Entrevista BETE SANTOS

Esgoto ainda é problema

Socióloga ambientalista aponta um novo caminho para a questão das águas por meio de
interação da comunidade e seus mananciais

A
socióloga Bete Santos tem pes-
quisas na área de geopolítica
das águas e gestão de meio
ambiente. Em sua tese de dou-
torado na Unicamp, "A Cidade do
“naDecidade,
ponta a ponta
os nos-
Salvador e as Águas", abordou a im- sos rios estão
portância das águas no culto do can-
domblé. Pesquisadora do Núcleo de
degradados por
Estudos Sobre Poder e Organizacões conta do
Locais (NEPOL), na Escola de Ad- lançamento de
ministracão da UFBa, atualmente
esgoto
está finalizando o projeto "Qualidade
Ambiental das Águas e da Vida Ur-
”
bana em Salvador", que originará um
livro sobre as bacias hidrográficas da
cidade e seus bairros abrangidos.

Você é socióloga e ambientalista,

como essas áreas de conhecimento
têm trabalhado em conjunto? A tese de
doutorado que fiz na Unicamp foi
exatamente sobre os rios em Salvador;
com um duplo enfoque: olhando a
questão ambiental e o aspecto simbólico.
Nesse aspecto simbólico eu fui em busca
do candomblé, uma religião - ou um
imaginário -, onde a água tem um papel
extraordinário. Entrevistei mães-de-
santo, pessoas que lidam diretamente
com os ritos, tentando apreender qual é o
significado das águas nesse universo e
em Salvador. Estabelecendo uma relação
disso com o processo de urbanização e
degradação das águas. Tudo indica que o
comprometimento ambiental da
qualidade das águas traz prejuízos não só
para a saúde, mas compromete o
exercício de uma série de rituais que, na

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Entrevista BETE SANTOS

Salvador não tem

“grandes indústrias.
verdade, têm um significado Salvador significa falar do drama que é o
extraordinário no imaginário do nosso É uma cidade acesso a água nas grandes capitais e falar

povo.
Em seu artigo “A Geopolitica da Água
no Brasil” você fala sobre a
implementação da água ao aspecto
mercadológico. Como está sendo
terciária, de
do extraordinário processo de degradação
das águas e dos recursos ambientais como
comércio e serviços, um todo. Isso é dramático porque
Salvador não tem grandes indústrias. É
e, no entanto, a uma cidade terciária, de comércio e

gente tem uma

serviços, e, no entanto, a gente tem uma
esse processo no Brasil? A gente tem
situação de degradação terrível. Como
uma lei, a 9433 (L9433/97, a Lei da
Água), que foi institucionalizada em situação de isso é possível depois da implantação do
Bahia Azul? Gastou-se milhões do Banco
1997 e que muda o padrão de regulação
das águas do país. Começa-se a
degradação Mundial para implantar um sistema de
introduzir uma série de mecanismos
chamados de “instrumentos econômicos
de regulação das águas”. Nesse novo
(ambiental) terrível ” esgotamento sanitário e agora que
estamos concluindo um levantamento
sobre a qualidade das águas, se constata
que, de ponta a ponta da cidade, os
padrão, o instrumento que materializa, de
nossos rios estão degradados por conta do
uma certa forma, essa concepção mais
lançamento de esgoto. A grande questão
mercadológica da água, é a cobrança pela
de nossa cidade é o esgotamento
água bruta. Hoje a gente paga a
sanitário. É a implantação de uma rede e,
EMBASA para ela tratar a água, pelo
não apenas a implantação, é a ligação do
serviço. Com essa nova lei teríamos de
domicílio à rede.
pagar também pela água bruta. Bom, esse
processo de implementação da cobrança a esse mercado, a gente estará chegando
vem acontecendo gradativamente no país. em uma situação de limite.
Essa implantação acarretaria em uma
Boa parte dos que defendem a 9433
nova taxa (taxa de esgoto que é cerca
dizem o seguinte: “ A cobrança da água é
A questão da Lei da Água em regiões de 80% do valor da conta de água).
um instrumento de justiça social”. Eles
como o semi-árido baiano, onde há Isso não fugiria aos padrões das
argumentam que se vai cobrar da Coca-
uma escassez desse recurso, como populações mais carentes? Na
Cola, por exemplo, a água que ela utiliza
para produzir seu produto. Nada mais ficaria? Uma das discussões que se trava chamada área nobre seriam esses 80%,
sobre essa região é a questão do Rio São nas regiões mais populares essa taxa é
justo que uma grande multinacional
Francisco. Quem é que vai poder pagar reduzida para 40%, o que ainda é muito
pague a sociedade pela água que ela
pelas águas do Rio São Francisco ? É para a população mais pobre de Salvador.
retira. Evidentemente que sim, ninguém
uma questão fundamental que a A grande questão é a seguinte: ou o
está discutindo isso. O problema é que,
sociedade acaba não discutindo, e que Estado entra de fato financiando esse
com esse instrumento, você vai cobrar da
termina sendo implementada “de cima serviço e viabilizando essa ligação, ou
Coca-Cola como também vai cobrar do
pra baixo”. Apesar de todo o discurso então... Quer dizer, não se pode
conjunto da sociedade, de quem pode e
democratizante, afinal existe um comitê considerar água, esgoto, saúde e
quem não pode pagar. Além disso, de
que é o Parlamento da Água, mas estão educação, do meu ponto de vista, como
uma certa forma, você abre com esse
todos operando dentro desse novo mercadoria. Sobretudo em uma
instrumento a possibilidade de ampliar
paradigma, pressupondo que a cobrança população com os níveis de pobreza que a
essa condição de mercadoria que a água,
da água será um mecanismo para se gente tem - Salvador é uma das cidades
nesse contexto globalizado, passa a
investir no setor, recuperar o rio. É com os maiores níveis de desigualdade do
adquirir. O fato é que nesse novo
possível conseguir esses recursos de país. O estado de precariedade e de
paradigma a água efetivamente passa a
outras fontes. pobreza é tão grande que se você entregar
ser concebida como mercadoria, de forma
uma casa nova a um sem-teto, ele vai
mais direta e explicita. Se a sociedade
vendê-la, comprar comida e invadir outra
não diz o que é ela quer de fato com esse
E em Salvador, como seria? Falar de lá na frente. Não teriam condições de
recurso, os limites que ela precisa impor
pagar a água, de pagar a luz. Este
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individuo tem que ser inserido no
processo de produção pra ter condições
de se bancar. É um problema estrutural.
Ainda sobre a degradação dos rios
aqui em Salvador, recentemente, a
prefeitura vem realizando obras para
cobrir os canais. Você acredita que de
alguma forma essa tática favoreceria
a preservação desses rios, ao menos
estagnando o processo de
degradação? O lançamento do esgoto
continua. O que você precisa fazer é
suspender o lançamento do esgoto. Essa
foi a política da década de 70, o mundo
todo agora está destampando e tentando
recompor os rios. O pior é que a
população desavisada e desinformada
acha que essa é a solução. Um exemplo é
a recuperação dos rios de Seul (capital da
Coréia do Sul). É uma forma de
utilização do espaço urbano como área de
lazer, em que eles destamparam o rio.
Com relação aos possíveis recursos
que serão repassados por conta da
Copa, um evento de porte
internacional, talvez ocorra algum
investimento no tratamento desses
rios? Não saberia te dizer se haverá
algum tipo investimento nesse sentido, de
qualquer jeito, eu acho que é preciso
construir uma política aos recursos
ambientais em geral. Salvador está
ficando quente, poluída. Isso significa a
redução humano-ambiental,
consequentemente da qualidade de vida.
O Estado tem de ser capaz de enfrentar
isso, independente de eventos extras, por
exemplo, como a copa. Veja que loucura,
a gente tenta buscar na possibilidade de
investimento desses grandes eventos
alguma coisa que possa amenizar a
situação dramática que a gente esta
vivendo. Eu acho que tem de ter uma
política pública que de fato consiga, pelo
menos, barrar esse processo devastador
de destruição ambiental de Salvador.
“aUmrecuperação
exemplo é
dos rios de
Seul. É uma
forma de
utilização do
espaço urbano
como área de
lazer, em que
eles
destamparam
o rio
” fazer desaparecer antigos rituais
O novo PDDU vai permitir uma
explosão imobiliária. Isso
representará maior deterioração
ambiental na área da Paralela e Orla
Marítima? Para mim, o que está em
aberto aí é a questão do serviço de
esgotamento sanitário. Provavelmente
nessas áreas vai ter alguma solução de
esgotamento ligada a rede convencional.
A recuperação do Dique do Tororó é um
exemplo de recuperação de manancial ?
Acho interessante sobre vários aspectos,
de fato acho que não cai mas esgoto ali.
É um exemplo interessante.
No candomblé, algumas oferendas
são feitas na água doce. O Dique
costumava ser um dos locais
utilizados para esses rituais, mas,
depois da recuperação, ficou mais
difícil perceber essas manifestações.
O que acha disso ? De fato, eu até
discuto isso na minha dissertação. A
urbanização, evidentemente, criou
condições favoráveis para a apropriação
de outros segmentos sociais que
anteriormente não frequentavam o Dique.
Antes quem frequentava era a população
do entorno. O que é que acontece com
esses espaços quando são requalificados ?
Na época das entrevistas (para a tese), o
pessoal de santo dizia: “ Antes, você
podia fazer oferenda ali, praticamente
qualquer hora; hoje, tem de ver bem o
horário que você vai”. Porque virou um
lugar completamente exposto. Perdeu-se
a privacidade, a possibilidade de um
ritual.
Poderia esse novo padrão urbanístico
populares? Por vezes o padrão da
requalificação, e seus efeitos sobre aquele
local, acaba por expulsar a população.
Isso é regra no processo de urbanização
da gente. Em linhas gerais, o pobre é que
é expulso e aquilo que tinha uma certa
originalidade, vida; aquilo que é mais
visceral, ou acaba sendo espetacularizado
ou acaba tendo de ‘correr” para outros
espaços, para garantir a sua
sobrevivência. Por exemplo, acredito que
o povo de santo hoje tem que buscar
novas áreas para poder manter suas
tradições.
Na bacia do cobre, o rio que corta o
Parque São Bartolomeu, é um
exemplo de rio que ainda pode ser
revitalizado? Depende. Ali na cachoeira,
mesmo, aquela espuma já é sujeira, é
poluição. Resultado de toda ocupação
irregular que tem lá em cima e a falta de
esgoto sanitário. Então, você vai pra lá
tomar um banho na cachoeira,
acreditando que vai ser purificado, e sai
de lá doente. Isso é cruel. Um patrimônio
daquele, completamente abandonado. Lá
ainda é um espaço de ritual. Agora,
provavelmente, se transformarem aquele
lugar dentro do padrão de urbanização
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Entrevista BETE SANTOS
como foi o Dique, a população local vai
ser mais uma vez expulsa.
Então há sempre um risco na
requalificação? Eu acho que sempre
tem. Teria que ser na verdade uma outra
concepção de urbanismo, uma outra
compreensão da relação com a natureza.
O sistema de monitoramento dos rios
de Salvador foi interrompido em 85,
quando o governo estadual repassou
essa responsabilidade para prefeitura
? O máximo que se faz hoje é dizer a
praia que se pode tomar banho. Parte-se
do pressuposto de que o rio chega em
forma de esgoto, e vai se fazer o que com
esgoto? Nada né?! Esgoto,é esgoto.
Isso vai de encontro a todo um
movimento internacional. Fazendo um
paralelo com outras capitais do Brasil
você sabe de alguma que esteja tomando
melhores medidas? Porque Salvador
apesar dessas condições é uma das
principais capitais do país, em São Paulo
não se vê melhoramentos, por exemplo,
no Rio Tietê. No caso Salvador, quando
você fala de comprometimento da água,
você fala do esgotamento sanitário. Em
São Paulo há outro porte. Quer dizer,
aquilo ali é a síntese de tudo que há de
mais complexo e difícil no processo de
urbanização latino-americana. Ali é
esgoto e tudo mais. Acredito que esteja
acontecendo de certa forma uma melhora.
Não se vê mais hoje aquelas espumas.
Agora aquilo ali está absolutamente
longe de qualquer classificação de
“satisfatória”. A baía de Guanabara, que
é outro patrimônio histórico, fede. A baía
fede. Como é que a gente faz isso? Como
é que a gente transforma esses corpos
d’água nisso ?
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“Tentar recuperar
a noção de
identidade e de
relação com o rio,
a partir da noção
de pertencimento
que é, na verdade,
instituída no
âmbito do bairro ” No Rio Vermelho.
(objetivo do seu mais
recente projeto)
Quantas são as bacias hidrográficas
em Salvador? São cerca de dez bacias
hidrogáficas e nove bacias de drenagem.
Como se configura uma bacia de
drenagem? Bacia de drenagem é aquele
território para onde as águas da chuva
escoam, mas não tem um corpo d’água,
não caem no rio, a maioria delas vai
direto para o mar. Geralmente se
encontram na beira do mar. Por isso que
é de drenagem e não hidrogáfica, a
hidrográfica tem de ter o rio.
Esses dados são resultados de seu
novo projeto sobre os bairros
nascidos próximos a rios. Ele
originará um livro?Ah, sim! Então
veja... qual é o produto desse “projetão”
que a gente está fazendo? É um projeto
financiado pelo CNPQ, que estamos
fechando agora, no qual foi feita uma
avaliação da qualidade dos rios das
nossas bacias e, também, da delimitação
das bacias hidrográficas e dos bairros. A
gente está tentando fazer uma associação
entre bairros e bacias, evidentemente que
não bate, mas qual é a idéia? É tentar
recuperar a noção de identidade e de
relação com o rio, a partir da noção de
pertencimento que é na verdade
instituída no âmbito do bairro. Estamos
abrangendo toda a cidade: a bacia é essa,
a qualidade da água é essa, e são esses
bairros que estão, mais ou menos,
contidos nessa bacia. Por quê? Para poder
dar elementos para o próprio poder
público vir a implantar políticas onde
seja possível a construção de uma outra
relação com o rio. Por exemplo,você
mora onde?
Você mora em qual bacia hidrográfica?
Não sei. Sei que ali passa o rio das
Tripas.
Entendeu? Então você não tem essa
dimensão. O que é uma bacia
hidrográfica? É a porção de terra que é
banhada por aquele rio. As pessoas não
têm uma relação com o rio, o rio é algo
que foi deixado para trás. A idéia da
gente é um pouco trabalhar isso: a noção
de identidade com a terra, pois ali é o seu
lócus. Também com a água, com aquele
rio que passa por essa terra. A gente está
percorrendo Salvador assim e vai
produzir um livro, que no caso está
chamando “O Caminho das Águas”. Que
será uma espécie de almanaque, que vai
mostrar qual é a qualidade das águas nos
dias de hoje. Quais as políticas públicas
que podem melhorar esse quadro. Qual a
postura que o cidadão comum deve ter
diante do rio, e promover a redescoberta
do seu vínculo com o rio. É esse “livrão”
aí que a gente está fazendo.
Produzido para Oficina de Comunicação
Escrita (OCE), disciplina do 1o
semestre do Curso de Jornalismo da
Faculdade de Comunicação da UFBA,
ministrada pelo professor Marcos
Palacios
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