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MAGIA
SEDUÇÃO
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A MALDIÇÃO
E A
VIRTUDE
RAYOM RA
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arcadeouro.blogspot.com
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Esta é uma das muitas lendas contadas de Sertório: trovador, músico, e cantor,
herói e meio santo. Num lugar qualquer do passado Sertório viajava no dorso de
Firmamento, tinhoso e inteligente animal negro, salpicado de manchas brancas pelo
corpo, com um perfeito losango sobre a testa. Dizia-se que o cavalo só faltava falar;
sua presença era marcante em episódios vividos por Sertório, tendo-o salvo da morte
certa em várias oportunidades. Segundo ainda relatavam, além de magnífico de saúde
e aparência, era de alma sensível, trotando com graça em medidos compassos quando
seu dono, artista virtuoso, soltava-se ao sabor da arte. Sertório sabia quando
Firmamento pedia. Ele empacava de tal jeito que nada o tirava do lugar, somente a voz
poética e melodiosa do cantor. Então se tornava leve e dócil.
Terminado mais um retiro num mosteiro, cujo principal, monge e amigo, apreciava-
o e à sua arte, Sertório resolveu retomar os caminhos do mundo semeando o que
trazia e buscando o que não possuía. Eram frequentes suas passagens e períodos de
reclusão no citado mosteiro. Insinuavam que Sertório, se por um lado aprendia as
perfeitas regras do jejum e ascetismo, mortificando-se dias a fio a fim de se purificar e
matar as tentações que o mundo lhe produzia, por outro lado, ensinava aos eruditos as
artes da invocação e práticas da magia. Todavia, ninguém jamais conseguira ter provas
deste pacto. O silêncio entre os monges era sua lei e quando perguntados, eles, em
resposta, somente sorriam.
Sertório, como não tivesse uma definição de qual trilha seguir ou qual local atingir,
puxou Firmamento para a esquerda e penetrou pelo bosque. A tarde dentro em pouco
se apagaria e o moço queria encontrar um lugar onde dormir. Quanto ao frio da noite,
estaria protegido porque trazia um cobertor espesso de lã de carneiro dobrado sobre a
anca do animal. Mas quanto ao alimento, teria sorte se encontrasse alguma fruteira,
pois mesmo sem se abster da carne não matava para comer.
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Assim, mediante esta imediata preocupação, não tinha alento e nem inspiração
para o canto, embora apreciasse as graciosas formas das plantas, as flores silvestres,
os agradáveis zumbidos dos insetos e os estridentes cantos dos pássaros. E quanto
mais Firmamento se enfiava por arbustos e capins altos abrindo passagens e alas, ou
entre árvores galhadas dos arvoredos, o bosque se abria e se oferecia na sua virginal
singularidade, dando-lhe as boas vindas e acolhimento, talvez esperando por uma
recompensa musicada do cantor. Mas Sertório não cantava. Persistia de cerviz altiva e
olhar percuciente, denotando que de todas as formas procurava. Em seguidos
momentos a cerviz dobrava-se por que um galho mais alto obstava sua altivez. Porém,
ultrapassado o obstáculo, ei-lo de novo retomando o prumo da postura para, mais
adiante, submeter-se outra vez. Nesta estranha dança, às vezes interrompida por um
frear de Firmamento, uma reorientação do cavaleiro ou uma retomada de direção,
nosso personagem se interiorizava cada vez mais, embrenhando-se em gargantas
verdes e profundas, nada vendo de aproveitável nem satisfazendo a fome que o
apertava.
O filete de fumaça fez seu olhar escorregar para uma chaminé de tijolos; daí para
um telhado semi encoberto por folhas e galhos. Era, sem dúvida, uma casa, escondida
bem no interior do bosque - que sorte ele tivera! Aproximando-se, pôde constatar sua
aparência torta, velha e mal construída, de paredes em tijolos disformes, telhado em
palhas secas soltando pedaços, tendo ao fundo, não muito distante, um barranco
irregular. Uma cerca de paus enviesados, amarrados por cipós e fibras, e um portão
solto encostado numa das estacas da cerca, constituíam os limites frontais e laterais da
propriedade e respectiva entrada, naquela vastidão de lugares de ninguém.
Era nada acolhedor o seu aspecto; de causar certo calafrio e afastar as pretensões
dos passantes. Sertório, não obstante, sem carregar temores na alma, não tendo
alternativa e vendo-a como a melhor solução para os seus problemas imediatos, apeou
diante do portão e chamou:
- Ó de casa! Nenhuma resposta, o silêncio era absoluto, a imobilidade total;
somente a fumaça ao alto mexia-se, mesmo assim se esticando com lentidão.
Resolvido, ultrapassou o umbral e chegou ao limiar da porta fechada, a dois passos
dela.
- Ó de casa!
- Vai embora, estranho, leva contigo tua ousadia! Não queiras tornar-te também
amaldiçoado!
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Era feio o homenzinho: magro, enrugado, de olhos grandes e caídos, nariz adunco
e queixo comprido, e além de tudo com ombros meio arcados. Sertório, passada a
surpresa, sorriu polidamente, levando a mão ao chapéu e o saudando reverentemente:
- Saudações, senhor bufão, tenho ouvido falar de ti, muito assustadoramente,
aliás, julgando-te uma lenda. Todavia, eis-te aqui diante de meus olhos, falando-me e
advertindo-me. Permitas que me apresente: sou Sertório, trovador, cantor, e músico, e
me encontro perdido neste bosque encantador, hoje desafortunado para mim, cansado
e faminto.
- Sertório, o trovador? – surpreendeu-se o bufão, piscando com cara atoleimada,
folgando e baixando o arco.
- Vejo que ouviste falar de minha humilde pessoa. Então não estás tão afastado do
mundo quanto dizem. És mesmo, Aldegundes, o bufão amaldiçoado?
- Sim, sou Aldegundes, o bufão amaldiçoado, - confirmou com acrimônia, - teus
feitos já chegaram aos meus ouvidos. Contam que além de amigo das artes és valente
e possuidor de grande nobreza de espírito, é verdade?
- Exageros, senhor bufão. Sou somente um homem de sensibilidade que busca
pela beleza e ama a verdade. Aldegundes olhou-o com maior admiração, da cabeça
aos pés, notando o seu belo e principesco porte, invejando-o.
- Vejo, quanto ao aspecto exterior, que não exageraram ao descrever-te e se fores
realmente tão nobre quanto dizem, poderás ajudar-me.
- Referes-te à maldição?
- Teme-a, trovador? - Sertório somente sorriu, mas tão intensamente que esse
encantador sorriso inundou ao feio bufão de certeza - Tens coragem de dormir sob o
meu teto? – insistiu Aldegundes. Sertório, ainda sorrindo, arcou-se em reverência,
apontando para a direção da porta. Ele, satisfeito, encaminhou-se e adentrou. Sertório
o seguiu.
`A mesa tosca, pisando o chão de terra batida, sentados sobre tocos de árvores,
eles jantaram. O guisado de coelho estava delicioso e as frutas ótimas. Nesta sala em
que permanecera desde que entrara, Sertório pode notar a simplicidade dela; que toda
a mobília e objetos eram velhíssimos e mal acabados, tortos como era a casa,
certamente feitos pelas mãos do próprio truão ou por ele remendados e que à luz da
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O rei, homem inconstante, por vezes divertido, por vezes violento, principalmente
quando bêbado, exigia-me quase sempre ao seu lado e em todas as suas festas e
recepções. Nessas reuniões, enquanto os fantasmas do vinho não tinham ainda se
soltado, ele ria e gargalhava com minhas anedotas maliciosas e comicidade. Porém,
quando o vinho acordava as sombras de seu mundo infernal, ele me espancava e me
dava pontapés.
Sua filha única, a princesa, bela e também cruel, por motivos que desconhecia,
não perdia a menor oportunidade de me humilhar e maltratar, despertando com isso
sentimento recíproco de rancor em meu coração. Entretanto, que poderia eu, pobre e
escravizado bufão, fazer contra o rei e a princesa? Quanto à rainha, pouco ligava ao
que se passava em redor, estando mais preocupada com seus encontros amorosos,
não tomando conhecimento de minha insignificante vida. Aquela situação foi se
tornando verdadeiramente insuportável. Com o tempo, a princesa não se contentava
mais em humilhar-me, espancava-me também atirando-me coisas onde me visse,
dizendo odiar minha feiúra. Um ódio quase gritante, em contrapartida, crescia cada vez
mais em mim e a custo era abafado. Isto se agravou mais no dia em que o rei, numa de
suas escandalosas festas, obrigou-me a lamber do chão o vinho que derramara.
Naquele momento, jurei vingar-me dele, da princesa e de todos os que riam das
humilhações a que me submetiam.
Havia fora da cidade um bruxo, velho e solitário, que, segundo contavam, fazia
bruxarias sob encomenda. Aquele que fosse visto em sua companhia, ou acusado de
freqüentar sua casa, seria desprezado e apedrejado. Havia, em relação ao bruxo, um
temor maior do que escrúpulos. Se tanto o temiam era porque o homem seria
poderoso, pensei eu, e mergulhado numa torrente de revolta, sedento de vingança,
resolvi ir visitá-lo, saindo à noite, às escondidas, com grande risco, andando pela
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Chegando a casa do bruxo, bati à porta. A noite estava fria, penetrada de espessa
névoa. Uma voz rouca e abafada ordenou-me que entrasse. Sob a fraca luz de vela, a
lúgubre e desarrumada casa, com objetos de cera e vasilhames espalhados por todos
os lados, exalando muitos cheiros, causava-me calafrios. O fogo da lareira extinguia-
se. A temperatura ali dentro era quase tão igual quanto de fora.
Não o vendo parei naquela sala, mas a mesma voz chamou-me do quarto,
mandando-me que lhe trouxesse a candeia de sobre a mesa. Assim fiz e fui encontrá-lo
deitado, tremendo de frio. Era um velho realmente, e pelo seu aspecto estaria doente.
Sem a menor formalidade perguntou-me o que eu queria. Estando ávido por uma
confidência, contei-lhe tudo sobre minha vida e sobre os meus planos. Afirmei-lhe,
convictamente, estar disposto a qualquer coisa conquanto obtivesse liberdade e poder.
Ao término, ele me olhava com grande curiosidade, estudando-me atentamente,
deixando-me embaraçado e temeroso. Finalmente falou, dizendo que me poderia dar o
que eu desejava, mas o preço seria alto: metade do ouro que eu ganharia. Intrigado,
perguntei-lhe por que precisaria de tanto ouro já que por toda a vida, ao que parecia,
vivera pobre. Ele revelou-me então que estando para morrer, desejava ser enterrado
no cemitério dos bruxos, longe dali, onde a fraternidade dos malignos se reúne em
conciliábulos e onde só os espíritos que adquiriram em vida o direito a uma sepultura
no lugar, podem freqüentar e fazer parte. E isso custaria muito ouro!
Como não tivesse escolha se desejasse levar adiante meus planos de vingança,
aceitei o trato. Ele, imediatamente, me pediu que o amparasse e o levasse para a sala.
Em lá chegando, apoiou-se na mesa e apontou para a lareira, mandando-me que a
empurrasse. Com surpresa, via-a escorregar e se abrir, dando lugar a uma passagem
secreta. De volta à mesa, amparei-o entrando com ele através da passagem. Era-me
difícil carregá-lo porque sendo franzino e de baixa estatura, não conseguia grandes
resultados neste tipo de auxílio.
Antes de entregá-la, mandou-me encher duas taças de um vinho que ali havia a
fim de que selássemos o pacto. Tendo-o tomado, observado antes e inutilmente que
ele o tomasse primeiro, o bruxo riu estranhamente informando-me que bebêramos
veneno. O veneno, entretanto, levaria exatamente sete dias para fazer efeito, o prazo
máximo de que eu dispunha para realizar o plano e trazer-lhe o pagamento. Se
falhasse, ou o ouro fosse insuficiente para o seu intento, ele não me daria o antídoto e
eu morreria. Da mesma forma, morreria se tentasse enganá-lo na partilha por que ele
falava a linguagem dos corvos e um deles me vigiaria dia e noite. Inútil também seria
procurar outra forma de anular o efeito do veneno: somente ele conhecia sua natureza.
Após ter sido novamente obrigado a ajudá-lo a locomover-se de volta ao quarto, deixei-
o, voltando apavorado para o castelo, temendo que me visem, levando comigo a poção
do encantamento.
Naquela noite não consegui dormir e muito mal na outra; somente pensando no
que me acontecera. Na madrugada do terceiro dia, em meu pequeno quarto, - mais um
cubículo do que outra coisa qualquer numa das torres menores no fundo do castelo, -
subi num velho baú encostado à parede e me apoiei no frio peitoril de pedra da janela,
a fim de olhar a restrita paisagem. Apesar da escuridão e fraca luz da lua, conseguia
divisar entre sombras e contornos um pedaço da rua lá embaixo, úmida pelo sereno.
Mas não eram essas poucas coisas que eu discernia que me prendiam a atenção. Eu
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Neste exato instante, ouvi o crocitar de um corvo e olhei para cima, percebendo,
apesar da noite, que ali estava um voando em direção de minha janela. Chegando mais
próximo atacou-me com as garras, embaraçando-se aos meus cabelos, bicando
diversas vezes minha cabeça. Assustado, bati-lhe. Ele me largou voando novamente,
subindo e se preparando para nova investida. Rapidamente fechei a janela impedindo-
o de entrar, ouvindo-lhe, entretanto, o ruflar de asas ao pousar sobre o peitoril, ali a
permanecer a vigiar-me e a lembrar-me de que o pacto precisava ser cumprido. Aquilo
realmente surtiu efeito em mim. Relembrando que tomara o veneno, portanto, deveria
apressar-me ou morrer, decidi realizar o plano tão logo a oportunidade se me
oferecesse, sem delongas.
Dia seguinte, o rei mandou chamar-me a fim de que permanecesse ao seu lado
enquanto recebia uma comitiva de mercadores estrangeiros, que vinha para oferecer
presentes e obter permissão para negociar na cidade. Tendo enchido um recipiente
menor com a poção e tê-lo fechado bem, levei-o comigo na tentativa de usá-la na
primeira oportunidade.
Durante a recepção e na entrega dos presentes, fiquei atento, porém o rei não
pediu vinho. Ao invés, o miserável ordenou-me que contasse uma anedota para
aqueles estrangeiros repugnantes que, de apreciável tinham somente os presentes.
Eles riram e o rei também e tal como se dirigisse a um cão obediente, ao final, apontou-
me para o lado do trono, ordenando-me que ali eu ficasse. A princesa e a rainha
estavam deslumbradas com os tecidos de fina seda e cores vivas que lhes eram
ofertados bem como com os pequenos objetos e pedras preciosas.
Pensando numa solução, mandei-o pedir mais duas taças de vinho. Ele foi e
voltou. Tendo, após, o vinho chegado, fiz com que o rei ficasse de costas, derramando
outras três gotas da poção na taça que se destinaria ao tesoureiro, ordenando-lhe que
o mandasse chamar imediatamente aos seus aposentos. Quando o tesoureiro chegou,
homem forte e hirsuto, eu estava a um canto, em posição de bufão, com cara de tolo. O
rei, sorrindo, em obediência ao que eu o havia instruído, apontou-lhe a cadeira onde,
adiante, sobre a mesa, estava a taça de vinho a ele reservada. O tesoureiro franziu a
testa e por um instinto pareceu desconfiar, olhando-me interrogativamente, cravando-
me aqueles olhos argutos. Eu estremeci e quase pus tudo a perder, controlando-me
com enorme esforço, sentindo, não obstante, apesar do frio, o suor a escorrer-me pelo
corpo. Mas ele foi e sentou-se. O rei segurou sua taça e aproximou-a para uma
comemoração. Ele, desconfiado ainda, levantou a sua e brindou. O rei bebeu e o
tesoureiro, sendo um súdito, foi obrigado também a beber.
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Estando de novo a sós com o rei, saboreei a última vingança naquele dia,
imaginando ser somente mais uma de tantas que planejava. Segurando uma daquelas
taças, derramei vinho no chão, ordenando-lhe que o lambesse, e ele o fez exatamente
como me obrigava fazer. Depois, pisei-o e golpeei-o várias vezes, com voluptuosa
satisfação, tendo o cuidado de não lhe deixar marcas pelo rosto a fim de que nada
desconfiassem, saindo após.
Perto da meia noite, procurei ao tesoureiro. Levava um saco às costas com roupas
e objetos de uso pessoal. Ele se encontrava em seu gabinete, no palácio, e recebeu-
me de mau humor, com cara sonolenta. Era evidente que dormira e pela rudeza de
suas palavras e gestos, cheguei a temer que o plano fracassasse. Mas lembrei-me do
alerta do bruxo, e sem qualquer gesto de resistência o tesoureiro real conduziu-me
ante um túnel secreto, cuja entrada era disfarçada por uma estante fixa de parede
móvel numa saleta contígua ao seu gabinete. Logo ele acendeu um archote e
enveredamos pelo úmido túnel no subterrâneo do castelo, até um pátio fechado, para
mim desconhecido, onde pequena carroça atrelada a um cavalo ali estava. Ainda
bastante contrariado, meu acompanhante e guia levantou uma braçada do feno jogado
sobre a carroça, mostrando-me o largo baú envolto num pano púrpura. Pedi-lhe então
que o abrisse, e ele, obedecendo-me, subiu imediatamente na carroça puxando o
pano.
Minha cupidez cresceu mil vezes ao ver todas aquelas reluzentes moedas. Eram
milhares, mais do que jamais vira em toda a minha vida e quase mergulhei sobre elas,
tamanha a satisfação! Finalmente, dando-me por satisfeito, ele de novo fechou o baú e
o lacrou com o lacre do tesouro real. Inútil e desnecessária providência, assim tomada
por que eu exigira no momento em que ditara a missiva ao rei. Como última atenção,
abriu-me o portão para que eu saísse e ao passar junto a ele cumprimentei-o do alto da
carroça com gesto de cabeça, enviando-lhe sorriso de escárnio, ao que evidentemente
ele não respondeu. Aquela partida era-me triunfal e já me via retornando dentro em
pouco com pompa, cumulado de honras, seguido de um séqüito de bajuladores a
entrar pela porta principal do salão real, a convite de sua majestade.
Mas a vingança não terminaria ali, pensava com satisfação e acalanto, pois mal
começava. Depois seria a vez da princesa. Ela me serviria e se prosternaria diante de
mim, e todos iriam se admirar respeitando-me. Talvez não a envenenasse e nem ao
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A viagem até a confraria dos bruxos seria longa, levando semanas. Como ele não
soubesse quanto tempo de vida dispunha, desejava se pôr a caminho imediatamente.
Tendo tomado conhecimento deste fato, perguntei-lhe, ansioso, acerca do antídoto,
pois o veneno faria efeito dentro de pouco mais de quatro dias. Em resposta, ele
informou-me que estaria levando suficiente poção a fim de prorrogar o efeito letal de
sete em sete dias, até chegarmos ao destino, onde me faria beber a dose definitiva.
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Soltando outra horrível gargalhada, o execrável aconselhou-me cuidar de que nada lhe
acontecesse porquanto se tornava agora para mim carga mais preciosa do que o
próprio ouro que eu carregava.
Sacudindo o horrendo homem, fi-lo beber mais vinho, antes que se tornasse
totalmente consciente de tudo, e mansamente ele permaneceu aguardando as minhas
ordens. Tinha-o agora sob domínio e fiquei a pensar o que poderia obter usando sua
feitiçaria. Tinha ouro, terras e liberdade e queria agora todos os prazeres que estas
coisas poderiam me proporcionar, mas por quanto tempo? A vida é tão curta, pensava
ainda, logo a gente se transforma num farrapo como esse andrajoso ser. Bom seria eu
viver muitos anos, com juventude e disposição, eternamente, se possível, ainda mais
agora que me tornara rico e senhor!
De novo pus-me a refletir. O bruxo, ao que tudo indicava, não teria mesmo muito
tempo de vida, logo não faria a menor diferença se morresse alguns dias antes. Se
morresse antes de chegar à confraria, azar dele, pois de todos os modos não lhe daria
o ouro, sobretudo porque novamente o recuperara todo e à liberdade. Tendo isto em
mente, ordenei-lhe que fizesse a poção da longevidade, mas ainda que sob os efeitos
da poção, seu instinto de sobrevivência gritou mais alto e recusou-se. Ameacei bater-
lhe, obrigando-o também a tomar mais vinho e não sei bem se somente pela ameaça,
pelo reforço da poção ou pelos espíritos inebriantes do vinho, ele acabou concordando.
Tendo recuperado o fôlego, disse-me que precisaria estrangulá-la, mas não teria
forças para tal, pedindo-me ajuda. Já fora da carroça, neguei-me veementemente a
isso, ordenando-lhe que fizesse tudo sozinho, reunindo todas as suas forças. A
serpente, parecendo ter entendido que seria sacrificada, levantou a cauda e
arremessou-a sobre o rosto do bruxo, assustando-o. Tomado de pavor, gritei-lhe para
que a matasse. Ele, então, segurou-a com ambas as mãos e começou a apertá-la. Ela
se enrodilhava e lutava e ele gemia e se arcava. Foi uma luta titânica que me
consumiu, também, grande dose de energia, tal o terror que de mim se apossara.
Finalmente o bruxo caiu sobre o réptil, opresso, gritando com voz rouca, implorando
ajuda. Hesitei, mas ante os seguidos apelos aproximei-me, verificando que a serpente
de fato houvera sido estrangulada e ajudei-o a se levantar.
Dia seguinte, ele estava mal humorado. Pouco comeu e surpreendi-o em várias
oportunidades a olhar-me estranhamente, expressando ódio na fisionomia. Nervoso,
dei-lhe um pouco de vinho e ele o tomou. Depois, começou a tirar o couro da serpente,
cantando e invocando espíritos. Feito isso o enrolou num pano, tendo o cuidado de
excluir as presas.
À meia noite do outro dia, ele começou a preparar a poção, tendo feito fogo e
fervido ingredientes; em certo instante mandou-me que me aproximasse e estendesse-
lhe a mão esquerda. Obedeci e ele me espetou um espinho num dos dedos, fazendo-o
sangrar. A seguir, tomou a caneca de metal onde havia coletado o veneno da serpente
e me espremeu o dedo, derramando uma gota de sangue. Mal o sangue se misturou
ao veneno ele gritou e esbravejou, como se amaldiçoasse, virando-se para os quatro
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Como eu determinasse que não partíssemos até que a poção estivesse pronta, na
noite seguinte ele realizou o segundo ritual no mesmo local, acendendo o fogo,
invocando conforme fizera anteriormente, tirando-me outra gota de sangue e a
lançando diretamente no caldeirão. Assim foi feito durante todo o período de
manifestação da lua cheia. Na última noite, após tirar-me a gota de sangue, ele deitou
o couro da serpente diante do caldeirão, untou-o com o óleo antes utilizado para atraí-
la, gritou e falou palavras estranhas. Deixou-o ali, afastando-se um passo. Logo a
forma do espírito da serpente sacrificada viria aninhar-se no couro. Ele a tomou com
ambas as mãos e invocando demônios derramou a forma espiritual da serpente no
caldeirão fervente. A seguir, mergulhou pela primeira vez a caneca na fervura,
mexendo-a como se a lavasse, retirando-a com a poção e a estendendo a mim para
que eu bebesse. Tenso por ter presenciado todas aquelas coisas e não confiante ainda
na sua total submissão aos meus desejos, ordenei-lhe que jurasse em nome de todos
os demônios que a poção era verdadeira e caso estivesse mentindo, sua alma seria
eternamente prisioneira deles, e ele jurou.
A poção não faria efeito se tomada uma única vez, necessitando tomá-la sete dias
consecutivos à meia noite, entrando este ritual pelos dias da lua minguante. Dessa
maneira, aquela seria somente a primeira dose. Num inexplicável e súbito impulso
quase arranquei a caneca das mãos do bruxo, mirando o líquido, sobrevindo-me
novamente náuseas que quase me fizeram perder a coragem. Porém, trazendo à
mente o quadro acalentado por todos aqueles dias, vi-me senhor e próspero, vivendo
na abundância e eternamente, gozando prazeres e humilhando inimigos, e bebi a
largos goles, quase vomitando ao final. Recuperando-me, contudo, decidi partir
imediatamente abandonando ao bruxo. A fim de que não me visse partir, obriguei-o a
tomar todo o vinho restante, embebedando-o. Utilizando a mesma bilha, guardei nela a
poção e em seguida amarrei o burro numa árvore, descendo a arca do velho asqueroso
juntamente com os outros objetos de seu uso pessoal. Num ato incomum de
solidariedade, dividi com ele partes de um coelho apanhado em armadilha; afinal,
aquilo poderia ser seu último alimento. Dali em diante assumia o meu próprio destino,
ele que se danasse sozinho! Montei na carroça, e com nojo e desprezo lancei-lhe
derradeiro olhar, vendo-o dormir a sono solto, deixando-o definitivamente.
Os dias que se seguiram, gastei-os quase todos retornando por onde houvéramos
percorrido, conquanto o bruxo forçara-me viajar em direção oposta ao que eu
pretendia. Por dois dias e duas noites permanecera abrigado em pequena e rasa
caverna, a fim de proteger-me das seguidas pancadas de chuvas que me impediam
viajar. Nesses dois dias, quando a lua se espremia dentre nuvens - exatamente à meia
noite - sob as frias e úmidas paredes da gruta, eu tomava da poção, sendo invadido de
arrepios e calafrios. Finalmente, na sétima noite, longe do lugar onde abandonara o
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bruxo à própria sorte, tomei a última dose, lançando fora o que restara da poção,
quebrando a bilha de encontro a uma árvore. Afora aquelas rápidas e já conhecidas
reações, nada mais sentira, exceto ao crescer da certeza de que a poção redundaria
em sucesso e viveria eternamente rico e senhor!
Mas o pior estava por acontecer. Dois dias depois da última dose, enquanto
viajava cautelosamente por caminhos secundários sob a palidez da argêntea lua,
procurando desviar-me de vilas e lugarejos, senti-me mal. Uma sensação de desmaio
abraçou-me e parei a carroça, deitando-me na relva. Um suor surpreendente veio
lavar-me a testa. Senti que enfraquecia, começando a ver nuvens e sombras diante de
meu rosto. Súbito, as sombras criaram vida e forma e a cara horrível do bruxo surgiu
enorme, rindo pavorosamente, acompanhada de um séqüito de seres ígneos que se
revolviam numa dança macabra. Impossibilitado de mover-me, via a tudo paralisado,
escutando de novo aquela voz que tão bem conhecia, agora mil vezes mais
abominável:
“Mortal idiota! Queres viver eternamente? Não sabes que este poder somente tem
Lúcifer, por seu próprio e indissolúvel selo com o mal - ele, o senhor indiscutível da
ciência maligna e execranda, da qual sou somente um discípulo? Não, não sabes por
que nada és além de um verme. Como pudeste crer que somente ingerindo uma
poção, viverias para sempre e sem pagares um tributo? Ao fazeres isto e roubares
alguns dias de minha existência, deixando-me morrer de inanição, levando o meu ouro,
atraíste uma horrível maldição. Um vínculo muito forte foi criado entre tua insignificante
alma, a minha e os poderes das trevas. Agora não poderás mais recuar. O ouro te será
maldito, porque mais ainda ele atrairá tua cobiça. Porém, ao mesmo tempo, não
poderás passar um único dia longe dele, ou o perderás. Por tê-lo roubado de mim e me
tirado a oportunidade de ser aceito na confraria dos bruxos, fazendo parte da grande
mesa, não poderás ficar longe do ouro e não gastarás uma única moeda que não
venha redundar-te em prejuízo ou desgosto. Viverás muitos anos, não eternamente
como supuseste, porém muitos e tantos que desejarás morrer, tal o tédio de tua
existência. Todavia, ao morreres, não estarás livre dessa maldição. Aqui estaremos
para nos apossarmos de tua alma, ó infeliz e ignorante mortal!”
Se feio sou, não sei como estaria a expressão de meu rosto naquele momento.
Deveria estar horrível, porque sentia os cabelos arrepiarem e os olhos quase saltarem
das órbitas. Mesmo assim, consegui balbuciar algumas palavras, dizendo-me
arrependido e disposto a pagar pelo meu erro para livrar-me da maldição. O bruxo riu
estrepitosamente, quase estourando os meus ouvidos e respondeu:
“Tarde demais. És tão repelente que não possuías uma virtude sequer antes de
ingerires a poção, muito menos agora a possuís. Desista, homenzinho, estás
irremediavelmente perdido. Somente uma virtude desperta em teu coração poderia
dissolver os fortes grilhões a que te aprisionastes, e teu coração é duro como a pedra,
ah... ah...ah! Toma, eis o novo selo de nossa aliança!”
Ele levantou a mão e lançou sobre mim a alma da serpente que não se dissolvera
no caldeirão como eu supusera. Ela picou-me o braço e queimou-me por dentro
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Encontrando um local apropriado ali fiquei a meditar sobre tudo, concluindo, afinal,
que se a maldição havia recaído sobre mim de nada adiantaria ir tomar posse das
terras e do castelo, pois me arriscava a perder tudo e ao ouro. Sendo senhor, como
evitar passar um dia longe do ouro, tendo de tudo administrar e viajar a negócios?
Além do mais, por supina infelicidade, não poderia dispor de uma única moeda daquele
tesouro enquanto a maldição existisse. Desalentado, resolvi me esconder e buscar
uma solução para anular a maldição do bruxo, dispondo novamente do ouro. Assim,
enfiei-me cada vez mais no interior deste bosque até chegar a esse lugar, achando
esta casa abandonada, escondendo o ouro e aqui permanecendo.
Mas os incríveis acontecimentos de minha vida não terminam por aqui, caro
trovador. Há outro fato somado à maldição que passo a relatar-te: certa noite,
deprimido pela solidão, tendo unicamente a companhia dos grilos e corujas a emitirem
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Dizendo isso, a serpente lançou-se sobre o meu braço e picou-me no exato local
onde eu trazia a marca dupla produzida pela outra serpente. Foi de novo uma dor
horrível que me queimou e me fez acordar aos gritos. Ao levantar a manga da camisa
vi com incredulidade, saindo de dentro dos ferimentos, emaranhando-se numa só
forma, uma mecha de cabelos vermelhos, que de tão viva quase reluzia sob a fraca luz
da vela ao chão, salva por milagre de minha fúria destrutiva. Repugnado, puxei-a e a
atirei longe, afastando-me. Pouco depois, mais recuperado, aproximei-me pegando-a e
a lançando fora através da janela. Dia seguinte, via-a ali. Essa visão causou-me a
tempestuosa lembrança da aparição. Na verdade, eu não a esquecera completamente,
porque mal dormira de tanto me doer os ferimentos. Enraivecido e descrente de tudo,
peguei-a novamente, saindo para dentro do bosque, enterrando-a em lugar distante,
disposto a não dar ouvidos a mais nada, julgando que estivera fora da razão.
Aquele dia se passou sem outras surpresas. Porém, na manhã seguinte, ao abrir a
janela quase caí para trás, tamanho o espanto: a mecha vermelha ali estava sobre o
peitoril. Inconformado, segurei-a e parti para o lugar onde a enterrara, encontrando o
buraco fechado exatamente como o havia deixado. Escavei-o, e para outra de minhas
surpresas, nada ali encontrei! Decidido fui mais longe e cavei outro buraco mais
22
profundo, jogando a mecha em seu interior, tapando-o. Mas ela novamente voltou,
dessa feita no bico de um pássaro vermelho que a jogou sobre mim, à mesa.
Acreditando, então, que teria algo de mágico, aliado ao fato de que surgira de meu
próprio sangue, resolvi guardá-la.
Daquele dia para cá, nada de novidade apareceu-me, exceto tua presença aqui,
senhor Sertório, dentro dessa casa, à minha mesa, coisa jamais acontecida com outra
pessoa em mais de um século. Aliás, ultimamente tenho encontrado pessoas com
maior constância. Não obstante temerem-me quase todas e algumas sair a correr
tresloucadamente, Isso me faz concluir duas coisas: primeira, meu esconderijo não
mais se encontra tão afastado assim das trilhas e estradas que levam às vilas e
cidades; segunda, minha fama de amaldiçoado já é grande demais para que eu
permaneça perfeitamente seguro por aqui, pois temo a investida de algum aventureiro
mais ousado que suspeite eu esconder alguma coisa valiosa. É natural te perguntares
como consigo ter roupas, panos e cobertores, utensílios, ou mesmo boas ferramentas
após tantos anos de reclusão. Acontece que a despeito de minha fama e do terror que
a maldição desperta, existe ainda pessoas apiedadas de minha condição. Assim, um
ou outro viajante, a quem exijo o mais absoluto sigilo sobre a localização exata de meu
esconderijo, deixando ao acaso sua descoberta pelos passantes, trazem-me essas
coisas em troca de agradecimento, julgando-me miserável. É uma ironia, não, senhor
Sertório, eu, possuidor de uma fortuna em ouro, não poder pagar por uma camisa, uma
calça ou qualquer outro objeto, ficando a receber doações?
Decidido, resolvi um dia sair em busca dessas coisas, nem que precisasse viajar
muito, não me importando com esse sacrifício, visto ter de permanecer por muitos anos
nesse lugar. Carregando o baú com o ouro, coisa sumamente trabalhosa por que
precisava primeiro descarregá-lo para torná-lo leve, parti à noite, fazendo marcas e
sinais aonde ia passando a fim de que, no retorno, encontrasse o caminho sem
dificuldade. Na terceira noite de ininterrupta viagem, vi ao longe uma vila. Tendo
cavado um buraco e enterrado o baú, trabalho este que me fez despender quase o dia
inteiro e grande dose de energia, visto precisar utilizar paus como escavadeiras, parti
para a vila. Lá chegando, pude comprar tudo o que precisava na oportunidade,
trazendo, pois, sementes diversas, farinha de trigo, milho, galinhas, reprodutores,
toucinho, pão, fermento, vinho, ferramentas, cobertores, lençóis, pratos, canecas,
talheres, etc. Como o ouro que possuísse não bastasse e temeroso de usar do outro,
negociei com o medalhão e o cordão tirados do rei, evidentemente não contando a
verdade sobre a sua origem, obtendo ainda troco.
23
Antes que Sertório dissesse qualquer coisa, o bufão enfiou dois dedos entre o cinto
e a cintura puxando a mecha de cabelos vermelhos, atirando-a sobre a mesa. Sertório
olhou-a com curiosidade, sem tocá-la, voltando a encará-lo, induzindo e perguntando:
- Supondo que tua história seja verdadeira, senhor Aldegundes, estes cabelos se
tenham materializado de teu próprio sangue e o ouro de fato exista aqui guardado, que
esperas de mim para auxiliar-te?
- Fosse eu um santo a peregrinar e ensinar pelo mundo, como viveria sem a paga
de meus serviços? Há diversas formas de pagamentos ou compensações, como há
serviços e ajudas. Ademais, o virtuosismo não se desmerece por um punhado de
moedas de ouro, nem por centenas de milhares delas. Existe, exatamente, por ser
distinto e independente de tal apego, sabendo dar e receber. Assim, senhor bufão,
proponho-me auxiliar-te, em resposta ao teu apelo, por uma boa recompensa de teu
ouro maldito!
- Meu ouro? – levantou-se o homenzinho - jamais, nunca!
- Que tens então a oferecer-me em troca?- perguntou calmamente, mostrando um
sorriso de malícia. Aldegundes olhou em torno e nada respondeu.- Vês, nada tens de
valor para cambiar a não ser o ouro, que dizes?
Como o homenzinho não se decidisse, Sertório pediu-lhe que lhe mostrasse onde
dormiria. Aldegundes, ainda contrariado, trouxe-o até um quarto vazio e apontou para o
chão de terra.
- Não tenho outra acomodação a oferecer-te, trovador, mas arranjarei alguma
palha seca para teu melhor conforto! Sertório saiu e retornou trazendo ao ombro seu
cobertor de lã, falando ao bufão:
- Aguardo por tua resposta pela manhã. Dono de meu destino, daqui parto pelos
caminhos do mundo sob o sol abençoado, livre como o ar e o vento.
Sertório riu e deitou-se novamente, sem desviar-lhe os olhos. Ele de novo andava
de um lado a outro. Finalmente parou e dobrou as pernas, pondo-se de cócoras, com
impaciência:
- Está bem, prometo pagar-te do ouro!
- Quanto?
- Dez moedas!
25
- Nada feito.
- Vinte!
- Hum, hum!
- Ofereço-te então cinqüenta, nem uma a mais!
- Quero um terço do que existe no baú!
- Um terço? É loucura, é roubo! Não farei negócio contigo! E saiu furioso, deixando
o quarto a escurecer como antes.
Ao levantar, pouco depois do dia raiar, foi recebido pelo bufão à mesa, com o
desjejum pronto. Eram frutas e um caldo quente e Sertório se alimentou. Houve
proposital silêncio de sua parte. Aldegundes, por seu turno, nada também dizia. Após o
repasto, Sertório encaminhou-se para o fundo do quintal, dando milho e água a
Firmamento e o encilhando. Ao puxar o belo animal e passar adiante da porta o bufão
ali o aguardava, Sertório trouxe o chapéu ao peito, dobrou-se levemente e disse:
- Muito te agradeço pela hospitalidade, senhor Aldegundes. Não tenho ouro e
momentos existem em que moedas pouco valem diante do que nos proporcionam.
Assim mesmo pagar-te-ia se tivesse. Impossibilitado, porém, ofereço-te o que de mais
precioso possuo na humilde intenção de recompensar-te.
E trazendo a viola aos braços, cantou e recitou uma trova - admiráveis momentos
de inspirada arte. Mas, como antes, o bufão não se comoveu com a preciosa oferenda
do artista, permanecendo rijo e surdo. Terminado, Sertório conduziu Firmamento em
direção ao portão e antes mesmo de ali chegar, Aldegundes já o alcançava colocando-
se ao seu lado, falando nervosamente:
- Setenta moedas! Sertório meneou negativamente a cabeça, continuando a
caminhar. Aldegundes o alcançou fora da propriedade e ao seu lado novamente
propôs-lhe:
- Cem! Sertório não parou e nem respondeu, ele fez novo lance:
- Uma última oferta: cento e vinte moedas! Sertório, silencioso, voltou-se para
Firmamento e fez menção de montar.
- Está bem, fazes-me chantagem, um terço do que tenho no baú. Sertório estancou
o movimento e Aldegundes olhou-o interrogativamente.
- Um terço do teu ouro, incluindo aquele que retiraste do baú esta madrugada.
- Raios, então me surpreendeste? – reclamou furioso.
- Pela última vez, senhor bufão, aceita minha proposta, ou parto imediatamente?
- Maldição, não tenho alternativa. Dize-me, então, como irás encontrá-la?
- Primeiramente indo e vindo por aí, sozinho, até que o momento eleito aconteça.
- Somente isso? – interrogou-o com ar atarantado.
26
Sertório partiu levando um terço do ouro. Eram muitas moedas e ele encheu dois
sacos velhos que o bufão possuía, - de ganhos dos passantes, - reforçados com fibras
obtidas nos arredores, jogando-os aos flancos de Firmamento. Aldegundes, de
cócoras, cotovelos nos joelhos, braços encolhidos e mãos semi fechadas, mordia-as e
praguejava, vendo-o aos poucos desaparecer por entre ramagens e folhas, ouvindo-lhe
o canto cada vez mais fraco.
O tempo passou, três meses. Certo dia, Aldegundes corre à porta para atender a
um chamado. Ao ver que se tratava de Sertório quase teve um desmaio; recuperou-se,
no entanto, mandando-o que se aproximasse. O trovador, puxando Firmamento,
chegou-se com sorriso despreocupado e rosto a irradiar alegria e zombaria.
Aldegundes, ao contrário, vestia-se de característica carranca. Sertório, parando a três
passos da porta, retirou o chapéu da cabeça e o cumprimentou com habitual vênia,
dobrando-se ligeiramente:
- Boa tarde, senhor Aldegundes, eis-me de volta, conforme te prometi.
- Trazendo-me o que foste buscar, espero!
- Trazendo-te notícias do mundo, em princípio.
- Que me interessam as notícias do mundo neste momento. Quero somente aquilo
que necessito e pelo que te paguei! – respondeu em tom agressivo.
- É certo, senhor Aldegundes, pois são as notícias que te trago que necessitas.
Mas não me convidas a entrar como outrora e não me ofereces alimento?
- Meu ouro, fui enganado! – ele sentou-se, apoiando a cabeça com as mãos e
lamentando.
- Não lamentes o destino de teu amaldiçoado ouro, avaro! Ao invés, deves
lamentar tua insipiência e cupidez. És ainda cego e tolo, após tantos anos já vividos.
- Sou um homem amaldiçoado, já te disse! – resmungou com choraminga sem
alterar a postura.
- És pior do que isto: és uma alma trancafiada em tua própria criação. Apesar de
todas as coisas acontecidas erigiste outro cativeiro e nele te encerraste
voluntariamente, assim permanecendo.
- Que faço agora, como vou livrar-me da maldição? O bruxo estava certo, começo
a ter prejuízos e desgostos!
- Cala-te, boca insana! Olha ao menos uma vez para dentro de ti e busca a
esperança que te resta!
- Viverei eternamente aqui, estou prisioneiro das forças satânicas, que fazer? O
bufão não se acalmava, chorando a sua sorte.
- Dá-me mais um terço do teu ouro que continuarei na busca do que precisas –
falou Sertório com naturalidade.
- Meu ouro? Estás louco? Fico pobre! – gritou, quase pulando tal o espanto,
olhando-o com fisionomia alterada.
- Então, creio nada mais poder fazer-te; sem ouro, sem ajuda!
- Ladrão eis o que és! Roubaste-me uma vez e queres roubar-me outra. Não te
darei nem mais uma moeda, é meu o ouro!
- Serei eu de fato o ladrão? De onde te veio o ouro, e de que maneira?
- Arrisquei minha vida para ganhá-lo!
- Para roubá-lo, hipócrita! Ele não te pertence por direito, nem uma só moeda. Tu
és o ladrão, não eu! Apenas fi-lo retornar em parte a quem ele de fato pertence. Se,
todavia, preferes viver encerrado e amaldiçoado em tua horrível teia, não te lamentes.
Tudo tem um preço. Se não queres pagar por tua liberdade, fazes a pior escolha. Vou-
me embora, adeus, senhor bufão!
- Espera! Já dei-te um terço do ouro, portanto paguei-te por minha liberdade.
Tenho o direito de exigi-la!
- A quem? O bufão calou-se, olhando-o nervosamente. Logo, entretanto,
insistindo:
- Fizeste um preço, assim assumiste um compromisso, cumpra-o agora!
- O ouro que me deste somente pagou uma parte de teus males. A virtude está
ainda escondida. Dá-me mais ouro, outro terço, ou terás perdido uma coisa e outra.
- Ladino, espertalhão! Não te darei!
- Então, adeus, homem tolo. Nada mais posso fazer para ajudar-te!
Sertório partiu e, como antes, voltou alguns meses depois. Ao contar para o bufão
que nada trazia e de novo distribuíra o ouro aos necessitados, ele sentou-se ali
mesmo, urrando feito animal ferido. Não conseguindo verter lágrimas, puxava os
cabelos e rolava pelo chão. Sertório assistia a tudo impassivelmente, ao término do
desespero houve um silêncio sepulcral. Finalmente, o bufão falou com voz desanimada
e arrastada:
- Voltaste não só para dar-me conta de teus atos, mas também para levar-me o
último terço do meu ouro.
- Exatamente, senhor Aldegundes! – confirmou simplesmente Sertório.
- E estás absolutamente convicto de que te darei?
- Não, totalmente, porém com muita resistência, creio ainda.
- Pois te enganas, astuto trovador. Desta feita não mais resistirei. Porém, não irás
só; iremos ambos juntos em tua companhia, meu ouro e eu.
- Bravos, senhor Aldegundes, mostras afinal sensatez! Todavia, permite-me aduzir
duas exigências: primeira, irás onde eu for; segunda, o ouro estará sob minha custódia,
fazendo eu próprio uso dele sempre que necessário.
- Então o ouro não mais me pertencerá?
- Nenhuma só moeda, se desejares encontrar tua virtude, naturalmente. O bufão
estava realmente desalentado e esgotado e fez um breve aceno de cabeça
concordando. Tal foram essa facilidade e submissão que Sertório de novo
surpreendeu-se.
A noite parecera não produzir bons eflúvios na alma de Aldegundes. Pela manhã
acordara irritado e maledicente, resmungando entre dentes pelos cantos aonde ia.
Porém, se a alma de todas as coisas ali se regozijava, incluindo o dócil animal que
sacudia a cabeça em assentimento, Aldegundes, ainda surdo para a magia dos sons,
caminhava ensimesmado em seu egocêntrico e descolorido mundo, tão descolorido
como era neste momento o seu rosto cor de cera. Mas Sertório não se incomodava,
acostumara-se com almas assim em suas andanças e retornou a viola às costas,
passando a assobiar e a murmurar trechos e variações de seu grande repertório.
29
Não muito haviam caminhado o bufão pediu para descansar. Sertório, ainda
assobiando, freou Firmamento, sentando-se de lado na cela, dobrando uma perna.
Aldegundes encostou-se num tronco de árvore e se esticou, gemendo. Como o tempo
passasse, Sertório chamou-o para continuar viagem por que havia muito a vencer.
Aldegundes não quis obedecer e Sertório tomou posição tocando Firmamento. O
bufão, vendo que ficaria para trás, levantou-se de imediato e os alcançou poucos
passos adiante. Mal tinham vencido curta distância, Aldegundes pediu novamente para
descansar. Sertório mais uma vez aquiesceu, pulando de Firmamento, desta feita
andando pelos arredores à cata de frutas silvestres, nada encontrando. Pouco depois,
insistia novamente para prosseguirem e retomava a iniciativa. Numa terceira vez, o
bufão resolveu pedir-lhe para montar, ao que Sertório concordando com malicioso
sorriso, estendeu-lhe a mão puxando-o para o dorso do animal. Adiante, era Sertório
quem descia e puxava Firmamento pelas rédeas a fim de não forçá-lo em demasia,
pois além dos cavaleiros, o animal levava muitos quilos em ouro e dois grossos
cobertores. Depois o bufão descia e andava e Sertório cavalgava.
Prosseguiram viagem por dez dias. Sertório tinha muitos amigos e os ia visitando.
Nessas paradas, aproveitavam para alimentar-se, às vezes dormir sob seus tetos. Ao
final, Sertório pagava-lhes. Alguns, a exemplo do lenhador, não aceitavam o
pagamento; outros mais necessitados, sim. Por todo o trajeto presenciaram também
pobreza ou miséria. Sertório, condoído, ofertava-lhes um pouco do ouro para amenizar-
lhes o sofrimento. Cada punhado de moedas distribuídas - guardado o devido cuidado
para não lhes mostrar de onde as retirava e quanto possuía - pois os sacos passavam
por bagagem comum embrulhados pelos cobertores, Aldegundes contorcia-se e se
sentia apunhalar. Por causa destas extravagâncias do trovador, o bufão tornara-se
mais ainda taciturno, quase assustador a quantos o viam com sua carranca.
30
Em lá chegando, Sertório foi recebido com calor e levado para um dos aposentos
de hóspedes, o mesmo sucedendo a Aldegundes. Após o banho e vestido com um
hábito emprestado, Sertório compareceu diante dos religiosos. Na oportunidade,
contou-lhes somente parte da história, pois se detinha à promessa do silêncio feita ao
bufão e ofereceu-lhes o ouro que restara a fim de que o utilizassem como achassem
melhor. Antes, porém, pediu-lhes licença, derramando o ouro no chão, ficando a
remexê-lo por uns momentos, finalmente se levantando e mostrando-lhes uma moeda.
- Eis o terceiro deles. A cada terço do ouro encontrei dentre as moedas um dobrão.
Estranho valor de um país longínquo, logo não pertencente ao nosso padrão, por isso
retirei-os. Fico com eles até saber ao certo o que fazer.
montar, mas ele recusou a oferta com um gesto rude. Sertório então pulou para a cela
e tocou Firmamento. Aldegundes o seguiu.
O sol parecia mais radiante, o ar mais leve e o céu mais limpo. Eles retomaram a
estrada e desapareceram da vista dos religiosos acompanhando a sinuosidade de um
pequeno monte coberto de capim rasteiro. Sertório começou a assobiar, fingindo não
se importar com o estado de espírito do companheiro. De vez em quando o olhava
disfarçadamente, mas como ele em nada se modificasse, calou o solfejo e falou:
- Estranhas e misteriosas são as coisas criadas por Deus. O homem, outra de
Suas criações, vive perdido no meio delas. Pode ele, realmente, atribuir valores sem
conveniências se tem o péssimo hábito de só olhar de fora, valorizando pelo momento
ou o desprezando? Quando possui vangloria-se e exalta-se. Quando não possui luta
absurdamente até a morte para possuir. Quão mísero e insignificante é o preço de sua
vida ao cambiar-se com os bens terrenos, passando a valer menos do que tudo. Cruel,
eis no que se transforma! Insano, eis o que é! A alma do mundo grita e se agita e ele é
agitado e impelido para ela num roldão impressionante. Nada vê senão ao seu próprio
ser: insignificante e perecível, tão perecível como são todas as coisas da natureza
visual. Como chamá-lo para que refreie o seu ímpeto de ambicionar e destruir; de que
maneira acordá-lo de seu insensato sonho, para não dizer tenebroso pesadelo? O
sofrimento, eis a ponte abençoada que se levanta. Esta perene dor que nunca morre e
ao devido tempo vem devorar ilusões e destruir ao próprio homem! - ele mirou-o
novamente e o bufão lançou-lhe olhar assustado. Vendo que fazia algum progresso,
continuou - Olha tu, o teu próprio mundo. Que fizeste em cento e cinqüenta anos? Se
hoje morresses e em seguida renascesses em idênticas circunstâncias, certamente
repetirias os mesmos erros, tornando-te, de novo, no mesmo infeliz homem. Vês como
os valores atribuídos ao mundo misturam-se de tal forma em tua consciência que não
os consegue isolar e a eles te subjugas? E o que representam tais valores senão
efêmeros conceitos mundanos, modelados pela alma do mundo, voluptuosa e cega?
Mas consegues de fato entender o que te digo?
meu confidente, confiando-te o meu segredo. Que ganhei com isso? Foi-se o meu ouro
por tua intromissão e sou mais infeliz e pobre do que nunca!
- Não te queixes, homem injusto e insensato se te libertei da maldição do ouro, já
esqueceste? Viveste acorrentado ao ouro por mais de um século. Não o possuís mais,
é verdade, todavia é igual verdade que ele também não mais te possui e agora andas
livre e sem temores. O bufão dando-se conta desta realidade franziu a testa e seus
olhos apertaram-se instantaneamente. Ficou assim por um breve instante, mas logo
recomeçou olhando para adiante:
- Nem tudo está fácil, resta ainda minha aliança. Possuo a alma presa aos
malignos poderes!
- Desejas ainda deles libertar-te ou pretendes desistir?
- Naturalmente que desejo libertar-me. Por que haveria de querer ficar
escravizado?
- Então é chegado o momento de procurarmos pela virtude! O bufão estancou,
olhando-o com a fisionomia alterada, arregalando os olhos e apontando-lhe o dedo:
- Que dizes? Não a procuraste até hoje? Enganaste-me o tempo todo? Sertório
puxou as rédeas e parou Firmamento, apoiando a mão sobre o salpicado lombo do
animal, virando-se para responder:
- Não te enganei, senhor Aldegundes. Disse-te seguidamente que andava a espera
que o momento eleito acontecesse. Cumpri primeiro de livrar-te de um cativeiro, agora
cuidamos ambos do outro.
O apresentador e dono do circo, em voz solene, disse que Agnes havia chegado
naquele mesmo dia e aquela seria sua primeira exibição. Ninguém, nem mesmo ele, a
tinha visto atuar e, como todos, estava também curioso. O que ela faria? Encerrar-se-ia
na urna e mandaria que ateassem fogo, dali saindo somente quando a madeira já
estivesse consumida!
Feito o pedido para que abrissem alas, Agnes surgiu de dentro de uma carroça sob
uma capa vermelha que se arrastava pelo chão, feito um manto. Vinha apertando com
uma das mãos o capuz que lhe encobria a cabeça e parcialmente o rosto, deixando
unicamente os olhos e parte da testa pouco descobertos. As pessoas abriram espaço;
ela percorreu o pequeno trecho subindo o ressalto e parou diante da urna. O povo se
assustou com a estranha figura, se afastando uns passos. Dois homens abriram a urna
e ela entrou. Eles começaram a juntar palha seca de um dos fardos ali deixados e junto
à Agnes passaram a encher os espaços internos da urna. Os demais fardos foram
empilharam à volta. O silêncio era absoluto, ouvindo-se tão somente os ruídos
provocados pelos homens que realizavam a tarefa. Estando tudo preparado, eles
acenderam uma tocha e atearam fogo na palha de dentro da urna, fechando-a, e em
seguida nos fardos, se retirando.
Ele somente meneou a cabeça e caminhou até a proximidade da carroça onde ela
se encontrava. Sertório ficou a observá-lo. O bufão chamou, vendo a cortina abrir-se e
o rosto do dono do circo aparecer na porta. Pediu-lhe então para ficar e trabalhar. Faria
qualquer serviço em troca de comida e dormida, nada mais. Mediante tal
compensatória oferta e como estivessem sempre a precisar de braços para o trabalho,
ele o aceitou. Ademais, sendo anão se confundiria com os especialistas do circo,
podendo até figurar em espetáculos. Como Aldegundes fosse aceito, Sertório
aventurou-se a também pedir pousada e comida; em troca cantaria e alegraria aos
artistas.
- Já temos músicos, senhor, não precisamos mais!
- Devem ser bons, não os desmereço, mas o que trago comigo é algo que eles
certamente não possuem!
- O que, senhor?
- A alma da arte. Ela vive em mim é meu alimento. Mas aprecio compartilhar dela
com todos que a amam!
Veio o almoço e depois a hora de novo espetáculo. Eles haviam construído outra
urna sobre o ressalto de terra providenciando que, tão logo o fogo se extinguisse,
lançassem novamente um cobertor sobre Agnes a fim de que ela não expusesse sua
nudez, como já acontecido. Agnes entraria na urna e lançaria fora a capa fornecida
pelo dono do circo tomada emprestado de uma equilibrista. Tendo-a largado, eles a
guardariam por que não podiam, a cada espetáculo, dar-lhe uma nova, embora aquela
que se queimara, ela a tivesse trazido.
36
Neste dia, Aldegundes não se acalmou. Realizava suas tarefas buscando passar
sempre próximo à carroça na intenção de vê-la. Não dormira aquela noite. A imagem
espetacular de Agnes, seu rosto, seu sorriso, tudo dela impregnara-lhe a memória. Ele
esquecia-se e aos percalços, ao ouro perdido, à maldição, à infelicidade que por toda a
vida permeara-o. Agnes passara a viver nele obsessivamente, a sugá-lo, ao mesmo
tempo a alimentá-lo. Desejava vê-la novamente, depois mais, a vida inteira, nada lhe
importando a partir de agora - somente Agnes!
A notícia sobre Agnes havia corrido pela cidade como um relâmpago, reforçada
pela propaganda que os componentes do circo haviam feito neste dia para mais um
incrível espetáculo. À hora anunciada a praça superlotava. Para a garantia da
arrecadação, o dono do circo mandara coletar as moedas antecipadamente, não
obtendo aquilo que esperava, insistindo, porém, que, ao final, todos se sentiriam na
obrigação de pagar mais, tal a grandiosidade das apresentações. Porém, o lançador de
facas, o equilibrista, o levantador de pesos, o lutador que desafiava qualquer
adversário, os saltimbancos; nenhum destes, nem outro qualquer, prendiam a atenção
dos espectadores. O público quase inteiro se postava impacientemente diante da urna
de madeira parcialmente invisível, encoberta por lances de véu. Havia ruídos,
nervosismo e agitação. Hoje não se viam crianças, nem mocinhas, mas homens de
muitas categorias e profissões, religiosos e mulheres. Como as atrações ali exibidas
não causassem mesmo maior interesse, e vozes já exigissem a presença de Agnes, o
dono do circo resolveu atender. Não seria bom o nervosismo de um público assim
aumentar.
O povo agora a temia. Todos concordavam que ela não podia ser humana. E se
resolvesse se voltar contra eles? Era perigosa, precisavam fazer algo! Quanto mais
confabulavam, mais iam se afastando, temendo e rezando, pedindo aos céus por uma
miraculosa intervenção. O pessoal do circo, igualmente confuso e amedrontado,
também se afastara, a nada mais se aventurando. O dono do circo, aproveitando-se de
que não reparavam nele, correra e se escondera, temendo represálias. Sertório, de
longe, montado em Firmamento, contemplava os acontecimentos com impassibilidade,
aguardando o resultado.
Mas dentre todos, havia um só que não arredara pé e fiel espectador permanecia
admirando-a. Com a mecha novamente à mão, Aldegundes apertava-a fortemente:
estático, extasiado, ardente, não perdendo um só de seus movimentos! Ali estava
Agnes, a mulher mais extraordinária que jamais vira em toda a sua secular vida. Ela o
fervilhava, agitava-o; rolava-lhe torrentes de lavas pelo sangue; produzia-lhe indizível
torvelinho de paixão! E ele ali estava: destemido, reverente, apaixonado, ansioso e
apelante! Ele a via e a desejava; ela pulsava-lhe, explodia-lhe! Era o peito, o coração, o
sangue, as mãos, era sua alma - toda Agnes!
38
Tendo se conscientizado do perigo, ele se tomou de tremor, que nada tinha a ver
com a sucessão de abrasantes desejos que dele se haviam apossado traduzidos em
incandescente paixão, e apelou-lhe quase sussurrante, procurando conter-se na
excitação;
- Por favor, eles vão maltratar-te!
Ao escutar estas palavras, ela baixou o rosto encarando-o. Ante o ardente olhar,
Aldegundes sentiu o mundo rodopiar dentro de sua cabeça e chamuscantes faíscas
salpicar-lhe o corpo, cegando-o para tudo mais, produzindo um manto de trevas em
derredor. Agora só ela existia. Ela era-lhe a vida, o alento, o mundo, a deusa de todas
as coisas que se resumiam na sua única soberana e soberba presença. Essa ilusória
sensação, porém, logo diluiu-se, como se diluiu o anel de fogo que a circundava,
expondo-a ao perigo e à sanha da multidão.
Neste comenos, a gente do circo, às pressas, arrumou suas coisas e fugiu pelo
outro lado da cidade, dando graças que o povo os tinha esquecido, mas certo de que
logo retornaria. Com efeito, o povo voltou furioso para a praça a fim de arrasar o circo.
Necessitava extravasar a ira destrutiva que deles se apossara, mas não o encontrou,
ficando desapontada.
Por quanto tempo permaneceu desfalecido, não conseguiu saber. Foi dar-se conta
no momento em que abriu os olhos, sentando-se assustado, vendo-a ali, em pé, a olhá-
lo e a sorrir-lhe. Levantando-se meio atordoado, não teve tempo de pensar em nada,
40
porque escutou ruídos à esquerda. Era Sertório que vinha cavalgando por entre
arbustos e árvores. Mas Aldegundes não chegou a vê-lo. Atrás de si, escutou ruídos
mais fortes, virando-se. Eram os seus perseguidores, que os vendo, gritaram furiosos
feito um bando de índios selvagens e investiram. Um deles, soldado da polícia, mais
arrojado, preso à forte sugestão dos fanáticos, portando somente a idéia do extermínio,
apontou sua lança para Agnes arremessando-a. Aldegundes, percebendo aquilo
segundos antes, pulou adiante, recebendo a lança no peito, sendo trespassado. Não
satisfeitos, eles continuaram a avançar com a mesma fúria e outro deles apontou nova
lança contra Agnes. Ela, porém, levantou um braço produzindo uma cortina de fogo em
derredor, assustando os cavalos que frearam, jogando-os a quase todos ao chão.
Logo o fogo decresceu e sumiu. Sertório que a tudo observara, aproximou-se, indo
atender Aldegundes. Porém, era tarde. O bufão não mais vivia naquele pequeno e
disforme corpo. Seu rosto mostrava-se pálido e os olhos estavam fechados. As mãos
seguravam a mortífera lança; o sangue escorria-lhe abundantemente pelas vestes, indo
manchar a verde relva. Sertório olhou em torno ouvindo um sibilante som e seus olhos
puderam perceber uma forma clara e ardente que se esboçava e se afirmava. Atrás
dela e em redor, formas negras pretendiam abraçar, mas não ousavam, sendo
rechaçadas. Em novo seguimento, ele viu as chamas conformar-se em Agnes, mas
não se sustentavam, transformavam-se ao mesmo tempo em serpente que se enrolava
em torno da alma de Aldegundes, produzindo um tipo de energia que mantinha à
distância as formas negras.
Aldegundes, neste espaço etéreo, permanecia inerte com olhos fechados, qual seu
corpo físico na Terra. Sem dúvida seria levado para regiões mais altas, a salvo das
incursões das trevas, a fim de ser tratado e mais tarde conduzido ao Tribunal dos
Justos onde escutaria sua sentença. Sertório, com as poucas ferramentas encontradas
na carroça, cavou pequena cova ali mesmo, enterrando o corpo do bufão, envolvendo-
o no mesmo lençol com que cobrira Agnes. Em seguida, fez uma cruz de paus e cipós,
fincou-a, e orou por ele. Depois subiu na carroça, conduzindo-a até a primeira
estalagem fora da cidade, deixando-a lá com uma gorjeta e a recomendação de que
avisaria o pessoal do circo onde reavê-la e aos dois cavalos.
De volta ao mosteiro, relatou-lhes toda a história desde o início por que não
precisaria mais reter-se à promessa feita ao bufão. Finalizando, estendeu ao principal
uma pequena algibeira de couro, pronunciando em voz quase grave as seguintes
palavras, que soaram como uma profecia:
- Eis aqui os três dobrões que separei do ouro amaldiçoado. São como três irmãos
estrangeiros que viveram as experiências do mal; três flores do pântano que realizaram
a alquimia da terra; três criações que havendo mergulhado e conhecido, virão levantar-
se sob a plenitude da vida e sobre o ontem. São o amanhã que se desvelará para os
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homens de pouco viver. Estranho, não? Três peças, três moedas que cruzarão
destinos!
Anos mais tarde, dois monges partiriam para terras distantes cruzando o mar, com
a missão de fundar outro mosteiro, levando entre seus objetos pessoais a algibeira de
couro e os três dobrões.
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OS TRÊS DOBRÕES
RAYOM RA
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Eram-lhe confiadas as mais difíceis tarefas. Ele sempre sabia o que fazer, qual
decisão tomar, qual o momento de atacar ou de aguardar. A inteligência, o apurado
faro para os negócios, as perfeitas e objetivas análises: tudo isto, sem dúvida, o
tornava o homem mais importante daquela importante empresa. Só não lhe tinham
oferecido o cargo de presidente, isto o próprio presidente não faria. Hermes Roubard
acumulava cargos e títulos e manipulava o dinheiro com extrema facilidade!
Possuía uma bela casa onde morava. Investia em ações, letras; obtinha
rendimentos. Recebia visitas importantes, de vez em quando para retribuir às atenções
promovia e organizava festas. Hermes Roubard era admirado, desejado, invejado!
O tempo ia passando e sua fama crescia. Mas um dia deu-se conta de algo a
incomodar-lhe. Que seria? Era alguma coisa a roer-lhe por dentro, a tirar-lhe a
concentração não o deixando em paz! Cansaço! Boas férias junto de amigos
certamente lhe fariam bem!
Resolveu interromper as férias retornando a casa. Não lhe foi difícil arranjar uma
boa desculpa. Chegou sem se anunciar ficando dias trancado. Tentava ler, concentrar-
se em alguma coisa. No meio das madrugadas, sob a argêntea lua, caminhava pelo
enorme pátio nas floridas alamedas; sentava-se na grama, andava em redor da piscina,
roía as unhas e pensava. Pensava sobre si, sua carreira, sua vida. Mas por que
pensava tanto? Não sabia também responder!
Roubard proibiu abrirem os portões e ninguém mais veio visitá-lo. O tempo foi
passando, os empregados foram embora temerosos de suas esquisitices. A governanta
foi a última a se despedir.
- Coitado do senhor Roubard, tão moço e já ficando louco!
Um dia o presidente veio visitá-lo. Roubard não se importou com sua presença
ficando ali mesmo sentado sobre a alta grama. A empresa precisava dele, do seu
talento e inteligência. Muitos problemas haviam surgido; enfrentavam tremendas
dificuldades porque ele lá não estava. O presidente implorou, propôs-lhe dobrar sua
retirada, a participação nos lucros: ele não aceitou.
- Por que está jogando fora todas essas coisas, Roubard?
- Porque não sou feliz!
Pouco depois retornava num jipe com dois homens. Traziam todos os acessórios
necessários. Terminado o trabalho pagou-lhes e deu-lhes gorjetas. Eles saíram
satisfeitos da vida, desejando-lhe mil felicidades. Roubard partiu. Deixava tudo
exatamente como estava. Na mente portava uma só idéia: o caminho da felicidade! Por
onde ia olhavam-no curiosamente; ele não ligava a nada; acariciava aquela idéia com
paixão e desejo - aquele sonho!
Deixou a cidade, ganhou estradas, cortou por atalhos, cruzou sobre uma ponte e
rodou por outros lugares.
- Onde estará este caminho, onde? - Adiante o combustível terminou - Raios, e
agora? - Nada havia por perto, ninguém para auxiliá-lo, ele abandonou o carro.
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A tarde logo terminaria, mas o Sol continuava inclemente. Ele parou à margem
daquela estrada de terra para descansar. O desânimo ameaçava enlaçá-lo, ele lutava
para não se entregar. Tinha forças ainda, por quanto tempo? A sede e a fome o
incomodavam, porém o que isto representava diante de sua busca? Na primeira curva
enorme susto: adiante da estrada, a alguns metros, os dois caminhos! Ele correu...,
quanta emoção! Tão excitado ficara que somente foi reparar em alguém sentado ali,
entre os dois caminhos, ao chegar. Era um monge, Roubard reconhecia o hábito. Um
desapontamento o tomou!
- Boa tarde, meu filho. Sente-se, descanse um pouco! - Roubard sério, um tanto
arfante e sisudo, sentou-se ao lado do monge - Parece-me sedento e faminto. Tome,
beba de meu cantil, coma de meu pão!
Roubard quis recusar. A sede e a fome não lhe permitiram. Tomou o cantil e o pão
das mãos do monge, bebendo avidamente, mastigando com instinto de lobo. O monge
olhava tranqüilamente para adiante. Ao término, Roubard devolveu-lhe o cantil. O
monge, com gesto sacerdotal, recolheu-o.
- Chamo-me Antônio, irmão Antônio, você como se chama?
- Hermes Roubard! – respondeu contrariado.
- Sabe, Roubard, estou aqui há quase uma hora. Eu sabia que você chegaria a
qualquer momento. Roubard deu um pulo, pondo-se de pé. Seu rosto tornou-se
carmim.
- Sabia, como? – encarou ao monge.
- Um monge conversa com Deus todos os dias. Ele quando quer responde. Tive
uma visão, você acredita em visões?
- Não sei... Nunca tive uma.
- Pois bem, a visão mostrou-me exatamente este lugar e a companhia de um
homem como você. Juntos trilharemos o caminho da felicidade.
- O senhor também, um monge?
- Chame-me de você, Roubard. De agora em diante marcharemos lado a lado. Não
se surpreenda comigo. Monges buscam exatamente aquilo que você busca, que todos
buscam consciente ou inconscientemente. A felicidade é de todos, pertence-nos. A
maioria, entretanto, não sabe como procurá-la se distanciando dela. Mas nós vamos
encontrá-la. A felicidade representa para nós a coisa mais importante: mais do que o
pão que comemos e a água que bebemos. Ela é como o ar, o alento etéreo, a
verdadeira vida! Um monge que não a almeja e não a visualiza, jamais chegará a
entender o significado da própria vida, o sentido de viver, nem um homem do mundo
como você. Somos, portanto, iguais, Roubard, você e eu, e juntos estaremos até o fim!
Resolveram partir. Roubard quis ajudar irmão Antônio a se levantar. Ele, com
gesto de mão, recusou, pondo-se de pé. Era alto, mais do que Roubard, e forte.
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Guardou o cantil e jogou as tiras da sacola de couro ao ombro. Ficaram diante dos
caminhos ao final daquela estreita estrada. Qual deles tomar?
- O da direita! Roubard simplesmente assentiu com a cabeça, e nele
enveredaram.
mulher na janela. O monge acenou-lhe. Ela correu para dentro sem nada dizer. O
monge e Roubard ali aguardaram. Logo a mulher reapareceu ao lado da casa; com ela
veio um homem. Ambos caminhavam depressa. O homem, tal como a mulher, mal
acreditava no que via; ao se aproximar ficou de cócoras a examinar o cão: abria-lhe a
boca e a cheirava.
Enquanto a mulher vestia o filho, o homem contava das dores na região do ventre
e rins sofridas pelo filho. Não o tinham ainda levado ao médico porque a viagem seria
longa e exaustiva e temiam pela resistência dele, posto que, para dita viagem, não
dispunham de um carro. Por outro lado, não fora em busca do médico pela incerteza de
sua disposição em vir atender ao chamado. No passado, fato ocorrido na vizinhança,
ele rejeitara a viagem, preferindo receitar à distância. Não podia mesmo se aventurar a
isso, porquanto não desejava deixar a mulher a sós na angustiante situação. Ademais,
a criança revelava, às vezes, alguma melhora, ficando tranqüila e sem queixas, isto os
enchia de esperança. Os vizinhos? Não podiam agora solicitar os seus préstimos por
causa do trabalho nas lavouras. Talvez amanhã alguém se apresentasse para uma
ajuda. Eram boa gente, mas necessitavam também lutar pela sobrevivência!
folhas e raiz de uma das plantas cortadas em pedacinhos. Ao término, mandou que os
desse a criança com intervalos de duas horas.
A conversa do café foi mais alegre, menos para Roubard que somente pronunciou
três ou quatro palavras. Antes de partirem, a mulher embrulhou uma broa de milho num
papel verde; fez outro embrulho menor com bolinhos e encheu o cantil do monge com
água fresca. Ele guardou tudo, abençoou-os e desejou-lhes abundância, paz e saúde.
O generoso casal os levou ao portão e pouco depois, à primeira curva, os viajantes
desapareciam detrás das longas e dobradas folhas de um milharal.
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por filósofos e estudantes de ocultismo, a despeito de muitos deles não terem chegado
a conhecê-las.
Neste ponto uma sinuosa dúvida há de estar se arremessando em seus
pensamentos, Roubard. Você estará se perguntando por que estou aqui ao seu lado,
procurando trilhar este desconhecido caminho chamado por nós de o caminho da
felicidade, se tanto eu conheço, tantas coisas superiores eu descrevo, se já não
deveria ser feliz? Eu lhe direi: sonhos de um monge que viveu mais da metade de sua
vida encerrado em prisão de portas abertas, tentando em vão alcançá-los, que por isso
angustiou-se derramando copiosas lágrimas. Não estranhe estar confidenciando estas
coisas porque são a verdade. A felicidade para mim ainda é uma questão abstrata e
filosófica.
Mas Deus teve piedade deste humilde servo fazendo-o ter mais uma visão em
meio a tantas que já tivera, desta feita anelada a um desafio de coragem e desapego: o
de trilhar esse caminho prático ao lado de um irmão de igual aspiração e coragem;
alguém que como eu, desejando e acalentando esta felicidade, disposto estivesse por
ela a sacrificar-se, deixando para trás tudo o que possuísse e que lhe fosse amargo
como o fel.
O sol alto viera banhar seus corpos com ardor. Eles se refugiaram novamente à
beira do caminho sentado-se sob uma árvore frondosa, e comiam. Por algum tempo o
silêncio acompanhou o repasto, como à mesa sacerdotal. Roubard novamente
apreciara os bolinhos e a broa de milho: estavam deliciosos. Irmão Antônio, sem fome,
comera somente meia fatia do pão e tomara três goles de água. Ao término, não se
levantaram. Algo os segurava por mais tempo naquela tranquila paragem. Irmão
Antônio, encostado no tronco, levantou os olhos divisando ao longe cumes de
montanhas vestidas de uma névoa azulada que já desmaiava. Mais acima, nuvens
escuras e enodoadas certamente deslizariam e trariam chuva. Ele baixou os olhos e
com mãos entrelaçadas mexeu os dedos grossos. Seu semblante tomara-se de uma
ansiedade qualquer, coisa que a alma sinalizava a querer retratar, tornar palavras.
- Numa de minhas visões - começou olhando para adiante - enquanto orava, vi
algo que permaneceu para sempre em minha memória. Eu saía à noite com lampião à
mão levando uma escavadeira. Ao ultrapassar os limites do muro do monastério,
encontrava um caminho. O caminho não era usual, e creio, raramente trilhado, vindo
terminar num barranco. Eu descia pelo barranco com grande dificuldade, escorregava e
me equilibrava o quanto podia; no sopé caminhava para a direita até achar uma pedra.
Da pedra para cima contava sete palmos, depois mais sete para a esquerda e
começava a cavar, encontrando um pequeno cofre envolto por uma capa de couro
apodrecida. Abria-o e retirava uma pequena algibeira, perfeita, intacta. Folgava o laço e
metia a mão dentro dela, encontrando três moedas de ouro, três dobrões! Com mil
trovões, quantos anos teria isso? Amarrava a algibeira à cintura por debaixo da veste e
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O caminho que trilhavam foi morrer sobre uma estrada também de terra.
Tomaram-na e prosseguiram. As pernas doíam-lhes obrigando-os a parar de trecho em
trecho. Uma nuvem de poeira chamou-lhes a atenção. Vinha pela estrada. Era de um
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caminhão com toldo que parou próximo a eles. O motorista meteu a cabeça para o lado
de fora mostrando sorriso e dois dentes de ouro, perguntando-lhes para onde iam. O
monge apontou para adiante.
- Para a cidade? – o monge confirmou - É muito longe, vou para lá também.
Venham subam! Eles subiram e se alojaram ao seu lado.
Uma chuva intensa obrigou o motorista estacionar fora da estrada. Passaram para
a carroceria e descansaram. Mais tarde, o homem resolveu cozinhar. Num fogareiro,
fritou lingüiça e fez café. Comeram com broa e com os bolinhos que restaram. A noite
veio alcançá-los ali mesmo e dormiram sobre lona, protegidos pelo encerado, sob a
forte chuva que aumentara.
Roubard não conseguia mais dormir, somente cochilava. Tentava ver o homem
deitado, mas devido à escuridão somente o percebia. Acordara inúmeras vezes
imaginando um novo e terrível acesso de loucura e o homem a se precipitar sobre eles
a fim de matá-los. Em certa hora, resolveu levantar-se não vendo o monge ao seu lado.
Preocupado, pulou para fora do caminhão. A chuva havia cessado; o sol ressurgia
brando e limpo. Irmão Antônio, ventarola à mão, lutava para manter vivas uma dúzia de
brasas. Ao lado havia três montes de folhas. Roubard tossiu e ele virou-se pedindo-lhe
que acordasse o homem, Roubard voltou para o caminhão tocando-o no ombro com
certo temor. O homem acordou assustado e acompanhou Roubard.
A profunda miséria que ali viam chocaria almas sensíveis. O rosto do monge
contristava, a fisionomia de Roubard alterava-se. Para este seria nojo, mau cheiro do
pobre. Quanto mais andavam mais miséria iam vendo. Crianças sujas, mulheres
seminuas, homens desalentados, gente doente e abandonada. O monge parou e
segurou o braço de Roubard. Gotas de suor sobressaíam de sua larga testa. Ele arfava
ligeiramente; os olhos mostravam um tipo de ânsia, de sofrimento íntimo. Miséria assim
monge algum daquele monastério poderia ter visto, nem Roubard homem refinado e de
sociedade. O monge puxou-o a um canto, para trás da parede de tijolos de um
casebre.
- Roubard, quero dizer-lhe algo que trago guardado. Não lhe contei tudo acerca
das visões que tive. Não era ainda o momento ou talvez não tivesse a certeza, mas
contarei agora. Ao retornar com a algibeira à mão trazendo os dobrões, e ao dá-los ao
homem despido, não lhe pude ver as feições. Também não as vi do homem com quem
trilharia esse caminho. Esta certeza fui tê-la ao vê-lo chegar. Agora, novamente, a
certeza está em mim, e vejo tudo nitidamente. As duas pessoas eram uma só: você!
Tome a algibeira com os dobrões, são seus!
épocas também diferentes a julgar pelos tipos. Curiosamente, em nenhum deles podia
ler os anos que tinham sido cunhados, nem suas origens.
- Guarde-os, Roubard; amarre a algibeira à cintura, sob a camisa. Não deixe que a
vejam; não a perca! Roubard obedeceu.
Uma mulher veio correndo. Era magra, mal vestida, e chorava. Segurou a mão do
monge, chamando-o de padre. Seu filho estava morrendo, seu único filho; apesar de
toda a miséria ela o amava e não queria perdê-lo! O monge a seguiu juntamente com
Roubard. Penetraram por vielas, espremeram-se entre paredes, pularam sobre esgotos
fétidos a céu aberto. Tudo era desolador; aquela gente vivendo jogada como se não
pertencesse a um mundo de homens! Vez por outra encontravam abrigos em melhores
condições. A grande maioria carecia de todas as coisas. Finalmente chegaram. Um
menino esquelético deitava-se sobre um colchão aos pedaços. De tão fraco nem abria
os olhos. O monge rezou-o impondo-lhe as mãos. Ele necessitava mais do que rezas:
de alimentação. O monge chamou Roubard, mandando que a mulher aguardasse.
- Tem algum dinheiro, Roubard?
- Nenhum.
- Então venha comigo, precisamos fazer algo!
Saindo daquela parte miserável chegaram a meio caminho entre o rico e o pobre.
Havia pelas imediações um grande empório, farto de alimentos. O monge e Roubard
entraram, um homem gordo, de bigode, veio atendê-los. O monge explicou ao que
vinham, pedindo algum alimento: produtos vegetais, ovos e vinho, se possível. O
homem não se sensibilizou; nada podia fazer. O monge propôs-lhe trocar alimentos por
um dia de trabalho de Roubard, talvez dois. Roubard olhou-o assustado. O homem
mirou-o não gostando de sua aparência. O monge explicou que Roubard era homem
de dar sorte, se aceitasse a permuta certamente seus lucros aumentariam. O homem
coçou as mãos rechonchudas, o queixo, enroscou os curtos dedos nos cabelos e
propôs uma quinzena de trabalho. Em troca, além dos produtos pedidos pelo monge,
daria também roupas limpas para Roubard, refeição e dormida no fundo do
estabelecimento.
- Para dois? - insistiu o monge
- Está bem, para dois.
A morte foi vencida. Novos casos surgiram. Roubard foi ficando: mais uma
semana, um mês. O povo admirava-os. Roubard não gostava muito disso, daquela
gente mal cheirosa. Irmão Antônio atendia-a, falava-lhe, orava e curava. O homem vivia
a rir de satisfação.
O monge trabalhava sem tempo para meditar. Roubard de novo pensava. Como
antes, vinha sentindo uma onda de tristeza e enfado. Começou a desviar a atenção do
trabalho. Irmão Antônio logo notou-lhe a mudança, porém aguardou. O processo
tomava corpo. Roubard já não conversava. Finalmente abriu-se contando ao monge
que, como outrora, aquele trabalho o cansava e desejava fazer outras coisas.
- Que coisas, Roubard?
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- Algo assim como você faz. Gostaria de saber orar, curar, conhecer fórmulas
mágicas. Há um vazio em mim, uma necessidade de vida, de um estímulo interno.
Quero saber meditar, abençoar, amar. Quem sabe seja isto que me faz falta!
Irmão Antônio olhou-o com admiração. Seu largo rosto aclarou-se num brando
sorriso. De mãos unidas à frente, sentava-se sobre pequeno banco de madeira no
fundo do galpão como Roubard. Ali pouca coisa mudara, eles não faziam questão de
conforto, dormiam por lá mesmo. Roubard olhava para o chão e o monge falou:
- Por quanto tempo venho esperando ouvir isto, companheiro. O excelente trabalho
realizado por você foi, sem dúvida, importante. Sem ele pouco ou nada poderíamos ter
feito em benefício dessa gente pobre e deserdada. Todavia, a alma é insaciável; é
permanentemente observadora; ela pede sempre mais, preside os dramas de nosso
ser inteiro. E somente nos alivia com as coisas vindas do alto. Tudo é bom e
necessário: o trabalho, o alimento, a cura. Ajudam-nos a bem viver com nossas
consciências e com os homens. Porém, em certas crises de nossas vidas, o ego
reclama autonomia, liberação de liames com o mundo; ele deseja novas experiências.
Este é o segundo vislumbre deste seu momento, Roubard. O primeiro deu-se ao optar
pelo caminho. Vou ajudá-lo!
Roubard decidiu não trabalhar mais como vinha fazendo. O comerciante assustou-
se:
- Vai deixar-me?
- Não, ainda. Quero agora trabalhar três dias na semana com os mesmos ganhos.
Os dias restantes quero vivê-los inteiramente com Irmão Antônio. O homem protestou,
propôs aumentá-lo, o queria trabalhando o tempo todo, a semana inteira.
- Aceita o que proponho ou vou trabalhar para o vizinho? O homem aceitou.
Roubard passou a conviver mais de perto com a miséria. Agora a tocava, ajudando
ao monge em quase tudo. Ouvia e aprendia.
Certa manhã o monge mandou-o visitar uma doente. Era moça bonita, inteligente,
embora inculta. Ela recuperava-se e Roubard lá voltou outras vezes. Uma paixão
repentina brotou em seus corações. Roubard passou a visitá-la às noites. Esta paixão
ardia-lhe e o dividia. Noites em que não a visitava, desejava lá estar. Ela era ardente e
cada vez mais apaixonada.
Havia uma enxada a um canto usada em suas hortas. Roubard lançou-lhe súbito
olhar e agarrou-a com decisão. Saiu do galpão e no pequeno pedaço de terra ao fundo,
afastou algumas madeiras apoiadas na parede começando a cavar profundamente.
Exaurido e ofegante, com mãos trêmulas, abriu a algibeira e derramou sobre a palma
direita uma moeda, apertando-a firmemente. A moeda aqueceu-se; ele fundia-se nela.
Não sabia o que pensar ou dizer, então decidiu jogá-la no buraco, fosse o que fosse!
Tapou tudo, bateu a terra, depois entrou correndo!
O sol vinha aquecer os seus corpos. Dentro em pouco a cidade estaria acordada e
todos os pobres se descobririam novamente órfãos. Um vento suavizara em brisa, a
brisa parecia abençoá-los. Já ganhavam o cenário das pradarias, das plantações. O
monge assobiava, Roubard caminhava taciturno como nos primeiros tempos.
Estranhamente repudiava a decisão. Não entendia que caminho seria esse, embora o
caminhasse. Inquiria-se sobre esta perseguida felicidade. Vira dramas, dores e
misérias. Lutara com denodo para amenizá-los. Aplicara-se; tornara-se discípulo de um
monge, ao mesmo tempo seu confidente. Tudo fizera ao seu alcance, mas o caminho
nada ainda acrescentara-lhe. Ao contrário, trouxera-lhe de recompensa outra profunda
dor; para esta não havia agora remédios ou lenitivos!
Como num filme lento a cores os cenários iam passando. Aqui e ali flores silvestres
se ofereciam em buquês naturais. Irradiavam vida, coloriam-se pelo sol! Adiante, eram
os altos e imponentes bambuzais. Tocavam-se lá em cima, produziam curiosas
formações de arcos. As nódoas solares e os borrões das sombras escorregavam sobre
seus corpos.
Irmão Antônio cessara o canto, não solfejava mais. Os passos largos e o corpo
forte traziam aos cenários maior vigor. O vento ao tocar-lhe os ruivos cabelos
encaracolados parecia querer refrescar-lhe a têmpera, abrandar uma ardência,
amansar sua vontade férrea. A natureza provocava-o; ele se impunha; ela o respeitava;
ele a transformava!
Ao contrário do monge, Roubard era presa fácil. Seu próprio mundo o encerrava.
Não escutava o clangor inaudível ou a sussurrante voz inimaginável. Não desafiava,
não detinha a percepção do intuitivo: vivia o óbvio, o tangível. Era de alma ainda
indômita, atordoada. A dor e o sofrimento o polarizavam. Mas por obra do destino ali
estava. Trazia nas mãos um tesouro e no ventre uma fogueira!
Uma onda de vozes, gritos e estampidos os fez de repente atentar. Súbito, um jipe
carregado de lavradores quase os atropela. Empunham foices, enxadas e armas de
fogo. Surge um caminhão com outros homens do campo. Eles gritam, cerram os
punhos, clamam por vingança. Um trem apita, vem chegando. Irmão Antônio e
Roubard, curiosos, aceleram os passos alcançando à cidade. A anarquia é geral. De
um lado posicionam-se os lavradores, de outro o exército. Lojas estão saqueadas, as
vitrines em pedaços. Há carros tombados, incendiados. Há sangue, gente morta,
bombas explodindo, fumaça, uma verdadeira guerra!
Chegam reforços do lado dos lavradores; mas muito mais do lado do exército, o
trem os traz. A luta prossegue encarniçada. Levantam barricadas, novas mortes
acontecem, os lavradores debandam; muitos são seguros pelos homens do exército,
espancados e jogados nos vagões. A maioria consegue fugir com tiros às costas;
alguns ainda caem atingidos. O monge e Roubard escondem-se à distância, temendo
ser confundidos.
Porém, entre os homens essa paz não existe. Novos conflitos vêm à tona. Os
líderes dos lavradores revoltam-se, fazem comícios, ameaçam. Juntam-se a eles os
sem-terra. Torna-se iminente o perigo de invasões, de quebra-quebra, de queima de
plantações. Há negociações, desacordos, desafios. Lavradores de vilas distantes
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- Irmão Antônio - começou Roubard - passam-se sete anos desde que aqui
chegamos. Esta noite tive um sonho. Vi-me novamente retomando o caminho,
deixando para trás este lugar turbulento. Não estou certo sobre a profecia do sonho,
pois há tempos venho pensando em partir. Seria verdadeira a mensagem ou é
simplesmente manifestação de meu subconsciente?
- Não posso responder-lhe de maneira objetiva. Não tive visões a respeito. Mas,
como outrora, sinto-me inquieto, parecendo, tal como a você, que algo vem me chamar
e impelir-me para adiante. Se assim é partamos, não acha?
Roubard acordou no meio da noite. O monge dormia e ele assim o deixou. Ao abrir
a porta, o jorro argênteo esparramou-se em facho pelo chão. Não sabia porque aquela
insônia, aquela vontade de andar. Percorreu os arredores e notou que ao luar
conseguiria até encontrar uma moeda. Sim, era isso! Correu em busca de uma
escavadeira jogando-a sobre um ombro e saiu por um caminho. Andou quase um
quilometro sem rumo definido. Uma vontade repentina tomou-o e lançou-se
temerariamente mato adentro. Pensava pisar numa cobra venenosa, ver-se diante de
uma jaguatirica, um lobo do mato. Estava desarmado, tinha somente a escavadeira.
Todavia, continuou. Adiante cortou a estrada principal em diagonal e prosseguiu por
outro caminho.
O ar estava leve. Somente com muita suavidade a brisa vinha jogar com a copa de
uma árvore, com a folhagem de um arbusto ou balançar os compridos caules dos
trigais. Tão leve como o ar e a brisa macia, um calor se espalhava em seu peito e uma
sensação nervosa percorria-lhe todo o corpo. Tudo suave, estimulante, quase irreal. A
luz do astro celeste infundia-se em si; sentia penetrá-lo como num conto de magia. Isto
vinha criar-lhe um novo ânimo, impor uma coragem ante o desconhecido. Ele
caminhava, aspirava o cheiro do mato, ouvia o ruflar de asas de uma coruja, percebia o
quebrado e rasante vôo de um morcego. Mas nada realmente o assustava e
simplesmente prosseguia.
Adiante, formas escuras das árvores assomavam figuras fantasmagóricas, mas ele
não se permitia imaginá-las assim. Olhava-as com naturalidade, eram somente formas.
De repente parou. Chegara a um lugar descampado rodeado unicamente por touceiras
e pequenos arbustos. Sentiu vontade de cavar e cavou exatamente ali. Após um tempo
descansou. Levantou a camisa e desatou o nó da algibeira, retirando um dobrão!
contida. Ele tapou o buraco, disfarçou-o com touceiras de capim arrancadas nas
imediações, e preparou-se para voltar.
Súbito, uma luz penetrante varou a noite. Um poderoso farol surgiu ao longe em
medidos ziguezagues. Ele aguardou e logo ouviu o distante ruído da máquina. Viajor
noturno o trem vinha chegando. Minutos depois, em reduzida marcha, passava a
poucos metros de onde ele se encontrava, apitando e se anunciando.
Irmão Antônio pôs a mão no ombro daquele homem ao mesmo tempo amigo e
discípulo, e falou:
- Alegra-me ouvir isto, Roubard. Os anos para alguns se arrastam, para outros
voam como uma máquina cruzando o céu. Em você o peso começa a aliviar-se, não
em termos de corpo evidentemente, mas de alma terrena. Você não o sente mais como
um homem angustiado e martirizado - não agora. A balança alteia-se e abaixa-se, e o
fiel, você próprio, a controla e a ajusta. Existe ainda amargura em sua alma, porém
suportável; há também ilusões que ao devido tempo estarão descartadas. Tem razão,
Roubard, a felicidade é uma questão de tempo e ele preside à solução de nossos mais
intrincados enigmas. Ela vem vindo, chegará um dia, haverá de chegar!
Era um lugar pobre sem ser miserável. O povo olhava-os com curiosidade. Ao
barqueiro eles já conheciam. Um rápido comentário percorreu todos os pontos de
conversa. Logo alguém suspeitou que fossem dois missionários. Estariam chegando
para edificar uma igreja. Algumas mulheres se apresentaram, beijando-lhes as mãos.
Roubard não resistia, já se acostumara. O monge explicava-lhes que embora fosse um
sacerdote não construiriam igreja alguma. Pretendiam ficar ali, talvez para auxiliá-los
noutras coisas. O povo não se convencia.
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Alguns anos consumiram nesse labor, mas não muitos. O cansaço ou alguma
coisa já conhecida de outrora viria novamente encontrá-los. Decididos a não se deter
por mais tempo, partiriam pela madrugada sem nada avisar. Haviam ganho dois burros
para se locomover pelos lugares distantes e agrestes da região, nas visitas que faziam
para educar ou auxiliar as pessoas, e resolveram levá-los. Desta feita, foi Roubard
quem julgou tomar a decisão e sem excitação ou especial motivação mística cavou no
fundo da escola, com ajuda de Irmão Antônio. Antes de jogar o último dobrão dentro do
buraco, realizou o pequeno ritual de aquecimento da moeda na palma da mão,
pronunciando palavras de bons augúrios.
Ao romper do dia já estavam longe. Iam pelo mato rio abaixo. Paravam muitas
vezes para descansar. Não agüentavam mais as agruras de uma jornada como aquela
com a mesma disposição de outrora. Estavam quase velhos, precisavam cuidar-se. Por
dois dias viajaram no lombo dos animais, dormindo sob árvores, armando barracas e
fazendo fogueiras. Conseguiam pescar e comer peixe frito. Ao final do terceiro dia
cruzaram uma ponte; adiante tomaram uma trilha desconhecida embrenhando-se mais
ainda mato adentro, deixando o rio para trás. Pouco andaram logo acampando.
Dormiram mais uma noite sob o cricrido de grilos, o coaxar de sapos, o piar de corujas.
Ao crepúsculo de um novo dia levantaram-se, mas não foram muito longe. A poucos
metros dali viram um casebre de pau-a-pique com telhas de barro cozido. Curiosos,
aproximaram-se e chamaram. Ninguém veio atendê-los, eles abriram a porta: estava
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Suas vidas decorriam agora com poucas nuanças. Quando não estavam a cuidar
das plantações, ou a fazer reparos na casa, meditavam ou descansavam. Pouco
conversavam, somente o essencial; tinham se tornado autênticos eremitas!
Duas vezes ao ano, por alguns anos, esse homem agradecido voltou, trazendo-
lhes roupas, cobertores, calçados, algum mantimento, sementes, às vezes até garrafas
de vinho ou licores. Irmão Antônio e Roubard agradeciam e aceitavam. Em ocasiões,
ele dormia na casa partindo ao amanhecer, não sem antes pedir ao monge uma reza
ou uma benção.
Certa tarde chuvosa e fria, enquanto sentavam próximo ao fogão a fim de aquecer-
se, o monge começou a recitar qualquer coisa. A voz saía-lhe rouca e pausada.
Fechara os olhos deixando as mãos pousadas sobre os joelhos. Falava com grande
dificuldade, não tanto pela idade, mas por uma razão até então não entendida por
Roubard. Passado instante, a voz foi se tornando vibrante. O rosto se transformava do
inexpressivo ao jovial; a recitação, ainda vibrante, era agora acompanhada de gestos.
Cansa-me este lugar agora que meu companheiro partiu. Vou-me embora. Adeus,
irmão Antônio, adeus, monge! Deixo-o só. Perdoe-me se não suporto mais olhar para
estas coisas. A todo instante vêm lembrar-me de minha vida, de nossas vidas. Sei que
não adianta fugir por que a natureza não deixará de enviar sua executora impiedosa a
fim de retomar aquilo que me deu emprestado para se divertir. Porém, assim mesmo
vou andando, talvez para apressar este encontro último!
E Roubard se foi. Vestia-se como um pobre que realmente era. Levava ao ombro a
bolsa de couro velha e encoscorada, a única coisa que lhe lembrava do amigo. Ao
chegar ao rio sentou-se à margem para novamente descansar. Queria também molhar
os pés, refrescar-se. As pernas doíam-lhe, respirava com dificuldade; o calor era forte,
consumia-lhe energia.
Roubard instalou-se no banco, relaxou e dormiu. O trem sacudia; o banco era duro
e desconfortável; ele dormia e acordava. Antes do sol se levantar, Roubard estava
atento à janela; observava o panorama que aos poucos se tornava mais nítido. Viu
campos de plantios e lavouras bem tratadas. Surpreendia-se com as dimensões de
cada reserva, com a quantidade de máquinas, algumas estranhas e desconhecidas
para ele! Caminhões enfileiravam-se pelas estradas transportando homens àquela hora
da manhã, dirigindo-se para várias direções e sentidos ou circulando em torno dos
campos. A julgar pelo que via os homens estariam sendo transportados para fazerem a
colheita.
Com efeito, adiante viu campos e colheitas. Meia hora depois o agente anunciava
a próxima cidade já entrando em seus limites. Algo lhe despertou os sentidos, mas não
identificava exatamente o que seria. Na medida em que o trem se interiorizava,
Roubard procurava atentar para o tamanho da cidade. Seria grande, muito maior do
que a anterior de onde vinha!
A parada foi rápida. Logo o trem partiu. Um passageiro veio sentar-se no banco da
frente. Roubard sem conter-se o tocou ao ombro perguntando-lhe acerca da cidade,
das relações entre lavradores e comerciantes. Surpreso, respondeu-lhe que há muitos
anos não tinham qualquer problema entre classes. Isto pertencera ao passado.
Pequenos e grandes proprietários agiam com normalidade: plantavam e colhiam; os
produtos eram trazidos para os armazéns das cooperativas. Se problemas existiam
quanto a preços, decorriam das oscilações do próprio mercado, seriam de outra ordem.
Os lavradores, além do mais, tinham sindicato para representá-los, levavam suas
exigências às esferas legalmente constituídas. Negociavam, faziam suas
reivindicações. Havia escolas, hospitais, o livre culto das religiões. Nada lhes faltava
nas relações capital, trabalho e sociedade; tinham todas as instituições necessárias à
vida moderna e as faziam funcionar da melhor maneira possível.
O dobrão, pensou Roubard, o segundo deles. Havia-o enterrado próximo dali, não
lhe restava a menor dúvida, ele açoitara o mal, atraíra o progresso e o impulsionara!
Tomou-lhe as mãos e quis beijá-las, ela arrancou-as com violência e gargalhou até
cair de costas. Lágrimas inundaram-lhe os olhos, descendo pela barba. Ela silenciara
aquietando-se; unicamente os soluços de Roubard eram agora ouvidos.
Pela manhã a mendiga ainda dormia; ele deixou-lhe todo o alimento que restara.
Nada mais tinha para dar-lhe e orou fervorosamente, pedindo que sua alma finalmente
encontrasse a paz. Saiu cautelosamente temendo despertá-la.
As pernas mal obedeciam, o peito doía, ele arfava. Parava de trecho em trecho,
respirava com dificuldade e descansava. Súbita tonteira sobreveio-lhe; ele quis agarrar-
se, mas não tendo onde se apoiar caiu desfalecido.
Ao acordar estava sobre uma cama; via soro, balão de oxigênio, enfermeiras. Quis
levantar-se, não lhe permitiram. Que aconteceu? O senhor foi encontrado desmaiado à
beira da estrada por nossa ambulância. O médico colocou-o na maca trazendo-o para
o hospital. O senhor teve enfarte, precisa repousar. Não, eu tenho de prosseguir! Por
favor, fique quieto, senão vai piorar!
O homem contou-lhe que fora construído há muitos anos. Ele se lembrava de toda
a sua história porque era morador das redondezas. Dois missionários, um padre e um
homem comum, haviam chegado. O bairro era muito pobre, miserável mesmo, eles
tinham vindo para ajudar o povo. Construíram um galpão de madeira e à moda deles
transformaram-no em hospital e em muito mais coisas. Trabalharam com dedicação
pelo povo. Mas um dia se foram sem nada avisar abandonando o galpão.
Coincidentemente, no mesmo dia, veio um grupo de universitários, estagiários de
medicina e assistentes sociais que faziam um mapeamento das comunidades carentes,
segundo um programa de governo. De seus relatórios da miséria daquela gente, a
atenção do governo foi sendo despertada e como os jornais e a televisão passassem a
se interessar, uma comissão oficial de estudos foi enviada para definitivamente tratar
do assunto. Ao constatarem o abandono da população, fizeram planos para a
construção de um hospital, iniciando a obra no exato lugar do galpão. Demoliram
muitas casas transferindo moradores. Depois foi a vez de outras casas na periferia do
hospital, até que finalmente quase todo o bairro veio a ser demolido. O hospital
ampliou-se, outros prédios vieram fazer parte do bairro, segundo um projeto urbano
muito bem elaborado. Com o correr dos anos o bairro cresceu, o comércio expandiu-
se, mas o hospital permaneceu atendendo principalmente à população pobre.
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O homem se foi, Roubard sentado no meio fio sob uma árvore refletia acerca da
história. Uma leve tonteira veio cortar-lhe a reflexão; ele buscou inspirar com mais
vigor, seu corpo inteiro doía-lhe, os pés inchavam, as pernas tinham ficado
endurecidas. A tonteira foi passando, mas uma fraqueza veio instalar-se. Tinha fome,
talvez a fraqueza fosse devido a isto. Levantou a cabeça e viu dois pobres caminhando
em sua direção. Ao passarem adiante perguntou-lhes onde havia comida. No albergue
do hospital, estamos indo para lá.
No albergue deram-lhe roupas limpas, ele comeu ali pela última vez. Problemas
vieram mudar os seus planos e não pode comprar a passagem por que não tinha
documentos. Além de tudo, quem iria viajar ao lado de um mendigo? Ele saiu da
rodoviária desalentado e triste. Somente ali tinham exigido tal coisa, desprezavam-no.
Habituara-se às chacotas e ao escárnio, não ao desprezo. Estava, porém, decidido e
se pôs a caminho com todas as dores e dificuldades. Ao deixar os limites urbanos da
cidade e palmilhar a estrada, passavam-se três dias. Ele tossia muito, descansava a
todo o momento.
Roubard não agüentava mais. Ao longe, dentre confusas imagens, viu um grande
veículo imaginando que seria outro ônibus. Quem sabe aqui lhe permitiriam viajar nele?
Meteu a mão no bolso retirando o dinheiro que possuía mostrando-o. Era um
caminhão. O motorista ao vê-lo quase se lançando no meio da estrada, freiou o
veículo. Roubard pediu-lhe ajuda, iria até onde seu dinheiro pagasse. O motorista
puxou-o para dentro da cabine. O caminhão transportava carga coberta por um
encerado; por várias horas viajaram. Roubard, estafado, dormiu. O dinheiro que
segurava esparramou-se sobre o banco. Ao pararem num posto de gasolina, próximo a
um restaurante, o motorista acordou-o. Roubard, assustado, ajeitou-se. O motorista
disse-lhe que ia deixá-lo ali porque poderia comer e descansar. Roubard quis dar-lhe
todo o dinheiro, mas ele recusou e prosseguiu viagem.
Roubard piorava; as dores por vezes aumentavam, ele levava a mão ao peito.
Comprou um pão, tomou café e saiu a caminhar. Ingressou numa estrada qualquer e
afastou-se do movimento pesado da rodovia. A estrada veio cruzar um caminho no
qual ingressou. Via casas, quintais, pequenas plantações, arvoredo. A tarde estava
agradável, a temperatura amena. Mas Roubard não tinha condições de sentir
plenamente todas essas coisas. De vez em quando via pedaços mais profundos do
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céu, via nuvens brancas. Queria ver mais, desejava respirar o ar campestre, rever
pastagens, sentir o bucolismo da vida pacata. Dores profundas e lancinantes vinham
interromper esses desejos, tolher os seus passos, trazer-lhe angústias. Ele
cambaleava, levava a mão ao peito, gemia. O gosto estranho na garganta lembrava-lhe
sangue; o rosto queimava, a cabeça latejava: assim mesmo ele prosseguia!
Uma imagem livre, sem conecção alguma, assomou dos labirintos de sua mente:
era irmão Antônio! Ele sorria-lhe. Idiota, pensava Roubard. Veja a que estou reduzido,
ao que cheguei. De seus gloriosos e místicos sonhos nada restaram. Os dobrões,
aqueles traidores talismãs. Trouxeram esperanças inúteis, coisas e mais coisas. Vejo
agora, sinto claramente. Por minhas mãos eles escorregaram infiltrando-se na terra, no
mundo dos homens, semeando o progresso e a edificação de monumentos.
Monumentos a quê? À cegueira humana, ao orgulho das classes. Veja, Roubard, aqui
há escolas, os homens aprenderão coisas, serão doutores. Ali, Roubard, guardarão
seus produtos, os alimentos; a fome e o desconforto não os alcançarão. Aqui, Roubard,
o hospital magnífico atende aos esquecidos, aos que não têm onde cair mortos!
Malditos dobrões, malditas moedas de ouro. Enganaram-me o tempo todo, enganaram-
nos seu monge cabeçudo! Parte de minha vida carreguei-os julgando-os portadores de
alguma profética verdade, da anunciação de uma nova vida. Mas eles eram somente
três moedas: a magia estava em minhas mãos. Eu sou o culpado!
Uma dor mais forte fê-lo cair de joelhos gritando. Ele suportou aquilo por quase um
minuto. A dor atenuou e ele se levantou. Na mente aquele rosto ainda sorrindo. Estou
indo monge, estou indo! Deu mais alguns passos e chegou ao final daquele caminho,
ali se deitando. Fechava os olhos, via confusas imagens, deformações. Abria-os e
essas coisas continuavam. Um peso fez com que os cerrasse em definitivo: a dor agora
o torturava mais e começou a ouvir muitas vozes. Quis prestar atenção, não as
entendia. Aos poucos vieram a ser abafadas: uma só voz passou a ecoar claramente:
era forte, enérgica, ele a conhecia muito bem:
- Nós vamos encontrá-la, Roubard, precisamos dela. Ela representa para nós a
coisa mais importante; mais do que o pão que comemos e a água que bebemos!
- Fala-me agora, monge, recorda-me de nosso início!