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Apresentação

“Boneca de Porcelana” depois de “ A Vida passou por Mim sem Eu pela Vida
passar, dá acesso a “O Milagre do Amor”, história verídica de quem sente a
nostalgia de um Paraíso que se desvaneceu e que com muita perseverança
poderá renascer, começando pela dádiva do amor a quem nada espera que uma
simples palavra amiga, na terra de Ninguém.

Havita a “Boneca de Porcelana” descobre que a Felicidade começa dentro de


cada um e, disposta a semeá-la, após viver um mundo de sonhos onde o mal
nunca macularia seu espaço, mas que acaba por infectá-lo, desiludida sonha por
reconstruir seu Paraíso no Mundo de Ninguém, onde a Humildade impera
logrados pela ambição que a altivez subjuga em detrimento da pobreza que os
condena a uma infinita escravidão.
A escravidão da marginalização da raça.
Semi nus, famintos, doentes mas sempre humildemente esperançados num
futuro que os possa surpreender, contam suas maravilhosas histórias onde seus
antepassados se tornaram lendas crendo que suas origens descenderam do seio
da Natureza que os abriga, num uivo de uma fera que acaba de parir.

Beija Flor nesta obra, baseando-se em lendas da obra “ As maravilhosas viagens


dos nossos exploradores Portugueses” reaviva lembranças de um passado real
que muitas gente com saudade se lembrará de já ter ouvido contar em terras do
Ultramar e talvez neste momento estejam adormecidas.

Baseada também num sentimento de amor incondicional que a invade e quer


tornar num sonho, parte para dar amor já que querê-lo para si é egoísmo
quando tem tanto amor para oferecer.
Porém esquece-se que copo vazio já não pode matar a sede e, sem alento, por
necessitar também desse néctar precioso, acaba por desfalecer e entrar em
estado de coma depressivo pela saudade que a invade.
Ensinara a seu filho mais novo que o coma se pode ultrapassar quando alguém
de fora faz sentir ao paciente que há muito amor para viver.
Será que vale a pena despertar?

Obra registada no SPA c/direitos de autor

Beija Flor
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Prólogo

O frio invadia todo o seu ser clamando por um simples raio de luz que
iluminasse o seu caminho e descortinasse todo o mistério que envolvia a sua
existência.

Sua consolação era colocar-se frente à vida como simples observadora de uma
realidade que precisava de ser descoberta a todo o momento, tentando ignorar
tudo o que a pudesse magoar, fazendo da vida uma razão lógica para tudo o
que acontecia, pois sabia que nada acontecia por acaso.

Tinha a certeza que a sincronia da existência conjugava em função de


determinantes que se lhe impunham reagindo consoante a sua química. Era a
Lei da Lógica. Porém sabia que algo mais existia além de toda essa engrenagem
que envolvia todo o Universo. Que Força seria essa que observava também?
Que poder ininteligível estava para além de toda uma obra tão perfeita? Que
enigma se escondia por detrás da tela animada que exprime tal realidade?

Dava graças porque podia registar toda esta realidade. Contudo, fazia de sua
existência uma existência por advir, mergulhando num sono letárgico onde o
sonho se apoderava de todo o seu ser, na expectativa que um milagre pudesse
dissipar o cordão que a prendia a esse mundo de fantasia, e, definitivamente a
pudesse trazer de volta a uma outra realidade que não aquela que tantas vezes
questionara. Valeria a pena despertar?

♥♥♥

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Havita contemplava o céu azul pintassilgado de farrapos de algodão que
traquinavam nesse imenso regaço celestial, como rebanhos cabriolando de
prazer, ignorando tudo o que pudesse alterar toda esta harmonia.
Sorria porque se sentia parte desse rebanho de novelos de algodão empurrados
ao sabor do vento, em busca do que a pudesse transpor para além daqueles
limites que pareciam caber num olhar profundo e era infinitamente
imensurável.
No seu corpo de mulher ninguém diria que se ocultava um espírito de criança.
Talvez para fugir às agruras da vida criasse um mundo só para si onde
constantemente se refugiava, tentando descortinar o que poderia “ Ser ou não
Ser ” e o que “Não deveria Ser e poderia Ser”, levando muita gente a crer que
vivendo nesse mundo de fantasia, se tornava por vezes excêntrica e apática.
Na realidade tornava-se excêntrica quando tentava demonstrar que nem tudo é
o que parece, quando tudo parece ser o que na realidade nem é.
Cria que a superficialidade de muitos os levava a crer que os cinco sentidos
eram o suficiente na análise de tudo o que se lhes deparava, esquecendo-se
porém que, dotados de Sentimentos, deveriam conjugar na análise feita pela
Razão.
Na sua apatia, Havita nunca agia ou criava conceitos sem uma pré-análise à
psicofisiologia que acompanha de perto e de longe todo o vivente, sem recriar
todo o cenário, encarnando o personagem para assim poder avaliar cada
situação em particular.
Como a vida poderia ser bela se todos tentassem saber um pouco mais do
porquê das coisas e não se limitassem a fazer parte de uma Inquisição que
condena por arte.
Havita continuava sorrindo, parecia estar distante. Suspirava como se estivesse
nas nuvens, e estava.
Naquela manhã que Primavera irrompera com promessas de uma estacção
cheia de venturas, decidiu que tinha de renovar o seu vestuário e ir às compras,
como se quisesse também renovar parte da sua vida.
O perfume que se estendia na imensidão do espaço que a envolvia, extasiava
também as pequenas aves que passavam apressadas a reconstruir seus ninhos,
ou que se divertiam a gozar o privilégio de um sol ameno, catando entre as suas
penas o minúsculo parasita que teimava em não sair por ainda não se ter
apercebido que a Primavera tinha chegado.
Ouviam-se lindos trinados e as formigas faziam fileiras como marchas militares
cumprindo o seu dever.
O dorminhoco que permanecia inerte ao cantinho da gaiola, abria a boca em
toda a sua extensão mostrando seus dentes afiados de roedor, aptos para o
trabalho.

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Bocejava novamente esticando uma pata de cada vez para se sacudir,
bamboleando ainda sonolento, ciente que tinha tarefa a cumprir.
É que algo dentro de si reclamava que tinha que dar ao dente para tonificar seus
débeis músculos enferrujados de tanta inércia.
Os gatos curiosos do rumor proveniente da gaiola que parecia ter estado vazia
durante tanto tempo, aproximaram-se e, de um salto, quase que se punham em
cima dela.
Queriam ver o seu novo vizinho.
O pobre do hamster que se esforçava por reaver os seus movimentos, ao ver
seis olhos enormes deu um pulo tão grande que a gaiola não aguentou e caiu e,
julgando que estava a ter pesadelos desatou aos gritos na expectativa que a sua
fiel amiga que sempre zelara pelo seu bem-estar acorresse em seu auxílio.
Os chios aflitivos do hamster assustaram os gatos de tal maneira, que estes
correram a esconder-se atrás de um baú de verguinha que continha recordações
da infância de Havita.
Nesta confusão imensa de um estardalhaço que repentinamente quebrou o
silêncio que envolvia os pensamentos de Havita, esta acorreu imediatamente
em socorro dos seus protegidos...
Não se pôde conter! Desatou à gargalhada, não sabia qual deles estava mais
assustado. Se era o minorca do hamster que conseguira atirar com a casa pelo
ar, se os hábeis felinos que mostrando respeito, correram assustados para o
lugar que lhes pareceu mais seguro.

♥♥♥

- Marotos! Dizia Havita. Vou perder o autocarro!


Que balbúrdia meus marotos, agora não tenho tempo para vos dar atenção.
Prometo contudo amanhã conversar com vocês os quatro e fazer-vos as devidas
apresentações para que se comportem como gente grande.
Tenho que me despachar. Disse Havita, e, sacudindo a roupa de poeiras que
queriam aproveitar a viagem, aprontou-se de novo e saiu ciente que nada a
faria voltar atrás.

♥♥♥

Aquela tarde linda de Primavera fazia despertar os espíritos mais telhudos que
teimavam permanecer adormecidos na obscuridade das suas mágoas, dando-
lhes alento à vida.
Tudo tinha beleza e cor e porque não aproveitar os bons momentos da vida que
nunca são iguais por mais parecidos que pareçam?
O relógio acabara de bater as duas da tarde.

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Deixando para trás tudo o que poderia fazer numa outra altura, Havita decidiu
ir às compras.
Enquanto que o autocarro não chegava, Havita ia pensando nas compras que
pretendia fazer, nos tons que se iriam usar nessa estacção, tudo o que nesse dia
pudesse fazer como se fosse um dia especial.
O sol abrasava, mas logo uma brisa suave refrescava fazendo ondular os
cabelos anelados que compunham o rosto franzino de Havita.
Alheia a todo o movimento que se ia desenrolando, quase que nem dava pela
aproximação do autocarro.

♥♥♥

- Havita, Havita. Não vás! Suplicava uma voz de criança. Tenho notícias para ti.
A minha mãe assinou este telegrama para ti, já que tu não estavas em casa.
Diz “ URGENTE ” !

Nervosa, Havita nem fez paragem ao autocarro. Abriu o telegrama e os olhos


encheram-se-lhe de lágrimas.

- Porque choras Havita, más notícias?


- Não, Inês! Tudo bem! Tudo bem. Depois conto-te.

♥♥♥

Há quanto tempo esperava por aquelas notícias. Depois de um casamento


falhado e de um passado quase sem história, Havita com o telegrama na mão
sorrindo e vertendo lágrimas ao mesmo tempo, caminhava maquinalmente sem
destino como se nesse percurso procurasse antever o princípio do fim. Tinha
aprendido com a sua vizinha e amiga, Fátima, que tudo começa onde acaba e
tinha chegado à conclusão que tal era uma realidade.
Caminhando por uma vereda que fazia traseira com a sua casa onde se estendia
um imenso campo verdejante, Havita sentou-se na beira de um carreiro,
encostou-se a uma árvore e entregando-se à canção de um cuco que avizinhava
a estacção da esperança, deixou-se embalar.
Tinha perdido todas as esperanças de ser aceite numa missão de caridade em
África a favor dos desprotegidos, e seu maior desejo acabava de se cumprir.
Na origem deste seu profundo desejo estava o desgosto de nunca ter
conseguido da vida aquilo que mais desejava, a felicidade.
Invadida pela coragem a procurar novas fronteiras, por muito distantes que se
encontrassem, jurou dar aos outros o que dos outros não conseguia. Por isso,
teria que tentar pelos mais desprotegidos que nada desta vida exigem,
bastando-lhes por vezes a companhia de uma voz amiga que os oriente, um
sorriso que lhes faça sentir que se existem é porque precisamos deles também.

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O som jovial de um gaio que desafiava o cuco, acabou por trazer Havita à
realidade.
Sorriu, olhou essa aguarela azul imensa que acompanhava toda a vastidão do
Universo e creu uma vez mais que Aquele que a observava e ela sempre sentiu
a Sua presença, nunca a abandonara e murmurando agradeceu.
Meu Deus, como pude ser tão egoísta e pensar primeiro em mim!
Porque deixei que a vida me magoasse para chegar à conclusão que sofrer por
amor é morrer, sem sequer me lembrar que outros hão que deixei morrer com
tanto amor para oferecer. Perdoa-me uma vez mais e nunca me abandones nas
minhas fraquezas. Eu te Amo, Obrigada por me fazeres sentir tua Existes.

E erguendo-se, apanhando do chão um pouco de terra, lançou-a ao ar e como


fazendo parte dessas pequenas partículas, sussurrou:

- Obra que do pó da terra surgiste e que à terra hás-de voltar, olhando para ti,
vejo-me a mim, começo do princípio de um fim, onde tudo começa e tudo há-de
acabar.

♥♥♥

O sol baixava subtilmente por detrás daquele infinito horizonte dourado onde
as águas azuis do imenso oceano o convidava a refrescar-se para que pudesse
de novo seguir o seu percurso, e Vénus a estrela da tarde, brilhava como
prenúncio de uma noite límpida cheia de estrelas, quando Havita se apercebeu
que estava a entardecer.
Mais feliz que já alguém possa imaginar, regressou a casa que estava a uns
passos de distância.

- E não foi desta que fiz as minhas compras! Reclamou Havita mal entrou em
casa.
Também para que vou precisar delas? Uma vez em África, quase que pouca
roupa se usa, não há vaidades, ninguém de nós espera formalidades e vou
poder ser aquilo que sou e não o que os outros pretendem que eu seja.
Como é bom podermos ser livres.

E correndo para os seus amiguinhos a contar-lhes a novidade, retirou uma


maçã da fruteira e dirigiu-se para os anexos.

- Então meus marotos, como se comportaram na minha ausência? Ah, deixa-me


ver.
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Tu, Sony meu preguiçoso, mereces lanchar com a dona. Porque não este naco
de maçã? Alto! Devagarinho, estás mesmo com fome. Já viste o que me fizeste?

♥♥♥

Enquanto que Sony escondia avidamente a maçã nas suas bolsas, Havita
agachou-se junto do baú de verguinha para rever as suas recordações que há
tanto tempo permaneciam adormecidas pela falta de coragem de evocar o seu
passado.
Retirou o aloquete e levantou a tampa delicadamente.
Pegou num livro enegrecido pela poeira adormecida no meio de tanto silêncio,
passou-lhe a mão, e leu o título “Não passei pela Vida Quando a Vida por mim
estava passando”.
Estava prestes a abrir a primeira página, mas reteve-se. Esperaria que a luz do
dia lhe devolvesse coragem e, fechando a tampa do baú devagarinho para não
acordar as suas recordações, deixou para o dia seguinte.

- Então Sony seu comilão, queres conhecer os teus companheiros? Esta fofura
negra é a Caty, aquela siamesa é a Teka e o filhote é o Rufy. Se prometerem
darem-se todos como irmãos, eu levo-vos comigo para África.

Havita criava laços de carinho tão profundos, mesmo com os animais, que o
simples facto de pensar que teria que se separar deles, a fazia estremecer.
Porque não levá-los também, se afinal foram eles os seus fiéis companheiros em
seus momentos de solidão, fazendo parte da história da sua vida!...
Apaixonara-se por Sony, por ser dourado como o sol, ter o pêlo macio e a
primeira vez que lhe fizera mimos sem saber que os hamsters mordiam, este em
sinal de gratidão lambeu-lhe a mão.
Foi paixão à primeira vista. Decidiu comprá-lo.
A bela Caty negra, de pêlo sedoso e brilhante, era uma gatinha vadia
abandonada na lixeira que miava desesperadamente por alguém que se
lembrasse que era um ser vivo e não merecia morrer à nascença, tal como lhe
estava predestinado.
Havita passou precisamente na altura devida.
Até os animais têm um fado, pensava Havita. Caty seria mais uma paixão.
Contudo o seu círculo de amigos ainda não estava completo.
Quantos mais, melhor.
Teka tinha-lhe sido oferecida e ninguém reparara no seu curto rabo em forma
de algarismo que diria que seria o número um da lista de ternuras.
Quando alguém se apercebeu, pensando que Teka tinha um rabo defeituoso,
quiseram-na trocar de imediato, mas alguém ainda mais sensível que Havita,
choramingou, dizendo que a pobre coitada tinha todo o direito ou mais ainda,
de ser feliz. Teka nunca abandonou Havita mesmo nos seus momentos mais
difíceis. Parecia uma mãe extremosa que nunca deixa os filhos tropeçar e,
quando via Havita aflita ou triste, até a sua sombra seguia miando como se lhe
quisesse dizer que, se pudesse, evitar-lhe-ia todos os dissabores da vida .
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E saltando para o seu regaço, dava-lhe turras abandonando-se às suas carícias.
Rufy nascera de uma gestação de mais dois que foram oferecidos aos vizinhos.
Mamão preguiçoso. Até para mamar mantinha os olhos fechados deixando
manter a teta na boca e quando Teka precisava de fazer as suas necessidades,
muitas vezes o levava de reboque.
Tornou-se num gatarrão lindo de pelugem bege mesclado de castanho.

- Como poderia eu deixar os meus grandes amores? Pensou Havita. Amanhã


vou levantar-me cedo para ver a Aurora nascer e o romper do sol da minha
terra como se fosse a primeira vez, e vou levar no meu olhar todas as
recordações que me fizeram viver.

E afastando-se do baú das recordações adormecidas, Havita foi comer uma


sande, tomar banho, ver um pouco a televisão e deixou-se embalar pelos sonhos
que agora iriam passar à realidade.

♥♥♥

Por detrás dos montes Aurora abria seus braços para que Sol pusesse pés ao
caminho, recolhendo o manto de estrelas que Noite lhe emprestara para
embalar os sonhos da Vida.
Sol colocava os primeiros raios na terra ainda adormecida e sorridente
mostrava todo o seu esplendor.
O orvalho espreguiçava-se no colo das flores, ansioso por acordar a terra ainda
morna e adormecida no silêncio dos deuses, e deixando-se escorregar
indolentemente caía em seu seio servindo-lhe a primeira refeição matinal.
Os pássaros cantavam Aleluia. A Vida ressurgia.

- Seria assim em todo o lado do Mundo? Murmurou Havita. Assim é a minha


terra! Sorriu de contentamento. Tenho que preparar minhas roupas minhas
malas, levar as minhas recordações e com ternura despedir-me dos meus
amigos. Será melhor talvez comprar umas roupas mais leves, pois o meu amigo
Sol, em África acompanha a vida mais de perto.

Arrumou seu quarto com muito carinho como se estivesse a querer despedir-se
dele e de todo o seu espaço, sem o entristecer com despedidas.
Boneca de Porcelana olhava para ela como sempre, atenta a todos os seus
movimentos pensando se iria fazer parte das bagagens de Havita.
Havita apercebeu-se do seu olhar e do receio que se apoderava de Boneca
Porcelana.

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Como poderia eu História da minha vida, esquecer-me de ti? Nunca jamais me
separaria daqueles que em meu silêncio falaram por mim.

Boneca sorriu e o brilho do seu olhar reflectiu o de Havita. Havita fazia tudo
com amor e por amor em busca também de AMOR.
Acariciou o Solitário, passou o biquito do Beija-Flor nos seus lábios, e sorriu.
O microondas apitava dizendo que o petisco que preparava já estava pronto. A
máquina da roupa parara cansada depois de tanta euforia.
Depois de deixar tudo como sempre, esmerado, Havita desceu, petiscou, e após
o arrumo de tudo que merecia estar no lugar, decidiu bater à porta da vizinha e
contar a novidade.

- Maria, abre por favor, é Havita, preciso muito de falar contigo.

Maria não se fez rogada, já desde o dia anterior aquando a recepção daquele
telegrama Urgente, ficara na expectativa que Havita lhe viesse contar todas as
novidades que, segundo Inês tanto a comoveram de alegria.

- Então Havita que se passa que te deixou tão feliz que te fez chorar? Inês disse
que choraste sorrindo.

- Pois é Maria, como já te deves ter apercebido, nada, senão as grandes


amizades que aqui me prendem, que são tudo para mim, nada tem sentido.
Ainda procuro o sentido para a minha vida. E para que tu possas compreender,
antes que analises o porquê do meu comportamento, já que nunca transpareci
aos outros o que me vai na alma, vou levar-te até minha casa onde as
recordações falarão por mim.

Maria não se fez rogada. Aprontou-se logo e levando Inês consigo acompanhou
Havita, curiosa pelo que poderia descobrir daquela que parecia ser tão feliz e
não passava de uma simples ilusão.

- Entra Maria, fica à vontade. Tomas um sumo? Pega Inês, este chocolate é para
ti.

- Havita, estás a despedir-te de nós? Pergunta a linda Inês de seis anos que
parecia prever os acontecimentos.

- Um dia eu volto. Talvez um dia consiga que tu vás passar férias comigo.

Havita amava Inês desde o primeiro dia que lhe pegara ao colo mal acabara de
nascer.

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É como se fosse alma da sua alma, corpo do seu corpo, a filha que tanto adorava
ter tido. Tantas vezes Inês lhe fôra confiada, que os laços de amor entre elas
eram muito profundos. Havia quem dissesse que Inês parecia ter traços de
Havita. Engoliu em seco como se quisesse ocultar o nó que lhe apertava o
coração, e continuou.

- Vou mandar-te muitas cartas, muitas fotografias e prometo que estarás sempre
no meu coração. Todas as noites escrever-te-ei uma mensagem no Céu e pedirei
a uma estrela que ta traga. Quando não vires a estrela pergunta ao vento por
mim e ele te falará do meu amor por ti.

Maria emocionada e curiosa por tentar saber o que afinal estava acontecendo,
entrecortou.

- Afinal Havita, que se passa? Que dizia o telegrama? Vais partir? Não voltas?
Vais para longe? Vais deixar-nos?

- Calma Maria, deixa primeiro contar-te quem sou, o que poderei vir a ser já que
nunca nada fui.

E levando Inês pela mão, deixou-a entretida no quarto das bonecas na


companhia dos gatos e do hamster, e fez-se acompanhar por Maria aos anexos
onde um baú de verguinha, contaria parte de uma história.
Agachou-se, sentou-se no chão com as pernas cruzadas, levantou a tampa
delicadamente e pegou num álbum cheio de poeira que prometia descortinar
um mistério por deslindar.

-“O meu álbum”. Pensou!


Respirou fundo, soprou-lhe poeira de séculos adormecidos, passou a mão na
gravação em chapa que de imediato reflectiu “O Bebé”, e derramando uma
lágrima abriu as primeiras páginas dedicadas a registos.

Simplesmente a data de um nascimento, escrita em algarismos tremidos, sem


sabermos se transmitia sentimento de um receio de uma história triste que iria
começar com as primeiras páginas da vida, se denotava simplesmente falta de
experiência na escrita, ou mesmo cansaço de uma experiência já muito vivida.
E dizia simplesmente: Aquariana nascida às 8h30m da manhã.
Havita ...e nada mais, como se ficasse ao critério de alguém deslindar o mistério
de uma vida .....
Suspirou e sua vontade era voltar a fechar o álbum ou deixar escapar os gritos
do seu coração.
Conteve-se.

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- Repara Maria, quanta simplicidade? Naquela altura era tudo a preto e branco.

Quantos meses terias aqui? Cinco?

Talvez, não sei. Nunca ninguém mo soube dizer.

- Pareces uma bonequinha neste vestido de chita. E estás de braços abertos.


Quem são estes a teu lado? Teus irmãos?

- Hh! Hh...Acho que sim!

E ia virando as páginas do seu passado, e respondendo maquinalmente à


medida que a amiga lhe fazia perguntas, porque finalmente arranjara coragem
para conjugar um passado com perspectivas de futuro.

- Mas eu nunca te vi família. Os teus pais são vivos?

- Sim! ( Respondeu-lhe com um nó no peito capaz de fazer explodir aquela


couraça que usava fazendo dela uma mulher corajosa e determinada).
Meus pais viverão eternamente em meu coração porque me deram forma. Deus
deu-me a vida. Estou grata por tudo.

- Mas Havita não vejo nenhuma fotografia deles! Davas-te bem com eles?

- Só há pouco tempo conheci verdadeiramente os meus pais. Como na realidade


nunca chegamos a conhecer verdadeiramente alguém, só o tempo nos ajudará a
fazer essa descoberta, tenho de deixar o tempo falar por si.

- Não te entendo? Não conhecias os teus pais, conheceste-os ou ainda estás à


procura deles?

- Os filhos da minha vida pedaços da minha alma serão, e por muito ingratos
que pudessem ser, jamais deixaria de guiar seus passos e suas sombras em
busca de uma felicidade que não pudesse ser a minha também.

- Havita que te fez a vida para que abras a tua história tão amargurada?

- Vês esta foto, já tinha 10 Primaveras, esta aqui dezasseis, estas já era uma
mulherzinha......

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- Não compreendo os teus pais e irmãos nunca aparecem!

- Pois é. Há pais que nunca aparecem quando nós mais precisamos. Meus pais
entregaram-me na roda do destino, mercê de um futuro incerto mas venturoso
que se me pudesse oferecer. Tive que descobrir o mundo com os meus próprios
meios porque faltava o olhar de minha mãe para me guiar. Aprendi com o
Universo os desígnios do Tempo e com a terra os mistérios da Vida e tento
aprender comigo mesmo o enigma humano. Na voz do vento enviei mensagens
que nunca chegaram ao destino, dei o meu coração e entreguei-me ao próximo
com a mesma doação de sentimentos que tanto procuro e não encontro. Na
simplicidade das coisas descobri que se encontra o mais alto valor. Aprendi
com a minha sombra que por muito que nos refugiemos nunca estamos
sozinhos e, acima de tudo, aprendi que nunca devemos deixar os outros
sozinhos quando sós se sentem, mesmo indignos da nossa indiferença. Aprendi
que o Amor é o sentimento mais forte, mais puro que te faz sentir que o Outro
poderás ser Tu, quando Tu, és simplesmente mais um outro qualquer na
imensidão deste Universo.
Aprendi que sou incógnita de uma equação resoluvél cujo produto é a chave de
uma identidade particular.
Comecei e recomecei o inacabado, com receio de chegar ao fim, para que tudo
tivesse continuidade, e cheguei à conclusão que tudo que existe não surge do
nada, mas tem uma razão de ser, porque nada na Natureza se cria em vão, nada
perece mas tudo se transforma.
É o princípio do fim. Compus um verso à mãe, e por ela respondi e ela nunca
chegou a saber da sua existência.

- Diz-mo Havita, gosto tanto de versos. Como mãe adorá-lo-ia sentir na alma já
que nunca fui capaz de oferecer uma dedicatória à minha.

- “ PORQUÊ? “

MÃE, porque é que há estrelas no oceano e estrelas no ar?


Porque é que elas brilham no Firmamento e brilham no teu olhar????
Porque é que cai água do céu, e corre água para o mar?
Porque é que as nuvens vaticinam o tempo e tu me adormeces a chorar?
Porque é que os pássaros saltitam em terra, e são felizes a voar?
Porquê ter asas se podemos sonhar?
Porquê????
Se tudo é tão perfeito, se tudo tem magia e cor, para que nasci?
- Para dar luz ao Mundo!
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- Mãe, Tu és o meu MUNDO..!
- Tu és minha LUZ, meu amor.

Havita suspirou e perguntou:


- Gostaste?

- Adorei. Respondeu Maria com lágrimas nos olhos. Mas porque partes Havita?

- Como a minha missão ainda não está cumprida, alistei-me em tempos numa
Missão no Ultramar de apoio aos desprotegidos. Como “Missão Fraternidade”
financia a viagem, aguardei por uma resposta que no meio de tantas outras,
passaria a ser uma simples esperança. Essa esperança surgiu e concretizou meu
sonho. Vou partir para África brevemente.

- Havita! Choramingava Inês. Vais deixar-me?

- Vou meu amor, mas levo-te no meu coração.

Havita tentava sufocar as lágrimas, mas foi mais forte que ela, e chorando
abraçada a Inês tentou explicar-lhe que em todo o lado existem muitas Inês que
não tiveram a sorte que ela teve de ser amada por alguém.

- Havita, posso ficar com aquela boneca de porcelana que está no teu quarto?
Perguntou Inês.

- Gostaria muito de ta oferecer, mas se eu ta der ela não poderá tomar conta de
mim. Repara que ela está no meu quarto sempre de olhos abertos para vigiar as
minhas coisas e, de noite quando adormeço, toma conta de mim.

- Então não, antes quero que ela vá contigo para que nunca te aconteça nada de
mal. Assim um dia ela pode trazer-te de novo para junto de nós.

- Que livro é este Havita? “Não passei pela Vida Quando a Vida por mim estava
passando”? Perguntou Maria.

- Podes ficar com ele, tenho mais exemplares e já agora fica com este da “Boneca
de Porcelana” para que um dia a Inês possa entender que a história de uma
vida pode conter a nossa própria história.

- Mamã vamos com a Havita!

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- Não Inês, Havita tem uma missão a cumprir e nós temos também que
continuar a missão que começamos.

- Missão? Que é isso?

- Olha Inês, minha missão foi pôr mais um anjo na terra para expandir o amor.
Um dia irás descobrir a tua.

- A minha mamã, é tomar conta de ti.

Havita sorriu. Inês repetia a frase que outrora escutara da boca de um anjo que
veio iluminar a sua vida dando-lhe coragem para ser uma mulher forte embora
muito sensível.
Maria fascinada pela devoção de Havita em crer no que não vê mas diz possuir
no seu coração, pediu-lhe para lhe ensinar como achar Deus pelos seus próprios
meios e não como lhe haviam ensinado.

♥♥♥

SER OU NÃO SER

Ninguém poderá dizer simplesmente que ser ou não ser, eis a questão. A
questão é subjectiva, mais complicada do que possa parecer.
Pode parecer e não ser, pode ser e não parecer.
O Ser foi criado do Nada, do nada que poder-se-á dizer Tudo, pois de um
TODO surgiram as partes de um tudo que partiu do Nada.
Nada porquê? Nada, porque nunca se descortinou nada desse Nada que ainda
hoje é um enigma.
Do Tudo, porque é um todo, a parte mais completa e complexa existente como
obra perfeita, desígnio de Deus.
Baseados em tudo e em nada, partimos para o Ser, uma parte do Tudo e do
Nada.
E o Ser e o não Ser passaram a ser simplesmente a parte do todo, Tudo e Nada.
Ser ou não Ser, poderá ter forma e ser, poderá não Ser pela forma que não
apresenta, mesmo assim continuam a fazer parte do mesmo todo.
Do Nada surgiu a vida, o Ser, e o não Ser, e tudo acaba em nada tal como tudo
surgiu.
A obra perfeita da criação, tanto o Ser como o não Ser, fazem parte da origem
da vida.
O Criador, único SER e não SER, apogeu da inteligência e da perfeição, irradiou
a sua magniloquência em todo o universo e os contrastes apareceram.
Da noite se fez o dia, da terra brotou água, do fogo brotou a vida. Por
meditação sistematizou, criou e deu origem.

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SER sapiente em psicognosia, pelo SER que é e sempre o vai ser, ao fazer surgir
o Ser, já o SER tinha criado em Si. E o SER que em Si tinha criado, no SER
passou a Ser.
Dotado o Ser de conhecimentos, e o não Ser de propriedades que lhe dão o Ser,
deu graças o Ser, por saber que o SER e não SER, existe em tudo o que possa
não ser e ser.
Cansado o Ser por já nada mais poder ser, já que tudo pôde ser, abandona-se ao
nada que pode fazer. E Tudo volta ao princípio, porque do Nada tudo pode
acontecer.

Do nada, NADA pode nascer


Mas se do nada, TUDO vier
Tudo pode acontecer
SER ou não SER
Só TUDO pode dizer
Se tudo não puder ser
Nada lhe pode valer

♥♥♥

- Havita, isso é muito complexo para eu também poder explicar à Inês. Poder-
me-ás ajudar por outras palavras?

- Porque não? Vejamos:


Tu ocupas um espaço material aqui na Terra, como tu sabes, constituído por um
espaço sólido e um espaço líquido que formam a crusta terrestre, e um espaço
aéreo que envolve a mesma. Todos eles contêm os elementos necessários à vida.
Outros espaços, outros planos haverão que tu não vês e que devem existir.

- Achas Havita? Como assim? Se não vejo estou no meu direito de não crer.

- Repara. Hoje em dia a tecnologia é muito avançada a nível informático onde


poderás encontrar mais um espaço além dos que já conheces. O espaço
Cibernético, constituído de comandos electrónicos que funcionam com rigor
matemático segundo a lei da lógica. Cada espaço tem os seus elementos
correspondentes, que conjugados logicamente, dão um resultado que origina
um efeito, fenómeno produzido por uma causa bem determinada. Vou dar-te
16
um exemplo: Suponhamos que pretendes criar um programa de diversão, num
computador, por exemplo uma feira popular e começas por montar os teus
elementos peça a peça. Aqui uma bilheteira, além uma entrada para o público,
mais adiante, peça a peça fazes aparecer uma montanha russa, um túnel para o
comboio fantasma, etc.
Colocas árvores, pessoas, adultos e crianças, cestos para serem colocados os
papeis de modo a não serem atirados para o chão, todos os confortos que se
vêm na vida real, enfim, constróis tu própria um cenário do qual és simples
observadora e tu mesma foste criadora, munindo-te de todos os elementos
capazes para a tua obra.
Ao colocares pessoas em cena, impuseste regras, como por exemplo, não deitar
papeis para o chão, colocares sinais de perigo e de alerta para evitares
acidentes,enfim, muniste-te de tudo o que é essencial para o bem estar e
segurança das pessoas.
Passas então a ser um deus num espaço paralelo ao espaço cibernético onde
criaste a tua obra, conjugando o teu conhecimento em função da lógica para que
o resultado seja exacto.
Contudo apercebes-te que há falhas!
Há pessoas que fogem às regras, como por exemplo alguém que em vez de
colocar um papel sujo dentro da caixa do lixo, atira-o para o chão.
Outro mais ousado morre afogado por não respeitar o sinal de aviso que
proibia nadar na lagoa, etc.etc. etc.....
E porquê? Porque o Homem dotado de inteligência, que o distingue dos outros
animais, gosta de desafiar as regras e tudo o que lhe possa fazer obstáculo, a
título de se poder destacar.

Em função desse comportamento, a insatisfação torna-se evidente levando-o à


cobiça, à ganância e a tornar-se cada vez mais sedento de poder, infringindo as
regras e causando o desequilíbrio natural das coisas.
Deus dotou o Ser de inteligência não para destruir a sua obra, mas para que a
aperfeiçoasse com sabedoria em função da sua Iluminação.
Mas viu-se o Homem dotado de inteligência quando foi capaz de enfrentar os
fenómenos da natureza que tanto o atemorizavam que se intitulou deus,
desafiando as leis Universais.
Nesse desafio constante vai degradando o seu paraíso, o crente perde a
Esperança e o ímpio perde os Sentimentos, a Lógica perde a razão e a Vida
passa a ser caso, sorte e destino.

- Também crês no Inferno Havita?

- Creio nos actos irreflectidos da ambição humana que a leva à perdição,


condicionando-a a um mundo de trevas onde, abdicando da Luz em nome da
riqueza e da luxúria, se torna prisioneira do seu próprio orgulho sofrendo as
penas do desdém como consequência dos seus actos imorais.

- Quando partes para a Missão Havita?


17
- Daqui por cinco dias. Tenho de me despedir das minhas queridas vizinhas e
amigas que sempre me apoiaram. E tu Maria, nunca mais soubeste nada do pai
da tua filha, pois não?

- Nem gosto de pensar nisso! Nunca teve cabeça para lutar por uma vida em
condições.
Gostava tanto dele. Tanto, que me esforcei para que se modificasse e foi tudo
em vão.
Paciência, é como dizes, a vida é caso, sorte e destino.

- Não gostarias de encontrar um outro amor?

- Tenho medo de amar novamente. Tenho a Inês, que é o grande amor da minha
vida.

- Estou de acordo. Respondeu Havita consciente de que se o amor dava alento à


vida, também fazia sofrer.

- Maria, enquanto estiver ausente tomas conta da minha casa e das minhas
flores?

- Claro Havita, com o mesmo amor que sempre dedicaste às tuas coisas eu farei
com que nada vá sofrer com a tua ausência.

- Que bonito. Uma bola? (perguntou Maria tentando saber o significado da


mesma).

- É! É o meu amuleto da sorte. Uma bola de cristal.

- E porquê uma bola de cristal?

- Deixa-a rolar devagarinho por entre as tuas mãos e deixa teu olhar penetrar na
alvura cristalina da lágrima que não é mas poderia ser, na forma que o mundo
tem e pode não ter, na pureza de um olhar ingénuo que possa cruzar o teu e
nele te possas ver, na transparência de um sentimento que nunca te iludirá para
não te ver sofrer, na alma gémea que possa ser e não ser. Sente a sensação da
leveza espiritual que te guia e ensina o significado do ontem, o porquê da
sensação do hoje e a razão do milagre do amanhã.
Faz-te parte igual de um todo igual em todas as suas partes e a Humildade
abrir-te-á os caminhos da Sabedoria. Evita as trevas que o sol dissipa e deixa a
Luz penetrar em teu coração e terás encontrado o Amor.
Espalha o Amor e terás encontrado a Paz. Eis porque gosto da transparência do
cristal, de tudo que seja evidente.

18
- Tens razão Havita, se todos fossem puros, eu não estaria lutando sozinha, tu
não partirias, não havia marginais nem marginalizados. Éramos todos felizes.
Quanto tempo pensas ficar em África, Havita?

- Não sei, o tempo o dirá. Tenho que saber na realidade o que é que a Vida
espera de mim e não ficar à espera do que da Vida eu possa esperar. Contudo
prometo-vos que estarei sempre convosco onde quer que me encontre.

- Havita, tens mesmo de ir? Pergunta Inês abraçando-a como se jamais dali se
fossem apartar.

- Tenho meu amor, tenho que ir! Um dia eu volto. Vou levar-te no meu coração
e mostrar esta foto a todos os amiguinhos que me esperam, a linda Inês no dia
do seu baptizado rodeada de uma família que muito a ama e tanto dela
esperam.

- Não vás Havita, eu te amo!

- Anda cá Inês.

E levando a garota pela mão, Havita levou-a até ao jardim onde se ouviam
cânticos de rouxinóis e as borboletas beijavam as flores que estendiam suas
pétalas coloridas em busca do seu carinho.

- Olha meu amor. Tudo o que vês à tua volta tem vida, como podes apreciar. A
borboleta que feliz balsa numa sinfonia que tu poderás acompanhar. As flores
que quando têm sede suplicam pela tua atenção para que não as deixes morrer.
As árvores de frutos que presenteiam o nosso paladar em recompensa a quem
lhes dedicou carinho e atenção. A terra, berço destes seres tão sensíveis que não
falam nem caminham, mas têm vida, mãe da Natureza, seio da vida. Tudo tem
vida, alma, espírito. Sempre que a todos os seres te dirigires, fala com eles com
delicadeza, mesmo em pensamento, pede-lhes permissão para entrares no seu
mundo e eles serão teus eternos amigos. Quando tiveres saudades de alguém
ou pretenderes que um inocente desejo se cumpra, até às estrelas e à lua te
podes dirigir. E para que saibas que teu desejo foi ouvido, pede ao teu anjo da
guarda que te dê um sinal, uma luz, um som de um passarinho a cantar, uma
borboleta a voar, um cão a ladrar, um gato a miar, algo que na ocasião to possa
confirmar.

- O que é um anjo da guarda Havita?

- É a estrela que durante o dia não vês mas te guia, a mesma que teus sonhos
alumia e te guarda para que nunca te aconteça nenhum mal. É alguém que te
ama e onde quer que possas estar, ao Seu Anjo da Guarda pede também para o
teu, os teus caminhos guiar.

19
- Havita porque é que não aparecem?

- Estão sempre contigo enquanto neles acreditares.

- São bonitos?

- Tão lindos como a tua inocência. Basta fechares os olhinhos e logo eles que
estão no teu coração vêm em teu auxílio, isto é, se não deixares que o lugar
deles seja ocupado pela maldade.

- E eles podem estar no meu coração onde as pessoas que eu amo também
estão?

- Claro, desde que todos sejam feitos de amor.

- Amo-te Havita.

- Amo-te muito Inês. Agora que sabes que tudo tem uma razão de ser, vamos
ter com a mamã, fazer um lanche que a barriguinha da Inês já deve estar a
reclamar.

- Maria, que estás aí a coscuvilhar?

- Desculpa, desculpa Havita. Queria saber mais sobre ti. Só agora é que descobri
que tu és um mistério e gostaria de começar tudo de novo a teu lado para te
poder conhecer na realidade.

- Pois é Maria, é o princípio do fim, nós estamos sempre a aprender. Vamos lá


meninas quem quer doces? E um sumo de laranjas colhidas pelas Inês que com
todo o carinho pediu permissão à laranjeira? Hum! Quem quer, quem quer?

- Eu sou a primeira, retorquiu Inês.

- Porque não, meu anjo da guarda?

- Posso ser teu anjo da guarda?

- Claro. E nós que muito te amamos, seremos sempre os teus onde quer que nos
encontremos.

Havita e se fizéssemos lanche de despedida com as nossas amigas?

- Não Maria! Não leves a mal. Isto não é uma despedida, mas um até sempre.
Quero levar no meu olhar um regresso feliz e não uma partida cheia de
tristezas.

20
- Concordo. Havita. Os doces estão uma delícia, foste tu que os fizeste?

- Claro.

- Tens jeito!

- Não. Tenho gosto e carinho por tudo o que faço. Vês aquele quadro onde no
meio de uma luz emergida do nada, surge uma phoenix ? Fui eu que o pintei!

- Lindo Havita!

- Gostas desta toalha de linho bordada a branco com crochet à volta? Fui eu que
a fiz.

- Porquê Havita? Fizeste camisolas para a Inês, fazes lindos poemas, de que
mais és tu capaz?

- Tudo o que qualquer outro pode fazer. Sabes que parar é morrer. Devemos
sempre construir bem ou mal.
Nos erros aperfeiçoamo-nos, na coragem e carinho pelo objectivo chegamos à
meta. Na meta olhamos para trás, o que era sonho passou a ser realidade. E a
realidade é o produto da tua obra. Eis a lógica de tudo.

- Havita! Comenta Inês. Este sumo é tão docinho! Quero mais.

- Claro Inês, se tu tratares as coisas com carinho, com carinho crescerão e felizes
com carinho darão o seu fruto. O meu pé de laranjeira teve sempre muito amor
e agora só dá laranjas doces e sei que vais continuar a tratar dele com muito
amor, para quando eu chegar ele ser uma árvore enorme, cheia de laranjas e
com uma sombrinha muito agradável para os dias quentes de Verão.

- Está prometido!

- Queres ficar esta noite comigo, Inês?

- Mãe, posso?

- Claro, ficar com Havita é ficar em família.


Mas porta-te bem. Agora também tenho que ir embora para tratar da casa. Se
precisares de alguma coisa Havita, é só chamares. Até amanhã então.

- Obrigada!

- Inês, que vamos fazer para o jantar? És capaz de me ajudar?

21
- Um desenho!

- Um desenho para o jantar, Inês? Em que estás a pensar?

- Desculpa Havita, qualquer coisa serve. Eu estava a pensar que gostaria de


ficar com um desenho teu como recordação. Fazes?

- Está bem, está bem, e que tipo de desenho preferes?

- Qualquer um, tudo para ti na vida tem significado e para mim também vai ter.

♥♥♥

A noite tinha chegado e já a Lua iluminava o universo coberto de um manto


negro que servia de recreio às estrelas que se cruzavam sem se chocarem. Dir-
se-ia que até elas sabiam o caminho a seguir por muito escuro que se
apresentasse.
Com o lápis ao de leve, concentrada num sentimento de saudade que já a
invadia por saber que se iria separar daquele anjo que tinha ali ao lado, Havita
deixava - o deslizar suavemente, como um deus que desenha a sua obra na tela
da vida.
Inês absorvia todos os gestos de Havita como se quisesse fazer parte do seu
universo, sem deixar escapar qualquer movimento que não retractasse a
imagem fiel daquela que ela jamais viria a esquecer.
No centro de um coração do tamanho do mundo, Havita delineara sem a menor
pressa um ser feminino de mão dada com um inocente, atravessando um riacho
cheio de peixes, que se estendia num espaço verdejante cheio de flores e árvores
onde os passarinhos felizes cantavam à sua passagem.
O Sol tinha rosto e a Lua com rosto lhe sorria. Tinha animais selvagens
juntamente com animais inofensivos como se ali quisessem deixar uma
mensagem.
A mensagem de Havita.

- Que lindo Havita! Somos nós?

- Sim. Alguém e eu no passado, eu e tu no presente, tu e alguém no futuro. Nós.


Vou juntar-te este texto que tenho aqui. Agora que és pequenina vais entender o
desenho, mais tarde irás entender a minha mensagem.

A noite ia alta e Inês já bocejava. Havita conduziu-a com todo o carinho para o
quarto onde Inês docemente colocou o desenho na mesa a seu lado, como se
jamais dele se fosse apartar.

- Boa-noite Havita, podias adormecer-me contando-me o que contem a tua


mensagem no papel que me deste juntamente com o desenho.

22
- Claro Meu Amor.

E abraçando Inês que avidamente procurava os seus carinhos, Havita


começou.....
- Vem...dá-me a mão!...
Une o teu pensamento ao meu e deixa-te transportar pela brisa suave deste
Sentimento etéreo tão profundo, que se difunde na magia do AMOR.
Fecha os olhos devagarinho...
Vês?.. aquela luz branca que se aproxima e se difunde em luzes de mil cores?
Deixemo-nos penetrar por ela e entrar num mundo tão nosso, isento de ódio e
inveja, onde a Vida desconhece a Morte e o Desgosto, onde nele poderemos ser
tudo o que desejarmos.
O calor que emana dessa luz é doce e perfumado, inebria-nos e conduz-nos à
paz imensurável do Universo.
Abre os olhos devagarinho...
Olha em teu redor...vê a fantasia dos teus sonhos tornarem-se Realidade.
Repara na paisagem que se depara em teu redor, como tudo é belo e calmo! O
azul do Céu se mistura com o solo donde brotam flores das mais variadas cores.
Escuta!...
Elas sorriem à tua chegada e curvam-se para te darem as boas-vindas. As
nuvens estendem-se como tapetes que se desenrolam para que não firas teus
pés.
Os pássaros saúdam-te com as mais belas sinfonias que teus ouvidos já alguma
vez tenham escutado.
Repara!...
Olha aquele riacho saltitando despreocupado. Faz lembrar a criança que tens
em ti, despreocupada e inocente. Sem maldade, sorri aguardando um mundo
melhor.
Repara como ele se alarga mais adiante, feliz da vida vai dar a um porto sem
destino.
Feliz, transparente, convida-te a mergulhares nele e a falares com os peixes que
curiosos te espreitam quando escutam teus sussurros.
Aí vai ela...A borboleta majestosa agitando as suas asas numa valsa que tu
podes acompanhar.
Escuta!...
Ouve a sinfonia deste chilrear celestial que te convida a entenderes um Mundo
melhor.
Como tudo isto é lindo, como tudo isto é bom.
O Sol sorri à tua passagem, a Lua entrega-se ao calor da sua paixão.
O esquilo saltita despreocupado, o leão acaricia a gazela, TU...EU... Eu e Tu no
mesmo EU, poderemos ser cada uma dessas personagens deste mundo tão-
somente NOSSO.
É só tu quereres! Sempre que quiseres voltar a este paraíso, lembra-te...Eu faço
parte dele.
Eu...eu serei nada, Tudo, ou simplesmente a parte de um todo, ou, para ti, o
todo de uma parte...
23
Serei simplesmente o que desejares. A brisa que sopra em teu rosto, o sol que
acaricia o teu corpo, o sangue que corre em tuas veias, o tic-tac do teu coração, a
sensação de uma presença amiga.
Eu sou NADA, simplesmente aquilo que tu queiras.
E... Lembra-te...Um dia...por muito distante que imagines que eu me encontre,
eu estou mais perto de ti que nunca. No ar que respiras, na luz que ilumina o
teu olhar, no sorriso de uma criança, na flor que colhes e inalas, no calor do teu
coração, na doce sensação do teu sono, na transição para um mundo melhor.
Vem!...
Deixa que o teu espírito trespasse o meu, deixa que esta fusão de AMOR seja
tão pura que confunda o próprio Cosmos.
Mais uma estrela nasceu. O Universo cresceu mais um pouquinho por nada
haver de mais belo nesta vida que o calor do nosso AMOR.
Sentes?...Tal como um raio de sol.
É quente, dá vida, dá existência.
O AMOR é tudo isto que possas não encontrar explicação, mas que envolta a
tua existência numa áurea divina.
O AMOR é o sentimento mais forte, mais puro que te faz sentir que o OUTRO
poderás ser TU, quando TU, és simplesmente mais um outro qualquer na
imensidão deste Universo.
O AMOR é o sonho que todos almejam mas nem todos reconhecem, porque é
tão Simplesmente Simples que as pessoas se esquecem que na Simplicidade das
coisas se ocultam os maiores valores....

Inês adormecera envolta em mil fantasias de uma voz quente e suave que a
transportava para um mundo de paz e amor. Havita beijando-a ternamente
acomodou-a, e, afagando-lhe os caracóis, deixou-se trespassar por um arrepio
de receio de não poder vir a repetir aquele afago.

♥♥♥

Já o sol ia alto quando o telefone tocou despertando Inês e Havita que dormiam
ainda profundamente.

- Está sim!

- Madame Havita? Daqui fala da Missão da Fraternidade. Estamos a ligar-lhe na


sequência da sua viagem que gostaríamos que antecipasse e viesse de imediato,
pois vamos ter a visita de uma pessoa muito querida que fundou esta confraria
e que teria todo o gosto em conhecê-la.
E como é só questão de poucos dias, achamos que antecipar talvez não seja uma
inconveniência. Que diz? Pode?

Sim, claro. Claro que sim... Porque não? E quando posso levantar o bilhete?

24
Hoje mesmo, para poder partir amanhã às seis da manhã. Muito obrigada, cá a
esperamos.

- Quem era Havita? Que te queriam? Perguntou Inês curiosa.

- Parto já amanhã ao nascer do sol.

- Oh! Já?

Havita ficou queda e muda, contente e triste. Mas não podia voltar atrás.

- Queres vir comigo logo à tarde levantar o bilhete de avião, Inês?

Inês acenou pesadamente a cabeça em sinal de afirmação.


Inês nunca tinha ido ao aeroporto e o barulho de um avião que se aproximava
fê-la esgaçar os olhos e comentar.

- É tão grande Havita. Vais num como este? Parece um pássaro gigante. Tem
janelinhas. Quando partires vais olhar através delas e pensar em mim?

Havita sufocou! E para que Inês não lhe visse as lágrimas caírem, continuou o
diálogo:

- Um dia, quando te puder pagar uma passagem de avião a ti e à tua mãe,


prometo-te que um passarinho como este vos levará até mim.

- Não te esqueças Havita!

De regresso a casa, ambas evitavam qualquer palavra. Até Inês tinha receio de
mostrar fraqueza, parecia uma mulherzinha.

- Vamos lanchar Inês? Pede e eu ofereço-te!

- Porque viemos lanchar aqui à praia Havita?

- Para te mostrar que o mundo parece muito grande mas não é e que a distancia
nunca muda o que sentimos uns pelos outros. Repara! O mesmo sol que tu vês
é o mesmo que me vai aquecer apesar de ir para muito longe. Nasce por detrás
das montanhas e parece que se esconde por detrás do mar, quando afinal nem
sequer adormece pois dá a volta ao mundo para que ninguém diga que o sol
quando nasce não é para todos. Logo, o sentimento que temos uma pela outra e,
que é igual, por muito distantes que estejamos, vai manter-se em qualquer lado
do mundo, nunca vai terminar. Tal como o sol, vai sempre girar sem nunca
sequer adormecer. E apesar de separadas, seremos sempre muito unidas. E
agora, diz-me lá meu amor, o que pretendes?

25
- Simplesmente um gelado.

- Gulosa!

Inês manteve-se calada o resto do dia como se quisesse apagar do calendário da


sua vida o registo do seu primeiro desgosto.

- Pronto Maria, aqui está a tua menina. “A minha menina”. Pensou. E sorriu
para que seus olhos não transparecessem as lágrimas do seu coração.

- Gostaste de ir ver os aviões Inês? Perguntou-lhe a mãe.

Inês não respondeu e foi refugiar-se no quarto.

- É melhor assim. Respondeu Havita e abraçando Maria, deu-lhe um beijo de


até sempre.
Dentro de poucas horas partiria, tinha de descansar um pouco. Não lhe apetecia
comer nada.
Estava exausta de ter preparado à pressa as suas bagagens e os seus
companheiros.
Foi tudo muito repentino.

♥♥♥

Uma chuva miudinha irrompera com a aurora daquele dia.


Antes de Havita entrar no avião, olhou uma vez mais para trás e sentia que a
sua terra se despedia dela. Até o Sol, o seu grande amigo, evitou as despedidas
ocultando-se por detrás das nuvens, e não conseguindo conter as lágrimas
deixou que a chuva tomasse conta do dia, sem que Havita se apercebesse que
até ele acompanhava a sua tristeza, como acompanharia todos os dias da sua
existência.

Havita estava entregue nas asas daquele pássaro gigante que a levaria a abrir
portas de novos horizontes.

Já todos aguardavam por Havita para lhe dar as boas vindas. Um grupo de
crianças com cartazes erguidos, ostentavam o nome de Havita na ânsia que esta
se pronunciasse a fim de a conhecerem.
Seria uma daquelas velhotas aparentemente benevolentes que se irritava com
facilidade e não tinha paciência? Seria mais uma que só ensinava sob o efeito da
vergasta?

26
Olhares profundos cheios de mistério brilharam quando viram Havita, mas
desconfiados, mantinham-se na expectativa.

Porte altivo e sereno, num vestido branco que mais parecia enfeitar uma noiva,
os cabelos ruivos de Havita pendiam sobre os ombros sobressaindo de um
chapéu branco que acompanhava a cor do vestido, contrastando com os seus
tons de trigueira.
Os miúdos ficaram felizes, contudo a Irmandade da “Fraternidade” esperava
alguém mais experiente e que não desse tanto nas vistas.

- Como está Havita? Sou a irmã Maria. Prazer em conhecê-la.

- O prazer é todo meu. Respondeu Havita cortesmente em simultâneo com um


cumprimento de cabeça e de mão.

- Estas são: a irmã Carina e a irmã Marina, e, este é o Padre Manuel. A irmã
Linda espera-nos. Não nos pôde acompanhar, por estar condicionada à sua
cadeira de rodas.

Havita correspondeu com um cumprimento de cabeça.

- Ei! E vocês seus marotos, quero saber o nome de todos.


Vocês é que me vão ensinar! Para isso é que estou aqui. Para aprender. Prometo
não ser má aluna.

Aqueles olhos negros e luzidios iluminaram-se de felicidade afastando de


imediato o receio que tinham vivido em vésperas da chegada de Havita, por
esta ainda ser um mistério.
Havita transmitia confiança e ternura, apesar de parecer uma boneca de
porcelana fora do seu meio.
Rodearam Havita, como se já a conhecessem há muito tempo e seguiram o
caminho cantarolando, convictos que Havita seria a mãe que não tiveram e
tanto sonharam.

- Eu sou o Tomé, dizia um pequenito dos seus cinco anos. Posso ficar contigo?

- Não quem fica com a Havita sou eu, que sou mais velha e ela precisa de quem
a ajude, disse Ana, uma linda negra de treze anos.

- Não. Não! Quem fica sou eu. Respondeu Inês de seis anos.

- Tu não Inês! Responderam Tomé e Ana. És muito pequena e dás trabalho.

Havita que os acompanhava nestas suas primeiras traquinices, como se fossem


amigos de há longa data, parou como se fosse fulminada por um raio e

27
balbuciou: “INÊS”....como se este nome fosse a chave mágica de um mistério
por desvendar.

- Sou eu! Retorquiu a menina. Eu sou a Inês!

Havita sufocou, lembrou-se do que havia dito à sua pequenina antes de deixar a
sua terra natal. Que em todo o lado existem muitas Inês que não tiveram a sorte
que ela teve de ser amada por alguém
Frente a ela estava mais uma Inês que acabava de ter a sorte de finalmente vir a
ser amada por alguém.
Inês, a pequena negra de seis anos abraçou Havita e abanando a cabeça mais
uma vez pediu-lhe a confirmação.

- Posso ser eu Havita? Posso ficar contigo? Posso?

Àquela voz meiga de criança quem poderia resistir?

- “INÊS”.......... Sim Inês porque não? Respondeu Havita depois de um corte de


pensamento que a lançara num espaço intemporal.

A gratidão foi tanta, que Inês lançando-se em seus braços lhe beijou a fronte
com tanta força que o lábio sangrou, mordiscado pelo seu ratinho da frente.

- Minha pequenina, como fizeste isto? Anda cá.

Tirou o chapéu, colocou-o na cabeça de Inês e dando-lhe a mão prosseguiram o


caminho descampado que as levava ao acampamento.
O sol escaldava. Ainda tinham muitos metros de savana para prosseguir.
Havita não estava habituada a tanto calor, era de temperaturas muito baixas.
Retirou do chapéu o lenço azul cristalino que o envolvia e cobriu a cabeça e o
rosto para se proteger.

- Fica-te bem Havita. Respondeu Ana a mais velha. Tens mais coisas bonitas?

- Quando chegarmos Ana, vais ajudar-me a desfazer as malas e depois mostro-


te tudo. Está bem? Queres?

- Se quero!

As irmãs caminhavam atrás deste grupo, curiosas pelas novidades mas contidas
na sua curiosidade, não fossem pecar pela cobiça alheia.
Seus olhares entrecruzavam-se questionando-se quem seria Havita?

28
Padre Manuel abria caminho cantarolando, feliz pelas gargalhadas das crianças
que faziam relembrar a sua juventude fazendo-o renascer, já que fazia tempo
que tal não acontecia.

Já lá estava há um ano cumprindo a sua missão, contudo fazia-lhe falta um


sorriso feliz, juventude e novas ideias. Como qualquer padre que professa a sua
fé era devoto ao celibato. Contudo a presença de Havita não deixou de mexer
com ele.
Seriam as novidades? Seria o sorriso franco e a pureza de Havita? Seria o
mistério que seu olhar ocultava? Porquê ainda jovem e com tão bonito
semblante, abdicar do prazer que quase todo o mundo procura escondendo-se
na solidão? Tinha uma mistura de ar angélico e audacioso ao mesmo tempo.
Parecia manter respeito pelo sua postura e era mais inofensiva que um
passarinho. Quem seria Havita? Questionava-se.

- Finalmente, disseram os miúdos. Chegamos Havita!

- Até que enfim! Respondeu Havita pedindo uma bebida fresca.

- Havita. Está em sua casa. Disse a irmã Maria com ar de Superiora. Esteja à
vontade. Sirva-se do que precisar. Entretanto a irmã Carina vai conduzi-la aos
seus aposentos onde poderá descansar antes do jantar.

- Eu vou buscar-te uma água fresquinha Havita. Respondeu a voz meiga de


Inês. E correndo à cozinha logo trouxe a Havita um copo que mal cabia nas suas
pequenas mãos rechonchudas.

- Obrigada Inês.

Padre Manuel afastou-se com um cumprimento de cabeça.


Irmã Marina e irmã Carina afastaram-se também sem mais comentários.
Agora Havita compreendia porque é que as crianças estavam felizes com a sua
presença. Havita inspirava mais intimidade.
Alguém que conseguia entrar no mundo das crianças, por elas sentisse e assim
se comportasse a fim de melhor os poder entender.
Havita recostou-se no leito que agora iria ser seu, entregando-se ao cansaço,
enquanto que Inês refrescando-a com um leque velava pelo seu bem-estar.

Havita dormia profundamente quando irmã Linda, em sua cadeira de rodas a


veio despertar.

- Havita, Havita, acorde. São horas do jantar. Não quer primeiro tomar um
banho?

- Obrigada irmã, respondeu Havita espreguiçando-se.

29
Irmã Linda arregalou os olhos pelo à vontade de Havita. Afinal Havita parecia
ter maneiras e já estava tão à vontade. Seria de confiar? Ou seria alguém tão
simples que não precisava de rodeios para atrair a amizade de alguém? Seria
esse alguém, que há tanto esperava e com quem se pudesse identificar?
Ao primeiro contacto, que foi o despertar de Havita, irmã Linda, de olhar triste
e profundo sentiu sua alma jubilar quando seu olhar cruzou o de Havita.
Que teria Havita de tão secreto que a fez estremecer bem dentro do seu
coração?

- Que horas são irmã? Perguntou Havita, espreguiçando-se novamente.

- Ainda é cedo, mas nós aqui deitamo-nos cedo para cedo nos levantarmos
enquanto o sol não está no seu auge, para tratarmos do nosso próprio cultivo,
depois ensinar as crianças e ajudar quem precisa. Precisa de ajuda Havita?

Havita enterneceu-se por aquele carinho cálido de quem não pode e é tão
prestável. Pegando-lhe nas mãos, beijou-as com carinho e respondeu:

- Não minha irmã muito obrigada, estou um pouco cansada! Mas isto passa.
Desculpe meu comportamento, mas algo me diz que você é um anjo incapaz de
criticar o meu à vontade.

- Encontramo-nos à mesa. Respondeu irmã Linda afastando-se com um sorriso


nos lábios.

Depois de se ter desmaquilhado e tomado um duche revigorante, Havita vestiu


uma calça bege bem justa que contornava seu corpo de gazela realçando-lhe
suas formas femininas, combinando com um top mesclado cor da selva. Seus
cabelos atados com um lenço num tom tigrês, deixavam escapar de vez em
quando um perfume adocicado que combinava com o seu sorriso.

- Aqui estou eu, respondeu Havita ao chegar à mesa onde todos a aguardavam.

Irmã Linda sorriu. Seu sorriso quase deixava transparecer a crítica aos
pensamentos das outras irmãs. Ela sabia que no fundo Havita era mais simples
do que aparentava.
A sua maneira de estar perante a vida, deveu-se a um acidente que cedo a
subjugaria a uma vida pacata, quase como se a vida por ela passasse sem ela
pela vida passar, e que a mantinha em constantes momentos de reflexão,
valorizando ao pormenor tudo que registava. Poder-se-ia dizer que era uma
cópia de Havita girando em planos diferentes.

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- Agradeçamos a Deus todas as bênçãos da vida. Disse irmã Maria erguendo a
voz em tom de Superiora, mantendo o olhar baixo para ver se todos estavam
concentrados.

À sua voz todos obedeciam, só padre Manuel se mantinha cabisbaixo


espreitando de vez em quando Havita.
Amava a Natureza, as suas formas, os seus perfumes, os seus encantos. Havita
desconcertava-o e não sabia porquê. Qual seria o enigma?

- Amem. Respondeu todo o mundo em conjunto, seguido do padre Manuel que


corou cerrando os olhos antes que alguém notasse o seu alheamento.

- Havita, que vais fazer amanhã? Perguntou Inês, mal se apercebeu que o
silêncio tinha sido quebrado pelo tinir dos talheres que iniciavam a refeição.

- Amanhã vocês vão mostrar-me a beleza do vosso mundo! Vão apresentar-me


na escola onde vou ensinar. Mais! Deixa-me ver. Vão apresentar-me às pessoas
que vivem à nossa volta e vamos visitar os doentinhos. Que acham?

- Então não vamos primeiro desfazer as tuas malas como me prometeste?


Respondeu Ana a mais velha.

- Claro é a primeira coisa. Aliás, a primeira coisa que vamos fazer é tratar de
ambientar os meus fiéis companheiros, que são a minha família e devem estar
ansiosos por vos conhecer.

- Eu trato deles, gosto muito de animais. Respondeu Tomé.

- Havita trouxe consigo animais? Perguntou padre Manuel.

- Sim claro! Como me poderia separar daqueles que sempre se mantiveram


mais próximo de mim? Trouxe os meus gatos e o meu hamster. Também gosta
padre Manuel?

- Sim, mas de animais de porte um pouco mais corpulento. Tenho o Billy, hei-de
apresentar-lho.

- Ficarei encantada, respondeu Havita.

Se não fosse o corte de silêncio quebrado pelas crianças, mais parecia que até as
próprias refeições eram um acto de culto. Pelo que Havita se pôde aperceber

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logo de início, é que possivelmente teria que se reprimir muitas das vezes para
não quebrar as normas da casa.

♥♥♥

- Gostou do jantar Havita? Perguntou irmã Linda, delicadamente?

- Adorei irmã Lindinha! Mas como se chama o petisco? Segredou-lhe ao ouvido.

- Meninas, temos de nos deitar cedo para cedo nos levantarmos. Comentou
irmã Maria.

Após comporem suas vestes, caminharam em silêncio e afastaram-se.


Irmã Linda ficara para trás e, pegando nas mãos de Havita, sorriu e perguntou
às crianças:

- Alguém sabe dizer à Havita o que ela acabou de comer?

- Búfalo cozinhado pelas irmãs e caçado pela aldeia, por mim e pelo padre
Manuel. Respondeu Tomé apressadamente.

- Que delícia. E aquela sobremesa que quanto mais se come mais apetece?

- São beijos de noiva feitos pelo padre Manuel. Respondeu Inês.

Havita corou.

- O padre Manuel fê-los? Perguntou Havita cuidadosamente para não repetir o


nome da sobremesa.

- É a minha especialidade, de vez em quando.


Reparei ao primeiro impacto que Havita ficou surpreendida com o sabor!

- Sim. Sabe aquela sensação de se estar a provar o néctar dos deuses? De algo
nos transpor ao irreal? A sua sobremesa pareceu-me irreal, pelo que tive que me
conter em meus pensamentos para me submeter a tal prazer. Hei-de querer
repetir.

- É um prazer Havita. Respondeu padre Manuel.

Irmã Linda sorriu, comentando com Havita que padre Manuel tinha muitas
qualidades, entre elas o carinho com que fazia aquela iguaria, “ beijos de
noiva”.

- Irmã Lindinha, posso dormir com Inês?


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- Claro. Acho que irmã Maria não se vai opor. Ajuda-a a não se sentir sozinha
nesta terra onde o silêncio, irmão da paz, é embalado pelo desabrochar da
Natureza e pelo sorriso das nossas crianças, expandindo-se em toda a sua
dimensão. Querem que as acompanhem?

- Venha daí irmã Lindinha, vamos gostar de adormecer ao sabor de uma carícia
sua. Respondeu Havita sem hesitar.

Irmã Linda sorriu. Sentia-se despertar para a vida. Algo estava a mudar. Quem?
Como? Porquê? Pensou.
Depois de se despedirem de Padre Manuel que se afastou com um sorriso nos
lábios, grato a Deus por aquele dia, seguiram por um corredor enorme onde os
quartos se dispunham individual e paralelamente uns aos outros, e, do outro
lado da ala, encontrava-se o tão discreto estúdio, onde o padre Manuel
descansava ou fazia as suas reflexões.

- Irmã Lindinha, como é o quarto do padre Manuel? Perguntou Havita, curiosa.

- Não sabemos. Ele é que trata das suas coisas pessoais. Só a roupa é que é
tratada pelas serviçais.

- E vocês nunca tentaram espreitar?

- Havita! O que é que te deu?

Irmã Linda tratara Havita por tu sem se aperceber. Uma infinita amizade cheia
de cumplicidade prometia nascer entre ambas.

- Desculpe. Tratei-a por tu.

- Fico feliz irmã Lindinha, sinto-me em família.


Tenho a certeza que nem vou estranhar estar tão distante da minha terra.

A irmã sorriu, deu um beijo de boas noites a Inês e à Havita e aconchegando-as


no seu leito, disse:

- Sonhos cor-de-rosa meninas e portem-se bem.

♥♥♥

Havita adormecera reflectindo nas palavras da irmã Linda “ nesta terra onde o
silêncio, irmão da paz, é embalado pelo desabrochar da Natureza e pelo sorriso
das nossas crianças, expandindo-se em toda a sua dimensão”.

33
♥♥♥

O sol madrugava colorindo de cor purpura a negra manta que o cobrira na


noite e sorrindo lançava seus primeiros raios despertando a vida ao seu redor.
Ouviam-se os pássaros esvoaçar e já se podiam sentir no solo sons de
cavalgadas de manadas que passavam à distância. Na ânsia de encontrar
Havita, sol penetrava por entre densos arvoredos de florestas que conduziam a
enormes clareiras onde se encontrava a Missão. Com todo o carinho que sempre
tiveram um pelo outro, estava combinado que o primeiro a acordar iria acordar
o outro.
Sol tinha sempre pressa em chegar até Havita só para ter o prazer de brincar no
seu rosto e afagar-lhe os cabelos.
Por entre as bronzeadas tábuas de madeira da janela do quarto de Havita, sol
esgueirou-se com seu modo subtil e sorrindo beijou-lhe a fronte.
Enternecida por aquele mimo familiar, Havita sorriu, agradeceu a Deus a sua
obra e abraçando sol espreguiçou-se, beijou Inês e pensando em INÊS deixou
rolar uma lágrima que sol secou com um simples beijo.

♥♥♥

- Põe-te a pé dorminhoca. Aqui a vida é outra. Tens muito para fazer (sussurrou
sol) e deixando Havita entregue à sua tarefa, subtilmente saiu da mesma forma
que entrou sem que alguém se apercebesse que entre eles existia um carinho
especial.

Havita estava a preparar-se para se vestir quando Ana entrou pelo quarto
dentro ansiosa.

- Havita, vamos desfazer as tuas malas?

- Shuuuuh! Inês ainda dorme. Fala baixinho Ana. Bom-dia! Como estás?
Dormiste bem?

- Desculpa Havita, bom dia. Não, não consegui dormir nada. A noite foi muito
longa. Estava ansiosa por vir ter contigo. Prometeste-me que te ajudava a
desfazer as malas. Lembras-te?

- Havita. Sussurrou Inês. Também posso ajudar?

- Claro, meninas.
Mas primeiro vamo-nos lavar, tomar o pequeno-almoço e depois fazemos tudo
o que tivermos tempo.

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Correram as três em pézinhos de lã para não acordar ninguém e foram à
cozinha preparar o pequeno-almoço depois de se tornarem apresentáveis.
Voltaram para o quarto de Havita e iam começar a abrir as malas quando um
barulho esquisito se fez ouvir.

- É padre Manuel que anda a passear Billy. Comentou Ana sem retirar o olhar
da bagagem que lhe contaria a história de outro mundo.

- Uma boneca! Que linda! Disse Inês. Nunca vi nenhuma assim! Comentou.
Posso pegar nela?

- Claro, pega-lhe com jeitinho porque ela é muito sensível.

- Que lindo vestido Havita, quase que me serve. Posso experimentá-lo? E estes
sapatos são tão bonitos. Parecem duma bailarina. Emprestas-mos? Exclama
Ana.

- Calma, meninas, eu deixo experimentar, contudo temos mais afazeres a


cumprir, não? Vou apresentar-vos aos meus bichinhos que vão ficar ao cuidado
de Tomé e em seguida vocês vão apresentar-me aos meninos da escola e às
famílias está bem?

- Claro! Deixas-me levar o teu vestido Havita? Replicou Ana um pouco tímida.

- Deixas-me levar a tua boneca? Perguntou Inês.

- Sim, sim. Deixo, mas só hoje. Está bem?

Estavam todas a combinar as tarefas do dia quando irmã Linda entrou.

- Então minhas princesas, dormiram bem?

- Já nos lavamos, tomamos o pequeno-almoço e já desfizemos as malas da


Havita.
Olhe irmã, olhe que linda boneca. Mostrou Inês com todo o cuidado perante a
sua fragilidade.

- Que linda! Mas toma cuidado, ela é muito frágil!


Já reparaste no olhar dela Inês? Parece que te quer dizer alguma coisa.

Havita sorriu. Tal como ela, sentia que irmã Linda tinha o dom de amar tudo o
girasse à sua volta. Quereria ela também transferir para Boneca de Porcelana a
história da sua vida? Sua sensibilidade era evidente na doçura do seu olhar.

- Então Havita, estás preparada para conheceres as tuas crianças?

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- Claro, irmã. Acompanha-nos?

- Com todo o gosto. Também gosto muito delas só que não posso colaborar
tanto com elas como desejaria.

- Porque não?

- Estou limitada, além disso já têm quem trate delas. Havita e padre Manuel.

- Irmã e se eu pedisse autorização à irmã Maria para me acompanhar na tarefa


de aprendizagem às crianças. Eu ensino-lhes a integrarem-se no mundo em que
vivem e a irmã ensina-lhes a descobrir o que poderá estar na origem dele.

- Não sei se irmã Maria aceitará. Nunca me fizeram uma proposta dessas. O
padre Manuel está incumbido de uma parte dessa tarefa, a doutrina. Não quero
de maneira nenhuma ocupar o seu papel.

- Não irmã Lindinha. Todos, mas todos nós temos um papel diferente. Cada
qual com o seu valor e a sua experiência, e unidos com o mesmo objectivo
conseguiremos melhores resultados.

- Obrigada Havita é questão de tentarmos. É para mim uma alegria sentir-me


útil nesta vida.

- Sabe uma coisa irmã, a primeira vez que a vi gostei logo de si. Seu olhar
profundo perguntava ao seu coração “Quem, Como e porquê”. Quem - você,
eu, nós, todos como partes de um todo. Como - com Amor, por amor. Porquê –
Porque somos obra dum Amor puro que precisa de ser difundido e não de um
amor egoístico que só leva à destruição. No meu destino está escrito que você já
foi, é e iremos ser sombra uma da outra.

- Como assim Havita?

- O carinho especial que nutro por si, é alimentado por laços de amor
transcendentes que à partida dir-se-iam já existirem mesmo antes de nos
conhecermos, que nos mantiveram no passado, que nos fazem enternecer no
presente e que prometem num futuro longínquo acompanhar-nos até nos
difundirmos numa só.

- Estou a ver que acredita na reencarnação.

- Acredito que qualquer obra para atingir o estado perfeito terá que passar por
metamorfoses, até atingir a perfeição.
Tal como a vida surgiu do nada atingindo gradualmente a beleza que lhe foi
confiada, a essência do que lhe dá origem também sofreu, sofre e deverá sofrer
progressos para atingir a magnitude da sua beleza que culminará na sua
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perfeição e consequente integração no Absoluto. Ninguém nasce ensinado. Se
formos humildes de coração e aceitarmos tudo com abnegação, a nossa elevação
será tanto mais rápida quanto a nossa aprendizagem e consequente empenho
de aperfeiçoamento da mesma.

- Havita, como é que uma rapariga como tu que mais parece um belo quadro
pode conter tanto sentimento? Perguntou irmã Linda.

- Gosto do Belo, da Arte que o exemplifica.


Lógico será que a perfeição na base e no topo de tudo o que existe, desperta a
nossa Razão para crer e aceitar que nada surge por acaso, nem do caso, mas de
Alguém que soube como traçar as linhas da vida. Pobres dos pobres de espírito
que dormem acordados e não zelam pelas suas obrigações nem lutam pelos
seus sonhos.

- Sempre cumpriste as Leis dos Mandamentos?

- Não sei. Acho que não. Tento aperfeiçoar-me. Amo o próximo como a mim
mesma, sabendo que nunca farei aos outros o que não desejo que me façam a
mim, porque tenho a certeza que se hoje a desgraça bate à porta do meu irmão,
se eu lhe negar auxílio, um dia poderá bater à minha e ele com todo o direito
que tem, me possa negar o auxílio que eu lhe neguei. Sei que sou parte de um
Todo constituído por partes que se integram numa totalidade universal.

- Sabes Havita, parece que já te conheço de há longa data.

- Quem não lhe garante que em outras tentativas de aperfeiçoamento já não


fomos laços de família muito estreitos? Irmãs? Mãe e filha?

- No presente Havita, vou considerar-te a irmã amiga que sempre desejei ter.

- Para mim, irmã Lindinha, é uma benção tê-la como irmã no meu coração e na
minha vida.

Padre Manuel aproximou-se e cumprimentou-as.

- Minhas queridas senhoras, dão-me o prazer de vos acompanhar à escola?

- Claro. Respondeu Havita prontamente.

Irmã Linda sorriu. Apesar da sua infelicidade, ela sabia que o coração por vezes
nos prega partidas sem deixar que a Razão possa pôr à aprovação da Lógica a
sua conduta.

O sol já estava no seu apogeu e não corria sequer uma ponta de brisa. Os passos
eram abafados por um terreno ressequido que levantava poeira ao mais
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pequeníssimo impacto. A época das chuvas estava distante e quando caiam
tempestades tropicais eram de pouca dura. O solo ávido de tanta passibilidade,
engolia de imediato a mais pequenina gota que lhe tocasse ao de leve.

- Que calor! Disse Havita.

- Quer um pouco de água Havita? Costumo trazer sempre comigo o cantil.


Respondeu padre Manuel.

- Ficar-lhe-ei eternamente grata.

- Havita deu um ar de satisfação e enxugando o rosto com o lenço que lhe


prendia os cabelos, sorriu de alívio.

- Agora padre Manuel, que utilizei o seu cantil, vou ficar conhecedora de todos
os seus segredos. Disse Havita com ar de brincalhona.

- Será Havita? Talvez assim me possa ajudar a desvendar o segredo dos meus
segredos que ainda não consegui descortinar.

Já se ouviam vozes próximas quando as crianças voltaram para trás e


abraçando Havita, contentes diziam:

- Corre Havita, já estão todos à nossa espera. Estão ansiosos.

Os olhares curiosos das crianças, e interrogadores dos adultos, aguardavam a


nova professora.
Aqueles singelos corpos brilhantes, seminus, cor de ébano, que reflectiam o sol
numa carícia constante de quem nada tem a não ser o afago do calor que
ilumina a vida, agitavam-se numa dança de boas-vindas como cumprimento e
aceitação àquela que viria a mudar as suas vidas.

- Lindo!!! Retorquiu Havita emocionada. Não mereço tanto.

- Havita, isto é uma forma de agradecimento a quem os vê como elementos


necessários, quando, na realidade têm sido maltratados, marginalizados e
esquecidos, como se não fizessem parte desta vida, comentou padre Manuel.

Havita juntou as mãos e colocando-as à altura do peito, agradeceu e disse:

- Olhando à minha volta vejo um Ser tão parecido comigo que contigo me
identifico. Penetrando o teu olhar, vendo-me, te identifico comigo. No teu
silêncio deponho as palavras que não profiro e tu contas a minha história, igual
a tantas, tal como a tua. Olho em meu redor e vejo um passado cheio de
História. A história das nossas vidas igual a tantas outras. Obrigada, chamo-me
Havita.
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- Uhé! Uhé! Uhé!

O júbilo foi unânime. As crianças instruídas pelos pais traziam até junto de
Havita oferendas para assinalarem o pacto de amizade que se estabeleceria a
partir de então.
Uma menina, quase mulher, passou a mão no lenço que enfeitava os cabelos de
Havita, como se lhe quisesse sentir o toque suave da musselina transparente
que a incitava à tentação de o querer experimentar em si mesma. Gostou do
toque, cheirou o odor que se desprendia do corpo de Havita e sorriu. Ana não
se pôde conter quando Havita tirou o lenço, que era mais um da sua infinita
colecção, para oferecer àquela jovem que encantada pela novidade se tinha
aproximado muito de Havita, e interrompeu.

- Não podes! Não podes aceitar, Havita só tem esse lenço!

- Não faz mal Ana, vai ficar muito melhor nesta jovem do que fica em mim.
Repara!

E colocando o lenço na cabeça da rapariga em forma de fita, com as pontas


caídas pelos ombros abaixo, comentou:

- Diz lá Ana, fica ou não lhe fica muito melhor? E piscou-lhe o olho.

Ana conteve-se a todo o custo e formulou um esgar de contrariada.


A rapariga grata pelo presente abraçou Havita, convicta que estaria mais bela
que nunca e que o seu apaixonado a iria achar mais formosa.
Em contrapartida, Havita presenciando o ciúme de Ana, abraçou-a e disse-lhe
baixinho que ela ia dar-lhe o lenço mais bonito que ela quisesse escolher.
Ana sorriu.

- Havita, agora que as apresentações estão feitas vamos passar pelo hospital
antes de seguirmos para a Missão, pois espera-nos um almoço em honra do Sr.
Pimenta e da esposa, fundadores desta Obra. Disse irmã Linda.

- Vamos querida irmã. Vamos.

As crianças estavam contentes ao mostrarem a todos a nova professora.


Inês não largava a mão de Havita que ajudada por Ana empurrava irmã Linda,
enquanto que os homens, Tomé e padre Manuel abriam caminho em defesa das
senhoras.

De vez em quando surgia um grupinho de corsas que corriam velozmente para


matar a sede no lago mais próximo que se lhes deparasse.

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Mais adiante um casal de pescoçudos tratava de comer as folhas mais tenras
que se encontravam no topo das árvores.
Manchas desde a nuca até aos pés, assim se apresentavam as curiosas girafas de
olhar tímido e meigo que comiam à pressa, receosas de serem interrompidas
nas suas suculentas refeições.
Numa correria galopante, as zebras surgiam listadas de preto e branco como
reclusas em fuga, em direcção à frescura de umas ervitas suculentas que
satisfizessem o seu apetite, ou receosas de algo que as perseguisse e pudesse
para elas constituir algum perigo.
Zumbidos de insectos impertinentes teimavam em rondar as zonas mais frescas
ou fontes de convite para seus aguilhões afiados onde pudessem matar a sede.
Havita não estava habituada a todo este rebuliço, contudo estava contente com
a sua nova vida, embora todas estas transformações repentinas mexessem um
pouco com a sua saúde.

- As cabanas hospitalares são ali. Apontou padre Manuel a Havita. Foi a única
solução que conseguimos para poder socorrer os mais desprotegidos.

- O que interessa é um refúgio e boa vontade. Respondeu prontamente Havita.

Um grupo de cabanas forradas com lianas e colmos, que lhes davam a frescura
tão procurada numa selva onde as árvores escasseiam e os campos verdejantes
são quase nulos ou mesmo inexistentes, estavam dispostas em fila, pegadas
umas às outras para não se sentir tanto a agrura do clima.
Havita ficou impressionada por ver tanta criança debilitada por falta de
vacinação e cuidados médicos, e idosos que impávidos aguardavam a sua hora
de partida, ao contraírem doenças impossíveis de serem combatidas pelos
medicamentos que rareavam por aquela zona.
Queria chegar junto deles e dizer que faria tudo para os aliviar em sua dor ou
contribuir para que seus sofrimentos apaziguassem.
Mas sabia que naquela terra de ninguém só o amor ajudaria a suportar a dor e a
angústia da privação.
Agarrou-se à irmã Linda e, deitando seu rosto em seu colo, desatou a chorar
perante a impotência de algo se querer fazer e não se saber como.
Pediu para voltarem à Missão, pois nas próximas visitas iria ter mais coragem
para enfrentar todo este degredo.

- Um pouco de água, Havita? Perguntou padre Manuel.

- Sim, por caridade.

De regresso à Missão, já todos aguardavam ansiosamente a chegada do grupo.


Dentro dos possíveis mais apresentáveis e dignos de uma considerável
recepção, aguardava-se a qualquer momento o casal Pimenta que honraria
aquele almoço com sua presença.

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Casal abastado, cujo único filho o destino cedo levou, dedicara-se a ajudar as
crianças mais desprotegidas, fundando assim a Missão da Fraternidade.
Contribuindo com meios que por vezes encontram sérias dificuldades em
chegar ao destino, não deixou também de recrutar pessoal que por amor
estivesse pronto a ajudar a cultivá-los, para poderem ser alguém no amanhã.

- Inês, Ana, vamos ver os nossos amigos?

- Já se habituaram a mim! Andam sempre à minha volta. Respondeu


prontamente Tomé.

- Umh! Vou ficar ciumenta. Sorriu Havita.

Teka, Rufi e Caty mal avistaram Havita, correram logo ao seu encontro,
estavam habituados a pernoitar com ela e a ter a sua atenção a todo o momento.
Sony também não deixou de se pronunciar.
Seus chios de excitação por aquela presença tão querida que sempre o
acompanhou, fizeram Havita esquecer a cena presenciada no hospital, do
carinho que muito ser humano deveria ter não só a nível material como a nível
espiritual.

O parar de um motor de uma viatura chamou a atenção de Havita. Espreitou.

- Um Volvo, meu carro por excelência. Devem ser os Pimenta. Pensou Havita.

Refrescou-se, decidiu vestir-se em tons de azul claro que lhe davam um ar


angélico e colocou aroma de lilases.
A sua querida Inês que nunca a largava para onde quer que ela fosse,
acompanhava-a de mão dada, tendo Havita tido o cuidado de a vestir dentro
dos mesmos tons como se quisesse transparecer que “ INÊS” lhe era muito
chegada.
Inês sentia-se como uma princesa e Ana, retocada pelos cuidados e perfumes de
Havita, sentia-se especial, o que já lhe dava um certo ar senhoril apesar de
menininha.

- Meninas comportem-se, dizia Havita às suas duas acompanhantes a caminho


das apresentações que se iriam dar à mesa, onde era esperado o casal Pimenta.

Foram buscar irmã Linda, e seguiram para a sala onde já as esperava irmã
Marina, Carina e padre Manuel.

- Bem, meus irmãos, como sabem a qualquer momento vão entrar o casal
Pimenta.
Agradecia que todos colaborassem para que continuem a manter de nós as
nossas melhores impressões, disse irmã Maria a Superiora, ao entrar na sala.

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Havita ficou constrangida, pois soou-lhe mais propriamente como uma
advertência à sua pessoa.
Porque seria que irmã Maria era tão inflexível?

♥♥♥

- Muito bom dia! Disseram cordialmente e num tom afável o casal Pimenta ao
entrarem na sala onde os esperava um requintado almoço em sua honra.
Quanta honra!

- A honra é toda nossa. Aprontou-se irmã Maria a responder com toda a


cortesia e em nome de todos.

- Esta é que é a Havita? Perguntou a esposa do Sr. Pimenta um pouco intrigada.


Julgava-a mais velha!
Desculpe! Pensei que seria uma pessoa mais experiente.

- Não tem problema. Respondeu Havita cortesmente deixando transparecer


uma cor rosada de um certo embaraço.

- Não leve a mal, foi sem intenção! Acrescentou Madame Pimenta.

- De maneira nenhuma, só acho que não é preciso provar para aprovar, que a
experiência é comprovada pelo tempo não quantitativo, mas qualitativo que a
possa comprovar, quando dentro de nós a Razão e o Sentimento forem
interactivos em abono do equilíbrio.

- É! Pode ser. Não deixa de não ser. Respondeu Madame Pimenta confusa.

- Estudou Psicologia, Havita? Perguntou o Sr. Pimenta, convicto que seria a


primeira vez que uma refeição na Missão lhe iria trazer o prazer de um diálogo
proveitoso.

- Adorava ter seguido a área de Psicologia,mais propriamente Parapsicologia.


Contudo acho que para se poder entender um pouco os outros não é preciso
formação académica quando esta não é possível, mas sim colocarmo-nos no
lugar deles, sujeitos às mesmas influências que determinam seus
comportamentos.

- Sabe, Havita, já li o seu livro “Boneca de Porcelana”. Foi um dos aspectos


fundamentais da sua aceitação nesta Missão, a sua aceitação incondicional do
ser humano e a sua maneira de estar perante a vida.

- Muito grata.

- Para nós é um prazer imenso tê-la no nosso meio.


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- Sabe Sr. Pimenta, sem querer melindrar ninguém, acho que irmã Linda me
poderia ajudar nesta missão. Ninguém melhor que ela poderá dar um exemplo
de resignação, quando outros com mais aptidões, se sentem enfraquecidos sem
coragem.

- Óptima ideia, porque não? Acho que Irmã Maria certamente concordará
comigo.

- Claro, claro Sr. Pimenta, já tinha pensado nisso, só que ainda não se tinha
proporcionado ocasião para debatermos o assunto.

Padre Manuel sorriu, irmã Linda e Havita entreolharam-se felizes.

♥♥♥

Os dias pareciam decorrer agora sob outro encanto. Irmã Linda tinha ganho
ânimo perante a vida monótona dos dias que até ali decorriam.
As crianças andavam mais satisfeitas, os animais de Havita já estavam
ambientados com tudo e com todos.
Contudo Irmã Maria, a Superiora, mantinha-se no pedestal que lhe conferia a
frieza de uma estátua, mantendo-se hirta em suas atitudes.
Nunca se lhe vira uma lágrima ou um suspiro de compaixão.
Que alma seria aquela tão invulnerável ao ambiente que a rodeava?
Teria a vida flagelado sua alma tão cruelmente que seu coração tivesse
aprisionado para sempre os seus sentimentos?

♥♥♥

O sol já despontava e Havita mantinha-se de olhos abertos. Tinha dado várias


voltas em seu leito tentando adormecer, mas a saudade de INÊS invadia cada
vez mais o seu coração. Onde estaria a sua “ratinha” tão querida?
Como era doloroso viver longe de quem tanto se ama.
Deixou rolar lágrimas que refrescaram seu rosto, ardente de uma febre que
consumia sua alma duma saudade ausente. Acariciou os caracolitos da bela Inês
que dormia a seu lado e, enxugando seu sofrimento, depositou-lhe um terno
beijo no rosto.

Tenho de ser forte, não me posso deixar abater. Afinal minha tarefa é dar a
outras Inesitas o que a minha esperou de mim. Porque não uma passeata?

Havita deixou um bilhete para que Inês quando acordasse o desse a ler e não
ficassem preocupadas com a sua ausência.

43
“Inês, minha princesa, não te preocupes comigo. Já tomei o pequeno-almoço e
vou ver o sol nascer. Volto já.
Beijos” Havita

Havita nessa manhã de Domingo, que a escola estava fechada e poderia dispor
do seu tempo como bem entendesse, vestiu seu biquini azul para depois de ver
o sol nascer ir até à lagoa refrescar-se e pôr-se em comunhão com a Natureza.
Vestiu os calções e um top, um lenço a prender-lhe os cabelos envoltos numa
coroa de flores miudinhas com cheiro de lilases, e colocando uma toalha ao
ombro, partiu disposta a compensar-se um pouco.

- Que água azul, até se vêm os peixes no fundo. Que lago será este? Que fruto
será este? Bagas. Não. É melhor não arriscar. Umh!

Suavemente deixou deslizar seus calções e retirou seu top delicadamente.


Colocando a toalha para se estender e apreciar um pouco os cânticos das aves
canoras que enchiam de melodia aquele espaço mágico, deitou-se sobre ela e
como não tinha descansado durante a noite, deixou-se adormecer.

Padre Manuel que costumava percorrer este mesmo caminho, acompanhado de


Billy o seu leão domesticado, não contando ver Havita ali àquela hora, parou
surpreendido não deixando de não a admirar.
Billy não deixou de não dar também a sua opinião.
Um suave rugido de aprovação, fez acordar Havita que sobressaltada entrou
em pânico.
Afinal não é todos os dias que um leão nos acorda.

Havita ergueu-se de um pulo estarrecida sem poder proferir qualquer palavra.

-Não receie Havita, é o meu bichinho de estimação.

Havita sem reflectir abraçou-se ao padre Manuel para ser protegida, qual
criança que se refugia no colo materno para que a defendam do mal. Sentindo-
se protegida começou a chorar assustada.

- Pronto, pronto já passou. Segredou-lhe ao ouvido padre Manuel. Billy é


inofensivo.

Enquanto a abraçava pôde sentir de perto a maciez e o perfume que o corpo de


Havita exalava. Por momentos esquecera-se do seu voto. Tinha aprendido a
viver na solidão, nunca imaginaria que um simples contacto pudesse despertar
uma quimera. Era Humano!

- Desculpe padre Manuel. Nem me lembrei. Disse Havita apartando-se dele


suavemente, ainda receosa daquele olhar de um felino inofensivo que impõe
respeito, tapando-se de imediato com a toalha.
44
- Eu é que peço desculpa, Havita. Nunca imaginei, nunca imaginei que isto
pudesse acontecer.
Me perdoe.

- Não há problema. Tinha necessidade de ficar só. Sentir as carícias da


Natureza, iluminar meu espírito com o nascer do sol, lavar minha alma na água
límpida da corrente, encontrar-me. E encontrei-vos!

- Todos os dias costumo fazer este percurso com Billy, quase sempre há mesma
hora. Também temos essa necessidade. Nunca me passou pela ideia um dia
encontrar, a esta hora, alguém por aqui.

- Acontece, sorriu Havita com voz sufocada.

- Eu acompanhava-a Havita, acontece que a Irmã Maria, a Superiora, pode não


gostar da ideia.
Você é mulher, é atraente, cativante e além do mais tem um há vontade que ela
talvez não esperava.

- Fique bem padre Manuel. É compreensível. Não há perigo por aqui de


rondarem animais selvagens, pois não?

- Já cá estou há ano e meio e pelo que sei afastam-se da civilização, pois desde
sempre foram vítimas da perseguição humana. Não é que não possa acontecer,
mas aqui só mais os répteis de pequeno porte.

- Ai que horror, vou-me embora! Respondeu Havita estremecendo de medo.

- São inofensivos, não há muita mata e eles também nos receiam. Respondeu
padre Manuel sorrindo. Olhe aquele quichôbo na outra margem. É uma espécie
de antílope do rio. Não faz mal a ninguém.

- Que bagas são estas padre Manuel?

- Ah! É um fruto que serve para fazer vinho, chamam-lhe ogógo.

. É cada nome! Já agora que rio é este?

- É um dos afluentes do rio Cunene e do Cubango. Sabe como se chama esta


região Havita? Terra dos filhos de Leão.

Tem muitos leões, ou deve-se a algum leão especial cuja raça dele surgiu?

- Mais ou menos. Conta a lenda que os grandes Rios Cubango e Cunene


banham Huambo a terra dos “filhos de leão”:
45
Como todos sabemos o leão desde sempre foi considerado o rei dos animais. E
porquê?
Quando o Mundo surgiu e a Terra emanou sua natureza, o leão surgiu com seu
rugido forte impondo as suas leis.
Dominou a Natureza e foi aclamado de Rei por todas as raças.
Quando chegou a altura da raça humana surgir na face da terra, onde o leão já
era rei e senhor, os leões comeram-nos porque se achavam senhores do Mundo
e recearam competitividade neste ser tão diferente dos demais.
Mas como a lei determinava que haveriam raças distintas para que o Mundo
fosse completo, entre elas a raça humana, não querendo os leões serem injustos,
deixaram um único homem a vaguear pelos bosques maldizendo a sua solidão.
Estando este um dia, recostado a uma toca que lhe servia de leito e protegia dos
animais ferozes, carpindo a dor da solidão que o levava a uma possível
demência, ansiando que a morte dele se lembrasse para pôr termo a este
sofrimento, sentiu que algo se aproximava.
Escondeu-se um pouco mais no interior pois morte atroz não queria.
De entre os arbustos surgiu uma leoa que rugia violentamente, mostrando toda
a sua felinidade nos fortes dentes aguçados que expunha, na enorme língua
húmida e rosada pronta a saborear tudo o que estivesse ao seu alcance e, na sua
altivez de rainha da Natureza, rugindo estrondosamente.
O homem estremeceu.
Não, não era essa morte sangrenta que pretendia.
Contudo, não tinha alternativa. Iria morrer do mesmo modo como morreram
seus companheiros.
Saiu da toca, colocou seus joelhos na terra batida, cerrou os olhos e cruzou os
punhos atrás das costas como o condenado que segue para a forca sabendo o
que na realidade o espera.
O suor percorria-lhe todo o corpo regelando-o até à alma, mas era a única
solução de terminar toda a tortura da sua solidão.
A aproximação da fera fazia-se sentir mesmo de olhos cerrados, através do bafo
quente que emanava daquele corpo robusto, num caminhar pesado, sem pressa,
que a terra batida soava.
Determinadamente o negro esperou seu desfecho.
Contudo, a fera aproximou-se e, com gemidos, lambeu-lhe as gotas que
deslizavam seu corpo, numa carícia sedenta não de quem se prepara para um
belo manjar, mas de algo mais profundo que estava por descortinar.
O homem já estava impaciente.
Porém algo o acalmou quando a fera na voz dos homens, procurando prazer
em seu regaço e em seu corpo, o encheu de carícias e quis saber da sua tristeza e
procedimento.
Atónito, pensando que tudo não passava de um sonho deixando-se embalar
pela ternura do felino, num tom triste e vago, encostando a cabeça à sua,
explicou-lhe a razão do seu desgosto, levando a fera a segredar-lhe que também
se encontrava sozinha.

46
As formas perfeitas e sensuais do negro excitaram-lhe os sentidos, despertando-
lhe em si a necessidade do afecto de um macho que também lhe desse alento à
sua vida, pois também se sentia muito só em sua viuvez.
A noite já ia alta quando estes já cansados de tantas confidências, adormeceram
nos braços um do outro, aquecidos pela fogueira que iluminava o seu leito de
amor.

A noite se fez dia em suas vidas e a Aurora rompendo com uma brisa suave
varrera as cinzas de uma fogueira extinta, confidente da origem deste país.
O tempo ia passando e a leoa e o negro tornaram-se inseparáveis.
Enquanto que a leoa ia à caça, o negro procurava as frutas mais deliciosas que
satisfaziam os seus apetites, e recompunha o seu leito sempre com folhas
frescas até que, um dia, quando o negro voltava da planície, ficou estupefacto.
O negro não queria acreditar no que via e ouvia.
O negro que até ali procurara a morte, renascia novamente para a vida e a fera
concebia.
As crias da leoa eram a si iguais.
Não cabia em si tanta alegria! E bendizendo o dia que encontrara a fera,
orgulhoso pegava nos seus filhos e abraçava-os, enquanto a leoa baixinho rugia
de contente e feliz os amamentava.
Assim surgiu a tribo dos Huambo “Os filhos de leão” de cuja origem se
vangloriam.

- Cada tribo tem sua lenda, não padre Manuel?

- É Havita. Conhece a História do país de Bié?

- Conte padre Manuel. Por favor eu. Eu adoro lendas.

- Conta a lenda que Bié, contada pelos Galengues, seus descendentes, sua raça
surgiu com a origem da Terra...

O sol estendia-se em todo o seu esplendor e com ele o cântico das aves
envolvendo todo o universo de harmonia.
Desse espaço imensurável que parecia não ter fim, o Céu beijou a Terra e, Feti, o
Princípio de Tudo, subitamente abriu os olhos e se achou no meio da Mãe
Natureza, envolto em flores, árvores de fruto e belos animais que o rodeavam.
O vento soprava levemente agitando os ramos das árvores, conduzindo odor
das flores até si que o incitava à conquista deslumbrante de uma vida diferente.
Extasiado por tanto encanto, Feti deu largas ao seu prazer.
Saltou, correu, rolou sobre os tapetes verdejantes que se estendiam sob seus pés
e cansado de tanta excitação, deixou-se adormecer, embalado pelo sussurro do
vento que agitava as ramagens das árvores, refrescando todo aquele ardor.
Lá longe, os cumes das montanhas revestiam-se de algodão, enquanto que o rio
que corria na planície já adormecida, reflectia um manto de estrelas que
iluminava todo o Universo.
47
Sol já dormitava e Lua sorria espraiando todo o seu esplendor sobre um manto
negro salpicado de pontos luminosos que abraçava toda a Terra.
Um cheiro almiscarado seguido de um bramido fez Feti abrir os olhos, suster a
respiração e refugiar-se numa gruta onde lhe pareceu mais seguro.
Invadido pelo temor, ficou estarrecido ao avistar por entre a moita, dois
enormes olhos luzidios capazes de iluminar toda a vastidão daquela floresta.
Num passo leve e surdo, correu a refugiar-se no canto mais recôndito da gruta e
enrolando-se em folhas secas, adormeceu novamente.
Já o sol raiava em todo o Universo afastando todo o temor que o tinha
dominado durante a noite.
Extasiou-se de novo, novamente sentiu vontade de dominar toda aquela
extensão que se estendia para além dos seus limites.
Nada lhe faltava, desde água para beber e bons frutos para comer.
Era o Paraíso.
As trevas que tinham emergido da Terra e que tanto o amedrontaram, levaram-
no a colher um ramo de um arbusto e a afiá-lo para se proteger contra tudo o
que pudesse constar para si um perigo.
Aprendera que o dia o convidava a novas fronteiras enquanto que a noite lhe
colocava freios às mesmas.
Decidido a partir para novas aventuras, Feti pôs os pés ao caminho.
As águas cristalinas do rio que banhavam a planície, incitavam-no ao prazer e à
tonificação daquele corpo esbelto de deus jovem, apto para a conquista.
Como tudo era belo.
O homem vindo do Céu deleitava-se em toda esta magia.
Certo dia estando Feti a preparar-se para se banhar nas águas calmas do
Cunene, algo o impediu de levar avante sua intenção.
Uma cabeça enorme de hipopótamo emergia daquele leito espargindo água à
superfície, para de novo imergir naquelas águas calmas que agora revoltadas
viam Feti desaparecer de novo na floresta.
Assustado, correu a esconder-se por detrás de um arbusto, e, de arma em
punho, aguardava possível ataque.
Instintivamente estava preparado para matar, caso fosse necessário, para se
proteger.
Contudo, o animal desapareceu com a mesma instantaneidade com que tinha
surgido.
Preparava-se uma vez mais para saborear as águas cristalinas do Cunene
quando, desta vez, delas viu surgir um escultural corpo de mulher.
À medida que a deusa caminhava e a água lhe beijava o corpo sedenta de tanta
beleza, percorrendo a mais ínfima partícula do seu ser, seus seios entumeciam
inebriados de tanto prazer.
Como cavalo selvagem que exibe sua beleza arremessando sua crina num porte
que lhe confia toda a sua elegância, a negra lançou sua enorme cabeleira negra
para trás cobrindo-lhe os negros ombros cor de ébano e, suavemente, como uma
borboleta bailando ao som da maresia, deitou-se no areal enquanto que o sol a
convidava a enxugar as gotas que teimavam permanecer na sua pele acetinada.

48
Extasiado de tanta beleza, Feti deu-lhe o nome de Tchoga – a Perfeição, e,
aproximando-se dela, segurou-a em seus musculosos braços e trouxe-a para a
floresta no mesmo sítio onde Céu beijou a Terra, e Feti surgira.
Ouviam-se melodias de pássaros e o rumor da água e do vento cruzavam-se
numa bisbilhotice espontânea perante aquele cenário transcendente de dois
corpos unidos pelo prazer.
Tchoga nada dizia, gemia e contorcia-se ao tacto deleitável de Feti, enquanto
que os galhos da árvore se agitavam para os refrescar, valsando ao ritmo dos
seus corpos.
O tempo ia passando e ambos aprendiam a ver o mundo nos olhos um do
outro.
Falavam a mesma língua, tinham as mesmas preferências e ambos caminhavam
em busca de novas conquistas, até que um dia Tchoga deixou de poder seguir o
seu companheiro.
Seu corpo já não era o mesmo, seus gestos tornavam-se mais vagarosos e
pesados, algo vibrava dentro do seu ventre agora deformado.
Enquanto que Tchoga permanecia adormecida em seu leito de folhas secas,
descansando sua fraqueza, Feti ia à caça e, pelo caminho, colhia os frutos mais
suculentos para no regresso refrescar os lábios ressequidos da bela negra que
amava desesperadamente.
Quando chegou à cabana, Tchoga contorcia-se com dores e gemendo gritava
por auxílio.
O companheiro desesperado punha as mãos à cabeça por não saber o que lhe
fazer, refrescando o seu corpo cálido com água fresca do rio e os seus lábios
com as lágrimas que de seus olhos brotavam.
Estava perdido, não sabia que fazer!
Enquanto que o homem do Céu se afastou para ir buscar mais água ao rio para
refrescar sua amada, qual não foi seu espanto quando chegou, viu os olhos
negros da amada mais luzidios que nunca, apesar de cansados.
Junto a si uma pequena maravilha dava origem à civilização que lhe daria o
nome. Baptizaram-no de Galengue, o primeiro homem da terra.
Feti amou ainda mais Tchoga pela dádiva que lhe concedeu.
Mais tarde Tchoga deu à luz pela segunda vez.
Era uma menina. Chamou-a Viyé.
Já adultos ambos os filhos, seguiram seus caminhos seguindo cada qual o seu
rumo.
Galengue partiu para as regiões do Sul, de cujos povos foi pai, e Viyé em
regiões do Norte foi a mãe dos Bienos.

- Você já sabe muito sobre tribos e tradições deste pais, não sabe padre Manuel?

- Estamos sempre a aprender!

Havita já se tinha esquecido do susto, contudo, tinha muito receio de répteis e


lembrou-se que o melhor era regressarem.

49
- Vamos regressar padre Manuel?

- Se quiser Havita, vá indo à frente que eu velo pela sua segurança.

- Vou aproveitar.
Muito grata padre Manuel. E não se fazendo rogada seguiu de novo o caminho
para a Missão.

Havita sentia-se segura porque sabia que alguém velava pela sua segurança,
mas no interior sua insegurança feminina fazia-a sentir-se mesquinha e
desajeitada ao sentir-se alvo de apreciação.
Pelo caminho tanto um como outro transportavam um sorriso nos lábios como
reflexo de uma apreciação a tudo o que lhes acontecera.

- Havita, foste sem mim? Porque não me levaste? Nunca me deixes. Replicou
meigamente Inês.

- Está bem. Na próxima, fazemos todos um piquenique.


Eu só queria encontrar um lugar bonito para na próxima irmos todos juntos.
Viste irmã Lindinha Inês?

- Ainda está no quarto. Hoje não se sentiu muito bem e ainda não se levantou.

- O quê? Vamos vê-la.

- Havita. Que bom! Vieste. Hoje não me sinto muito bem, mas tua companhia
vai conseguir com que eu ultrapasse tudo.
Levantaste-te cedo, pelo que vim a saber. (Comentou irmã Linda)

- Como sabe?

- Deram pela minha falta na missa da manhã e irmã Maria a Superiora, mandou
cá a irmã Carina para ver o que se passava.
Entretanto Inês como quando acordou não te viu, levou o teu bilhete à Irmã
Carina para lho ler e ela acabou por me contar.

- Ah! Estou a ver! Alguém ficou aborrecido?

- Como é de depreender Irmã Maria não disse nada, mas também não ficou
muito feliz.
Mas tu és livre Havita, não tens de dar explicações para teus comportamentos
pessoais. Estás aqui de livre vontade por amor ao próximo e só por isso te
devemos nossa gratidão.
Sabes que Irmã Maria é mesmo assim. Mas ignora, agora conta-me como estás.

50
- Irmã Lindinha, hoje de manhã descansava uma noite em claro, junto a uma
lagoa paradisíaca, claro está, em biquini, quando fui surpreendida por uma
presença.

- Não há problema por aqui Havita, é tudo gente simples.

- Pois o pior é que não foi só isso.

- Então? Conta lá, conta!

- Assustei-me de terror.

- Então porquê? Entrecortou irmã Linda que parecia já se encontrar melhor de


saúde.

- Apareceu-me um leão na frente. Estava deitada e adormecida e...

- Credo. Que fizeste?

- Dei um pulo e dei por mim nos braços de um anjo.

A irmã ficou sem entender e franziu o sobrolho.

- De um anjo Havita? Eu nunca disse que não acreditava em anjos, mas daí até
que um anjo se tenha lembrado deste lugar tão longe de ninguém...

- Pois é. O pior é que é um anjo que todos nós conhecemos.

Irmã Linda desatou à gargalhada, como se Havita tentasse fazê-la acreditar em


histórinhas.

- Estavas a sonhar, já estou a ver!

- Não. Não... É que...é que... esse anjo era... é...

- Desembucha rapariga, estás a deixar-me ansiosa.

- Promete não contar nada, a ninguém? Havita olhou para trás como se quisesse
assegurar-se que mais ninguém estava naquele quarto além delas, e Inês que
brincava com uma boneca de trapos, ausente de toda a conversa.

- Tolinha. Achas? Foste a única que me deu o coração ainda mal me conhecias,
porque te haveria de querer mal? Nem que fosses o meu maior inimigo.

- O anjo era o padre Manuel! Disparou Havita cabisbaixo, sorrindo.

51
- Não percebo. E que mal é que tem isso?

- Estando eu em biquini, adormecida, repentinamente vi os olhos enormes de


um leão, dei tamanho pulo, que quando me apercebi... estava abraçada ao
padre Manuel.
ENTENDEU irmã Lindinha??? (Reformulou novamente Havita).

Irmã Linda queria fazer um esforço para não se rir, mas uma vez mais não se
conteve.

- E......

- E ele acalmou-me, como se faz a uma criança e eu pedi desculpa pelo meu
comportamento, não sabia que Billy era o seu animal de estimação.

- É inofensivo. Aliás, são os dois inofensivos, acho eu. Respondeu a irmã com
um sorriso, como se quisesse advertir Havita que todos somos animais e os
animais tem instintos.

- O padre Manuel tem um olhar penetrante, já reparou irmã Lindinha? E um


sorriso angélico! E além disso parece não fazer mal a uma mosca.

- Alto aí, todos somos fracos. Sabes que ele é casado.

- Casado? Respondeu Havita prontamente.

- Estás nervosa rapariga. Pensa! Ele é casado com a igreja não é?

- Oh! Que estupidez a minha.


Claro! Estou mesmo nervosa. Foi de ver o leão.

- Claro, claro. Compreende-se. Sabes uma coisa. Acho que já estou bem. Mas
olha, não contes a mais ninguém.

- Não irmãzinha, já lhe disse que sempre a amei e agora mais que nunca, que
posso deixar meu coração nas suas mãos, acho que jamais a deixarei de amar.
Vamos lá agora sua preguiçosa, toca a vestir e vamos passear as duas enquanto
o almoço não está na mesa. As duas não, as três.
Inês, vamos roubar alguma coisa à cozinha?
Acho que o passeio me abriu o apetite.

♥♥♥

O tempo parecia não correr naquela superfície da terra de Ninguém “na terra
onde o silêncio, irmão da paz, é embalado pelo desabrochar da Natureza e pelo
sorriso das crianças”.
52
Havita agora compreendia a frase que irmã Linda lhe quisera transmitir
aquando as boas-noites do seu primeiro dia, Havita lhe tinha pedido permissão
para dormir com Inês.
Os dias eram sempre iguais, se bem que as pessoas agora andavam mais
confiantes.
As crianças gostavam da escola porque Havita ensinava-as com carinho e mal
terminavam a aula já se viam na ânsia de repeti-las.
Os adultos andavam mais confiantes pois conseguiam obter respostas de
Havita a perguntas que antes nunca ousaram fazer a mais ninguém.
Os doentes e idosos sentiam-se reconfortados porque Havita lhes dava atenção
e sabia como lhes fazer esquecer os seus males.
Já não se falava tanto em doença, já havia mais coragem, mais alento.
Havita conseguia com que eles nem se lembrassem da doença ensinando-lhes a
ocupar o seu tão precioso tempo, fazendo-os crer que deveriam viver cada
minuto intensamente como se fosse o único minuto de suas vidas, não o
devendo por isso desperdiçar. Estavam felizes!

INÊS, minha princesa, onde estás tua agora? Sinto tanto a tua falta meu amor.
(Pensava Havita mentalmente).

- Havita estou aqui! Acenou Inês com uma flor para lhe dar.

Parecia estar distante.

Havita ficou confusa, não se tinha apercebido da rotura repentina de espaços


que a transpusera da sua evocação para a realidade, quebrada pela resposta de
Inês, a princesa negra, como se estivesse respondendo à pergunta que
mentalmente fazia naquele preciso momento a INÊS, tão distante.

- Oh, minha princesinha, desculpa nem dei por entrares.

- Quero dizer que gosto muito de ti e onde quer que estejas, estarás sempre no
meu coração.

- Te amo princesa e deixando escapar uma lágrima abraçou Inês fortemente,


como o fazia com Inesita.

Nas asas do vento e através das estrelas, tal como prometido, Havita mandava
mensagens de amor aos grandes amores da sua vida.
Sentia saudades do que deixara para trás e refugiava-se muitas vezes na
solidão, tentando nunca deixar transparecer o que seus olhos, espelhos da alma,
ocultavam para não reflectirem o seu sofrimento.

- Olá Havita, tão calada! Que lê? Perguntou padre Manuel.

- Poesia! Adoro poesia.


53
- Não quer vir dar um passeio até àquele lago com as crianças e irmã Linda?
Faz-vos bem. Talvez fazermo-nos acompanhar de um lanche apetecível.
Que diz?

- Claro. Respondeu Havita maquinalmente embriagada pela solidão que a


acercava.

- Havita, não tem família? Claro.


Casada ? Filhos?

- Casada com a vida, filha da Natureza que me deu o ser, irmã do irmão que
olha para mim como tal, mãe da obra que por mim é criada.

Padre Manuel sempre achou Havita um enigma, mas depois de já a conhecer


tão bem, sentia algo mais profundo que começou a evidenciar-se precisamente
a partir do momento que Havita mostrou sua fragilidade ao chorar de medo em
seus braços, por culpa de um dócil leão, quando afinal sempre mostrara tanta
coragem.
As crianças ficaram felicíssimas nesse dia pelo piquenique junto ao lago na
companhia de quem sempre tanto estimaram.

Já se sentia o cheirinho dos guisados na cozinha que iriam presentear o jantar.


Após uma acção de graças, tudo decorreu como sempre, um pouco melhor, pois
o silêncio já não era absoluto como antigamente.

- Que bom, beijos de noiva do padre Manuel.


Deixou Havita escapar, o que levou Irmã Maria a suster a respiração.

Havita corou, padre Manuel sorriu com aquele sorriso angelical que ela sempre
gabara e as crianças riram em voz alta quebrando o constrangimento que se
havia gerado.

- Nunca vais esquecer pois não Havita? Perguntou Ana.

- Nunca. Respondeu sorrindo acanhadamente.

♥♥♥

O céu estava estrelado, Inês já dormia e Havita não tinha sono.


Pé ante pé decidiu escutar à porta do estúdio de padre Manuel e, devagarinho,
pois não havia qualquer som, julgando que padre Manuel dormia
profundamente, abriu a porta e espreitou.
Ele não estava na cama. Tentada entrou e olhou em redor.

54
Ficou surpreendida ao reparar que junto do seu computador, estava o raminho
de flores muito pequeninas que caíra do lenço que lhe apertava os cabelos
naquela tarde que vira Billy pela primeira vez.
Julgava tê-las perdido com o susto e até já se tinha esquecido delas, mas elas
estavam lá. “ Expostas com todo o carinho”.

Deu mais um passo e beijando-as, colocou-as novamente no mesmo lugar para


que ninguém se apercebesse. Ainda tinham o mesmo cheiro a lilases.
Sorriu e envolta em magia foi ver as estrelas.
Ouviam-se leves ruídos de bichinhos que rastejavam nas ervas secas e de vez
em quando uma estrela cruzava com outra enquanto a Lua convidava a sonhar.

- Quem está aí? Perguntou Havita assustada e baixinho para não acordar
ninguém.

- Não se assuste Havita. Respondeu padre Manuel dentro do mesmo tom.


Estava também a apreciar as estrelas. Não tinha sono e decidi vir confessar-lhes
os meus segredos.

- Tem segredos padre Manuel?

- Como todo o mundo.

- Se quiser, posso ser sua confidente. Prometo que nunca ninguém irá saber.

Padre Manuel mostrou aquele sorriso lindo que fazia estremecer o coração de
Havita.

- Está a rir-se? Não confia em mim?

Sorrindo novamente, aproximou-se de Havita e sem esta contar, subtilmente


deixou-lhe um beijo nos lábios que a deixaram hipnotizada, sem reacção, como
se esta quisesse permanecer no sonho que a invadira no momento.

“ Beijos de noiva”. Pensou Havita, ainda de olhos semicerrados.

Com todo o cuidado que um noivo pela primeira vez toca sua noiva, como o
toque suave de uma borboleta roçando as pétalas de uma flor, assim ficou
registado na memória de Havita aquele momento mágico que a fez despertar
novamente para a vida.

- Desculpa Havita. Não pude conter-me.

Havita despediu-se num até amanhã cambaleante, inebriada de tanta magia


julgando que tudo não passava de um sonho, não querendo dele despertar.
Se possível, nunca mais.
55
Chegou à cama e deitando-se sobre ela como uma pena, levemente e desde logo
adormeceu.

- Havita, Havita! Adormeceste vestida?


Estás doente? Perguntou Inês admirada ao despertar pela manhã.

Havita espreguiçou-se, esfregou os olhos como fazem os miúdos ao acordar e


sorrindo, beijou Inês profundamente.

- Que loucura a minha. Estava tão cansada que nem dei por ela.

- Se ainda estiveres cansada, vou buscar-te o pequeno-almoço.

- Não princesa, vamos ter com irmã Lindinha que já deve ter saído da missa e
possivelmente já aguarda pela nossa visita.

Após o banho matinal e a sensação de um despertar com novos alentos, Havita


vestiu um vestido justo cor-de-rosa, e, desta vez, deixou seus cabelos caídos que
sempre que ondulavam cheiravam a rosas.
Tudo parecia indicar que a noite fora preenchida de sonhos que lhe davam a
tonalidade do dia.
Para seu espanto, quando regressou do pequeno almoço, enquanto Inês fôra ter
com Ana e Tomé, ao entrar dentro do quarto, Havita tinha em cima de sua
cama sobre as roupas íntimas que usara a noite anterior e não tivera tempo de
guardar, uma rosa vermelha que lhe fez lembrar as lindas rosas da sua terra
natal.

- Uhm! Uma rosa vermelha! Cheira deliciosamente bem. Havita tocou seus
lábios levemente sobre as pétalas aveludadas como se estivesse recordando a
maciez da sua quimera.
Uma rosa! (repetiu) e encostou-se à janela vendo passar padre Manuel que por
ali passava deitando um olhar discreto em direcção à sua janela.

Havita manteve-se na penumbra da cortina, não queria dar nas vistas, não
queria que ninguém tentasse destruir o seu sonho com censuras que não têm
fundamento.
Afinal amar o próximo não é pecado.

- Ah! As miúdas e irmã Lindinha já devem estar à minha espera, que loucura!
Ando no mundo da Lua. Já nem sei fazer distinção entre o sonho e a realidade.
Vá. Havita comporta-te. Toca a andar. Esperam-te. Abre os olhos... (repreendia-
se Havita mentalmente).

- Irmã Lindinha, meu anjinho papudo! Dormiu bem? Está tudo bem?

56
- Claro Havita! Tu é que parece que sonhaste com os anjos!
Teu semblante luz e teu olhar está repleto de felicidade. A que se deve?

- Já há tanto tempo que não dormia como esta noite.


Fez-me bem o piquenique de ontem.

- De facto Havita, ontem parecias uma garota.


Fartaste-te de jogar à bola e às escondidas com as crianças. Trouxeste a alegria
onde há muito permanecia adormecida. Podíamos fazer isso mais vezes.
Que achas?

Havita sorriu.

- Sabe irmã, Havita estava tão feliz e cansada que até adormeceu vestida.
(Comentou Inês).

Havita sentiu-se apanhada em flagrante como se seu segredo pudesse vir a ser
descoberto.

- Não digas, Inês! Fico feliz pela vossa felicidade. Vamos para a escola,
meninas?

- Sim, são horas. Respondeu Havita sem mais comentários.

Quando chegaram à escola já as crianças as aguardavam com ansiedade, na


expectativa de que a sua querida professora tivesse novas histórias para contar
e que lhes ensinavam a entrar no mundo da sabedoria.
Antes de qualquer ensinamento Havita tinha sempre o cuidado de iniciá-lo com
algo que despertasse a vontade auto-analitica de cada um e que em grupo
pudesse ser debatido, dando a entender às crianças que tudo o que nos envolta
é uma Razão cheia de razões lógicas que podem ser apresentadas sob várias
formas contribuindo para o mesmo resultado, dando a noção que para isso
devemos sempre aceitar tudo o que possa ser válido para a mesma questão,
pois nesta vida nada é singular.

- Hoje meus amores, eu e irmã Lindinha vamos testar algo mais profundo. O
nosso coração. Disse Havita ainda embalada pela emoção da noite anterior.

- Vamos começar com Biologia Havita? Eu adoro. Perguntou Salomé.

- Não propriamente. Aquilo que o vosso coraçãozinho esconde lá dentro.

- Eu sei. Respondeu Inês prontamente. És tu Havita.

- Obrigada Inês, tu também estás no meu e não só.

57
- Veias, artérias, aurículas, ventrículos..... Respondia maquinalmente Sebastião.

- E não só! Ora pensem.


A Inês já mereceu um chocolate, quem é que vai receber também? Eu ajudo.

- É um tesouro guardado por um anjo para que nada de mal lhe aconteça e que
contém a jóia mais preciosa da vida... o que é?.. Interrompeu irmã Linda.

- Não tem cor, mas reflecte-se no brilho de um olhar, não se tacteia mas sente-se
na alma, não tem sabor mas sabe bem, não se ouve de qualquer um mas
gostávamos que todos o pronunciassem, não tem odor mas inebria-nos
colocando todos os nossos sentidos em funcionamento.
Acrescentou Havita.

- Magia? Perguntou Jonas.

- Estás perto. Quente! É a magia que dá vida à vida, está certo. Mas que magia é
essa? Perguntou irmã Linda.

- Mágico só Deus. Interferiu Pedro que queria seguir a profissão do padre


Manuel espelho de um modelo exemplar.

- Sim...e.....Deus é.....(respondeu Havita docemente).

Todos se mantiveram calados na expectativa que alguém proferisse algo que


desse sequência a um juízo tão difícil de deslindar. Afinal todo o fenómeno
incapaz de explicação, diz-se simplesmente que é um dos mistérios de Deus,
como poderiam simples crianças responder à interlocução da professora
quando referiu que Deus é....
O silêncio era absoluto.

- Muito bem meus amores.


A aula terminou. Amanhã tenho a certeza que todos saberão dar-me a resposta.
Perguntem ao vosso coração e ele responder-vos-á. Vou trazer chocolates para
quem me souber responder. Beijinhos! (despediu-se com carinho).

Havita conduzia irmã Linda quando padre Manuel se aproximou.


Tomé, Ana e Inês seguiam num burburinho constante que lhe despertou a
curiosidade, sorrindo pelo que ia escutando.

- Inês, se a irmã Linda disse que mereceste um chocolate só porque disseste que
Havita estava no teu coração e continuou a fazer a mesma pergunta, então não
disseste tudo o que ela queria ouvir! Dizia Ana baixinho.

- Claro que não. Interrompeu Tomé. Mas pelos vistos está próximo.

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- Eu amo Havita. Respondeu Inês prontamente.

O dia decorria dentro da mesma monotonia dos demais, sem novidades,


despidos de conotações pitorescas dignas de uma boa tela.
Eram sempre as mesmas paisagens, as mesmas imagens, os mesmos sons, a
mesma monotonia.

Havita fazia os outros felizes mas a sua felicidade não era absoluta. Não fosse
sua imaginação criativa de pintora e escritora, morreria de tédio, pois o espaço
era imenso mas a comunidade muito pequenina.

Estava satisfeita com os seus esforços a favor do progresso daquela gente que
agora era a sua família. Contudo, o sentido da vida ainda era para si uma
incógnita.

Fazendo-se acompanhar de caneta e papel, uma vez mais se dirigiu para a


sombrinha da jovem palmeira, que fazia as delícias dos seus sonhos.
A Natureza sabia como embalá-la, era uma das suas inspirações. Estava prestes
a terminar quando foi surpreendida.

- Olá Havita, podemos fazer-lhe companhia? Perguntou padre Manuel


acompanhado de irmã Linda que àquela hora procurava uma sombrinha
enquanto as crianças faziam a sesta.

- Ficarei encantada. Respondeu corando.

- Estava a escrever? É segredo?

- Nunca tive segredos.

- Então podemos ver? Respondeu prontamente irmã Linda.

- Talvez seja melhor eu ler. Prontificou-se, para que não reparassem na


formosura da dactilografia que compunham certas palavras sombreadas, cujo
estilo lhes dava nobreza de um sentimento que queria ocultar.

Numa harmonia de palavras que se conjugam, embalando a sensibilidade de


cada um, Havita num tom suave e meigo, deixou que o coração falasse:

♥♥♥

“ Já o Sábio enlouquecia, fazendo hipóteses sem conclusão.


Jogava os Sentimentos numa proveta, fazendo-os passar por um
balão.
Lançava-lhes chama ardente, não consumiam.
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Eram combustível! Não eram combustão.
Os Sentimentos não ardiam, confundia-se-lhe a Razão.
Jogou-os ao ar, os deuses inalaram, Néctar puro duma paixão.
No Olimpo os deuses se amaram, Apolo nasceu de uma união.
Chamaram-lhe AMOR, paixão ardente, Néctar inebriante de uma
emoção.
E o Sábio ficava louco, impaciente, em busca de uma solução.
Ignorava que estes ingredientes compostos por carinho, ternura e
doação, eram simplesmente SENTIMENTOS, que só ardem no
coração.
Nem hoje o Cientista tem explicações, ao dizer que o Amor acontece,
diz que a “Razão tem razões, que a própria Razão desconhece".

Amor é paixão é alento


É significado sem pormenor
A Razão chama-lhe Sentimento
Por não lhe dar Significado Maior.

- Foste tu que fizeste Havita? Perguntou irmã Linda admirada.

- Sim !

- Havita de onde lhe vem essa sua veia de poetisa? Perguntou padre Manuel
curioso.

- Francamente não sei. Nunca fui boa aluna a língua portuguesa, sempre li
pouco e sempre que escrevo seja poema, prosa ou mesmo uma obra escrita,
deleito-me com o que surge no papel, como se alguém do outro lado guiasse a
minha escrita. Lembro-me que quando li Fernando Pessoa não compreendia
como uma única pessoa podia conter tantas personalidades dentro de si.

Hoje sei que os estados de espírito de cada um podem reagir de formas


diferentes em situações idênticas. Criam personalidades distintas, que quando
vividas intensamente tem a capacidade de se abstraírem umas das outras,
ficando um leve registo quase que subconsciente de cada comportamento, para
que as personalidades não interfiram directamente entre si, o que poderia criar
desequilíbrio mental.
É uma faculdade que temos de nos auto - protegermos.

60
Contudo, e como tudo, tudo tem que ser utilizado prudentemente e em
benefício de tudo e de todos, nunca em função da destruição de que também
poderemos ser alvo.

- Ainda dizem que Deus não existe. Retorquiu padre Manuel.

- Como assim? Questionou Havita?

- O mal da Humanidade é não saber apreciar esta obra maravilhosa que nós
somos, com faculdades psíquicas capazes de nos ajudar a ultrapassar certos
obstáculos da vida.

- Tem toda a razão padre Manuel. Respondeu irmã Linda. Que seria de mim e
de muitos se se deixassem abater por que se acham incapacitados fisicamente.
Incapacitado é aquele que infelizmente a Razão não o favoreceu. Por amor e
com amor conseguimos passar os limites das nossas faculdades.

- Por amor! Por falar em amor já me esquecia que prometi às crianças levar-lhes
uma meiguice se eles soubessem responder à questão que hoje lhes coloquei.
Entrecortou Havita.

- Posso saber qual foi a questão? Perguntou padre Manuel curioso por mais um
dos seus enigmas.

Com um certo acanhamento, não fosse padre Manuel desconfiar do sentimento


que invadia seu coração, respondeu num ar simples mas sempre subjectivo.

- Perguntei qual é o tesouro mais valioso que o coração esconde e dá magia à


vida. Havita corou.

- Se dá MAGIA! Retorquiu padre Manuel, respondendo maquinalmente.

- Que disse padre Manuel? Perguntou Havita.

Padre Manuel não respondeu. Estava distante ou acabara de se arrepender por


balbuciar palavras proferidas sem controlo.

- Vamos embora, Havita? Perguntou padre Manuel dando-lhe uma ajuda para
se levantar e estendendo-lhe a mão.

O perfume do corpo de Havita enlouquecia-o e a temperatura da sua mão na


dele fazia aumentar a sua tensão. Seu corpo estremeceu e receou perder
controle de si mesmo frente a irmã Linda. Ultimamente já nem conseguia
dormir tranquilamente, pois não conseguia entender nem tão pouco queria
esquecer a magia que emanava de Havita e o deleitava. Tinha que se comportar
e parecer o mais natural possível.
61
Havita também receou o magnetismo deste contacto. A sedução de seus olhares
cruzou-se faiscando como uma noite de intempérie fulminada por relâmpagos.
Irmã Linda sentia-se feliz. Apesar de não ter conseguido da vida a felicidade de
seu amor ser correspondido, ela vivia-a através dos outros. Era pura.

De repente um colibri apressado poisou no ombro esquerdo de Havita


levantando voo logo em seguida.

- Que lindo! Que fofura. Que passarinho é este irmã Lindinha, que parece que
mal poisou logo partiu?

- É um colibri. Há quem lhe chame de beija-flor porque a sua perdição são as


flores. Todas as flores são contempladas com o seu beijo, mas de uma forma tão
fugaz que seu toque mais parece uma quimera que uma realidade.
Hás-de reparar que a sua pressa é tanta que nem tem tempo a perder.
Quase que se torna imperceptível o movimento das suas asas pela velocidade
que chega a atingir.

- É lindo. É mesmo um sonho.

- Tens sorte Havita. O colibri também te contemplou, já reparaste?

- O colibri é apaixonado por flores. Retorquiu padre Manuel sorrindo de


matreirice.

- Onde posso comprar chocolates para as minhas crianças? Perguntou Havita.

- Se quiser, posso levá-la logo pela manhã, no meu jipe, até à cidade mais
próxima. Irmã Linda também nos acompanha, está bem?

- Lamento mas não posso. Tenho que preparar umas roupas que chegaram de
fora e aproveito para separá-las e levá-las já amanhã para a escola.
Disse irmã Linda esquivando-se, só para lhes permitir privacidade.

- E Havita quer aproveitar?

- Não tenho alternativa, se é só na cidade que há guloseimas. E como vamos ter


permissão de irmã Maria uma vez que irmã Lindinha não nos pode
acompanhar?

- Não há problema. Deixa comigo! Se ela perguntar eu digo-lhe o que foram


fazer à cidade, se não perguntar, é porque anda muito ocupada e também não
precisa de o saber.

- Obrigada irmã Lindinha. Respondeu Havita. Vamos então para a Missão pois
o jantar aguarda-nos e antes tenho de me refrescar.
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♥♥♥

Uma brisa suave refrescava a manhã daquele dia, os grilos estrilavam no


capinzal, o sol distante acompanhava os movimentos da sua amiga Havita que
sorria feliz como se tentasse abrir as portas ao Sonho que só a noite costumava
embalar.

- Que barulho foi este? Perguntou Havita?

- Um pneu furou. E nós que temos tão pouco tempo! Respondeu padre Manuel
com um certo aborrecimento.

- Ainda temos quatro horas! Respondeu Havita.

- Pois. Mas passam rápido.


Balbuciou padre Manuel. Fique à sombrinha destes sicomoros e embondeiros
enquanto eu reparo o pneu.

Perto soava a música de uma queda de água que se deixava cair num leito
estreito que penetrava a região, refrescando tudo em seu redor enquanto que o
trinado de mulambúdi (pássaro que melhor canta no sertão) enchia um Céu
infinito de melodia. Havita não se conteve e aproximando-se, tirou as sandálias
e refrescou os pés.
Ria a bom rir quando a água espargindo, com ela queria brincar tentando
acertar-lhe nos sítios mais diversos.
Pressentindo algo que se aproximava, com receio de algum réptil que por ali
passasse, virou-se repentinamente e deparou com padre Manuel que a
contemplava uma vez mais. Não resistiu.

O abraço forte do padre Manuel, como se a quisesse proteger de algo que a


pudesse perturbar, era tão firme, que Havita abandonou-se por completo
àquele que nunca imaginaria que pudesse dar novo título à história da sua vida.
Se alguém disser que este acto é um pecado, mente ao dizer que o amor é o
primeiro mandamento a cumprir.
Cada qual tinha a sua missão. Padre Manuel era casado com a Igreja e Havita
com a sua missão.
Mas quando o amor bate forte dentro do coração, amar sem prejudicar o
próximo não é pecado e o objectivo deles era esse mesmo, porque quando se
ama de verdade respeitam-se ambas as partes.
Num fechar de olhos a sinfonia da Natureza falou por si.

- Amor! Balbuciou padre Manuel.

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Havita não falou. Tinha receio que fosse um sonho e não queria acordar, e
retribuindo o seu meigo beijo, pediu-lhe que a abraçasse fortemente, como se
em seus fortes braços quisesse ficar para sempre.

- Temos que nos despachar padre Manuel, só temos quatro horas para ir à
cidade e regressar, interrompeu Havita.

- Mais dois minutos Havita! Respondia padre Manuel, que se pudesse


perpetuar o tempo ou parar o mesmo, já o teria feito.

Receosa de perder a noção do tempo, sem justificação perante a Missão para


uma saída à cidade acompanhada do padre Manuel, Havita entrecortou.

- Temos de nos despachar padre Manuel, ainda temos de descobrir os


chocolates. Olhe para aquela aldeia padre Manuel! Porque é que ali as cubatas
parecem proteger aquela que se destaca no meio, servindo-lhe de muralha?

- Ali é a sanzala ou libata do régulo Nagilanjimbo, o chefe da comunidade desta


aldeia.
É feiticeiro. Dizem que consegue adivinhar tudo que está para acontecer. Já está
cego o pobre coitado! A idade já vai avançada. É o que ouço dizer, pois não
posso aproximar-me dessa sanzala.

- Tem medo?

- Não! Sabe que como padre, alguma aproximação do feiticeiro por casualidade
que pudesse acontecer, irmã Maria certamente não iria gostar.
Sabe que a religião deles é politeísta. Fazem culto aos deuses da natureza e
estão ligados a actos de feitiçaria.

- Acredita no poder da adivinhação, padre Manuel?

- Acho que isso são mistérios do Universo ainda por desvendar. E você Havita?

- Acho que mistério só Deus. Gostava de me aproximar só para ver como ele é!

- Temos pouco tempo Havita.

- Só por curiosidade!

- Que aborrecimento, o pneu furou de novo. Vai lá Havita enquanto eu mudo


novamente o pneu.

♥♥♥

64
Era dia de feira na aldeia.

Cruzavam-se povos das mais variadas raças. Luchazes, Quiocos, Ambuelas,


Bochimanes, Cacondas, Camaxis, Quilenges, Quipungos tatuados, etc....
Os Bochimanes eram famosos não só pela sua pontaria na caça à flecha, como
na habilidade inacta que demonstravam em talhar a carne mais suculenta
daquelas andanças, que expunham com ostentação, denotando todo o donaire
da sua raça.
Os Corocas, oriundos da mesma tribo de Vátuas, ascendentes do povo que
edificou o país Haeckolu, faziam a sua concorrência expondo os vegetais mais
frescos da região e os animais mais garbosos.
Eram os grandes proprietários de vastas extensões cultivadas e senhores de
elevado número de cabeças de gado.
Sobre o terreno árido, bronzeado por um majestoso astro que lhes pigmentava a
pele com a mesma tonalidade, estendiam-se panos das mais variadas cores e os
mais variados artigos, mussangas, marfim, cornos de pacaça que eram cornetas
de comunicação em caso de alerta ou perigo, cereais desde mandioca, milho,
massambala, etc., colocados sobre extensas folhas de colmo para sua
preservação.
Negras semi-nuas com filhos escarrapachados sobre as ancas, encantavam-se
com os tecidos garridos que contrastavam com suas peles morenas, ao mesmo
tempo que com ar inocente, ostentavam como troféus de vitória, seus peitos
tumescidos, orgulho do símbolo da fecundidade humana.

Por detrás das cubatas da sanzala, na encosta da colina, estendia-se o Etambo,


templo sagrado onde descansava o ossário dos sobas.

Afastado deste enorme rebuliço, destacava-se a sanzala do velho soba feiticeiro,


cuja cabana se distinguia das demais por a entrada estar adornada com uma
estaca ostentando no topo uma caveira tão ressequida pelo sol, que dir-se-ia que
já era relíquia antepassada.

Apoiado num velho totem todo talhado com animais e caveiras, símbolo de
autoridade que lhe parecia conferir dotes de magia e autoridade, o régulo
Nagilanjimbo, parecia descansar ou reflectir em toda uma vida cheia de
História.
Na verdade porém, o régulo não descansava.
Seu ar sereno de pessoa já muito cansada, mas que ainda tinha muito para
contar, abria agora os seus grandes olhos negros pintassalgados de névoas e
balbuciando, quando sentiu os passos leves de Havita a aproximarem-se, disse
serenamente:

Voasungo (branca) tuanamenéca puto (te saudamos portuguesa)!


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Havita estremeceu. Como poderia tentar conhecer aquele que tanta curiosidade
despertava em si se não falava a mesma língua?

- Sentir teu cheiro, ver teu aura.....chega gazela, vir até mim!

Havita ficou surpreendida. Não fez barulho e ainda estava a uns passos largos
de distância. Como podia aperceber-se que ela estava ali? Sentiu um arrepio.
Lembrou-se do que padre Manuel lhe tinha dito – Ele era feiticeiro. Não sabia se
havia de retroceder mas algo a convidava à aproximação.

- Nagilanjimbo não fazer mal a gazela, virem comer à meu mão.

Havita aproximou-se e, com muito carinho, passou suas mãos finas naquele
rosto ressequido onde a velhice abafava uma juventude guerreira plena de
vigor e quimeras de um longo passado cheio de peripécias.
Eram traços que vincavam o orgulho de um povo guerreiro.
Sentia-se mais serena. Afinal ele devia entender a sua linguagem.

- Que trazer doce gazela às minha terra?

- Curiosidade Nagilanjimbo ! Queria conhecer um verdadeiro chefe.

- Tu sentir só.
Tu sentir feliz na felicidade dos outro. Tu busca e não estar longe. Sabúru (Deus
da verdade) estar contigo.

Havita sorriu e cobriu as mãos do régulo com as suas num acto de muito
carinho, enquanto este se preparava para contar a história das suas origens, pois
sentia que era o grande fascínio de Havita.

Era a vez do régulo tomar nas suas mãos as mãos de Havita e contar a história
dos seus antepassados:

- Conta a lenda que nós ser filhos da Lua.....e apontando para a planície que ele
já mal enxergava, deixou as palavras fluírem-lhe de dentro da alma...................

O grande Rio Cunene já não poder conter mais água em seu regaço de tanto
suor e lágrima do seu povo. Suas margens derramar, rio dominar e pôr termo às
vida na campina. Desmontar palhota de colmo ou deixar ir rio abaixo sem nada
poder fazer. Abatido, pastores não deixar rasto e aves preparar seus asas num
adeus até próxima estação, sobre homem de pele cor da angústia que
vagarosamente, de cabisbaixo, conduz seus manadas para terras muito alta
para sobreviver de raízes e animal que por lá passe.
Cena atroz. Solidão cruel tomar conta do homem até Lua Grande brilhar de
novo e cacimbo estar próximo.
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Então, campinas nascer outra vez, os planície tornar mais larga, começar a
aparecer copas dos árvores submerso por toda a água que tapou os pradaria
obrigando os negro e animais a fugir para pontos mais alto.
Ba-ila, povo do alto de Sitanda, lá no grande planície do Cafué, sacrificar à deus
Monze (deus das Chuva), todos anos, a seguir ao tempo do Cacimbo, em noite
de Lua Grande, crianças nascido durante às quatro estação, para nunca secas
destruir nossos belo pradarias.
Ba-ila vir da Lua à Terra num deus gigante branco de penas branca e olhos de
fogo e dizer ser povo escolhido descendente da Lua cujo descendente desposou
Bacupa Deusa da Vida, e afirmar ser povo privilegiado e eleito.
Seu rei, Tueso, rei dos “puros homem”, certo dia antes de partir para sua caçada
aos elefante, para Mala, cidade donde nasceu seu país, chamar toda a tribo e
seus mulher e filhos, velhos e novos, e ordenar que toda a fêmea que com ele
dormira e tivesse filho seu em seu ausência, ter de sacrificar seus filhos ao deus
Monze e ficar com filha nos braço, pois assim tinha prometido a Bacupa deusa
da Vida, se filha lhe desse já que há muitas luas não nascia meninas.
Tueso partiu para seu caçada aos elefante, lá longe onde animal selvagem correr
grande região em grande galopada, tigre mostrar seus grande dente, leão
defender seus cria, e elefante nos dar o precioso marfim que nós talhar tesouro
que Voasungo (branco) tanto procura.
No meio de seu tribo, mulher dar à luz filho predestinado ao sacrifício do deus
Monze.
Qual mãe amargurada capaz de entregar filho seu às fera na floresta para
sacrifício?
Quase todos elas deram à luz, mas nenhum viver a não ser um menina e um
menino.
Ouvir-se lágrimas de tristeza pela morte dos recém nascido. No meio de tanta
lágrima, mãe chorar por dar à luz filho varão e estar condenado por lei de
Tueso a ser sacrificado ao deus Monze na floresta

O velho régulo que contava a história das suas origens, pausadamente, parou
cansado para de novo a retomar:

Mãe amargurada partir com filho varão para floresta onde este dever ser
sacrificado.
Haver festa. Muita alegria. Povo agradecer a Bacupa menina e mãe levar seu
filho para a floresta.
Tambores rufar, saltar fogueira e corno de pacaça soar umbanda.
Enquanto festa agitar alegria do povo, mãe chorosa levar seu menino para
cabana no meio da floresta onde povo Ba-ila não entrar com medo do feiticeira
maligna.
Mãe não sacrificar seu filho, deixar seu menino num cesto cheio de folhas para
não apanhar frio, deixar ele próximo do rio que estava junto da floresta, e
entregar à sorte dos deuses.
Velha feiticeira viver muito só, muito triste.
Quando ouvir choro de criança junto ao rio, aproximar-se dela e levar menino.
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Seu velho peito caído, ressequido pelos anos de tanta solidão, grata por aquela
benção dos deuses, sentir fluir vida dentro de si e aconchegando seu peito à
boca faminta do criança, amamentar ele com muito ternura.
Cuidar dele com muito amor, guiar seus passos, ensinar a língua do seu povo e
ensinar a defender-se dos perigo da floresta e do inimigo. O chamou de Mandu.

Padre Manuel aproximou-se lentamente, cumprimentou o régulo e sorriu.

- Contenta padre voasungo (branco).Tu estar com nós outra vez.

Havita ficava perplexa com aquela afinidade, pois padre Manuel dera-lhe a
entender que não se aproximaria do régulo com receio não só de irmã Maria
mas porque também parecia não acreditar nas magias de um velho feiticeiro.
Contudo, eles davam a entender que já se conheciam muito bem. Bem demais!

Nagilanjimbo o régulo, que já tinha contado a padre Manuel a história das suas
origens, e que ele conhecia de cor e salteado, pediu-lhe num tom já muito
cansado, que prosseguisse.

- Pois Havita prosseguiu padre Manuel:


Mandu fôra criado com a velha feiticeira, as feras foram as suas grandes amigas
de infância.
Comia frutos e caça e conhecia todos os segredos da jangal, contudo os segredos
do homem para ele ainda eram uma incógnita o que o levava a recear acercar-se
da comunidade dos “puros homens”.
A Natureza encantava-o.
Banhava-se todos os dias nas margens do rio que serpenteava a planície,
brincando com as gazelas suas amigas, chapinhando-se uns aos outros como
crianças endiabradas e, ria-se a bom rir, sempre que via sua imagem reflectida
nas águas correndo atrás dela sem nunca a poder alcançar.
Quando se embrenhava na floresta, munia-se como um guerreiro onde fazia a
sua caça e colhia deliciosos frutos para se sustentar mais à feiticeira, que o
acolhera evitando o infortúnio que o aguardava.
Os pássaros deliciavam-no com seus melodiosos trinados, o sol e o vento eram
seus fiéis companheiros na conquista de novas fronteiras, as estrelas e a lua seus
confidentes nos momentos de reflexão e de sonhos por desvendar.
Amava a Natureza e estava apto a defender-se perante o inimigo. Conhecia
todos os segredos que o cercavam, menos o segredo do homem que ele um dia
viria a desvendar.
O rufar dos tambores e o batuque que se faziam sentir à distância, provocavam
em Mandu tristeza e melancolia por recear entrar na terra dos homens que
tanto o incitavam à curiosidade.

Certa noite enquanto a feiticeira dormia, decidiu afastar-se um pouco mais e


embrenhando-se na floresta, oculto pelos ramos de um arbusto, decidiu ver
com os seus próprios olhos como eram os “puros homens”.
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Não podia acreditar no que via!
Os homens dançavam à volta de um sol imenso que devorava ramos de moita
que lhe eram lançados, fazendo estrépitos ruídos de satisfação.
À medida que lhe lançavam os ramos o sol crescia cada vez mais, parecendo
que a qualquer momento fosse rebentar de tanto encorajamento.
Era uma luta constante entre os homens e o sol.
Aguardava-se para se ver quem ganharia a luta.
Não compreendia a alegria dos homens que tinham aprisionado aquele que
reinava todos os dias, parecendo tão distante e intocável, e agora era refém.
No meio desta imensa euforia destacava-se o velho régulo, Tueso, muito
venerado pela sua tribo, ostentando um longa barba branca que lhe dava um ar
austero e de muita sabedoria.

De repente todo o mundo se calou e o velho régulo, de olhar vago de quem


pouco já pode alcançar pelos anos que sua vida já regista, de voz trémula e
cansada, começou a contar as peripécias dos seus antepassados, lendas,
histórias e mitos de épocas passadas, não deixando de contar velhas histórias da
feiticeira que a floresta albergava e dos malefícios que ela pelo Mundo
espalhava.
Mandu ria-se a bom rir.
Eram simplesmente histórias de uma velha bondosa que sempre fôra sensata e
carinhosa e, agora tão velha que estava, que já quase nada podia enxergar,
como podia ser tão maléfica como eles afirmavam?

Mandu caçava a carne mais tenra e os frutos mais suculentos para a pobre
feiticeira agora indefesa, acomodando-a num leito de folhas e pétalas de árvore
de modo que ficasse o mais confortável possível, retribuindo todo o amor que
ela sempre lhe dedicara.
Como eram medrosos os homens que tinham aprisionado o sol.
Sempre que falavam da feiticeira o pavor era tão evidente, que falavam num
tom mais baixo quase imperceptível, virando os olhares em todas as direcções
com receio que ela agisse com seus poderes maléficos, como se invisível fosse e
do nada pudesse surgir sempre que nela se falasse.
E meditando em todas estas ignomínias, criticando este povo que se diz tão
corajoso, adormeceu na terra quente encoberto pelas folhas que lhe serviam de
manto.
A Lua reflectia seus raios prateados em toda a região e as estrelas iluminavam o
Universo enquanto que Mandu era dominado por pesadelos que o mantinham
num sono agitado.
Desperto pela sinfonia dos pássaros que anunciavam nova Aurora, dirigiu-se ao
lago onde duas gazelas bebiam tranquilamente.
Abeirou-se das suas companheiras que satisfaziam as suas traquinices, imitou
os mesmos gestos dos animais com quem sempre convivera, mas sentiu-se
revoltado quando descobriu que afinal ele pertencia ao mundo dos homens e
não ao mundo dos animais.

69
Com lágrimas nos olhos afastou-se triste e confuso deixando os seus
companheiros para trás, e estes habituados aos carinhos de Mandu, tristes,
deixavam seu terno olhar vagar, vendo-o desaparecer no meio da floresta em
direcção à terra dos “puros homens ”.

A feiticeira quando acordou vendo-se rodeada de muitos frutos e carne fresca,


apercebeu-se que o seu querido menino partira definitivamente para o seu
Mundo.
Sentia-se em paz porque lhe tinha ensinado a língua dos homens e sabia que
um dia iria perdê-lo da mesma forma que o alcançara.
Deixando soltar um grito de dor que ecoou toda a região, deixou rolar lágrimas
de angústia por aquele ser único que a amara incondicionalmente.

Obcecado pela curiosidade em descortinar algo mais sobre o mundo dos


homens, Mandu construiu um tambor do tronco de uma árvore e, abeirando-se
uma vez mais da civilização, embrenhou-se na floresta e deixou fluir o
sentimento que dentro de si se debatia, através do som do seu atabaque.

Bater de asas soaram apressadas como se algo as assustasse, as feras soltaram


bramidos, as gazelas aproximaram-se de Mandu lamentando a lúgubre
melancolia da sua canção.
Era a hora da partida.
Era chegado o momento de Mandu se juntar à sua comunidade.

A noite já ia alta, bastavam curtos passos para Mandu entrar naquela terra que
impaciente por si chamava e tanto receio lhe despertava.
Mesmo ali à sua frente, tão próximo de si, palhotas protegidas por uma
paliçada de dentes de elefante que defendiam a comunidade, incitavam-no à
curiosidade que o invadia.
O destino estava marcado. Contudo, ainda não era chegado o momento certo.
Uma vez mais se aproximou da clareira sem que algo denunciasse a sua
presença e mais uma vez ficou extasiado com tudo o que os “puros homens”
faziam.
O sol que ele julgava que os homens tinham aprisionado na noite anterior e que
violentamente fustigavam lançando-lhe achas, era simplesmente uma fogueira
gigante que perecia em cinzas conduzidas nas asas do vento.

A lua majestosamente estendia seu manto luminoso por todo o universo, não
fosse o manto negro da noite pintassilgado de estrelas cintilantes, dir-se-ia que
era dia.
Absorto em toda esta magia que o fascinava, de repente esgaçou os olhos de
estupefacção.
No meio deste cenário surgia um escultural corpo de mulher nua com uma bela
tatuagem no umbigo.
Nunca vira ser tão belo como aquele.

70
Minuciosamente percorreu o corpo da deusa com o olhar e deteve-se
boquiaberto em seus soberbos seios, já degustando o prazer do que se lhe
oferecia.
Quase que caía fulminado por tanta beleza que o ofuscava que teve que se
segurar para não cair do tronco da árvore que ocultava a sua presença.
Esfregou os olhos e tentou ver se não era alucinação, mordendo os lábios até
sangrar, tal era a excitação que invadia o seu corpo.
Era a primeira mulher jovem que seus olhos enxergavam.

A tensão apoderou-se de tal maneira de si, que a temperatura subindo ao ponto


mais alto distendia todos os seus músculos numa pressão que parecia fazer seu
corpo explodir de tanto deleite.
Cerrou os olhos e mordeu os lábios uma vez mais para poder conter tudo o que
lhe ia dentro do peito e não podia deixar escapar.
Os ramos da árvore começaram a ceder e Mandu, meio atordoado, crivando
seus dedos frágeis no tronco rugoso, sem forças fez-se deslizar até ao chão onde
permaneceu inerte sem sentidos, tal fora a emoção.

A aurora anunciava novo dia despertando toda a natureza em seu redor


quando Mandu se ergueu.
Olhou em seu redor mas nada mais restava que um monte de cinzas que em
breve desapareceriam tal como desapareceu a bela mulher e todo o cenário que
a envolvia, bem como todo aquele ardor que envolvera seu corpo.
Que sensação seria aquela que ele desconhecia e o invadira?

Mandu agora sabia qual o caminho a seguir e, pegando no seu tambor,


embrenhou-se na floresta deixando seu atabaque melodiosamente contar a sua
triste história.
Sua serenata melodiosa acordava os homens de Ba-ila que curiosos a escutaram
e os deixaram sensibilizados.
Seu atabaque num som fino e grave, cantava baixinho a triste sina da criança
deixada num cesto coberto de folhas junto à floresta, ao cuidado dos deuses e
que fora amamentado por uma velha feiticeira que lhe dedicara todo os seu
amor.
Falava também da sua infância passada entre feras e a mãe natureza e da jovem
donzela que pela primeira vez despertava em si o sentimento do prazer a quem
ele agora dedicava esta melodiosa sinfonia.
Caminhando em passos lentos e melancólicos, Mandu afastou-se em direcção à
cabana da velha feiticeira, levando consigo o som agora enrouquecido do seu
atabaque.
A mulher do régulo que tinha escutado a triste história daquela melodia, no seu
coração de mãe angustiada que nunca deixou de ser, apesar do acto a que era
obrigada e tudo fez para que não se cumprisse, agora seu coração alegrava-se
por saber que seu filho estava vivo e, aproximando-se do régulo e da
comunidade, ajoelhou-se pedindo perdão e contou toda a verdade.

71
Tueso que tinha mandado matar todas as crianças que nascessem quando ele
estivesse ausente para uma caçada de elefantes, ordenando que poupassem
simplesmente a vida de uma menina, agora comovido, ordenou aos seus
guerreiros que fossem em busca do seu filho, por ele condenado ao sacrifício, à
nascença.

Os guerreiros partiram antes do alvorecer seguindo as pegadas do enigmático


jovem que se tinha embrenhado no meio da floresta
A busca foi em vão.
Voltaram sem notícias do filho do régulo.
Contudo, Mandu voltou à clareira e, mais uma vez junto da terra dos homens,
quando a noite já ia alta, acompanhado pelas estrelas e pelas feras suas amigas,
deixou de novo fluir o tom rouco do seu atabaque.
A mesma história, a mesma melodia, a mesma tristeza que o invadia.
De novo voltou à floresta e como tinha intenções de voltar na noite seguinte, tal
era o apelo que a terra dos homens lhe fazia, deixou seu tambor pendurado
num galho de uma árvore.
Novamente os guerreiros de Tueso partiram em sua busca.
Mas tudo fôra em vão.
Porém na terceira noite que Mandu se dirigia para a clareira com o intuito de
novamente desabafar através do som do seu atabaque, foi surpreendido pelos
guerreiros de Tueso que o cercaram e o conduziram para a cidade de Mala para
a terra dos “puros homens”.

Tueso ficou tão emocionado com a beleza daquele jovem que lhe fazia lembrar
a sua mocidade, que não foi capaz de o condenar.
Toda a comunidade se alegrou.
Dentro da cabana do régulo surgia uma débil negra já um tanto idosa, que
desfazendo-se em lágrimas, correu a abraçar Mandu e lhe chamou de filho
querido.
Ajoelhando-se, pediu-lhe perdão por o ter deixado ao cuidado dos deuses, pois
a tal fôra obrigada, manifestando-lhe a ansiedade em que vivia de ver o dia que
o pudesse de novo abraçar.
Mandu sentia-se feliz e perdoou seus velhos pais.
Contudo, tinha de voltar à floresta onde deixara a velha feiticeira, que agora às
portas da morte, fazia transportar o seu último beijo de adeus a Mandu, seu
querido menino.
Embrenhou-se de novo na floresta e quando chegou à cabana da velha
feiticeira, julgando que esta estava a descansar, deitou-se a seu lado e
adormeceu, cansado de tanto caminhar.

A velha moribunda quase já sem forças, com lágrimas no olhar, numa


despedida de muito amor, depositou-lhe um beijo na testa e olhando para ele
uma última vez, ficou com um sorriso nos lábios por lhe ter dado um destino
diferente.

72
Quando Mandu acordou, o corpo da velha jazia inerte e gelado, com lágrimas
nos olhos mas com um semblante sereno de quem tudo tinha feito para que
Mandu viesse a ser um grande guerreiro.

Mandu depositou o corpo gelado e inerte da velha feiticeira numa toca de


árvore, na floresta, como se ela ainda continuasse a viver, e partiu para a terra
dos homens decidido a enfrentar o povo do qual viria a ser chefe um dia e a
revelar todo o sentimento que aquela bela jovem tinha plantado no seu coração.
Tinha de partir em busca de Bacupa, a deusa da Vida, custasse o que custasse e
desposar a bela jovem, por quem seu coração fortemente batia.
Partiu em direcção à aldeia dos homens, mas não a conseguiu encontrar, pois
tudo o que ele vira era uma miragem, um sonho impossível de se realizar.
Contudo, ele tinha que partir, assim ordenava o seu coração.
O povo disse-lhe que era impossível porque Bacupa era uma deusa e até agora
ninguém tinha ainda descoberto o lar dos deuses.
Mas Mandu não se deixou abater e disse que partiria para a cidade de Bacupa e
na volta traria a sua bela deusa ao seu povo.
0 povo achou-o demente pois tal era impossível, mas sua querida mãe, não
deixando de o apoiar, cozeu-lhe um bolo de mandioca para o caminho
Mandu pediu a sua mãe que o mantivesse em seu poder e estivesse atenta, pois
enquanto ele se mantivesse quente, era sinal que Mandu estava vivo.
De novo atravessou a floresta, vales e planícies e partiu em direcção ao reino de
Bacupa.
Na voz do vento sentia a voz meiga da feiticeira dando-lhe coragem para o seu
objectivo, pois melhor que ninguém ela sabia o destino que lhe dera, antes de
partir.
Cansado de tanto caminhar, Mandu abeirou-se das margens que ladeavam uma
colina e refrescou-se para de novo pôr pés ao caminho e atravessar a densa
floresta que se avizinhava.
Enquanto que atravessava a floresta trauteando uma melodia, uma marida
sobrevoando sua cabeça, deixou-lhe cair uma das suas penas azuis a seus pés e
seguiu caminho.
Enfeitiçado pelo amor que a deusa em si tinha despertado, Mandu enfeitou-se
com a pena da marida e de novo seguiu caminho em direcção ao reino de
Bacupa.
Não tinha fome, nem sono, nem fadiga, o poder do amor era maior e as forças
revigoravam a todo o momento dando-lhe coragem para percorrer caminhadas
intermináveis.
A noite já ia avançada, entre as sombras frondosas das árvores e os uivos das
feras, Mandu decidiu descansar um pouco numa toca de árvore, enquanto
comia alguns frutos, acabando por adormecer.
As estrelas brilhavam iluminado a clareira da floresta, sentiam-se passos
tímidos apressados de gazelas e rastejar de répteis, enquanto que Mandu
serenamente, sonhava com a velha feiticeira que lhe dava carinhos e lhe dizia
que não desanimasse, pois ela ia protegê-lo na sua caminhada e brevemente

73
encontraria o reino onde a sua donzela prometida o aguardava, conforme o que
a feiticeira lhe tinha destinado.

O sol já ia alto e Mandu mais confiante que nunca pôs pés ao caminho pois
sabia que não estava só.
A costa que se deparava para além da floresta era muito escarpada,
serpenteando de colinas o horizonte. Estaria próximo?
Seu coração começou a bater ainda mais forte quando, para além destas colinas,
viu uma luz imensa brilhar, como se fosse um sol ofuscante pairando sobre uma
planície cheia de vegetação.
Correu ainda mais, dir-se-ia que tinha ganho asas.
Parou junto a um lago para satisfazer a sua sede e aperaltar-se um pouco mais
com a pena azul da marida, pois já estava próximo do reino da sua amada.
A deusa da Vida estava a uns curtos passos de si.
Mandu abriu-lhe os braços e beijando-a docemente, segredando-lhe doces
palavras de amor, com o seu consentimento, trouxe-a para o reino dos homens.
De novo soaram tambores, enquanto que o batuque desfilava à volta de
fogueiras crepitantes que acompanhavam o júbilo deste povo guerreiro que
festejava o regresso de Mandu e a presença da deusa da Vida.
O som dos seus cantares ecoavam por toda a região.
Contudo, Bacupa estava triste, não podia desposar Mandu enquanto não fosse
cumprida a promessa do sacrifício dos gémeos a Monze, seu pai, o deus da
chuva, regressando deste modo ao seu país.
Mandu estava desesperado, não queria perder o seu grande amor e uma vez
mais ajudado pela pena azul da marida, voltou de novo ao reino dos deuses,
onde perante Monze, jurou solenemente cumprir as promessas que até ali eram
prestadas ao pai de Bacupa, sacrificando nos rochedos de Nabunimbwa,, todos
os anos, em fase de lua cheia, um casal de gémeos para apaziguar as chuvas em
vésperas do Cacimbo, nunca deixando deste modo de adorar o deus da chuva.
Compadecido com a ousadia do valente guerreiro que não descansou enquanto
não atingiu o seu objectivo, por mais dificultoso que fosse o trilho que o levava
até ele, deu-lhe a mão de sua filha Bacupa e deixou-os partir para a terra dos
“puros homens”.

Com grande festança comemoraram a união de Mandu e Bacupa e todos os


anos, o régulo enfeitado com a pena azul da marida, a ave sagrada dos Ba-ila
que conduziu Mandu ao reino da deusa da Vida, empunhando a catana em
punho, oferecia os gémeos em sacrifício degolando-os e lançando-os de seguida
à fogueira sagrada até se consumirem em cinzas.
Após o sacrifício, regressavam às colinas do Cafué, e junto de suas cubatas, em
círculo, num acto de paz consumada, fumavam pachorrentamente o seu
cachimbo com um metro de comprimento.

♥♥♥

74
- Credo padre Manuel, como podiam eles sustentar um cachimbo tão grande?
Perguntou Havita admirada.

- Este cachimbo era feito de um galho de árvore muito seco, mas firme e
concebido de modo que o fumador não tivesse que sustentar o peso todo nos
dentes, por isso, na extremidade era sustentado por um suporte bifurcado que o
sustinha e para lhe fazerem a limpeza, usavam pinças com metade do seu
tamanho evitando esforços de maior.
O primeiro a fumar era sempre o chefe da tribo, depois continuavam em
círculo, dando passagem ao seguinte até chegar novamente a vez do régulo.
Era chamado o cachimbo da paz que tão bem conhecemos hoje em dia e é ainda
muito usado em seitas indígenas, sempre que hajam comemorações
acompanhadas dos rituais do seu povo.

- Cada tribo tem o seu ritual, não é padre Manuel?

- Sim, mas quase todos dentro da mesma origem, raça negra, têm algo em
comum, a dança mais denominada batuque.
Geralmente confraternizam em volta de uma enorme fogueira, cujas chamas
realçam seus corpos semi nus, ostentando enormíssimos penteados o “isuso”
com cinco pés de altura, uso próprio para rituais de cerimónia, feitos com
excrementos de animais.
Depois sentam-se contando velhas histórias dos seus antepassados e relembram
façanhas guerreiras, gloriando-se da captura de outras raças como os barotzes e
muchuculumbes mortos a galope e perseguições a outros que vivos eram
lançados no Kawena.
O mesmo acontecia àqueles que tentavam penetrar em templos sagrados como
o Etambo, ou florestas como a que era consagrada a Bacupa, a deusa da Vida,
que casando com um dos filhos da Lua, deu origem a esta tribo.

- Quianhala (obrigado)! Respondeu o régulo.

- Lindo murmurou Havita extasiada. E aquele cemitério no alto da colina pode-


se ir visitar?

- É o Àcócolo (cemitério dos chefes) onde se destaca o Etambo, o templo


sagrado, ossário dos chefes antepassados. Cassange,Chihongo,
Quimbarandongo, Capu-Kumuna, NgolaNjimbo, Mani-Calunga e toda a sua
origem.
Só aos chefes e às suas tribos é permitida a entrada.
Dizem que próximo, Quilulo, deus dos mortos vela pela almas (ochirúnrun) de
viajantes que aqui pereceram.
E ai do caminhante que passe junto das pedras onde morreram, sem nelas
deixarem um ramo de arbustos, porque o deus dos mortos persegui-lo-á
implacavelmente.

75
Caminhos sem fim encontrarão até caírem mortos de cansaço sem conseguirem
chegar à meta.

Mas, Havita, está a fazer-se tarde respondeu padre Manuel. Temos de regressar.

- Quianhala (obrigado), respondeu o velho régulo despedindo-se do padre


branco.

Nagilanjimbo ficou com um sorriso nos lábios e disse a Havita para nunca
desistir de tudo o que lhe pareça impossível pois sua força era seu guia.
Via em sua vida “uma luz ao fundo do túnel” cada vez mais perto de si que
nunca deixou de iluminar o seu caminho.
Ofereceu-lhe um amuleto o Usése (rabo de cavalo) que se usa na guerra para
afastar as balas, para que assim Havita pudesse combater o mal de inveja de
que era alvo e que não deixava os deuses bons penetrarem no seu caminho, tal
era a inveja que ela transportava já desde pequenina, que a sombra quase
ofuscava a luz.

Havita despediu-se do régulo passando-lhe novamente sua mão fina em seu


rosto enrugado e partiu sorrindo com ar de gratidão.

♥♥♥

- Afinal padre Manuel seu maroto, não me tinha contado que conhecia o régulo!
E com a agravante de me dizer que não acreditava em feiticeiros.

- Tornamo-nos grandes amigos através de irmã Linda.


Quando vim para África, não sei se foram influências de um clima a que não
estava habituado, ou algum insecto que me picou, contraí febres que teimavam
levar-me à sepultura.
Estive inconsciente durante muito tempo.
Ora, como nestes lugares não há médico nem medicamentos que se lembrem
destes pobres coitados, eu fiquei à mercê do meu destino. Meu corpo ia
definhando dia a dia e já todos julgavam que em breve eu deixaria esta vida.
Irmã Linda que já está cá há muito tempo e conhece todas as regiões e todos os
povos, lembrou-se que talvez o régulo Nagilanjimbo através dos seus poderes e
mezinhas, e a Fé dela, me conseguissem livrar daquela agonia.
Deixou cair a noite e, quando esta já ia bem alta, pediu a um dos negros da
comunidade que a levassem ao régulo, mesmo sabendo que se irmã Maria
soubesse poderia repatriá-la, o que para ela significaria morte prematura.

Pelo que sei irmã Linda veio do seio de uma família muito pobre e sem
condições, e dedicou-se aos mais desprotegidos para lhes mostrar que há
sempre algo que podemos dar aos outros mesmo quando os outros nada têm
para nos dar.
Seu exemplo é o exemplo mais puro de doação. O seu amor é imenso.
76
Junto do régulo Nagilanjimbo, irmã Linda ouviu tudo com atenção e escondeu
tudo que o ele lhe dera para me aplicar às escondidas. Valeu-me a sua
dedicação e amor, e as receitas de Nagilanjimbo.

- Entendo! Respondeu Havita!

- Está a ver Havita! Se algum dia irmã Maria viesse a sonhar, expulsava-me
mais à irmã Linda. Por isso não deve contar nunca o que lhe acabei de dizer
nem tão pouco que estivemos com o régulo.

- Assunto encerrado (respondeu Havita firmemente). Estão ali os chocolates


padre Manuel!

Havita trazia a felicidade expressa no rosto, quando entrou na Missão.

- Havita, Havita onde foste e não nos levaste? Perguntavam Ana e Inês.

- Surpresa!!
Bem. Vamo-nos despachar. São horas de ir para a escola, não são Inês? Vamos
buscar irmã Lindinha?

- Olá amor, já chegaste? Fez-te bem a ida à cidade, estás com um olhar radiante.
Comentou irmã Linda.

- Pois! ( respondeu Havita atrapalhada). Consegui comprar os chocolates para


as crianças !
Exclamou virando-se para a janela como se quisesse ocultar algo mais que seus
olhos pudessem transparecer.

- Também fico feliz Havita.

Nunca tinha acontecido, mas Havita chegara pela primeira vez uns minutos
atrasada. As crianças estavam nervosas.
O burburinho entre elas e as respostas mais diversas concluíam que não tinham
descoberto a chave do enigma. Aguardavam ansiosamente Havita para que
pudesse deslindar esse mistério.

- Bom dia meus amores. Porque estão todos tão tristonhos? Perguntou Havita
fazendo o beicinho típico de uma criança amuada como que querendo entrar na
intimidade deles sem qualquer discriminação de idade.

- Não sabemos a resposta senhora professora!

- Bem! Primeiro de tudo. A partir de hoje vão tratar-me por Havita e não
senhora professora.

77
Como já se devem ter apercebido nós já não podemos passar uns sem os outros.
Isto quer dizer que criamos laços de amizade, carinho e que abrimos as portas
dos nossos corações, gravando o nome de cada um de nós aqui existentes.
Esse Sentimento que não vemos, mas que nos faz sentir saudades quando não
nos vemos e que nos dá felicidade só de saber que quem amamos se encontra
bem e feliz, chama-se Amor.
Porque Deus é Amor, com amor nos criou e é assim que devemos fazer com
todos os que nos rodeiam. Fazer aos outros o que para nós mais desejamos.
Em nome do Amor e por Amor conseguimos fazer face a todos os tormentos da
vida.

As crianças sorriram.

- Nós vamos sempre amar-te Havita, a ti e a todos.

- Mesmos ao que nos querem mal? Perguntou Havita.

Hesitaram!

- Mesmo a esses Havita. Respondeu irmã Linda ajudando à missa.


Esses mesmos por vezes não nos querem mal, mas enfurecem-se por não
conseguirem ser tão bons como nós. Logo temos de ter paciência e ensiná-los
para que possam também atingir a felicidade.

- Vocês sabem o que é a Felicidade, não sabem? Perguntou Havita.

- Claro! Disse Ana de imediato!


É o prazer de termos tudo o que queremos.

- Isso é a alegria. A alegria é o manifesto de uma satisfação, o prazer de


possuirmos o que tanto desejamos e nos faz desejar mais e mais. Entrecortou
Havita para que um dia a decepção de não se possuir esse prazer viesse a fazer
alguém sentir-se infeliz.

Calaram-se! Qual seria o enigma seguinte? Porque era tão difícil responder às
perguntas de Havita e tão fácil concordar com elas?
Porque é que Havita era tão subjectiva?

- Felicidade é o prazer de nos sentirmos bem com aquilo que temos. Retorquiu
Havita.

- E não foi isso que dissemos? Entrecortou Tomé indignado.

- Vocês disseram que era o prazer de termos o que queremos. E quando temos o
que não queremos vamos deixar-nos abater pela infelicidade?

78
- Ficamos tristes! Respondeu Inês.

- Tristes, abatidos mas nunca infelizes. Reparem! Se pensarmos que não temos
tudo o que desejamos mas, que há sempre alguém com menos do que nós e
outros há com menos do que outros tantos possam ter, já nos podemos
considerar por muito felizes.
E mais felizes ficaremos se conseguirmos dar um pouquinho da nossa
felicidade aos que menos têm. Não acham, seus marotos?
A questão é que nunca devemos satisfazer-nos com uma única resposta às
questões da vida, mas procurarmos várias soluções para a mesma questão.

- Então que nos aconselhas Havita?

- A subjectividade da vida obriga-nos a pensar e não pararmos frente a um


obstáculo. Logo, as várias hipóteses que pusermos a uma questão, será uma
porta de saída, solução para o objectivo.

- Que tem isso a ver com a Felicidade? Perguntou Tiago admirado.

- Não te sentes realizado sempre que solucionas as tuas questões?

- Claro!

- Logo, ficas feliz. A felicidade é construída na base da concretização dos nossos


objectivos, actos ou sonhos, a transposição de algo que parece impossível e tu
com força de vontade, consegues ultrapassar, mesmo fazendo-a substituir por
algo que a compense.
Por isso é que nunca devemos condenar nada nem ninguém, porque cada qual
é feliz à sua maneira, independentemente do que nos possa parecer. Só os
limitados o fazem porque o horizonte deles é restrito.

Saber encontrar compensação daquilo que nos falta é dar sentido à vida. No
carinho que empenham em executar tudo o que vos apareça no dia a dia vão
encontrar a glória dos vossos esforços.
E, como querer é poder, tenho a certeza que os meus meninos no futuro vão ser
dignos de admiração de toda a gente.
Por isso, e porque já sabia que podia confiar em vós, tenho chocolates para
todos.

- Oh! Havita nós te amamos muito. Responderam todos.

- Vêem como vocês são os maiores? Eu também vos amo muito, por isso e
porque aprendi muito com vocês é que já não sei passar sem vocês.
Vamos todos para o recreio?

- Se quiseres Havita, podemos ficar aqui a escutar-te até mais tarde!


79
- Não. Eu também tenho necessidade de brincar, ou será que vocês não me
deixam brincar convosco?

No recreio os adultos não se distinguiam das crianças. Irmã Linda parecia um


passarinho feliz, nas mãos de inocentes que a divertiam fazendo-a esquecer as
agruras da vida.
Havita corria e era perseguida por abraços e beijinhos.
Padre Manuel estava feliz só de ver todos felizes e sentir que Havita
resplandecia de felicidade.

O sol desaparecia feliz e cansado nesse dia pois não deixara de não participar
nas brincadeiras daquela manhã acompanhando todos na sua alegria.

Havita adormecia abraçada a Inês com um sorriso nos lábios, embalada pelas
emoções desse dia.

♥♥♥

- Havita, tem uma carta para si! Disse irmã Maria a Superiora estendendo-lhe o
envelope, saindo logo de seguida.

Havita ficou sem palavras. Quem seria? Tinha recebido há pouco tempo
noticias de Inês e Maria, que estavam guardadas e atadas com um laço rosa
juntamente com outras tantas.
Afastou-se para um lugar tranquilo onde pudesse estar à vontade. Colocou um
chapéu preto que contrastava com sua blusa amarela e calção preto, e munindo-
se de caneta e papel para responder à carta recebida, foi à cozinha buscar um
sumo fresco e foi para junto da cachoeira.

BUPE, meu amor! Grande amor da minha vida. Onde estás agora? Como eu
morro de saudades tuas. (Murmurou Havita ficando num vale de lágrimas).

Bupe continuava viajando por esse mundo além, não tendo destino certo.
Tinha-se tornado um personagem importante no mundo dos negócios pela sua
audácia frente à vida, e era muito respeitado por todos pela sua justeza, tal era o
seu respeito pelo direito humano.
Dizia que esperava em breve ver seus queridos pais e todos os que amava,
contudo ainda não sabia ao certo quando poderia abraçá-los.

A paixão de Havita por Bupe era desmedida.


Acreditava que neste mundo nos cruzávamos sempre com a nossa alma gémea
nem que só o viéssemos a reconhecer um dia mais tarde e por vezes tarde de
mais.

80
Com Bupe fora diferente. Desde o primeiro encontro algo os marcara tão
profundamente que ficara registado no coração de ambos que um seria a
sombra do outro.
Não eram simples coincidências que os tornava tão idênticos, mas reflexo um
do outro que os tornava tão iguais.
Havita sempre o amou com todas as forças do seu coração. A mais curta
separação entre eles era como uma eternidade.
Contudo, cada qual tem a sua missão a cumprir e no limite das fronteiras da
vida, resta-nos a esperança de um reencontro feliz.
Havita sentia-se feliz só pela sua existência e dava graças a Deus por ter
conhecido um ser tão angélico quanto Bupe.

- Quando te verei novamente meu grande amor? Segredava baixinho o coração


de Havita.

- Outra vez sozinha, perguntou padre Manuel que se fazia acompanhar de irmã
Linda.

- Estou bem! Respondeu Havita apanhada de surpresa quando tentava enxugar


as lágrimas.

- Porque choras amor? Perguntou irmã Linda ao vê-la com os olhos brilhantes e
rasos de água.

- Poeiras do caminho.

- Anda cá minha princesa. E colocando as mãos no rosto de Havita, disse:


Desabafa comigo, já sabes que podes contar com a tua irmã. E beijou Havita na
testa.

- Vamos regressar? Perguntou Havita com um sorriso nos lábios e tristeza no


olhar, tentando ultrapassar a saudade por Bupe, evitando que lhe fizessem
perguntas por a encontrarem naquele estado.

- Não. Primeiro vamos até àquela cachoeira que Havita gosta muito, vamos
refrescar nossas ideias e então depois regressamos. Respondeu padre Manuel.

- Estou de pleno acordo. Respondeu irmã Linda que zelava pela felicidade de
Havita.

Padre Manuel sabia que as águas cristalinas que reflectiam o azul do universo
em comunhão com a natureza, despertavam em Havita o fascínio de seus
sonhos e desejos mais íntimos, que lhe davam alento à vida.
Era o lugar sagrado e mais íntimo dos dois, onde a Natureza os acolhia e a
sintonia do cosmos conjugava com este amor, nunca revelando o segredo desta
paixão.
81
Havita sorriu.

- Como eu amo este lugar! Sussurrou Havita.

Entre eles não havia pecado. Era um sentimento puro de paixão, onde dois
seres se amavam num espaço intemporal numa doação mútua de sentimentos
despontados em seus corações.

Começaram a chapinhar-se. Pareciam três crianças endiabradas. A tristeza


partira, Havita sorria de felicidade e o tempo ia passando sem se aperceberem
que alguém na Missão já aguardava pelas suas presenças.

- Havita, Havita a Irmã Maria está furiosa, farta de andar à vossa procura. Diz
que ninguém se dignou avisá-la da vossa ausência. Disse Inês surgindo
imprevistamente, pois já conhecia os lugares mais secretos onde Havita se
refugiava para se encontrar.

- Vamos padre Manuel. Disse irmã Linda com um sorriso de felicidade em toda
a sua extensão tentando afastar qualquer prenúncio de tempestade que pudesse
pôr termo a tanta alegria.

A presença de Havita transmitia-lhes paz e inocência, onde se sentiam crianças


novamente, sem qualquer crítica aos seus comportamentos.

Inês acompanhava-os alegremente, quando foram surpreendidos ao chegar à


Missão, por alguém que por eles já aguardava.

- Irmã Linda, padre Manuel e Havita, eu preciso de falar com vocês


urgentemente. Disse Irmã Maria a Superiora.
O vosso comportamento está a ultrapassar os limites.
Comportam-se como crianças desrespeitando as regras que vos são impostas.
Se continuarem a manter este comportamento terei de tomar atitudes severas.
Já repararam em que estado acabam de chegar?
Todos encharcados! Isto é uma Missão não uma estância de lazer. Ripostou a
Irmã Superiora.

- Mas hoje é Domingo, irmã! Estamos livres de qualquer compromisso, o que


nos dá o direito de tirarmos partido de nós próprios e da nossa vida.
Respondeu Havita que não permitia a ninguém entrar na sua privacidade uma
vez que sempre se dignou respeitar a dos outros.

- Mas há regras a cumprir e o respeito é o critério fundamental para a harmonia


do bem-estar desta comunidade.

82
Havita não conseguia descansar nessa noite. Deixou Inês adormecer e, pegando
na sua travesseira, entregou-se à frescura da noite iluminada pela Lua e das
estrelas que lhe quebravam a nostalgia que invadia a sua alma.
Se não fosse o amor por irmã Lindinha, pelas crianças e todos a quem se tinha
dedicado, e o despertar do novo sentimento que padre Manuel implantara em
seu coração dando nova magia à sua vida, Havita ter-se-ia decepcionado uma
vez mais e voltaria à sua terra natal.
Mas o Amor era mais forte e não queria perder a luz que seus queridos
amiguinhos tinham implantado em seu caminho.

Um astro que cruza o Universo. Um desejo! (pensou Havita).

Sedenta daquele amor proibido que mais parecia um sonho que realidade,
Havita deixou-se embalar pela sensação do abraço forte e do beijo quente de
padre Manuel, que ela tanto se esforçara para não se deixar abalar e acabara por
a seduzir.
Fechava os olhos para sentir a brisa da noite acariciar a sua pele como se
estivesse sentindo o toque acetinado daquele que tanto a encantava.
Um ruído fê-la voltar à realidade.

- Padre Manuel!

- Shuh! Havita temo dizer-lhe que irmã Maria anda desconfiada do meu
comportamento. É evidente que a paixão mexe com cada um de nós e até o
nosso próprio olhar deixa transparecer a felicidade que nos invade por dentro.
Eu pertenço à Igreja, contudo sou humano e tenho a certeza de não ter pecado
por gostar de alguém.
Temos que dar um tempo, pois será muito pior se nos afastarem para sempre e
tivermos que viver afastados um do outro.

Havita sentiu seu mundo desvanecer. Queria abraçar e beijar nem que fosse a
última vez o seu príncipe encantado, mas simplesmente duas palavras
brotaram de seus lábios:

- Até sempre padre Manuel!

Havita sentiu-se uma intrusa na vida daquele que lhe devolveu o sabor pela
vida. Não queria de maneira alguma interferir na sua vida.
Quando ele lhe falava da missão que tinha em seu poder e manifestava alegria
ao descrevê-la, Havita por vezes afastava-se desta ligação para não sentir
remorsos de algo que ele falava com tanto carinho e ela pudesse destruir por
amor.
Padre Manuel ficou ferido por este “até sempre” que lhe soou mais a um adeus,
que um “até qualquer momento”.

83
Padre Manuel afastou-se do local para não sofrer ao enfrentar de novo o olhar
de Havita, pedindo permissão à Missão para se ausentar por uns tempos para
meditação numa instância próximo àquela, onde pudesse refugiar-se e afogar
seu desgosto.

Havita embrenhou-se novamente na solidão. Já não parecia a mesma.

♥♥♥

- Havita, amo-te.
Dizia Inês tentando tirá-la do pesadelo que a invadia no momento. Havita?
Estás a ouvir-me? Repetia Inês tristemente.

- Oh, minha princesa eu adoro-te.


Perdoa-me! Respondeu Havita entregando-se a um estado febril que tomou
conta do seu ser e parecia jamais querer abandoná-la.

Havita definhava dia a dia. Tinha perdido a vontade de viver ao sentir-se


afastada daquele que quando mergulhada num poço sem luz iluminou seu
caminho. De um acto de gratidão, de uma amizade nasceu uma paixão.
Da coragem e audácia em surpreendê-la nasceu o amor novamente.

Agora nem sequer podia ver o brilho do seu olhar e banhar-se no seu interior,
tentando descortinar os seus desejos mais íntimos que seus lábios não
proferiam.

- Havita, uma carta de Inês. Disse alegremente irmã Linda na expectativa de ver
um brilho naquele olhar que teimava permanecer na penumbra.

- INÊEES..... BUUUPE... Que diz irmâ querida?

- Não sei. Abre mulher, estou ansiosa de ver teu rosto iluminar-se novamente!
Inês é uma luz para ti. Não te abandones, pensa no amor que lhe tens.

Havita estava mesmo muito doente. A saudade e a desilusão matavam-na aos


poucos.
Pousou a carta de Inês sobre a cama e sentando-se, encostou-se no seu leito e
começou a escrevinhar com movimentos pausados que transmitiam toda a sua
angústia e debilidade, mas cheia de sentimento e enigma como sempre.

Irmã Linda chorava por dentro por não poder ajudar Havita. Suas forças
desvaneciam-se com o débil estado de Havita, a sua alma gémea.

E escrevinhando.................

84
♥♥♥

Um anjo na Terra

O Universo contraiu-se, as estrelas brilharam, a Lua sorriu, o Caos ficou no


esquecimento, o uivo ecoou nos ares, a Aurora rompeu, o Sol saudou a Terra, a
Vida surgiu....
E...eis que aos olhos do meu coração foi dado o Dom de ver um Anjo descer dos
Céus até junto de mim.
Trazia o Dom da humildade no coração, na face o Amor ao próximo, nas mãos a
minha Felicidade, nos olhos a compaixão.
Pedi-lhe que comigo ficasse, pois a vida não tinha encanto.
Escutou, chorou, sorriu, benção que alguém tão pequenino me escutasse, já que
nunca ninguém me ouviu.
Gritei aos Céus, pedi a Deus, que mo desse de presente no futuro, não queria
mais nada nesta vida, senão essa Luz que me guiasse no escuro.
O Universo contraiu-se novamente, o Sol sorriu num ar angelical, as asas do
anjo docemente caíram, para mim seus olhos sorriram, os seus aos meus se
uniram, agradecendo a Deus benção tão celestial.
Tempestades caíram, obstáculos... hei-los a cada momento, promessas de dias
melhores surgiam, mas....Alegrias.....só no esquecimento.
Mas tu Meu Anjo, olhos do meu coração, com o teu sorriso me estendias a mão,
e com lágrimas no coração, os teus olhos dos meus fugiam para que te não visse
a dor, ao mesmo tempo que me prometiam um puro e eterno amor.
Se há algo nesta vida que valha a pena lutar, é pelo Anjo que um dia comigo
quis ficar.
E quando já cansada desta vida me encontrar, presente que nem todo o mundo
tem, deixa o meu rosto no teu regaço descansar, e fechando meus olhos com
teus dedinhos de querubim, guarda nos olhos do teu coração a lembrança que
te ficou de mim.
Eu...que nada tenho para te oferecer, fraca por este mundo não poder vencer...
Eu ...que nada fui...nada sou.....
(parou de escrever e de olhar fixo na irmãzinha, mentalmente gritou...
SIMPLESMENTE TUA MÃE)

♥♥♥

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- Havita, em quem estás a pensar coração? Perguntou irmã Linda abraçando-a
com todo o carinho.

Havita adormeceu com o rosto encostado ao peito da irmãzinha sem proferir


palavra.
Irmã Linda abriu a carta de Inês para ver se continha notícias capazes de dar
vida a Havita ou se continham notícias que mais valiam ocultar para não
agravar a sua debilidade.
Até o Sonho se tinha afastado de Havita. Nem as próprias recordações ela
evocava para lhe darem alento.

Irmã Linda afastou-se com a carta de Inês no seu regaço e as rodinhas da sua
cadeirinha pesarosamente chiavam em solidariedade àquela que com tanto
carinho as ajudavam a registar as caminhadas do seu calendário.

- Havita, Havita acorda!. Acorda! Sussurrava Inês a mensageira. Tens alguém


ao telefone querendo falar contigo. È uma voz masculina.

Será BUPE? Levantou-se revigorada, de um só pulo, na esperança de ouvir


alguém tão amado do outro lado da linha que lhe pudesse de novo devolver a
vida.

- Havita. Amor! Como estás? Queria ouvir a tua voz e saber como estás. Já lá vai
tanto tempo. Vou partir numa viagem para o estrangeiro e espero em breve
estar de volta e poder novamente ver-te.

- Padre Manuel! Claro.....prazer em ouvi-lo. (Havita manteve o auscultador


ainda bastante tempo ao ouvido como se não quisesse que aquela voz se
extinguisse do outro lado com receio de jamais a poder ouvir).

Suas palavras tinham sido breves e num tom receoso, que lhe dava a conotação
de frigidez, quando não passava de um reflexo da sua debilidade.

Contudo aquela chamada dava-lhe novas esperanças de ganhar coragem para a


vida.
Havita pensara ser novidade na vida de padre Manuel e que este a viria a
esquecer, mas a sua atitude e audácia de transpor novamente os seus limites
para chegar até Havita, fazia renascer em si a esperança de cruzar novamente
com aquele que despertara de novo a paixão, quando ela pensava que já tinha
perecido.

♥♥♥

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O tempo ia passando e Havita já apresentava um semblante mais prometedor.
Já ia de novo até à cachoeira, já escrevia, já sorria e aguardava com ansiedade
qualquer notícia.

Irmã Linda já estava mais satisfeita, Inês e as outras crianças já andavam mais
felizes com a recuperação de Havita.

Havita já sonhava!

Naquele dia o sol já nem se ocultava com receio de interferir na debilidade de


Havita. Estava resplandecente e feliz convidando Havita a uma banhoca na
cachoeira.
Calção azul e top branco, cabelos adornados com um lenço do mesmo tom que
lhe dava ar de boneca combinando com chinelos singelos que lhe abraçavam os
pés, assim caminhava para a cachoeira, em passos suaves de andorinha.
Do ondular do seu corpo desprendia-se o aroma do jasmim como se deixasse
em seu caminho um jardim repleto de flores

Um colibri! Sorriu Havita ao ver passar o passarinho apressado! Já conseguia


escutar de novo a voz da Natureza e sentir a magia da esperança, só não
conseguiu aperceber-se de algo que se aproximava.

Uns braços rodearam-na suavemente pela cintura, e, como se ela já avizinhasse


a concretização da esperança que a invadia no momento, voltou-se de braços
abertos correspondendo àquele abraço, mantendo-se de olhos fechados como se
pudesse perpetuar aquele sonho.

- Que saudades! Murmurou padre Manuel.

Nada tinha mudado. O mesmo cenário, os mesmos personagens os mesmos


sentimentos. A mesma questão. Que será do amanhã?
Havita tinha uma maneira muito própria de viver a vida. Um minuto de cada
vez, e o tempo falará por si. Era sempre o que ela dizia:

Devemos viver um minuto de cada vez como se fosse o único e aproveitá-lo


como se este não se tornasse a repetir.
Na sequência deste juízo devemos amar o mais que pudermos os nossos ente
queridos e enquanto vivos, mesmo afastados, devemos ficar felizes só com a
sua existência, por muito que a saudade faça doer.

A noite estava estrelada, a Lua convidava a Natureza a desabrochar os seus


prazeres mais íntimos, instinto de toda a essência.
Havita não conseguia adormecer ainda dominada pela doce sensação do forte
abraço de padre Manuel que voltara de novo à sua vida.

♥♥♥
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Tinha que manter prudência se queria ver, nem que fosse por pouco tempo e
poucas vezes, o olhar penetrante daquele que lhe devolveu a vida.

Encostada à janela, embalada pelo encanto da Lua, sentia-se feliz mas


incompleta.

INÊS, meu amor será que hoje pensaste em mim? Parabéns, que a Felicidade
seja uma constante em tua vida. (e, dirigindo-se para o seu leito, onde sua
princesinha já dormia), docemente sem a acordar, depositou-lhe na testa o beijo
que estaria dando nesse momento à sua INÊS, adormecendo em seguida.

Havita não acordava, estava febril, irmã Linda tinha feito todos os esforços para
a despertar, mas Havita delirava.

- LUMI.......LUMI....BUPE......BU......PE.....

Inês chorava e com beijos tentava acordar Havita. Esteve assim três dias quando
na noite do terceiro dia irmã Linda pediu a padre Manuel que quando todos
estivessem descansando, viesse ter com Havita para ver se a conseguia trazer à
realidade.

Sabe padre Manuel, as únicas palavras que menciona são Lumi e Bupe. Alguma
vez Havita lhe falou nestes nomes? Perguntou irmã Linda com o coração
destroçado.

- Sei que uma vez Havita me disse que Lumi e Bupe são os grandes amores da
vida dela e que, se algum dia não conseguisse voltar à sua terra, as suas cinzas
fossem entregues a Bupe para que só ele, e mais ninguém, soltasse suas cinzas
ao vento, num dia de sol, junto ao mar e se lembrasse daquela vez que num
rochedo ela lhe perguntara se sabia qual era a sua missão na terra.
Como ele lhe respondera que era tomar conta dela, ela pede para que tome
conta das suas cinzas e as liberte ao vento, para que finalmente seja livre e, que
sempre que chamarem por ela, a possam encontrar difundida no ar, presente a
qualquer momento.
A irmã Linda dá-me um momento a sós com Havita?

- Claro padre Manuel, era precisamente essa a minha intenção. E afastando-se


com as lágrimas nos olhos e dor no coração, suas rodinhas já nem chiavam,
tristes de tanta comoção.

- Havita, que tens amor? Acorda. Estou aqui junto de ti. Não te basta o meu
amor? E poisando sua cabeça no seu peito, deixou-se abandonar na esperança
de um milagre.

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Aquele carinho bendito de um sentimento tão puro, de palavras proferidas do
fundo do coração, foram escutadas no interior da alma de Havita.

Seu coração começou a bater mais forte e sua mão acariciou o rosto de padre
Manuel, enquanto que seus olhos abrindo docemente, contemplavam com um
sorriso o semblante do seu alento.

♥♥♥

O dia rompia indolente, o sol não queria despertar. Por detrás de um leito de
nuvens plúmbeas que vaticinavam tempestade, sol continuava adormecido.

Havita estava mais fresca. Levantou-se e dirigiu-se em pijama para o exterior.


Queria respirar ar fresco. Levava consigo caneta e papel pois sentia que a
coragem de transpor todos os obstáculos, de novo a invadia.

Sentou-se junto da palmeirinha, sorriu e deixou seu olhar extinguir-se para


além de todos os limites da realidade.

O frio invadia todo o seu ser clamando por um simples raio de luz que
iluminasse o seu caminho e descortinasse todo o mistério que envolvia a sua
existência.
Que Força seria essa que observava também?
Que poder ininteligível estava para além de todos esse limites?
Mergulhou num sono letárgico onde o sonho se apoderava de todo o seu ser e o
cordão que a prendia a esse mundo de fantasia se desdobrava levando-a para
uma outra realidade que não aquela que tantas vezes questionara.
Valeria a pena continuar?

Junto de si uma folha de papel esvoaçava como se quisesse atingir o seu


destino.

Irmã Linda apanhou a folha em pleno ar quando esta esvoaçava junto de sua
cabeça:

♥♥♥

Jóias do meu coração

Os anos passam, o tempo voa, só o nosso amor permanecerá eternamente.


Tudo aconteceu numa noite de paixão, ainda esta existia. Imaginei-vos doces,
meigos, puros amores fiéis da minha vida.

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E vocês...vocês apareceram tal qual eu vos criei! Tão perfeitos, tão puros e
inocentes tal como o desabrochar de uma flor.

O primeiro olhar marcou-nos tão profundamente que desde então já nada nos
podia separar.

O perfume do vosso corpo, a maciez da vossa pele e o calor dos vossos beijos
são a essência mais pura da vida.

Nas horas boas sorris-me, nas más, afagais-me o rosto limpando-me as lágrimas
e ocultando as vossas para que não vos veja sofrer.

Percorremos o Mundo de mãos dadas, contemplamos as flores, os passarinhos e


as estrelas, ensinei-vos que Amar faz doer.
Mostrei-vos a BELEZA das coisas por mais insignificantes que pareçam.

Tal como tudo, TUDO tem uma razão de SER.

Vocês são a Razão mais Forte do Meu viver.

Meus Filhos, meus amores.

Uma Sombra que passou

Alma Eterea Insatisfeita,


Perdida num mundo sem valor
Em mil fantasias se deleita
Sonhando com um mundo melhor

Sente angústia, sente pavor


De Amar como ninguém amou
Como uma flor colhida que vai murchando
Sua triste vida vai passando
Só porque a DOR um dia
No seu coração entrou.

E na penumbra da noite alto voa...


Sonha ser pássaro, ser estrela...Ter Vida
Deixa de ser SOMBRA
É uma alma Boa
Que na terra por ser sombra
Passou despercebida.

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Todo o Ser tem Alma, tem Sentimento
Todo o Sentimento é Bom ou Ruim
Quando Bom a Alma por ti vela no Firmamento
Para te dar coragem até ao fim

Por isso sou NADA, nem SOMBRA sou


Daquilo que pretendia desta vida
Já que em meu coração só a Mágoa ficou
De nunca ser compreendida

Se um dia olhares para o Universo


Numa noite cheia de estrelas
Fugindo deste mundo perverso
Encontrar-me-ás no meio delas.

Havita

♥♥♥

- Havita, coração não nos deixes. Ainda é cedo demais. (Soluçava irmã Linda).

Havita estava livre.


Tal como as suas últimas palavras eram levadas pelo vento que bradava os
nomes de LUMI e BUPE, Havita ganhava asas atravessando novas dimensões
em busca deles.

- Havita meu amor, não partas! Volta, vem fazer feliz de novo meu coração e
preencher meus momentos de solidão com o teu sorriso e a luz do teu olhar.
Já não sei viver sem teu carinho. (Murmurou padre Manuel abraçado a irmã
Linda que melhor que ninguém compreendia a sua dor).

♥♥♥

Sol não acalentou esse dia.


Os gatinhos de Havita e o seu querido hamster mantinham-se imóveis, na
expectativa de que um milagre acontecesse.
Um colibri entrou no quarto de Havita e tentou acordar a boneca de porcelana
que se entregava ao sonho por não aceitar a realidade.
Havita encontrava a verdadeira felicidade. O sorriso em seu rosto trigueiro
reflectia a paz e felicidade tão desejada.

BUPE acordara agitado na manhã desse dia.

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A saudade que vinha sentindo de seus queridos pais, inquietavam-no. Tinha
um relacionamento muito profundo com sua mãe e naquela noite sonhara com
ela.
Apesar da tranquilidade que ela lhe transmitia, sorrindo-lhe e dando-lhe a mão,
nessa noite quase que jurava ter pressentido a sua presença chamando-o para si
e baixinho murmurava.

Mãe. Como estás? Quanta saudade eu tenho de ser acordado ao sabor dos teus
beijos e sentir a doce sensação dos teus carinhos.
Enquanto julgavas que eu dormia, tu aproveitavas para os fazer, porque já era
um homem a teus olhos e me fazias sentir o teu menino. E eu continuava
fazendo que dormia.
As tuas doces palavras que me embalavam os sentidos e me ensinavam a
compreender um mundo melhor, são o fruto do meu sucesso.
Chamaste-me sempre de teu anjo e tu, mesmo à distância, nunca deixaste de
velar por mim. A verdade é que nunca saberemos viver um sem o outro.

Não resistiu. Cancelou sua viagem de negócios e decidiu gozar umas férias
após tanto labor. Era mais forte a voz do amor que clamava por si.
Decidiu fazer uma surpresa à família e visitar a sua terra natal.
Comprou uma boneca de porcelana para dar à sua mãe, pois sabia o valor que
iria ter para ela, pois sempre intitulou sua mãe de boneca de porcelana pela
subtileza de sua susceptibilidade, e comprara outra para Inês para nela suscitar
a luta da fragilidade humana em função dos valores que a enaltecem.

Embrulhava com todo o carinho a boneca que iria dar a sua mãe quando, e sem
motivo aparente, esta escorregando-lhe das mãos caiu, quebrando-se em mil
pedaços.
Não se importou. Bastaria chamar à sua mãe de boneca de porcelana, com todo
o amor sincero que sempre lhe dedicou, que não haveria presente mais valioso
à face da terra que as doces palavras de seu amado filho.

Marcou as viagens sem conseguir esperar sequer mais um minuto que fosse.

- Inês, minha princesa como estás uma mulherzinha! ( E oferecendo a boneca de


porcelana à menina), beijou Maria.

- Sabes Bupe, Inês esta noite sonhou que tua mãe lhe estendia os braços como se
quisesse abraçá-la. Chegou a ficar confusa, tal era a veracidade do sonho, que
lhe parecendo realidade sentou-se na cama a chorar até eu a vir confortar.

Bupe ficou confuso com a coincidência dos sonhos que se tinham manifestado
aos dois precisamente na mesma noite.

- Uma boneca de porcelana para mim tio Bupe?

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- Gostas Inês?

- Se gosto, faz-me lembrar a de Havita. Havita dizia que a Boneca de Porcelana


tomava sempre conta dela, e como se eu manifestasse desejo de a ter, quando o
soube, preferi que Havita a levasse para que Boneca um dia me trouxesse a
Havita de volta.

- Vou visitar Havita, queres vir Inês?

- Estás a brincar! E dinheiro para a viagem?

- Sabes que não é problema para mim e além disso tu e tua mãe estão a merecer
umas férias. Que dizes? Havita vai ficar feliz.

- Adoro-te tio Bupe, aliás acho que sempre te adorei. Lembras-te quando era
bebé e me ensinaste a descer a cama sozinha?
E a brincar às escondidinhas? Até na escuridão te conseguia encontrar.

- Isso é amor Inês. Foi o que Havita sempre nos ensinou. Quando o amor é
infinito, não se vê, sente-se.

- Sabes tio Bupe, quando eu era bebé, Havita ensinou-me a decifrar o enigma
humano através do brilho do seu olhar. Nunca precisou de me dizer nada. Não
eram precisas palavras. Aprendi com o seu próprio olhar e o seu sorriso.
Tenho tantas saudades dela. Quando vamos? Perguntou Inês.

- Se quiseres podemos partir já amanhã.

- Mãe. Vamos?

- Já se faz tarde.

♥♥♥

Inês relembrava novamente o pássaro gigante que naquele dia levara a sua
querida Havita e agora sabia qual era a sensação de se deixar para trás o que
tanto amamos.

♥♥♥

Naquela terra longínqua ninguém esperava Bupe, Inês e Maria. Iria ser uma
surpresa e Bupe queria saber as condições em que Havita vivia, além de a
querer surpreender.
Havita tinha-o tranquilizado quanto à vida serena que tinha naquela terra
agreste de Ninguém.

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Bupe sabia que Havita era corajosa e que a sua atitude em querer ajudar os
desprotegidos, era difundir os maiores valores que um ser humano pode
desejar para atingir e espalhar a ventura.

Instalaram-se próximo à Missão da Fraternidade, para aos poucos tomarem


conhecimento de tudo o que rodeava Havita até esta ser surpreendida.

Naquela noite, fatigados da viagem, decidiram descansar mais cedo que o


costume para dar continuidade às suas intenções no dia seguinte.
Bupe sentia-se inquieto. Tão próximo e ainda não podia abraçar quem mais
desejava.
Apreciava o ar através da sua janela quando lhe pareceu sentir um odor
perfumado que lhe era tão familiar. Até o próprio ar lhe falava dessa presença
tão querida.
Deixou-se adormecer embalado pela voz do vento que sussurrava o seu nome.

♥♥♥

A época das chuvas estava a chegar ao fim, sol andava distante e preguiçoso.
O chilreio das aves tornara-se mais num murmúrio que numa melodia.
As crianças andavam tristes sem a presença de Havita.

Missão da Fraternidade tinha um ar acolhedor. Apesar da humilde construção


que apresentava, tinha um ar convidativo, um jardim cheio de flores e um
pomar que faziam as delícias de qualquer um.

No meio do jardim um pequeno lago de peixes era refrescado pela sombrinha


de uma jovem palmeira, que fazendo ondular suas ramagens ao sabor da brisa,
estendia sua sombrinha sobre a água espelhada, tentando alcançar os peixinhos
que numa correria constante brincavam felizes.

Bupe ficou satisfeito com o que via, pois sabia que este ambiente seduzia a
sensibilidade de sua mãe e a inspirava à fantasia em que gostava de se refugiar
nos seus momentos de nostalgia.
Seriam as pessoas tão acolhedoras quanto aquele carismático cenário que se
visava por fora?

- Bons dias! Pretendemos falar com a Irmã Superiora. Disse Bupe a uma
rapariguita que lhes abrira a porta.

- Podem dizer quem são e qual o objectivo desta visita? Perguntou Ana.

- Somos amigos de Havita. Queremos fazer-lhe uma surpresa.

- Mas Havita!... Havita...(disse Ana tristemente e cabisbaixo o que deixou Bupe,


deveras assustado).
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- Sim, sim! Onde está Havita?

- É melhor eu chamar Irmã Maria a Superiora. Volto já. Desculpe, me desculpe


por favor.

- Que estará acontecendo? Perguntaram Maria e Inês assustadas.

- Não sei não estou a gostar nada! Respondeu Bupe taciturno.

O vento soprava lá fora. BUUUU....Buuuuuu....parecia que estava chamando


por Bupe.

- Meus senhores, a que devo a honra? Apresentou-se irmã Maria a Superiora.

- Somos amigos de Havita e vínhamos fazer-lhe uma surpresa. Respondeu


Bupe palidamente sem anunciar algo mais.

- Havita já há um mês que ...

- Que aconteceu? Entrecortou Inês com as lágrimas nos olhos.

-Calma! Respondeu Irmã Maria no seu tom habitual. Gélido como se o


sentimento nunca tivesse passado por si.
Havita era muito sensível e o objectivo que a trouxe aqui, a felicidade dos
outros, como ela dizia, afinal não foi tudo para si.

- Meu Deus! Exclamou Bupe tapando o rosto com as mãos temendo o pior.
Que lhe aconteceu irmã? Onde está minha adorada mãe?

- Mãe? Sua mãe? Bem!

Irmã Maria, a Superiora, respirou fundo tocada pela triste notícia que nenhum
filho gostaria de ouvir. Afinal ela só ocultava o sentimento. Era a Superiora.

- É melhor chamar Inês, a menina que sempre a acompanhou noite e dia, pois
ela vai indicar-vos onde está Havita.

- Mãe, onde estás? Como posso viver sem o teu amor? Mãe, diz-me que não
partiste. (Choravam Bupe, INÊS e Maria abraçados).

O vento continuava......Buuuuu.......Buuu....peeeeeee.

- Sou a Inês e esta é a irmã Linda a irmã que Havita mais adora.

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Bupe ficou confuso. Irmã Maria a Superiora falava no passado e a bela
negrinha, Inês, falava no presente como se a vida ainda continuasse em Havita.
Talvez por ser a criança mais chegada a Havita, mais uma Inês, esta não tenha
aceite qualquer tragédia que pudesse ter acontecido com Havita.

- Vamos mostrar-lhes onde se encontra Havita. Disse irmã Linda chorando.


Sempre fora o conforto de Havita e a sua grande confidente.

No percurso não se ouvia qualquer ruído, senão um vento suave e quente que
acarinhava o rosto daqueles que Havita sempre amou, murmurando baixinho.
BUUuuuuuuuuu............

- As cabanas hospitalares são ali. Apontou Inês e irmã Linda.


Não temos melhores condições do que estas. É o que se pode arranjar por aqui.
Temos tentado fazer tudo o que está ao nosso alcance.

- Mas minha mãe está internada? Perguntou Bupe já com um brilho no olhar
que reflectia esperança.

- A saudade da família foi debilitando cada vez mais Havita, que por fim não
conseguiu ter forças para ultrapassá-la. Havita parecia forte mas não era. Era
forte para ajudar os outros mas nunca para vencer as suas tristezas.
Seus lábios sorriam sempre, mas seu olhar transportava do fundo da alma a
saudade que lhe invadia o peito. Conseguia transpor as dores de seu corpo por
mais profundas que fossem, mas nunca as dores da alma.
Simplesmente entregou-se a um sono profundo que a deixa sem sentidos à
espera que um milagre aconteça. Parece uma Boneca de Porcelana. Respondeu
irmã Linda, levando-os até Havita.

Bupe parou de repente.


A boneca de porcelana que trazia de presente para sua mãe, ao embrulhá-la
com tanto carinho, caíra-lhe das mãos partindo-se em mil pedaços.
Sua mãe não podia fugir assim de sua vida como se uma frágil boneca fosse,
partindo também.

Havita parecia que esperava pelas suas visitas.


Inerte, adormecida, num tom trigueiro que sempre lhe iluminou a tez e ainda
lhe dava sinais de esperança, um sorriso que se lhe esbatia nos lábios, e olhos
cerrados como se no ponto mais infinito do Universo estivesse buscando a
concretização deste encontro.

- Mãe.... Soluçou Bupe abraçando Havita. Volta......... Não partas....... Eu


prometo nunca mais me apartar de ti.
Volta mãe querida......... Eu amo-te, sou o teu anjo que voltou para tomar conta
de ti. Não uses as tuas asas que te estás afastando de mim.

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Onde quer que te encontres, não sigas mais além. Regressa para que ambos
possamos contar a história de um grande amor.

INÊS, Maria, Irmã Linda e Inesita saíram do quarto por falta de coragem.

Havita sempre ensinara às crianças que quando o Amor é puro, nem a morte
nos separa, e que para despertarmos qualquer ser vivente, o deveríamos fazer
com muito carinho e amor, para que este não se entregasse ao sonho
definitivamente, com receio de encarar uma realidade que o magoasse.
Chegou a dar como exemplo o estado de choque do ser vivo que o leva a
“coma” em que este permanece vivo fisicamente, mas que psicologicamente se
nega a viver entregando-se à apatia, por falta de motivação que o faça aceitar
alguma realidade

Havita estava entregue ao sonho. Valeria a pena despertar?

Anoitecia, e Bupe continuava com a cabeça encostada ao peito de Havita para


sentir a vida fluir dentro dela e não a deixar escapar.

O cansaço era evidente nas olheiras profundas de Bupe e a barba envelhecia a


sua rosto de anjo.
Bupe não comia, não dormia e tentava a toda a força trazer Havita de volta.

“Bupe meu anjo o amor faz milagres” “Querer é poder” relembrou Bupe com
todo o carinho as frases que Havita repetia do fundo do coração sempre que lhe
ensinava como dar alento aos outros.

♥♥♥

BUUUU...BUUUU o vento continuava, após várias semanas.


Agora mais forte.

- Mãe, está na hora de voltares..... Não me deixes........ Se um filho é tudo para


uma mãe, que será do filho sem ela? Volta mumy.........eu AMO-TE...tu sempre o
soubeste e me ensinaste que o amor faz milagres.
Volta para que tu sejas o milagre do nosso amor.

A enfermeira Licia que acompanhou o sofrimento deste grande amor, não


deixou de não se apaixonar por este amor tão puro que levava os dois para
sempre.
Gostaria de um dia encontrar na sua vida alguém que a amasse assim tão
profundamente.

Esgotado, Bupe adormeceu......

97
♥♥♥

O sol raiou no décimo terceiro dia que todo o mundo diz ser o dia do azar.
Os passarinhos voltaram a chilrear e o vento parou.

Buuuu...pe. Buuu..pe

Ainda meio adormecido, já sem forças para lutar, Bupe escutava e julgava que o
vento chamava seu nome, uma vez mais.

Buuu..pe. Meu Amor. (de novo se fez sentir).

- Mãe. MÃE. VOLTASTE.

Revigorado pelas doces palavras que julgava jamais poder escutar, Bupe correu
a chamar Licia, a enfermeira, para o ajudar a recuperar Havita.

Bupe acabava de ser testemunho de um milagre.


A coragem e o amor de Bupe trouxeram Havita, a sua querida mãe para junto
de si.

A alegria voltou de novo.

♥♥♥

Havita e irmã Linda eram inseparáveis.


Irmão Manuel sentia-se feliz sempre que via um sorriso no olhar de Havita.
INÊS e Maria foram viver com Havita e Bupe que, ajudando estas crianças com
amor, naquela terra de ninguém fizeram grandes milagres.

Boneca de Porcelana ganhava amizades.


Os bichinhos de Havita corriam e faziam asneiras com as suas travessuras.

As recordações e os livros de Havita estavam expostos com todo o carinho na


prateleira.

Havita adormecia enleada na doce sensação das palavras e carinhos de Bupe


que a trouxeram para a realidade, na certeza de por eles ser acordada, dando
graças por toda a realidade que enfrentou e lhe ensinou que quando a saudade
mata o amor faz viver.

Bupe apaixona-se por Licia e constitui família. Têm uma menina.

98
Padre Manuel no silêncio do seu quarto descobre o segredo de “Boneca de
Porcelana”, quando abre as páginas da sua história igual a outras tantas.

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