
isto é, determinada em grande parte pelas categorias de pensamento do helenismo neo platônico,
e a teologia “patrística,” monástica e mais evangélica devia aparecer alguns séculos mais tarde
(séculos XII-XIV) no decorrer das controvérsias sobre as manifestações concretas do Espírito
Santo, presença de Deus no homem e no universo. Nos meios humanistas que gravitavam em
volta da corte imperial e que punham em dúvida a realidade da presença de Deus na vida humana
e os sacramentos da Igreja, Gregório Palamas (1296-1359) responde que o prêmio da fé cristã
reside precisamente no fato inaudito e misterioso de Deus ser uma realidade da qual o homem é
chamado a “participar” efetivamente.
Duas grandes correntes espirituais — culturais parecem pois ter marcado a história do Impé-
rio bizantino, determinando cada uma, à sua maneira, a vida e as estruturas da Igreja. No seu
conjunto, muitas vezes indissociáveis, elas haviam de formar a cultura bizantina. Uma tinha por
centro a corte imperial que era, por certo, profundamente “cristã” na medida em que o imperador
devia “viver a Ortodoxia e a piedade de maneira perfeita, conhecer os dogmas da Santa Trindade
e as definições que respeitam à salvação pela Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo...” (Epano-
gè, introdução à legislação do Império, publicada pelo imperador Basílio 1, o Macedónio, cerca do século IX. Citado por Alexander
O papel espiritual do imperador colocava este último numa situação para-
SCHMEMANN, op. cit. p. 215).
lela em relação ao patriarca, cabeça efetiva da Igreja: se um era responsável pela administração
temporal dos cristãos, a outra tinha o encargo do seu bem espiritual. Ora, visto que todo o súbdi-

8
to do Império era ortodoxo, e dentro em breve, perigosa reciprocidade que surgirá quando da
cristianização dos eslavos, visto que todo o ortodoxo era súbdito do imperador, escusado será
dizer que, praticamente, a Igreja e o Império serão governados por um só organismo — aliás,
muitas vezes, em estado de tensão interna — a saber pelo binômio imperador-patriarca. Nestas
condições, não surpreenderá que a cultura da corte imperial se esbata em muitos pontos sobre a
própria vida da Igreja. Em parte, será ao fausto das cerimônias da corte que a liturgia ortodoxa
deverá a sua riqueza propriamente dita real, até alguns textos primitivamente ditos pelo próprio
imperador e depois confiados aos padres. Do mesmo modo, será desta identificação dos fiéis da
Igreja com os cidadãos do Império que decorrerá a tradição ancorada muito solidamente na Or-
todoxia até aos nossos dias, segundo a qual os súbditos de um soberano ortodoxo deverão per-
tencer necessariamente à sua Igreja e reciprocamente. Enfim, a corte e as universidades imperiais
deram origem, por volta do século X, a urna teologia “oficial,” fortemente impregnada de hele-
nismo e no seio da qual, decorrendo sem dúvida de um desejo de estabilidade política, a “tradi-
ção” da Igreja ocupará, paradoxalmente, um lugar central. Inspirando-se muitas vezes mais no
pensamento grego do que no cristão, os teólogos “de corte” — tais como o patriarca Fócio. por
exemplo — esforçar-se-ão por demonstrar que os seus pontos de vista estão conformes em tudo
com os dos “santos Padres da Igreja e com os sete concílios ecumênicos.” Se a teologia ortodoxa
não tivesse então beneficiado senão unicamente dos trabalhos dos universitários bizantinos, ela
teria perdido o seu dinamismo, limitando-se a repetir literalmente antigas verdades dogmáticas,
justapostas sem autêntico ensaio de confronto a um humanismo de inspiração pagã.
A outra corrente de pensamento e de vida que marcou profundamente a Igreja bizantina e as
Igrejas ortodoxas que dela vierem a derivar tinha outra vez a sua origem nos conventos — depois
de um período de decadência passageira — extremamente numerosos, estabelecidos um pouco
por toda a parte, mesmo nas cidades do Império. Aí se mantinha uma espiritualidade do fim do
mundo, da exigência absoluta de Deus, mas também de liberdade real, espiritualidade essa que,
sem cessar, lançava no mundo bizantino, impulsos criadores de cultura. Foi nos mosteiros, um
grande número dos quais estavam estabelecidos já nesta época no Monte Atos (desde o século X)
que nasceu, progressivamente e em diálogo com o pensamento cristão profano, a espiritualidade
ortodoxa eslava e grega contemporânea: uma mistura de vida interior intensa — concretizada na
“oração incessante” — e de participação fervorosa no alegre drama da liturgia dominical, uma e
outra devendo iluminar do interior toda a vida do crente. Foi nos mosteiros que foram elabora-
dos, muitas vezes com base nos escritos dos Padres da Igreja, o calendário e o ritual cheio de su-
tilezas das inúmeras celebrações litúrgicas, das festas, vigílias, matinas, completas, liturgias do-
minicais e orações públicas reunidas no Typicon e no Triodon (antologias litúrgicas) ainda em
uso nos dias de hoje. Era nos mosteiros que florescia a arte da pintura dos ícones que, por esta
razão, será sempre, na Ortodoxia, uma arte sagrada à qual não se podem dedicar senão aqueles
que para isso se preparam “com jejuns e orações.” Enfim, serão os mosteiros que assegurarão a
sobrevivência do cristianismo depois da total ocupação do Império pelos Turcos, uma vez que a
sua teologia, era mais do que a teologia “oficial” imperial, permitia distinguir a Igreja do Impé-
rio, o Evangelho da cultura bizantina. Centrada no essencial, — a presença de Deus revelada em
Cristo, independente das condições sociais e políticas — a espiritualidade dos monges — vivida
aliás por numerosos leigos, como o teólogo Nicolau Cabasilas — garantirá o carácter universal
do Evangelho no tempo ameaçado pelas limitações nacionalistas imperiais.

9
A missão bizantina
A vitalidade do cristianismo bizantino — por muito política que ela fosse em parte — iria
necessariamente irradiar para lá das fronteiras do Império. Cirilo e Metódio, enviados pelo impe-
rador, entraram na Morávia, durante o século IX, uma região até então submetida à influência da
Igreja ocidental de Roma. Dão aos eslavos uma língua escrita, o eslavo, e traduzem a liturgia bi-
zantina para essa língua. Muito rapidamente os Búlgaros aceitam o Baptismo, rito identificado
nessa altura aos olhos de muitos com a aceitação da cidadania bizantina, mas não tardarão a pro-
curar a independência política e eclesiástica. A conversão dos Sérvios aconteceu no século X;
depois foi a dos Romenos. Progressivamente, a influência bizantina estendia-se até à Rússia do
principado de Kiev, cujos habitantes foram baptizados em bloco no fim do século X, por instiga-
ção do príncipe Vladimir. Diz-se que o príncipe mandou enviar os seus representantes às regiões
onde se praticavam as grandes religiões da época — islamismo, cristianismo ocidental e oriental
— e que, deslumbrados pela beleza da liturgia bizantina, estes se voltaram para ela, com o sen-
timento “de não saberem se estiveram no céu ou na terra, pois sobre a terra não se encontra bele-
za semelhante” (Citado por Nicolas ARSENIEV: La Piété russe. Neuchãtet, 1963, p. 83). Diz-se que este relacionamento
teve por efeito a conversão do príncipe e, a partir daí, a dos súbditos. Esta lenda indica bem a na-
tureza das “missões” bizantinas: o cristianismo não era só transmitido por preocupação de “e-
vangelização” no sentido contemporâneo do termo, mas também por razões políticas e estéticas.
A influência política de Bizâncio, aliada ao carácter “místico” muito cativante dos seus cultos:
eis a causa humana da expansão missionária desta época. O verdadeiro milagre será o enraiza-
mento durável, na alma eslava, do Evangelho assim anunciado e aceite.

Depois de 1453
Apertada sempre cada vez mais de perto pelos Turcos, Bizâncio combaterá encarniçada-
mente, com o denodo de uma consciência certa de defender uma causa sagrada. Por várias vezes
procurou o apoio do Ocidente, o qual, entretanto, por ocasião da quarta Cruzada, não hesitou em
pôr Constantinopla a saque; o imperador passará por cima dos protestos das massas ortodoxas e
aceitará, por razões políticas, “a união” com a Igreja de Roma no Concílio de Florença, cujas de-
cisões não tardarão, todavia, a ser invalidadas pela consciência ortodoxa da época. Entretanto,
estes esforços haviam de revelar-se ineficazes perante a prodigiosa arremetida dos exércitos de
Maorné II: a 29 de Maio de 1453, Constantinopla sucumbe, logo seguida pelos outros territórios
de fé ortodoxa, a Bulgária, a Sérvia, Creta e a Bósnia. caindo todas sob a dominação otomana. É
então que começa para esta parte do mundo ortodoxo um período simultaneamente difícil e sig-
nificativo. A Igreja ortodoxa, certamente espezinhada e perseguida, estava em larga medida em
condições de viver a sua vida interna. Ela tinha assim, ocasião, mais do que no passado, de tomar
consciência da sua realidade de Igreja independente porque de Deus — das estruturas políticas e
culturais com as quais se tinha identificado demasiado no período bizantino. Ora, numa larga
medida, eram paradoxalmente as leis mais “liberais” do sultão que haviam de impedir esta liber-
tação interior. Com efeito, o patriarca de Constantinopla era nomeado chefe da nação cristã: a
Igreja tornava-se assim uma espécie de Estado dentro do Estado turco, entorpecendo-se por esta
razão, nas instituições herdadas da época bizantina. As estruturas eclesiásticas herdadas do pas-

10
sado encarnarão durante muito tempo ainda a nostalgia do Império perdido e a esperança de uma
restauração futura. Daí por diante, na impossibilidade de irradiar para além das suas fronteiras, a
Igreja oriental, sob o domínio turco, desenvolverá uma teologia para “uso interno” que, até ao
presente, introduzirá um conservantismo certo no pensamento ortodoxo. Ao mesmo tempo, e isto
principalmente na sequência de certas manobras políticas ocidentais- entre as quais a vontade
dos Britânicos de conquistar os Gregos para a sua política anti-otomana — ideias protestantes
alastravam até às altas esferas da Igreja, tendência da qual o patriarca Cirilo Lukaris (século
XVII), autor de uma confissão de fé de conteúdo nitidamente reformista foi uma das figuras pro-
eminentes. A influência teologia católica romana não era menos importante; ela permitia aos teó-
logos ortodoxos combater as tendências protestantes com a ajuda de argumentos católicos e vi-
ce-versa fenômeno que afetará não somente a Igreja grega, mas igualmente a Igreja russa do sé-
culo XIX. Conservantismo nas estruturas e nas fórmulas, conflitos entre tendências “protestanti-
zantes” e “romanizantes” no plano doutrinal: era de acreditar que a Igreja ortodoxa, capaz de so-
breviver fisicamente sob a dominação muçulmana, estava ameaçada de perder a sua identidade
espiritual. Mas, graças à liturgia dominical, aos escritos patrísticos e às práticas conservadas nos
mosteiros, a substância profunda da fé oriental permanecerá viva e permitirá, entre outras coisas.
o renascimento espiritual que animará o mundo ortodoxo nos séculos XIX e XX.
Nestas condições, não surpreende que o único movimento verdadeiramente dinâmico que
devia animar os povos ortodoxos ocupados pelos Turcos tenha sido o do nacionalismo religioso.
Já antes da queda de Constantinopla. desenvolveu-se no Império um certo nacionalismo grego, a
ponto de “o helenismo,” outrora identificado com o paganismo, ser considerado como a fonte do
que é “verdadeiramente bizantino e ortodoxo.” Este “imperialismo espiritual” grego não deixará
de criar tensões entre as Igrejas de língua grega e as que adoptarão o eslavo, tensões que ainda
hoje se registam aqui e ali. Sob o domínio turco as autoridades eclesiásticas gregas, com a ajuda
do ocupante, exigirão todas as sés episcopais antes retidas pelos bispos locais. Foi este o caso dos
bispos búlgaros e sérvios, bem como o dos patriarcados árabes (Jerusalém, Antioquia, Alexan-
dria) tornando-se todos vítimas de uma “unificação” artificial sob o signo da ortodoxia grega.
Compreender-se-á, por isso, porque é que, após a libertação do jugo turco as Igrejas ortodoxas do
mundo balcânico se apressarão a reclamar a sua independência em relação ao patriarcado (grego)
de Constantinopla e apresentarão bem cedo a imagem de uma multidão de Igrejas desconfiadas
umas das outras, encerrando-se cada uma no “provincianismo das suas tradições locais” (Soloviev.
Citado por Alexander Schmemann, op. cit., p. 281). Esta ausência de uma verdadeira irradiação para fora das suas
fronteiras, esta identificação com o ideal da libertação nacional explica por que, para citar o pa-
dre Schmemann, “a voz da Igreja era. por assim dizer, inexistente nos Estados ortodoxos livres
dos séculos XIX e XX” (Ibid. p. 290). E o mesmo autor conclui: “A totalidade da estrutura política e
estatal destes Estados e o conjunto da sua cultura passam ‘ao lado’ da Ortodoxia, ou, pelo menos,
não são inspirados por ela. A Igreja, a despeito das garantias democráticas que lhe foram assegu-
radas, estava sujeita a um honroso cativeiro, sem mesmo dele ter consciência. A extinção do mo-
naquismo; a transformação do clero em funcionários do Estado e da teologia numa disciplina
profissional reservada aos clérigos ou a alguns raros especialistas; a decadência dos ofícios divi-
nos muitas vezes reduzidos a ‘espectáculos’ ou cerimónias incompreensíveis; enfim a politização
do espírito da Igreja: são outras tantas consequências das revivescências nacionalistas, animadas
indirectamente, numa larga medida, pelas forças espirituais da Igreja.

11
A Igreja russa
Ainda que sofrendo a sua influência, a Rússia estava bastante afastada de Bizâncio, para que
a Igreja russa pudesse evoluir independentemente da expansão muçulmana no Próximo Oriente e
das suas consequências após a libertação. Em seguida à conversão do príncipe Vladimir do prin-
cipado de Kiev, só a “Rússia” de então irradiou uma espiritualidade ortodoxa que compreendia
características já especificamente eslavas, tal como aparece na hagiografia dos santos desta épo-
ca: insistência sobre o sofrimento voluntariamente aceite (os santos Bóris e Gleb), a doçura e a
humildade (S. Teodósio), uma real harmonia, sem supremacia de um sobre o outro, entre o Esta-
do e a Igreja (S. Vladimir). Ao mesmo tempo que se estimula uma vida monástica intensa —
fundação dos mosteiros “das Cavernas” de Kiev, floresce a primeira cultura eslava, que traduz e
adapta os valores bizantinos — tradução em eslavo de numerosos escritos patrísticos e litúrgicos
— e ao mesmo tempo criadora de uma literatura nova, sobretudo hagiográfica (vidas dos santos).
Por muito tempo, no entanto, o paganismo eslavo, fundado sobre a adoração da natureza, perma-
necerá subjacente à Ortodoxia russa, e isso tanto mais naturalmente quanto a liturgia, muito bela
no plano dos sentimentos, não constrangia as massas populares, em grande parte analfabetas, a
realizar distinções racionais, teológicas, entre a novidade de Deus e o carácter permanente, “anti-
go,” da natureza.
Com a conquista da Rússia pelos Mongóis (século XIII) os “Tártaros,” os cristãos russos
fizeram eles também a “experiência” da dominação muçulmana. O irradiar da Igreja será atenua-
do durante algum tempo, num grau bem menor, entretanto, do que o do caso dos Balcãs, numa
situação análoga. A Igreja russa continuará por muito tempo a intervir de forma benéfica nas dis-
putas entre príncipes russos vassalos do cã muçulmano. Entretanto, depois que Moscovo se tor-
nou a capital da Rússia, pelo fato de a hegemonia do principado que usava o seu nome, e à medi-
da que o país se libertava da dominação estrangeira, a Igreja iria depender mais dos príncipes.
Estes eram ainda influenciados pela mentalidade tártara, atitude de servilismo em relação aos
poderosos, ajustada ao prazer de oprimir os fracos. Este período marcado por um estado de espí-
rito brutal e primitivo conheceu, por vezes, um tal deixar andar espiritual que “é incompreensí-
vel, segundo o padre Schrnemann (Ibid. p. 305). que, dadas as aberrações do nacionalismo religioso
desta época, o período moscovita tenha apaixonado durante tanto tempo os eclesiásticos russos
ao ponto de constituir, a seus olhos, o modelo da “Santa Rússia.” Notemos entretanto que esta
época era também a dos grandes mestres espirituais, como S. Sérgio, iniciador de um movimento
monástico que atingirá o conjunto da Rússia setentrional. No meio das piores torpezas do “sécu-
lo,” o mosteiro permanecia assim como sinal da possibilidade sempre real do arrependimento e
de uma vida realmente cristã, humana portanto.
Depois da proclamação da independência da Igreja russa em relação a Constantinopla, que
não tardará a sucumbir perante a ofensiva turca, e depois da vitória russa sobre os Tártaros
(1480), Moscovo, aos olhos de muitos, merecia ser chamada a “Terceira Roma.” Era o índice
certo de que a ideia de um “Império cristão” tinha conquistado a Rússia, cujos meios principes-
cos se apressarão a imaginar-se continuadores da teocracia bizantina. A esta concepção, uma mi-
noria religiosa, animada por Nil Sorskij, um asceta rigoroso, opunha-se tanto mais violentamente
quanto ele receava com justa razão que a ideia de um “Império cristão” iria de fato permitir ao
Estado controlar a Igreja. Este receio, de que o reinado de Ivan o Terrível tinha já dado uma pro-
va bem fundada, mostrar-se-á ter sido realmente profético por ocasião da luta do czar Pedro o
Grande contra Nikon, patriarca de Moscovo (1652-1658). Este tinha procurado, alcançando tem-
porariamente ganhar a sua causa, “estabelecer a supremacia do poder espiritual sobre o poder
temporal e reformar a Igreja russa conformando-a com os usos gregos — então admitidos nos

12
patriarcados ortodoxos do Oriente” — provocando desta forma o cisma dos “Velhos-Crentes,”
membros da Igreja que desejavam ficar fiéis aos usos estabelecidos. Pedro o Grande alterou o
rumo das coisas: submeteu a Igreja ao poder imperial, procedendo a uma série de reformas, uma
das quais a abolição do patriarcado em proveito de um “santo sínodo” controlado pelo impera-
dor. Assim, em conformidade com o ideal absolutista ocidental da época, ele reduziu o papel da
Igreja ao de uma instituição encarregada de “atender às necessidades espirituais da população.”
O período “sinodal” da Igreja russa, que começou então e que não acabará senão com a Revolu-
ção de 1917, era marcado por esta subserviência da Igreja ao Estado czarista, situação que havia
de contribuir para impedir os crentes de tomarem plena consciência, e a tempo, da necessidade
de modificar as estruturas políticas e económicas do Império. Confinada artificialmente ao do-
mínio “religioso,” a Igreja ortodoxa russa reconhecerá, demasiado tarde, infelizmente, que não
conseguiu transformar a sociedade russa por dentro, levantar-se contra a escravidão dos servos,
impedir a constituição de um proletariado explorado pelos industriais cada vez mais poderosos
no fim do século XIX.
E preciso acrescentar, no entanto, que este período, como outras épocas mais sombrias da
Igreja ortodoxa, conheceu um florescer real da espiritualidade monástica, sob o impulso de ho-
mens como S. Tikhon de Zadonsk, Paisij Velickovskij, S. Serafim de Sarov e outros. Graças a
eles, a Ortodoxia soube, no último século, atrair a si numerosos intelectuais e artistas, entre os
quais Dostoievsky e Gogol. É certo que a teologia ensinada oficialmente nos seminários, sobre-
tudo no fim do século, era ainda fortemente marcada pelas categorias de pensamento católicas
romanas, e mesmo protestantes. Ela sofria, perdendo assim em parte a sua identidade ortodoxa, a
influência da conceptualização racionalista ocidental. Entretanto, a vida espiritual, alimentada
pelos escritos dos Padres gregos e dos espirituais russos e pela vida litúrgica sempre fiel às suas
origens, irradiava poderosamente dos centros monásticos onde os startzi (os “Antígos”) atraíam
multidões numerosas, ávidas de paz e de aprofundamento de sentido humano. Infelizmente, con-
forme escreve o padre Meyendorff, “esta reconciliação não era suficiente para suster o curso dos
acontecimentos que demasiados elementos sociais e econômicos tinham preparado desde há bas-
tante tempo” (Ibid. p. 103). Quanto ao sistema de instrução desenvolvido pela Igreja no decorrer do
último século, notável sob muitos aspectos, ele contribuía, antes de mais, para dar a sua bagagem
intelectual aos futuros revolucionários. É certo que, paralelamente a estes desenvolvimentos, a
Igreja russa tomou consciência da sua vocação missionária — e assim a continuação da expansão
missionária na direcção do leste até ao Alasca mas os acontecimentos revolucionários do começo
do nosso século não tardaram a pôr-lhe termo.
A tempestade da revolução, em princípio socialista e depois bolchevista, carregou sobre a
Igreja russa sem que ela tivesse tempo de realmente se preparar para isso. É certo que os seus
responsáveis convocaram o concilio em preparação há vários anos, quando Kerensky acabara de
tomar o poder; mas, à parte a decisão de restabelecer o patriarcado, esta assembléia, desejosa to-
davia de reformar as estruturas fundamentais da vida eclesial, na ausência de uma doutrina sufi-
cientemente clara das relações entre a Igreja e o novo Estado russo” (Ibid. p. 110), será muito rapi-
damente ultrapassada pelos acontecimentos. Depois de Lenine ter chegado ao poder, a Igreja terá
de se contentar com uma luta pela sobrevivência. Modificando a sua táctica umas vezes a perse-
guição aberta e sangrenta, como nos anos que se seguiram à revolução, outras vezes uma intensa
propaganda anti-religiosa associada a “medidas administrativas” (encerramento de igrejas “por
necessidade de reparações,” por exemplo) — o Estado soviético prosseguirá os objectivos traça-
dos por Lenine: fazer desaparecer a fé do coração das massas do povo russo. Depois de uma a-
calmia tornada necessária pela Segunda Guerra Mundial que exigia a colaboração de todos os

13
cidadãos, crentes e não crentes, acalmia que permitiu, entre outras coisas, a reabertura de várias
dezenas de milhar de igrejas, a eleição de um novo patriarca, Mons. Sérgio, e o restabelecimento
do ensino teológico, as perseguições obsessivas retomaram novo vigor. Presentemente, sem ter
desaparecido, a Igreja sobrevive por si mesma cada vez mais dificilmente.

A situação actual das Igrejas Ortodoxas


Em nossos dias, as Igrejas ortodoxas estão estabelecidas em contextos sociais, políticos e
étnicos bastante diferentes para que se possa dizer que a Ortodoxia de hoje encarna, à sua manei-
ra, a realidade da Igreja universal. A maior parte dos seus fiéis vive em sociedades que se recla-
mam da ideologia marxista. Embora a atitude dos governos a seu respeito seja marcada, nestes
países a União Soviética, a Roménia. a Bulgária, a Jugoslávia, a Albânia e a Polónia, de uma a-
gressividade análoga, a situação de cada Igreja nacional depende, entretanto, de certos factores
locais que impedem as generalizações rápidas. Assim, por exemplo, segundo os últimos relato-
rios que nos chegaram (Estado da situação em 1966), parece que na Roménia e na Jugoslávia a mar-
gem real de liberdade é consideravelmente maior do que nos outros países referidos, que a Igreja
ortodoxa pode beneficiar do número mínimo de instituições (seminários, academias, etc). neces-
sários ao seu desenvolvimento, e particularmente pode manter um certo número de mosteiros.
Do mesmo modo, a atitude dos dirigentes eclesiásticos a respeito das pressões governamentais e
sociais parece variar. Na Rússia soviética, por exemplo, sem que seja possível afirmá-lo com
uma certeza absoluta, parece que a hierarquia é obrigada a seguir uma linha mais “flexível” em
relação ao governo, aceitando, por assim dizer, sem reagir, as limitações recentes da liberdade
religiosa (Em Março de 1966, novos decretos do Praesidium supremo da URSS proíbem particularmente o ensino
religioso às crianças, mesmo no seio das famílias) impostas pelo Governo soviético. Como prova disso,
estão os recentes protestos de dois jovens padres moscovitas, em Novembro de 1965, um dirigi-
do ao Governo e levantando-se contra a “não aplicação do princípio da separação do Estado e da
Igreja,” o outro ao patriarca Aléxis para denunciar “a passividade cúmplice de uma parte dos
bispos a propósito das acções anti-religiosas do regime.” Da mesma forma, a natureza dos traba-
lhos científicos dos teólogos soviéticos contemporâneos, a maior parte de ordem histórica ou ar-
tística, não parece indicar nada a possibilidade de um confronto aberto ou diálogo com o mar-
xismo, no plano do pensamento. Pelo contrário, na Roménia parece que, principalmente graças à
coragem lúcida do patriarca Justiniano (eleito em 1948), a Igreja tem conseguido manter até ao
presente um modus vivendi construtivo com o Estado que, situação paradoxal a verificar-se o
facto, toma a seu cargo a manutenção dos padres e de outros servidores da Igreja. Uma activida-
de teológica em profundidade da qual se salienta uma tradução recente, para romeno, dos Padres
da Igreja — favoreceu, após a guerra, uma renovação monástica surpreendente, obrigando o Es-
tado a aceitar a Igreja como um interlocutor com quem é preciso contar a fim de melhor o poder
combater.
A primeira vista, a situação da Igreja ortodoxa da Grécia, a qual se assemelha à da Igreja de
Chipre, parece bem mais diferente. Comparada com a das Igrejas suas irmãs que vivem numa
sociedade comunista, é florescente: Paróquias em plena actividade; “povo cristão;” movimentos
de leigos — tais como o “Zoe” — realizando um trabalho notável de missão interna; instrução
teológica de um nível elevado: tudo indica que esta Igreja do Estado — a Religião da Grécia é a
religião grega ortodoxa — pôde, após a libertação do domínio turco, expandir-se em função das
suas próprias possibilidades, sem ser incomodada por obstáculos exteriores. Entretanto, não fal-
tam vozes autorizadas — e as tensões recentes entre o Estado e a hierarquia da Igreja a respeito

14
da nomeação dos novos bispos parecem dar-lhes razão — para dizerem que estas aparências são,
em parte, enganadoras. O teólogo grego Nissiotis, por exemplo, observa (N. A. Nissiotis: L’Église et Ia Soci-
été dans Ia Théologie ortodoxe grecque, in “L’éthique sociale chrétienne dans un monde en transformation.” Eglise et Société, Genebra, 1966, p.
56-75)que a igreja grega contemporânea não conseguiu ainda dominar todas as implicações da se-
cularização atual. Ela persiste em crer que “os jovens devem vir à Igreja, uma vez que é a sua
Igreja.” Porque ela se identificou muito estreitamente com a ordem estabelecida, reflexo que já
verificámos tanto na Igreja bizantina como na Igreja russa do antigo regime, a Ortodoxia grega
de hoje não realiza ainda inteiramente as exigências sociais do Evangelho, por exemplo no plano
da distribuição equitativa das riquezas do país entre todos os cidadãos. A Igreja grega, julga este
autor, deve descobrir o seu carácter universal, sendo ao mesmo tempo menos “grega” — ela as-
socia muito de perto a Ortodoxia ao helenismo moderno – e sendo activamente a Igreja para to-
dos os Gregos: ela deve recusar identificar-se com urna estrutura social que favorece urna mino-
ria.
A Igreja ortodoxa continua, para além disso, a ser uma presença cristã junto do mundo mu-
çulmano. Como tal, ela é ao mesmo tempo mal aceite pela maioria dos habitantes e ela própria é
relativamente pouco eficaz devido ao fato do conservantismo ao qual se reduziu, num ou noutro
lado, mercê da sua situação minoritária. Assim, por exemplo, o patriarcado de Constantinopla
hoje Istambul que goza de uma primazia de honra sobre todas as Igrejas ortodoxas, mas cuja ju-
risdição directa não se estende senão sobre um número reduzido de fiéis (patriarcado de Constantino-
pla exerce a sua jurisdição directa sobre o, raros gregos, que subsistem na Turquia no Monte Atos, em Igreja, de
emigrados na América e na Europa. em algumas ilhas do mar Egeu), deve o prolongamento do seu direito
de residência na Turquia à protecção das instâncias internacionais. A parte os patriarcas tradicio-
nais de Alexandria e de Jerusalém, cuja jurisdição se estende sobre grupos de fiéis, a maior parte
de origem grega, o patriarcado de Antioquia merece ser assinalado, uma vez que, ocupando o
Líbano e a Síria, constitui a maior comunidade cristã de raça e de língua árabes. Graças à inicia-
tiva do seu movimento de juventude, verifica-se aí não só um despertar espiritual e monástico
que vai até ao pôr em questão tradições veneráveis e ultrapassadas pelos acontecimentos, mas
ainda um princípio de diálogo em profundidade com o mundo muçulmano.
Convém citar, em último lugar, o papel importante que desempenham as comunidades orto-
doxas de emigrados no testemunho da Ortodoxia junto do mundo ocidental secularizado e indus-
trializado. Estas Igrejas, estabelecidas na Europa e na América e cujos fiéis provêm de origens
tanto eslavas como gregas e árabes, vêem-se constrangidas, mais ainda do que as Igrejas-mães
estabelecidas nas sociedades tradicionalmente ortodoxas, a distinguir as intuições fundamentais
da sua fé das numerosas tradições menores acumuladas pela Igreja ao longo dos séculos, tradi-
ções que obscurecem, sobretudo aos olhos do homem ocidental contemporâneo, aquilo de que a
Igreja devia dar testemunho. Assim, constata-se nestes últimos anos, sobretudo nos Estados Uni-
dos, o esforço empreendido por estas comunidades com vista a encontrar uma linguagem litúrgi-
ca e teológica susceptível de ser compreendida pela segunda geração totalmente integrada na vi-
da do país. Não somente a juventude ortodoxa americana responde favoravelmente a esta adapta-
ção da Igreja o número de seminaristas de S. Vladimir, perto de Nova Iorque, atingiu mais do
dobro nestes últimos anos --- mas também um número crescente de convertidos (do protestan-
tismo, do catolicismo ou do agnosticismo) vêm engrossar as fileiras dos ortodoxos americanos. É
neste duplo esforço de adaptação ao meio e ao espírito do tempo, que vai de par com uma fideli-
dade viva a respeito das intuições fundamentais da tradição, que reside o futuro de todas as Igre-
jas ortodoxas.

15
Conclusão
Parece que a história do cristianismo foi marcada, desde as origens, pela tensão necessá-
ria — criadora se ela for vivida nos seus dois pólos, destruidora se um se sobrepuser ao outro,
tensão entre a intuição da novidade radical de Deus em Cristo, por um lado, e o seu enraizamento
na situação social e nas estruturas culturais e históricas, pelo outro. Por sua vez, o Evangelho é
novidade radical, pondo aquele que ele confronta radicalmente em questão, obrigando-o a inter-
rogar-se sobre a sua própria vida, as suas relações com o outro e a sua inserção na sociedade —
donde um pôr em causa a própria sociedade — e, ao mesmo tempo, dirige-se precisamente ao
homem de tal ou tal sociedade determinada; quer pois ser traduzido na própria linguagem deste
homem e da sua época, pede para ser expressado com a ajuda dos conceitos e dos símbolos que,
já por si mesmos, lhe dizem respeito e dá impulso a um movimento de procura e de reflexão.
Este breve esboço da história da Igreja ortodoxa e das suas manifestações nacionais permite
verificar por várias vezes a presença desta tensão entre a interpelação sempre nova do Evangelho
e a sua tradução-adaptação às circunstâncias do momento, bem como as suas repercussões mais
ou menos positivas. Muito cedo se assinalou a tradução da mensagem evangélica, essencialmente
existencial, em categorias de pensamento helênicas respeitantes ao ser, às coisas “em si,” e de-
pendeu daí todo o desenvolvimento da teologia patrística grega dos primeiros séculos da nossa
era. Se a interpelação evangélica nela subsiste, mas traduzida, pertencerá aos teólogos de Bizân-
cio velar para que as categorias de pensamento ontológicas, formais ao fim e ao cabo, não pesem
sobre o seu conteúdo directamente pressionante para a vida do homem. Alguns conseguirão isso,
e é o florescer da teologia espiritual monástica, enquanto que outros, contando-se principalmente
entre os teólogos de corte, nem sempre evitarão o jogo intelectual de uma teologia formalista
“bizantina” no mau sentido do termo incapaz de pôr realmente em questão os seus contemporâ-
neos.
No plano das instituições esta tensão devia refletir-se sobretudo no frente a frente dos mos-
teiros com a Igreja de Estado. Se os primeiros encarnavam embora nem sempre, é justo dizê-lo
— a procura de uma vida autenticamente evangélica, radical na sua pureza, a segunda consagra-
va a tradução do Evangelho nos termos de uma determinada situação em que, aparentemente,
todos os cidadãos seriam “cristãos.” Esta dialéctica manifestar-se-á principalmente na Igreja rus-
sa; ver-se-á aí, por vezes, o elemento institucional local e nacional dominá-la na dimensão profé-
tica, elemento que, por si mesmo deixará de ser a expressão encarnada da fé. Viu-se que o cisma
entre a parte ocidental e oriental da Igreja não é estranho a este deslizar para a identificação da fé
com categorias de pensamento e estruturas institucionais regionais e passageiras. Paralelamente,
os nacionalismos religiosos das regiões balcânicas durante e após a libertação da ocupação turca
e a perda de substância espiritual que daí resultou, são devidos certamente, em parte, ao desequi-
líbrio em detrimento do primeiro pólo entre a intuição da fé universal e a sua expressão através
da cultura local e nacional.
Da diminuição em intensidade da interpelação existencial resulta, paralelamente à sua iden-
tificação excessiva com valores culturais locais e passageiros, a tentação do conservantismo, tal
como se manifesta durante o desenvolvimento histórico da Igreja ortodoxa. Assim, a expressão
momentânea da vida e da fé da Igreja bizantina, evangélica precisamente na medida em que cor-
respondia às atitudes existenciais pessoais e colectivas do momento, teve tendência a fossili-
zar-se e a tornar-se, na consciência das massas crentes, o modelo muitas vezes rígido, de qual-
quer evolução futura. É preciso notar, entretanto, que as perturbações históricas que marcaram
por duas vezes o mundo ortodoxo — invasão do Islão e instalação de regimes de inspiração mar-
xista — não ajudaram a Igreja ortodoxa a evitar este risco de imobilismo. Mesmo se, no que diz

16
respeito pelo menos à revolução russa, o efeito se sobrepõe talvez à causa, é compreensível que,
no meio das perturbações históricas, os fiéis se prendessem mais à Igreja tal como sempre a co-
nheceram, impedindo-a, assim, por sua vez de evoluir. Não nos pertence dizer aqui se a Igreja
ortodoxa falhou na sua missão de dar aos seus membros a visão de uma história dinâmica porque
animada por Deus, visão que talvez pudesse ter impedido alguns de se refugiarem no passado, no
momento das crises sociais e políticas.
Tensão necessária e construtiva entre a novidade do Evangelho e o seu enraizamento no
meio do momento: mesmo se a história da Igreja ortodoxa parece indicar que o segundo se so-
brepôs, momentaneamente, ao primeiro — regionalismo, nacionalismo e conservantismo — ca-
bernos-á descobrir, nos capítulos que vão seguir-se, como é que, no seu culto e na sua espiritua-
lidade, a Igreja ortodoxa viveu e vive ainda as intuições fundamentais da fé evangélica. Os mate-
riais deste estudo serão tomados dos escritos dos Padres gregos e bizantinos, dos teólogos russos
e gregos antigos e contemporâneos bem como do tesouro dos formulários litúrgicos. Inspiran-
do-se pois na tradição autenticamente oriental, esta experiência mostrará talvez que, a despeito
das suas dificuldades e dos seus fracassos históricos, a Igreja ortodoxa soube conservar intuições
espirituais profundas de uma importância real para o homem e para o mundo de hoje.

Capitulo segundo (p. 55)


Um pensamento vivido

A Fé ortodoxa: Pensamento analítico ou sintético?


Sem entrar no pormenor do debate filosófico sobre esta questão, é possível afirmar que o
homem reage diferentemente perante a realidade que enfrenta, segundo esta diz respeito às suas
preocupações vitais atinentes à sua própria existência, ou então, pelo contrário, segundo ela põe
em causa realidades certamente pessoais, mas cuja existência ou inexistência não afetam de ime-
diato a sua vida subjectiva. Assim, eu sou profundamente afetado por realidades que implicam
para mim pessoalmente um sofrimento, uma alegria verdadeira, a morte, enquanto que outras
zonas do real, como o lançamento de um novo satélite artificial, me interessam, mas sem me en-
volverem directamente. Todavia, é de notar que esta distinção entre “o que me toca pessoalmen-
te” e “o que me interessa sem diretamente me afetar,” é subjectiva, uma vez que, conforme os
indivíduos e a sua situação na história, o limite será colocado diferentemente. Mas importa subli-
nhar que o homem pode encarar a realidade sob um duplo aspecto, a saber “objetivo” ou “subje-
tivo,” sem que um alguma vez seja totalmente distinto do outro.
Esta dupla atitude face ao real determina duas maneiras de reagir a seu respeito, que corres-
pondem à análise racional, lógica, por um lado, e à apreensão intuitiva, poética, “sintética,” por
outro. A sua diferença não reside no facto de uma compreender melhor o real do que a outra — o
real pode aparecer mais objectivamente na análise lógica e mais subjectivamente na apreensão
poética intuitiva através de uma e outra destas duas formas de expressão — mas o que as distin-
gue aparece no plano da participação em profundidade da pessoa humana empenhada nesse pro-
cesso de “conhecimento” (=nascimento com) da realidade. Na medida em que põe em movimen-
to e em que exprime as esperanças e os receios mais profundos do homem, muitas vezes incons-
cientes, o conhecimento intuitivo, poético, artístico, portanto religioso toca e manifesta, mais i-
mediatamente e directamente do que o conhecimento racional, a existência humana. Se o primei-

17
ro exprime a vida humana na sua totalidade e na sua profundeza, e isso de maneira íntima e ime-
diata, o segundo, dada a necessária distância em relação com o real a fim de lhe fazer a análise,
jamais será verdadeiramente “existencial;” a análise lógica do real permanece em segundo plano
em relação à sua expressão imediata, vivida. Para ser válido — ele constitui a organização men-
tal indispensável à organização pura e simples da realidade humana pessoal e social -, o conhe-
cimento racional analítico deve, pois, inscrever-se no quadro de uma apreensão existencial pes-
soal da realidade, e deve ser dela decorrente. Uma ciência, qualquer que ela seja, que não seja
fundada sobre esta motivação existencial que engloba intuitivamente a totalidade do real, fica
suspensa no vácuo, e os seus esforços, por mais conseguidos que sejam nos planos científico e
técnico, não farão senão contribuir para o divórcio dos homens entre si, e do homem com a sua
própria vida, sendo este divórcio a definição mesma do absurdo. Ora, é ao nível da profundidade
da vivência pessoal que aparece para os crentes ortodoxos a realidade de “Deus”: “Os cristãos,
afirma Olivier Clément, devem aceitar tranquilamente que os tratem por ‘belas almas,’ porque,
para eles, a história autêntica se desenrola nas profundezas de cada existência pessoal e só de-
pois, por via de consequência, na confrontação dos impérios, das ideologias, das massas’ , das
técnicas e das ciências.
Com efeito, para a Ortodoxia, o encontro do homem com “Deus” — melhor: o encontro que
“Deus” quer viver com o homem — põe o homem radicalmente em questão, quer dizer é a ques-
tão da sua vida, das suas relações com outrem e da sua morte, diz respeito ao seu ser mais pro-
fundo. Toda a espécie de expressão verbal desta experiência — a “teologia” — é, pois, “poéti-
ca,” “simbólica,” “existencial,” antes de ser igualmente “racional.” Por esta razão, os teólogos
orientais sempre estiveram, ao longo dos tempos, particularmente conscientes do caráter “sintéti-
co” e vivido” — da teologia.
“Não se trata, dizia Gregório de Nissa (330-395), de conhecer qualquer coisa sobre Deus,
mas de ter Deus ern si” (Citado por Paul EVDOKIMOV: L’Orthodoxie. Neuchãtel-Paris, 1959, p. 50). E um teólogo orto-
doxo contemporâneo desenvolverá esta intuição capital para quem não quiser esbarrar na letra
das fórmulas teológicas e penetrar até ao fundo a sua significação vital: “A realidade nova (de
Deus)... não é somente um conjunto de conhecimentos, mas urna nova vida. Ela não se nos im-
põe como uma evidência externa, mas -como uma transformação do nosso ser, corno uma trans-
figuração” (Jean Meyendorff: L’Église orthodoxe hier et aujourd’hui. Paris, 1960, p. 164). Antes de serem pensadas, for-
muladas de maneira compreensível com a ajuda da linguagem racional, as realidades da fé são
vividas, e isso existencialmente corno realidades de vida que a linguagem poética está mais apta
a exprimir. Por exemplo, perante o mistério de Deus, ao mesmo tempo Criador — o Pai, — ho-
mem — o Filho — e presença no homem e no mundo — o Espírito Santo — o crente ortodoxo
exclama com S. Metrófano: “Tu geraste, ó Pai, o Filho eterno que irradia sem cessar a Luz divi-
na. Luz de Luz: de Ti emana o mesmo Espírito, esta divina Luz. Ó tríplice irradiação da única
Divindade, nós Te reverenciamos, nós Te louvamos... O Pai, fonte do Filho e do Espírito Santo,
tu és a origem da sua comum divindade. Permite que o meu coração desabroche à luz do Teu sol
tríplice, que a sua participação na luz divinizante o ilumine. Amigos nascidos da terra, venere-
mos com respeito a Trindade Santa, de uma só natureza e em três Pessoas de igual divindade,
rendamos-lhe graças como a nosso Senhor e Criador, como ao Deus que nos ama com um amor
inefável” (Citado por Emst BENZ: Geist und Leben der Ostkirche. Hamburgo, 1957, p. 51). A existência humana encerra
um mistério que a compromete completamente e perante o qual só é possível exclamar com a
ajuda de uma linguagem simbólica, poética, a única capaz de reagir perante “Deus,” o Inefável
pressentido no amor, no sofrimento, na vida humana.

18
Nestas condições, é normal que a fé oriental quase não distinga a “teologia” propriamente
dita — isto é, a formulação dos dogmas — da mística, do louvor, da oração. Como diz Vladimir
Lossky, célebre teólogo russo emigrado em França: “A tradição oriental nunca fez distinção níti-
da entre mística e teologia, entre a experiência pessoal dos mistérios divinos e o dogma afirmado
pela Igreja... Exprimindo uma verdade revelada, que nos aparece como um mistério insondável,
o dogma deve ser vivido por nós num processo ao longo do qual, em lugar de se assimilar o mis-
tério ao nosso modo de entender, é preciso, ao contrário, que nós tendamos para uma modifica-
ção profunda, a uma transformação interior do nosso espírito, para nos tornarmos aptos para a
experiência mística. Longe de se oporem, a teologia e a mística apoiam-se e completam-se mutu-
amente. Uma é impossível sem a outra: se a experiência mística é um pôr em valor pessoal o
conteúdo da fé comum, a teologia é uma expressão para a utilidade de todos, daquilo que pode
ser experimentado para cada um” (Vladimir LOSSKY: Théologie mystique de l’Église d’Orient, Paris, 1944, p. 6-7). Esta
visão sintética da realidade decorrente do encontro, da experiência existencial de Deus, e impli-
cando toda a pessoa, jamais poderá ser compartimentada logicamente em domínios distintos. “O
caráter fortemente homogêneo da espiritualidade oriental” (Paul EVDOKIMOV: Les Ages de Ia vie spirituelle.
Paris, 1964. p. 124). é bem o sinal de que o encontro com “Deus,” tal corno é vivido na Igreja ortodoxa,
diz respeito à vida, a toda a vida humana, e de que ele me diz pessoalmente respeito, nas minhas
aspirações mais profundas. A fé não é “teologia,” se por isso se entende uma superestrutura a-
crescentada à minha pessoa natural, a qual, se ela é equilibrada; poderá bem passar sem ela; mas
ao contrário, dizendo respeito à minha própria existência, ela compromete-me todo, numa vida e
numa visão homogêneas do mundo. O homem tem fome de vida, e Deus está nesta vida. O ho-
mem tem fome de alimento material, e ele mesmo é símbolo de outra coisa. Para o crente orto-
doxo, o homem deve descobrir que “respirar pode ser um ato de comunhão com Deus .... que
comer é receber a vida de Deus e não somente num sentido material” (Alexander Schmemann: For the Life of
the World. Nova Iorque, 1963. p. 6). Toda a distinção absoluta entre realidades “sagradas” e realidades “pro-
fanas” — ainda mesmo que ela seja possível provisoriamente e só para preocupação de clareza
— inscrever-se-ia pois, sem razão, na “visão homogénea” da fé. Isto significa, entre outras coi-
sas, que todos os homens recebem fundamentalmente a mesma orientação de vida, não havendo,
portanto, categorias particulares, “os religiosos” e os outros. “Quando os padres (da Igreja) fala-
vam, eles dirigiam-se a todos os membros do corpo sem qualquer distinção entre o clero e laica-
do, falavam ao sacerdócio universal... O Evangelho aplica-se, na sua totalidade, a todo o proble-
ma particular de todos os meios” (Paul Evdokimov: op. cit. p. 125-126).
Esta maneira profundamente existencial, portanto homogênea e sintética, de viver a sua fé e
de a formular incita, com justa razão, os ortodoxos a não pouparem as suas críticas à teologia
ocidental. Censuram-na de se ter entregue ao racionalismo analítico e de ter, por esta razão, per-
dido a visão existencial que eles estimam como sendo o próprio Evangelho. Influenciada pelo
pensamento ocidental, a própria Ortodoxia corre o risco de sofrer as consequências desta perda.
Como diz Olivier Clément, teólogo ortodoxo francês contemporâneo: “(A) unidade vital que-
brou-se. A brecha operou-se no Ocidente, mas atingiu, na época moderna, uma Ortodoxia enfra-
quecida na consciência intelectual (eu não digo: espiritual) que ela tinha de si mesma. Com as
grandes elaborações escolásticas, a teologia pretendeu constituir-se em ciência, e viu-se desen-
volver... uma especulação sobre Deus, obra da razão dita ‘natural’, mas decaída na realidade. Te-
ologia dos conceitos e das sistematizações, entregue à suficiência da razão que separa e opõe —
quando lhe seria preciso morrer e renascer nas águas baptismais para celebrar o mistério, pensar
nele (e não sobre ele). A perda de uma teologia supra-racional, substituída por construções racio-
nalizadas, é uma das causas do ateísmo contemporâneo. É que uma tal teologia é escandalosa,

19
quer obrigar e finalmente revela-se inútil. Escandalosa, porque ela faz do mistério mais escaldan-
te o objecto neutralizado de um conhecimento especulativo reservado... a verificadores de pesos
e medidas que transformam a adoração em administração... teologia das garantias, quando a fé é
aventura pessoal do homem ao encontro da aventura pessoal de Deus. Neste aspecto, esta teolo-
gia é inútil. A racionalidade encontrou a sua verdadeira aplicação no domínio e arranjo do mun-
do decaído. A este nível, percebeu-se que o Deus das sistematizações teológicas, não era mais
que uma palavra, sem a qual se poderia passar muito bem. Deus não tem sentido senão num ou-
tro plano, o da experiência espiritual em que a pessoa se empenha inteiramente. Não há mais fu-
turo para o Deus da especulação teológica ocidental, o qual durante o ‘cativeiro de Babilônia’ da
tradição ortodoxa, se expandiu largamente no ensino teológico do Oriente cristão” (Olivier Clement:
Purification par Fathéisme, in “Contacts” 1966/1, p. 58-60).

Sentido da história
A realidade que os crentes ortodoxos designam pelo termo “Deus” aparece, pois, como o
que está atrás, adiante e para além de toda a experiência de vida; “Deus” é a realidade que dá à
existência a sua coesão ultima, fazendo dela um todo vivido globalmente antes de ser analisado
nas suas partes. Esta visão homogénea da realidade determina urna compreensão análoga do
tempo e da história.
E possível encarar o tempo como um conjunto vazio a priori, susceptível de ser “preenchi-
do” pelos acontecimentos cuja sucessão e relações recíprocas constituem então a “história.” Es-
tes mesmos acontecimentos, eu posso considera-los como outras tantas realidades “objectivas;”
deram-se antes de mim, ou então hão de realizar-se depois de mim; não me afetam pessoalmente
senão na medida em que eu suporto as consequências atuais ou em que eu contribuo para a sua
realização a dar-se. Em si, o tempo passado e o futuro são, pois, abstrações tal como os aconte-
cimentos que os preenchem. Só conta o momento presente, a situação actual, o instante que eu
vivo e o seu conteúdo. Em face da abstracção da história que eu não conheço, senão inte-
lectualmente, e do futuro que ainda não existe. subsiste o momento presente que as pessoas se
esforçam por viver “existencialmente.” Mas este mesmo momento, na medida em que constitui o
limite entre o passado terminado e o futuro ainda por existir, corre o risco de não ser mais do que
um ponto limite, uma ficção. Pensada até às suas últimas consequências, a concentração unica-
mente sobre o presente conduz à intuição hindu, segundo a qual o próprio presente é nada, irreal.
Quer se encare pois o tempo e a história de maneira científica, pretendendo ver nele realidades
“objectivas,” quer nos refugiemos no instante presente, a realidade do tempo e do devir parece,
de qualquer maneira, escapar-se-nos por entre os dedos. É a abstracção de uma história finalmen-
te inacessível, exceto nas suas manifestações exteriores, e é a abstracção do “atual,” simples pas-
sagem instantânea, pontual, irreal entre a abstração do passado e a do futuro.
Para o crente ortodoxo, este dilema está ultrapassado, logo resolvido, pela sua fé em Deus,
“Senhor” do passado, do presente e do futuro. Deus criou o mundo, e com ele o tempo, modali-
dade do seu devir. “O tempo, para falar metaforicamente, é uma criatura; por isso ele é bom e
tem um sentido, como tudo o que é querido pelo Criador” (Olivier Clement: Transjigurer le temps. Notes sur le
Temps à Ia lumière de Ia tradition orthodoxe. Neuchâtel-Paris, 1959, p. 52). À luz desta certeza, o tempo deixa de ser
uma abstração, quer seja encarado como uma sucessão objectiva de acontecimentos — perspec-
tiva histórica — quer como o instante que eu vivo neste momento — forma existencial — tor-
nando-se assim estas duas aproximações da realidade temporal, uma e outra, possíveis e legíti-
mas. Os acontecimentos da história não aparecem somente segundo o seu aspecto exterior, mas,

20
na fé, o crente discerne neles o impulso que o próprio Senhor deu à história. Esta toma um signi-
ficado profundo e atual: a revelação progressiva de Deus aos olhos da humanidade, revelação por
certo nem sempre evidente à primeira vista, mas discernível como um devir. Cada instante, cada
acontecimento do passado é assim uma preparação do advento de Deus no presente e no futuro; o
passado, em virtude da sua “densidade divina,” é preparação, antecipação da riqueza incomen-
surável do instante presente, único porque rico da presença de Deus.
“Todo o significado do tempo linear (isto é, da sucessão dos acontecimentos) toda a sua ten-
são em ordem a uma realização total ainda a vir resumir-se-á na pregação de S. João Baptista:
“Arrependei-vos, pois o Reino de Deus está próximo” (Mat. 3:2) (Olivier CLÉMENT, op. cit.,p. 92). Estan-
do, pois, por assim dizer, orientados ‘interiormente,’ os acontecimentos, todos os acontecimen-
tos, não são definitivamente ‘do passado,’ não caem na abstracção porque, nesse mesmo momen-
to, Deus continua a assumi-los. Os acontecimentos já não se desvaneceram, mas permanecem
depositados na memória de Deus; assim, a oração pelos mortos pede a Deus que os ‘guarde na
sua (Mat. 3:2) memória’ (Paul EVDOKIMOV: La prière de l’Église d’Orient, Mulhouse, 1966, p. 53). Nestas condições,
na fé, o passado não é mais uma abstracção. mas nele me reencontro a mim mesmo, na medida
em que, agora ainda, espero, como os meus antepassados, a vinda de Deus, e sou chamado, como
eles, a preparar-me para ela pela oração e pelo arrependimento. A ‘comunhão dos santos repre-
senta, para o crente ortodoxo, o índice desta relação com o passado, vivida como uma espera
d’Aquele que vem, espera partilhada por todas as gerações.
De modo semelhante, o instante presente não é, antes de mais, definido como o ponto limite
entre o passado e o futuro, mas como a possibilidade que Deus me oferece de O reencontrar ago-
ra em mim própria — a fé — e nas outras pessoas — o amor Como diz Olivier Clément: “O
tempo (que eu vivo) é a possibilidade do abandono e do amor... o tempo é o reflexo, a analogia
da vida divina como comunhão de pessoas” (Olivier Clément, op. cit., p. 98). Sendo ‘Deus’ o conteúdo úl-
timo da vida humana, todo o homem que eu encontro constitui o meu tempo como contendo o
próprio Deus. O instante presente não tem, pois, valor em si mesmo, que seria, como se viu, uma
abstracção; mas a sua riqueza incomensurável vem-lhe do facto de ter um conteúdo: Deus que
me reencontra em mim mesmo e através dos outros. ‘Cada instante pode abrir-se a partir de den-
tro para uma outra dimensão... A sua participação no absolutamente diferente muda a sua nature-
za. A eternidade não é nem antes nem depois do tempo; é esta dimensão sobre a qual o tempo se
pode abrir’ (Paul Evdokimov, op. cit.,p. 52). Precisamente na medida em que o instante presente é abertura
sobre Deus, que lhe dá já o seu conteúdo, ele não é tempo de uma passividade devota, mas o ins-
tante da escolha. É possível apreender este conteúdo do tempo, e por isso viver verdadeiramente
o hoje, aceitando e assumindo o encontro com o outro e consigo mesmo, portanto com Deus, tal
como é possível recusar-se a estes encontros, viver portanto na abstracção, no absurdo — cuja
manifestação psicológica mais marcante é o sentimento de tédio. No fim, esta afirmação torna-se
uma tomada de consciência da mira considerável, por vezes terrível, desta escolha: Ao invés das
conciliações com que demasiados cristãos da nossa época tentam viver com os mitos modernos,
o tempo da Igreja não é evolução nem progresso, mas escolha pela catástrofe, tomada de consci-
ência pela ‘crise’ (no pleno sentido desta palavra que significa ‘julgamento’). O homem só é ho-
mem ultrapassando-se pela comunhão no amor que o cria e o quer recriar. O homem que recusa
Deus é um possesso. Nada é neutro: eis uma evidência apocalíptica que um certo optimismo cris-
tão negligencia demasiado, quando imagina os ‘infiéis’ navegando todos, sem o saberem, sobre
as águas da graça santificante... Nada é neutro, ou antes ninguém é neutro. e tudo é ambíguo, tu-
do é campo de batalha... Para os crentes, a história contrai-se vertiginosamente e torna-se... o
momento duma provação” (Olivier Clément, op. cit.,p. 149, 150, 153, 154).

21
Nestas condições, o futuro, que está nas mãos de Deus, é pois já, em certa medida, vivido
no presente. “O cristão encontra-se simultaneamente no tempo e fora do tempo... O nosso tempo
é o ‘último tempo,’ em que Julgamento se realiza de uma forma tirânica... O tempo, em si mes-
mo escatológico (isto é final, último) de agora em diante, coloca-nos na presença do Fim” (Ibid. p.
160). Abertura sobre Deus, o instante presente é abertura sobre o futuro, ele mesmo já antecipado
na própria qualidade da vida do cristão. “O Reino de Deus... pertence na sua plenitude ao século
que há de vir, mas ele está já manifesto sobre esta terra enquanto testemunho da verdade... Que
aqueles que têm ouvidos para ouvir ouçam e entendam agora o ribombar dos trovões da história!
(Serge Bulgakoff: L’Orthodoxie, Paris, 1932, p. 244). “A escatologia (isto é, a espera do futuro de Deus) não su-
prime o tempo, mas revela o seu sentido” (Paul Evdokimov, op. cit. p. 38) ultimo em Deus. Esta certeza de
estar nos últimos tempos, além do facto de dar a cada crente a consciência do valor único de cada
instante e do objectivo vital que representa para o seu próprio futuro, incitou particularmente os
monges da Igreja ortodoxa a viverem uma existência que é toda ela um sinal do Reino que vem.
“A ascese monástica da virgindade desejaria apressar o fim do mundo pela extinção da espécie
humana... O voto de celibato, a recusa colectiva da procriação exprime a posição extrema frente
à história e ao futuro da vida sobre a terra. A imagem evangélica de um fim súbito acentua o es-
tado moribundo do mundo que, de espera em espera, vive em si mesmo a sua própria agonia e
encaminha-se para o seu desaparecimento inelutável” (Paul Evdokimov: Les Âges de Ia Vie Spirituelle, Paris, 1946, p.
102). No extremo desta vocação dirigida a alguns de serem os sinais vivos do fim iminente encon-
tram-se os “loucos de Cristo,” alguns dos quais, santos autênticos, “sob as bizarrias de uma lou-
cura simulada, escondiam uma extraordinária riqueza de vida religiosa, não sendo a sua loucura
mais do que uma máscara adoptada por uma exigência de humildade, para serem denegridos e
desprezados pelos homens.” (Nicolas Arseniev: La Piété russe. Neuchâtel, 1963, p. 107). O escritor russo Leão Tols-
toi cita o caso particularmente significativo de um desses homens que vivem na fronteira entre
dois mundos: “Na sua oração secreta, Cricha, esse pobre louco, manifesta diante de Deus a ri-
queza escondida da sua alma ardente e pura. Fui passando a minha cabeça lentamente pela porta
entreaberta, e tinha medo de respirar. Cricha estava imóvel, de joelhos; do seu peito saíam fun-
dos suspiros: na pupila toldada dos seus olhos iluminada pelo luar parara uma lágrima. ‘Seja feita
a tua vontade!’ gritou subitamente com uma expressão inimitável, deixou cair a cabeça sobre a
terra, soluçando como uma criança... ‘O grande cristão Cricha! A tua fé era tão grande que tu
sentias a presença de Deus” (Citado por Nicolas Arseniev, op. cit., p. 107-108). O cristão oriental busca, sem des-
canso, captar a antecipação do frente a frente último com Deus. No momento da contemplação,
“o Espírito Santo (isto é Deus presente atualmente) torna-se neles (homens de oração) em tudo o
que as Escrituras dizem a respeito do Reino de Deus: a pérola, o grão de mostarda, o fermento, a
água, o fogo, o pão, a fonte da vida, o leito, o quarto nupcial, o esposo, o amigo, o irmão e o pai”
(Syméon o Novo Teólogo, homilia 50. Citado por V. LOSSKY: La Vision de Dieu. Neuchâtel, 1960, p. 122).
Solidário na espera de Deus com os homens do passado — o arrependimento — plenamente
empenhado no presente qualificado pela presença-de Deus, o homem está agora a caminho em
direcção a Deus que constitui o seu futuro. O tempo é, pois, vivido como um movimento, como
urna progressão dinâmica. Todos os padres da Igreja oriental o exprimiram, e depois deles os
teólogos ortodoxos contemporâneos. Como afirma Gregório de Nissa: “É realmente ver a Deus
não encontrar saciedade para este desejo (Vie de Moi’se. Tradução por J. Daniélou, Paris, 1955, p. 107) e por isso,
“qualquer paragem é uma regressão” (Paul Evdokimov, op. cit.,p. 65). “O dinamismo humano desencadea-
do pela presença de Deus” (Ibid. p. 150). manifestar-se-á durante toda a vida do indivíduo, e em si
mesmo não tem fim, pois que este é o próprio Deus. “É preciso uma vida para viver o que a fé
afirma uma vez por todas” (Ibid. p. 179), e a cada etapa corresponde uma tomada de consciência par-

22
ticular deste movimento, como afirma Gregório de Nissa: “O Menino Jesus cresce de diversos
modos segundo a maneira de cada um; manifesta-se como menino como adolescente, como ho-
mem feito” (Cit. ibid. p. 226). Mas querer parar, alegrar-se com o caminho já percorrido, seria perder a
presença de Deus, que é movimento. “Tendo posto uma vez o pé na escada sobre a qual Deus
estava apoiado, não parar de subir... cada degrau dá sempre para mais além” (Gregório de Nissa. Cit Ibid.
p. 233). Assim, tendo vivido no presente muito concreto relações com o próximo e em todas as di-
mensões sociais e econômicas deste encontro. “o progresso não é nem o avião, nem a rádio, nem
os vôos cósmicos, mas o combate terrível com o mal no mundo, esse mal que impede a união
com Deus” (O Padre Pravdoliubov, pároco na URSS neste mesmo momento (1967) Citado por Z. A. Iankova: L’Orthodoxie contemporaine
et le caractère antisocial de son idéologie. Moscovo, 1963. Tradução francesa em “Istina,” 1966/4, p. 390). Certamente que, para o
crente ortodoxo, o futuro termina no fim dos tempos, com a vinda do Senhor que, pela sua pre-
sença total, porá fim à história a que Ele mesmo deu origem. Como diz o padre Buláakoff
(1871-1944): “O derradeiro apartamento dos cordeiros e dos bodes, a morte e o inferno, a conde-
nação, as penas eternas, por um lado; o reino dos céus, a felicidade eterna, a contemplação do
Senhor, por outro — tal é o termo da vida terrestre da humanidade” (Serge BULGAKOFF, op. cit. p. 258.
Outros pensadores ortodoxos e o próprio Bulgakoff não excluem a possibilidade da salvação de todos os homens. Cf. Ennst BENZ, op. cit. p.
48).Mas o futuro não importa senão na medida em que o instante presente manifesta o movimen-
to para a sua vinda.
O tempo, dimensão fundamental da existência humana, é pois vivido pelos ortodoxos como
uma realidade sintética, homogênea, porque o seu conteúdo — o encontro com Deus através dos
acontecimentos e do próximo — constitui o denominador comum entre o passado, o presente e o
futuro. “A eternidade unia-se ao tempo e o Espírito (= presença atual de Deus), pode fazer surgir
os momentos do Senhor, porque estão eternamente presentes no presente eterno onde, de ora em
diante, tem assento a sua humanidade — a sua temporalidade glorificada (= assegurada por
Deus). O tempo da Igreja comunica assim, não com uma eternidade indiferenciada, mas com a
temporalidade eternizada do Senhor” (Olivier Clément, op. cit. p. 128). É à luz desta visão homogênea e
dinâmica do tempo que é preciso compreender o significado que a Igreja ortodoxa atribui à
“Tradição,” esses escritos e intuições sobre Deus transmitidos de geração em geração e de um
alcance sempre actual. A Tradição, memória da ação de Deus na história — a Bíblia — e da ação
do Espírito Santo na Igreja — os escritos dos padres e dos concílios — é uma realidade viva, ao
mesmo tempo passada e presente, ao mesmo tempo presente e aberta para o futuro. “Media do
Pentecostes (em que a Igreja toma consciência de que, no Espírito, Deus está com ela — agora)
começa o tempo da Igreja e postula, imperiosamente, uma tradição, uma transmissão, não de um
museu, mas de um lugar “teólogo” vivo, onde Deus continua a dizer e a repetir a sua Palavra aos
homens de todas as épocas. A Tradição é a consciência de a Igreja ser este lugar” (Paul Evdokimov:
Ortodoxie, artigo publicado na “Verbum Caro,” n.° 52/1959, p. 27). Na medida em que ela é a expressão vivida e can-
tada no culto da presença de Deus não somente para ontem, mas ainda para hoje e para amanhã,
a Tradição é, em princípio, susceptível de sofrer revisões críticas distinguindo o absoluto do rela-
tivo, a interpelação sempre atual de Deus das suas expressões locais e temporárias (Vimos, no pri-
meiro capítulo, algumas razoes históricas — ocupação pelo Islão; regime comunista — que impediram no passado
as Igrejas ortodoxas de tornarem plenamente consciência desta atualização necessária). Tal como o assinala o
padre Meyendorff: “A fé é una, mas admite expressões variadas, todas unidas na sua identidade
essencial no seio da Igreja... A Tradição é portanto uma realidade viva: não pode ser petrificada
sob os traços de uma cultura humana particular, pois que todas as civilizações humanas são, por
natureza, mortais. Separar a verdadeira tradição das tradições humanas que têm tendência para a
monopolizar é a condição necessária da sua preservação... Já não é Bizâncio como tal que inte-
ressa... mas a verdadeira fé cristã” (Jean Meyendorff: Orthodoxie et Catholicité. Paris, 1965, p. 96). Na ortodoxia a-

23
mericana contemporânea, esta tomada de consciência torna-se particularmente insistente, sobre-
tudo tal qual ela aparece através dos escritos do padre Schmernann: “Eu sei, escreve ele, que um
certo tradicionalismo que nada tem a ver com a mesma Tradição fez, aos olhos de muitos, desta
autocrítica e desta liberdade espiritual um crime contra a Igreja... As forças de inércia, de falso
conservantismo e de puro cinismo são consideráveis... Mas depende de nós escolher entre o pres-
tígio de uma busca puramente acadêmica e a obediência à vontade de Deus” (Alexander Schmemann: The
Task of Orthodox Theology in America today, in “St. Vladimir’s Quarterly”, Nova Iorque, 1966/4, p. 188). Expressão da presença
de Deus manifestada nas estruturas da Igreja nos textos dogmáticos e das orações litúrgicas, a
Tradição é, para os ortodoxos, um dos sinais concretos da sua visão homogênea do tempo: O
passado permite a fidelidade no presente que, na realidade, só é vivido na medida em que se abre
livremente sobre o futuro, sendo as tradições passadas, presentes e as que estão para vir, em con-
junto, a manifestação da única fidelidade dinâmica de Deus.

Cosmos
Situado no tempo, o homem está também situado no espaço. Este pode ser o espaço-prático
da sua vida corrente. Ele está preenchido — portanto definido — pelas pessoas, pelos seres vivos
e pelos objetos inanimados que constituem outras tantas coordenadas do espaço assim vivido e-
xistencialmente. O espaço pode também ser definido como a possibilidade da existência das pes-
soas, seres animados e inanimados dos quais não faço pessoalmente a experiência. Constitui a
consequência necessária da sua realidade: imaginando a existência de seres que me são pessoal-
mente desconhecidos, eu concebo o espaço como sendo infinitamente mais vasto do que o meu
espaço vital. E a possibilidade teórica, abstrata no fim de contas, de outras existências além das
que dizem diretamente respeito à minha, e, enquanto tal, o espaço assim definido é a legitimação
de toda a ciência que se pretende universal. Aí ainda, como na definição do tempo, há o risco da
dicotomia, de separação entre o existencial, o imediato vivido por um lado, e o teórico, o “co-
nhecido” intelectual, o “científico” por outro. Há o risco de separar a realidade espacial em dois
domínios, o da minha vida e o da vida das outras pessoas e existências, o do espaço restrito das
minhas preocupações e atividades e o do desenvolvimento do conjunto da realidade social e
cósmica. Esta separação mental provém, muitas vezes, do sentimento de impotência que o indi-
víduo sente de não poder agir, aparentemente, senão sobre o espaço pessoal e imediato, senti-
mento que reciprocamente, é muitas vezes reforçado por esta distinção mental.
Para o crente ortodoxo, esta dicotomia é ultrapassada pela sua certeza do carácter homogê-
neo das realidades espaciais. Comunicando com Deus, ele comunica com toda a realidade huma-
na e cósmica, de que “Deus” é o fundamento escondido. Tal como para o tempo, é a fé na pre-
sença de Deus no espaço vivido tanto no imediato como no espaço “teórico,” que lhe assegura a
homogeneidade e a unidade. A presença de Deus junto de qualquer homem faz com que todos os
homens, sem distinção de raça, de classe e de situação social, não sejam “ausentes,” mas irmãos.
Um irmão, mesmo algures no espaço, nunca é um verdadeiro ausente para o seu irmão. É na ora-
ção de intercessão da liturgia dominical que salta esta fraternidade mundial:

Por esta cidade, por este país, por todas as cidades e países, por todos os seus habitantes, o-
remos ao Senhor.
Pela pureza do ar, pela abundância dos frutos da terra e pela paz dos tempos, oremos ao Se-
nhor.

24
Pelos que andam sobre as águas do mar, pelos que viajam, pelos doentes, pelos que sofrem,
pelos prisioneiros, e pela salvação de todos, oremos ao Senhor.
Para que Ele nos livre de toda a aflição, cólera, perigo e necessidade, oremos ao Senhor (Li-
turgia de São João Crisóstomo. Citado por Paul Evdokimov: La Liturgie de l’Église de FOrient. Mulhouse, 1966, p. 109).

Isto mesmo vale, não só a respeito dos outros homens, mas de toda e qualquer criatura. A pre-
sença de Deus e o amor dizem igualmente respeito aos animais. Esta solicitude do crente ortodo-
xo pelas criaturas reflete-se em muitos episódios da vida dos santos ou dos mestres espirituais,
tal como o vivido pelo staretz (“Antigo”) Macário do convento de Optino (século XIX): “Macá-
rio tinha grande piedade para com os animais. No Inverno, cuidava das aves todos os dias, espa-
lhava grãos de cânhamo para elas numa pequena placa que estava fixada no exterior da sua jane-
la... velava também para que as aves maiores, os gaios, não prejudicassem as mais pequenas”
(Citado por Nicolas Arseniev, op. cit.,p. 134). Um célebre mestre espiritual russo, Serafim de Sarov
(1759-1833), diz-se que mantinha relações de amizade com um urso que veio espontaneamente
ao seu encontro.
Estas anedotas são significativas: para o ortodoxo, “trata-se da salvação de toda a criação”
(Ibid. p. 31). Mesmo a matéria, toda a matéria, está impregnada de Deus; participa portanto da co-
munhão que liga o crente a Deus manifestado por todo o lado, no espaço. Tal como se lê nos es-
critos de um peregrino russo no Cáucaso: “O livro da natureza abre diante de nós as suas páginas
belas. Por toda a parte podíamos ver nela e ler os sinais de Deus e reconhecer, contemplando as
criaturas, a sua perfeição invisível (Rom. 1:20). As extensões incomensuráveis do espaço que se
desdobrava à nossa frente por todos os lados, como um mar sem margem, maravilhavam-nos pe-
la sua majestade e elevavam os nossos pensamentos para além de qualquer realidade temporal. O
espaço significava para nós a Onipotência infinita de Deus, a sua presença inefável, e anima-
va-nos do sentimento de temor e de adoração por meio do qual toda a criatura reconhece em
Deus o Pai da natureza e a origem das coisas” (Bemard Schultze S. J. e Johanes Chrisostomus O. S. B: Die Glau benswelt
der orthodoxen Kirche. Salzburgo, 1961, p. 98-99). O sentimento de comunhão intensa com o mundo, ao mesmo
tempo imediato e longínquo, ao mesmo tempo tangível e suposto, reflete-se bem neste texto.
Porque o espaço mantém o seu conteúdo e a sua razão última de Deus, o homem sente natural-
mente que faz parte dele, participa nele e integra-se nele humildemente. Como diz um monge
contemporâneo do Monte Atos (Península do norte da Grécia povoada. ainda hoje. por várias centenas de
monges ortodoxos): “Vós, os Europeus, não sabeis participar. Cada um de vós quer dominar o con-
junto. Por isso, sois incapazes de encontrar o único com o sentimento de Lhe pertencer” (Citado por
Rudolf Biach: Das Geheimnis des heilingen Berges. Viena, 1949, p. 78).
Esta visão homogênea do espaço, tal como a do tempo, é essencialmente dinâmica, e é neste
dinamismo, neste movimento com que Deus anima um e outro, que o espaço e o tempo se jun-
tam aos olhos do crente ortodoxo. Para S. Tikhon (1724-1783), o despertar da natureza e do
cosmos, em cada Primavera, é como um “esboço prenunciador da futura transfiguração do mun-
do” (Citado por Louis Bouyer: La Spiritualité orthodoxe et Ia Spiritualité protestante et anglicane. Paris, 1965, p. 157). Ora o movi-
mento que anima o mundo e lhe dá a sua orientação, ao mesmo tempo espacial e temporal, é o
amor, sinal da presença do Criador. Para citar Isac o Sírio (morto cerca de 460): “O que é o cora-
ção compadecido? E o coração que se inflama de caridade para com todas as criaturas — os ho-
mens, as aves, os animais e até os demônios, e tudo o que existe. Aquele que tem um coração
assim não pode lembrar-se das criaturas nem vê-las sem que os seus olhos se encham de lágrimas
por causa da imensa compaixão que lhe penetra o coração. E o coração comove-se e não pode
suportar, se ele vê ou sabe por outros, nem que seja um sofrimento mínimo infligido a uma cria-

25
tura. Eis por que um homem assim não cessa de rezar pelos animais, pelos inimigos da verdade,
por aqueles que lhe fazem mal, a fim de que sejam conservados e purificados. Reza até pelos
répteis, movido pela grande piedade que transborda sem medida no seu coração, e nisso se asse-
melha a Deus” (Citado por Nicolas Arseniev, op. cit.,p. 39-40). O amor e a fé do crente permitem-lhe desta for-
ma participar no difícil progresso do mundo, o qual, dolorosamente, impelido pelo amor de
Deus, evolui para sua realização total. “Quanto mais um homem participa na vida divina, escreve
Olivier Clément, mais ele se torna portador de um amor que o torna vulnerável à dor dos homens
como ao gemido do cosmos. Mais ainda, sente-se culpado de todo o sofrimento do mundo” (Olivier
Clément: op. cit, p. 161-162). Mais uma vez são ainda os monges orientais que se mostram mais sensíveis
ao secreto movimento do mundo em direcção ao seu fim, estando este já inscrito, miste-
riosamente, na sua realidade atual. O referido monge do Monte Atos testemunha que, ainda há
poucos anos, declarou muito seriamente a uma visita estrangeira que tinha renunciado a lançar ao
mar as suas redes, não tendo este já mais peixes, porque, acrescentava, “o mar sente o fim do
mundo” (episódio que o autor viveu, em 1960, junto do comento de Quiropotamu, nu Monte Atos). Aqui, abor-
damos um aspecto decisivo da fé cristã, escreve um outro peregrino. Deus amou o cosmos — eis
a certeza decisiva. As criaturas e objectos inanimados estão englobados nessa transformação,
nessa transfiguração, nesse completar-se. Estas três palavras, que se revestem de um tão grande
significado no Monte Atos, não dizem respeito somente aos homens, mas igualmente à criatura.
Se “todo o poder no céu e na terra” foi dado a Cristo, então (para o crente ortodoxo) uma nova
criação está em vias de acontecer” (Rudolf Irmler: Geheimnisvoller Athos. Giessen e Basileia, 1965, p. 66).

Liturgia
Nas profundezas da vida, animando-a, orientando-a e ultrapassando-a, “Deus” manifesta-se
ao crente ortodoxo como Aquele que constitui a realidade derradeira, última de todas as coisas.
A fé é, portanto uma questão de vida, sendo o pensamento formulado sempre secundário em re-
lação à comunhão com Deus e o outro, vivida realmente e concretamente. Porque ela é da ordem
da experiência vital, o pensamento que a exprime é necessariamente sintético e repugna às dis-
tinções analíticas ocidentais entre a teologia, a mística e a poesia, entre a expressão verbal e a
expressão por imagens, entre o pensamento e a ação. Porque realidades de Deus que lhes dá con-
teúdo, o tempo e o espaço são vividos como totalidades dinâmicas: em comunhão com Deus, o
crente ortodoxo sente-se em comunhão com os homens e com os seres de todos os tempos e de
todos os lugares; com eles, sabe-se empenhado no movimento de conjunto cosmos em direcção à
presença total do Senhor. É no culto, e particularmente na “liturgia” (“actividade do povo”) do-
minical que os crentes ortodoxos vivem, por assim dizer, em resumo e em concentrado, esta par-
ticipação homogénea na presença de Deus manifestada na sua vida pessoal e assim como na vida
de todos os seres, de todos os tempos e de todos os lugares. Tentando viver, ao menos pelo pen-
samento, o desenrolar do culto ortodoxo, o leitor descobrirá pouco a pouco, e de maneira global,
a peregrinação espiritual dos cristãos orientais em direcção ao que é o fundamento da sua fé na
presença de Deus junto de todos os homens no tempo e no espaço: a Encarnação de Deus em Je-
sus Cristo de Nazaré. A liturgia é pois análoga não a um curso dogmático ou a uma exposição de
moral, mas sim a uma representação teatral, se se entender por isso — como é o caso, por exem-
plo, no teatro contemporâneo — a possibilidade oferecida ao “espectador” de descobrir a sua
própria verdade através da ação que se desenrola no palco. Mas o culto ortodoxo, “uma liturgia
sempre viva, dramática” (Jean Meyendorff: L’Église orthodoxe hier et aujourd’hui. Paris, 1960, p. 171), ultrapassa a re-
presentação teatral na medida em que significa não apenas a verdade subjetiva da vida interior de

26
cada participante, mas ainda a presença objetiva de Deus. É um “drama” que representa a reali-
dade do momento. A liturgia “não é somente a comemoração de acontecimentos evangélicos ou
de outros acontecimentos que dizem respeito à Igreja... E também a atualização destes fatos, e
até a sua renovação sobre a terra. Durante a celebração do Natal, não se faz simples memória do
nascimento de Cristo, mas, verdadeiramente, Cristo nasce de forma misteriosa, da mesma manei-
ra que, no dia de Páscoa, Ele ressuscita... A vida da Igreja, nos seus cultos, torna-nos sensível a
Encarnação (de Deus) que se realiza misteriosamente: O Senhor continua a viver, sob a forma
por que Ele se manifestou um dia na terra e como Ele existe para todos os tempos; e à Igreja é
dado poder tornar vivas as recordações sagradas; de tal maneira que nós nos tornamos suas novas
testemunhas e nelas participamos” (Serge Bulgakoff, op. cit. p. 180-181). No decorrer do culto, Deus está
realmente presente, e é por isso que Ele constitui o nosso ponto de inserção no conjunto dos a-
contecimentos temporais e espaciais do mundo. “Pelo poder do mistério litúrgico, escreve Evdo-
kimov (Paul Evdokimov, op. cit. p. 53), o tempo abre-se e nós somos projetados no ponto em que a eterni-
dade se cruza com o tempo, tornando-nos aqui os contemporâneos (Sublinhado por Evdokimov) reais
dos acontecimentos bíblicos, desde o Gênesis até à Parusia (= o fim); nós vivemo-los concreta-
mente como testemunhas oculares.” Mas, na medida em que a presença de Deus é um aconteci-
mento dinâmico, este culto exprime ao mesmo tempo a expectativa desta presença: “Toda a es-
trutura da liturgia não é mais do que a espera do Senhor, não é mais do que a preparação e a con-
sumação da sua vida até junto dos fiéis” (Nicolas Arseniev, op. cit., p. 43).
Paralelamente, o culto é, por excelência, o momento da comunhão com todos os seres dis-
seminados pelo espaço. “A oração litúrgica desparticulariza e introduz imediatamente na consci-
ência ‘católica’ (isto é ‘universal’), colegial... Ela ensina a verdadeira relação entre o eu e os ou-
tros... Por ela, o destino de cada um torna-se-nos presente... Assim, a liturgia faz viver a verdade
evangélica segundo a qual a salvação de uma única alma, abstraindo das outras, se revela impos-
sível” (Paul Evdokimov, op. cit., p. 31-32). As criaturas não humanas não estão esquecidas. O ofício ortodo-
xo não se dirige apenas à alma humana, mas a toda a criação, e santifica esta última... A Igreja
abençoa toda a criação: as flores, as ervas, os ramos, levados à igreja na festa da Santíssima
Trindade; os frutos e as uvas levados na festa da Transfiguração... etc.” (Serge Bulgakoff, op. cit., 190-191).
Ou ainda, para usar palavras do padre Schmemann: “O nosso acesso à presença de Cristo (na li-
turgia) faz-nos entrar numa quarta dimensão que nos permite descobrir a realidade última da vi-
da. Não é uma fuga para fora do mundo, mas, ao contrário, a possibilidade de descobrir mais
profundamente ainda a realidade do mundo” (Alexander Schmemann, òp. cit.,p. 14). Resumindo: “É nesta
comunhão que o homem restabelecido, renovado pelo dinamismo do amor, encontra a sua pró-
pria verdade e a verdadeira essência das coisas” (Paul Evdokimov. op. cit., p. 32).
Compreender-se-á porque é que o culto ortodoxo será essencialmente de forma poética e
artística, pois que a beleza que dele se desprende constitui o sinal da presença inteiramente en-
volvente de Deus, melhor do que seria possível fazê-lo com qualquer espécie de discurso. Assis-
tir a um ofício, mesmo sem ter sido informado do seu exacto desenrolar, pode constituir, sob este
aspecto, uma experiência decisiva: através das cores dos ícones — “imagens” santas, voltaremos
a falar delas -das vestes e dos gestos litúrgicos dos padres, dos cânticos, do incenso que sobe na
penumbra, dos círios, dos diversos ruídos e movimentos da multidão, as pessoas sentem-se logo
imergidas numa realidade que quer atingir-nos no mais profundo da nossa pessoa — a nossa afe-
tividade, o nosso subconsciente — e, somente depois, ser descrita racionalmente. Também é inú-
til querer discernir a todo o custo símbolos precisos em cada um destes elementos: Mais uma
vez: é a impressão de conjunto, a síntese que constitui a visão ortodoxa. Cânticos e símbolos vi-
suais são os únicos a poder reflectir, em última análise, o mistério da presença do Senhor, vivida

27
existencialmente como um Todo. Tal como diz Evdokimov: “O cântico como o ícone são as úl-
timas flechas de fogo que tocam o espírito do homem e lhe fazem ouvir a Palavra no seu limite
apofático (= inidizível). Onde a palavra pára e designa o inefável, a música do cântico transpor-
ta-a para lá do limite... Se todo o texto é fenômeno do falar, o texto litúrgico é a suprema forma
da poesia cultural... O ícone (por sua vez) apresenta uma fusão dos elementos contemplativos e
artísticos onde a arte está ao serviço do religioso, o culto é uma convergência dos elementos se-
mânticos (= próprios da linguagem) e artísticos submetidos ao sentido do Mistério” (Ibid. p. 34-35).
A construção da própria igreja é rica em símbolos, não falando tanto à razão como ao cora-
ção. Todo o culto, escreve o padre Bulgakoff, toma o valor de uma vida divina da qual o templo
se torna o lugar próprio. O traço ressalta na própria arquitectura da igreja ortodoxa. Seja a cúpula
de Santa Sofia de Constantinopla, que representa de uma forma admirável o céu da sabedoria
divina refletindo-se sobre a terra; seja a cúpula de pedra ou de madeira de uma igreja russa cheia
de um suave calor: a impressão é a mesma. O templo gótico lança-se em altura, em direcção ao
transcendente, mas fica sempre uma intransponível distância. Ao contrário, sob a cúpula ortodo-
xa que se abate, que congrega e que reúne, sente-se que se mora na casa do Pai, depois da união
do divino e do humano... Todo o culto ortodoxo é o testemunho e a realização desta concepção
da vida, do conhecimento íntimo da humanização e da encarnação de Deus...” (Serge Bulgakoff, op. cit.,p.
181). Se a construção no seu conjunto contém este significado, cada elemento do seu arranjo inte-
rior completa-a e aprofunda-a. Depois de ter atravessado o vestíbulo — reminiscência do lugar
onde, na igreja primitiva, se mantinham os catecúmenos, hoje muitas vezes reduzido à sua ex-
pressão mais simples (salvo nas igrejas dos conventos) — penetra-se na nave: em frente, o olhar
surpreende a iconóstase, espécie de écran de pedra ou de madeira que serve de suporte aos ícones
por detrás da qual se encontra, enfim, a mesa da comunhão. Esta não aparece aos olhos dos fiéis
a não ser no momento da Ceia, da própria Eucaristia. No seu plano e na sua estrutura interna,
tanto vertical como horizontal, a igreja ortodoxa constitui pois um resumo admirável da concep-
ção, ortodoxa de Deus no mundo: Deus é, ao mesmo tempo, uma presença toda envolvente — a
cúpula — e a sua presença é dinâmica e impele ao movimento — a passagem do vestíbulo, atra-
vés da nave, para a mesa da comunhão.
A fim de viver este movimento, a Igreja ortodoxa criou, no decurso dos séculos, principal-
mente no tempo em que floresceu a espiritualidade monástica, ofícios susceptíveis de fazer apa-
recer a sua realidade última a todo o momento do ritmo normal do tempo. Cada dia é marcado
pelo ofício de vésperas e de matinas revelando que “nós estamos sempre entre noite e manhã. A
experiência do tempo enquanto fim (vésperas) dá assim uma importância decisiva, final, a tudo o
que nós empreendemos agora. A experiência do tempo enquanto princípio (matinas) enche de
alegria todo o nosso tempo, pois que ela lhe acrescenta o ‘coeficiente’ de eternidade.” Da mesma
forma o ciclo da semana é santificado pela liturgia dominical, precedida, no sábado à noite, pelo
ofício das vigílias, e aí se aplica também a visão homogênea do tempo próprio da fé ortodoxa.
“O domingo, escreve o padre Schmemann, não é um dia ‘sagrado’ que deva ser ‘respeitado’ fora
dos outros dias da semana. Ele não interrompe o tempo para um êxtase místico ‘atemporal.’ Ele
não constitui uma ‘folga’ no meio de uma série de dias sem significado. Permanecendo um dia
normal, revelando-se, através da liturgia, como o ‘oitavo’ e o ‘primeiro dia,’ o domingo confere
a ‘todos os dias da semana o seu verdadeiro significado. Ele faz do tempo deste mundo o tempo
do principio e do fim” (Ibid. p. 35). Em conclusão, e paralelamente, o conjunto do ano recebe a sua
orientação profunda das festas que o balizam. Natal — festa da encarnação de Deus — Sexta-
-Feira Santa e Páscoa — reatualização do movimento de Deus no mundo, desde o sofrimento à
alegria, — Pentecostes — celebração da presença de Deus em todas as coisas através do Espírito

28
Santo — e a Transfiguração — festa da luz que faz surgir a realidade de todas as coisas — cons-
tituem outros tantos marcos indicadores e reveladores na marcha de cada homem e do universo
inteiro em direção à sua realização plena. Enquanto tal, cada festa — há outras menos importan-
tes, consagradas a Maria e aos santos — é uma ocasião de tomada de consciência do nosso esta-
do ainda transitório — assim Sexta-Feira Santa — e de júbilo (É comovedor ver a facilidade muito es-
pontânea com que o, ortodoxo, prolongam a sua alegria pascal litúrgica através de divertimento, “profanos’. De fac-
to, não há nisso contradição: a alegria perante a vitória de Deus, na terra permite precisamente júbilo na terra) pelo
que permite, agora já, ultrapassar — assim a Páscoa, por exemplo. As celebrações cultuais orto-
doxas diárias, semanais e anuais não constituem pois um “tempo sagrado” no interior do tempo
profano, e muito menos a igreja é um “espaço sagrado” num mundo dessacralizado (É preciso re-
conhecer entretanto que, no espírito de muitos ortodoxos, subsiste a separação entre o sagrado e o profano. São se-
quelas da concepção medieval ocidental das coisas que, em períodos de esterilidade intelectual, marcou o pensamen-
to oriental). Um e outra — o culto e a casa, reservada para este efeito — são sinais que conferem
ao tempo e ao espaço o seu significado: o movimento de Deus para o mundo e, por conseguinte,
o do mundo para Deus.
O culto do domingo, a “Santa Liturgia,” centrada sobre o sacramento do pão e do vinho, a
“Eucaristia-, reveste-se a este respeito de uma importância particular, pois que ela confere o seu
significado verdadeiro ao conjunto dos cultos, orações e vida da Igreja ortodoxa. Vamos pois,
descrevê-la mais em pormenor e citar-lhe largamente o próprio texto, o qual — importa referi-lo
— sendo cantado, não é da ordem do discurso racional mas da expressão poética. Esta liturgia,
que encerra numerosos elementos ainda mais antigos, tem por redator João Crisóstomo (A liturgia
de Basílio, mais ampla em certas partes, só é empregada em ocasiões particulares 354-407), e apenas sofreu de-
pois modificações e acrescentamentos menores; isso significa extraordinária a continuidade da
tradição cultual oriental sem que, como se vai ver, esta tenha perdido a sua atualidade.
O culto começa “quando os cristãos deixam a sua casa e as suas camas. Eles abandonam a
sua vida reduzida à existência atual e concreta; quer façam vinte quilômetros de carro quer per-
corram algumas centenas de metros a pé, eles cumprem... um ato que é a própria condição da
continuação: estão em vias de constituir a Igreja ou, mais exatamente, tornar-se a Igreja de Deus.
Eles eram indivíduos, brancos, negros, ricos, pobres; pertenceram ao mundo ‘natural’ e a comu-
nidades naturais. Ei-los chamados a ‘reunirem-se num mesmo lugar,’ a levarem consigo o seu
‘mundo’ e a sua vida própria para se tornarem mais naquilo que eles são: uma nova comunidade
animada de uma nova vida... O fim desta reunião não é simplesmente acrescentar uma dimensão
religiosa à comunidade natural, torná-la ‘melhor’ — mais responsável, cristã. A finalidade é rea-
lizar a Igreja, ‘re-presentar’ Aquele no qual todas as coisas atingem o seu fim e o seu verdadeiro
princípio” (Ibid. op. cit. p. 14. Texto sublinhado pelo autor).
Enquanto os fiéis meditam, através da leitura de alguns salmos, a intuição que os autores do
Antigo Testamento tinham da vida e morte de Cristo — vivendo assim com eles a espera da vin-
da de Deus — os padres realizam, por detrás da iconóstase, com todas as portas fechadas, um
conjunto de gestos simbólicos, verdadeiro “pequeno drama realista muito condensado” que re-
produz o sacrifício de Cristo, “dando assim um esquema sucinto...” (Paul Evdokimov, op. cit.,p. 152). do
que se vai passar durante a liturgia. O pão, que representa Cristo — Deus encarnado — é partido
em pequenos pedaços que no seu conjunto significarão Cristo rodeado de Maria, João Baptista,
anjos, profetas, apóstolos, vivos e mortos. Paralelamente, o diácono — assistente do padre —
deita vinho e água no cálice, para simbolizar não só o “sangue e a água” que saíram da chaga que
os soldados abriram no lado de Jesus na Cruz, mas também a união íntima do divino e do huma-
no na sua pessoa. Estes ritos constituem assim “a figura perfeita da Igreja que cobre o céu e a
terra, abrange os ausentes e os mortos, recapitulam o universo de Deus num todo vivo” (Ibid. p. 153).

29
À primeira vista, parece que o movimento de Deus na minha vida, em toda a vida, em todo o
tempo e em todo o espaço, passa pela cruz e pela ressurreição de Cristo em que são manifestados
a origem e o fim do movimento.
A liturgia propriamente dita começa pela exclamação: “Bendito seja o reino do Pai, do Filho
e do Espírito Santo, agora e sempre e nos séculos dos séculos, Amem” (Todas as passagens citadas reproduzi-
rão a tradução aparecida em Paul Evdokimov, op. cit). Ela indica o termo da “viagem” que será atingido durante o
culto, ele mesmo sinal da viagem de toda a humanidade: o Reino de Deus. Como nota Evdo-
kimov: “O homem é apanhado por esta mudança, respira o ar do ‘todo outro,’ sente-se num cli-
ma que não é deste mundo.
Não é todavia uma fuga, mas sim uma mudança de situações: o mundo não domina mais o
homem, mas segue-o” (Ibid. p. 155). A indicação do fim salta sob a forma de uma “doxologia,” isto
é, de uma expressão de louvor, de adoração, de encantamento perante o mistério de Deus. “Des-
de que nós nos aproximamos de Deus, compreendemos logo a transcendência (isto é, o caráter
absolutamente inaudito) da sua glória, do seu poder e da sua grandeza; resultam daí sentimentos
de admiração, de comoção... de reconhecimento” (Nicolas Cabasillas; Explication de Ia divine liturgie, tradução por S.
Salaville, Paris, 1943. p. 98). E é bem o mundo inteiro que o crente quer ver, neste momento, arrastado
neste dinamismo de Deus porque seguem-se, então, orações de intercessão pela Igreja e pelo
mundo (Ver a oração citada na página 74):

Senhor, nosso Deus, salva o teu povo e abençoa a tua herança, guarda em paz o conjunto
da tua Igreja; santifica aqueles que amam a beleza da tua casa; dá-lhes em recompensa a
glória do teu divino poder e não nos abandones nunca a nós que esperamos em Ti... Re-
comendamo-nos a nós, mesmos, uns aos outros e toda a nossa vida a Cristo nosso Deus...
Porque Tu és um Deus bom e amante dos homens, e nós te damos glória, Pai, Filho e Es-
pírito Santo, agora e sempre e nos séculos dos séculos. Amém.

Aparece assim aquilo que, no mundo e em cada um, dá a sua verdadeira razão de ser: a paz, a
força de Deus, a solidariedade de todos com cada um e de cada um com todos no amor. Come-
çou a grande peregrinação, e realizar ou atingir-lhe a finalidade, no culto, é, para o crente orto-
doxo, participar já nela.
Terceira etapa: a entrada dos oficiantes — padres e diáconos — pela porta central da inco-
nóstase, a “porta real,” no santuário onde se encontra a mesa da comunhão que aparece então à
vista de todos os fiéis. “O altar, diz o padre Schmemann, é o sinal de que em Cristo nós temos
acesso a [Deus], de que a Igreja é uma ‘passagem’ (do antigo para o novo)... Não é a ‘graça’ que
desce; é a Igreja (representada aqui pelos oficiantes) que entra na ‘graça,’ isto é, na nova realida-
de, o Reino, o mundo que há de vir” (Alexander Schmemann, op. cit. p. 18). E o padre pronuncia esta oração:

Deus santo, tu que repousas entre os santos, tu que és louvado pelos Serafins que cantam
o hino três vezes santo, tu que és glorificado pelos Querubins e adorado por todos os po-
deres celestes, tu que trouxeste todas as coisas do nada para a existência, tu que criaste o
homem à tua imagem e à tua semelhança, tu que o adornaste com todos os dons da tua
graça, tu que dás a quem as pede a sabedoria e a inteligência, tu que jamais desprezas o
pecador, mas que estabeleceste o arrependimento para a salvação; tu que nos concedeste
a nós, teus humildes e indignos servidores, podermos encontrar-nos neste mesmo mo-
mento perante a glória do teu santo altar, e oferecer-te a adoração e a glória que te são
devidas; tu mesmo, ó Mestre, aceita da nossa boca de pecadores o hino três vezes santo e

30
olha para nós na tua bondade. Perdoa-nos toda a falta voluntária e involuntária, santifica
as nossas almas e os nossos corpos, e dá-nos que possamos servir-te santamente todos os
dias da nossa vida...

É retomado o “Triságio,” o hino que recorda a exclamação dos Serafins da visão do profeta Isaí-
as: (Is. 4:3) “Deus santo, santo forte, santo imortal, tem piedade de nós.” É o embevecimento ao
qual se mistura um certo assombro diante do mistério insondável da realidade de Deus. “O co-
nhecimento sobre Deus leva a definições e a distinções. O conhecimento de Deus suscita uma só
palavra, incompreensível e todavia, evidente e inevitável: santo. Este termo permite-nos exprimir
que Deus é o Todo Outro, a respeito do qual nada sabemos, e, ao mesmo tempo, a satisfação da
nossa fome, de todos os nossos desejos, que ele é o inacessível que mobiliza a nossa vontade, o
tesouro misterioso que nos atrai” (Ibid. p. 18). Os Serafins — anjos — mencionados no decorrer des-
ta parte da liturgia, representam precisamente “este além glorioso e incompreensível do qual nós
apenas sabemos que ressoa incessantemente o louvor da glória e da santidade divinas” (Ibid. p. 18).
E o mistério da Igreja — do homem! — é poder, já a partir da terra, associar-se a este louvor in-
cessante.
Eis que se chegou ao altar, sinal da presença de Deus; toda a comunidade se encontra peran-
te o mistério. Também, pela primeira vez, o padre que até ao momento estava de costas para os
fiéis, para significar que é ele o seu guia e o seu representante, se volta agora para eles a fim de
lhes anunciar em nome de Cristo: “Paz a todos!” Esta “paz” é sinônimo de comunhão, de recon-
ciliação entre Deus e os homens, dos homens entre si, do homem consigo mesmo e com as coi-
sas. Assim o diz Nicolau Cabasilas (c. 1320-1370) no seu comentário da liturgia: “Dizendo
‘paz,’ (o padre) não quer dizer somente que nós tenhamos paz uns com os outros, evitando guar-
dar rancor, mas também a paz com nós mesmos, sabendo que o nosso coração não nos condena
mais. Grande é a utilidade desta paz; digamos até que nos é de uma necessidade absoluta. Porque
o espírito agitado não sabe de modo nenhum ter relações com Deus, precisamente por causa da
natureza da sua agitação. Tal como a paz estabelece a unidade entre a multidão, assim a agitação
faz do indivíduo uma multidão” (Nicolas Cabasillas, op. cit. p. 101-102). É na paz, na ausência de agitação,
por isso na disponibilidade, que a leitura do Evangelho vai ser feita, e que a palavra de Deus po-
derá verdadeiramente ser ouvida.
Esta leitura — que compreende a pregação — é, para os ortodoxos, um acontecimento de
que o próprio Deus é a origem última. Por outras palavras talvez mais técnicas: “A proclamação
da palavra é, por excelência, um ato sacramental (= ato que manifesta a acção de Deus) na medi-
da em que ela é um acto que transforma. Ela transforma as palavras humanas do Evangelho em
Palavra de Deus, em manifestação do seu Reino” (Alexander Schmemann, op. cit. p. 19). A leitura e a prega-
ção são pois um acontecimento através do qual Deus se revela realmente. Também integram e
interpelam a vida quotidiana dos ouvintes. Como diz o escritor russo Gogol (1809-1852) no seu
comentário ao culto ortodoxo: “(A palavra quer ser ouvida) por corações disponíveis que (Jesus)
compara a terra boa que produz muitos frutos... os corações daqueles que, depois de terem dei-
xado a igreja, põem aquilo que receberam em prática nas suas famílias, na sua vida profissional,
nos seus passatempos, nas suas conversas com os outros e nos seus momentos de solidão” (N. V.
Gogol: The Divine Liturgy of the Russian Orthodox Church, tra dução de R. Edmonds. Londres 1960, p. 25). Recebidos na paz do
coração, o pôr em questão e a palavra de Deus lidos e pregados, constituem o impulso para alas-
trar a vida da paz no conjunto da realidade humana. Eis porque a “liturgia da Palavra” termina
por uma nova série de orações de intercessão por todos os homens, e muito particularmente pelos

31
“catecúmenos,” isto é, por aqueles que se preparam para a sua decisão pessoal de entrar no mo-
vimento do Senhor.

Catecúmenos, orai ao Senhor. Fiéis, rezemos pelos catecúmenos. A fim de que o Senhor
lhes faça misericórdia. A fim de que Ele os instrua na palavra da verdade. A fim de que
Ele lhes revele o Evangelho da justiça. A fim de que Ele os una na sua santa Igreja católi-
ca e apostólica. Ó Senhor, pela tua presença, salva-os, tem misericórdia para com eles,
sustenta-os e guarda-os.

Era neste momento que na Igreja dos primeiros séculos os “catecúmenos,” aqueles que ainda se
não haviam decidido definitivamente por Cristo, deixavam a Igreja, pois começa agora a ação
cujo significado real só uma fé lúcida, advertida e profunda permite assimilar. “Saiam todos os
catecúmenos” dizia o diácono. “Catecúmenos, saiam! Saiam todos os catecúmenos. Que nenhum
dos catecúmenos fique aqui!” Esta ordem, que subsiste na liturgia ortodoxa, quer recordar hoje a
cada fiel que sempre e de novo ele precisa de ultrapassar o “estado de catecúmeno,” de indeciso,
de “agnóstico,” para fazer resolutamente confiança n’Aquele que o chama a ultrapassar-se a si
mesmo, a entrar na Sua presença. Pois agora vai realizar-se aquilo para o que caminha toda a li-
turgia e, com ela, a humanidade e o mundo: a santa Ceia, partilha do pão e do vinho, sinais e rea-
lização do objetivo e do fundamento de tudo o que existe. No decorrer de uma procissão solene,
o padre e o diácono, transportando o pão e o vinho, depois de terem deixado o altar por uma por-
ta lateral e passado pela multidão dos fiéis — fato significativo porque mostra bem que toda a
gente participa no movimento dos oficiantes, — fazem a sua “grande entrada,” aproximando-se
assim da mesa da comunhão através da porta “real.” Eis, com efeito, o primeiro significado da
Eucaristia: através deste pão e deste vinho — sinais do alimento que asseguram a vida — o ho-
mem oferece a sua própria vida a Deus, gesto que resume, por si só aquilo que faz a humanidade
do homem: a doação de si, o amor. “A verdadeira vida é ‘eucaristia,’ um movimento de amor e
de adoração para com Deus, único movimento que revela e realiza o significado e o valor de tudo
o que existe” (Alexander op. cit. p. 20). Eis a oração do ofertório:

Senhor Deus todo poderoso. Tu que és o único santo e que recebes o sacrifício de louvor
daqueles que te invocam de todo o coração... torna-nos dignos de te oferecer estes dons...
em espírito pelas nossas faltas por todas as faltas do povo, e concede-nos que encontre-
mos graça diante de ti, a fim de que o nosso sacrifício te seja agradável...

Esta oração e as que se lhe seguem termina com as palavras seguintes:

Pelas misericórdias do teu Filho único, com o qual Tu és abençoado, assim como o
teu-todo-santo, bom e vivificante Espírito, agora e sempre, e nos séculos dos séculos. Á
Amém.

Este ofertório — o dom de nós mesmos representado pelo pão e pelo vinho — ganha, com efeito,
o seu significado último na oferenda, o sacrifício que Jesus de Nazaré fez da sua própria vida.
Nós oferecemo-nos a nós mesmos, mas descobrimos, na Ceia, o limite das nossas boas inten-
ções: tudo já foi oferecido no mundo por Deus em Cristo. “(Na Ceia) nós apresentamos a oferen-
da das nossas vidas... levando a Deus aquilo que ele nos deu; ora, de cada vez, nós atingimos o
limite absoluto, o fim de toda a oferenda, de todo o sacrifício, de toda a santa Ceia porque, em

32
cada celebração, nos é revelado de novo que Cristo ofereceu tudo o que existe, que Ele próprio e
tudo o que existe foram oferecidos na oferenda de Si mesmo. A nossa oferta está incluída no sa-
crifício de Cristo que é oferenda nossa” (Ibid. p. 21). O pão e o vinho, sinais do nosso amor, sim,
mas na medida em que o nosso amor, o dom de nós mesmos, está incluído “envolvido,” no amor
do próprio Senhor.
O diácono: “Amemo-nos uns aos outros, a fim de que em uníssono possamos confessar:”
O coro: “O Pai, o Filho e o Espírito Santo, Trindade consubstancial e indivisível...” Os ofi-
ciantes dão-se o ósculo da paz dizendo: “Cristo está e estará no meio de nós.” Segue-se então a
profissão de fé cantada por toda a assembleia:

Creio em um só Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, das coisas visíveis e
invisíveis. E em um só Senhor, Jesus Cristo, o Filho único de Deus, nascido do Pai antes
de todos os séculos, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, que foi gerado, não
criado, consubstancial ao Pai e por quem todas as coisas foram feitas. Desceu dos céus
por nós, homens, e para nossa salvação. Encarnou do Espírito Santo e da Virgem Maria, e
fez-se homem. Foi crucificado por nós sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado. Res-
suscitou ao terceiro dia conforme as Escrituras e subiu aos céus. Está sentado à direita do
Pai, virá de novo glorioso para julgar os vivos e os mortos, e o seu reino não terá fim.
Creio também no Espírito Santo, o Senhor, o vivificador, que procede do Pai, que, com o
Pai e o Filho é conjuntamente adorado e glorificado e que falou pelos Profetas. Creio na
Igreja una, santa católica e apostólica. Confesso um só batismo para a remissão dos peca-
dos. Espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir.

Só depois de uma vez reconciliados uns com os outros — pelo ósculo da paz — é que os homens
podem confessar o que orienta a sua vida no mais profundo de si mesmos: a sua fé. Verdade e
amor são inseparáveis. Esta verdade não está na letra da formação dogmática, mas, sendo canta-
da, ela é da ordem do coração, da intuição profunda que engloba todo o ser humano. Confessar a
sua fé é, com o que se tem de mais íntimo — a sua afetividade — reconhecer que o movimento
de Deus se manifestou em Jesus de Nazaré, que a presença de Deus atual se vive no amor, que é
possível olhar o futuro com confiança, pois que ele é também da ordem de Deus. A realidade do
mundo e de Deus é total e homogênea: as outras — amor — o mistério de Deus e do mundo —
confissão de fé — são uma só e a mesma realidade.
“Corações ao alto,” exclama agora o padre; e a comunidade responde: “Nós os temos já vol-
tados para o Senhor.” O movimento de ascensão que começou no princípio da Liturgia vai atin-
gir o seu ponto culminante. A liturgia é “uma anáfora” (Ibid. p. 22) — termo grego que designa a a-
ção de “elevar” uma coisa, de a erguer para o alto; ela exprime a “ascensão” de todo o universo
para a sua natureza e para a razão de ser verdadeiras. Perante o mistério do sentido da vida, ape-
nas se torna possível a sua gratidão transbordante, o assombro jubiloso perante o último objecti-
vo da vida de cada um: é a oração da gratidão, “eucarística” — palavra grega eucharistein que
significa agradecer (Esta é a razão pela qual a santa Ceia — partilha do pão e do vinho — se chama “Eucaristi-
a”).

É digno e justo cantar-te, bendizer-te, louvar-te, dar-te graças e adorar-te em todo o lugar
dos teus domínios. Pois tu és um Deus inefável, incompreensível, invencível, inatingível,
existindo sempre, permanecendo o mesmo, tu e o teu Filho único e o teu Espírito Santo.
Trouxeste-nos do nada ao ser, perdoaste-nos depois da queda, e não deixarás de fazer tu-
do para nos conduzir a ti (literalmente: ao céu) e dar-nos o teu Reino que há de vir. Por

33
todas estas coisas nós te damos graças, a ti e ao teu Filho único e ao teu Espírito Santo,
por tudo o que nós sabemos e tudo o que não sabemos, por todos os benefícios que nos
concedeste, aqueles que conhecemos e aqueles que desconhecemos. Nós te damos graças
também por este serviço comum que te dignaste receber das nossas mãos, embora seja
assistido por milhares de anjos...

No auge da adoração, do louvor, do espanto perante aquilo que não pode ser descrito e, entretan-
to, constitui a vida, não resta senão o grito alegre que soltam todos os que encontram Deus:

Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos (celestes); o céu e a terra estão repletos da
tua glória. Hossana no mais alto dos céus! Bendito aquele que vem em nome do Senhor!
Hossana no mais alto dos céus!

Mas — e eis o que distingue a fé cristã de qualquer “religião” — “Deus” aparece-nos através da
figura totalmente humana de Jesus de Nazaré, através da sua vida, da sua alegria e dos seus so-
frimentos de homem. O mistério de Deus, do último perante o qual apenas se pode enfim calar e
guardar silêncio, este mistério é o que há de mais profundamente humano. Também a oração de
adoração conduz naturalmente a uma tomada de consciência da manifestação do Senhor através
do homem Jesus:

Tu és o inteiramente santo, e a tua glória é magnífica, tu que amaste tanto o mundo que
lhe deste o teu Filho único, a fim de que todo aquele que nele acreditar não pereça mas
tenha a vida verdadeira (literalmente: “eterna”). E ele, tendo vindo e cumprido toda a sua
missão por nós, na noite em que foi entregue, ou antes naquela em que ele mesmo se en-
tregou para a vida do inundo, tendo tomado o pão nas suas mãos santas, sem mancha, i-
maculadas, tendo dado graças, abençoou, santificou e partiu o pão, e deu-o aos seus san-
tos discípulos e apóstolos, dizendo: “Tomai, comei; isto é o meu corpo que é imolado por
vós, para a remissão dos pecados...” Da mesma forma tendo provado do cálice, disse:
“Bebei dele todos, isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, que é derramado por
vós e por um grande numero, em remissão dos pecados.

A oferenda que Cristo fez da sua vida ao mundo, sinal último do dom da vida com que Deus a-
nima cada homem e todo o universo, oferta no movimento da qual cada homem é chamado a en-
trar pessoalmente neste movimento divino em direção ao mundo que conduz à cruz do Gólgota,
para o crente ortodoxo, o pão e o vinho representam-no realmente. A peregrinação que é a litur-
gia chegou ao fim: “O objectivo deste movimento de ascensão... é a nossa participação no mundo
que há de vir... (Ora, agora) nós estamos reunidos em redor da mesa... do Reino” (Ibid. p. 27). Mas,
na medida em que este mundo nos aparece através do pão e do vinho vulgares — como’? ne-
nhum raciocínio filosófico o poderá explicar, julgam os teólogos ortodoxos, pois que isso depen-
de de Deus, — “não se trata dum ‘outro’ mundo, diferente daquele que Deus criou e que nos deu.
Foi este mundo já realizado em Cristo mas ainda não em nós” (Ibid. p. 27-28). Por isso nós devemos,
principalmente através da Eucaristia, penetrar por nossa vez até mais profundo da realidade de
nós mesmos e do mundo, até Deus, sua realização, sua finalidade e seu limite.
Também agora é uma oração fervorosa que os fiéis fazem subir até Deus, para lhe pedir que
seja ele mesmo o único agente que, por sua intervenção neles e através do pão e do vinho, lhes
há de permitir o acesso à “realização” pessoal da dimensão divina do real:

34
Nós te oferecemos ainda esta adoração espiritual..., e te invocamos, nós te pedimos, nós
te suplicamos que envies o teu Espírito Santo sobre nós e sobre as dádivas que aqui estão
postas.

O Espírito Santo — Deus presente agora, “que sempre nos impulsiona para além” ( Ibid. p. 29) —
“transforma” indistintamente a nossa pessoa e o pão e o vinho, sendo Deus vivido já se viu, co-
mo uma realidade englobante, sintetizante, em presença da qual qualquer distinção entre o obje-
tivo — aqui o pão e o vinho — e o subjetivo — os fiéis — pareceria artificial. Invoca-se o Se-
nhor para que opere agora a manifestação da sua presença — em nós e através do pão e do vinho
— e eis porque toda a Igreja e todo o universo aparecem ao mesmo tempo à consciência dos
crentes. Seguem-se aqui orações de intercessão as quais — expressão do sentido de solidariedade
com toda a criatura — constituem a condição única que permite que a Ceia seja vivida. “A Igreja
não é uma sociedade encarregada de organizar a fuga individual e colectiva fora do mundo com
vista a sabores místicos de uma eternidade qualquer. A Ceia não é uma ‘experiência mística’: nós
bebemos do cálice de Cristo que se deu pela vida do mundo” (Ibid) De onde estas orações escolhi-
das entre outras:

Nós te oferecemos este culto em espírito por todo o universo, pela santa Igreja católica e
apostólica, por todos os que vivem na castidade e na santidade, pela nossa pátria e pelos
que a governam, a fim de que, também nós, tenhamos uma vida calma e tranquila, em in-
teira piedade e honestidade... Senhor, lembra-te dos navegantes, dos doentes, dos que so-
frem, dos prisioneiros e da sua salvação... Envia sobre nós todas as tuas misericórdias.

E o conjunto destas orações termina pelo Pai-Nosso, a oração do próprio Cristo, o que indica que
só a humanização de Deus em Cristo nos permite entrar na presença do Inefável. “Ninguém é
‘digno’ de receber a comunhão, ninguém está verdadeiramente ‘preparado’ para comungar. A-
qui, a própria justiça e toda a piedade desaparecem, dissolvem-se. A vida uma vez mais nos é
dada como um dom livre e divino” (Ibid). Sim, solidário com todos os homens e com todas as cria-
turas e convencido de que a sua própria vida, em todos os seus aspectos e particularmente a sua
profundeza divina, é sempre um dom: é assim que o crente ortodoxo é chamado a transpor o li-
mite do possível, comungando do pão e do vinho da Eucaristia.
Para manifestar a dialética interna do mistério de Deus incognoscível e no entanto manifes-
tado em Cristo, a mesa da comunhão desaparece de novo da vista dos fiéis por detrás da porta
“real” que se fecha outra vez, e isto enquanto os oficiantes — padre e diácono — repartem o pão
e o vinho e os consomem. Um círio aceso e colocado diante da iconóstase recorda neste momen-
to os fiéis que eles são semelhantes às “virgens prudentes” da parábola de Jesus (Mt. 25:1-13) que
souberam esperar o esposo, isto é, que se prepararam interiormente para a vinda de Deus. Depois
“a porta abre-se de par em par, em silêncio, símbolo do anjo... rolando a pedra do sepulcro” (Paul
evdokimov, op. cit, p. 189) Tendo nas mãos o cálice no qual se encontram o pão e o vinho, o padre apare-
ce diante dos fiéis prostrados. É a alegria da vida dada e recebida que esplende então. Como diz
Evdokimov com o seu lirismo muito ortodoxo: “É a chegada de Cristo ressuscitado que vem ofe-
recer a vida imortal. O túmulo, a morte, as portas do inferno quebraram-se. A aurora da ressur-
reição inunda com a sua claridade sem ocaso tudo em redor” (Ibid). Todos são chamados então a
“comungar” , as crianças como os velhos, os jovens como os adultos, os brancos como os pretos,
os ricos como os pobres, porque todos são chamados a descobrir a sua vida, quaisquer que sejam

35
o grau da sua consciência intelectual, o seu nível social ou a sua origem. E enquanto os fiéis co-
mungam, o coro canta muito suavemente, mas com uma alegria profunda, esta oração a que cada
um se associa pessoalmente:

O Filho de Deus, torna-me hoje participante do mistério da Ceia. Porque eu não desven-
darei os teus mistérios aos teus inimigos nem te darei um beijo como o fez Judas; como o
ladrão (crucificado ao lado de Jesus) eu te digo: ‘Lembra-te de mim Senhor. no teu reino.

Sentido do mistério, desejo de não trair a verdade vital assimilada, atitude realista a respeito das
suas próprias possibilidades — não se é melhor do que um “ladrão:” tais são as únicas atitudes
possíveis neste momento. E, depois da comunhão, este grito de alegria:

Nós vimos a verdadeira luz, nós recebemos o Espírito, nós encontrámos a verdadeira fé,
adorando a inacessível Trindade, porque foi ela que nos salvou.

Adoração e silêncio perante o Indescritível.


Depois? Pois bem, depois, o culto termina muito rapidamente, porque atingiu a sua finali-
dade: realizar a presença de Deus no mundo, presença que anima cada homem que aceita entrar
neste movimento. Como diz Cabasilas: “Recebe-se (o pão e o vinho) em último lugar, porque
não se pode ir mais longe nem acrescentar mais nada” (Cit. ibid. p. 191). Cada qual vai voltar a sua
casa, ao seu domicílio ao seu trabalho, aos seus amigos, aos seus passatempos. Uma vez mais,
mas agora tendo recebido a força de ir alegremente e com confiança, há uma lembrança de todos
na oração de intercessão:

Dá a paz ao mundo que é teu, às tuas Igrejas, aos padres e a todo o teu povo, pois todo o
dom excelente e toda a graça perfeita vêm... de ti, Pai das luzes, e a ti nós damos glória,
ação de graças e adoração, Pai, Filho e Espírito Santo, agora e sempre e nos séculos dos
séculos.

É enquanto portadores do amor, da paz e da força recebidos durante a liturgia que os fiéis vão
fazer penetrar no mundo, através da sua vida e das suas palavras, no tempo e no espaço, o dina-
mismo de Deus manifestado particularmente no decorrer do “drama” do culto. “Deus tornou-nos
competentes, escreve o padre Schmemann, competentes para sermos suas testemunhas, para
cumprirmos o que ele mesmo já fez e fará sempre” (Alexander Schmemann, op. cit. p. 30). O padre dá então a
bênção, isto é, a segurança concedida a cada um que poderá viver em Deus na vida quotidiana
junto de todos aqueles com quem se cruza e encontra; ele envia-o para o mundo.

Ide em paz, que a bênção do Senhor e a sua misericórdia desçam sobre vós pela sua graça
e pelo seu amor para com todos os homens, em todos os tempos, agora e sempre e nos sé-
culos dos séculos. Amém.

“É bom, assim seja,” responde a assembleia, atestando desta forma que cada um tem a certeza de
ser, daqui para diante, orientado e guiado por uma realidade que o ultrapassa infinitamente, mas
que lhe permite viver realmente e humanamente.
A Liturgia ortodoxa constitui pois verdadeiramente o revelador e o revelado da visão homo-
gênea do homem e do universo, no espaço e no tempo, tal como nós os descrevemos rapidamente

36
no princípio deste capítulo, do seu movimento comum ainda que diferenciado para “Deus,” ao
mesmo tempo fim que os ultrapassa infinitamente, origem e animador do seu dinamismo. En-
quanto tal, o conjunto do culto é um movimento, que vai do momento em que o fiel deixa a sua
casa até à contemplação e à assimilação da própria presença do Inefável. Eis por que cada parti-
cipante opera uma dupla tomada de consciência, a da sua própria pessoa e a da realidade indisso-
lúvel dos outros e do mundo. Ele descobre-se a si mesmo na sua fraqueza intrínseca, no seu “pe-
cado” , no seu egocentrismo e inautenticidade frente aos outros, na sua máscara e nas suas negli-
gências — daí os numerosos “Senhor, tem piedade de nós” que pontuam a liturgia no desenrolar
da sua ação. Mas ele descobre-se também na sua dignidade de pessoa que Deus toma a sério,
descobre que tem o direito e o dever de ser ele mesmo — é o “perdão” e a “vida nova,” de que
realiza o alcance durante o culto. Enfim, descobre, através do pão e do vinho, manifestações in-
descritíveis da presença de Deus que ele consome realmente, que se torna ele próprio habitação
do divino, que ele leva em si próprio o sentido último da sua existência, sentido e fundamento
que é chamado a explicitar sempre melhor para si mesmo, na oração e na meditação. Paralela-
mente, toma consciência de que não é um isolado, que só a comunidade com os outros — a Igre-
ja — lhe permite viver este itinerário, que cada próximo está também ele revestido de uma dig-
nidade, de um valor inalterável, que cada próximo é um ser único, porque, também ele, portador
de “Deus,” “à imagem de Deus” — cada etapa da peregrinação da liturgia é com efeito marcada
pela oração de intercessão, expressão profunda do amor que deverá ser vivido concretamente na
entreajuda entre pessoas e sociedades. O fiel ortodoxo, toma consciência, ainda, que os objetos
inanimados — como o pão e o vinho! — estão também eles integrados na presença de Deus, na
sua beleza, na sua “densidade” intrínseca sendo o reflexo da sua dignidade o serem criação de
Deus. Tomada de consciência de si, tomada de consciência dos outros e do mundo, o culto con-
duz à contemplação por assim dizer silenciosa do Senhor que é a sua realidade última. Esta con-
templação só é real na medida em que o Senhor está efetivamente presente — é o mistério “esca-
tológico” da Liturgia, a representação real da encarnação de Deus em Cristo, no pão e no vinho.
Foi transposto o limite do criado; o Senhor está lá; nada mais é possível senão calar-se e adorar.
De tudo isto — descoberta de si, dos outros, do mundo, do Senhor que sobretudo na liturgia se
revela através de si, dos outros, do mundo e finalmente no face a face que antecipa o Reino — de
tudo isto nada mais pode decorrer, para aquele que “compreendeu” senão o desejo de se inserir,
após o culto, no movimento cósmico de Deus que nele entreviu, no desejo de o aprofundar em si
mesmo e de o ampliar fora de si. E o anúncio de um estilo de vida cristã em todos os meios da
vida: silêncio pesado da oração perante o mistério maravilhoso da pessoa humana e do universo
e, estando-lhe indissoluvelmente ligado, amor vivido nos atos, amor animador de todo o desen-
volvimento pessoal, cultural, social, econômico e político, na comunidade local e no conjunto
das nações.

Os ícones
Um dos aspectos particulares do culto ortodoxo — que neste ponto se distingue nitidamente
do culto das outras Igrejas — é a presença dos ícones, imagens sagradas, colocadas constante-
mente diante dos olhos dos fiéis. Representando Cristo na glória rodeado pela Igreja e pelo mun-
do, quer dizer a presença de Deus no seio da realidade cósmica orientada para a sua realização,
os ícones que figuram sobre a “iconóstase” — este fundo que separa a mesa da comunhão da na-
ve — exprimem de uma forma visual a peregrinação vivida no decorrer da liturgia. “O ícone
transmite o conteúdo da Sagrada Escritura não sob a forma de um ensino teórico, mas de maneira

37
litúrgica, isto é, de um modo vivo, dirigindo-se a todas as faculdades do homem. Transmite a
verdade contida na Escritura à luz de toda a experiência espiritual da Igreja, da sua tradição. Por
outras palavras, corresponde à Escritura, da mesma maneira que lhe correspondem os textos li-
túrgicos. Com efeito, estes textos não se limitam a reproduzir a Escritura tal qual: são como que
tecidos dela; o ícone, representando visivelmente diversos momentos da história sagrada, trans-
mite de forma visível o seu sentido e o seu significado vital; eis por que a unidade da imagem
litúrgica e da palavra litúrgica tem uma importância capital, porque estes dois modos de expres-
são constituem uma espécie de controle de um sobre o outro; vivem a mesma vida e têm no culto
uma ação construtiva comum” (Léonide Ouspensky: Essai sur Ia Théologie de 1’lcône dans 1’Église orthodoxe. Paris, 1960. p.
164-165). Pela palavra e pela imagem, sendo complementares, estas duas formas de expressão, o
último fundamento e fim do homem e de todas as coisas, manifesta-se no culto, sendo ainda um
índice da visão homogênea do homem e das coisas na fé ortodoxa esta recusa de se separar “o
ouvido” do “visto.” Para citar ainda Ouspensky, especialista russo contemporâneo da teologia
dos ícones: “Tal como o próprio culto, o ícone é uma revelação da eternidade no tempo” (Ibid. p.
197). Eis a razão por que ele choca muitas vezes pelo seu carácter estranho, pelas suas formas con-
trárias à lógica e ao bom senso. “Da mesma forma que a pregação evangélica é loucura para a
sabedoria do mundo, o ícone que lhe corresponde é loucura e escandaliza o olhar dito ‘normal’,
para quem o estado imperfeito do mundo parece justamente normal (Ibid. p. 225). A presença do íco-
ne no culto, a sua contemplação e veneração pelos fiéis decorre pois, para os ortodoxos, dá pró-
pria natureza da liturgia que é uma tomada de consciência, uma realização (no sentido subjectivo
e objectivo do termo) do movimento de Deus para e no homem e no mundo. Como diz S. Basílio
(329-379): “O que a palavra transmite pelo ouvido, a imagem representa-o silenciosamente; a-
través de uma e de outra, que são inseparáveis, nós conhecemos o único e mesmo mistério” (Ser-
mon 19 “sobre os 40 mártires” Patrologie grecque de Migne, vol. 31, coluna 509 A (de futuro as referências destes textos tirados desta obra serão
abreviadas, tomando como exemplo da referência seguinte: PG 31, col 509A)).
A veneração dos ícones está fundada, aos olhos dos ortodoxos, sobre a certeza da encarna-
ção de Deus no homem Jesus de Nazaré. Na medida em que o Inefável se revela através do hu-
mano, é possível representá-lo visivelmente. Como diz o Sétimo Concílio (787) — que devia re-
afirmar o papel proeminente da imagem sagrada, depois da época “iconoclasta” (“destruidora de
imagens”) que o procedeu — “o ícone tende a provar a Encarnação verdadeira e não ilusória de
Deus, o Verbo” (Citada por Léonide Ouspensky, op. cit. p. 162). Já o concílio precedente o havia afirmado: “Pe-
lo ícone nós somos levados a recordar que (Deus) habitou na carne, a sua paixão, a sua morte
salvadora, e, por isso mesmo, a libertação que daí resulta para o mundo” (Cit. ibid. p. 113). Ou ainda,
para retomar as palavras de João Damasceno (670-c. 750): Deus que não tem corpo nem forma;
nunca dantes fora representado de qualquer maneira. Mas agora que ele veio em carne e habitou
entre os homens, eu represento o aspecto visível de Deus” (PG 94, col. 1245). É isso que legitima não
só os ícones de Cristo, mas ainda as representações iconográficas de Maria e dos Santos: reflec-
tem todos, por causa da encarnação, a possibilidade oferecida ao homem de aceder à sua verda-
deira natureza: a comunhão íntima com Deus. Maria, a “Virgem” é a imagem mesma da huma-
nidade que consente na ação divina; também o seu ícone se reveste de importância particular.
Dos “santos” emana a irradiação do homem “deificado,” isto é, plenamente entrado no movi-
mento divino. É daí que vem a “beleza” do ícone: “No plano da criação humana, a beleza é uma
perfeição concedida por Deus; ela é o índice de que a imagem corresponde ao seu modelo... a
presença do Espírito (de Deus no homem. A beleza do ícone é a beleza da semelhança com Deus
que ele representa” (Léonide Ouspensky e Vladimir Lossky: Der Sinn der lkonen. Berna, 1952, p. 36). Na seqüência da en-
carnação de Deus em Jesus, qualquer homem é chamado a transfigurar-se no divino, a reencon-
trar a sua identidade profunda de criatura de Deus. Assim o resume um autor ortodoxo contem-

38
porâneo: “O novo rosto da criatura renovada reencontramo-lo nas figuras dos santos, e aí reside...
o sentido oculto da arte do ícone; não se trata de um retrato; é a transfiguração espiritual da cria-
tura que ele tenta evocar” (Nicolas Arseniev, op. cit. p. 40). Tal é portanto o objetivo da pintura dos ícones:
“Indicar a participação do homem na vida divina” (Léonide Ouspensky: Essai sur Ia Théologie de l’Icóne dans l’Eglise
ortho doxe, Paris, 1960. p. 194).
Compreender-se-á porque é que o ícone não é uma obra de arte “vulgar.” Como diz o padre
Bulgakoff: “A pintura dos ícones testemunha muito para além dos seus aspetos; não demonstra,
mostra. Não obriga nunca pela força das provas: convence e vence pela própria evidência. [Da
mesma forma] a pintura de ícones não admite sensualidade nas imagens; estas ficam formais,
abstractas, esquemáticas; elas consistem apenas em formas e cores. Uma tal pintura quer dar a
efígie e de modo nenhum o rosto. É estranha ao impressionismo, mas aproxima-se da arte deco-
rativa de formas nítidas e de cores precisas. Também o ícone não conhece terceira dimensão; não
tem profundidade, mas contenta-se... com uma representação plana e com uma perspectiva inver-
sa, o que exclui a sensualidade e conduz à predominância das formas, e das cores e do seu sim-
bolismo” (Serge Bulgakoff, op. cit. p. 200-201). Tudo na atitude e na expressão da personagem representada
indica a realidade última de que ela participa, a paz, o amor, a exigência do mesmo Deus. Um
certo hieratismo aparentemente rígido destas imagens indica que, para o cristão oriental, “a rigi-
dez é uma atitude que permite habituar-se a ritmos uniformes e regulares, e isso a fim de tomar
consciência dos laços invisíveis pelos quais o invisível imprime o seu movimento ao visível” (Ru-
dolf Biach, op. cit. p. 97). Esta “imobilidade móvel” do homem que encontrou a sua paz, a sua razão de
ser, reencontra-se na maneira como são tratados não somente o rosto e a atitude, mas também as
vestes — que se tornam de algum modo a imagem da sua veste de glória, da veste da “incorrup-
tibilidade” (Léonide Ouspensky, op. cit. p. 217) — e a sua maneira de “olhar” a direito e para diante. “A or-
dem interior do homem representada no ícone está naturalmente reflectida na sua atitude e nos
seus movimentos: os santos não gesticulam; eles estão perante a face de Deus em oração e cada
um dos seus movimentos e a própria atitude do corpo revestem um carácter sacramental isto é
‘que transmite o divino,’ hierático. Geralmente, estão de frente para o espectador, ou então a três
quartos... O santo está presente diante de nós, e não em qualquer lugar no espaço. Dirigindo-lhe a
nossa oração, nós devemos vê-lo face a face, conversar com ele. Está aí sem dúvida a razão pela
qual nunca se representam os santos de perfil... O perfil interrompe, de algum modo, o contato
direto; é como que um princípio de ausência...” (Ibid. p. 218) Este estilo particular encontra-se nas
representações do mundo e dos animais que figuram muitas vezes nos ícones — coisa natural,
uma vez que, como já se viu, o conjunto da criação é chamado a partilhar do movimento do ho-
mem para Deus. “O mundo que rodeia o homem — portador e anunciador da revelação divina —
torna-se aqui uma imagem do mundo que há de vir, transfigurado, renovado: tudo perde o seu
aspecto habitual de desordem, tudo adquire uma ordem harmoniosa, os homens, a paisagem, os
animais, a arquitectura. Tudo o que rodeia o santo se sujeita com ele, a uma ordem rítmica, tudo
reflete a presença divina, aproximando-se — e aproximando-nos — de Deus. A terra, o mundo
vegetal, o mundo animal, são representados no ícone, não para nos aproximar do que vemos to-
dos os dias à nossa volta, isto é, do mundo decaído no seu estado corruptível — do mundo tal
como ele aparece ao nosso olhar superficial (Nota do autor) — mas para nos mostrar a participação
desse mundo na deificação do homem O ícone não é, pois, descritivo do mundo, à maneira de
uma fotografia, mas revelador da realidade última, da finalidade assinalada por Deus a todo o
cosmos: a harmonia das partes com o todo e entre si. Isto pode implicar precisamente uma certa
contradição entre a imagem do ícone e a da fotografia, paradoxo que se encontra principalmente
na maneira adotada por certos iconógrafos de tratarem a perspectiva: no ícone da Trindade de

39
Rublev, por exemplo, os pontos de fuga encontram-se ao mesmo tempo por diante e por detrás
da imagem, paradoxo que significa que o mundo, em Deus, entrou realmente numa quarta di-
mensão. E o espectador do ícone é ele mesmo chamado à entrar nesta dimensão. “O ponto de
partida da perspectiva [do ícone] não se encontra na profundidade ilusória da imagem que procu-
raria reproduzir o espaço visível, mas diante da imagem, no próprio espectador” (Ibid. p. 222). É
também a razão do caráter ilógico dos elementos de arquitectura representados no ícone. Com
efeito, “os elementos arquiteturais constituem o único elemento que permite indicar claramente
que a ação relatada pelo ícone se desenrola para lá dos limites da lógica humana ou da existência
empírica” (Léonide Ouspensky e Vladimir LOSSKY: Der Sinn der lkonen, Berna, 1952, p. 42). Numa palavra, o ícone refle-
te o mundo que há de vir ou, como se queira, o mundo actual no seu movimento para o fim, na
sua profundidade escatológica. “Os ícones revelam a santidade futura do mundo, a sua transfigu-
ração. Constituem, por assim dizer, esboços do futuro no qual cada um é chamado a entrar desde
agora” (Ibid. p. 45). Também o ícone — é verdadeiramente uma conseqüência — é, para o crente
ortodoxo, a única representação verdadeiramente realista, isto é, que tem em conta todas as di-
mensões do real — Deus, os homens, o mundo, o tempo e o espectador do ícone. Além disso, “o
ícone não procura de forma alguma criar uma ilusão do objeto que representa, ao representá-lo
‘como se fosse verdadeiro.’ Sendo por sua própria natureza uma imagem, é o contrário da ilusão.
Olhando-o, nós não sabemos apenas, mas vemos claramente que não estamos diante do próprio
objeto, mas perante a sua imagem” (Léonide Ouspensky: Essai sur Ia Théologie de FIcône dans l’Église orthodoxe. Paris,
1960, p. 222). O ícone: uma imagem que envia para lá de si mesma, para a natureza e o movimento
real dos homens e das coisas.
Nestas condições, não surpreende que o pintor de ícones não possa dar livre curso à sua ins-
piração subjetiva, mas que seja chamado a inserir-se na tradição iconográfica da Igreja. A cada
tipo de ícone — de Cristo, de Maria, dos Santos — corresponde um modelo o mais das vezes
consignado numa compilação particular, e cuja origem pode remontar à época bizantina, mais
recuado até” (Segundo a lenda, o primeiro ícone seria o de Cristo preservado miraculosa mente sobre o lençol que limpou o rosto do Cruci-
ficado; cj. ibid. 9. 59 ss). Estas compilações prescrevem a atitude das personagens e as cores da imagem
que o pintor vai realizar na plena consciência do caráter “sagrado” do seu trabalho, depois de se
ter preparado para ele por meio de jejuns e orações. Deste modo, o papel do pintor está muito
próximo do padre. “Da mesma forma que o padre, nota Ouspensky, não tem o direito de modifi-
car a seu bel prazer o texto litúrgico nem de impor aos fiéis, por uma entoação particular, o seu
ponto de vista pessoal, também o pintor de ícones deve respeitar escrupulosamente o modelo a-
ceite pela Igreja, sem lhe misturar elementos subjectivos. Ele coloca todos os fiéis perante a
mesma realidade, e deixa a cada um a liberdade de sentir aquela em função das suas possibilida-
des, do seu caráter, das suas necessidades e da sua situação pessoais” (Léonide Ouspensky e Vladimir Lossky:
Der Sinn der Ikonen. Berna, 1952, p. 45). Mas esta “abdicação da personalidade” é, para o pintor, mais apa-
rente do que real pois que, pintando a manifestação do Inefável no homem, ele atinge por esse
fato o centro e a finalidade da sua própria pessoa. “Assim como o padre, prossegue o mesmo au-
tor, celebra a liturgia pelo meio dos seus talentos e do seu carácter pessoal, também o pintor de
ícones reproduz a imagem em função do seu carácter, do seu talento e da sua habilidade técnica.”
Em nenhum caso a iconografia é um trabalho de copista. Ela não é impessoal, pois que seguir a
tradição não limita as inspirações criadoras do artista, cuja particularidade aparecerá sempre a-
través da composição, da cor e do traço do desenho. Há muito tempo que se reconheceu que não
havia ícones absolutamente semelhantes... Os ícones não são cópias, mas repetições, isto é, in-
terpretações livres e criadoras (Ibid). É nesta fidelidade criadora à verdade reconhecida pela intui-
ção da Igreja que reside o critério da autenticidade espiritual de um ícone. “O critério da autenti-

40
cidade deve ser, para o ícone, o mesmo que para os textos sagrados ou para a poesia litúrgica: a
da correspondência do ícone à tradição da Igreja, ao seu espírito e ao seu sentido” (Léonide
OUSPENSKY: Essai sur Ia Théologie de l’Icône dans FÉglise ortodoxe, Paris, 1960, p. 166). Sendo a tradição, conforme vi-
mos, a expressão humana da fidelidade dinâmica de Deus, o pintor de ícones, verdadeiro servi-
dor, “ministro” da Igreja, está ele próprio inserido neste movimento; à sua maneira e através da
sua arte, ele faz aparecer a razão de ser dos homens e das coisas e, ao mesmo tempo, realiza até
ao fim das suas próprias possibilidades criadoras (No decorrer dos séculos XVII-XIX, sob a influência da
pintura ocidental, a arte iconográfica russa e grega sofreu uma deformação progressiva para o naturalismo e o estilo
Saint-Sulpice. Se numerosas igrejas ortodoxas contemporâneas contêm ainda imagens deste tipo, que, aos olhos de
certos ortodoxos, só dificilmente merecem que sejam chamadas “ícones,” assiste-se presentemente a um renasci-
mento vigoroso do estilo iconográfico tradicional, tanto na Grécia (na esteira do pintor Kontoglu), como na diáspora
russa (iconóstase da capela do seminário de S. Vladimir em Nova Iorque, por exemplo)).
Na medida em que o ícone é pois uma imagem, a veneração que o fiel lhe presta, cobrindo-a
de beijos, incensando-a no momento do culto, benzendo-se diante dela, a veneração dirige-se,
não à imagem como tal, mas à realidade que ela significa. “O ortodoxo reza diante do ícone de
Cristo, escreve o padre Bulgakoff, como diante do próprio Cristo; mas o ícone, o lugar desta pre-
sença, não passa de uma coisa e não se corre o risco de a tornar num ídolo ou num feitiço” (Serge
Bulgakoff, op. cit. p. 196). Há com certeza uma ligação entre a imagem e o que ela representa, análoga à
ligação entre a palavra e o que ela significa; mas, tal como o crente não adora as Santas Escritu-
ras mas sim o Senhor de quem elas manifestam a ação no mundo, assim, venerando o ícone, ele
adora o divino, em Cristo, ou no santo que ele faz aparecer e só a ele. Como o afirma claramente
o Sétimo Concílio, tomando as palavras de S. Basílio: “A honra prestada ao ícone dirige-se ao
seu protótipo (= modelo), e aquele que venera o ícone venera a pessoa daquele que ele representa
(Citado por Léonide Ouspensky, op. cit. p. 167). “Venerar o ícone” é portanto, no mais profundo de si mesmo,
sentir-se posto em questão e interpelado pela severidade, pela paz e pela misericórdia por assim
dizer “divinas,” que se desprendem da imagem e que elevam o coração daquele que a contempla
para as próprias origens e último significado: Deus. Um viajante do Monte Atos relata o efeito
que os ícones exercem sobre os monges que os contemplam: “Os velhos monges dizem que eles
veneram a imagem de Jesus Cristo typikôs. Este advérbio grego deriva’ da expressão typos, que
designa a cunhagem da moeda. Dizendo que veneram a imagem de Cristo typikôs, os monges
indicam que, contemplando o ícone, eles esperam sentir a marca do divino, de forma a serem
transformados interiormente para serem capazes de reconciliar no mundo, ao serviço do Senhor,
tudo o que parecer irreconciliável” (Rudolf Biach, op. cit. p. 101).
Abertura sobre Deus, o ícone, como a liturgia, é por isso abertura ao mundo; a sua venera-
ção é uma preparação ao empenhamento no concreto da vida diária. “O conteúdo do ícone é...
uma verdadeira direção espiritual da vida cristã e em particular da oração: o ícone mostra-nos a
atitude que devemos tomar na oração por um lado para com Deus e, por outro, frente ao mundo
que nos rodeia... O ícone é, por conseguinte, ao mesmo tempo, caminho a seguir e meio; é ele
mesmo oração... O seu objetivo é orientar para a transfiguração todos os nossos sentimentos, da
mesma forma que a nossa inteligência e todos os outros aspectos da nossa natureza... Como no
Evangelho, todo este volume de ações, de pensamentos, de conhecimentos, de sentimentos hu-
manos está representado [pelo ícone] no seu contato com o mundo divino, e este contato purifica
tudo e consome o que não pode ser purificado. [Principalmente na contemplação do ícone], cada
manifestação da natureza humana, cada fenômeno da nossa vidra ilumina-se, esclarece-se, adqui-
re o seu verdadeiro sentido e o seu lugar” (Léonide Ouspensky, op. cit. p. 210-21 I). Eis a razão pela qual, para
se lembrar sempre novamente das implicações “profanas” quotidianas, do movimento significa-
do pelo ícone, o crente ortodoxo coloca ícones na sua casa e no seu lugar de trabalho.

41
Notemos entretanto que, ao nível da piedade popular, a veneração do ícone não é sempre tão
lúcida tal como aparece através dos testemunhos destes eminentes teólogos ortodoxos. Muitas
vezes, o fervor popular atribui a tal ícone particular o poder de operar milagres e prodígios, tal
como se depreende desta cena da veneração do célebre ícone de Nossa Senhora de Tikhvine, no
decorrer do último século: .”..Saiu a nossa Mãe Santíssima da Igreja, os padres saudaram-se pro-
fundamente, despedindo-se uns dos outros à porta do convento, e o povo encarregou-se de levar
o ícone. Todos estavam animados de um só sentimento... e o povo que chega sem cessar, sempre
aos milhares, de todas as aldeias e vilas. À entrada de cada aldeia o clero vinha ao seu encontro
com pendões tremulando ao vento e levaram-na à igreja. Erguiam-na bem alto, a nossa santíssi-
ma, por cima das multidões e ela flamejava ao sol como um fogo... Os cânticos não paravam um
só momento, nem de dia nem de noite. Uma imensa multidão caminha e canta. E tudo se encon-
tra em abundância, como por milagre. Quem deu de comer e de beber a todo este povo? Foi ela,
a rainha de misericórdia... De todos estes pobres vagabundos, desempregados de que havia tantos
nos caminhos, nem um só ficou. Todos encontraram alimento, trabalho, um abrigo, graças à Vir-
gem Santa” (Gleb Ouspensky, citado por Nicolas Arseniev, op. cit. p. 80). Mas seria falso, como não ortodoxos, fazer
muito rapidamente um juízo negativo sobre estes fenômenos religiosos, os quais, ainda que bem
pareçam, à primeira vista, porem mais em relevo o que há de superstição do que de fé, não são
menos, aos olhos dos teólogos ortodoxos muito avisados, “um ponto de encontro para a alma po-
pular com o mundo das realidades divinas, o lugar onde a proximidade da graça condescenden-
te,e misericordiosa se torna, por assim dizer, palpável” (Ibid). Contemplação lúcida mas também
entusiasmo popular para com determinado ícone particular: a veneração do ícone, vivida diferen-
temente segundo o caráter de cada um, é de toda a maneira oração diante dos “símbolos que, ele-
vam o olhar ao nível da invisível presença” (Paul Evdokimov: Les Âges de Ia Vie spirituelle, Paris, 1964, p. 178).
Os diferentes ícones estão colocados sobre a iconóstase da igreja segundo uma ordem defi-
nida que obedece a uma lógica espiritual precisa. Da direita para a esquerda, para quem olha a
partir da nave, encontrar-se-á sempre sucessivamente o ícone de um anjo (sobre a porta lateral
esquerda); o de Maria com o menino; a porta “real” sobre a qual figuram os ícones dos quatro
evangelistas; o de Cristo como juiz universal; enfim, o ícone de um outro anjo (sobre a porta la-
teral direita). Por si só, esta série resume o conjunto do movimento vivido na liturgia, revelando
ele mesmo o movimento profundo do mundo: a passagem da presença de Deus escondida no
homem e na matéria — Maria e Menino nos braços, ícone da encarnação de Deus — para a ma-
nifestação clara de Deus num futuro para o qual o mundo se encaminha — o ícone de Cristo “na
glória” — em que Deus será tudo em todos. Entre os dois, a porta real que dá acesso à mesa da
comunhão figura o instante presente de que a Eucaristia revela a dimensão última: enraizado no
concreto — o “passado” — de Deus tornado realmente homem em Jesus de Nazaré, o presente é
movimento para a sua realização última em cada homem e em toda a criação. As iconóstases
mais elaboradas desenvolvem ainda esta “visualização” da “liturgia cósmica (Esta expressão de Má-
ximo,o Confessor, indica que a liturgia na igreja é precisamente o revelador do movimento de todo o cosmos),
compreendendo quatro séries de ícones colocados por cima dos ícones principais referidos, séries
pintando respectivamente, de baixo para cima, a “Déesis” (“oração”) dirigida a Cristo por João
Baptista, figura do Antigo Testamento, e por Maria, figura da Igreja; as diferentes festas do ano
litúrgico (Natal, Sexta-Feira Santa, Páscoa, etc); os profetas do Antigo Testamento; os Padres da
Igreja. Estes ícones sublinham a dimensão comunitária, no tempo e no espaço, da participação
em Deus que, impedindo o homem de se fechar no seu individualismo, liga-o a todas as gera-
ções, passadas e futuras.

42
Entre todos estes tipos de ícones, há um que é particularmente significativo para o nosso
propósito: o ícone do nascimento de Jesus de Nazaré que figura na série das festas litúrgicas. O
conjunto desprende logo uma impressão de harmonia das partes com o todo, harmonia que não é
nem estática nem agitada, poderia dizer-se: de paz dinâmica. O todo banhado de uma luz “sobre-
natural” — não há sombras — indicando que a realidade representada participa num mistério que
não pode ser descrito com a ajuda das palavras e das formas da experiência natural corrente.
Quase todas as personagens refletem, cada uma à sua maneira, uma espécie de espanto admirati-
vo, de expectativa encantada perante o extraordinário. E este mistério está representado no centro
do ícone: um menino nasceu; sua mãe, fatigada pelo peso, repousa diante da gruta. E este meni-
no, aí está o espanto, é o próprio Deus entrando plenamente na realidade humana. O Inefável —
simbolizado pela estrela luminosa que emana. ela mesma de um círculo negro, a “Treva Divina”
— entrou na gruta negra do desespero e do absurdo do mundo, inundando-o assim com a sua luz.
Ele entrou verdadeiramente no homem, porque Maria deu à luz um menino verdadeiro, o que
explica a sua posição de repouso após o esforço. O ícone ilustra bem o versículo cantado nas ma-
tinas do Natal: “A Virgem, neste dia, põe no mundo aquele que ultrapassa toda a natureza criada,
e a terra oferece uma gruta ao inacessível; os anjos cantam a sua glória com os pastores e os ma-
gos caminham com a estrela; porque, para nós, nasceu menino o Deus de antes dos séculos” (E.
Mercier e G. Bainbridge: La Prière des Eglises de Rite byzantin, vol. II/1 “Fêtes Fixes”. Chevetogne, 1953). Mas Deus deverá as-
sumir a condição humana até ao sofrimento e à morte — o menino imóvel está envolvido em
faixas mortuárias e deitado num... sarcófago! O boi, evocação do animal do sacrifício do Antigo
Testamento, e o burro, símbolo da paciência, completam esta prefiguração da morte de Jesus. Se
Maria ocupa um lugar particularmente em evidência — é a personagem mais central e a maior do
ícone — é porque ela representa a humanidade que colabora livremente no movimento de Deus,
significando o pano vermelho sobre o qual está estendida, em forma de mandala (Símbolo enraizado
profundamente no subconsciente humano, freqüente em todas as regiões, e simbolizando a plenitude, a totalidade),
a perfeição humana no amor. Cristo e a sua mãe — sinais da encarnação real de Deus — estão
cercados por uma representação de todo o universo, anjos, homens, plantas e minerais — índices
de que nada, absolutamente nada, escapa ao movimento de Deus no mundo manifestado no Na-
tal. Os anjos na parte superior do ícone, os da esquerda erguendo os olhos para o céu de Deus
transcendente, o da direita contemplando a terra animada pelo Deus imanente, figuram em con-
junto o louvor que cada um deve a Deus, louvor que é necessariamente — olhar erguido para
Deus, enquanto nos ultrapassa infinitamente, e fixado ao mesmo tempo com realismo sobre o
mundo para aí viver na ação a presença de Deus. Os reis magos, os “sábios,” simbolizam a ciên-
cia humana que participa no conhecimento de Deus, na medida em que ela aceita não ser senão
humana, enquanto que o pastor, à direita, tocando flauta, indica que os artistas podem também
eles, à sua maneira, revelar o essencial. Em conjunto, estas personagens recordam que nem o
grau “de inteligência” ou de cultura, nem a idade (os três magos são respectivamente um jovem,
um adulto e um homem de idade madura) nem a situação social, são determinantes para o conhe-
cimento de Deus. Esta, na seqüência do mistério de Deus feito homem, pode ser vivida plena-
mente por cada indivíduo que, por tal razão, tem o direito de se tornar sempre mais ele próprio.
Todo o homem está inteiramente comprometido pela irrupção de Deus que, daqui por diante, não
está mais ‘ ‘no céu, todo o homem, ainda mesmo aquele que duvida, que se interroga perante o
incompreensível: é José (em baixo, à esquerda) ao qual o Tentador, sob a forma de um velho
“sábio,” põe questões eternas mas nunca resolvidas, questões que só o ato de fé permite ultrapas-
sar. É de notar a atitude compassiva de Maria a seu respeito, cujo rosto, longe de refletir um espí-
rito de julgamento, é a própria expressão da simpatia. Diante do mistério de Deus feito homem, é

43
permitido duvidar e possível acreditar. Notar-se-á enfim, em baixo, à direita, a cena do banho
que prefigura o batismo de Jesus adulto, sinal da sua participação incondicional na humanidade
cuja vida, através do sinal do batismo, é chamada a ser aprofundada e renovada. O fato de a cena
do banho, tal como as da chegada dos magos e a da tentação de José, ainda que tendo acontecido
noutra ocasião e noutro local que não o do nascimento, serem representadas como contemporâ-
neas e espacialmente próximas, lembra o caráter homogêneo do tempo e do espaço cujos efeitos
“separatistas” naturais, como se viu, são abolidos pelo crente ortodoxo, pela realidade da presen-
ça de Deus.

Conclusão
Este capítulo teve por objetivo lançar o leitor, de repente, num banho, sublinhando que sen-
do “Deus” a origem, o fim e o movimento real de todo o homem, de toda a criatura e de todas as
coisas, a fé cristã, para a Ortodoxia, é vida, é a verdadeira vida humana para lá de todas as defi-
nições que a filosofia — e a teologia! — dela podem dar. Sendo vida, ela é vivida como uma sín-
tese, isto é, de maneira global, sem que seja possível distinguir-lhe, no plano do vivido, uma “te-
ologia,” uma “mística,” uma visão “científica,” uma abordagem “pragmática.” O breve olhar
lançado sobre as condições da existência humana — tempo e espaço — tais como são vividas
pelo crente ortodoxo permitiu constatar esta abordagem global existencial da realidade e, sobre-
tudo, descobrir o que torna possível esta abordagem: a certeza da presença de uma realidade di-
nâmica ativa no espaço e no, tempo, que lhe confere uma orientação última, que imprime ao ser
humano e às criaturas a sua verdadeira densidade, o seu movimento interno. Esta realidade —
“Deus,” o “Inefável” — vivida como uma progressão e uma comunhão com todas as coisas, a
liturgia e os ícones permitem entrevê-Ia, vivê-Ia, pressenti-Ia, para lá das palavras do discurso
racional às quais permanecerão sempre inadequadas. Através da descrição muito imperfeita que
foi dada, o leitor terá podido pressentir, por assim dizer “adivinhar,” de maneira poética e artísti-
ca, antes de o fazer de forma sistemática, a razão de ser da Igreja ortodoxa, a sua certeza de que,
por detrás de todas as coisas, em qualquer homem, na origem de toda a realidade e no seu termo,
há uma significação, uma origem, um fim último, inefável mas real, que ultrapassa o entendi-
mento humano mas abre à humanidade perspectivas insuspeitadas. Adquirida esta visão “sintéti-
ca,” global, torna-se-nos preciso aprofundá-la agora, tomando nas suas grandes articulações e
esclarecendo-a, sob diferentes perspectivas, o destino do homem tal como é vivido pelos crentes
ortodoxos: a vocação e a queda do homem; a irrupção de Deus em Cristo e pelo Espírito Santo; a
vida comunitária e social, assim como a busca espiritual que daí decorrem.

Go to the top

Folheto Missionário número P108


Edição da Igreja da Proteção de Nossa Senhora
Holy Protection Russian Orthodox Church
2049 Argyle Ave. Los Angeles, California 90068
Editor: Bishop Alexander (Mileant)

(igreja_orthodoxa_1.doc, 09-07-2000)

44
Edited by Date
Jose Arimatea 09-04-2000

45
This document was created with Win2PDF available at http://www.daneprairie.com.
The unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only.

Vous aimerez peut-être aussi