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Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda se apropria do conceito de
“homem cordial” de Ribeiro Couto, e coloca que essa nossa hospitalidade, generosidade e
facilidade no trato camuflam uma dificuldade do brasileiro em submeter-se a ritos sociais
e em separar o público e o privado. O autor frisa que o Estado não é uma ampliação do
círculo familiar, mas antes uma oposição a ele: o Estado deveria representar um triunfo
do geral sobre o particular.
O que motivou Tio Emílio a ingressar na política não foi o desejo de zelar pelo
bem comum, mas um interesse privado. A política se mostra a ele como um novo
negócio, tal qual a criação de gado. É um jogo de poder. Assim define o Primo o interesse
de Tio Emílio pela política:
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Já o segundo núcleo, o amor do Primo por Maria Irma, sua prima, mais uma vez
se configura como uma negação à civilidade e à submissão a certas leis sociais, ao
evidenciar um iminente incesto. Diante da dificuldade em lidar com esse sentimento, o
Primo desce ao mundo selvagem, ao mundo animal, em que prevalecem os instintos. Essa
metáfora sustenta a estrutura narrativa da novela, e é dotada de grande beleza e coerência
interna. No entanto, não é dada prontamente ao leitor. Essa leitura é sugerida, por
exemplo, quando o Primo apressa Santana a seguir viagem: “Vamos! Partamos! Já
Circe, a venerável, me advertiu”, exclama. Circe é, para os gregos, filha do Sol e da Lua,
a deusa do amor aviltado. Tinha o dom da feitiçaria e transformava os homens em
animais. Vivia num castelo encantado rodeado de lobos e leões (seres humanos
enfeitiçados). Foi Circe quem transformou os companheiros de Ulisses em porcos.
“Minha gente” anuncia-se já em seu primeiro parágrafo como uma história de
formação. O Primo, durante a viagem à fazenda de seu Tio Emílio, irá traçar um caminho
de aprendizado. Ele conta que já havia aprendido muitas coisas, “mas muitas outras mais
eu ainda tinha que aprender”.
Ao descer da estação de trem, encontra Santana, que irá acompanhá-lo durante
parte do percurso. O autor caracteriza o Primo por meio da oposição a Santana: este,
inspetor escolar, culto, amante de xadrez e cujo traço físico mais marcante é a presença
de “duas bossas frontais”. É um sujeito intelectual, voltado ao mundo das idéias e
fechado ao mundo sensível, exterior. Tais características lhe conferem segurança para
freqüentar diferentes círculos sociais, pois não se deixa afetar por hostilidades.
O Primo é o seu oposto: contemplativo, voltado ao mundo dos sentidos, atento às
cores, formas, cheiros, movimentos. Detém-se na realidade superficial das coisas, o que
não lhe permite um entendimento mais profundo do mundo.
O caminho de aprendizado a ser traçado pelo primo é simbolizado como uma
trajetória das trevas à luz, sendo entretanto necessário descer à mais profunda treva para
somente então iniciar seu caminho de iluminação:
“Em vôo torto, abrindo o sol e jogando sol para os lados, passou um
gavião-pinhé. Em dois minutos, com poucos golpes de asas, sobrecruzou a
crista da cordilheira, mudando de bacia: viera de rapinar no campo das águas
que buscam o ocidente, e agora se afundava nas matas marginais dos arroios
que rojam para leste. Estava tosando ar alto, mas nós olhávamos o vôo como
quem se inclina para espiar um peixe num aquário.
Depois, o urubu. Pairou, orbitando giros amplos. Muito tempo. Mesmo
para os seus olhos de alcance, era difícil localizar o alimento. Fechou, pouco a
pouco, os círculos. Descaiu, de repente, para um saco em meia-lua, entre duas
vértebras da serra. Adernou. E soçobrou no socavão”.
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A história de Bento Porfírio, apesar de secundária, tem importância fundamental
na construção da narrativa, por dois motivos: em primeiro lugar, o episódio da morte de
Bento Porfírio ilustra, como já foi dito, a forma utilitarista com que o Tio Emílio lida com
as pessoas, apesar de, na visão do primo, e no âmbito familiar, ser tão “justiceiro e
correto”. Em segundo lugar, por expor mais uma vez uma situação de violência motivada
pela não-submissão aos ritos sociais.
Também aqui a atitude humana próxima do mundo animal é realçada por meio de
alusões ao mundo da natureza. Num dia de pescaria, Bento Porfírio, ao confidenciar ao
Primo seu caso com a prima de-Lourdes, é assassinado pelo marido da moça, que
escutara toda a conversa sem ser visto. É morto pelas costas: uma morte traiçoeira, assim
como a natureza traiçoeira do rio em que pescavam:
Bibliografia
ROSA, Guimarães. “Minha gente”. In: Sagarana. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001,
57ª Edição.
Dicionário de Mitologia Greco-Romana. São Paulo, Abril Cultural, 1973.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo, Publifolha, 2000, 8ª Edição.
HOLANDA, Sergio Buarque de. “O homem cordial”. In: Raízes do Brasil. São Paulo,
Companhia das Letras, 1997, 3ª Edição.