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GRANDES VULTOS PORTUGUESES Il GIL VICENTE (1470 (2) — 1540 (2)) POR J.1I. DE BRITO REBELLO LISBOA LivraRia FeRIN, LEDITORA . BAPTISTA, TORRES & C,TA 70, Rua Nova do Almada, 7% 112 . GIL VICENTE Teatro na antiguidade — Destrulgao do Imperlo romans —Formacao de novas nacionalldades —A aparigado dos mucuimanos — Constitulgdo do reino de Portugal. Sdo conhecidos de todos a origem e desenvolvi- mento do teatro na antiguidade, e todos sabem os no- mes dos autores que ilustraram a sua patria nesse brilhante ramo d_ literatura. E’ certo poréin, que a invasao do imperio romano, pelos barbaros do norte, e o seu esfacelamento, abafou quasi toda a espansdo literaria, que, posto que um tanto desmaiada do antigo esplendor, ainda, de quando em quando, soltava alguns lampejos que iam conservando a tradicao. Seguiu-se a este cataclismo uma era de agitacio politica e de reconstrugdéo social, que nao permitia grande desenvolvimento em tudo o que respeitava ds artes, Se se aviam esquecido os principios moralistas de Socrates e de seu discipulo Plat&o, que alids nunca ‘entraram no espirito e nos habitos comuns, um ele- ™ento novo comtudo, espalhando e disseminando pelas classes menos esclarecidas, nogSes de uma moral pura € umana, que em breve subiu até 4s classes mais -elevadas, foi transformando lentamente a sociedade. Esse elemento era 0 cristianismo. A religido, como em todos os tempos, influiu poderosamente na vida da umanidade, e o novo credo transformando as condi- 6 GRANDES VULTOS PORTUGUESES g6es da familia e dos Estados, fez com que as artes despontassem tambem de novo do meio das trevas, que pareciam ter retraido a umanidade ao primitivo caos. A escultura, a musica, a pintura, a poesia foram desenvolvendo as suas manifestacdes, que ndo tardaram a receber 0 influcso dos reflessos artisticos, ainda vivi- dos, do imperio do Oriente. No entanto outra seita se levantdra nas regides orientaes, a qual apoiando-se nos principios fundamen- taes do cristianismo, mas divergindo deste em seu desenvolvimento, se estendeu com rapidez, e veio, com as suas vagas impetuosas, embater nos paises da Eu- Topa, formados mais ou menos recentemente : era 0 isla~ mismo, A repulsfo nao se fez esperar, comtudo levou al- guns seculos a enxotar do solo europeu esses ousados sectarios de Mafoma. Foi neste periodo que teve nascimento o nosso Por- tugal: primeiro como um simples condado, pouco de- pois como reino. Sendo o chefe um principe francés ue A peninsula ispanica viera tomar parte, com os na- cionaes, na luta contra os antigos invasores, onde caséra com uma filha do rei de Liao e Castella, é obvio que avia de atrair ao seu vasto condado muitos dos seus compatricios. Essa corrente continuou pelos tempos adeante, uando o condado se converteu em reino indepen- lente, néo s6 por aquela causa, mas ainda pela suces- siva passagem de cruzados para os logares santos, que encontrando aqui incentivo bastante para o emprego do seu destino, se deixavam ficar, encorporando-se na nova nacionalidade. Elles traziam abitos e costumes diferentes, tradi- gdes e praticas do seu pais natal. II Origens do teatro portugués — Seu fundador — Facto que motivou a sua creacao. Subsiste a memoria de dois trudes ou farcantes, de certo francéses, que logo no segundo reinado (D. San- cho I), representavam uma especie de fargas, arremte- dilhos, pelo que receberam uma certa recompensa: eram elles Bonamis e Acompaniado, seu irmao. Faltam-nos documentos que nos esclaregam dcerca do que se passava entre nds a este respeito durante dois seculos, mas pelos factos posteriores e pelo que suce- dia em outros paises, podemos deduzir, com toda a probabilidade, como o veio dramatico se ia desenvol- vendo no nosso. Nos templos, em certas solenidades religiosas, exi- biam-se alguns quadros hieraticos, respigados da Es- critura Sagrada; nas prociss6es tambem a par com essas cenas, outras figuras profanas atraiam as aten- gdes do publico, com os seus movimentos, atitudes ou esgares, Nos sal6es regios ou da nobreza produziam-se certos entretenimentos, mais ou menos faustuosos, sob a desig- nag&o de Momos, que eram verdadeiras represertacdes cenicas, embora apenas executadas por mimica, ou quando muito precedidas algumas vezes de uma espla- nagao dita por qualquer figura. Dizidores ou istrides tambem pelas cidades, vilas ou aldeias deduziam galhofeiras pantominas faladas ou 8 GRANDES VULTOS PORTUGUE:SES entoadas, arremedando cantos liturgicos, e imitagdes de figuras mais ou menos conhecidas. Estes elementos que se foram condensando e amal- amando, fizeram despontar na Espanha Fernando de ojas com a comedia Celestina, ou antes de Calisto e Melibea, e Juan del Encina com as suas representacées, eas Eglogas de Vergilio, trasladadas e adaptadas a varios sucessos. Estas obras publicadas nos fins do se- culo xv, principios do xvi, foram logo difundidas em Portugal, pois as relacées de estreito parentesco entre as duas coroas, impunham essa difusao. Comegéra, avia algum tempo, a tornar-se notado por varias producdes poeticas de genero ligeiro um moco, cujo talento ninguem sabia a que altura poderia subir. Este moco era Gil Vicente. Sentindo borbulhar em si o fervor do ingenho, e despertado pelo ezemplo que Ihe davam esses autores espanhoes, aproveitou a ocasido mais propicia que se Ihe deparou, para apresentar o seu primeiro esbogo. Achava-se prossima do termo da sua gravidez a rainha D. Maria, segunda mulher del-rei D. Manuel, o qual era almejado por toda a cérte. Gil Vicente pre- pdra uma cena engragada para celebrar aquele termo. Na madrugada do dia 6 de junho de 1502, teve a soberana o seu livramento, dando 4 luz uma creanca do secso masculino, que foi o principe D. Jodo, depois rei D. Joao III. Na segunda noite desse parto, entrou na camara respetiva, onde se achava a familia real, uma figura em trage de vaqueiro, fingindo-se escapo das maos dos guardas, exibindo um monologo em castelhano, apro- priado ao caso. Era Gil Vicente, que inaugurava por este modo o reatroy ou antes, as representagGes cenicas em Por- tugal. Til Quem era Gil Vicente — Sua origem — Duvidas quanto 4 sua profissio— Suas primelras produces. E’ vulgar o nome de Gil Vicente. Nenhum apelido os apresenta, por onde possamos ir destringar-Ihe a ascendencia. Padres, frades, artifices, funcionarios, en- contrdmos em todas as €pocas e em diversas loca- lidades com igual nome. Até 4 poucos anos todos o consideravam como filho de um ourives de Guimaraes, Martim Vicente; uma nova genealogia, porém, surdiu, mas nfo se apoiando em monumentos de irrefragavel autoridade, ndo nos pdde inspirar absoluta confianga. Documentos nenhuns publicos ou particulares, ao alcance de todos, nos confirmam essa genealogia. Continudmos pois no mesmo estado, sobre este ponto, em que se achavam os primeiros biografos. Que profissdo exercia, tambem se nfo péde afirmar com sepuranca. Na epoca em que se manifesta o poeta, manifesta-se com igual celebridade um ourives do mesmo nome, cujos artefactos, uns conhecidos, outros nomeados em testamentos regios, o colocam na primeira plana dos artistas daquela especialidade. A opinido, dos que teem versado o assunto, tem baloucado entre a idea de conjugar as duas celebrida- des num sé individuo, e a de desdobra-las em dois. Nés mesmo temos tido esses balancos, e, apesar dos documentos que reproduzimos em fac-simile a pag. 10 GRANDES VULTOS PORTUGUESES e 95 da nossa segunda Ementa Historica, sob o titulo de Gil Vicente, ainda nos nfo afoutariamos a asseverar, qual das duas ipoteses, parece mais provavel. Se laborémos em duvida sobre a sua origem, as- cendencia e profissdo, ndo menos duvidosa se nos apre- senta a data do seu nascimento. Pareceu_plausivel aos benemeritos editores das Obras de Gil Vicente, publicadas em Hamburgo no anno de 1834, por uma expresso escavada de um dos autos do poeta, que elle deveria ter nascido por 1470, mostrd4mos, porém, (!) que outros teistos do proprio poeta podiam contradizer aquela opiniao, alids razoavel. Comtudo, pelo que Gil Vicente diz na carta de 1531 a D. Jodo ILI, e pelo que escreveu no prologo para as suas obras, que estava coligindo no ultimo periodo da sua existencia, parece que o facto se deve ter dado en- tre 1470 e 1475. Teria por tanto Gil Vicente, quando apresentou o seu primeiro ensaio dramatico, de 31 a 36 anos. De certo que néo foi esta a sua primeira produgio poetica; outras, dos generos ent&o cultivados, deveria ter escrito, das quaes poucas chegaram até nds. (!) Veja a Ementa Historica, jé citada a pag. 77. IV Um novo documento para a bicgrafia de Gil Vicente.. Tamos formulando as ncssas consideragées 4 cerca deste e outros pontos, quando, ao continuar o ezame de alguns magos do Corpo Cronologico, para outro. roposito, subitamente se nos depara um documento. importante relativo a Gil Vicente. E’ elle um mandado ou desembargo do soberano, ordenando que se pague dquele oito mil reaes de sua vestiaria, o qual pela sua importancia passamos a trans- crever: Dom Joham por graca de Deus Rey de portuguall e dos al- guarues daquem e dalem mar em affrica senhor de guiné € etc, mando a vos Manuell Velho tesoureiro do tesouro de minha casa que déis a Gill Vicemte oyto mill reaes que the mando dar e o dito ano de mim hadaver de sua ves- tiaria, e per este com seu conhecimento vos seram leua- dos em conta el Rey o mandou per dom Rodrigo Lobo- do seu comselho e veador de sua flazenda, Diogo d'Oli- ueira o fez em Evora a xix dias de junho de mill b'xxxb. Dom Rodrigo Lobo. Diij reaes no tesouro a Gill Vicemte de sua vestiaria deste- ano de xxxb. per seu filho Belchior Vicente. Registado Jorge de Fy gueiredo Correa. Recebeo Gill Vicente de Manuell Velho tisou- reyro estes oyto mill reaes em mercadaria emEuora a x) dias daguosto de 1535. Gil Vicete. Aspam pires. 12 GRANDES VULTOS PORTUGUESES Muitas vezes taes desembargos nao primam pela clareza, e este € um deles, pois nao sé nos nao declara por que motivo é mandada pagar vestiaria a Gil Vicente, a qual era vencida pelos diversos empregados da casa real, nem t&o pouco saberiamos a que ano ela dizia respeito, se na vista nao tivesse havido o cuidado de © espressar; por que 0 dito ano do corpo do docu- mento n4o se poderia referir a nenhum_ mencionado antes. Encerra comtudo, tres circumstancias importan- ‘tissimas: a j4 apontada, da vesfiaria, que prova estar G. Vicente assentado, de qualquer modo, entre os fun- -cionarios da casa real, embora fiquemos ignorando em -que qualidade; em seguida ser o pae de Belchior Vi- cente (o que ainda nos a-de suscitar outras reflessdes) € portanto ser o pae de Luis, Paula Vicente e de Va- Jeria Borges, conforme a demonstragdo ja dada ('); por ‘ultimo temos a assinatura, que é muito diferente da que autentica o recibo de 25 de setembro de 1525, dez anos antes (?), mostrando que s4o dois individuos. Voltando a Belchior Vicente, é certo que na nossa Ementa Historica, reproduzimos, nofa Xf, uma verba extraida do liv. 4, do mag. I das Moradias da Casa Real, e na fé do autor da Historia Genealogica, démos ao individuo, de que trata essa verba, aquele nome, comtudo, tornando a ezaminar o livro, um tanto dila- cerado, onde ela se encontra, e recorrendo ao Indice dele, que felizmente subsiste em bom estado, achdmos que o nome que ali se deveria ler era Gaspar Vicente e nao Belchior. Isto ainda nos suscita outra reflessdo. Sendo inega- vel a ezistencia de um filho Belchior, quasi indubita- vel a de um Gaspar, era provavel que tivesse havido outro Baltazar, segundo uma custumeira muito inve- terada no nosso pais, pelo seculo xv e parte do xvi en- tre alguma gente, de dar a tres filhos, talvez os pri- () De pag. 72 a 74 da nossa ja citada Ementa Historica. @) Vej. o fac-simile a pag. 95 da dita Ementa e aqui. 5 é Lage gun Ee LES iar PP Bers ~ BT ot ‘coz “duu Ty ag ‘[ouorg ‘diog loqmtwy op erro, “SRET Op OSOTP [T B BIOAY Wa VIIBI}SAA UNS Op Sad [fUL OFT0 Op OqIaz OU ayMadTA [I4) ap BINJBAISEY GIL VICENTE 13 meiros, os pretensos nomes dos magos que vieram adorar Jesus Cristo, guiados pela estrela, tambem mais tarde classificados como reis. Se nos nao repugna aceitar esta ipotese, temos porém, que confessar que os dois, Gaspar e Baltazar, desapareceram cedo da face da terra, deixando apenas © primeiro, qual uma estrela cadente, um tenue ¢ fugi- tivo rasto. Em fac-simile damos a parte mais interessante do documento, que ainda nos ministra outra circumstancia ue ndo devemos esquecer, a presenca em Evora de il Vicente, pelo menos de junho a agosto de 1535. E’ mais um periodo a acrescentar 4 lista das tempora- das da permanencia do poeta naquela cidade, formulada pelo falecido e benemerito A. F. Barata, no seu opus- culo Gil Vicente e Evora. Para confronto reproduzimos aqui o fac-simile do outro documento j4 apresentado por nés na mencio- nada Ementa: assim todos podem reconhecer a dife- renga das duas assinaturas. Vv Primeira pega dramatica de Gil Vicente —Incitamento para prosegulr nesse ramo da arte. Como dissemos, foi na segunda noite do parto da rainha D. Maria, que Gil Vicente apresentou o seu pri- meiro trabalho dramatico. Achavam-se na camara da real puérpera, além de D. Manuel, seu esposo, a duquesa de Braganga, irma deste, e a mae de ambos a infanta D. Beatriz, a quem a rubrica chama rainha. Entrou a certo tempo um vaqueiro, que fingindo-se agredido pelos guardas 4 en- trada, refere o que passou nesse conflito; depois diri- iuido-se ao principe e 4 rainha apresenta-lhe as suas elicitacdes, em frase apropriada, exaltando-lhe os seus ascendentes, e termina por fazer entrar diversas figuras em trajo de pastores, que oferecem ao recemnascido varios presentes, uem representou o papel do Vaqueiro supée-se ter sido o proprio Gil Vicente, posto que a rubrica o nao diga, e necessariamente os companheiros deviam ser alguns mocos fidalgos, escudeiros e cavaleiros, gente emfim que tinha entrada no Pago. A letra desta composig¢ao, posto que em linguagem castelhana, revela-nos um espirito e um pulso firme e muito habituado ao cultivo do metro. A impressao que nos principes e nos mais dignita- Tios, que assistiram a este ato, causdra semelhante no- vidade, deve ter sido imensamente agradavel. A pro- pria rubrica no lo indica. 16 GRANDES VULTOS PORTUGUESES Efectivamente segundo ela nos diz no final: E por ser cousa nova em Portugal, gostou tanto a rainha velha desta representagdo, que pediu que isto mesmo lhe representasse enderecado ao nascimento do Redem- ptor. Gil Vicente reconhecendo que este esboco, para © caso a que o destinou tinha uma decidida oportuni- dade, mas ndo podia ter igual aplicacio, ao que lhe indicavam, visto que o tempo lho permitia, e natural- mente com a aquiescencia da alta personagem que Ihe fazia o pedido, resolveu, com o seu elevado bom senso, elaborar outra pega, mais ampla, mais desen- volvida e de maior movimento, isto é, mais consentanea ao assunto que lhe era indicado. E’ isto 0 que se traduz da rubrica—e por que a substancia era mui desviada, em logar disto fex a seguinte obra. Eis, pois langada a pedra fundamental do teatro portugués, eis as maos artisticas que a lavraram, e eis a inspiragaéo que eiscitou a proseguir e a elevar o gran- dioso edificio. Quem lavrou a pedra foi Gil Vicente, quem incitou a levantar o monumento foi a infanta D. Beatriz, mae del-rei D. Manuel, que por um descuido, inadvertencia ou ignorancia de Luis Vicente, publicador das obras de seu pai, é ai intitulada rainha. A infanta D. Beatriz, viuva havia mais de vinte anos do infante D. Fernando, irm&o de D. Afonso V, se teve a gloria de ver no trono portugués uma filha, D. Leonor, mulher de D. Joao II, e o monarca afortunado D. Ma- nuel I, tambem sofreu desgostos cruciantes, e a sua vida passava-se quasi sempre longe da cérte portuguésa pelas suas residencias de Beja, Moura, etc. Acidental- Mente encontrava-se entéo em Lisboa, onde parece averem-se reunido os principaes membros da familia real, para estarem presentes por ocasiao do parto da rainha D. Maria, caso que se esperava com bastante anciedade. D. Manuel fora casado em primeiras nupcias com a intanta D. Isabel de Espanha, viuva do principe D. Afonso, unico fruto do matrimonio de D. Jodo I; GIL VICENTE 17 dela teve o principe D. Miguel: mae e filho aviam em breve falecido; eis por que era esperado com an- ceio o aparecimento do novo rebento do segundo enlace do rei. O feliz livramento da rainha veio pér termo aos receios de todos, encher de alegria tantos coragées palpitantes de duvidas, e fazer desabrochar o ingenho de Gil Vicente. D. Beatriz até ent&o quasi sempre meio cenobita, teve um momento de goso, e tocada pelo espirito do poeta, desejou vé-lo repetir a engragada cena, 0 qué deu logar 4 elabora¢do doutro produto dramatico de maior folego, como vamos ver.

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