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A biografia de Freud, sua vida como ser humano, poderia resumir-se em, talvez, uma
ou duas páginas. De família pobre, formou-se médico em Viena, trabalhou para se
sustentar modestamente, casou e formou um lar típico daqueles tempos, tentou a vida
acadêmica - que foi difícil e ingrata, tanto como hoje -, estudioso e questionador foi
mais um homem de laboratório neurológico (fez alguns aportes significativos à
neurologia) e praticou medicina e neurologia até que uma bolsa o leva ao grande
mestre Charcot, o que irrita seus mestres austríacos, e que porém muda sua vida.
Teve alguns bons amigos, um lar simples e amoroso, e na medida que vai adquirindo
destaque vai também conquistando inimigos. Persistente e teimoso, continua
estudando no hospital e na sua clínica e, infatigável pesquisador, procura entender
mais e mais o ser humano e seus conflitos. Consegue ter fiéis discípulos que logo,
logo, viram colaboradores (alguns acham suas idéias ousadas demais e se afastam,
levando consigo boa parte do estudado com ele) e ele próprio, bem mais tarde , chega
a admitir que chegou a descobrir "uma nova ciência: a psicanálise". Educado na
disciplina científica, foi sempre profunda e sinceramente honesto. Corrigia o que
verificava eram seus erros e, quando o editor de suas obras sugiriu suprimir trabalhos
que ele próprio já tinha abandonado, não admitiu essa ocultação porque queria
transmitir, fielmente, como errou, por quê e como chegou a reformular idéias já
perimidas em sua própria teoria.
Na última entrevista gravada que existe (poucos meses antes da sua morte), Freud
define a psicanálise como "um método de psicoterapia para tratar os problemas de
natureza emocional". Parece assim desconhecer a enorme influência da sua descoberta
em todos os âmbitos do pensamento humano. Ele mesmo já tinha se adentrado em
estudos antropológicos, sociológicos, religiosos, políticos e sabia também da sua
importância na cultura contemporânea. A Enciclopédia Britânica convidou-o a escrever
o capítulo de "psicanálise", seus livros já tinham sido traduzidos em muitos idiomas,
tinha já admiradores de prestígio universal e não poucos críticos azedos que
rejeitavam suas idéias de maneira nada científica nem cordial.
Para muitos essa data vira o marco histórico da iniciação da, posteriormente, profusa
literatura psicanalítica e em muitos lugares se comemora esse ano para reconhecer
toda a contribuição freudiana à cultura da humanidade. Mais tarde, Freud considera
que a interpretação dos sonhos é "a via régia para entrar no inconsciente" e essa
técnica, cada vez mais e mais aprimorada, vira uma norma de técnica psicanalítica.
Influenciado por seu passado como neurologista, Freud utiliza uma terminologia
baseada nos conhecimentos biológicos. Surgem assim suas proposições de que
necessidades orgânicas necessitam ser satisfeitas, formam parte do ser humano, são
autônomas, e outras surgem da convivência e da cultura. Constrói toda uma
arquitetura do psiquismo.
As traduções da obra de Freud às vezes confundem seus leitores. Em espanhol e em
francês, procura-se ser mais fiel ao original alemão. A tradução mais conhecida e
adotada é a inglesa que inspira a de língua portuguesa. Todas as exigências
psicobiológicas, as que permitem e determinam nossa vida formam a libido que fica
em grande parte inconsciente e configura um estrato psíquico chamado de Id, que
tenta permanentemente se satisfazer. Isso só pode ser feito por outra estrutura que é
conhecida como Ego, que se conecta com o mundo externo, porém também com o
mundo interno onde estão registradas todas nossas experiências de vida, desde o
nascimento (ou até, para alguns, durante a vida embrionária e fetal) até o presente
cotidiano. É o Ego que facilitará a satisfação das pulsões que desde o Id tentam ser
satisfeitas. Porém, o Mundo Externo, nossa cultura, nossa sociedade, impõe restrições
e o Ego se vê obrigado a reprimir essas pulsões, a adiá-las ou com um grande esforço
energético a mantê-las insatisfeitas (fonte de não poucas psicopatologias).
Pode se entender que o Ego fica, na realidade de cada indivíduo, um escravo que teria
que satisfazer o Id, porém o pode fazer se o mundo externo o permite ou facilita, ao
mesmo tempo que também deve se submeter às forças, geralmente castradoras e
limitantes, do Superego. Pode-se imaginar assim a formidável e permanente luta,
inquietação, satisfação ou frustração que acontece no ser humano permanentemente .
O Ego consegue reprimir (recalcar) pulsões, deslocá-las , projetar, negar, sublimar,
etc. São os chamados mecanismos de defesa, tão necessários para manter um
equilibro psíquico, tarefa nada fácil, segundo as circunstâncias, e assim nós vivemos
com maior ou menor ansiedade, ou com a nossa muito pessoal psicopatologia.
Tudo isto facilitado, estimulado pelo analista que usa a interpretação, ou seja formula
hipóteses do que pode estar acontecendo nesse momento com o analisando em
relação com ele/ela onde o histórico se apresenta como real, atual e nesse instante.
Geralmente vai procurar correlacionar estes momentos transferenciais com o passado,
com a história do analisando e especialmente com a sua infância e a relação com os
pais ou substitutos . Não poucas vezes as histórias infantis de cada um são as
realmente acontecidas e sim, por diversos motivos, distorcidas ou fantasiadas. A
continuação da psicanálise ajudará a esclarecer este intrincado mundo de lembranças,
fantasias, imaginação, situações dramáticas reais (e até aparentemente esquecidas) e
gradativamente permite uma mais adequada avaliação da própria personalidade.
Penso que nesta brevíssima apresentação da psicanálise - onde muitos assuntos foram
propositadamente deixados de lado - tenha podido dar uma idéia , excessivamente
resumida, da psicanálise com método terapêutico. Entretanto, cabe fazer constar que a
sociedade toda pode, em parte, ser entendida psicanalíticamente. A agressão e a
violência formam parte do ser humano que, às vezes, superegoicamente nega esta
realidade e gosta de se sentir bom, generoso e cheio de amor para com o mundo todo.
A realidade do cotidiano nos demonstra a falsidade desta pretensão. A literatura toda
pode ser melhor compreendida, assim como a história, através das idéias
psicanalíticas. Não é a toa que o autor mais citado por Freud é Shakespeare, e que
muitos escritores contemporâneos encontrem inspiração nas idéias freudianas. Em
política encontramos exemplos grosseiros de patologias que podem ser explicadas
psicanalíticamente.
Para terminar, apresentarei uma sessão psicanalítica simulada, como uma tentativa de
ilustração da psicanálise como técnica terapêutica:
Terapeuta: É , ... e o senhor acha que sou eu quem está cansado e mal
humorado...cada vez que reaparecem seus sentimentos de frustração vê a
todo o mundo desse jeito, me incluindo nessa sua visão do mundo
(interpretação da transferência).
Paciente: Bem , é verdade, (irritado) mas será que o senhor não pode estar
nem cansado nem mal-humorado? (transferência negativa e resistência).
T.: Está se perguntando se eu, tão velho como seu pai, poderei realmente
ajudá-lo?
P.: O senhor sabe que não é tão velho assim. (a transferência muda para um
aspecto mais positivo e se corrige o vínculo), e agora vem aí outra vez meu
pai, que era um verdadeiro carrasco, não consigo esquecer (regressão).
T.: Agora o carrasco sou eu (assume o papel paterno infantil) que o incomoda
com o que falo.
P.: E que o senhor me leva a lembrar coisas que já tinha esquecido (estão no
inconsciente) e que quero manter esquecidas (repressão) ainda que na
verdade vejo alguns de meus colegas como inimigos (deslocamento), apesar
de que começo a ver que não é bem assim (elaboração e mutação objetal).
T.: Parece que virei um pai menos severo e que pode ajudar (o analista está
satisfeito com a evolução da sessão, e interpreta usando sua
contratransferência positiva).
P.: Me pergunto se meu pai era realmente tão ruim (nova mutação objetal
interna , ainda dentro da regressão). Gostaria sim de mudar meu
comportamento com a minha família (procura usar outros mecanismos de
defesa , menos conflitivos e mais livres da pressão do seu Superego).
Se faz aqui necessário destacar que a psicanálise é muito mais do que o aqui escrito.