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mikhæ por
Sérgio Roberto Rodrigues de Oliveira
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o olho atrás da porta.................................................................................................................4
o velho e grande olmo de Trafalgar .....................................................................................12
despertando demônios............................................................................................................20
interlúdio ..................................................................................................................................30
fantasma não, mãe... índios. ..................................................................................................42
tem gente na asa do avião. .....................................................................................................55
acredita em fantasmas?..........................................................................................................68
a premonição. ..........................................................................................................................84
os paramédicos ........................................................................................................................92
conversando sozinho.............................................................................................................108
o mensageiro de jeanne. .......................................................................................................120
o campo de guerra. ...............................................................................................................133
quem são vocês? ....................................................................................................................140
o conclave ...............................................................................................................................152
o primo embate......................................................................................................................165
travesseiros.............................................................................................................................175
convento dos cordeliers.........................................................................................................179
conexão dos mortos...............................................................................................................198
princeps militae coelestis.......................................................................................................213
o retrato de chaves ................................................................................................................222
a dissensão ..............................................................................................................................236
francesco bernardone ...........................................................................................................238
portas abertas para...............................................................................................................243
contratempo ...........................................................................................................................253
não há nada que... .................................................................................................................264
...se possa fazer? ....................................................................................................................274
por trás dos olhos fechados..................................................................................................283
sete de dezembros. ................................................................................................................292
escalem o monte nitaha. .......................................................................................................314
bandeiras fincadas. ...............................................................................................................333
a repercussão. ........................................................................................................................344
sorrisos falhos. .......................................................................................................................349
somos todos culpados. ..........................................................................................................363
compromisso. .........................................................................................................................378
o menor e o maior. ................................................................................................................384
renascendo das cinzas...........................................................................................................393
o olho atrás.............................................................................................................................404
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http://codexmikhae.blogspot.com/
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PREÂMBULO
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Dentro, ambientes adormecidos, pois já passa da meia-noite, e
uma pequena luz se acende. Primeiro no quarto, depois num outro
cômodo. Como quem acorda de um sono profundo, a casa geme
ao inesperado som do vento que se arremessa entre os vãos das
portas e janelas, rangendo a madeira do telhado. Aos poucos, o
barulho aumenta, um passo rápido, pequenas vozes e, enfim, da
penumbra de uma porta semiaberta, um olho somente, que estava
esperando a sua hora de piscar. Que despertara involuntariamente
de um pesadelo e ainda transpirava imaginando ter sido atacado
por lanças e espadas entre gritos e a agitação de imagens
perturbadoras.
Da fresta, embora atordoado e confuso, ele podia ver duas
pessoas que conhecia muito bem –– os seus pais.
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Agora a chuva começava a cair fragilmente, o suficiente para
prejudicar quem quisesse ouvir a conversa ao longe. Sarah apoiou
suas mãos sobre as dele e deu um puxão vigoroso, derrubando
Patrick sobre a mesa. Ela se aconchegou com o queixo sobre os
braços cruzados, estavam cara a cara. E os lábios mexeram, não
para dizer sim, mas para um beijo de conciliação. Em pouco
tempo estariam dançando desajeitadamente enquanto Patrick
cantarolava Sinatra aos ouvidos solidários. –– Meu querido diabo!
–– Sarah se aconchegava aos braços protetores. O que ela devia
ter perdoado estava acima do que a conversa revelava. Não eram
somente as coisas estranhas que vinham acontecendo com o filho
ou as dificuldades em conseguir trabalho ou se o gato já foi ao
veterinário naquela semana ou não. A verdade ia além do que o
garoto ouviu escondido.
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1
Lá.
Perto da loja mais a oeste do rio Tâmisa, abaixo do semáforo
categoricamente verde, escoltado por aquele homem de casaco
xadrez –– não-londrino, com certeza ––, na esquina desta mesma
avenida, olhando para o céu estava alguém a quem se notar. De
cabelos negros e compridos, a pele morena e em uma de suas
mãos uma pequena algibeira. E ninguém parecia notá-lo.
Seria possível que fosse tão raro que preferissem fingir que
não o viam? Não que fosse tão diferente. Apesar de não estar
usando um guarda-chuva, também não estava usando roupas. E
fique bem entendido que não estava sem o casaco, ou o terno ou
qualquer proteção ao frio e à chuva que continuava lá. Ele estava
realmente nu. Bem, quase.
Além dos pés descalços, da tanga de couro e da lança –– a
pintura, os adornos e outros itens de série ––, era extraordinário
como não estava resfriado. E isso tudo sem que alguém reparasse
na cena. Quem diria! Um jovem índio na Trafalgar Square e,
ninguém parecia aflito. Até mesmo um londrino –– povo
igualmente enxerido como nós –– já teria reunido algumas
centenas de espantados transeuntes, parando o balé, trancando o
trânsito e chamando a atenção daquele que estivesse
aleatoriamente olhando para cima.
Acabava de chegar em Londres. Vindo de lá, onde poucos
sabem como chegar. Se alguém o perguntasse diria apontando
para algo como para cima e um pouco à esquerda daquela estrela
gordinha. Continuava inerte, olhando para o alto. Correndo o
olhar num círculo lento, procurando algo. Às vezes deixava
escapar um rápido suspiro de seu nariz –– desdenhando da chuva,
ou porque não despertara a devida atenção.
O ritmo do aguaceiro parecia hipnotizar. Naquele momento os
londrinos pareciam esquecer as suas preocupações –– isso quando
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não perdiam um táxi –– e a chuva começava a diminuir
acalmando os ânimos mais instáveis. Demonstrando estar confuso
deixou-se guiar pela multidão que saia de uma admirável e
iluminada fenda do chão. Naquele instante foi espremido diante
de vitrines, e as mais estranhas coisas começaram a desfilar ante
seus olhos. Lugares que eram verdadeiras zonas livres estampadas
por adesivos contra alimentos transgênicos ou a favor de peles
sintéticas que imitavam alguns animais –– existentes ou não.
–– E por que raios tantos estavam vestidos?
Era quase impossível identificar alguém dentro desta
balbúrdia. Estancou firme, contra os desejos da massa andante ––
pensante nem um pouco –– e enfiou uma das mãos na sua sacola.
Remexeu bastante até que precisou apoiar a lança entre as pernas
para liberar a outra mão. Encostou-se na vidraça de uma
gigantesca loja de departamentos para escapulir da agitação.
Agora as duas mãos fuçavam.
Apesar de pequena, a sacola devia ter muita tralha. E eis que
encontrou o que procurava. O majestoso Guia de Ruas de
Londres, edição atualizada e colorida, de umas trezentas e tantas
páginas, com capa dura e tudo.
Contudo parecia não conhecer muito bem o livro –– digo
livro, o objeto mesmo, sendo que talvez nunca tivesse visto um ––
pois o segurava aberto, apertando as páginas que se enrolavam
sobre mão direita, pendendo a papelada toda para esquerda, de
lado, caído. O divertido era vê-lo envergado, de cabeça virada
procurando uma rua que nem sabia onde ficava. Para isso
remexeu na bolsa sacando novo exemplar. Desta vez era o bom e
velho Dicionário Tupinambá-Inglês-Tupinambá, de folhas
amareladas e repleto de orelhas e indiscreto odor bolorento.
Seus olhos brilharam diante de importante informação: –– Isto
é uma rua! Bom.
Em sua cabeça se perguntava porque então, não usavam –– os
londrinos –– um sistema mais simples, como na floresta. Podiam
localizar uma aldeia com razoável desenvoltura, bastando para
isso que usassem como ponto de referência, aquela árvore, esta
pedra ou até mesmo o barulho da onça bebendo água.
Mas estava ali por outro motivo, fora solicitado ou destacado
por uma pessoa incógnita e nem imaginava aonde iria encontrá-la.
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No entanto acataria as ordens como se fossem do próprio chefe. O
tal telegrama, ou algo do tipo, dizia simplesmente:
Senhor Guarini.
Guardiões do Bosque da Colônia.
Encontre-me em Londres. Serviço urgente... Venha hoje antes
das 17:00 horas médias. Impreterivelmente.
Atmatattva.
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congelar o ambiente. Isolando o barulho, o movimento e,
principalmente, afastando algo de ruim.
Porém, nada se comparava ao antiguíssimo e imenso olmo
que balançava suavemente seus galhos no meio da cidade. De tão
grande impedia que a chuva caísse, emprestando à cena a magia
de um devaneio. As nuvens abriam pequenas rajadas de luzes que
dissipavam a escuridão presente. Os pingos finos, assim como as
poças, refulgiam o sol com uma leve coloração dourada.
Mas a pessoas não percebiam a beleza da transformação.
Respondiam a todo este esplendor com desdém de quem não
tinham olhos para ver. Como todos haviam fugido da tempestade,
o farfalhar das folhas podia ser ouvido a dezenas de pés de
distância.
Caminhou, o índio, deste modo, só. Sentindo a mudança de
ares. Afinal estava na pracinha daquela cidade. Ali estaria quem
procurava. Andava bastante cauteloso.
Sentado à base da árvore, de pernas cruzadas, uma pessoa
bem despreocupada do que acontecia no mundo pareceu ver nosso
amigo de poucos trajes e lhe acenou pedindo que viesse para
perto. Vestido de túnica alaranjada, transpassada por grande lenço
azul trabalhado com arabescos bordados, aquele senhor de sorriso
meigo deixou transparecer o amor que se irradiava em torno de si.
Esfregava as bochechas como se houvesse acabado de acordar.
Bocejando tão forte que seus olhos começaram a lacrimejar.
Aparentemente ele lembrava bastante um monge tibetano, ––
descalço e careca e etc. –– mas ele gostava de ser chamado de
Atmatattva.
–– Enfim nos encontramos, meu filho. Aguardava-o para os
preparativos que se aproximam. Estamos quase na hora. Vamos
até lá. –– Erguendo sua mão para que o índio o auxiliasse a se
levantar. De pé bateu as mãos ajeitando seus indumentos e
contrariando a tradicional reverência, abraçou-o.
–– Mais novo do que pensei que fosse. Bem, Guarini, já te
contaram tudo? Caso não tenham te informado siga-me depressa.
–– Levemente chocado diante da presteza do lama, não conseguiu
captar suas intenções dinâmicas. Já devia estar em Londres por
tempo demais. Guarini e Atmatattva –– pois estes eram seus
nomes –– seguiram para perto de um dos chafarizes para sentar-
se. O monge esfregava um dos pés adormecidos.
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–– Ainda acho que Nelson, aquela raposa velha –– apontando
para o obelisco ––, iria preferir aconchegar-se à árvore a ficar de
pé lá em cima... Nem dá para vê-lo direito, coisas de gente.
Depois me parece daqueles que não descem do pedestal, nem para
cumprimentar, oras.
O monge já estava evidentemente tempo demais na cidade
grande. Desde que assumira a tarefa de guia à quase seis anos,
ninguém jamais soube do que se tratava e quem estava por trás
daquele silêncio incomum. Por vezes surgiam boatos que diziam
que eram ordens superiores e por isso não existia uma informação
certa sobre o assunto. Só que era protegido, quando necessário,
por alguns guardiões destacados, como o próprio Guarini.
Entrementes, as ordens vinham e jamais deviam ser contestadas; e
como ele sabia? Bem, bastava ver de quem eram. E desconfiando
destes boatos, o índio previa que mais uma vez seriam
empregados seus préstimos particulares. Ele já estava impaciente.
A luz do sol voltava a brilhar estranhamente por entre as
nuvens. E o diálogo iniciou-se depois que o monge recolheu um
monte de panos que insistia em cair de suas quase roupas.
–– Eu preferia contar a história, tintim por tintim –– puxando
um pedaço que ficara preso em seus pés ––, mas o bom senso me
impede de adiantar os acontecimentos que amanhã serão bem,
digamos, explanados. Basta que cumpra o que lhe peço. Preciso
me afastar imediatamente por outro... motivo, nada a ver com os
garotos. –– respondeu o monge ao olhar de dúvida do rapaz.
–– Aliás, fazia um bom tempo que não aparecia um rosto
novo por estas bandas, não é que os caras de Hampton Court
sejam desagradáveis, mas depois de quinhentos anos tudo cansa.
–– Rindo-se dos bons tempos passados, divagava. –– Eles são
bons em pregar peças, apesar disso, ninguém mais se assusta.
–– Sei. –– falou Guarini, com seu jeito contido.
Abriu a boca disposto a inquirir algo quando o senhor-monge
puxou-o, deixando cair algumas das tralhas de sua algibeira.
Tropeçando e escorregando até parar do outro lado da praça.
Seguiu algumas faixas, ziguezagueando-as, em meio ao trânsito,
até vislumbrar um apanhado de pessoas paradas, de pé, juntos,
esperando algo. Já o esbaforido tibetano –– indiano, frisou ele a
este pensamento fortuito, agora puxando os panos de sob os pés
do índio –– não conseguindo sentar-se sobre a cabine telefônica,
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ajeitou-se sobre um grotesco cilindro azulado dos correios,
esperando.
–– Está enxergando bem o relógio? –– acenou Guarini em
resposta. O mecanismo de grandes ponteiros parecia o Big Ben.
Procurou seguir-lhe o raciocínio, no entanto o monge mais
parecia um guarda de trânsito autodidata. Tentou se acalmar,
sendo obrigado a sentar-se ao meio-fio e aguardar o desenlace.
–– Dezesseis horas e trinta e oito minutos. Dezesseis e
quarenta e um. Dezesseis e quarenta e nove. –– como ele não
respondia a qualquer interrupção, a ansiedade aumentava. O índio
já estava levando as unhas para roer de tão aborrecido que estava.
Não parou um minuto de imaginar o que poderia acontecer às
dezessete horas. O rosto sério se transfigurou em agonia, fazendo-
o parecer tão jovem quanto era, se é que isso é possível. Nunca
mais iria aceitar convites sem esclarecimentos prévios, mesmo
vindo de velhinhos simpáticos como aquele.
–– Dez... nove... oito... sete... seis... veja, estão vindo deste
lado. –– gritava, alterado, o velho, balançando pernas e braços
com se estivesse distinguindo o próprio Khrisna –– Bastante
pontuais... três... dois... pronto. Previsíveis demais. –– Fixou dedo
e olhar em uma criança que passava batendo os pés com força,
imitando a guarda britânica, encolhendo os cotovelos e mantendo
cabeça erguida. Não parecia ter mais do que cinco-quase-seis anos
e, nem que fosse um pop star que merecesse os cuidados daquele
monge meio amalucado –– porém sábio ––, diria que era o motivo
de seu encontro. Pouco atrás, porém, o seu irmão lhe seguia
constrangido pelas estripulias daquela criança peralta. Mantinha
os fones do MP4 ligados no último volume, evitando qualquer
indisposição desnecessária e, às vezes, cutucava-o pedindo
compostura.
–– Quieto Jox, se manca!
–– Tá bom, Sean. –– contrapôs meloso, e até parece que ele o
obedeceu.
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despertando demônios
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ter que enfrentar os olhares cômicos e as gargalhadas cochichadas
dos colegas.
–– Olhem o esquisito, dizem que ele ouve coisas! ––
sussurrou o grupinho, fazendo cara de medo, de modo que fosse
ouvido pela vítima da vez. Às vezes partiam para cima,
aporrinhando ou meramente empurrando ou batendo.
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–– Mas que m....! –– bufou zangado. Inesperadamente uma
mão surgiu ante seu rosto sujo. Um homem de casaco camurça
marrom estava parado e sorria balançando a mão estendida como
se pedisse para pegá-la.
–– Desculpe aí! Estava distraído procurando o Museu
Britânico. –– falando com forte sotaque. Sean reparou que ele só
podia ser francês por causa da similaridade com o modo de falar
de sua mãe e também porque havia uma pequena bandeira tricolor
colada à sua pasta, o que não deixava dúvidas.
–– Não tem problema –– mentiu, apontando a esmo ––, siga
até a Avenida Belford. –– Não prestou muita atenção no homem,
pois estava tentando se ajeitar, esticando a roupa ensopada. Mas
algo lhe intrigava no estranho, devia ser impressão exagerada de
quem estava irritado com tudo e todos. Quando já podia caminhar
para seguir Joshua, deparou-se com o mesmo deixando uma
confeitaria com os braços carregados de pacotes e até de uma
coisa fumegante que deixava escapar uma fumacinha perfumada.
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cochichou algumas palavras no qual respondeu com um balançar
afirmativo de cabeça. E abraçaram-se.
Ao todo não demorou mais do que alguns minutos, mas foi o
suficiente para alegrá-lo. Sean só pode ficar olhando, pasmo.
Sabia que o irmãozinho estava mais certo do que muita gente que
se esconde na caridade de dar para não doar. Olham indiferentes
para o sofrimento pensando que é o Governo quem deve agir,
senão por que pagar impostos para não ter que ver estas coisas?
Sentia-se pequeno por não fazer o mesmo, mas concordava com
Joshua e assim admitia que um dia não precisaria das loucuras
dele para justificar o que tinha que ser feito de correto –– acho
que deu para entender, não é?
Certo ou errado, ele fez mais do que isso.
Talvez Guarini entendesse melhor o olhar admirado do velho,
havia percebido a gravidade da ocasião, sobretudo nas palavras
ditas ao ouvido do sem-teto. Agora ele tinha um segredo para
guardar.
Tudo voltou ao normal. O estranho momento marcava o seu
término às dezesseis horas e cinquenta minutos. Tempo mais que
suficiente para tomar o ônibus rubro e estrepitoso das 16h50 que
marcava na legenda luminosa que estampava, na dianteira, o seu
rumo passando por North Finchley com o número 134 em
destaque. Desconcertados pelo que escutaram, só tomaram
conhecimento dos adeuses que o mendigo gesticulava, aos berros.
Entre os movimentos do entra-e-sai dos ônibus e lojas, perderam
algo.
–– Por que você fez isso? –– perguntou surpreso Sean.
–– Porque ele tava com fome, oras. –– Não estava
convencido. Quem seria aquele garotinho, pensava Sean. Estava
sempre o surpreendendo. Por isso gostava dele. Mais uma vez
escapulia de seus braços e corria no sentido contrário. Abrindo o
casaco e tirando uma carta amarrotada, foi chegando mais perto
da caixa de correio azulada. Forçou os pés o máximo que pôde e
enfiou um envelope pardo na boca metálica. Do que se tratava,
nem Sean fez questão de perguntar. Trocou o paletó do colégio
pela jaqueta guardada na mochila. Penteou o que sobrara do
cabelo e desta vez fizeram o certo: entraram no ônibus.
A dor lancinante parecia ter aumentado mais. Agarrou Joshua
e subiu apressado. O trajeto era bastante curto, uns três ou cinco
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minutos até a estação de metrô na Warren Street, mas o trânsito
parou por causa do congestionamento monstruoso. O ruído dos
motores e os faróis piscando junto com cada buzinada não
serviam de atenuantes. Agora nem a música de uma estação de
rádio qualquer serviria. Correram ao andar superior, junto das
janelas centrais. Seguidos pelos espectadores do beco; o índio e o
monge juntos na sexta fila fofocavam. O brilho da luz branca que
refletia por todo lado emprestava um ar de artificialidade ao
ambiente do ônibus. Sentados, havia, além destes, uma senhora na
frente, quieta, tricotando algo para os netos neste inverno; e mais
atrás, nos fundos, onde uma lâmpada defeituosa estava piscando,
um homem com uma capa vermelha que cruzava o peito,
encobrindo os braços e o resto do corpo. De olhar firme e rosto
obscurecido pela falta de expressão estava lá por causa de alguém
que acabava de subir.
Guarini percebeu e, falando ao velho, inquiriu-o sobre quem
era o carrancudo do derradeiro banco.
–– Aquele só diz respeito ao grandão. –– referindo-se a Sean.
–– Por enquanto nada temos a tratar com ele. –– fechando a cara
em repulsa ao olhar no rosto do forasteiro enquanto despachava
alguns papéis para cima de Guarini. Sean, por sua vez, pressentia
que algo, em breve, iria acontecer ali. A dor apertava mais e mais.
Sentia vontade de fugir dali, quando ao longe, ritmados, um tropel
fraco de passos abalizados apareceu marchando em sua direção e
ampliando o desconforto. A cada batida –– que aumentava
rapidamente –– a cabeça lhe doía desmensuradamente. O barulho
metálico era como um milhão de latas batendo umas contra as
outras e estavam se aproximando.
Trac. Truc. Trac. Truc.
Assim que os passos chegaram na avenida onde estavam
trancados, mesmo muito distante, o som retumbante da primeira
badalada do Big Ben ecoou.
E a cada badalada Sean gemia e se contorcia mais.
O ambiente frio de luzes claras dançava diante das visões de
Sean, entorpecido pela dor. Então, em desespero, agarrou-se aos
tubos de segurança que formavam o balaústre, caminhando
cambaleante até a escada curva. Sentia vontade de vomitar.
O barulho combinado da multidão, dos passos e do relógio
fazia sua cabeça e estômago girarem. Desceu alguns degraus
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ficando preso pela jaqueta num dos ganchos de fixação do
corrimão. Com dificuldade para se soltar puxou-o com força,
arrancando o casaco e perdendo o equilíbrio. Joshua observava
através do espelho convexo sem saber o que fazer. O que
aconteceu em seguida ele pouco se lembraria nos próximos dias,
porém a queda foi tão forte que só conseguiu parar na rua. Caído
de borco sobre a rua encharcada. Paulatinamente os curiosos se
acercavam de Sean. A chuva voltava com insistência.
A massa que se aproximava oculta pelos respingos começava
a se delinear. Sob o som da última pancada do relógio, um
exército marchava. Atravessando por entre os carros, caminhões e
ônibus. Empunhavam lanças e estandartes de guerra.
Do alto, milhares de soldados romanos se dirigiam para o sul,
iguais em seus uniformes e em suas feições frias, apoiando a mão
livre sobre os gládios presos à cintura de suas armaduras luzidias.
Alguns usavam elmos, outros capas que indicavam suas posições.
Mas que estariam fazendo atravessando Londres?
O que quer que fosse que o monge havia preparado, estava
terminando e, as explicações pelo qual o inquieto índio esperava,
estavam para ser reveladas.
–– Espero que você cuide bem do meu garoto. –– disse o
Velho displicentemente. E o segredo veio à mente de Guarini.
Não aguardava tão simples conclusões e decidiu perguntar do que
se tratava esse cuidar. Nem perdeu tempo.
–– Ele é seu. Deixo o cargo para assumir outros encargos
inadiáveis. O que precisar saber dele, saberá ao seu tempo. Mas
cuide bem do garoto. Como o mais novo guia, de que eu tenha
conhecimento, lembre-se muito bem do que aconteceu no beco. E
tem mais, o Sean também é de suma importância, fique por perto.
–– e sem mais soltou um –– tá ligado?!
Outra oportunidade de fazer perguntas, perdidas. Em
instantes, carros de resgate chegavam, refletindo suas luzes azuis
e vermelhas.
O monge frisou –– Este aí, ––, apontando para Sean –– está
apenas despertando os seus demônios.
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interlúdio
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Intrigou-se que o pergaminho tivesse chamado a atenção do
professor, entretanto continuou a análise. E levantou discreto
olhar sobre as lentes.
–– Iluminura italiana do século treze feita por um tal de
Bernardo discorrendo sobre uma batalha travada durante as
cruzadas –– resumiu. Não era a área de estudo do professor
William. Ainda mantinha o ar de quem não entendia a finalidade
do suspense. O professor Hodgson-Crookes desenhou o dedo
sobre o papel apontando uma mancha, quase um esboço.
–– Você se recorda das escavações na Escola de Medicina de
Paris? Acho que foi no final do século dezenove... –– sussurrou o
professor que teve um aceno afirmativo como resposta. –– Acho
que acabaram mudando o traçado da rua... –– divagando em voz
baixa. –– Bem. Desconfio que estes eventos tenham relação com
este documento que, infelizmente, é só um componente de um
pequeno livro perdido, Marc. Desta vez Marc ergueu a
sobrancelha, ouvindo cauteloso o que o professor teria a
complementar.
Para Marc, suas reações não passavam de um suave arquejar
de sobrancelhas. Pouquíssimas vezes ele desmanchava sua
impassibilidade e quando o fazia se destacava magistralmente sem
que houvesse um pingo de dúvida. O professor estava testando-o,
sabia exatamente o que ele estava tramando. Coisas de velho, o
que recordava, em muito, o seu avô.
O senhor William havia sonhado com os eventos descritos no
pergaminho pouco antes de receber o material e, desde então uma
série de coincidências o punha de cara com o assunto.
–– E é só? –– falou disfarçando sua apreensão durante o
exame de umas marcas datilografadas à margem do papel que
estava protegido por uma película plástica. Algo atiçou seus
instintos. Era como um déjà vu vago, quase um sonho nebuloso.
Uma recordação de sentimentos que o alertou quanto à
importância do que segurava em suas mãos. Uma impressão que,
ainda assim, deixava-o ansioso.
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e nem os sapatos prateados que surgiam à meia-luz. Riu-se
novamente.
35
–– De uma videira! E... –– atropelando o raciocínio esquivo
de Bernis. Com toda a sua afobação viu se vestindo os óculos de
Marc.
–– E então, com exceção deste pergaminho –– erguendo o
papel amarelado que lhe fora confiado ––, de todos os
documentos, este é o único que é compreensível, se bem que não
faz nenhum sentido para mim.
Depois de uma breve pausa para alinhar suas ideias abriu sua
pasta espalhando algumas fotos translúcidas que o professor
William tomou contra a luz do pequeno abajur de leitura. Sua
expressão denotava certa ignorância impronunciável. –– Estas
línguas não fazem parte do meu vocabulário...
–– Do seu e de ninguém.
As fotografias reproduziam manuscritos e plaquetas de argila
e estelas de pedra negra e pergaminhos em rolo e pequenos diários
de couro e tapeçarias, que Marc ponderava como um bizarro
códice. Se não fossem as folhas de videira, jamais descobriria uma
correlação entre os tais registros tão estranhos entre si. E sabe-se
lá, Deus, quantos ainda estão ocultados em seus sepulcros.
–– Além do óbvio, não decifrei nenhum.
–– Como assim? Estou vendo que estão escritas em alfabetos
reconhecíveis. A não ser que...
–– Estejam criptografadas. –– para Marc representava outra
derrota.
As luzes deram rápidas variações, ampliando as sombras das
estantes, alguém derrubara um livro. Podia-se ouvi-lo em escusas
sonoras e inconvenientes a certa distância. As sombras ganharam
momentânea vida.
Continuou. –– Tentei de tudo. Aprendi até novas línguas, a
maioria mortas. Só então experimentei programas de decriptação
e nada. Mas quando juntei alguns deles, procurando similaridades
de escrita e som, é que surgiu uma coincidência.
–– Um nome? –– apressou-se Hodgson-Crookes.
–– Exato. Se os textos se referiam a algo em comum, haveria
uma correspondência. Mas com isso surgiu outro inconveniente,
não poderiam ser um criptograma. –– fez se silêncio, interrompido
pela dúvida de Bernis. Ele estava de olhar fixo na marca...
–– Voltando atrás. O que o senhor queria dizer com marcas, já
que só possui este pergaminho?
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O professor abriu um sorriso de quem apreciava um bom
observador. Por pouco pensou que ele não havia percebido.
Largou a chávena sonoramente acima de alguns papéis
manchados por círculos similares ao que acabava de produzir.
Levantou-se pegando os fotogramas para reagrupá-los num monte
que ofereceu de volta para Marc. Ele estava perdido com o ato.
–– Agora. Siga-me.
Marc socou a papelada na mochila sem ver a operação
enquanto os três saltavam para dentro de um corredor operacional
do prédio. O professor cambaleava, movimentando seu peso entre
cada passo lerdo, não era um caminhar mórbido, mas gracioso
como o de um pinguim. Desceram vários lances de escada, a
despeito de possuir um elevador para esta ação, despontando num
gigantesco depósito subterrâneo guarnecido de colunas e de
estantes de vidro com gavetas finas o suficiente para guardar
placas. Não havia ninguém.
William consultava uma folha avulsa que implicava num
movimento de vai-e-vem entre o papel e as gavetas numeradas.
Quando estava certo abriu a portinhola envidraçada, agachou-
se e delineou as gavetas com as pontas do dedo até parar no
código desejado. A gaveta aberta servia como mesa para uma
placa de granito alaranjado com relevos em árabe cúfico. E olhou
esperando a reação.
–– Ah! Estou vendo a gravura. –– correndo a mão sobre a
imagem em baixo relevo. –– Este também é legível, Marcus.
Códigos de alfândega e taxas diversas. Se não me engano foi
encontrado na Espanha.
–– Sei. Na época eu estava no sítio arqueológico de Uxama.
Haviam descoberto as fundações do antigo monastério visigótico
de San Miguel. –– e Marc olhou diretamente para o bordo,
empregando seus óculos pela segunda vez naquele dia. Deu um
chega-pra-lá no catedrático se esforçando para erguer a grossa
prancha sem cerimônias. –– Este também não é legível. ––
apoiando parte da placa fora do encaixe. –– Passe sua mão pelas
quinas. Suas bordas estão falando conosco.
O professor William teve a impressão de sentir ranhuras,
marcações paralelas de cima a baixo, que poderiam ser
confundidas com deteriorações e lacerações comuns ao tempo ou
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transporte descuidado. Não parecia em nada com uma catacumba
recentemente descoberta, contudo a exultação era idêntica.
–– Ogham, professor?
–– Occam, como a navalha?!
–– Língua, não princípio lógico. –– corrigiu Marc. –– Se bem
me lembro, possui um abecedário que é representado por estas
linhas cortando um eixo. É de origem irlandês-gaélica e muitos
acreditam que era uma escrita críptica do alfabeto de dedos dos
druidas. Ou mais ou menos isso. Posso? –– mostrando sua
máquina fotográfica digital. Will lhe devolveu um balançar curto
e rápido em afirmação. Foram vários flashes antes de se dar por
satisfeito.
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tampo de carvalho mastigado. Quase derrubara a xícara de chá
que havia sido recolocada por cima do livro.
–– Isto não estava aqui antes! –– girando o livro para que o
professor lesse o frontispício. Estas coincidências estavam cada
vez mais frequentes.
–– Ogham. –– Havia uma marcação de página feita por um
pedaço de papel rasgado. Uma cruz alterada, delineada pela
inclinação do eixo vertical encabeçava a folha referente à grafia
muin.
–– A letra m é uma constante, é a primeira letra do nome do
escritor. –– selecionava-a entre as ranhuras.
O professor corria os olhos sobre a página buscando mais
informações quando percebeu outra coincidência. –– Todas as
letras possuem um significado pictográfico. Esta muin, ou m, pode
simplesmente ser a palavra videira... –– entreolharam-se.
–– Você ainda não me disse quem o escreveu!
–– Existem várias grafias, mas eu escolhi a que eu encontrei
primeiro. Mikhae. Todas fazem parte do códex mikhae.
O intrigado senhor William remexia o manuscrito com certa
morosidade, porém desistiu de argumentar enfiando o papel nas
mãos de Marc.
–– Marcus. Descubra do quê se trata, pois estava muito bem
lacrado, dentro de uma correspondência secreta e endereçada para
cá. –– esperou –– Não aceito um não –– lembrando de um sonho
onde alguém pedia insistente que encontrasse Bernis e entregasse
o papel antes que a doença piorasse ocultando a descoberta para
sempre. Se era sugestão de um artigo que lera no mesmo dia,
jamais saberia, no entanto pressentia que algo em breve
aconteceria.
–– Aqui, para Londres?! –– puxou rápido o envelope
amarelado, datilografado em vermelho, para junto de si. Os
carimbos não deixavam dúvidas quanto à importância da missiva.
O professor especificou –– Para o Museu Britânico, e só demorou
uns sessenta anos. E se você soubesse como realmente foi
encontrado... Eu não posso contar mais nada, estou me arriscando
entregando um papel que ninguém deveria saber de sua existência.
–– E por que você acredita que este pergaminho do século 13
seja assim tão importante? Não vi nada de excepcional.
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–– Não é manuscrito. Junto havia um bilhete que eu destruí ––
piscou em cumplicidade ––, seu avô me entenderia.
–– Decerto. Nunca concordávamos em nada. Insistia em
certas ideias que jamais compreendi, hoje eu sei que ele estava
certo. –– o seu avô, Jacques, destes que acham que existem mais
coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.
–– Marcus. Sei da sua recente viagem para a Antiochia ad
Orotem... sei de Lucano...
Marc segurou o susto, desconfiando porque os melhores
tinham que ser loucos ou excêntricos, mas gostou do olhar sincero
do seu antigo professor. Desta vez tentou beber o chá.
–– Não preciso dizer nada, basta você reunir os manuscritos
perdidos, a este aqui. Não se assuste se acontecer fatos estranhos.
Você acredita em Deus, Marcus?
Não sabia o que responder –– Acho que sim. –– O chá desceu
quadrado, engoliu em seco. O professor Hodgson-Crookes
recusava qualquer participação na investigação. Sabia que as
ameaças retornariam para aquele que buscasse por mikhae.
–– Desde quando o senhor sabe de Lucano?
–– Pouco tempo. Mas sei de tudo. E pode ficar tranquilo, não
contei a ninguém. Como sei que manteve a mesma discrição,
posso dizer que somente nós dois sabemos a verdade.
–– E o que pensa... –– interrompido pelo professor.
–– Nada. Que você encontre mikhae. –– falando como se o
documento fosse alguém vivo. –– Caso surja alguém de sua
confiança, conte tudo. Seja quem for. Como era mesmo, hum,
talvez Princeps militiae coelestis... –– e mantinha o indicador
esquerdo levantado para cima. Uma imagem inesquecível e
estranha de quem dava, a todos, nomes latinos.
Tão logo Bernis chegasse em Paris precisaria de um co-
participante, talvez já tivessem respondido ao seu edital. Depois
do silêncio em que Bernis se entregara, se dispuseram a falar de
outras coisas, banalidades sobre o mundo acadêmico. Recordando
do tempo em que o avô de Bernis e o professor William corriam o
mundo atrás de obscuridades históricas. Marc passou muito tempo
com eles, conhecendo a Escandinávia e suas lendas. E
continuaram discorrendo sobre o passado, as aulas e as
controvérsias que jamais seriam aceitas por um ou pelo outro. E
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não havia reunião em que não recordassem da primeira expedição,
e brindavam, com chá, São Jorge.
–– Ponto de vista, meu rapaz! Ponto de vista.
–– Se é o que me diz... velho amigo rabugento.
–– Brindemos –– com chá fraco –– aos inimigos que...
–– Tendo pés não nos alcancem,
–– Tendo mãos não nos peguem!
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–– Seja bem-vindo, meu bom colega de poucas roupas. ––
Aproximou-se frenético o Guia da Casa, quase tropeçando, como
se o pudesse. –– Desculpe a demora, estava inspecionando os
relatórios dos outros... Você é mais novo do que costumo ver por
aí. Quer dizer que o Velho te pôs no jogo? Outro? Muito estranho,
mas não é raro.
Os brutamontes repentinamente mudaram de cara, até parecia
que o verão chegara e os passarinhos cantavam, porque era
cômico como pareciam duas criançolas abestalhadas. Apertando o
novo amigo por entre seus braços grandes, deixou escapar um
longo piscar de olhos de consentimento. Nem bem tinha se
apresentado e já estava dentro do casebre mais cheio de
Amersham. Pessoas das mais diferentes... hum, podemos dizer,
espécies... transitavam por todos os ambientes.
–– Estamos correndo contra o tempo –– aconchegando-se no
chão, perto da mesa de jantar. ––, eu me chamo Naxamuñaca, mas
todos me chamam de tio Xaxá. Sou o Guia da Casa e o
responsável pela organização das tarefas coletivas dos demais
guias que agora inclui você, indiozinho. –– Guarini examinou-o
de cima a baixo, determinando que ele era um pouco mais gordo
do que havia pensado dos guias caseiros. No entanto era muito
mais parecido com ele, com certeza era um indígena ou o foi um
dia, mas de outras bandas. Quanto ao título, este devia se encaixar
muito bem como velho índio gordo –– digo forte ––, com aquela
cara de chefe Touro-Sentado não seria ele o primeiro a
desobedecê-lo, imaginava se não seria canibal também. Quando o
indiozinho –– expressão do tio Xaxá –– conseguiu abrir a boca
para dizer algo, desatou a perguntar tudo que estava engasgado
desde a quinta-feira.
–– Quer dizer que eu sou um guia sem estar devidamente
preparado, nem fiz os exames preparatórios! Será que não foi
engano? Ninguém sabe o que eu tenho com esse curumim, aí? ––
apontando para o pequeno Joshua que voava nos braços do pai
como um avião.
–– Afinal... –– descansando para recuperar o fôlego ––,
alguém pode me dar um copo d’água?
–– Ah, sim. Sei.... bem... não sei. Hummm! –– disse
Naxamuñaca, pausadamente, tentando encontrar as palavras
certas. –– Digo, alguma coisa eu sei... Oh, sei mesmo. Mas assim
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como você, eu não sei nada do menino... parece-me que o monge
gostava de agir sozinho, se você me entende, hum –– assinalando
para cima e frisando com bastante ênfase. –– Lá de cima, bem lá
de cima. Depois ele não é o primeiro, parece que todos os guias
desta casa têm ares esnobes, nem relatórios apresentam no prazo,
se bem que não reclamo. Serviço de menos.
Agora destrambelhou de vez. Por um tempo os dois se
olharam, Guarini estava estupefato, mesmo que fosse um certo
teatro. Não prestava atenção aos gritos de gol do Patrick ou no
cheiro insuportável dos waffles que a senhora Fox insistia em
assar. –– O senhor quer me dizer que... –– tentando não gaguejar,
praticando seu talento e buscando algo mais.
–– Sim. Talvez você tenha conserto. –– deu por terminado o
relatório o índio gordo, que o alfinetava sondando-o. Descobriu
que não ia saber nada perguntando aos outros, mas pelo menos
soube que tudo era importante demais para dizer não. Refletindo
sobre o que ouviu decidiu duas coisas: se ele estava ali era porque
precisariam dele e se fora escolhido para pajear Joshua era porque
deviam se conhecer de alguma outra paragem. Coisas
complicadas demais para se explicar em poucas palavras. Teria
que fuçar mais a fundo. Por hora aquietou-se, escutando o que
inventariam a seguir, mas mantinha em mente que ele sabia de
algo a mais. Um segredo. Então seria um olho no peixe, outro no
gato.
Naxamuñaca agarrou-se ao braço do índio e de novo derrubou
meia tralha enquanto o puxava porta afora. –– Vamos até o
correio do Centro, temos um serviço extra hoje. Temos que
procurar algumas cartas. –– Não entendendo nada, Guarini fez um
trejeito de quem concordava e retiraram-se atarefados. Por um
gosto todo particular por veículos coletivos –– cheios ––, tio Xaxá
obrigou Guarini a se conformar com uma excursão de mais de
uma hora até o centro de Londres.
Manhã clara e ensolarada para encaminhar correspondências.
–– De quem é a carta? –– replicou, logo após, Naxamuñaca –– É
de um tal de doutor Marc B alguma coisa, hum. Conhece? Gente
boa! Meio confuso, mas tem meio mundo ao seu lado! –– virando
os olhos, clamando forças para suportar o congestionamento e a
conversa fiada dos passageiros que ele não queria ouvir.
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–– Você acha que ele realmente nos viu? Nós dois, lá? ––
lembrando de algo que aconteceu antes de saírem da casa.
–– Hum –– usando sempre a mesma resposta curta.
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torradeira modificada que seu pai consertou. Por isso era fácil
acordar.
De novo disse: –– ‘Dia, mãe.
Nada. Devia estar realmente irritada.
Foi se aproximando da mesa para pegar algumas torradas e
enquanto declinava sobre o tampo, com os pés levantados, para
alcançar o outro lado, percebeu algo estranho. De soslaio, viu que
havia alguém na sala, que lhe acorreu serem seu pai e Joshua se
preparando para sair. Mas quando foi confirmar a impressão
assustou-se. Seu pai estava lá, usando a camiseta do time e
balançando Joshua de um lado para o outro. Gritava bem alto ––
Vamos, Arsenal. Vamos Red Devils. –– O jogo transcorria
empolgante e sem dúvida não era sexta-feira.
Contudo se Sean chegou, mesmo que breve, a se preocupar
com o que havia acontecido com os dias da semana, fora por
poucos instantes. No outro recinto, a sala de jantar que ficava
contígua à cozinha e à sala de onde assistiam ao jogo, havia mais
alguém. Esticou a cabeça mais um pouco para poder ver melhor.
O susto fora justificado. Duas figuras das mais insólitas, que ele
jamais vira, estavam ali, sentadas no piso. Não sei se perceberam,
mas Sean ficou imóvel, amedrontado. Ali, um índio pelado ––
quase, usava uma tanga –– palestrava com outro, que pelo menos
usava uma calça. Um era magro, tão jovem quanto ele e se
assemelhava muito com esses índios sul-americanos que deviam
comer gente e depois palitava os dentes sossegados. O outro
gordo, velho e com cabelos compridos e prateados que saiam em
volta de sua careca brilhosa, era de outra espécie. Talvez inca ou
asteca ou sei lá o quê. Usava muitas pulseiras e tranqueiras além
do cabelo amarrado em uma trança. De cara se via que era o mais
sábio, mas sentado na sala estavam mais para ladrões ou coisa que
espantasse garotinhos da cidade.
Se não fosse o pavor, a cena toda não passaria de muito
engraçada. Dois índios díspares, acocorados serenamente em casa
de desconhecidos, assistindo às preliminares do campeonato
inglês. Só faltavam o bule e as xícaras de chá acompanhando.
Sean assobiava chamando a mãe e depois fazendo psiu para
os dois que pulavam desvairados na sala por causa do gol de
desempate. E nada.
Resolveu gritar: MÃEEEEEEEEEEEE!!!!!
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Surtiu efeito imediato, só que quem se virou para olhar foram
os índios que conversavam animadamente, se é que monólogo era
conversa. Assustou-se novamente quando o mais velho respondeu
sorrindo: –– Filho... você está nos vendo, hum? –– apontando o
dedo indicador para si. Sean levantou a barra da camisa e apertou-
a contra os olhos. Durante o tempo em que estava se recuperando
para abrir os olhos escorregou um pouco mais para frente. Abriu-
os e eles haviam sumido. –– Ufa! Que susto.
Dormira demais.
Agora só restava comer a torrada.
Viu-se numa situação mais incomum, já não estava longe da
torrada e nem apoiado por cima da mesa... estava literalmente no
meio da mesa. Podia ver seu corpo da cintura para cima como se
houvessem lhe servido num grande prato de jantar, destes que
levam uma maçã à boca. Os olhos aumentaram de tamanho saindo
das órbitas. Para quem conseguisse vê-lo naquele momento,
podiam enxergar as pernas atravessarem o tampo
consideravelmente sólido daquela mesa antiga. Recuou uns passos
e reviu as pernas. Estava mais assustado do que antes.
Desta vez escorregou e caiu traspassando a mesa.
Já estava bastante irrequieto.
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precisava para confirmar onde realmente estava. Aproveitou para
se beliscar mais uma vez. Está bom, estava desperto.
Enquanto enfiava os óculos, uma leve ondulação na imagem
fê-lo apertar os olhos na esperança de se adaptar ao mundo. Uma
parte da haste dos óculos, rachada bem recentemente, puxou
alguns fios de cabelo por cima da orelha obrigando Sean a fazer
uma careta de dor. Acordou mais ainda. Não perdeu muito tempo
se vestindo, tomou a calça jeans larga, enfiou-se numa camiseta
laranja, prendeu uma camisa flanelada à cintura e, tão logo calçou
o tênis saiu em disparada para a cozinha; não sem antes tropeçar
no degrau do corredor... não escapava uma.
Com a mão espalmada apertou bem firme o tampo da mesa
onde antes esteve em dois. Firme como uma rocha. Esticou-se
sorrateiramente para poder ver se os índios estavam lá.
Nada. Não havia passado de um pesadelo.
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aperfeiçoar seu francês –– bem, mas ela era francesa desde que
nasceu!
–– Isso está me cheirando a brincadeira de criança. Jox? Por
que você fez isso, e como? –– interpelou-o automaticamente como
se fosse qualquer coisa dessas que todo mundo faz. –– Tinha um
anúncio na revista do colégio, eu pedi para Sean se podíamos
levar para você, mãe. Ele não deixou.
Patrick zombava da circunstância, “bem a calhar esta carta”.
Se Joshua entendia o que queria dizer não deixar, acertadamente
incluía, pois faça você mesmo que é isso que queremos. Não
tinham outra alternativa, se mudariam depressa e Sarah teria que
aprender algumas das velhas experiências de seu currículo.
Na antecâmara, todos aguardavam pela réplica. O tio Xaxá
estava contente pelo procedimento ter dado tão certo e agradecia a
cooperação de guias, protetores e guardiões. A mudança começou
instantaneamente. Guarini ainda estava maravilhado com a
eficácia da trama toda e permanecia com uma dúvida –– entre
tantas que havia desistido de descobrir –– como conseguiram
botar na cabeça do curumim que ele deveria mandar a carta.
Escutando seus pensamentos Naxamuñaca respondeu enquanto
coçava as orelhas. –– O monge pediu e ele fez, oras. Que forma
mais eficiente do que pedir com jeitinho, heim? –– rezingando da
pouca noção que o indiozinho tinha sobre os guias. Pensou em
providenciar, o quanto antes, um guia sobre Guias.
Sarah apertou-se a Sean, mais propriamente ao pescoço, e
girava de exultação. Não havia percebido que a causa da
mudança, a cabeça, estava sendo espremida, chacoalhada e
balançada inescrupulosamente pelas mãos de sua protetora, uma
mãe competente, porém meio destrambelhada naquela
circunstância. –– Ah! Desculpe, Sean. –– Apalpando
delicadamente a cabeça como se fosse consertar quaisquer danos
com simples beijinhos e carinhos. As mães conseguiam ser
estranhas quando queriam, muito estranhas. Agora estava a par de
que possuía um tumor, contudo não parecia aflito.
Quando pararam de girar, ainda meio tonto sentiu uma ligeira
dor de cabeça. Firmou o olhar para um ponto qualquer e esperou o
mundo parar de rodar. Desta vez viu mais do que o recinto onde
estava, os móveis e seus pais. Manchas acinzentadas pareciam se
mover de um lugar para o outro; não eram fáceis de se ver, mas
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elas estavam circulando pela casa toda. Lembrou-se do tumor e
evitou pensar nas esquisitices. –– São por causa do tumor, é, só
pode. Estas manchas não são inteligentes, está tudo na minha
cabeça.
Joshua se acercou do irmão esperando que ele dissesse
alguma coisa sobre a carta e reparou que Sean só fazia olhar para
o nada, forçando a vista e se movendo cautelosamente.
–– Que foi? –– indagou Joshua. Ao que Sean devolveu, sem
perceber que estavam todos lá, respondendo alto e
despreocupadamente. –– Por que estas manchas não param de se
mexer para ver se consigo descobrir o que são? ––
instantaneamente elas pararam. Para a sua surpresa e aflição elas
obedeceram. Ninguém entendeu quando Sean se virou e declarou
em bom e alto som que iria se deitar enquanto se lembrava onde
era o seu quarto. E com sorte só acordar no dia seguinte.
Os demais, as tais manchas transportadoras, que estavam
somente carregando coisas de uma ponta a outra, continuavam
extáticos. Não sabiam se andavam ou ficavam congelados. A
ordem veio de Naxamuñaca, o tio Xaxá, solicitando maior
presteza, pois que o transporte estava marcado para daqui a dois
dias, nas primeiras horas do alvorecer e que se não estivessem lá
de nada teria adiantado conseguir as reservas de última hora para
os três e, que o turrento do senhor Fox ficasse de molho em
Londres. Gritava batendo as mãos como quem quer agilidade.
–– Acho que está na hora, mais um pouco e, hum... ele
enlouquece de vez. Preparem-se para irmos a Paris ajeitarmos
todos os pormenores, hum. –– determinou Naxamuñaca entre uma
reunião e outra. Guarini sentou-se numa atitude confortável vis-à-
vis com Joshua e tentava falar-lhe daquele jeito meio telepático de
se comunicar. Apertava os olhos esperando alguma reação e nada.
Falava devagar e audível –– quase urrando –– na esperança de que
pelo menos ele se movesse do sofá. Nada. Ia providenciar o tal
guia tão logo as coisas se acalmassem. E esse negócio de mudar
para outro lugar exigiria um novo dicionário –– tupinambá-
francês ––, um novo mapa de ruas e contato com pessoal local,
que seria de muita valia para um índio pouco citadino.
Nesta derradeira assembleia pôde ver os guias de cada um,
reunidos para discutir o futuro. Exclusivamente, o guia de Sean
trabalhava só, e quase nunca, jamais, era visto na residência. Os
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outros se compunham do próprio Guarini, que não sabia bem
como se apresentar e duas senhoras. A bisavó de Patrick, senhora
Shelley Fox, era a única que suportava os seus estados de ânimo e;
uma senhora negra de olhar meigo e paciente, daquelas senhoras
enclausuradas para fazer os netos felizes, tricotando algo. Esta era
a guia da Sarah e um pouco distante do prosaico. Guarini tinha
certeza de tê-la visto em algum lugar ultimamente, mas por onde?
Entretanto as mulheres são todas tão parecidas, que detalhes como
roupas, cabelos ou apetrechos são estas pequenas coisas que as
diferenciam, pelo menos matutava Guarini.
Existiam mais alguns, rondando a casa, no entanto não
entravam por causa da guarda de proteção que se posicionava nos
quatros cantos, evitando uma presumível invasão de curiosos.
Asgard e Hyeron davam cobertura e evitavam que invadissem o
lar. Além do mais, proteção por um merecimento que todos
deveriam conquistar.
Figuras estranhíssimas, não pareciam contentes e as caras, em
meio ao turbilhão que circulava, não eram nem um pouco
amistosas. Também pudera, desde o aniversário do pequeno
Joshua, no mês passado, a casa vinha emanando um brilho que
fazia a noite parecer dia.
Mas só eles viam.
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caminhão de apoio era forrado de insígnias das quais, uma
centena, jamais sequer ouvira falar. A viagem era a oportunidade
de mudar isto. Também sabia que podia demorar demais, meses,
mas Joshua era o privilegiado que não se importava. Ele ia viajar.
Sarah ficara no encargo de providenciar as passagens, reunir
os passaportes, fazer as malas e qualquer outra coisa que não fosse
tão legal assim. Portanto a Sean e Joshua bastava juntar algumas
tralhas, tomar um bom banho e dizer adeus à Inglaterra.
Já Sean procurava não esbarrar nas roupas arremessadas, do
armário, por Joshua durante o qual tentava calçar as meias que
conseguiu encontrar, um velho par sem elástico que gostava de
usar, mas vivia sendo comida pelo sapato. Apertou o que restava
dentro da mochila desbotada, um livro fino, satisfatório para ser
lido em uma hora, e papel e caneta para brincar de rabiscar algo
durante o voo. Se tivesse tempo se lembraria do que deveria dizer
à médica, as vozes, as sombras, os índios... Bem, talvez não
contasse este último.
–– Calma, crianças. Ainda vamos voltar aqui. –– tentava
enganar, Sarah, com um sorrisinho sonso. A casa estava como
sempre, nada foi empacotado ou removido, com exceção dos
armários que nunca foram desempacotados nos últimos três anos.
Entretanto parecia vazia. As sombras não estavam mais lá, Sean
se assegurou olhando até dentro do vaso sanitário. Porque se
fossem fadas ou duendes queria ter certeza de que existiam.
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curiosidade é quanto às de Marc Bernis, gostaria de saber como
ele está. Hum!
Guarini compreendia. Marie declarou-se radiante ante a
perspectiva de ganhar a batalha, de um jeito só dela, arrumando o
coque e alisando a roupa. Uma batalha muito desigual, não havia
bons e maus, mas sim, intenções contraditórias. Apesar dos
dragões estarem em oposição aos desígnios do amor, eram seres
dignos de perdão. Afinal não somos todos imperfeitos?
–– Não nos precipitemos porque a...
––... porque a ordem sempre vem lá de cima! –– disse o
indiozinho indicando com o dedo o céu acima deles. Talvez um
pouco mais para a direita, pensou. E olharam, soltando um
muxoxo de ansiedade. O tráfego da M25 continuava bastante
congestionado, além das buzinas que não paravam de soar. Tanto
esforço por um só garoto? Só se Marc era a causa.
–– É, por enquanto serve, não é Marie? –– olhando em
socorro para a recatada senhora que guardava seu bule e xícaras
numa bolsinha a tiracolo. Mais uma parada seguida de solavancos
e chegavam ao portão de embarque do Terminal Três do aeroporto
de Heathrow. Esvaziaram o pequeno Ford em questão de
segundos, ajeitando a bagagem como podiam sobre dois
carrinhos.
–– Vou estacionar o carro e volto em seguida, vão até o
saguão da companhia aérea e me esperem. E nada de sumirem,
pois estamos em cima da hora. –– gritou Sarah, bufando durante
uma complicada tarefa de procurar as chaves entre os bancos.
Sean se agarrara ao carrinho mais pesado e firmou bem os pés
antes de conseguir algum resultado. Joshua o seguia com um
carrinho que tinha somente algumas sacolas quando se
deslumbrou com as portas automáticas que se abriram sozinhas.
Seguidos bem de perto pelos acompanhantes, eles foram se
postar contíguo à grande área de embarque que dava diretamente
para a pista de decolagem que estariam usando em poucos
minutos. O aeroporto era magnífico, sua estrutura se alongava em
centenas de pés parecendo uma enorme caixa de vidro e ferro. Os
passageiros que se moviam pelo espaço, circulando entre lojas,
balcões e telefones públicos acabavam de embarcar ou
desembarcar. O barulho não era muito alto, podiam escutar vários
rangidos, de tênis e sapatos sobre o soalho elástico que tentavam
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se sobrepor ao som das esteiras e dos aviões que se aproximavam
das hastes de atracação.
Sean aproximou-se da vidraça encarando a circulação de
homens e carros que chegavam e saiam dos aviões estacionados.
Lembravam formigas. Joshua não perdeu tempo e se ajeitou por
entre as pernas do irmão enfiando o nariz batatudo contra o vidro
impecavelmente limpo. De vez em quando ele fitava o saguão à
caça de sua mãe e o nariz raspava pela janela com um barulhento
fluip.
–– Você está preocupado com a cirurgia? –– soltou Joshua
entre as divagações de Sean.
–– Estou, mas parece que eu não deveria. –– algo dentro dele
dizia que era só uma desculpa para outra coisa. –– Quando penso
naquelas esquisitices que vinham acontecendo, eu fico mais
curioso para saber se era, realmente, só a minha imaginação ou se
existiam... –– calou-se quando percebeu que estava gastando sua
conversa com um pirralho de seis anos. Joshua nem se importou,
havia preferido olhar um gigantesco avião prateado decolando.
Sua cabeça continuava doendo e nestes momentos esforçava-se
para se concentrar em algo que não fossem as sombras, que
ficavam cada vez mais nítidas. Até viu três destes vultos
enfumaçados acompanhando-o pelo aeroporto. Ficou inquieto,
mas fingia que não era com ele. Logo depois as sombras mudaram
de rumo e se afastaram silenciosas.
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Talvez Sarah não compartilhasse da mesma opinião de
Guarini, pois raramente vira um terminal tão vazio e calmo. A
todo o momento as plaquetas mudavam, lembrando os voos
daquele dia e daqueles que foram cancelados devido às ameaças
terroristas corriqueiras. Exatamente por essa razão o aeroporto se
encontrava deserto, quase. Ao longe, aguardando o aviso de
embarque durante a vistoria de bagagens e passaportes, Sarah,
Sean e Joshua fitavam as obras de construção do Terminal Cinco.
Alguns pilares colocados, muitos andaimes e barro espalhado. Um
informativo dava detalhes de mais dois terminais ainda a serem
construídos, futuramente.
Guarini olhava obstupefato para o edifício, espantosas vigas
metálicas encurvadas formavam a sua suave cobertura. Gente de
todas as nacionalidades andavam preguiçosamente conversando,
apreensivas e temerosas sobre a viagem que estariam fazendo.
Pôde ouvir alguns grupos que embarcariam para algumas Cidades
Altas próximas. Mas a maioria seria redirecionada para os outros
terminais, com escala em Cidades Médias com as quais estão
mais acostumadas.
Perto do controle, a senhora Marie se adiantou entregando
alguns papéis que descobriria mais tarde serem licenças
exclusivas de embarque. Naxamuñaca se apressou em cortejar
dois senhores que vieram em sua direção bastante tensos, num
frenesi diferente do que estavam acostumados.
Um se apresentou como Diretor do Terminal, Sr. Wright,
adotando um impecável terno cinza que não combinava com a
mixórdia. O senhor Wright recebeu um envelope das mãos do
segundo homem, este parecia ser um secretário, pois parecia
alarmado e muito mais cansado que o próprio diretor, como
alguém que trabalha muito mais do que o patrão. Seu nome era
Ken Webster. A expressão dos dois homens denotava que, aos
olhos de Guarini, tinham extremo respeito pelo tio Xaxá. O
secretário chegava a gaguejar de agonia, mas até podia ser gago
de verdade.
–– Caro Senhor Naxamuñaca. Vejo que ainda usa estes
antigos salvo-condutos. –– abrindo um sorriso escorregadio. ––
As autorizações já foram entregues antecipadamente, alguém
muito respeitável zela por vocês. –– Tio Xaxá confirmou
balançando a cabeça e insinuando que prosseguissem. O velho
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senhor Wright retornou à sala de operações de onde centenas de
funcionários laboravam entregues aos seus computadores. O
fulgor e a higiene do ambiente dava ao lugar a impressão de que
estavam antevendo o amanhã. Luzes que piscavam, corroborando
os voos, flutuavam pelo saguão como se não tivessem qualquer
sustentação aparente. No balcão de informações, os terminais
individuais indicavam, através de complexos hologramas, o rumo
a tomar. Se não sabiam como circular, uma flecha surgia
igualmente flutuando desde o terminal até o ponto final. Para
Naxamuñaca estas tecnologias eram necessárias, mas se pudesse
evitá-las, o faria. Definitivamente não precisava delas, mas teria
que usá-las um pouquinho nesta manhã.
Quando o senhor Wright voltou, trazia consigo novos
documentos que se assemelhavam a computadores de bolso da
dimensão de um cartão e, um manual do tamanho de uma bíblia
de mesa. Tio Xaxá examinou-os –– Sr. Wright confirmou que teve
que substituir os arcaicos condutos de papel –– e lançou-os para
que Guarini os pusesse no embornal que subitamente cheirava a
queimado e chiou com o peso. A vantagem era que os tais cartões
ocupavam bem menos espaço e o voo seria a ocasião ideal para
aprender como.
–– Senhores –– declarou Wright ––, sigam o senhor Webster
que ele os levará ao setor de embarque do Terminal Três. Estamos
operando em estado de extrema urgência como podem ver. E este
terminal deve ser desativado ainda hoje, portanto sejam rápidos.
Não é sempre que montamos rotas de deslocamento desta
magnitude e aparelhamento, verdadeiras rotas de fuga em massa.
A coordenadoria de serviços gerais montou um posto inigualável
e contamos com o suporte da coordenadoria de proteção por causa
dos tumultos. Então, boa sorte. –– tranquilamente o senhor
Webster assinalou o caminho passando por um holograma que
contava os pormenores das Cidades Altas situadas na Grã-
Bretanha a uma velha senhora vitoriana perdida, que insistia em
saber onde ficavam os bondes que iam para Avery Park.
Viraram-se e saíram pelo portão, retornando ao Terminal Três
pelo exterior. A senhora Marie correu, com dignidade que
aparentava, para se juntar a eles. Ofereceu um cartão para
Naxamuñaca e outro para Guarini assoprando instruções: –– Não
diga nada, estamos disfarçados para não chamar a atenção,
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simplesmente embarque e relaxe. –– Como se precisasse mentir,
não sabia nada mesmo. Aliás, o que ela queria dizer com
disfarçado, sendo que dois índios em meio a centenas de alegorias
jamais seriam notados. Uma multidão de gente estranha; até
mesmo uns elementais que brigavam por uma sala very important
person.
–– Sorria. Se quiser ir ao banheiro, a hora é esta. –– piscou a
graciosa Marie, imitando uma mãe zelosa. A brincadeira ajudou a
descontrair. Guarini aproveitou a chance para perguntar ao jovem
Webster a causa de tanta desordem na Inglaterra.
–– Evidentemente ouviram falar dos ataques constantes em
Londres! Não?! Parece que um exército por fim conseguiu
assustar essa gente... Junte a isso os esforços de guardiões, não tão
discretos quanto costumavam ser –– enquanto retirava alguns
cartões do bolso com as imagens divulgadas ––, e uma
significante movimentação bem concentrada na França. E aí
temos todo esse caos. –– Mantinha o olhar sério ante as
fotografias que figuravam extensas legiões marchando
atropeladamente sobre Londres, como ele mesmo vira há dias,
junto ao monge, de dentro do ônibus vermelho.
Em instantes estavam emparelhados ao extraordinário Boing
747 da Air France com destino a Paris. Pelo finger de acesso ao
avião, que saia do Terminal número Três, os passageiros se
acomodavam aos assentos numerados assim que a comissária de
bordo insinuava os lugares certos com mãos galantes e sorrisos
mil. Fora, duas pranchas que levitavam, posicionadas em cada
asa, davam ingresso a certas pessoas que não constavam na lista
normal de passageiros. Indistintamente eram, também, guiadas
por prestimosas comissárias que asseguravam as acomodações
indispensáveis a cada um deles. Enquanto os passageiros
cadastrados pela companhia aérea descansavam entre as variadas
classes de conforto, os passageiros especiais eram acomodados
em belíssimas poltronas dispostas por todo o alcance da asa.
Alguns assentos compunham-se de íntimos ambientes como uma
saleta de reuniões bem equipada. E em uma dessas baias estava se
espreguiçando Naxamuñaca e seus dois companheiros de viagem.
–– Sei que não precisaríamos usar estes transportes, mas é
muito mais emocionante, chegam até a ser elegantes. E assim, no
meio de toda essa gente ‘pesada’ ficaremos incólumes. ––
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bocejando mais uma vez. –– Sempre gostei de voar, mas desse
jeito é mais divertido, pode dizer que sou antiquado.
–– Por que não nos sentamos lá dentro?
–– Não gostaria que alguém sentasse em mim, não é?
O compartimento da asa de um superjumbo é, conforme o seu
projeto, grande demais, mas não daria para arranjar tanta gente
sem que tivessem que fazer um certo contorcionismo entre cabos,
fios, canos, placas, tanques, máquinas e mostradores. Decerto eles
estavam lá, como se toda essa tralha tivesse sido afastada,
ganhando um espaço que não condizia com o exterior. Einstein
enlouqueceria de prazer.
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janelinha, já haviam sumido. Uma sensação de dejà vu
permanecera por mais tempo.
–– Juro que tinha algo, bem lá naquele buraco –– dizendo
para si ––, devo estar enlouquecendo. –– devia ser a pressão do ar
misturado com um pouco de sono, pensou.
No fundo da aeronave, uma garotinha berrava com os pais ––
Olha! Tem gente na asa do avião, tem até... –– segurando um
pouco –– um gato. Impacientes, colocaram-na nos assentos do
corredor ameaçando umas boas palmadas se voltasse a mentir.
–– E o gato?! –– menina insistente.
67
5
acredita em fantasmas?
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New York fosse uma big apple, se bem que nem se parecia com
uma.
O turbilhão dentro do saguão era muito parecido com o do
aeroporto de Londres, com exceção do número reduzido de
guarda-chuvas e do sotaque melodioso que os franceses possuíam.
Era incrível a sensação. Joshua estava sempre pasmado, fazendo
com que seu irmão ficasse apertando com certa repetição sua
mandíbula. –– Pare de babar, tá chamando atenção. Quer que te
chamem de... –– experimentou em francês, não muito feliz com a
experiência.
Embora Sarah não soubesse por onde começar, nem precisou
deslocar alguns metros e esbarrou com a solução. O rapaz, bem
mais jovem do que ela, sorriu pedindo escusas –– como se fosse
ele o desligado.
–– Você está precisando de algo, senhora?
–– Sim, preciso, sim... Sim. Estou desesperada e não conheço
ninguém nessa cidade. –– tremia enquanto recuperava o fôlego.
–– Pois não está mais. Se me seguir, agora, posso levá-la até o
seu avião, qual é o número do portão de embarque? –– desconfiou
ele que, não vendo nenhuma mala, elas já tivessem sido levadas.
–– Não, eu acabei de chegar, estou com os meus filhos. ––
verificando que o sorriso do rosto do rapaz havia desaparecido.
De cabelos curtos e claros, vestindo-se relaxadamente de modo a
aparentar menos de dezoito anos, com calças que parecem um
armário de tantos bolsos largos que tinham, esticou sua mão para
se apresentar. –– Prazer. Bem-vinda a Paris, sou Marc.
Sarah percebeu a gafe e se apresentou. –– Me chamo Sarah,
Sarah Fox.
–– De Londres?
–– Sim?! –– virando a cabeça perplexa.
–– Procurando emprego? Ou pelo menos se apresentando para
um? –– rindo da coincidência. Podia jurar que uma voz na sua
cabeça insistia em dizer: coincidência não existe. Com os olhos
apertados esperava que ela completasse.
–– S-sim?! –– mais admirada, decerto um bom vidente.
Bernis simplesmente ergueu os braços e sinalizando para si
concluiu: –– Então eu devo ser o seu chefe! –– Aquele rapaz
desconcertou o mundo de Sarah. Imaginava-o um velhote
arquejante que não conseguia levantar sequer sua papelada
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embolorada de escritório ou que apenas precisasse de alguém que
fizesse uma faxina, e só. Mas, diante de Bernis, só conseguiu
grunhir ou balbuciar algo parecido com: –– Sr. Marc Bernis?
–– Mais ou menos isso –– percebendo que a pronúncia não
era exatamente essa ––, mas me chame de Marc.
O resto foi muito mais simples, ele apertou alguns dígitos
solicitando para que o motorista que o havia levado ao aeroporto
voltasse. Escreveu um endereço em uma mensagem garranchosa
pedindo para confiar as chaves do seu apartamento e, finalmente,
alguns euros antecipados a contragosto de Sarah. Estava salva.
Mas ainda teria que ver bem quem é esse Marc, realmente muito
estranho o rapaz. Nem se lembrou de interrogar o que faria no
museu, mas imaginou que coisa séria não podia ser –– bem, ele
não devia ser experiente, não devia ter nem vinte anos!
70
com o que Guarini fosse pensar de sua desorganização, não se
comprometia com tabelas, mas com tanta atividade na área, hã?
–– Espero que sim, senão me demito. –– e ambos riram.
72
médico verde de rosto coberto se aproximou com alguns trecos na
mão.
–– Sean, você se lembra onde está? –– olhando fixamente
para um monitor barulhento.
–– Hos... pi... tal?! –– falando pelo canto da boca num
sussurro inaudível por entre os tubos de respiração. E o rosto
branco ganhou um leve rubor quando a médica deu um salto de
alegria batendo a testa no equipamento em volta. Seriam três
pontos, ali mesmo, na sala cirúrgica.
–– Acho que ele disse hospital. –– A doutora Mel encostou ao
lado de Sean, podia vislumbrar o sorriso atrás do pano que lhe
cobria o rosto. Pôs as mãos sobre a testa confirmando: –– Sim,
parece que está tudo certo, meu filho. Calma aí. Estamos
terminando. –– e fez um OK esplêndido, seguido de alguns
aplausos da equipe. Sempre com a mão à testa.
O que Sean viu a seguir talvez fosse a sua imaginação ou
algum efeito dos medicamentos, pois atrás de cada médico e
enfermeiro esverdeado havia mais duas ou três pessoas vestindo
uniformes estranhos que pareciam fulgurar na penumbra, aliás,
eles pareciam brilhar também. O que estava adjacente à médica
erguia os braços sobre seus ombros enquanto outros analisavam
aparelhagem indefinida. Monitores translúcidos flutuavam diante
deles diagnosticando gráficos e órgãos que se agitavam em tempo
real. Mas o tempo estava acabando, administraram novamente os
anestésicos.
Pôde ouvir desencontrados pareceres.
–– Mais fluido... Verifiquem se ocorreu o desligamento com
os cirurgiões... Desmobilizem a equipe de emergência. Contate o
Dr. Basha no Núcleo de Desenvolvimento de Medicina e lhe
informe que terminou conforme esperado. Ainda estamos
enfrentando problemas com um pequeno grupo invasor, portanto
nos envie proteção imediata. –– Só teve tempo de virar um pouco
a cabeça e ver-se a si mesmo, de pé, como uma imagem refletida,
não se importando tanto e, em seguida, um cilindro ofuscante,
antes de dormir pela segunda vez.
80
–– Vamos dar algumas semanas, depois ele é nosso. –– E saiu
disparado pelo corredor, esbarrando no nada e dando com a cara
no piso de vinil. Tiago não teve tempo de rir, pois Sean voltava a
falar gemendo, assustado com algo. Mas Guarini riu sim. E uma
pequenina chama que esgueirava recuou até o embornal.
–– Alguém me tire daqui! –– sussurrou cansado. Tentava
imaginar porque aquilo o incomodava e não encontrou resposta.
Então por que continuava a se sentir mal? Em instantes as vozes
desistiam e Sean viu Tiago, entorpecido à porta, saindo em busca
de auxílio. –– Espera Tiago, já estou melhor. Foi uma dor de
cabeça. Se pelo menos pudesse sair um pouco... –– Tiago retornou
e acenou.
–– Sei de um modo, mas é arriscado... Precisaríamos passar
pela gárgula. –– se referindo à enfermeira carrancuda e brava
sentada ao computador e que nunca descumpria ordens.
Sacou uma caneta do bolso e sorrateiro pegou a prancheta à
base da cama. –– Hum, vejamos... solicitação para saída das... ––
consultou o relógio com a língua escapando pelo canto –– das
quinze horas às quinze e trinta, está bom? Não é bom dar tempo
demais, ela vai desconfiar.
Aconchegou a prancheta médica sobre a cama e fez, com
cuidado redobrado, uma assinatura que de relance ele desconfiava
que era a da mãe. Fez umas voltinhas, pontinhos e estava pronto.
–– Você falsificou uma solicitação? É a assinatura da sua
mãe, não é?
–– Eu não chamaria de uma falsificação. Se eu fosse
realmente fazê-lo seria “o documento”. –– frisou como se
pudesse. –– Já que sei mesmo e não vai fazer mal algum... Vamos
lá.
–– Mas como? Você não está querendo me enrascar, está?
–– Confie em mim. É algo nato, parece que sempre fiz isso,
sei lá. –– Seguiram, de cadeira de rodas, muito naturalmente
quando a gárgula estancou os olhos pequeninos e frios nos dois.
Por cima de seus óculos angulosos, na ponta do nariz, os olhos
brilhavam de contentamento... Iria pegar mais uns safadinhos
fujões.
–– Esperem aí... Aonde as crianças pensam que vão? ––
jorrou a enfermeira sob seu penteado irreprochável. Tiago
respondeu meio perdido, fingindo. –– Vamos ao pátio interno...
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tomar sol?! –– com esse tom de dúvida, estragou tudo –– Temos
até autorização. –– Rapidamente a senhora de branco lançou o
olhar sobre o documento estendido. Quando ia começar a pegar o
telefone, Tiago que já pressentia a enrascada em que se metera,
algo aconteceu. Ela pegou a caneta borrada e assinalou um visto e
fez mais, sorriu simpática para ambos.
–– Nunca tinha visto aquela bruxa velha sorrir... Acho que
você prometeu um beijo. –– disse baixinho para Sean.
–– Não mesmo. –– disse encabulado, de rosto vermelho.
A ansiedade estava diminuindo e chegavam ao largo. Iria
pensar no que aconteceu com mais calma, entretanto Tiago fincou
firmemente, esperando uma resposta. Sean balançou os ombros
não entendendo a atitude do amigo.
–– E então, vai me contar o que está acontecendo? Ou vou ter
que usar uma das minhas técnicas de persuasão? –– relembrando
de quando ele e Mateus amarravam um Lucas pelado no hall do
prédio que moravam. Ele pediu por isso.
–– Você... você... acredita –– escolhendo o que dizer, por fim
decidiu-se pelo simples e direto ––, acredita em fantasmas?
Não saberia dizer se Tiago estava prestes a gargalhar ou bater
a mão nas costas em apoio à loucura, o que teria sido igualmente
devastador. Mas parece que o garoto tinha uma terceira opção.
–– Você não é daqueles esquizofrênicos que a mamãe cuida
de vez em quando, é? Ela vive falando desses loucos que são
internados no hospital, mas eu sempre achei que fosse só para me
assustar –– disfarçando algo. –– Um dia eu te largo lá, ela vive
repetindo.
Sean não sabia como responder. Continuou escutando o
tagarela. –– Lembro uma vez, de uma mulher que achava que era
uma toupeira e se escondia debaixo do hospital onde nem cabia
uma de verdade. Nunca entendi direito! Mas também tinha...
–– Cale a boca! –– gritou Sean. –– Não está vendo que eu não
queria isso? Aconteceu!
–– Então é verdade? Pô, cara, ninguém merece. Você vê
fantasmas... E eles são branquinhos e transparentes... Carregam
correntes... Acho que neste lugar devem ter muitos. –– se Tiago
estava eufórico, Sean parecia muito mais aborrecido. Estava se
sentindo um palhaço. O que Sean não percebeu foi que Tiago
estava tão nervoso quanto e, para não dar na cara começava a falar
82
sem parar. Todavia estava escondendo algo, pois os seus olhos
diziam outra coisa, estava apavorado com algo que Sean havia
dito.
O dia estava mais claro do que ele recordava e o vento suave
espalhava o frio em ondas que separavam os doentes protegidos
dos agasalhados. Dali a pouco, se lançava a doutora Mel, ao pátio,
com expressão de raiva reprimida, tirando-os da friagem. –– É
hoje, Tiago. –– E só, não precisava explicar. A orelha puxada iria
ficar marcada por dias antes que a mãe resolvesse aplicar um
curativo. Também, sendo médica, não podia deixar pacientes sem
cuidados. Cuidados que não a impediam de causar outras
punições.
Punições como castigos e muito trabalho forçado.
83
6
a premonição.
84
Porém Sean não escutou nada do que lhe diziam. Não estava
preocupado com o zelo excessivo, mas com o que poderia
acontecer caso percebessem que as visões e os sussurros não
haviam desaparecido, e pior, pareciam ter aumentado em
quantidade e qualidade. Esquivava das coisas estranhas como
quem desconfiasse da própria sombra, mas logo precisaria
descobrir o que estava acontecendo... Ainda pensava no cavaleiro.
Mas havia tempo.
No intervalo entre as aulas, Tiago e seus amigos se reuniam
com Sean, que se entrosara rapidamente ao bando. Estes novos
colegas o tratavam do modo mais comum e prosaico do que podia
se lembrar, mas uns mal-encarados, os arruaceiros do colégio, o
rodeavam com olhares mal-intencionados. Nem Tiago, nem
ninguém, falava a respeito dos garotos que viviam batendo ou
importunando por todos os cantos. Por onde eles passavam
formava uma clareira de medo. Entrementes Sean havia notado
que ele não tinha sido abordado pela corja até então.
O que ele não sabia era que Tiago tentava adiar este encontro
e disse aos amigos que não tocassem no assunto. Ele bem sabia
que os trogloditas iriam atacar logo. Como prevenção, pedira aos
colegas, Andreu, Jean-Marc e Henri, que ficassem com um olho
em Sean e o outro no bando.
–– Não deixem encostar um dedo sequer... O cara já tem
problemas demais. –– demonstrando que ele tinha parafusos a
menos. Entretanto não contou nada dos fantasmas, não acreditava
muito no que tinha lhe contado ou se estava se enganando...
Fantasmas, será? O grupo era o único suficientemente forte para
impedir os arruaceiros, em parte por serem os mais corajosos e
seus pais terem voz ativa no conselho do colégio e poder para
amedrontar bastante; no geral, eles ficavam, cada um do seu lado,
sem choques.
Perder a oportunidade de incomodar um aluno fresquinho,
novo em folha... Maurice, o próprio pesadelo dos colegiais, não a
perderia. Ele e seus quatros cavaleiros do apocalipse, inclusive o
Sapão que lambia os pés de Maurice.
–– Então, o que vocês estão tramando? –– desconfiou Sean do
silêncio –– O que vocês querem me dizer!
Tiago respondeu por todos. –– É que estávamos precisando
contar algo, muito importante... Cuidado com Maurice.
85
–– O diabo briguento? Não fiz nada para aborrecê-lo! ––
pensando que desta vez estivesse livre deste tipo de gente ––
Entendi. Ele só estava dando um tempo por causa do meu estado,
e quem foi que pediu esta trégua?
Os quatros se olharam, mas foi Tiago quem respondeu
novamente. –– Fiz um acordo com o Sapão, ele te viu no hospital
no dia daquela crise. –– sussurrando crise –– Ele deve estar
tramando algo, não para de nos encarar, vê? –– apontando com os
olhos, Maurice e bando. Muito cuidado, disse Sean para si
mesmo, parece que, até aqui, ele era o esquisito de sempre. Não
conseguia fugir do passado.
Completava seis semanas, nesta sexta-feira, que estava
perambulando por aí, sem que tivesse visto ou ouvido fantasmas
ao seu redor. A sua preocupação insistente era quando Maurice
apertava o cerco saboreando cada reação de Sean, que procurava
se esconder como fazia em Londres. Tentava se apagar, se
disfarçar e assim ninguém o notaria. Para a sua tristeza, Maurice
gostava de brincar, e não eram nem tão diferentes assim.
Contudo sutis mudanças aconteceram no modo de agir de
Sean, estava mais relaxado, cabelo revolto, roupas desarrumadas e
muito mais displicente e desligado do que costumava aparentar.
89
–– Aconteceu algo muito estranho. Enquanto estava
desacordado, tive um sonho e... você estava nele. –– Tiago ouvia,
agora mais atento. –– Tava mais para pesadelo. Tinha um acidente
grave, havia muita fumaça e gritos e eu tinha que ajudar alguém,
mas estava com medo.
–– Medo do quê? –– cutucava Tiago.
Sean continuou a narrativa do pesadelo, explicando tudo, pelo
menos o primeiro sonho, os detalhes e principalmente o momento
em que ouvia Tiago repetir: –– Eu acredito em você.
Tiago não deu crédito, mas ficou preocupado com o devaneio,
também vinha sentindo certa angústia nos últimos dias. Pensou
que fosse por causa do Maurice, mas depois de tudo ainda estava
ansioso e angustiado. Também tinha sonhos estranhos e quando
ouviu Sean falar do tal homem, da fumaça e das luzes piscando...
parou de sorrir. Engoliu as palavras e partiram.
–– Esta confusão de hoje foi diferente, até parece que tirei um
peso das costas. Amanhã será outro dia, descanse a cabeça...
senão a minha mãe nos interna, vontade não lhe falta. –– Tiago
concluiu o assunto.
Caminhavam desligados da azáfama que os rodeavam,
quando a multidão aglomerou-se por aquelas ruas apinhadas
impedindo-os de andar em linha reta. A rua Mouffetard era o que
se poderia descrever como a maior pequena rua do mundo, a cada
passo, barracas com artigos do mundo inteiro invadiam as
calçadas. O ar mouresco era o reflexo do ambiente e a variedade
de pessoas que circulavam rumo à praça de Contrescarpe em
ondas divergentes. Sean andava com dificuldade enquanto Joshua
seguia, como sempre, à frente, como quem anda num
descampado, sem preocupações, de olhos fechados se possível.
Tiago continuava quieto, portanto Sean olhava por entre as
pessoas tentando entender o que tinha acontecido. Ainda lhe doía
o soco no rosto.
Vendedores urravam, pessoas compravam e alguns carros
insistiam em transitar. Um leve olor de chá de menta se fez sentir
num quiosque árabe. Por fim algo atraiu seu olhar, alguma coisa
resplandecente se movia logo adiante. Quando pôde vislumbrar o
que era, assustou-se imobilizado. Em outros tempos as pessoas
correriam para as suas casas assustadas, mas elas não o viam. Era
o cavaleiro, montado no mesmo animal branco. Sua armadura
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ornamentada refletia a luz dos postes de iluminação que se
acendiam com o negrume da tempestade que se aglutinava. Era
um verdadeiro mar de cabeças e acima delas, o cavaleiro guinava
seu cavalo inquieto com a lança descansada.
Sean sentou-se no chão.
–– Vamos embora daqui. –– sussurrou para Tiago e Lucas que
obedeceram assim que perceberam a expressão de espanto
embranquecer o garoto. O que era verdade, o medo congela. Ele
ainda não estava tão bem quanto pensava para enfrentar mais esta
assombração. Como queria voltar aos velhos tempos em que
somente sons e luzes o incomodavam; Londres era bom demais.
As rixas, ele já se acostumara.
Por que isso tinha que piorar?
Um indiozinho o observava em silêncio. Passos colados,
vigilantes e atenciosos.
Não ia deixar o moleque sozinho.
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7
os paramédicos
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Joshua. Estava ele particularmente mais hiperativo, o que dava um
certo trabalho controlar os arroubos de fuga e captura. Se não
fosse pelo senhor Fox, que conhecia muito bem as estratégias do
filho, os garotos chegariam atrasados à escola... talvez Lucas até
gostasse de perder as primeiras aulas.
–– Não sei como você escapou de levar uns pontos, o diabo
nunca deixa ninguém inteiro. –– falava Lucas puxando Sean num
abraço desconfiado e violento.
–– Sorte, talvez. –– argumentava Sean. –– Eu é que não vou
esperar para descobrir.
–– É, talvez. Quem sabe da próxima vez o Tiago não esteja
por perto e...
No colégio, Sean recebeu uma recepção mais excepcional da
que se acostumara por parte de funcionários, professores e
principalmente dos colegas que não suportavam Maurice e
agradeciam a Sean pela detenção. O que também não passava de
um cumprimento seguido de um muxoxo de pena assim que ele
virava as costas, prevendo que ele logo voltaria às suas atividades
normais, cobrando juros e correções monetárias.
–– Ele foi incrível, mas nem quero ver... –– dizia um aluno
mais velho, que nunca encarava o bando.
–– Alguém tem que esfregar na cara dele a verdade de vez em
quando –– contava outro ––, desde que não seja eu!
Alguns não contavam vantagens, tornando-se neutros, ou
quase. Caso ouvissem-nos falando escondidos, teriam sérios
problemas. Outros se mostravam irredutíveis quanto quem é o
melhor, se bem que havia medo por trás destas manifestações.
–– Esse gringo já era.
–– Deu uma de intrometido. Já haviam me falado que ele era
estranho e a história dos fantasmas... dá pra acreditar? ––
murmurou.
Todo o dia parecia dedicado ao assunto e por algum tempo
Sean se sentiu uma celebridade sob tantos olhares indiscretos,
principalmente das garotas. Era completamente diferente dos
olhares que estava habituado, de pena e medo, mas afinal era o
mesmo assédio. Nem havia enfrentado Maurice... mas teria, cedo
ou tarde, que ficar de cara com o diabo. Ainda que quanto mais
tarde fosse, melhor.
93
Quase tinha se esquecido dos problemas. Caminhava
tranquilamente através do pátio da escola, abeirando-se do local
marcado. Um pouco antes, Tiago saia correndo em sua direção,
ofegante, e aproveitava para perguntar sobre o pesadelo da
semana anterior.
–– Também estou preocupado com o sonho. O que você acha?
–– ajeitando a mochila que vinha arrastando discriminadamente
pelo chão empoeirado.
Sean, surpreendido, responde o que pensa. –– Você tinha que
me lembrar?! Tava quase esquecendo. –– de olhos fulminantes ––
Bem, lá vai. Depois do que vi e ouvi, não acho que seja à toa, mas
você não está atormentado pelo que possa me acontecer, heim?
–– Não! –– chocando Sean pela segunda vez –– Estou
preocupado com uns sonhos meus, muito parecidos. Não sei bem
no que acreditar. Mas sinto como se... como se.
–– Como se fosse acontecer de fato? –– completou de repente,
interrompendo Tiago que se atrapalhara nas palavras.
–– É isso que está me azucrinando. Você acha que estou
enlouquecendo? –– se esquecendo de que Sean era a pessoa
menos apta para se perguntar algo sobre loucura.
–– Bem, você sabe... acho que você está perguntando para a
pessoa errada. –– eu sou o louco varrido, pensou –– Eu não sei,
realmente não sei. E Tiago nem se lembrou de contar o que
aconteceu quando tocou Sean naquele dia, enquanto tentava
despertá-lo do desmaio. Arrepiava-se só de lembrar.
Em instantes Lucas se reunia aos dois, rumo ao educandário e
depois à estação de metrô mais próxima. Apertaram-se para passar
lépidos pelas catracas apinhadas de gente que se separavam em
passagens para os diversos distritos de Paris. No subsolo, uma
rede de túneis interligava plataformas que levavam toda essa
gente para qualquer direção desejada. Alguns músicos esperavam
encher seus bolsos enquanto uma cantilena pedinte de mendigos
decorativos o exigia, sem cerimônia. A turba passava impassível e
ligeira por eles.
Embarcaram silenciosos. Todos estavam quietos, com
exceção de Joshua que não parava de andar de um lado para o
outro do vagão. Nada que não se esperasse de uma criança de seis
anos quando sua curiosidade era muitas vezes superior ao de
qualquer adulto; ainda mais cansados como estavam. Lucas que já
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estava bastante aborrecido não se controlou e descontou sua
inaptidão no pequeno garoto.
–– Senta e fica quieto, seu fedelho! –– puxando Joshua pela
gola do casaco, quase o sufocando. Sean não gostou da atitude e
empurrou Lucas para longe, ante a imprevisível reação do irmão
do amigo. As pessoas viraram seus rostos, indignadas. Um espaço
se abriu entre eles e os garotos.
–– Vê se enxerga. Olha o seu tamanho. Depois ele é o único
que não está triste e emburrado por aqui! –– bastou isso para que
o sangue subisse à cabeça com tamanha cólera que, se não fosse
Tiago se interpor, eles estariam rolando pelo piso. Entretanto não
foi o suficiente para que impedisse o revide contra Sean. Tiago
caiu sentado no banco vazio, batendo as costas com violência. De
novo, em menos de uma semana, Sean se envolvia numa briga, e
para quem fugia destes problemas! E antes que Lucas acertasse
em cheio o rosto, Joshua mordeu o braço erguido.
–– Aiiii! Porque vocês atrapalham a minha vida! –– deixou
escapar por entre os dentes, mas ninguém percebeu.
Estava extravasando toda a cólera acumulada, no fundo sabia
que estava errado. Não obstante fazia isto por que eles estavam
ali, naquele momento, irritando-o a ponto de transbordar o copo.
Nem se importou em descontar neles, muito mais fracos do que
ele, o que outros haviam lhe provocado.
Não tiveram tempo de revidar, pois o vagão havia parado
bruscamente numa estação que escapava à observação dos
meninos.
Os demais passageiros procuravam disfarçar os olhares
contrafeitos enquanto entrava uma leva compacta de novos
transeuntes. Um senhor até balançava o jornal aberto, tentando se
fazer notar e deste modo, que os moleques percebessem a
descompostura. Nesta balbúrdia não notaram que Joshua havia
escapulido por entre as pernas das pessoas que se apertavam no
pequeno veículo e já corria longe para a saída do subterrâneo.
Sean, por instinto, agarrou Tiago pela alça da mochila e criou
uma passagem forçada. Lucas não podia estar apático à fuga do
Joshua e seguiu-os angustiado com o que ouviria mais tarde da
boca da mãe.
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E ele desacelerou por causa de um mal súbito; um reflexo no
canto do olho modificou seu temperamento, tinha que alcançar o
garoto. Mas sentia, queria muito que ele sumisse.
Algo remexeu no seu íntimo, uma raiva atroz subia à cabeça,
como uma voz que instigava. Podia sentir o frio metálico gelando
seu corpo... No entanto lutou contra, precisava encontrar os três.
Podiam vê-los sumir pelo túnel. A boca de saída para a praça
Monge encontrava-se abarrotada.
101
Durante a explicação o outro digitava algo ao computador e
falava num mecanismo, semelhante a um telefone celular, com
alguém que se preparava para acompanhá-los na intervenção. ––
Não está errado? Ele pode ser ajudado? É um tiro no escuro,
quantas vezes você ouviu falar que alguém sobrevivesse nestas
condições? –– seguia com as perguntas pelo intercom.
Todos estavam envolvidos em algo improvisado às pressas,
mudança de última hora, e tudo que estava acontecendo estava
errado, pelo menos nunca desse jeito. Sempre havia um
planejamento de anos, talvez meses... nunca de minutos.
–– Pronto, estamos autorizados. Ele não pode morrer, não
hoje. –– sussurrou sorrindo.
Neste instante, de outro cilindro, uma imagem apareceu como
um holograma, era outro homem de uniforme médico, mais
atraente que os jalecos brancos do hospital da doutora Mel.
Debruçou-se sobre a cópia diáfana do paciente e autorizou a
intervenção de um procedimento incomum, mas necessário devido
às circunstâncias urgentes. Apertou uns botões e se afastou em
silêncio. O computador deu dois piques e reacendeu a imagem
holográfica. O cérebro de Sean foi invadido de dados como se
estivessem descarregando um arquivo, fazendo um download em
tempo recorde.
–– Pronto, é todo seu! –– disse o terceiro homem que se
projetara há pouco.
–– O que é todo meu? –– Tiago ficou assustado com a
pergunta do amigo. A informação temporária fazia sentido para
Sean que: –– Os efeitos da pequena quantidade de sangue no saco
pericárdico são desprezíveis, mas, quando o volume atinge 150 a
200 ml, às vezes, instala-se um choque severo, talvez mesmo
abrupto, já que o pericárdio não pode ser distendido. Nesse ponto
crítico o acréscimo ou a remoção de pequena quantidade... No
way! Enfim que, o resultado final depende da interação de três
variáveis importantes: o ferimento cardíaco, o ferimento
pericárdico e o hemopericárdio... ufa! –– agora entendia o
problema, mas todos esses dados não lhe davam a experiência que
precisava para atender o trauma.
–– Cara, que foi isso? –– admirava Tiago, boquiaberto.
102
–– Mas não é um trauma cardíaco fechado? Já sei ––
respondendo para si ––, o impacto brusco provocou a ruptura do
tecido.
–– O equipamento estará obedecendo ao seu comando, ele lhe
ensinará como fazer o reparo. –– Sean repetiu para Tiago que o
incentivou a tentar. –– Mais do que isso, só se eu... –– impedido.
–– Tentar o quê? –– O paramédico sugeriu pedir uma
simulação para reconfiguração física do coração, ao que Sean
reproduziu atropeladamente. A seguir, um outro holograma, mais
próximo do coração, apareceu diante dele. Ela mostrava a seringa
sendo introduzida por um canal imaginário e retirando cento e
vinte e sete miligramas, conforme a atividade presente.
Os paramédicos afastaram-se do paciente, se colocando ao
lado de Sean, pois os monitores haviam sido reposicionados para
o operador, modificando todas as suas atividades para ele. Um dos
médicos se colocou atrás de Sean, apoiando as mãos sobre a testa
dele: –– Nós vamos melhorar as suas reações, não se preocupe se
esquentar um pouco.
Toda vez que Sean tentava enfiar a seringa asséptica no peito
iodado, não conseguia prever se estava certo ou não, chegou a
bater nas costelas do homem que tinha sido virado cautelosamente
para a operação.
Sean pensou em algo diferente.
–– Insira a seringa e minha mão ao holograma em tempo real.
–– pediu Sean ao computador que respondeu acrescentando as
novas imagens –– Uau! Até parece uma daquelas cirurgias à
distância. –– brincando com sua mão virtual.
Enquanto olhava para as imagens, que desta vez indicavam
acertadamente o ponto, pôde sentir a agulha entrar devagar até o
coração. Respirou fundo e começou a sugar o excesso de sangue.
O computador fazia o cálculo e cronometrava o tempo restante
para a próxima parada cardíaca, que era muito pouco. Num dos
monitores a imagem balançava com as batidas fracas do coração.
–– Doze miligramas, trinta segundos, vinte e três miligramas,
doze segundos, trinta e nove miligramas, cinco segundos,
cinquenta e um miligramas e terminou, sessenta e três miligramas.
Sacou devagar a seringa, Tiago ensaiava um desmaio. E o
acidentado piscou os olhos e por um instante encarou Sean.
103
Sean suava em profusão e deixou-se relaxar curvando-se
sobre as pernas pronto para desmaiar. Não havia tempo. Ouviram
os primeiros passos, e as luzes das lanternas já piscavam na
extremidade da estação. Os dois paramédicos pediram para que
eles fugissem, pois não iam conseguir explicar o que aconteceu.
Sean agarrou o amigo pelo colarinho e balançou-o seguidamente
até que despertasse.
–– Vamos sair daqui... agora.
Ao levantar, Tiago ainda queimou a palma da mão num
encanamento exposto, xingando quem podia e não podia,
acelerando os procedimentos para a escapada. E se foram.
Os paramédicos piscaram agradecidos.
Perto da boca, no fim da plataforma, Sean viu mais duas
pessoas no cais oposto, o único trecho possível. Será que elas
haviam visto o que aconteceu? Contudo não se preocupou em
saber, pois uma das pessoas se adornava com um manto vermelho
de onde só apareciam as sandálias, e mantinha um olhar bizarro
neles. O outro tinha um aspecto de frade com sua túnica escura
cobrindo sua obesidade mórbida e se postava mais afastado,
afagando uma chave que pendia da cintura, junto à máquina de
refrigerantes. De jeito atrapalhado e cambaleante que contrastava
muito com o seu rosto lívido que denotava algum desânimo e
indiferença ao que aconteceu. Foi tudo tão rápido que Sean não
viu o estranho sorriso que apareceu no rosto do homem do manto
púrpuro.
Instantaneamente sentiu uma dor lancinante em sua cabeça e a
sua visão turvar, uma ânsia forte agarrara-lhe o estômago e sentiu
que algo ruim o cercava, parando-o.
–– Alguém o queria morto! –– referindo-se ao corpo que
largaram aos cuidados dos policiais. Era só uma sensação.
Tiago fora mais prático, esquecido da queimadura, apanhou e
empurrou Sean escada acima enquanto ele insistia em olhar para
trás.
–– O que tá acontecendo, cara? –– e já estavam à luz da praça
movimentada e repleta de ambulâncias e policiais, atendendo os
feridos e afastando os curiosos. As sirenes berravam avançando
por todos os lados, disfarçando os gritos dos bombeiros e de
alguns histéricos. Num dos cantos, separado por uma faixa de
isolamento mal ajeitada, estavam Lucas e Joshua tentando
104
argumentar com um policial o acesso. Quando os dois se
aproximaram de Lucas este ergueu um olhar de alívio e satisfação
que durou frações de segundo, caindo na mesma expressão
rabugenta e descontente, mas agora com uma pontada de ódio.
Eles estavam brancos de pó, tossindo. Sean não se sentia bem,
talvez toda a adrenalina tenha desarranjado seu organismo e o
estresse tenha alcançado seu ponto máximo, porque ainda sentia
náuseas e a dor de cabeça voltava inflexível.
Algo tão forte quanto o que havia acontecido em Londres, no
dia do desmaio, estava se aproximando. Foi tão forte que o sangue
escorria de seu nariz.
De longe, alguém atento aos garotos, seguia entusiasmado,
com o olhar, a ocasião que se apresentara oportuna, mesmo eles
tendo estragado seus planos.
Sean não pôde se controlar e vomitou aos pés de Lucas.
Irremediavelmente.
107
8
conversando sozinho.
108
que aconteceu no metrô. Era óbvio que ele sabia a verdade, Tiago
não conseguiria manter o segredo com os irmãos por tanto tempo.
Em tempos, Sean tentava arrancar Mateus do devaneio com
algum assunto relacionado à aviação e este até tentava esboçar
algum contentamento. Inútil, pois a tal garota era justamente
funcionária do aeródromo e era falar num que pensava noutro.
Seria melhor calar-se.
Tiago resolveu ficar quieto, deitado com os pés cruzados
saindo pela janela, lendo um manual que salvou mergulhando as
mãos naquela lixeira: Cessna F-152. Bah!
A esta altura já deviam estar próximos da entrada para
Moisselles, aumentando as expectativas de Sean que procurava,
com o passeio, esquecer o que havia acontecido no metrô.
Precisava se manter longe, mas ficava constantemente pensando
no acidente. Se, entretanto, Mateus conversasse mais, poderia se
distrair. Mas, distraído estava mesmo era o condutor, que não
percebeu quando entraram numa névoa diáfana que atravessava a
pista, saindo da floresta cerrada que margeava os dois lados da
autopista.
Não parecia normal, considerando que o dia estava claro e
límpido, verdadeiro céu de brigadeiro. Mateus percebeu a tensão
de Sean e rindo esclareceu o fenômeno.
–– Dizem que estas florestas são assombradas –– mentindo
pela chance de pregar uma peça ––, e que muitos desaparecem
quando entram nestas nuvens.
Sean não sabia se acreditava, todavia um sinal o alertava para
o perigo, estava com a tal dor de cabeça que sufocava suas ideias,
ouvia uma voz sussurrando, não entendia o quê.
–– Que foi!
–– Não sei bem, a cabeça dói e...
Neste instante um cavalo de batalha, imponente, cavalgado
por seu cavaleiro metálico de espada empunhada, cortou a estrada
lentamente, soltando fumaça pelas narinas. Antes mesmo que
pudesse advertir Mateus, este freava violento, girando o carro
algumas vezes, saindo da estrada e se enfiando inclinado numa
clareira úmida, num charco escuro.
A fuligem e o guincho dos pneus romperam o sossego. Não
havia mais ninguém, rodovia inacreditavelmente deserta.
109
Enquanto giravam, Sean pôde ver com nitidez que o cavaleiro
olhava diretamente em seus olhos, mesmo que tudo tivesse
acontecido em poucos segundos. Pôde ver bem os olhos de um
profundo azul. Um olhar que indicava admiração, curiosidade. No
tórax, sobre a couraça, um manto branco estampava uma cruz
carmim que não tinha percebido antes.
Demorou um pouco para que eles acordassem do impacto.
Esfregando braços e testas doloridas. Gemiam em coro. Aos
poucos saíram do automóvel, que parecia não ter sofrido senão
alguns arranhões indesejados. Instintivamente Sean procurou por
Mateus. “Será que também viu o cavaleiro? Só podia, o que mais
poderia ter provocado o acidente”.
–– Acho que havia óleo na pista! –– com expressão lívida de
quem tentava se convencer, ajeitando as costas.
–– Não viu o... cavalo? –– escolhendo as palavras com
cuidado, não queria que Mateus desconfiasse, bastava um por
família; se nem o Tiago entendia direito. Desta vez foi Mateus
quem se assustou. –– Cavalo? Não, não tinha cavalo nenhum na
estrada. –– engasgando-se. Os olhos estavam bem abertos e dava
para sentir a respiração ofegante. Talvez fosse só o acidente, mas
Sean percebeu algo diferente em suas palavras.
Pararam para ver onde estavam e como sairiam sem maiores
dificuldades daquele emaranhado de galhos e ciprestes secos. O
carro estava inteiro e o motor ainda roncava.
Mateus desligou-o, esperando se recuperar um pouco. Ainda
havia um nevoeiro que não dispersava. Só então se lembraram de
Tiago, que como tinha ficado quieto demais, nem cogitaram que
ele estivesse ali. Não estava no banco. Porém uns ais e uis
enunciavam que ele estava à pequena distância, no piso traseiro
do automóvel, encurralado por baixo da papelada. Desta vez foi
Mateus quem salvou o irmão enfiando a mão naquela mesma
bagunçada.
–– Caramba, mano! O que aconteceu? –– friccionando a
destra no topo dolorido da cabeça. Mateus calara-se, saiu do
automóvel e caminhou até o meio da clareira que se iluminava por
brechas que se moviam conforme as copas. Sean voltou para
dentro. A névoa cercava-os, densa.
–– Acho que não foi bem um acidente, mas se foi
coincidência, bota coincidência nisso. Quando derrapamos, um
110
cavaleiro transpunha a pista. –– sussurrava aos ouvidos de Tiago.
–– Mas Matt não teria visto? Teria? –– mais para si do que ao
amigo.
Tiago não tinha entendido porque ele não teria visto o cavalo
até que Sean explicou. –– Estava na Mouffetard e talvez no
hospital. –– ou seja, só Sean podia vê-lo.
–– Você tem certeza?
–– Do que vi? Claro.
–– Não. De que o Mateus também viu... Você, eu já sei. E ele
falou o quê? –– procurando o irmão que andava em volta do
veículo.
–– Falou nada, resmungou algo como óleo na pista. Mas eu vi
o rosto dele antes de brecar... estava branco como cera. Creio que
ele só freou porque eu apertei o braço dele, e bastante forte. ––
silenciaram observando Mateus com cuidado.
Depois do incidente, o bosque caíra num marasmo insólito.
Nada. Simplesmente nada acontecia, nem o vento soprava
quando, de rompante, uma trovoada contínua soou de todos os
lados. Mateus girou olhando para todos os lados. Segundos
pareciam minutos.
Como num estouro de boiada, centenas de cavaleiros
cruzaram, velozes, o aberto, uns a cavalo, outros a pé, brandindo
armas, lanças e escudos. Estandartes e bandeiras, suásticas e
águias farfalhavam nervosas, o vermelho predominava.
Foi tudo tão rápido que Sean não pode precisar quem eram;
eles se assemelhavam a romanos, ou hussardos, ou meramente
soldados. Não conseguiu focar em nada em meio às brumas. E
como surgiram, sumiram.
Os corações acelerados bombeavam frenéticos. Mateus
continuava parado, em pé. Sean sabia que ele não teria visto nada,
os soldados só faziam parte de suas esquisitices, de seus
fantasmas. Mas quando ele retornou para o automóvel estava
quase desmaiando e balbuciava trêmulo. Sean não falou, no
entanto tinha algo acontecendo com Mateus. Será? Não podia.
Quando voltou a si, Sean perguntou-se, em voz alta, sem
perceber: –– O que eles estão fazendo aqui? –– já que começava a
acreditar em fantasmas. O que Sean não percebeu foi que Mateus
prestou muita atenção ao comentário enquanto retirava o carro da
mata. Recuando-o à estrada que estavam, há pouco. Tiago tentava
111
ajeitar o que podia dos documentos caídos assim como a sua
aparência desgrenhada. Ele também não tinha visto o pequeno
espetáculo que aconteceu na clareira.
Pouco depois estariam entrando em Moisselles seguindo até o
aeroclube de Enghien que ficava afastado dos grandes centros
urbanos. Se não fossem as torres de controle do aeroporto Le
Bourget e do Charles De Gaulle, a leste deste, poderiam até
imaginar como era voar bem livre, como gostava de frisar Mateus.
112
–– Boa tarde senhor Daurat! –– homem gordo e folgazão que
usava uma jaqueta sintética forrada de emblemas e insígnias. ––
estes são o Sean e o Tiago, onde os quer? –– apressado demais
para se livrar dos garotos.
Sean continuava olhando para a jaqueta, distraído pelos
símbolos e nem se importou quando Mateus lhe dispensou,
parecia estar com pressa para resolver os seus assuntos. O Senhor
Daurat não parava de desfilar comentário atrás de outro, narrando
suas peripécias como piloto de guerra e como ajudou os aliados a
derrotarem o inimigo, indiferente de ele ter servido do outro lado
do conflito e em um posto esquecido por todos, no coração da
África. E Tiago era a companhia ideal, pois alimentava o ego do
velhote com dezenas de perguntas rápidas e inesperadas.
–– Vou pô-los com Christou para conhecerem bem as suas
tarefas, estão me entendendo? –– piscando em cumplicidade ––
Estarão sob os seus ma-ra-vi-lho-sos cuidados. –– declarou o
senhor Daurat entre uma verdade e três mentiras. Levemente ele
empurrou-os para o pátio, atravessando uma passagem com um
aviso vermelho-atenção.
Aeródromo.
Acesso Interditado.
Decreto Municipal de 8/3/1983.
Circulação estritamente reservada
Aos veículos de serviço, e somente ao pessoal autorizado.
Estacionamento autorizado para uso
Do aeródromo unicamente.
116
–– Ainda não sei, não me deixam chegar perto. –– comentava
o piloto acerca dos cavalarianos. –– Mas seria uma boa hora para
fumar, como sinto falta!
Mateus nem escutou, percebeu o olhar distante dos dois
perscrutando-o. O tubo de borracha ainda continuava espirrando e
molhando Tiago.
O vento frio fez com que ele se espremesse à gola do casaco.
Da Elene poderia desconfiar que estava comentando sobre seus
monólogos com o Breguét, como costumava dizer, mas Sean...
Será que ele via o Jean? Possivelmente.
–– Cuidado com o pequeno ali, ele sabe que eu existo. O mais
engraçado é que eu já o vi antes, mas de onde será? –– desta vez
era Jean quem divagava em voz alta.
–– Depois eu falo com ele. –– De olhos semicerrados.
–– Aliás, vai nevar amanhã. –– Ainda divagando o fantasma.
Mateus levantou-se e seguiu para um bimotor que acabava de
aterrissar. Não sem antes passar por Sean e dar uma piscadela sutil
e séria.
Confusões à parte, Mateus não abriu a boca. Seguia pensativo
e antes de partirem declarou: –– Depois a gente conversa melhor.
Amanhã, acho que não viremos ao aeródromo. –– e antes que
Sean resmungasse –– Eu disse depois!
Contudo uma coisa ele não deixou para depois, enfiou um
belo murro na boca do estômago de Mateus que se curvou de dor
com os olhos lacrimejando. Ele não reagiu, entendeu o recado.
Mereceu, pensara. Quem não entendeu foi Tiago e Elene.
117
Continuaremos fazendo o que pretendíamos, algo deve ter
acontecido no metrô que não vimos!
–– Não nos deixaram participar.
–– Tenho meus contatos, alguém poderá nos contar, assim que
eu o encontrar. –– pressentindo que seria mais difícil do que
invadir a estação colapsada. –– Hum, desconfio que Sean é mais
do que aparenta. Depois eu pergunto por aí. Se os dragões podem,
eu também posso... mas cuidado, seu velho bisbilhoteiro. ––
dirigindo-se para si.
Guarini retirou-se encafifado, será que havia mais alguém lá?
Sean saiu do banho enrolado numa toalha pouco felpuda,
matutando os fatos para tentar entender um pouco que fosse do
que estava acontecendo ao seu redor. Não era a questão de ser
tachado de louco ou não, mas o que estes fantasmas estavam
tramando.
Sentou na cama e caiu, de braços abertos, admirando as
pequenas estrelas que havia colado ao teto. Lá fora esfriava,
fazendo as janelas rangerem. As árvores estavam nuas. Duas
batidas fortes trouxeram-no à realidade. Curvou-se para levantar e
abriu a porta do quarto. Era o pequeno Joshua, que sem
explicações puxou a toalha e saiu em disparada. Sean balançou o
corpo para fora do quarto com a sacudidela e instantaneamente
saiu em percalço do garoto.
Correu pouco, a tolha estava largada ao chão.
Abaixou-se para pegá-la quando ouviu a voz de sua mãe
conversando com seu pai sobre os documentos que pesquisava no
museu. Patrick fingia que estava ouvindo cada palavra, entretanto
bastava olhar para a televisão para que soubessem quem ganhava
toda a sua atenção era a partida de futebol.
E voluntariamente, Sarah contava, resumindo o documento. A
história de um médico de guerra a serviço dos cruzados e que a
incomparável marca que pudesse dar a conhecer a identidade da
personagem era um nome, quase uma assinatura. Sean regressava
ao quarto.
–– E é por isso batizou toda a pesquisa de códex mikhae. Hoje
iremos virar a noite verificando um lote de documentos lacrados
que acabamos de encontrar, perdido... Se não encontrarmos nada,
ainda temos alguns depósitos externos...
118
Ele parou petrificado, suando frio, já vira o nome duas vezes
em seus sonhos. E isso doía.
119
9
o mensageiro de jeanne.
120
Enfim, tentavam descobrir uma razão para que o manuscrito
fosse tão importante quanto à ideia que assolava suas mentes.
Dezenas de hipóteses, algumas absurdas. Mas ainda existiam as
plausíveis, que contavam até então com vinte e sete suposições
não descartáveis. Entretanto havia uma em que o próprio
professor Hodgson-Crookes acreditava e concordaram em seguir
em frente, por mais absurda que ela fosse, pelo menos até que o
segundo documento confirmasse ou desfizesse as suspeitas. Isto
ganhou maior força quando souberam que o professor William
havia desaparecido, sumido, escafedido, evaporado mesmo.
–– Onde foi que erramos! –– desabou Bernis numa poltrona
folheada de papéis esverdeados. –– Não tem vestígio, como é
possível? Nenhuma escavação passa incólume nesta cidade.
A claridade fraca dos abajures fora substituída pelo sistema
automático do museu que se ativava logo cedo, logo que os
primeiros funcionários chegavam.
–– Deixamos escapar algo, e depois você ainda não está bem
o suficiente para trabalhar. As costelas ainda devem te incomodar
muito. –– completou Sarah, arrumando toda a papelada que
conseguiram reunir sobre manuscritos antigos existentes, todos
que foram catalogados. Principalmente sobre as escavações de
1890 realizadas nas proximidades da rua Gay-Lussac, dentro do
triângulo formado pela Escola de Medicina, as Termas de Cluny e
a rua Monsieur Le Prince.
Marc olhava com curiosidade as anotações de Sarah em
cartões de resumo. Organizava-os conforme o local de pesquisa e,
às vezes, incluía discreto título avermelhado em letra miúda. Ela
dizia que era uma intuição e não custava nada anotá-los. Sempre
serviam de alguma coisa.
Ambos concordaram em dormir, tirar uma boa soneca, e
voltar logo após o almoço, de cabeça fresca para avaliar o
calhamaço de papel impresso nos últimos dias. E atrás disso,
caixas de documentos antigos retirados do arquivo do Louvre,
amontoados como uma pequena parede instável. Com exceção de
uma única caixa solta sobre a mesa e que não encaixava em
qualquer monte. Voilà, seria a primeira.
Talvez Bernis tentasse dormir mais tarde, entretanto preferia
caminhar pelo Quartier Latin, entre as barracas coloridas de
especiarias da rua Mouffetard, sentando-se num bazaar qualquer
121
para degustar um chá de menta fortíssimo. Espairecer era um bom
remédio. Adorava dar essas caminhadas, nunca lhe faltava tempo
para fuçar as lojas de antiguidades atrás de raridades ocultas;
como uma série de mapas impressionantes dos subterrâneos de
Paris que acabara descobrindo sendo usados como papel de
embrulho.
123
dos meros mortais, zumbia movido pelo turbodiesel de seus 240
cavalos emparelhados.
Sean se despediu de Tiago que ficara com a boca escancarada.
Logo depois era o pequeno Joshua que reinterpretava a cena
correndo aos braços de seu pai. –– Ainda bem que você cumpriu a
promessa! –– saltando para alcançar o primeiro degrau.
–– Eu disse para o papai que no dia que ele trouxesse o
caminhão viesse nos buscar, não achou legal, Sean?! –– sorrindo
zombeteiro. Só podia ser coisa dele. Sean agachou-se um pouco
mais, emburrado, com aquele seu jeito de ombros jogados. –– No
way! –– Naquele momento só não queria chamar mais atenção
para si.
Patrick ainda não se sentia confortável perto do filho, havia
um misto de remorso e deixa-pra-lá que amarrava qualquer
tentativa de travar uma conversa. Ele podia ser pai, mas não tinha
muito tato com criança. Para ele, Joshua era um brinquedo e Sean
estava numa posição difícil de determinar: a adolescência é muito
complexa e Patrick preferia esperar a mudança de estágio;
naturalmente estava mais familiarizado com motores do que com
seres vivos.
Imperceptivelmente rumavam em direção diversa daquela que
os levariam à sua casa. Quando Sean dera conta de que estavam
na rua de Rivoli, já era tarde, teria que ficar atento, pois estava
muito perto de esbarrar no tal do acidentado senhor Bernis.
A rua de Rivoli assemelhava-se a um corredor de edifícios
históricos, com tantos detalhes que acabavam se parecendo entre
si. Não era à toa que o Louvre se situasse neste labirinto de ruas
movimentadas do centro da cidade de Paris; todo governante, seja
imperador ou rei, insistiam em expandir as cidades desde o
castelo, que passava a ser palácio e enfim, o museu.
–– Preciso ficar atento! –– murmurava. Bastava não sair do
caminhão e torcer para que o senhor Bernis não viesse fazer uma
rápida visita ao mamute de rodas. Sean havia conseguido o
impossível de se manter distante por tempo demais. De qualquer
forma ia ser muito breve, não encontravam vagas para estacionar.
Nunca encontrariam.
–– Vão! Desçam vocês dois e chamem sua mãe. Ficarei dando
voltas. –– aconteceu o que Sean mais temia, a opção número três,
aquela que nem queria cogitar. Joshua desapareceu tão logo Sean
124
lançou-o à calçada. A fila atrás do mamute devia ser visível do
espaço, isso porque Sean não queria despertar olhares estranhos;
nem de vivos, nem de mortos.
Acumulados de neve cingiam o museu, dificultando a
circulação dos parisienses. A impressão que dava era de que os
edifícios dourados haviam brotado em meio à neve imaculada que
acabava de cair. Sarah gostava de contar que tinham decorado o
bolo com muito açúcar de confeiteiro.
E sobre estes montes alvos o Louvre estava sendo vigiado por
homens encapados e posicionados, equidistantes, tal como
estacas, por todo o perímetro. Na verdade se pareciam mais com
dedos brancos que agarram o prédio. Os guardas não expressavam
nenhuma emoção e se mantinham de braços cruzados apertando a
baioneta erguida contra o ombro esquerdo. Além da arma só se
destacava o elmo emplumado com uma grande crina negra que
descia pelas costas e estava presa à cabeça pelas alças metálicas
que partiam da aba ao queixo –– e a expressão sisuda rematava a
alegoria um pouco antiquada, pensou Sean. Eles não se moviam,
dava até para assustar, criancinhas, é claro.
Antes de cruzar com o soldado, Sean observou que os seus
olhos o seguiam, de esguelha, sem movimentar o corpo. Um
arrepio na espinha indicava que ele não estava realmente lá,
contudo descartou a hipótese assim que percebeu, por entre a capa
esvoaçante, que o homem levava preso à cintura uma pistola
automática e um walkie talkie.
Entraram por uma porta discreta, com uns seis metros por
oito, de uso exclusivo de todos, apresentando-se ao segurança de
plantão que não demorou senão alguns segundos para entregar os
crachás. –– Subsolo, Louvre Medieval, direita, Departamento de
Pesquisa e Documentação. Dúvidas, pergunte aos guardas. ––
acenando o elevador mais próximo com a mão distendida.
Funcionários atarefados ajustavam os banners para uma nova
exposição sobre o egípcio Zodíaco de Dendera. Outro arrepio
impedia-o de tirar os olhos da placa pétrea. Seguiu adiante,
automaticamente levado por Joshua para dentro do elevador.
Sean já suava frio e percebeu que não dava para disfarçar
vendo-se no espelho. Seu estômago dava voltas de ansiedade.
Joshua estava indócil e todo o momento virava os olhos e dava
uma risadinha suspeita para o irmão. Mas o que será que ele está
125
tramando? Não é possível que ele saiba algo. Alguma coisa estava
cheirando mal e o guri sabia. Arriscou.
–– Hei, Jox. Fala logo o que está acontecendo! –– tentando
algo diferente e estúpido para cima de alguém com seis anos.
–– Nada demais, mano. Mas hoje você vai ver aquele homem
que espetou no metrô, não é? Dói agulha? –– era uma pergunta ou
uma confirmação?
–– Heim?! Como você sabe... –– Sean não teve tempo de
sondar, a parede se abriu e o garoto escorregou tão rápido que
nem a reação de agarrá-lo pelo colarinho fora tentada. Não iria se
preocupar.
Tateou os olhos pelo corredor buscando perceber a presença
de mais alguém antes de chegar ao gabinete. Era o setor do
Louvre Medieval, e as armaduras deixavam Sean nervoso. Estava
silencioso e a luz mortiça dos spots não permitia ver através dos
vidros foscos que compunham os variados departamentos e
gabinetes de administração e pesquisa do museu. A porta estava
descerrada.
Deparou-se com uma sala quieta, com muitos papéis jogados,
alguns vazavam da pequena lixeira metálica. Porém, o que mais se
destacava era uma área vazia sobre a mesa com um único papel
clareado pelo foco de um abajur. Foi se aproximando, passo ante
passo, cauteloso, esticando a cabeça para ver do que se tratava.
Mordiscava os lábios freneticamente.
Estava de ponta-cabeça, mas dava para ver que era antigo,
pois estava amarelo e corroído nas margens. Não dava para
entender o que estava escrito. Deu a volta na mesa para não mexer
no documento e antes que pudesse terminar o exame ouviu vozes
baixas e sussurrantes de um ponto logo atrás de sua cabeça.
Sean já se imaginava surpreendido pelo cara do metrô, o
mesmo no qual ele botara um metal no coração; o que não
correspondia à verdade. Suavemente girou os calcanhares e para a
sua surpresa eram dois índios, novamente. Eles estavam numa
posse incomum, quase como uma gangue examinando sua vítima,
de braços cruzados, fazendo caras e caretas. O maior deles
estirou a mão direita em riste e disse simplesmente: –– Hau! ––
pensou em dizer Cara Pálida, mas se conteve.
Recuou com tamanha violência que deixou cair o abajur e
alguns papéis de um arquivo encarquilhado. Continuava se
126
afastando de costas, procurando se desvencilhar daquela situação
constrangedora. De modo repentino, uma mão lhe agarra o ombro
estancando sua fuga. Grita assustado.
–– Me larga! –– sendo puxado pelos ombros para ficar de
frente com o responsável pela captura.
–– Mas é você, que está fazendo aqui?! –– Bernis não sabia
como reagir ao encontro e por mais que firmasse as mãos ainda se
encontrava fraco, deixando o garoto escapulir pelos dedos, que
mais do que rápido se agachou e passou por baixo da bancada
correndo para fora.
Já ia dando o alerta aos guardas quando Sarah, perplexa,
clamava ao seu filho. –– Sean, espera!
–– O que aconteceu com ele? –– o rapaz aquietou sentando-se
numa cadeira que acabava de erguer. Revidou a pergunta com um
balançar de ombros. Pensava na coincidência. O garoto que lhe
salvou a vida era nada menos que o filho mais velho de sua
associada. E por que ele fugiu?
Agora sabia onde encontrá-lo.
Apontando seu olhar para o chão de seu escritório, as folhas
emboloradas, formavam um tapete. De longe ele viu a resposta
aos seus problemas em letras grandes de um garrancho suportável.
128
luzes que eram refletidas no aço o hipnotizava. Ajeitou-a na
bainha.
Sua armadura era ornamentada por pequenos arabescos e
frisos dourados que emoldurava pássaros místicos. As placas se
chocavam, o couro rangia e a cota de malha chiava no mesmo
ritmo da respiração do enorme cavalo.
A uns poucos metros o homem saltou do animal tremendo a
couraça metálica e sacou a espada com força, chocando metal
contra metal. Sua túnica ainda mostrava a mesma cruz rubra que
flamulava ao vento soprado pelo deslocamento de ar e, aquele
mesmo olhar insensível emergia das sombras do visor do seu elmo
afunilado.
O garoto tropeçou e caiu de costas, afastando-se por instinto,
com uma pressa desordenada, firmando os calcanhares e se
projetando para longe ainda de costas.
O trem abriu automaticamente suas portas fazendo com que
Sean se jogasse no seu interior com tamanha impetuosidade que
alguns passageiros olharam para fora para ver o que acontecia.
Com um sopro pneumático ela voltou a se fechar.
O metrô não saia.
E a porta abriu-se pela segunda vez, devagar e chiando através
de uma fumaça embranquecida. Surgiu o elmo resplandecente,
depois uma perna e uma espada empunhada. Em seguida, preso
pelas rédeas, o cavalo invadia o transporte. A esta altura Sean se
espremia contra a outra porta apavorado, o tempo parou. Ele
ergueu a arma tão rápido que só percebeu a investida quando a
ponta ficou estirada diante de seu rosto. O cavaleiro ajoelhou-se
fincando firme a arma ricamente adornada. O punho ornamentado
e os relevos da couraça mostravam a riqueza do traje do cavaleiro.
As manoplas blindadas retesaram-se. Entre a couraça o couro
estirava. A perna dobrada mostrava o coxote, a greva, a polaina e
a bota pesada que partiria um pescoço. Retirou vagarosamente o
elmo deixando aparecer seu rosto.
Era jovem, devia ter uns dezoito anos, se fosse vivo. Os
cabelos desarrumados e castanhos deram lugar a um rosto que
desconcertou Sean, reação estranha da que previra, parecia
conhecê-lo. Lembrava alguém, mas quem? A cicatriz marcava
uma vertical que passava pelo olho direito que piscou.
129
Falou pela primeira vez.
–– Sou o Mensageiro de Jeanne. –– sorriu plácido e recuou
olhando diretamente nos olhos, deixando o metrô sacolejar
ganhando velocidade.
–– Tome o manuscrito e... –– dito antes de estar fora de
alcance. Sopradas em sua mente.
As luzes dançavam reduzindo ritmicamente o tempo em que
se demoravam a aparecerem, sempre, correndo às janelas. ––
Próxima estação, Pont Neuf. –– declarava a voz inexpressiva do
sistema de comunicação.
Sean relaxou ajoelhado no piso, meio zonzo esfregava a testa
enquanto os demais passageiros evitavam encarar a cena.
Contrafeitos quando algo foge aos padrões. Quietos, pois não lhes
diziam respeito. Com exceção de um passageiro, que se encolheu
evitando olhá-lo, puxando o capacete para baixo.
Antes que a espada presa se dissipasse como fumo, viu
talhado em romano, mil e quinhentos e cinquenta, desaparecendo
no ar como um filete de luz que se evaporou por completo.
Desceu na outra estação.
131
Finalmente estava livre dele, o medo. Uma preocupação a
menos. Sean levou tantos socos, chutes, pontapés e empurrões
quanto era possível suportar antes de desmaiar. Não tinha como se
manter consciente, jogado para todos os lados.
Um homem em sua capa protetora olhava, observava apático,
escorado numa das paredes adjacentes. Era o que fazia de melhor,
olhar. Sempre via o pior e o melhor das pessoas. Ambas em
momentos únicos, excepcionais. Estava sempre olhando por aí.
Sean repentinamente abriu a boca, arregalou os olhos e gritou
sem parar. Eles não entendiam uma palavra.
Recuaram assustados, aqueles que ainda possuíam um pingo
de compaixão.
–– Vamos dar o fora daqui, deixa esse gringo aí!
–– Você tem certeza, Mau?! –– retrucaram os demais com
certa culpa na consciência. Maurice empurrou-os para fora da
ruela, indignado. Compactuaram por serem fracos.
Caído, olhando através do olho inchado e entumecido, pôde
vê-los se afastando. Tossia espasmodicamente, deixando um
pouco de sangue escorrer em meio à saliva. A vista turva só
permitia ver vultos. Um espectro que escutou seus gritos se
aproximou acalmando-o.
Sean apagou cansado, ouvindo algo como. –– Ich bin hier.
Mein Vater!
132
10
o campo de guerra.
133
Francesco, conhece o pobre irmão? –– em resposta –– Mais do
que ele pensa!
O que ele queria dizer com aquilo? Neste instante entregou
algo a Francesco. E disse devagar: –– Guarde-o para mim, por
favor! –– a voz estava diferente, rouca e pesada.
134
A luz bruxuleante das tochas o impedia de ver muito bem
quando homens armados penetraram o sítio, desvairados. Correu
como pôde para alcançar uma defesa. Os gritos ecoavam por
todos os lados. Escondido, viu que o soldado empunhava uma
cimitarra e que se preparava para golpear Raphael. O homem na
maca era um amigo.
Pulou contra o homem, contra a sua vontade e agindo sob
instinto de sobrevivência. Não pôde fazer muito. Com um só
baque o infiel acertou-o na cabeça com o punho da espada, caindo
desacordado. Allan não firmava a arma por causa da mão ferida e
não pôde evitar que o oponente matasse seu amigo.
Max voltou trôpego e ofegante e seguiu absolutamente para o
leito de enfermos onde o seu irmão, Raphael, deveria estar. Seus
olhos estavam encarnados e sombrios. Não era possível divisar o
seu rosto na escuridão das poucas tochas e nem os três relevos que
dedos feridos tocaram em súplicas e pesar. Agarrou-o e puxou
com violência enquanto as lágrimas de raiva corriam. Allan
gesticulava a mão ferida mostrando o que lhe impediu a defesa,
mas não adiantou. Max pegou uma lança de quatro gumes fincada
no balcão e enfiou-a na mão sã.
–– Que tu e tais escritos improfícuos sejam consumidos no
Inferno! –– Depois deixou que seus homens açoitassem-no e
assim que caiu quase morto lançaram-no ao rio onde o religioso o
descobriu semiconsciente.
136
–– Sabe, meu filho –– achando engraçado chamá-lo de filho,
re-encetava. –– Bem, meu filho. Não precisa ter medo de nada,
nem destes imbecis que te rodearam. E não estou falando somente
dos que vi. Eu já tive preocupações parecidas que depois de
algumas décadas parecem coisas de criança. Quando tinha mais
ou menos a sua idade, durante a ocupação nazista, meus pais
foram mortos. –– respirou calmo rememorando o passado como
quem saboreia um chocolate.
–– Morávamos bem perto do conflito e assim não é
impossível de imaginar que as coisas ficaram muito feias... Passei
alguns meses escondido nos bosques, tentando fugir dos alemães.
Tiago ouvia atentamente e nem se lembrara que anoitecia.
Fabien pigarreou, sacando um lenço, seus olhos se enchiam
de lágrimas. Continuou –– Um dia estava escondido num celeiro
observando um campo militar quando ouvi disparos e gritos que
não entendia. Aviões decolavam apressados. Um homem ferido
corria em minha direção. Tive medo.
–– Te pegaram? –– atropelou-o Tiago.
–– Mais ou menos. Desci para fugir, mas era tarde. A patrulha
avançou pelo outro lado do galpão ficando entre o soldado ferido
e os guardas. Não tinham como errar, eu estaria morto antes
mesmo de me lançar ao solo. –– Deixando os garotos em
suspense. –– Então o moço correu e entrou na linha de tiro para
me proteger como podia. Caímos quietos. –– Sean instintivamente
pôs a mão no ombro.
–– Acho que depois de um tempo a patrulha se desinteressou
e voltou para o acampamento. Havia outro fugitivo. Esgueirei-me
para sair debaixo do corpo. Era mesmo um soldado alemão, além
de medo, agora sentia raiva. Mas depois descobri que ele era uma
boa pessoa.
–– Mas ele não morreu?! –– disse Tiago surpreso.
–– Como você acha que eu sobrevivi tanto tempo, vivemos
anos juntos. Ocultados de franceses e alemães até quando
pudemos. Após a guerra ele me adotou. Esta mochila foi dele.
Fugiu do acampamento, pois não queria matar, era só um médico.
Pegou a mochila e soltou sobre os braços de Sean. –– Agora é
sua para se lembrar que não devemos jamais ter medo de fazer o
que é certo.
137
Senhor Buchhand girou rumo à porta do quarto quando se
lembrou de perguntar: –– Aliás, quem é Allan?
Neste minuto, bruscamente adentravam Patrick e Sarah Fox.
Foi tudo tão rápido que Sean não teve como se desembaraçar do
presente. Nem o pai de Sean teve audácia de ralhar vendo o estado
do garoto. Não teve como disfarçar uma expressão de repúdio
diante do que sobrara de Sean. Preferiram ficar quietos. Foram
conversar noutra sala, deixando-o só.
–– Allan? Quem será este, agora! –– preocupado com o que
pensou ter sonhado. Tiago se empanturrava de biscoitos, sorrindo
de bochechas gordas com farelos caindo pela boca.
–– Mas o que aconteceu com você? Foi atropelado? ––
aproveitou-se Tiago.
–– Amanhã eu te conto. Só queria poder dormir para sempre.
–– E uma gargalhada alta explodiu quando ele se lembrou da cara
de espanto do garoto estúpido que todos temiam. Exceto ele que
chorava de rir ou de dor, a que fosse mais forte.
Tão logo o velho senhor Fabien sentou-se diante dos Fox, um
enigmático e prolongado olhar fez com que Patrick e Sarah se
confrontassem perdidos. O ambiente criado pelo compartimento
abarrocado auxiliava que o tempo estagnasse.
–– Sinto muito pelo Sean. –– querendo se desculpar pelas
esquisitices assíduas do filho.
–– Eu é quem devo me explicar, demorei demais para intervir
na briga. Nem pensem que o garoto a provocou. –– quase ríspido
com Patrick.
–– Acredito no senhor. –– Respondeu Sarah diante dos
atropelos do marido.
O velhote não poderia fazer nada para convencer a ambos que
Sean estava isento dos acontecimentos presentes e anteriores, nem
que ele estava no lugar e momento primoroso para que as
coincidências ganhassem mais fundamento. Tudo tinha um
propósito.
–– Vocês não me conhecem, mas admito que conheço seu
filho melhor do que ele mesmo. Deem-lhe uma chance para que
ele mesmo descubra o que tanto procura dentro de si. –– Os Fox
estavam pensando que ele se referia a um passado análogo que o
identificava com o garoto, no entanto eles nem desconfiavam que
este passado era completamente impensado. O senhor Buchhand
138
jamais provocara esquisitices, muito menos vira um fantasma
rondando o seu caminho.
Um bom tempo havia passado até que resolvessem partir.
Sean acenou agradecido de dentro do carro. O velho Fabien
Buchhand sorria enquanto se afastavam. Esfregou as mãos como
que as aquecendo e voltou para o prédiozinho que chamava de lar
entre gracejos seguidos de uma ladainha que lembrava música.
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11
140
suspirou ––, do espécime invisível para você e para a maioria. ––
suspirou de novo.
–– Assim como o cavaleiro que me seguiu até o metrô,
invisível, ele e também o cavalo. –– fungou o nariz.
Tiago acrescentou à narração –– Uau! Mentira, cara.
E tinha mais.
–– Então eu andei por aí e dei de cara com o Mau e mais três,
só para a coisa toda ficar justa. Desmaiei de tanto apanhar ––
rindo sarcasticamente –– e acabei tendo outro pesadelo antes de
acordar na casa de um homem que foi salvo por um soldado
alemão da segunda guerra. Pode, e tudo isso num dia só!
–– Heim? Conta isso direito. –– Fazendo um gesto como se
tivesse recebido mais informação do que a sua capacidade de
assimilação. Sean resumiu de forma que não houvesse dúvidas,
precisava de alguém que o ajudasse a entender tudo, não era a
melhor opção, mas era a única disponível. E aquela que ainda
acreditava nele.
A cada frase Sean parava para ver a reação estampada pelo
amigo encolhido sobre a cadeira abalroada de roupa. Depois
ficaram em silêncio, se encarando por algum tempo. As mentes de
ambos trabalhavam arduamente buscando destrinchar alguma
informação coerente. Um buscava por respostas o outro formulava
mais perguntas. Em meio a este processo Sean parou e:
–– Lembrei de algo! –– recordando-se do senhor Bernis ––
Será que o manuscrito que o ”homem de lata” pediu para
encontrar era aquele sobre a escrivaninha do senhor Bernis?
O outro só escutava, tentando imaginar porque ainda se metia
nestas enrascadas, havia prometido à senhora Fox e à senhora sua
mãe que ficaria de olho em Sean, quase que em tempo integral.
Senão! Não sabia se valia a pena, mas que era interessante, não
podia negar.
Sean deixou as divagações em voz alta para lá e seguiu com a
narrativa e detalhes picantes, se é que podemos chamar de picante,
socos e pontapés na boca do estômago ou ser atacado por um
fantasma encouraçado. Teriam muito mais para esclarecer,
contudo Tiago tinha um compromisso e que desejava quebrar,
mas não tinha como.
–– Para quem perguntar direi que você está doente.
141
–– Nada disso, chega de mentir. Vamos ver se o cara
consegue lidar com a situação. Aposto que ele vai ter uma
surpresa. Tudo, para ele, gira em torno de sua celebridade. Sem
plateia ele vai ficar louco de raiva. Pelo tamanho do seu ego, a
queda vai ser estrondosa. Vamos ver se ele gosta disso. –– falava
durante a despedida.
Ficaria sozinho, aparelhando o pensamento.
–– Eu que não vou ficar por perto. –– dignou-se Tiago.
142
correias. Às vezes algumas peças de Lego espalhadas advertiam
sobre um terceiro ocupante.
Alguns vasos postos sobre a bancada que separava as demais
salas, várias fotografias –– sendo a maioria do Patrick nas suas
corridas. Um raid no Saara Oriental, um Paris-Dacar com largada
em Marrocos e mais uma infinidade de lugares em que,
esporadicamente, Sarah aparecia descabelada, suja e mal
humorada.
Tirando isso, só os índios.
–– O que vocês fazem por aqui?! –– dito gaguejando e
tremendo nas pernas. Tentava a todo custo manter uma pose
autoritária.
–– Eu sou Naxamuñaca. –– parou e repetiu de forma que Sean
pudesse acertar quando precisasse chamá-lo –– acho que... hum...
tio Xaxá seria melhor. E este é Guarini. Eu sou o protetor desta
casa e ele é o guia do seu irmão, Jox. –– Sean não entendia direito
que estes dois queriam dizer com esse papo de guia.
–– Anjos da Guarda. Espíritos. Alguns são mentores. Outros,
bem poucos, arcanjos. Mas santo mesmo, quase nenhum. ––
respondeu indignado para o moleque.
Guarini acercou-se sorrateiro de Sean, raspando sua lança. ––
Nada, não queremos nada. Só estamos fazendo o que todos os
outros guias fazem, ajudando os vivos até onde conseguimos.
Como não interferimos na vida de ninguém, a escolha é
caoticamente livre. Mas gostamos de assoprar alguns conselhos
de vez em quando.
Não conseguia entender muito bem. Se eles protegiam,
porque ele não se sentia à salvo. Novamente Naxamuñaca
responde ao silêncio. –– Até onde é permitido, meu filho. Existem
coisas que devem ser resolvidas por si só. –– buscando ouvir os
pensamentos do curumim como quem lê um livro desconhecido e
surpreendente. –– Mas nós protegemos! É que você ainda não
compreende o que é realmente importante. A maioria jamais
compreende.
–– E eu tenho algo a resolver com estes... mortos?! –– e pela
primeira vez aceitou que as visões eram de pessoas bem mortas.
–– Hum. É. De forma resumida, é isto mesmo.
–– Com todos eles? –– impressionado com a quantidade de
gente que viu nos últimos dias.
143
–– Claro que não. Só alguns. O resto desconsidere.
–– Desconsiderar?
Guarini abriu a boca para acrescentar. –– Nem pense que
todos são guias. A grande maioria nem sequer sabe que está
morto. Não é porque morremos que viramos santos.
Agora Sean analisa melhor o índio, não era muito mais velho
do que ele e mesmo assim era, como eles mesmo disseram, guia
do Joshua. –– Só pareço. –– redarguiu o indígena. Os dois
estavam tensos e com aparente pressa.
–– O que eu tenho que fazer para acabar com isso?
–– Você não pode acabar o que não começou. Mas lembre-se,
não nos aproximamos uns dos outros sem uma razão.
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–– Vamos, conta logo. O que foi desta vez! –– não tão
chocado, na realidade esperava que acontecesse sempre, a partir
de agora.
–– Eu já vi tudo isto, precisamente como está descrito aqui.
Até sei mais detalhes do que está nesta folha. Se isto é do Bernis...
–– Então é uma cópia do manuscrito –– continuou Tiago.
–– Parecia que eu estava lá, como numa lembrança ruim à
beça. Tudo muito absurdo, juro que não consigo explicar.
–– Como? –– jogando-se na cama do amigo, desistindo da
escola.
–– Eu estava lá, oras. E não foi nada agradável, veja! ––
Lançando a fotocópia à cama, ao que Tiago avançou sedento. Não
tinha muito, mas o suficiente para saber o que era. Sean ainda
olhava para fora. Estava ficando mais frio, obrigando-o com que
esfregasse a manga do casaco no vidro. Qual a razão para ter dado
de cara com Bernis? Se tudo tinha um motivo, então ele só
precisaria saber qual era.
Deslumbrado, Sean escutou ruídos vindo da rua, já terminara
de clarear a vidraça. Soldados estavam posicionados diante de sua
casa, enfileirados em grupos organizados, com fuzis postos de
lado por uma larga alça branca. Eram baionetas longas que
ultrapassavam mais de um metro.
Suas casacas escuras, de cauda bipartida, eram arrematadas
por faixas claras que se cruzavam sobre o peito. As botas iam
acima do joelho cobrindo as calças beges. Muitos botões
dourados, dragonas e um chapéu bicorne coberto de enfeites e um
penacho.
O pequeno batalhão se aparelhava para atacar.
–– Vamos sair daqui, agora. Eles vão invadir.
Tiago correu até a vidraça, espalmando mãos e rosto contra o
vidro. –– Não estou vendo nada. –– Mais um sinal de que
deveriam fugir, ou não! Não ia arriscar.
Porém alguém viu Tiago esparramado na janela, num ângulo
de onde não podia ser visto por Sean. Esse alguém estava
espantado com o que descobriu. –– Recuem agora. Abandonar
ataque –– fora bastante expressivo o comandante da invasão. O
capitão saia de sua tenda, de onde acabava de esquematizar a
investida com seus oficiais graduados, e obedeceu irritado.
–– Precisamos sair daqui. Mas para onde? –– declarou Tiago.
145
–– Eu não sei –– verificando o sumiço repentino dos soldados.
–– Eles sumiram, todos.
–– Que eles estão seguindo alguém, isto está claro.
–– Mas nós não somos tão importantes assim?! –– esfregava o
queixo –– Não podem fazer nada! Estão mortos.
–– Eu não, você! Eles estão atrás de você. –– arrematava
Tiago tirando o corpo fora.
Ambos ficaram calados por um tempo.
Foi Tiago quem sugeriu esquecer o assunto, por hora. Era o
momento de se depararem com Bernis, tête-à-tête.
147
Sean percebeu que devia ser assunto bem específico, de
preferência entre os dois somente. Ele não sabia que Tiago
também sabia destes segredos. Fazia parte da amizade, mas será
que ninguém desconfiava, nem mesmo Mateus?
–– Vou, mas antes me diga o que é! –– olhando assustado
para Tiago, agora estava entendendo o silêncio de Mateus. ––
Pode contar, seu irmão sabe de tudo.
Desta vez Mateus se sobressaltou com a revelação.
–– Um ‘amigo’ seu me procurou e depois Jean apareceu
pedindo para irmos urgentemente até o aeroclube e... –– meio
desconfiado do irmão que olhava como se ele fosse um bicho
estranho.
–– Quem, Matt?
–– Macaxumaca, ou algo assim. Gordo de tranças brancas.
Acho que era um tipo de índio ou coisa assim. Sabe de quem
estou falando?
O ruído que surgiu das profundezas da galeria despertou a
atenção de Sean do mesmo modo que de Mateus. Já Tiago nada
percebeu. Os dois olharam firmes para Tiago. –– Por que estão me
encarando? –– descobriram que os passos não eram audíveis
senão aos pirados de plantão.
Lançaram-se ao fosso, encostado ao passadiço do museu que
circundava a antiga muralha redescoberta, arremessando Tiago
que parecia não entender o que estava acontecendo.
A galeria fora invadida abruptamente.
Os homens de casaca rasgada e chapéu esquisito regressaram
com muitos outros. –– não façam prisioneiros. –– ordenou o
comandante da invasão apontando, de seu corcel negro, seu sabre
delgado ao céu sólido daquela cave.
Os soldados haviam ingressado, vasculhando cada aresta
daquele departamento. Os três tentaram deslizar sob o passadiço,
saindo do outro lado antes que imaginassem como correr para
fora. Eles já estavam encurralados.
Estavam aprisionados por um mar de soldados.
Estranhamente estavam mantendo posição de defesa de fora para
dentro, como se estivessem se protegendo de alguma investida
ferrenha, recuando, fugindo. A infantaria formada de
carabineiros e granadeiros cercava a tropa de elite enquanto os
soldados da terceira linha avançavam com seus mosquetes em
148
mãos. No meio estava a cavalaria e os couraceiros, assim como a
artilharia de canhões leves que apontavam para além dos
carabineiros que se armavam preparando a munição com precisão.
O capitão gritava. –– Por Napoleão, cerquem o castelo. –– em um
confronto jamais ocorrido.
A agitação de soldados de infantaria vestindo variados
uniformes, transitando entre a cavalaria impaciente, demonstrava
ser uma tropa de assalto formada por diferentes soldados. Sean
recuou amedrontado quando espiou pelo vão de madeira da
passarela.
–– Estamos cercados.
–– Ainda não estou vendo nada. –– Tiago tentava acalmar
Sean, entre um bocejo e outro.
Neste instante um grupo investe para dentro do valo. O que
eles podem fazer?
Resposta clara e curta.
Mateus ascendeu rapidamente, erguendo os dois pelas mangas
de seus casacos embebidos de suor. Recuavam devagar quando as
armaduras expostas começaram a se mexer, tremendo e se
arrastando.
–– Isso eu estou vendo! –– rematou Tiago, durante o ataque
de uma cadeira que voou sobre eles.
Uma série de badulaques bélicos se desprendeu dos
expositores, caindo num amontoado de ferro, couro e tecido
envelhecido diante deles. Tiago sentiu cansaço dobrando os
joelhos sem aviso. –– Tô numa zonzeira!
A tralha ensurdecedora ergueu-se no ar distinguindo três
cavaleiros encouraçados, disformes e maiores do que um homem,
que avançavam com suas armas. Balouçando uma maça
pontiaguda que resvalou na parede metálica arrancando faíscas. A
armadura jogou-se para Mateus que fora salvo pelo empurrão de
Sean, jogando-os por terra. A maça soltou-se da manopla e
chocou-se contra um mostruário de espadas e floretes que voaram
pelo corredor, espalhando-se.
Tiago apanhou uma que devia pesar mais do que um elefante;
com dificuldade para levantá-la, usou-a como apoio para se
erguer. O susto veio com a espada sendo arrancada pela
acometida em arco, ligeira, de ombro a ombro, de outra arma
149
pontiaguda. Sean pisou sobre a haste de uma espada menor,
chutando-a para que Tiago se protegesse.
Esfregando o supercílio que sangrava, Mateus desviou de um
golpe desferido por uma armadura montada, ao que se
assemelhava a uma malha de cavalo. Então Tiago viu a lâmina
deslizando para si, reagindo instintivamente.
Com uma forte pisada na extremidade aguçada da espada ele
alçou o punho ao alcance de suas mãos. Como Lucas fazia com
seu skate. Girou-a para o dorso, agarrando-a ao contrário.
Amedrontado, premia o polegar à base desta empunhadura
enquanto a lâmina surgia atrás de sua cabeça. Com outro giro
atacou o metal, bombardeando espada, braços e peitoril do
cavalariano de elmo emplumado. Violentamente rasgou o soldado
em dois.
Surpreso, Tiago nem percebeu quando Mateus atirou um
machado longo que fincou a cota de malha do cavalo à placa de
aviso do museu. De alguma forma os cossacos controlavam a
massa de ferro que os atacava. Distraidamente Sean buscava uma
saída imprescindível, correndo os olhos por tudo, na esperança de
que tivesse se esquecido de alguma outra alternativa de fuga.
Precisava ganhar mais tempo para pensar.
Este lapso possibilitou que os soldados atacassem pela
retaguarda. A porta do laboratório abriu-se de chofre, seguida da
ofensiva de cadeiras e mesas que atingiram Mateus e Sean sem
que pudessem reagir contra. A escrivaninha e outra cadeira
prenderam Tiago contra a parede, deixando sua mão aberta
apertada contra o encosto vazado do mobiliário.
Uma voz, inaudível para o garoto, apontava para que não o
deixassem escapar. O homem que comandava o ataque, acima do
próprio capitão, aproximou-se pela escuridão, olhando
diretamente nos olhos de Tiago que nada percebeu tentando se
desprender. Em seguida pousou os olhos na mão estendida.
–– Ele tem a marca do quadrelo. Tem que ser ele, desgraçado!
–– recuou batendo os pés em surdos sons metálicos.
Toda a tropa recuou subitamente. Algo havia acontecido.
Tiros e estouros ecoavam em meio aos gritos dos soldados que
fugiam. Um brilho instantâneo e a fumaça revoluta de chispas
alaranjadas advertiam um outro ataque. A guarda trocou o seu
avanço pela defesa histérica da primeira linha atingida pelo
150
clangor da batalha. Faíscas, de canhões invisíveis, e bolas de
fumaça, varriam o batalhão hostil, anunciando uma contraofensiva
que vinham abertamente pelo flanco direito da tropa. Explodiram
em luta na bifurcação entre o medieval e o saguão da grande
pirâmide. O ferro morria, despencando em uníssono.
Sean lutava para se levantar da pancada.
Foi Tiago quem o acudiu –– Eles ainda estão por aqui?
Ao longe, os vira-casacas partiam em fuga acelerada,
deixando alguns armamentos danificados para carregar
companheiros feridos. Ele não conseguia entender como eles se
machucavam ou morriam, pois já não estavam mortos?
Só então se lembrou de responder ao amigo. –– Não. ––
Sumiram sem deixar rastros, senão os pedaços das armaduras
esparramadas. –– O que eles queriam?
–– Eles devem querer o manuscrito que Bernis está
procurando, o que mais seria?!
–– Pode ser. Preciso mesmo falar com o senhor Bernis,
definitivamente. Apesar de que, para mim, eles aparentavam estar
se protegendo. –– ajudando Mateus com seus olhos bem atentos
ao redor da galeria abandonada.
Tiago ajudava. –– Tudo? Vai contar tudo?
–– É tudo ou nada.
Mateus retrucou –– Mas antes temos que sair daqui. Vamos
direto para o aeroclube descobrir logo o que eles querem. Depois
vocês vão me dizer o que está acontecendo aqui. Que foi isso?
Os blocos do fosso haviam se deslocado, quebrando a
uniformidade da muralha. A força desprendida fora
incomensurável.
Tiago ainda pensava em como foi fácil manejar aquela
espada, e estava bastante assustado com sua própria atitude. Sean
parecia pensar o mesmo. Enquanto estava inconsciente teve mais
uma visão que contaria quando tivessem mais calmos e com mais
tempo para isso.
–– Posso ficar com...
–– Nem pensar... apesar de que nunca vi alguém usando uma
espada como você! –– disse Mateus.
–– Eu sei que já vi! –– complementou Sean.
151
12
o conclave
152
atravessaram Saint-Denis só o fulgor polido das edificações e o ar
asseado lembravam-lhes que chovera.
–– Não acha estranho que a cidade esteja tão vazia! –– iniciou
Mateus tratando de averiguar Sean.
–– Normal. Não vi nada de diferente. Só os soldados de hoje.
Mateus mantinha o braço direito estendido sobre o volante,
pressionando a testa com a outra, tentando diluir o estresse. Não
gostou que Sean tivesse se referido aos soldados.
–– Talvez para você. Mas antes de você mudar para cá a
cidade estava inteiramente tomada por assombrações.
–– E como você sabia?
–– As roupas, os diálogos, as atitudes... Viviam atravessando
paredes bem sólidas. Outros faziam coisas do qual nem quero me
lembrar.
–– Passar no cemitério devia ser um caos. –– ria Sean,
buscando descontrair.
–– Nem tanto. Pior era em bares e locais onde rolava drogas.
Sean calou-se esperando que a conversa terminasse por ali.
Ele estava em um estupor curioso e não desconfiou quando
Mateus errou o caminho saindo da estrada em Pierrefitte-sur-
Seine, indo para oeste, rumo à floresta de Mont-Morency.
No entanto o desconforto pelo frio não passou desapercebido,
fazendo com que Mateus girasse o aquecedor ao máximo.O carro
ainda reagiu com uns socos, balançando engasgado ao pedido de
mais gasolina. Estavam parando no acostamento. O aquecedor deu
o seu último suspiro ardente.
–– Pane seca. –– dignou-se a comentar com os passageiros,
socando a testa no volante como castigo.
–– Não pode ser, estamos sem gasolina! Mas você é um... ––
Tiago nem experimentou dizer mais alguma coisa, já que viu o
olhar ameaçador que Mateus lhe direcionou pelo espelho
retrovisor. Sean se arrancou do veículo abrindo o porta-bagagem
em seguida. –– Se vamos ficar por aqui que pelo menos possamos
nos agasalhar. –– Espalhou para dentro o que achou, blusas,
mantas, camisetas, calças, panos, enfim, tudo que pudesse servir
de proteção ao frio ártico que se condensava diante de seus
narizes.
Estranhamente não passava nenhum carro. O que era insólito
para uma estrada um tanto movimentada. E por isso eles estavam
153
desconfiados do silêncio que assoprava as árvores daquele vácuo
urbano. Para todos os lados que avistassem, não notariam
qualquer ponto de luz, fumaça ou sinal de vida. Naquele oceano
verde, nenhum farol os guiaria.
–– Deve ter um posto de abastecimento logo em frente, talvez
uns cinco quilômetros, se vocês quiserem esperar! –– Mateus
esperou momentos cruciantes, receando que eles desistissem da
proposta e não o escoltasse voluntariamente. Estava com receio de
admitir que estava apavorado.
–– Nós vamos juntos. –– frisou Tiago, assustado pela mesma
causa. Não queria ficar só. Apenas Sean não estava disposto a sair
peregrinando por aí, após o que houve. Assistia olhares furtivos
no meio dos arbustos, mesmo sendo a sua fantasia o
atormentando, todavia não recusou a companhia dos dois.
Em sua cabeça tentava entender o que estava acontecendo.
Havia uma armada que buscava algo; uma não, várias. O
cavaleiro que pedia para achar um manuscrito. O manuscrito de
Bernis, quem sabe. As palavras dos índios ainda repercutiam em
seus ouvidos –– você não pode! ––, não podia acabar com o que
estava lhe acontecendo.
–– Que confusão! –– ele pronunciou em voz alta.
–– Qual?! –– assustou-se Mateus que se deteve de braços
afastados com o tonel vermelho na mão destra. Por mais que ele
tentasse esconder o pavor, a transpiração de sua testa o
contradizia.
O garoto retrucou desejando descarregar tudo o que estava
entalado na sua garganta. –– Não quero mais. Por que não posso
ter uma vida normal? Saindo com os meus amigos sem ter que
desviar de uma assombração. Ah, não! Tinha que ser esquisito. E
não bastava ver uma ou duas, agora são centenas! Ah, não
mesmo! –– agitando a cabeça em ato contínuo.
Pisava apressado diante de Tiago e de Mateus, desatento a
tudo, discorrendo alto e gesticulando como um alucinado. Às
vezes estacava e olhava sério para o pessoal que deixava ele
desabafar enquanto podia e ainda por cima onde podia fazer isso.
E ficaram assim por alguns quilômetros. Todavia a estrada se
desvelou adiante num descampado que frustrou as suas
expectativas, não havia nada até o horizonte tênue distinguido
pelo reflexo da lua cheia. Desistiram.
154
–– Pelo menos vamos avisar a mamãe. –– cutucou Tiago
sabendo que Mateus odiaria ter que expor o ocorrido, estavam
completa e totalmente perdidos.
Ela acreditou na mentira de que estavam no aeroclube e que
repousariam por lá. Até certo ponto. Mateus não explicou o
motivo, engasgou e se atrapalhou pensando em algo. –– Surpresa!
–– pronto, o estrago fora feito.
Agora retornariam quarenta e sete minutos por onde vieram e
deveriam topar com o carro. Deveriam, se não ficassem acuados
de boca aberta enquanto Tiago já se afastava inocente.
158
assembleia. Os pirilampos dançavam no ritmo dos sons de grilos e
silvos e zumbidos.
–– O acidente foi uma reparação de tempos anteriores entre
você e Marc Bernis e que foge, no momento presente, ao nosso
completo conhecimento... hum. Achamos, desconfiamos, que o
manuscrito possa ter relação com este fato.
–– O que você quer dizer com tempos anteriores?
–– Antes de renascerem agora, outras vezes já o perpetraram,
só não se recordam. É corriqueiro, apesar do que dizem por aí.
Porém, neste caso, não temos como saber. –– frisou o druida que
tornava o rosto para alguns dos espectros encobertos que lhe
dirigiam instintivamente o colóquio.
–– Como não! –– gritou Sean –– Vocês não sabem tudo? Não
cuidam de todos?
E calou-o –– Além de não podermos nos intrometer nas
escolhas dos vivos. Também não sabemos quem é você!
Mateus estava desconfortável perante o bate-boca entre Sean
e aquelas pessoas muito vivas, diga-se de passagem. O garoto não
compreendia como não podiam saber quem eles foram, já que não
podiam intervir e nem o queriam.
–– Hum. Você não nos compreendeu com o devido
julgamento. Nós sabemos quem as pessoas foram com razoável
facilidade, para dar alguns conselhos que... hum, condigam ao
papel de um bom anjo da guarda. Só não sabemos quem você era
ou é, o que preferir. –– respondendo ao pensamento.
Até Mateus silenciou-se na sua agonia de trazer novas dúvidas
ao bate-boca, que ainda fervilhavam no seu cérebro apreensivo,
ou melhor, talvez ele preferisse correr disparado dali.
–– O seu amigo, que está dormindo bem ao seu lado, sabemos
que foi alguém dos mais inusitados que se tem notícia, por
exemplo. –– assinalando para Tiago.
–– E por que comigo não, então?
–– É o que queremos descobrir, oras. Porque é precisamente
você quem nos impede de descobrir. –– lamentou-se Naxamuñaca.
Então era isso, um labirinto sem saída. Ou Sean descobre a
resposta por si mesmo ou fica no escuro. Como um cachorro
correndo atrás de seu rabo. Por um tempo ficou embasbacado,
sem reação, tão chocado que não conseguia raciocinar. Milhares
de anjos e nenhum supostamente sabe o que está se passando?
159
–– Somos responsáveis por muitos acontecimentos que
considerariam como coincidências, sendo que a maior parte está
intrinsecamente interligada, como num castelo de cartas. Em
algum lugar alguém sabe o que você precisa; todo baralho tem
seus coringas. O fato de não termos todas as respostas se deve a
compromissos ao qual não devemos intervir, assim a ignorância
impede que atropelemos o que deve acontecer naturalmente.
Não era uma resposta, mas indicava o caminho que levava a
outra questão.
–– E o manuscrito? –– disse olhando para Mateus que não
sabia desta parte dos acontecimentos.
–– Se era para você estar envolvido? Não era, penso. Mas já
está. As explicações, você só as terá com Marc.
Os garotos forneciam todos os elementos que dariam
subsídios aos bons espíritos daquela reunião de sábios para que
fortalecessem suas posições diante do impasse. Eles tinham
determinado que as suas ações só avançariam quando esta bizarra
confluência ocorresse. Podiam não conhecer todas as facetas,
sobretudo quanto aos personagens, todavia seguiam planos já
traçados e que pouco poderiam ser modificados.
O senhor daquele conclave olhava seguidamente para os seus
consortes na eventualidade de seguirem adiante com o
interrogatório que lhes daria maior precisão quanto aos eventos
futuros já delineados. Tão logo seriam experimentados em suas
convicções diante da grande transição. Chegava a Hora do Basta.
Eles, através da voz do índio, re-encetaram. –– Qual é o
próximo passo de vocês?
Mateus tomou a palavra. –– Bem, acho que devemos falar
com este Marc! –– pouco sabendo quem e o que ele representava.
–– Temos que sair rápido do que não nos compete...
–– Ledo engano, jovem. Não só compete a vocês como
depende de suas atuações. O curumim Sean tinha que se envolver
com Marc nestas circunstâncias abruptas do incidente para seguir
com seus compromissos. E você tem os seus. –– tio Xaxá não
podia dizer nada que comprometesse o fluxo natural dos eventos,
mas também nada sabia que fosse mais esclarecedor.
O conclave previra tal reação e preparou explicações que
pudessem surtir algum efeito nos garotos. –– Os homens mortais
são sempre muito cegos. Supõem tudo na base dos extremos.
160
Assim como vocês. –– aguardou um tempo. –– Se agrupam em
dois bandos bem característicos: os que são o centro do universo e
aqueles que são mais um grão de areia. Quando entraram neste
conflito incorpóreo passaram a agir como os primeiros. Querem
acreditar que são imprescindíveis para a solução de grandes
verdades. –– Sean engoliu um sapo colossal. –– Agora que eu
disse que não são, despencam vertiginosamente para o extremo de
se acharem uns quem-somos-nós-para... Mas vocês têm seus
papéis nestes conflitos entre anjos e demônios. Só desconhecemos
as implicações por mera conveniência aos envolvidos.
–– Por causa de nossa capacidade de ver?
–– Todos os dias milhares de pessoas passam a interagir com
o nosso plano. Muitos se desesperam em orações fanáticas, outros
não querem, fingem. E bem poucos acabam por estabelecer um
primeiro contato. E não é por isto que estão aqui?
–– Se somos tão raros! –– Matt não se conformava.
–– Contudo não são insubstituíveis. O que os tornam especiais
é que devem a Marc Bernis as suas implicações neste
acontecimento sem precedentes. Simplesmente porque devem a
ele o seu comprometimento.
–– Ele quem pediu que nos envolvêssemos?
Teria que destruir as ilusões de tão prestimosos auxiliares. ––
Não. Vocês se comprometeram em quitar as suas dívidas com ele.
–– expurgar o carma, diriam os orientais. –– Só que a requisição
veio em uma ocasião, hum, bem mais complicada do que
imaginavam.
Ficaram impactados.
Para tranquilizá-los, Naxamuñaca prometeu destacar uma
sentinela que eles não descobririam em meio ao cardume de
mortais, mesmo que a vissem.
Agora podiam volver para o seu mundo.
Um senhor que se encontrava oculto entre os menires falou:
–– Além do mais, temos razões para supor que este pequeno
batalhão que enfrentaram, estava tentando aproximá-los do senhor
Bernis. Eles estão tramando algo ao reunir estes dois –– frisou
para a comitiva ––, depois temos toda esta fuga em massa.
–– O que eles esperam conseguir?! Não podem por as mãos
nos diários de Miguel. –– falou tio Xaxá se referindo a algo maior
do que os garotos supunham.
161
–– Mas podem atrasar a sua revelação. Há anos tentamos
expô-los e quando estávamos quase prontos... Apronta-se outra
guerra absurda. Cem anos de muito preparativos, arruinados. ––
Os homens nem cogitavam a existência de um códice falando
acerca do mundo dos espíritos circulando a mais de um século.
Nem de seus predecessores tibetano e hindu e tantos outros. Nem
que este mundo havia sido devassado por grandes pesquisadores.
Os diários poderiam ajudar a levantar este véu.
Um suposto grito na multidão tenta reparar. –– Nunca. O
tempo é um fator desprezível.
–– Mas eles estão se fortalecendo!
–– Nós também. –– sibilou o estranho por entre as pedras.
E a discussão se interrompe.
As pedras davam a impressão de movimentar-se devagar ao
redor deles, mudando a paisagem constantemente. O cenário de
rochas vivas que pareciam se aproximar para ouvir o conclave.
–– Garoto, não pertencemos às mais altas hierarquias. Não
passamos de seres que tendem ao bem, contudo ainda erramos.
Nossos méritos são poucos perante nossas faltas acumuladas.
Todos as possuem. –– narrava Guarini emocionado. –– O
formidável é que não nos culpamos mais, lutamos para ressarcir
as dores do próximo.
Do momentâneo vácuo entre perguntas e respostas um
grandalhão asiático de pernas cruzadas intrometeu-se. –– E quem
é o guardião do menino? –– apontando para Sean.
Ninguém soube.
Tio Xaxá ergueu-se para elucidar, porém com um gesto seu
finalizou a reunião. –– Temos Guarini servindo o curumim Joshua
e agora ele acompanha o irmão, a pedido meu. –– o que foi
satisfatório para agraciar a plateia. Apesar do peso das palavras o
conclave fora uma reunião parcimoniosa e tranquila. As almas
reunidas não emanavam preocupação exagerada ou arroubos de
emoções, estavam plenamente cônscios de seu papel nos eventos
que se aproximavam. Sabiam que eles também iriam ser postos à
prova, assim como aqueles que estavam espalhados pelos quatro
cantos do mundo em suas inumeráveis camadas de vida, físicas e
etéreas.
162
O conclave não havia descoberto o que estava acontecendo,
mas não podia descartar que a chave para a solução desta
incógnita estava no passado de Sean, Bernis e os tais diários de
Miguel. Para não assustarem o menino, eles evitaram comentar a
travessia da guarnição romana londrina que seguia
inexoravelmente em suas gáleas para os portos franceses. E uma
incomum agitação de espíritos revoltosos que progrediam
aleatoriamente para Paris. O que essas criaturas mefistofélicas
sabiam que os anjos nem conjeturavam?
A aragem fria despertara Mateus de suas elucubrações
lembrando-o do assalto dos fantasmas do Louvre, um gosto acre
subiu à boca automaticamente, engolindo em seco. Intrigado,
ainda estava envolvido no duelo; suas pernas tremiam discretas.
Assim que o impacto passar ele cairá num relaxamento tal que o
levará a dormir como uma pedra.
–– Assim que soubermos do que se trata, diremos. –– ao seu
modo, claro. Encobrindo que sabiam de algo a mais; decerto fazia
parte disto um velhote chamado Atmatattva que se metera numa
briga no beco, bastante insólita. –– Só mais uma. Tiago sempre
estará por perto quando acontecerem outros combates como este.
Os espíritos precisam tanto dele, quanto vocês. Se ele concluir o
contrário, relembrem-no.
Os garotos estavam abatidos e cansados, tensos por não terem
sido considerados em outras questões que fizeram, de maneira
atropelada, à rápida dispersão dos espíritos que compunham o
conclave. Nem mesmo Naxamuñaca permaneceu. As pedras
continuavam observando, impassíveis.
Escureceu quando o brilho espectral se apagou.
Só Holofernes apareceu com sua lanterna feérica.
Sem que Tiago percebesse, o seu irmão mais velho o agarrou
para perto de si, embolado na manta umedecida, ainda desmaiado
pelo sono. Não comentaram mais nada, decepcionados.
–– Não adiantou de nada. –– resmungou Sean.
–– O conclave ainda não terminou. –– aprontou-se o helênico.
–– Indague o seu amigo! –– referindo-se com o dedo em riste para
Mateus.
–– Como eu pude esquecer. Tem algo acontecendo perto do
aeródromo! –– lembrou-se após um certo esforço. Retornaram ao
163
carro jogando-se nos bancos e se agasalharam com as cobertas
improvisadas, até uma cueca serviu como gorro.
Não antes de avisar Elene, através da caixa postal, que eles
estavam encalhados em algum lugar na D124, dentro da floresta
de Mont-Morency, como precisou Mateus ao ver o sinal impresso
na orla da estrada.
Dormiram, ou fingiram dormir até serem tragados pelo
cansaço. Um reflexo da luta que cobrava seu preço.
Sonhos tumultuados rechearam suas mentes fatigadas.
Uma sensação de que o coração estava saindo pela boca.
E dolorosamente contido.
164
13
o primo embate
165
Inevitável que Sean vigiasse sua retaguarda, preparando-se
para alguma nova ofensiva, que não seria inesperada desta vez.
Não podia imaginar o que o levaria a esta insanidade, precisava
começar a deixar de ouvir o que os mortos diziam.
A par das conversas do conclave, Tiago recolheu-se para
refletir no assunto, achava que era mais fácil quando não se estava
no meio de toda esta enrascada. No entanto Mateus passou a
considerar que era mais fácil agir sabendo onde se metera. Afinal,
nenhum dos dois estava certo. Para Sean bastava tirar o foco de
cima dele, topando com um bode expiatório que realmente tivesse
algo a ver com o manuscrito, ou com Bernis ou com quem quer
que fosse.
Se ele existia, Sean encontraria, vivo ou morto. Mas com
certeza não seria ele, ou Mateus, ou muito menos Tiago. Quanto
aos demais, subtendendo os fantasmas, não podia dizer nada, não
os conhecia tão bem.
–– Eu é que não serei! –– a voz avançou pela penumbra,
furtiva e cautelosa.
Mateus cochichou –– Que tal se você me explicasse os caras
que nos atacaram ontem! Tinham até armas! Não vem com a
conversa fiada de sempre, agora é pra valer.
–– Sei. A guarda do conclave me apertou. Eu vou mostrar
algo, mas sem ruído, heim! Manda o moleque ficar prevenido
porque no outro já dei um jeito –– referindo-se a Tiago que fora
arrebatado pelos puxões da Elene, influenciada por um acanhado
sopro ao ouvido.
Pela primeira vez Sean se encontrara cara a cara com Jean, o
aviador que perambulava no hangar mais distante. Jean não
parecia exultante com ele, ou talvez os seus amigos do conclave o
tivessem dado esta impressão quando o pressionaram. –– Ou você
corre atrás do tempo perdido ou... hum, vamos obrigá-lo. –– disse-
lhe um índio obeso cobrando um antigo débito. Assim ele seria
reconhecido como a sentinela advertida por Naxamuñaca.
–– Quem é o senhor? –– perguntou Sean.
–– Sou o Arcanjo –– respondeu diretamente ––, mas pode me
chamar de Jean.
–– Sempre presunçoso. Não lhe de importância. Ele é um
destes espíritos que ficam grudados na gente, mas é meu amigo. O
cara manja de aeroplanos como ninguém e, além do mais, é
166
divertido demais. –– falou Mateus por entre as nuvens que
avivava de sua boca. Jean piscou em cumplicidade, com aquele
sorriso de conquistador barato enquanto ajeitava o cabelo
lustroso. Foram, então, atrás de Jean.
Atravessaram toda a pista do aeródromo e, prosseguiram pela
cabeceira, aproximando-se de um bosque das proximidades, entre
tantos outros que coalhavam naquele vale. Eles observavam o
bizarro movimentar de Jean, que redobrava a concentração
evitando que, desprevenidamente, alguma coisa pudesse pular
sobre eles. O crepitar dos gravetos era seguido de repetidos psius
do Arcanjo que terminantemente não participava da barulheira.
Além, havia um vale profundo que sempre estava calmo,
rasgado por um riacho rumoroso, disse Jean. Não havia nenhuma
construção ocupando a planície sendo, portanto, o local ideal para
os campistas praticantes de esportes radicais. Mas na antecipação
de um inverno rigoroso eles não estariam ali.
O Arcanjo sinalizou que se sentassem, esperando a serração
dissipar.
–– Os espíritos não deveriam estar em outro lugar? Como o
céu ou o inferno ou o purgatório?
A resposta era simples, mas exigia muita explicação. –– Se
eles forem católicos e estiverem razoavelmente mortos, talvez.
Como muitos nem percebem que bateram-as-botas, ficam por aí,
tentando voltar às suas vidas. De fato, aqui não é tão diferente do
que estas três localidades astrais; são as funções desempenhadas
que são bem maiores do que as descritas. Todos vão para onde
suas consciências estão.
–– Mas e todos estes espíritos que estão por aí? –– perguntou
Sean enquanto Mateus bagunçava seu cabelo vigorosamente,
atraindo olhares furtivos na mata.
Esta resposta seria muito mais simples. –– Estamos em uma
área de transição. As regiões etéreas não são estanques, são
graduais e acabam se interconectando entre elas. Somente uma
regra estabelece a relação entre as regiões, quem está embaixo não
consegue subir sem que se modifique seu estado moral, mas quem
está acima pode descer. –– obrigando Sean a afastar a mão de
Mateus de sua cabeça, pois queria ouvir o que Jean dizia.
Um burburinho brotava da névoa, o que aumentava a
ansiedade de ambos. Aos poucos as nuvens se agitavam,
167
envolvendo-os nestes chumaços claros que redemoinhava à borda
do precipício. Nem Mateus sabia o que Jean queria com isso,
porque toda hora ele levava o dedo aos lábios pedindo silêncio e
boa dose de paciência.
•
unidade básica de combate para um cavaleiro ou homem-de-armas e a maior parte tinha
entre doze e vinte homens.
168
onde quer que ele dirigisse suas hipóteses, esbarrava num
mistério. Tinha que ser algo muito importante este códex mikhae,
senão como explicar tamanha movimentação de soldados.
Que bom que Bernis não podia ver o que lhe esperava. Por
sua vez Sean se sentia, cada vez mais, na compulsão de defendê-
lo, ou pelo menos alertá-lo, mesmo desejando sumir. Uma
tremenda enrascada que não precisava, contudo estava metido até
o pescoço. Se não por Marc Bernis, por sua mãe que estava no
meio deste Deus-nos-acuda.
Sair do arvoredo representou um alívio.
Pelo menos por um instante.
Os cavalos avançaram arrancando tufos de grama do solo
alagado, mal tiveram tempo de reagir. Lado a lado, foram
circundados por cinco cavaleiros que impediam a passagem com
suas lanças postas. Cada um defendia um brasão senhorial apesar
de estarem reunidos sob uma égide comum que os prisioneiros
desconheciam.
–– Parem! Bastardos. –– berrou de dentro da peça defensiva
que lhe cobria o corpo, daquela que estava no meio do cortejo.
Sean e Mateus tentavam ficar apáticos ao cerco. Como estavam
vivos os cavaleiros não deveriam representar problemas.
Entretanto não era bem assim. O Arcanjo escapara atraindo dois
soldados para a mata.
Os soldados remanescentes se olharam intrigados, mas agiram
por prudência. Um deles trotou diante dos garotos com a ponta da
lança direcionada para os olhos de Sean. O cavalo resfolegava e as
lufadas de um ar quente atingiram o seu rosto que começava a
suar frio. O cavaleiro tentou amedrontá-los em vão, e antes de
partir arremessou a arma sem aviso. Só quando Mateus fora
atingido pela lança é que uma dor pungente percorreu seu braço
como se queimasse por dentro. Ele não estava realmente ferido,
mas estava ferido. Sean não quis entregar a farsa, fingindo que o
amigo estava tendo um ataque do coração, copiando os primeiros
socorros sob protestos que eram abafados por um boca-a-boca
meia boca. Logo a pequena patrulha acreditou no teatro e se
juntou à perseguição na floresta.
–– O quê você está fazendo! –– reclamando da dor e das
pancadas no peito. –– Pode parar; eles já se foram.
–– Era isso ou eles nos espetariam até nosso traseiro assar.
169
–– E queima mesmo! –– sendo levantado por Sean que
recordava que era a segunda vez naquele ano, em toda a sua vida,
que precisava ressuscitar alguém, mesmo que de mentira.
Passou o braço pelo seu pescoço e se afastaram em passo mais
do que acelerado.
–– E o Jean, será que o apanharam? –– agradecendo em
silêncio a atitude do Arcanjo, contudo não podiam deixar que ele
ficasse preso. De qualquer forma, como poderiam salvá-lo, se nem
apertar as mãos podiam, recordando do encontro a pouco.
–– Não contaria com isso. Se ele sobreviveu dias, perdido nos
Andes, sem comida e com um frio de rachar; não seriam uns
bárbaros brutamontes de quinhentos anos que tirariam a sua
liberdade! –– acrescentou Mateus. –– Você não conhece essa
gente, eles creem que estão lá e não mudam seus hábitos. Quem é
padre continua rezando, quem é guerreiro continua lutando e vai
ficar assim até que perceba que tudo está mudado. O que pode
demorar um baita tempo.
Ajustou o passo para chegarem mais depressa. Evitaram falar
alto durante o percurso, o que dificultava ainda mais a conversa
que eles inventaram para disfarçar o temor.
–– Todos ficam assim?
–– Que eu saiba, não. Jean nunca encontrou seu companheiro
de aventuras por aqui. Gente como ele fica vagando a esmo, não
acreditando que está morto. Um dia ele me disse que só
desconfiou de que não estava vivo porque tentou se suicidar e não
aconteceu nada. Já tinha morrido há muito tempo.
•
unidade básica das falanges macedônicas com 16 fileiras de 16 homens.
172
que insistiam em sangrar, resultado previsto por aquelas mentes
frouxas que imaginam ferimentos inexistentes.
Holofernes pôs o elmo e se juntou à tropa em campo,
angustiado com o que presenciara. O ataque fora tão dramático
que Sean não conseguia falar, se afastou mudo porque pequenos
embates espalhados, aqui e ali, continuavam. Apenas alguns
homens permaneciam atendendo os derradeiros feridos que
continuavam urrando imprecações aos gregos.
Foi uma longa corrida até o pátio de manobras.
–– Vocês devem ser muito respeitados! –– cutucou Jean ainda
esbaforido e esgotado da escapada. –– Como eles conseguiram
feri-los? Eu pensava que aquelas coisas só eram para afastar, criar
um certo temor. Nunca ouvi falar que eles lutassem, só agiam na
defensiva. Bem, prefiro acreditar que eles sabem o que fazem.
Enquanto cuidavam do ferimento real e imaginário de Mateus,
Sean voltava para dar uma última espiada na batalha que era
travada na raia de aviação. Esgueirou-se junto de um dos
hangares, pronto para espiar através dos furos de ferrugem. E
então enfiou o nariz no peito polido de alguém. Caiu de costas
com o susto. O sol o impedia de ver quem era, no entanto dava
para perceber que usava uma armadura, outro casco metálico em
seu encalço. Ele se aprontava para correr quando o cavalariano
mostrou seu semblante. Era o mensageiro.
–– Eles querem aniquilar o manuscrito e todos aqueles que
estão próximos. Querem calar a verdade. Esta armada é apenas
uma. –– disse plácido, o cruzado com o capacete a tiracolo.
–– Mas o que eu faço!
–– Tente procurar por Allan. –– e já sumia acelerado por onde
surgira quando.
–– Se é um mensageiro, cadê o bilhete? Ou você é tão
ignorante quanto todos os outros que me viraram as costas?!
Rapidamente o homem retornou, tão perto quanto lhe era
possível sem que ocupasse o mesmo espaço que o garoto. Havia
algo inesperado, pensou Sean, ante um breve desconforto que o
cavaleiro tentava camuflar. Sorriu com ardência.
Retornava perdido em seus pensamentos.
173
A derrubada da catapulta despertou-os da trégua. Mateus
sacou a chave do bolso e meteu a todos no carro, que em instantes
espalharia o cascalho para bem longe, sob o pneu que girava em
falso, antes de arrancar em disparada para casa. Nem o ombro
dolorido o fizera mudar de ideia. Estava impaciente para enfiar a
cabeça no travesseiro e dormir para sempre. Como queria.
No banco posterior, Tiago evitava comentar o que não viu por
causa da Elene que compactuava do mesmo silêncio forçado,
estava chocada com a atitude e, como ninguém abriu o bico para
explicar, ela achava melhor ficar na dela.
Nem poderia imaginar que as derrapagens, na trilha, se davam
pelo assalto de algumas tropas dispersas na batalha. Elas
atravessavam, audaciosas, o bosque para atacarem
improficuamente o automóvel. Os bárbaros brandiam as espadas
correndo ao lado deles. Mesmo que elas não ferissem serviam
para atrapalhar Mateus que se abaixava quando a espada zunia
através do veículo. Um choque mais forte trincou o para-brisa.
Numa curva mais lenta, um cavalo investiu contra a porta
levantando o automóvel alguns centímetros.
Só parou quando chegaram à autoestrada, saltando através de
um monte de neve. Mateus saiu apressado para vomitar. Virou-se
e descobriu a porta arregaçada pelo ataque. –– Merda! Merda!
Merda! –– chutando-a seguidamente –– Desgraçados!
E caiu num choro convulsivo antes de aceitar o abraço de
Elene e se deixar dormir, desmaiado. Ela não sabia o que fazer,
mas aceitou-o naquele momento. Seus olhos se encheram de água,
mas agora era tarde para recuperar a confiança perdida.
As preocupações deixavam de ser irreais ou sutis. Eles
sentiram na pele o que deveria ser quase impraticável. Felizmente
uns bons guardiões zelavam por eles. Ou seria coincidência que
estivessem passando por ali? Teriam mesmo toda essa atenção? E
por que não atacavam Bernis? Tinha um baita furo nesta história...
Mas o mensageiro insistia.
–– Será o mesmo Allan do manuscrito? Descobrir o quê, se
ele já estava morto. Isto está acontecendo rápido demais! ––
pensava Sean em Francesco. Seu olhar estava perdido no céu. Os
outros, o plagiavam. Por enquanto era o melhor que eles podiam
fazer.
–– Deixe para amanhã. –– rebatia a Tiago.
174
-
travesseiros
–– Não sou insubstituível, foi o quê ele disse. Mas sei que
estão escondendo algo. Esta reunião só prova que eles estão no
escuro. Se estes espíritos maus estão se organizando por um
objetivo, só podem estar com medo. E um documento poderia
fazer todo este estrago? Duvido.
175
–– Bem, não sei o que eu faria se estivesse morto. Com
certeza não estaria por aqui. Será que anjos têm asas? Tudo bem,
eu sou presunçoso sim.
–– Agora tem mais esta, fomos nós que pedimos para entrar
neste conflito?! Porque não podemos nos lembrar destes
compromissos. Até parece que assinei um documento em branco!
Mateus não gostou de saber...
176
resto deste documento. Ainda não sei porque ele está atrás destes
papéis! Quem sabe a resposta esteja aí.
–– Exércitos atacam quem? Eles vêm até Paris para evitar que
o Marc encontre um manuscrito? Que verdade seria esta que
colocaria todo o contingente de fantasmas em prontidão? E os
diários de Miguel são... Procure Allan, já sei. Procure um Allan.
Por onde começo? Preciso dormir um pouco, o ônibus passou
mais uma vez.
177
–– Se o conheço bem, Tiago deve estar contando carneirinhos
para dormir. Se eu já estou assim.
–– Sei que não consigo vê-los, mas sei que estão por aí. Então
ouçam com atenção. Nunca deixem Sean sozinho. E boa noite.
178
14
Escancarara a porta.
No chão, as folhas ainda emboloradas, formavam um tapete
disforme há muitos dias. De longe Bernis viu a resposta aos seus
problemas em letras grandes e só agora podia pensar no assunto.
Passou aquela noite examinando os apontamentos, tentando
descobrir o sítio exato, superpondo mapas antigos e recentes. A
mesa estava um campo de batalha onde lápis quebrados, canetas
destampadas, papéis diáfanos e rabiscados se moviam criando um
desenho. As partes compunham o todo.
O burburinho que ecoava do conserto dos estragos ocorridos
na antevéspera prosseguia incomodando-o. Baderneiros
destruíram uma seção inteira da galeria medieval do museu.
Estranho que um gládio estivesse naquele setor, erro humano.
Mas no momento não era um problema de sua alçada, ele tinha
outros para o dia seguinte. Observou bastante descontraído alguns
cartões de controle de Sarah com sua letra concisa junto aos
documentos e mapas que haviam reunido. Em mais de um havia
pequenas inserções em vermelho. À borda do resumo concernente
aos documentos do convento a palavra água se destacava só.
Bernis jogou-se para trás, descansando a nuca antes de
cambalear até o sofá. Um pouco antes de dormir recordou-se de
enviar uma mensagem à Sarah. –– Encontre-me amanhã. Rua
Antoine Dubois, perto do Vulpian. Sete horas.
179
Em instantes –– Meu Deus! Este cara não dá folga! ––
atirando o celular na gaveta do criado-mudo. Patrick pronunciava
indistintamente, ainda dormindo. E só mais tarde Sarah pensaria o
que queria dizer aquela mensagem sem sentido.
Destarte, após uma noite tumultuada, Sarah ainda tinha pique
para preparar o ritualístico café da manhã. Amontoara novos
elementos sobre a escavação e agora teria que esperar até depois
desta incursão com Marc Bernis. Telefonaria antes.
–– Bom Dia! O que você está tramando? –– enquanto beijava
Patrick que se despedia para mais um dia de trâmites
alfandegários com seu ansiado rali.
–– Quer expor uma cripta imunda e empoeirada? Está vestida
a rigor? –– rindo-se da possível expressão irritada de Sarah. Ela
rebateu a altura.
–– Que tal se eu mandar o Patrick te responder essa?!
Como os filhos já tinham se levantado, também ouviram a
conversa que transcorria no viva-voz enquanto ela fazia uns crepes
malabarísticos. A curiosidade de Sean foi maior do que a sua
vontade de ir ao colégio e, já se preparava para impelir Tiago
neste lance. Eis que ele entrava na cozinha, meio espantado com
mesas e cadeiras. Ele podia jurar que a cadeira se arrastou
sozinha, fazendo-o saltar para o lado.
–– Alguma novidade! –– disse Tiago, olhando com o canto do
olho sobre sua espalda.
–– Não vamos ao colégio hoje, temos que achar o senhor
Bernis. –– levantando-se para alcançar a mãe que ia embora
indignada. Ele iria dar um jeito de saber onde era o encontro.
Tiago deu um suspiro profundo como se embarcasse noutra
furada. Ainda estava cansado pelos últimos acontecimentos.
Os dois se espremeram no porta-mala do carro se olvidando
de Joshua ou de Lucas. Por pouco não foram descobertos pelo
berro do celular do Tiago que gemia e se acendia a cada estribilho
da música que tocava.
Os eventos do dia anterior estavam martelando
constantemente sua cabeça. A preocupação não podia ser à toa,
nenhum dos acontecimentos seria considerado comum, prosaico,
enfim, irrelevante. Depois havia risco de vida, que já não tinha
tanta importância assim, ninguém morria de verdade mesmo.
Mas que tinha pavor de morrer, isso ele tinha.
180
Só não queria ser pego em mais uma emboscada tramada por
uns cavaleiros carrancudos ou soldados armados até os dentes.
Portanto precisava saber do que o manuscrito discorria, e o que
tinha de absurdamente extraordinário. Lembrar de perguntar quem
era Allan era o menor dos problemas, porque ele sabia, em parte,
que o homem morrera em mil duzentos e dezenove no Egito, e
sabia muito bem como. Transpirava só de recordar. Parecia que
ele estivera lá, era tudo muito real. Só Tiago acreditava nele e nem
precisava de muito, bastava descrever a cena e ele já se sentia
enjoado. –– Pode parar, pode parar. Chega!
187
Passou a vasculhar a sala escavada na rocha imaginando se
seria conhecida ou não, possivelmente não. Uma das passagens
estava fechada, a outra subia íngreme. Às suas costas, um túnel
mergulhava na água. Não havia papéis ou pergaminhos que
fossem proveitosos. Os sepulcros funerários estavam bem
conservados, na maioria lacrados. Passou a mão pela ranhura
tentando se livrar das teias. E surgiram quatro letras mal traçadas,
CAVE. Perigo em latim. Os passos lentos de Sarah criavam ondas
concêntricas que se chocavam, dificultando que visse alguma
coisa dentro da pequena lagoa.
Contudo, dentro d’água, algo faiscou.
Estava preste a alcançar o objeto quando uma mão lhe segura
o ventre puxando-a com força. Era Bernis que desamarrava a
corda que a impedia de se agachar.
–– Mas que susto! –– estapeou-o por reação. –– Agora, quem
vai nos subir?!
–– Você não tem noção, depois te conto. –– Empurrando-a
para frente. Ele pegou o objeto, uma adaga esculpida, de lâmina
adunca e gasta pela ferrugem. Raspou os dedos tentando decifrar a
adaga. –– Isto não é romano ou anterior, é? –– girando-a diante
de si.
Sarah lavou-a e achou algo muito curioso.
–– Não é romano da Lutécia, é medievo! –– muito posterior.
–– Deve ter deslizado pelo canal vindo da cripta acima.
–– Não sei não. Veja estas inscrições, estão em arábico. Uns
rabiscos que não se encontrava em santuários cristãos... Pode ter
certeza disso! –– evidente que havia exceções, porém difíceis de
explicar.
Ambos passam a examinar melhor a catacumba, alguns ratos
subiam pelos sepulcros fugindo da água que se elevava devagar.
Escutaram mais cascalhos correrem pelo fosso. Um verdadeiro
milagre. Um bolsão de rocha que manteve o buraco protegido de
infiltrações, pois se achavam abaixo do leito do rio Sena, que a
dois passos dali, antes de ser encoberto por terra de casas e
edifícios, operava a baía e o porto romano de Lutécia.
Ela ajeita os cabelos molhados pelas gotas que brotavam do
teto intricado, prendendo-os com a adaga, para ficar com as mãos
livres. Nada de diferente, resolveram recuar até o meio para
avaliar de longe o ambiente e tirar alguns instantâneos. Bernis
188
tropeçou numa laje encoberta pela água, tocando com as mãos um
relevo submerso.
Ainda na cripta da igreja, Tiago e Sean olhavam pela fenda do
fosso a certa distância. Tiago arriscava jogar ao aparelho celular
despreocupado, pelo menos tentando estar. Sean, livrando-se da
imundície, pensava numa boa desculpa para estar ali. Infelizmente
a sua mãe ficaria sabendo da verdade sobre o imprevisto no
metrô. Se não fosse por ele, seria pela boca do próprio senhor
Bernis.
Quando o cascalho rolou, os dois se aproximaram do túnel,
aguçando os ouvidos para ver se escutavam melhor. Com um
assombro, eles foram puxados para trás com brutalidade.
–– Qual é mano! –– disse assustado Tiago, seguido de um
brado de Sean que dera de cara com o monge balofo genuflexo ao
seu lado, que também se apavorara com o grito berrando de modo
efeminado e evadindo-se dali. Por sua vez Lucas caiu na própria
armadilha, entrando no coro com a reação dos fedelhos.
–– Que foi, cara. Se toca! Estava fazendo um favor. Podiam
ter caído aí. –– expelia Lucas.
Tiago estava bastante intrigado com a maneira como Lucas
estava se comportando nos últimos dias. –– O quê você está
fazendo aqui?
–– Seguindo-os. Mas eu não preciso me esconder no carro. Eu
perguntei e ela me disse para onde ia. Tá ligado!
–– Tô ligado –– sussurrou Sean recuperando o fôlego perdido.
–– Desta vez eu os peguei, que tá acontecendo aí?
189
Instintivamente os manifestantes apertaram o cerco chocando-
se contra os escudos, de um polímero transparente, da barreira. O
conflito agora tinha o seu pavio acesso. Era como se esse
movimento invisível insinuasse atitudes negativas, impondo
motivos para que o conflito se efetuasse realmente, dos dois lados.
Os granadeiros, de fuzis empunhados e capacetes de aço,
tentavam invadir o largo pelo acesso principal comboiados de um
tanque Panzer que acabava de romper as últimas medidas de
proteção. Sustentavam posição. Os policiais parisienses já não
conseguiam firmar as suas.
O capuchinho estertorava em latim. –– Onde estão eles,
ninguém nos ouve! –– Os guardiões se mantiveram em posição de
defesa, segundo prometeram.
190
Sean apanhou os gráficos e se agitou para espaço aberto.
Tiago e Lucas demoraram um pouco para perceberem a atitude do
amigo, ajuntando como puderam as mochilas e as ferramentas de
Marc. A lamparina ficou para trás, assim como o felino
negríssimo que miava e se asseava serenamente sobre a sepultura
mais alumiada.
O frade ouviu as pisadas, recuando com as mãos agarradas à
pança que atrapalhava quando corria. O garoto de cabelos
desalinhados lamentava de raiva quando apontou o seu dedo para
o franciscano.
–– Onde é a outra entrada! –– berrava.
O homem não compreendia, rindo apavorado como se não
falasse a mesma língua. –– Onde fica a en-tra-da! –– repetiu o
garoto com mais ênfase. –– Onde é a entrada. Por favor, minha
mãe... –– desta vez o religioso assinalou choramingando num riso
nervoso para o diagrama do refeitório com um sorriso forçado. ––
La torre.
Lucas estava boquiaberto, não entendeu nada do que
aconteceu naquele claustro branco, o pirralho estava falando com
o nada, ninguém. O seu irmão não esperou e seguiu Sean
passando pelo largo atacado pelos manifestantes e, alguns
nazistas.
197
14 ¾
198
–– Não espera que eu creia que não sabia que ele estava por
perto, sir Max.
–– Não. –– suspirou arremessando-o energético enquanto
seguia para junto de um esqueleto, onde as sombras podiam
ocultar as suas feições. Ele sabia, porém estava jogando a seu
favor, e não contra seus aliados. Precisava convencê-los.
Convencê-los não, enganá-los pelo tempo que precisasse deles.
Um sentimento de antipatia ganhou forças, o seu passado
assenhorava-se de si quando pensava no que o manuscrito
representava. Todos esses séculos a serviço de sua revolta
abrigada, estava cobrando o seu preço. Perdia, aos poucos, o
controle sobre si. Queria destruir aquele quem matara seu irmão.
–– Lembre-se de que ainda estou no comando. –– sibilando
cinicamente para o inquiridor. Um sopro incomum balançou a
suástica esfarrapada que pendia de uma parede logo atrás. Os
únicos que poderiam estar lá estavam mortos, selados.
Mas assim mesmo se ergueram de seus postos para se
aproximarem da reunião. O primeiro fumava um cigarro
fumarento e fedido que lançou com os dedos para além. A pouca
claridade que varria o ambiente permitia visualizar os contornos.
Valia-se de um uniforme de um tecido lonado e esverdeado sob as
botas negras e, sua camisa, de mangas arregaçadas, estava aberta
no peito. Agarrou uma cadeira e girou-a para apoiar seus braços
sobre o encosto.
–– Sargento Davidson, se apresentando. –– berrou pouco
disciplinado, largando sua mochila e o capacete nas pernas de
outro fantasma. O capitão Sixderniers já era popular por sua
brutalidade, mesmo antes de ser esquartejado pelos ingleses, no
entanto não ia perder a chance de atormentar aquele saxão
animalesco assim que a aliança terminasse. No seu território, ele é
o imperador. Sixderniers cumprimentou-os com um balançar de
cabeça, retirou o bicorne e a delgada espada e sentou-se
inexpressivo. Sua única frustração era não ter combatido em
Waterloo com o grande general.
Sorrateiro alguém se apresentava chocando e rangendo sua
arma contra a indumentária. Foram interrompidos por um soldado
em sua armadura polida de combate que abriu por instinto a
viseira e entregou uma carta selada com a insígnia escarlate dos
Lenffers. Um cinturão de balas corria o peito do cavaleiro,
199
ajustando-se ao rifle semiautomático que pendia onde deveria
estar a espada. O sir não se impressionou com a notícia de que a
pequena armada, em Moisselles, fora rechaçado pelos guardiões.
–– Sixderniers e Lenffers ainda insistem em manter posição
naquela planície? Confiança é um artigo extremamente raro por
aqui. –– ponderou herr Rommel.
Não respondeu, Max. O motivo para manter aquela tropa
segmentada era estratégica, seu e de mais ninguém. Lá estava
quem deveria perseguir implacavelmente, acima de suas ordens.
Voltou-se para a reunião esperando os ânimos se acalmarem.
Aquele que altercava juntou-se, assim, aos demais.
–– Coronel Rommel, queira dizer o que aconteceu para os
nossos aliados? –– disse então o homem que redigia a assembleia.
O seu olhar de desprezo passou por cada um antes de retirar o
quepe nazista e ajeitá-lo sobre a pistola mauser. –– Alguém pode
dificultar os nossos planos. Estava preparando o cerco para a
operação de ataque quando Marc Bernis, aquele intrometido que
está atrás dos diários... Mas ele... –– parou um segundo para
registrar a expressão dos outros. –– Mas ele estava bem protegido.
–– Quantos guardiões? –– frisou Davidson.
–– Um.
–– Você deve estar de brincadeira, herr Komandant. ––
zombando.
O silêncio respondeu por si só. Arregalaram os olhos
surpresos com a possibilidade de. –– É ele?
O homem resvalou seus pés metálicos e concluiu –– É, sim.
Ele pensava num meio de garantir a sua vingança sem que os
três intervissem. Precisava se afastar deste combate perdido com a
tríade. Eles jamais suprimiriam a verdade. Aquela baboseira de
que iriam conseguir manter a verdade deles era ilusória, ele sabia:
o poder, a arrogância, o dinheiro e o orgulho tinham seus dias
contados. No entanto eles ainda tinham força, o mundo ainda era
deles. E desta vez pensavam ser diferente.
–– Ele não pode com todos nós, vamos atacar juntos. –– falou
Sixderniers depois de muito bate-boca entre o sargento Davidson
e herr Rommel. –– Concordam?
Acenaram em afirmativo. Um acordo temporário, depois cada
um tomaria o controle daquilo que lhe cabia. Ser um dragão sem
São Jorge para pisar sobre.
200
–– Este é o nosso pacto. Absorveremos Paris dentro dos
próximos dias. Mobilizaremos nossas tropas para que elas entrem
aos poucos, por todos os lados. Caso enfrentemos resistência,
recuaremos atraindo os desgraçados e fechamos o cerco pela
retaguarda, sem muito alarde. Temos que evitar a ocupação dos
cordeiros no nosso território. As terras médias sempre nos
pertenceram e agora que estamos mais fortes teremos maior
controle sobre os vivos.
–– Não seremos expulsos novamente, ficaremos. –– exaltou-
se herr em seus devaneios de um exército marchando na avenida
do Champs-Elysées. Alcançando o céu que lhe era possível
quando repudiasse o Tártaro.
201
Tiago estava pálido, nunca tinha contado para ninguém os
sonhos que tinha desde pequeno. Sean sabia que era ele. Quando
Tiago ficava quieto demais era porque tinha algo para esconder.
Sean não continuou a conversa, desconfiava que não era o
momento ideal. –– Depois a gente fala mais sobre o sonho. Que
foi legal, o golpe, foi.
Não demorou muito e Marc voltava cambaleante para resgatar
os garotos. A tarde passou tragando as horas em grandes goles de
expiação. Exausto, Bernis tomou fôlego e telefonou para o
pronto-socorro, averiguando o estado de Sarah e aproveitou para
avisar os pais que os dois passariam a noite com ele.
Residia perto do Louvre e em instantes subiam ao elevador de
serviço. Largou-os na sala do apartamento para que pudesse tomar
um banho demorado, sem fantasmas em sua cabeça.
O apartamento de Bernis corroborava as qualidades de uma
pessoa extremamente desordenada, nada combinava com nada e
as folhas soltas de livros e rascunhos estavam grudados por todos
os cantos. Só tinham, por ordem, uma distribuição cromática das
capas que nunca tinham visto em suas vidas. Um só livro que
estivesse fora desta classificação ficava evidente, como constatou
Sean numa rápida corrida de olhos pelas estantes.
Bolor, comida, umidade, roupa suja e, muitos livros
denotavam que o senhor Bernis não recebia visitas com
frequência e se recebeu, talvez jamais tenham encontrado a saída.
–– Vamos ficar bem aqui, parados, não quero me perder. –– sorriu
Tiago.
Um pergaminho estendido estava enquadrado, tomando toda a
parede oposta com letras miúdas e borradas. Sobre o vidro,
anotações com tinta temporária destrinchavam partes resgatadas
do desgaste do tempo.
Bateram à porta. Sean não prestou atenção.
Bateram novamente. Tiago cutucou.
–– Vai você.
Gesto infeliz, Sean o empurrou para o hall.
Ele abriu. O que mais podia fazer.
Assaltaram o apartamento, sem dizer uma única palavra e se
largaram no sofá. Não estavam contentes e com certeza tinham
algo para reclamar assim que pudessem se manifestar. Nem todos
202
gostavam de ser babás, mas cuidar da situação que estes bebês
aprontavam, estava fora de cogitação.
Mateus entrara empurrando todos, com isso, Lucas e Joshua
literalmente voaram sobre Sean. Somente Elene pôde desfrutar do
pouco cavalheirismo que ainda restava. Se ele estava tentando
esconder sua zanga, podia muito bem esquecer, essa não colava.
Bernis enfiara a cabeça ardente na ducha com rapidez,
contudo não surtiu o efeito esperado. Quanto mais queria
entender, mais confuso ficava. Ele não era tão importante. Não
descobriu nada que fosse extraordinário ou especial. Mas tinha um
segredo, bem pequeno, de letras miúdas, talvez fosse isso.
–– Que surpresa, todos aqui. –– Marc não se tocou que
acabava de hospedar mais gente. Mais é sempre melhor. Mas
naquele apartamento!
–– Para casa eu não volto. Enquanto aquele índio gordo não
sair. Como alguém pode cantar tão mal! –– disse Mateus. Bernis
não entendeu, porém não ia perguntar. Até onde havia
compreendido, isso era coisa dele. Sean confirmou. Ouvia o
mesmo índio balofo de graciosas tranças, que sorria enigmático,
sentado sobre a estante com as pernas balançando no ar.
Marc escapuliu para trocar a toalha encharcada por um jeans e
uma camiseta esburacada. Juntou-se aos convidados na cozinha
devorando com avidez as fatias de pizza e o refrigerante quente.
Acomodou-os em quartos e, assim que Joshua adormeceu, Lucas
se retirou alegando cansaço –– já o mau humor ficava por conta
de todos. Eles estavam igualmente fatigados, mas a ansiedade não
deixava relaxar, todos queriam respostas.
–– Quer dizer que eles estão por aí? –– retrucou Mateus,
sedento por informação, falando o mais baixo que conseguia.
–– Aos montes, por toda a cidade. Se você tivesse visto os que
estavam lá! Garanto que não estavam de brincadeira. Mas
sumiram de repente. –– dava de ombros Sean.
Naxamuñaca complementava: –– Até onde pude penetrar,
todos que estiverem com Miguel serão perseguidos. E ele só pode
estar entre vocês. –– conforme lhe contou. –– Senão como
poderiam explicar tamanho interesse das hostes que se esgueiram
cautelosos para cá! Hum. Eles estão atrás de algo, que somente
uma grande massa de infelizes criaturas poderiam subjugar. Sinto
cheiro de encrenca, tem que existir uma boa explicação. Talvez
203
um segredo muito bem guardado. Além do mais, não passo de um
simples guardião que tem mais afinidade com simples mortais do
que com os anjos.
205
–– Está querendo me dizer que eles fugiram quando estes
chegaram?
Mateus esperou um instante pensando no que ele dissera. ––
Só pode, não tenho outra explicação. Eram tantos que não consigo
imaginar que todos, juntos, resolvessem desaparecer de uma hora
para outra. Com certeza existe uma causa, pode bem ser esta aí ––
apontando para baixo.
–– O pouco que sei se deve ao que Jean me falou e que eu
mesmo descobri. São fantasmas como ele, que vagam em busca
do que perderam. Ele costuma resumir como uma falta de paz,
procuram por paz. Mas eu não chamaria de paz perturbar por
vingança ou vícios. É como uma simbiose. Sugam-nos como
vampiros. Muito poucos, eu acho, fossem anjinhos de verdade.
–– Assim não temos quem nos proteja? –– inquiriu Sean,
assustadiço.
–– Não. Calma, garoto! Quero dizer que poucos conseguem
deixar seus guias se aproximarem. Não querem ouvi-los, deste
modo os outros encontram as portas abertas para influenciar como
quiserem.
–– Está preocupado com eles?
–– Nem tanto. Estou mais preocupado comigo, agora todos
vão me olhar de longe. Como se fosse uma aberração. Decerto
você me entende. –– e mantinha a expressão murcha e
conformada de desânimo. –– Quando tinha sua idade me escondia
debaixo da cama assustado com todos estes espíritos que
perambulavam perdidos por aí. Arrisquei falar com minha mãe,
mas percebi que ela não tinha porquê acreditar no que lhe
expunha... miragens, fantasias e esquisitices tolas.
As esquisitices atingiram Sean como uma parede de tijolos.
As impressões eram muito parecidas, porém ele nunca teve que
lidar com fantasmas circulando em seu meio. Fosse na escola, na
rua ou em casa. Os seus pesadelos ocorriam há pouco tempo e em
locais quase sempre isolados. Como seria ignorar espíritos no dia-
a-dia. Sentiu súbita compaixão pelo amigo.
–– Não deve ser fácil! O que eles querem, quem são?
–– Nunca soube. Fiz bem o meu papel. Só Jean teve paciência
para esperar que eu falasse com ele. Esperou quase dez anos antes
que eu desistisse. E ele só repetia, incansável, que sempre soube
206
que eu o escutava. Um dia eu teria que me trair. –– ria-se
lembrando das tentativas de Jean. –– O cara é incansável.
E ambos voltaram a observar os tais fantasmas. E tinham na
ponta da língua a mesma dúvida. –– Não sabia que fantasma tinha
medo de outros fantasmas. Vamos embora daqui antes que eles
resolvam entrar.
–– Agora não. Ninguém tem vontade de sair, vamos ficar por
aqui até que as coisas esfriem! –– disse Mateus. Até mesmo Lucas
se aquietou jogando-se ao sofá com desdém.
Contudo Sean não arredou os pés da janela, desconcentrado e
alheio a tudo. De olhos vidrados no vazio, até que Tiago se
abeirasse apoiando a mão no pescoço do amigo que acordou
sobressaltado.
–– Quanto mais eu olho, mais penso ver algo...
–– Não, você não vê. –– Sean resmungava irritado.
–– É, mas depois do que me contou, de que adianta fingir que
eles não existem, seria muito mais cômodo. Sabe, eu prefiro achar
que eles estão por aí do quê ficar na trevas.
Sean olhou com o canto do olho –– Como?!
–– Se o que você me disse está certo, só posso pensar que
somos mais influenciados do que supomos. Está certo, você nem
tanto –– pensando naquela vantagem que Sean possuía. –– Mas
nós, a maior parte que não sente a presença invisível, será que
estamos realmente imunes ao seu controle?
–– Pode ser!
Sem aviso os soldados estancaram o seu movimento circular e
deram um passo adiante, ultrapassaram a muralha invisível. Em
seguida andaram um pouco mais, chegando à beira do edifício.
Seja lá o quê os estava barrando, ruiu.
Talvez de perto fossem mais reais do que supunha a cinco
andares e, nem pareciam os farrapos que observava. Trajes
desarrumados se alinhavam ao conjunto de feridas, ferimentos,
pústulas e inchaços que a maioria não se importava em mostrar.
Aliás, dava para contar nos dedos aqueles que não tinham sangue
espalhado pelo corpo. Um deles obviamente fora enforcado, ainda
levava a corda presa ao pescoço azulado e se tinha um que
morrera afogado, não o percebeu.
Como ele ia enfrentá-los, aquilo causava aversão a qualquer
um. Guarini e Naxamuñaca estavam ao seu lado. Ambos tinham
207
suas razões para permanecerem junto de Marc ou Sean.
Principalmente agora que alertaram meio exército de mortos-
vivos. Ainda tinha aquela dúvida acerca do que estava realmente
acontecendo, cada um tinha uma opinião, mas só um tinha noção
do que era.
Guarini mantinha uma posição de curiosidade ante a presença
desagradável dos soldados, o que despertou a língua do tio Xaxá,
por dois motivos. Um desagrado quanto à salamandra-de-fogo
que mostrava a língua malcriada empoleirada em Guarini que
tentava disfarçar seu constrangimento galopante e: –– Esses
irmãos sofredores trazem consigo os reflexos dos erros
deliberados a que se entregaram. Hum... Seja a doença ocasionada
pelo desequilíbrio da mente ou os ferimentos mantidos na alma
pelos pensamentos que geram. Esse negócio... hum... de que são
sofrimentos injustos enviado por Deus não existe. São as próprias
culpas estigmatizadas na alma, o reflexo do verdadeiro espírito.
–– Como podem melhorar? –– disse Guarini diante de Sean.
–– Modificando suas ideias. Muitos do que se consideram
vítimas são, na verdade, algozes. Senão, como poderiam ter estas
marcas provocadas pela própria culpa?
Ambos concordaram em silêncio.
–– E o que eu faço agora! –– emperrara Sean.
Os índios se olharam e concederam um leve sorriso para o
garoto, volvendo seus rostos para Bernis que ainda arremessava
bolinhas de papel amassado numa lixeira que transbordava.
O telefone tocou.
Em dois saltos, metade dos ocupantes do recinto alcançaram
o aparelho que continuou tocando até que se resolvessem. Marc
largou a mão no gancho e atendeu-o para o alívio de Guarini.
–– Como?! Esperem por mim, estou indo para aí agora. Não
mexam em nada... –– resolvendo duas questões ao mesmo tempo.
Sua frenética tentativa de enfiar o casaco e sua dúvida se deixava
ou não os garotos sozinhos. Quando desligou estava preso pelo fio
do telefone que saia pela gola atravessando todo o casaco já
abotoado. Puxou o com violência antes de pedir, aos três, que
esperassem por ele. –– Estou retornando para a cripta.
Descobriram algo.
Assim que bateu a porta, tio Xaxá falou. –– Que nada! Só se
confundiram um pouco com o que sopramos aos seus ouvidos.
208
Ah! Gente sugestionável. –– Gargalhava comovido, sentando-se
na bergère puída onde Lucas estava descansando fogosamente.
–– Sugiro que o siga! –– Sem pretexto aparente e de face séria
deixou escapar, em um relance, o que parecia ser um certo receio.
Sean não pode ignorá-lo por mais tempo se quisesse acompanhá-
lo de perto. Não recebeu nem mais uma informação, nada que
pudesse servir de esclarecimento para a perseguição. Bastava
admirar a expressão dos índios que foram tomados de
indisfarçável temor.
Tomou o casaco que se encontrava em mãos e saiu
desabalado, escadas abaixo, para o susto de Tiago que apenas
balançou os ombros para Mateus. Em consenso mudo resolveram
ficar esperando o retorno de um ou de outro. Quem aparecesse
antes, se bem que uns fantasmas surtiriam o mesmo efeito que
Sean antecipara.
Para surpresa de Sean, os guardas haviam se dispersado,
perdidos, e não se interessaram por Marc. Estava ficando muito
estranho. Não estavam caçando o senhor Bernis, ficava evidente o
menoscabo dos três soldados encostados no prédio, sob as luzes
de um letreiro da revista Life. Nada tão paradoxal quanto isto,
entretanto, ele recuava atento aos dois. Marc que seguia
apressadamente, atravessando a rua por entre os automóveis
empacados do congestionamento e, os soldados enfadonhos que
riam debochando de algo. Quanto ao grupo que não assinalava
qualquer intenção de alcançá-lo, estes, trajavam uniformes
modernos, da grande guerra, que se integravam aos rifles
semiautomáticos que pendiam de seus ombros manchados de
sangue. De alguma forma, um deles fumava. O garoto estava
decidido a seguir Marc, todavia não queria despertar a atenção
destes espíritos que surgiam aleatórios a cada canto da cidade,
observando distraidamente os transeuntes sólidos atravessarem o
seu caminho. Seguida de uma onda de escárnio que impregnava as
pessoas de mau-humor. Tudo parecia desencadear para uma
catástrofe. Mesmo que nos próximos dias fosse noite de Natal, o
nascimento de Cristo. Se é que vale de algum alívio.
Homens e mulheres estavam atarefados em suas compras de
última hora, lembrando Sean dos momentos agradáveis que eram
as festas de fim-de-ano. E pela primeira vez pensou em alguém,
um amigo, que desejaria ter por perto na comemoração da ceia de
209
Natal. E uma sombra encobriu seu ânimo. Não que o impedisse da
presença de Tiago, mas porque uma outra pessoa surgiu em sua
mente como alguém que gostaria de ter por perto. Envergonhou-
se.
Marc esboçou um movimento esquivo e escapou por um triz
de um ônibus ruidoso que freara antes de seu ponto no quai de la
megissérie atraindo os olhares de duas criaturas sombrias que não
costumavam transpor paredes. Acenavam apontando os narizes
para Bernis. Em seus casacos pardos aceleraram o passo tentando
alcançá-lo ainda na pont au change que parecia estranhamente
deserta.
Não poderia deixar que o atacassem, dava para ver que as
suas intenções eram más. Além do mais sentia um formigamento
inquieto, como uma intuição. Decerto que algo ruim aconteceria,
por isso Sean correu até ultrapassar os homens. Não ergueu o
olhar, apesar de que a dureza de seus gestos, nervosos, pudesse ser
mais delatores do que um simples relance de olhos curiosos.
Tinha que improvisar.
–– Hei. Senhor Bernis! –– deve ser por dinheiro, sempre é,
então. –– Meu pai pediu para te dizer que não tem como
emprestar a quantia, só deixou estes trocados para um lanche.
Sinto muito. –– sacando algumas moedas.
Ele não entendeu nada, mas viu quando os dois estranhos
estancaram lívidos diante deles. Em alguns segundos Sean
descobriria se tinha dado certo o estratagema. Por precaução
piscou disfarçadamente para Marc.
O que estava com as mãos enfiadas no bolso do casaco
parecia ofendido e se fosse um revólver? Não imaginava que em
uma reação de raiva frustrada ele pudesse se livrar dos dois por
desforra, por não terem senão uns míseros trocados que tilintavam
em bolsos folgados. Nunca mais tiraria conclusões precipitadas
sem antes cogitar que o tiro saísse pela culatra. E saiu.
–– Senhor, desculpe-nos. Deixou cair sua carteira. –– para não
dizer que estavam com remorso por não poderem ajudar Marc
com sua pequena crise monetária.
–– Muito obrigado. –– e como a situação ficara estranha
quanto à recompensa, os homens malvados gesticularam uma
negativa peremptória seguida de fustigantes acenos que atingiram
em cheio o coração ferido do garoto.
210
–– Ah. Pensei errado.
Marc apertou Sean com força, caminhando trôpego antes de
percorrer toda a ilha de la cité e cair de gargalhadas junto à praça
Saint-Michel. O rio silencioso que abarcava a ilhota mesclava-se
para formar de novo um só fluxo, sorvendo consigo o vento
gelado que silvava por entre as árvores secas vindo desde das
galerias escuras da igreja de Notre-Dame. Um vento com cheiro
de história estagnada.
–– Por que este interesse em mim? –– recuperava-se Marc.
–– Não pude evitar. Já disseram que você tem uma
personalidade magnética?
–– Nunca.
Não tinha uma ponta sequer de sarcasmo, ele queria os fatos,
mas o que Sean poderia definir como tal? O acidente e a
premonição? Que tal algo mais, como os ataques no Louvre e os
muitos outros por aí? Bah! Enfim por onde ele poderia começar!
O largo que delimitava o espaço aberto entre as muralhas
douradas de suas fachadas singulares rematava numa bifurcação
bem demarcada que seguiria, à esquerda, como boulevard Saint-
Michel e noutra por rua Danton; pontilhadas de árvores
sonambúlicas pelo inverno característico de Paris.
Os pássaros instintivamente, em sincronismo não
coreografado, lançaram-se acima dos edifícios, desaparecendo
abaixo da silhueta de ogivais dos telhados de zinco esverdeado
dos apartamentos haussmannianos. Marc e Sean estavam
afastados alguns metros entre si quando um estampido despencou
de todas as direções, um eco potente de uma grande explosão que
gemeu o solo. Um som alto o suficiente para que fosse percebido
por meia Paris. Um som de reconhecimento para Marc que ficou
branco e gritou sem som. Movimentos irreconhecíveis enquanto o
barulho ressoava ao redor de ambos. O solo, em reações
convulsivas soltava farpas num raio de afastamento que tinha
como o seu centro a esplanada. Uma suave nuvem de poeira
acinzentada atingiu-os até os joelhos antes de caírem atordoados.
Os carros brecavam desalinhados de seu trajeto, avançando sobre
alguns pedestres.
Um segundo estrondo puxou as fachadas como se as
sugassem para o epicentro antes de serem afastadas por uma onda
que estilhaçou os vidros. Um período de estagnação e então o
211
subsolo regurgitou uma fumaça densa, envolta em pequenos
fragmentos, através do buraco da estação de metrô de Saint-
Michel, seguido pelos bueiros próximos. Um automóvel fora
lançado em um rodopio perfeito, sobrevoando Marc para cair de
quatro logo atrás, num baque seco que fez disparar seu alarme.
Ato inesperado que os jogou ao solo, como se empurrados por
mãos inesperadas para o meio da rua. Marc tentava levantar-se
escorando as pernas abertas, gritando sem que Sean ouvisse por
cima do zumbido que urrava em seus ouvidos machucados. Em
instantes, objetos despencavam do céu como a chuva de um
tornado, espatifando pedras e metais sobre as pessoas. Marc parou
de berrar e saltou de olhos lacrimejantes através do pó que se
dissipava, arremessando Sean para longe de um pedaço da estátua
de bronze esverdeada que quicou onde estava antes. Sorrindo de
sua boca escancarada, os dentes afiados de um dragão sem asas.
O efeito de desorientação passou assim que a poeira e o
barulho sumiram. As poucas pessoas que conseguiam se erguer
gemiam aos socorros das primeiras ambulâncias. Não sabiam se
tinha passado minutos ou horas. Marc puxou Sean para junto de
si, erguendo-o com mais força do que necessitava. Mesmo com o
impacto de toda a destruição, havia muito silêncio.
–– Como você está! –– sussurrou Marc.
–– Com muita raiva.
–– Nunca vou me acostumar com estas explosões... –– deixou
escapar por entre os dentes.
E antes que pudessem prosseguir, contemplaram tudo, num
giro assustado. Com a ressalva de uma única cabeça distorcida de
bronze, caída aos seus pés, estavam diante de uma pequena
clareira livre de outros destroços, inexplicavelmente limpo. Limpo
demais.
–– Não estão atrás de você, nunca estiveram. –– se quisessem,
a ocasião não poderia ter sido melhor.
E Marc não sabia o que falar. Ficaram assim, em silêncio, um
bom tempo; observando a paisagem sob o olhar lânguido da
escultura que permanecera intacta. Saint Michel talvez tivesse
seus motivos, mas Marc julgava outros quando sorriu em meia
boca para Sean, logo depois de encarar a expressão de placidez do
anjo. Que, de sua espada ondeante, almejava uma confissão em
um julgamento que durava anos.
212
15
213
causa dele! Que todas estas mortes fossem efeitos colaterais de
uma perseguição imperceptível. Mas uma voz murmurou ao seu
ouvido.
–– Todos estavam onde deviam estar, não cai uma folha sem
que Ele o permita –– e Sean só pode distinguir um vulto
desaparecendo num lampejo de um manto escuro como o sangue.
Estava transtornado, seus dentes travados denotavam sua
incapacidade ante o inflexível sofrimento humano. Ele não era
ninguém.
–– Vamos. Precisamos sair daqui, não há nada que possamos
fazer –– e Marc recolhia o garoto entre os ombros, afastando-se
pelo boulevard sob os guinchos agudos das sirenes.
Um lampejo de como poderia agir contra. –– Tenho que lhe
contar algumas coisas, senhor Bernis.
–– Também tenho –– respondia nervoso, pois chegou o
momento de contar um segredo.
Ainda tentavam limpar seus rostos e trajes quando chegaram
por fim defronte a um pitoresco restaurante árabe que se abrigava
em uma das indistintas travessas medievais da baixa Mouffe. Com
sua particular extravagância aromática adentraram hipnotizados
com a decoração mourisca. Arcos e adornos talhados em
filigramas douradas que representavam frases emprestadas da
Shura. Muitas cores que tremeluziam pelas intensidades de
lamparinas inconstantes. Um ambiente mergulhado em meias
trevas.
–– Bom Dia, senhor Bernis! –– Piscou o enigmático senhor
Hammed, que trazia umas toalhas mornas e úmidas para que
tentassem tirar um pouco do pó de seus rostos acinzentados pelo
concreto moído. –– Chá de menta! –– berrou para um rapazote
magro que se apressou a atendê-lo. Deixou-os por um minuto,
procurando brigar com o sobrinho enquanto estalava a língua,
indignado com o parentesco.
–– Hábito que adquiri na Síria; é ótimo para se esconder da
realidade, não acha? –– girando os olhos pelo estabelecimento.
–– Você fala como se estivesse fugindo...
–– E quem disse que não estou –– passando a toalha pelos
cabelos com energia.
Foram interrompidos por Hassan que, todo sorriso,
depositava, atrapalhado, os copos de prata junto com uma chaleira
214
fumegante. Devia ter a mesma idade de Sean e não perdeu a
oportunidade de fazer mais alguns amigos, apertando
esfuziantemente a mão dos dois. Retirava-se em mil desculpas
para contentamento de seu tio que continuava estalando a língua.
Hammed empurrava comparações a Hassan, aborrecendo o
sobrinho com insinuações jocosas de que o Ramadã acabara e os
sonhos do Eid-ul-fitr não trariam para ele o paraíso do bom anjo
Gabriel. O alarido diminuía conforme se afastavam
estabelecimento adentro. Só um velho rádio portátil emitia uma
cantilena infatigável.
–– O que foi que quis dizer! –– recordava Sean.
–– Diante da escultura?! –– pois continuava pensando na
frase, sem pausa. –– Bem que preferia esquecer. Significa, o
príncipe do exército celestial que a cidade dos anjos honram. ––
era ele? Não desconfiava que o professor William queria dizer
com contar tudo. Seja quem fosse. Porém o sinal foi absurdamente
claro. –– Tenho que te confessar, estou muito curioso sobre você.
Nunca quis perguntar nada sobre o acidente.
Sean se sentia acuado, mas também queria descobrir o que
estava acontecendo, e começar pelo início, em pratos limpos, era
o pedido que desejaria descartar do menu do chez Hammed.
–– Começou com um sonho muito confuso que acabou por se
transformar num pesadelo real. –– enquanto mordiscava umas
especiarias servidas em abundância. –– Com certeza você não
quer falar disso, mas de como eu sabia o que fazer. O fato é que
eu não sabia, como ainda não sei como.
Entretanto Marc permanecia entorpecido, aguardando a
confissão do garoto com indisfarçável angústia. Vez ou outra
acenava para Hammed, em seus bastos bigodes negros, para que
lhes deixassem a sós. –– Não tenho como lhe descrever isso sem
que pareça falso, sinto muito.
Possivelmente ele gostaria de lançar tudo de uma vez, mas
sabia qual seria a reação, se bem que, a essa altura, Marc não se
importasse com mais surpresas. E prevendo que o garoto não
encontraria as palavras menos chocantes ou mais adequadas para
quem estava com certas vulnerabilidades cardíacas, adiantou-se
em sua confissão.
–– Talvez eu possa lhe ajudar. Não estou atrás de um
manuscrito. Eu já o tenho. –– uma pausa longa para assimilar o
215
que Marc dizia abertamente, sem constrangimentos. –– Seja o que
for que você quisesse dizer com o nunca estiveram atrás de mim,
concordo. Pelo menos quanto ao manuscrito. Todos os atentados
que sofri nestes últimos anos, saí ileso, ou quase. Eu até posso
dizer que estava, de certo modo que desconheço, protegido. Hoje
tive mais uma prova. Então, qualquer coisa a que você se referir
não será necessariamente uma novidade, você me entende? –– só
que nunca havia alguém por perto, mesmo imponderável aos
olhos, quando necessário.
–– Posso tentar. E se eu dissesse que tive ajuda de fantasmas!
Respirou fundo, o coração pronunciou ligeira taquicardia. ––
É mais fácil acreditar nisso do que numa tentativa feliz de me
salvar –– tentou sorrir para o garoto trêmulo ao mesmo tempo em
que sacava um caderno de apontamentos. –– No entanto qual foi o
motivo de sua intromissão na minha morte? Porque está claro que
você e seu amigo Tiago me salvaram por muito pouco.
–– Me falaram de algo como dívidas do passado, ainda não
entendi direito. Sempre desaparecem quando tento obter mais
respostas. Se era isso que queria saber... E quanto aos outros
atentados? –– mudando o rumo.
–– Sem ferimentos. Posso dizer que sofri mais atentados que
muitos países. Grupos separatistas, grupos religiosos radicais.
Todos mais preocupados consigo mesmos, olhando para seus
umbigos, e nem percebem a devastação que causam dentro de
seus ideais. –– e baixou o olhar brincando com suas tâmaras secas
–– e em nossos amigos. Meu avô morreu no primeiro meu
atentado.
E uma onda de tristeza desceu no semblante de Marc,
fazendo-o repensar no tempo que se enclausurara do mundo, em
sua pesquisa. Fugindo de amigos que poderiam morrer por sua
causa, mesmo não determinando se tinha culpa ou não nos
atentados. E Sean passava pelo mesmo drama. Remoendo as
mesmas dúvidas. E Bernis percebeu os mesmos pensamentos em
Sean, que se assemelhava a um reflexo de suas próprias angústias.
–– Não caia no mesmo erro, garoto. Não nos leva a nada. Não
vamos ter paz fugindo do que ocorre ao nosso redor, somos peças
em movimento. –– bastava descobrir de qual jogo.
Emudeceram-se por um tempo, recriando seus novos mundos.
Marc tentava adotar esta nova realidade paralela que incluía um
216
garoto e sua bagagem de fatos bizarros que, apesar de tudo,
considerava plausível. Devia estar começando a endoidar,
desesperado por finalizar a sua caçada aos mikhae. Se não fosse
isso, como explicar sua inclinação para acolher dados poucos
científicos? Teria que aceitar as coincidências como elemento de
peso em suas reflexões, se quisesse encontrar uma resposta?
Sean notava Bernis em elucubrações mil, buscando algo
palpável em que se apoiar. Sabia muito bem que ele não aceitaria
suas palavras sem evidências, nem como as obteria. Precisava
acreditar que elas não seriam imprescindíveis. No entanto, neste
mundo isso não era possível.
–– E você? Tem alguma solução para os meus problemas de
sono? –– é evidente que Sean não as teria, mas disse em voz
elevada buscando que um ser invisível lhe acudisse.
–– Quem sabe. O que você precisa! –– abanando a mão
indiferente.
Marc deu mais corda. –– Como eu devo ler os documentos?!
Agora Sean considerava se ele não estava sendo sarcástico,
pensava que não adiantava responder. Se ele, que era um
acadêmico em espécime, não sabia, como poderia ter algo que
aplacasse sua curiosidade de raciocínio? Que documentos eram
estes que eram ilegíveis? Todos!
–– E a narração de Bernardo?
–– Não é deste códex. Desconfiava que fosse um comentário
sobre o assunto, talvez esclarecesse como eu poderia traduzi-los
ou indicar onde um código pudesse ser encontrado. –– e Marc se
preparava para abandonar seus argumentos. –– E o que você sabe?
–– Só o que você sabe... –– suspirou demoradamente
observando uma criança engatinhando nos fundos do
estabelecimento. –– dos diários de Miguel.
Pensou Marc, o garoto esta sendo sarcástico? –– Miguel?
Quem lhe falou isto? –– A fonte era menos material do que Marc
imaginava, pois não conhecera Naxamuñaca recentemente. E
compreendeu que Sean diria que ela viria de um local inatingível,
pelos menos enquanto ele estivesse vivo.
–– Não é o que procurava por todo este tempo, o códice?
–– De todos os nomes, em estelas ou pergaminhos ou
manuscritos, não havia uma alusão sequer a um Miguel. Tem
certeza de que estamos falando a mesma língua? E por que
217
diários? –– Marc puxava a atenção de Sean com seu indisfarçável
delírio. E ele só balançava os ombros.
Se tinha algo que Sean achava ter certeza era de que os tais
diários de Miguel só poderiam ser o códex mikhae, não havia
dúvidas, os nomes eram similares e a insinuação de que estava de
posse de Marc, só confirmava o fato. Ou ele estaria redondamente
enganado e seriam elementos distintos! Agora era a sua vez, teria
que dar o próximo movimento, entretanto ainda não sabia qual
jogo estava jogando. –– E o outro pergaminho?!
Decididamente não falavam a mesma língua. –– Aquele que
estava na cripta? Era só um suplemento do manuscrito de
Bernardo. Pensei que toparia com algum código para entender o
códex, já que ele comenta ter conhecimento das marcas da
videira...
–– O pergaminho que Bernardo transportava para Francesco
também tinha essa marca?
Marc travou buscando ligar algumas informações sobre o
tema. –– Bernardo não fala de outra mensagem, nem de um
suposto Francesco.
Um momento quase lúdico, ambos estavam estupefatos com a
falha de percepção, pois tudo encaminhava para o mesmo
episódio que teimava passar despercebido. Acabavam de
redescobrir a pólvora. Agora começava a ficar claro o que
representa o encontro fortuito dos dois, não poderia ser
coincidência ou incidência do destino? Haviam duas histórias,
nenhuma estaria finalizada sem a outra. Juntá-los seria a
conclusão destas ideias despedaçadas.
Seria possível que houvesse mais um? Como Sean o soube?
Poderia confiar nesta fonte de informação inusitada? Mas Sean
não recuou, mesmo porque um senhor de adequada índole, de
perceptível semelhança com Marc, se aproximava instigando-o a
explicar o que realmente aconteceu naquele dia perdido num
passado em comum.
Um senhor de bela estampa, de terno aproado, que
atravessava alguns clientes desinformados de seu estado
espiritual, acomodava seu pince-nez consultando uma caderneta
de campo antes de dar um parecer elucidativo. –– Hã. Antes
devem saber quem foi Bernardo. Vocês já têm todos os dados em
218
mãos, inclusive os de Gaius. –– destacando as mãos enquanto
desaparecia como surgiu, do nada ao nada. Por que tanto mistério?
–– Gaius?! –– alto e engasgando repetiu Hassan, deixando a
bandeja escorregar com o susto. Marc deixou-se deslizar com a
palavra enquanto Sean dava uma piscadela em resposta ao
pequeno e assustado garçom.
E Sean se pôs a narrar o que vivenciou no campo de guerra,
através dos olhos da mente, numa visão perturbadora que aclarava
as obscuridades do manuscrito de Bernardo, dando-lhes novos
horizontes quanto quem seria o autor e verdadeiro codificador dos
diários de Miguel. Sempre que recordava sua morte, Sean reagia
com certa dor e angústia, mesmo que soubesse que a morte não
era efetiva e nem supostamente a sua. Agora estavam com outras
incógnitas, não tão novas, que envolviam uma trinca desconhecida
de Marc: Max, Raphael e decididamente Allan.
O mutismo do senhor Bernis se devia ao intricado mecanismo
de pensar. Nem toda a azáfama que a explosão ocasionava nas
redondezas do restaurante e do parlatório impulsivo do dono
distraia-o da iminente lâmpada a se acender num ponto acima de
seu cérebro. Porém não era suficiente para que ligasse os pontos
entre o que sabia e supostamente sabia com o que teria sobre a
escrivaninha do escritório. Tinham que sair, porém Sean o
impediu.
–– Nem pense em sair daqui sem me dizer quem é Gaius. ––
segurando forte o punho da camisa, sem que pudesse forçá-lo a se
sentar como almejava. Pouca idade, pouca força, muita coragem
para alguém como ele. Neste ínterim uma nuvem de fuligem
avançava pela rua afugentando alguns abelhudos que ousavam
alcançar Saint-Michel. Conveniente aos desígnios do garoto que
encarava Bernis recuar até o seu assento desocupado. Marc
perguntaria como eles descobriram, mas deixaria para mais tarde,
caso fosse o caso.
–– Estou perdendo a cabeça.
–– Posso garantir que seu desejo será atendido. –– apontando
para o tumulto de uma multidão em fuga desabalada.
–– Quando estive na Síria conheci um Gaius Cassius. Com
certeza você não quer falar disso, mas de como ele soube que eu o
ouviria. O fato é que eu não faço ideia, como ainda não sei como
219
ele me levou até Lucano. Mas para eu falar deles, precisamos ir
para o apartamento assim que possível.
–– Temos que levar Mateus e Tiago junto. –– estacou firme
diante de uma premente negativa.
Terminaram o lanche em silêncio.
O velho Hammed disparava em brados coléricos a sua
vergonha assim que o rádio enunciou o atentado com a suposta
participação de fundamentalistas residentes à periferia excluída de
Paris. Sempre os imigrantes revoltados que clamavam por justiça
social. –– Allah! Temos tanto o que aprender, e tão poucos
interessado no outro. São as muralhas particulares do preconceito.
A verdadeira jihad está dentro de cada um. –– ajoelhando-se em
contida prece.
Sean rememorava o atentado quando. –– Você não estava
indo para algum lugar?
–– Bem lembrado! –– pagou Hammed, transmitindo sua
solidariedade sem barreiras, levando Sean pelo cotovelo para a rua
que retornava um pouco à normalidade. Os resgates ainda
durariam dias. Descobrindo, entre os escombros, oito mortos e
quase duzentos feridos que tinham pais, irmãos, maridos, esposas
e filhos.
Se ali estava a fonte de suas respostas, não importava mais,
fosse o que fosse, estaria soterrado sob novos escombros que
deslizaram com o tremor da explosão. O acontecimento que havia
ocasionado o involuntário fechamento do Centro de Pesquisas
Biomédicas dos Cordeliers passara a ser a salvação de mais vidas.
Com a onda de choque chocalhando a terra, um novo
desmoronamento engoliu porção dos laboratórios e da esplanada
entre os edifícios mais hodiernos, sepultando a recém descoberta
catacumba por mais algum tempo.
Resignou-se Marc com a devolução de um só item salvo, sua
máquina fotográfica esquecida no dia do acidente com Sarah.
Pingava água e nem chiou quando tentou acioná-la a esmo. Sem
esperança. Talvez o cartão de memória sobrevivesse.
Agora policiais e bombeiros atendiam todas as estações
atingidas num raio de cinco quilômetros da praça Saint-Michel
trancando o trânsito de superfície como uma artéria entupida. Mas
o coração não parava de bombear e a cidade acordaria da pequena
cirurgia sob as prescrições de cautela.
220
Uma onda tensa preenchia o ar, carregando-o de um estopim
que, quando atingisse o nível adequado, provocaria uma explosão
de eventos nada agradáveis. As hostes que assaltavam a cidade
traziam maus pressentimentos e aceleravam a estupidez dos vivos
que, aos poucos, tiravam suas máscaras. Muito poucos
mantinham a índole intacta diante da coação sugestiva destes
diabinhos de ombro.
–– De quem você falava quando se referia a “eles”? ––
recordava-se Marc, refletindo se mantinha a mesma postura de
bom samaritano diante de Sean.
–– Aos exércitos de fantasmas que cercam a cidade. Eu
pensava que era tudo por sua causa, ou do manuscrito que já não
serve para mais nada. Porém não existe razão para que eles
esperem, você sempre teve o documento à vista! Até um completo
idiota saberia, basta olhar para a sua estante de livros.
–– É óbvio assim? –– suspirou resignado com a hilária
revelação de seu esconderijo.
–– Eu costumo ver mais do que o habitual. –– denotava um
Sean bem convencido.
Resignou-se. –– É, é óbvio sim.
221
16
o retrato de chaves
222
Aproveitavam-se do caos para fomentar suas influências e fixar
suas posições de batalha. Eles aparentavam alguns grupos
isolados e heterogêneos com suas fardas disfarçadas sob a égide
de águias ou dragões, que tiveram, cada um ao seu tempo, direitos
sobre o mesmo solo onde agora estavam.
–– Qual será o tema da semana? –– resmungava ferino um
Tiago inconformado com a covardia do irmão.
Sean saltou para a estante, sacando o volume apontado por
sua anacrônica aparência e trazendo consigo seus contíguos
representantes para uma queda estrondosa, entretanto estava com
o livro cobiçado são e salvo em suas mãos. Mesmo que para essa
agitação brusca estivesse estatelado no pavimento, embaixo de
uma chuva de novos exemplares.
–– E o que era que estava procurando com tanto afinco? ––
auxiliava Mateus ajeitando os livros numa pilha sinuosa enquanto
apontava para a porta escancarada. Soldados de lanças douradas
olhavam curiosos para o interior do apartamento, seguidos da
dupla de guardas truculentos que costumam pajear a residência
dos Fox. Eles retribuíram com sorrisos antes de se posicionarem
ladeando o umbral. Os soldados sérios que se portavam como
legionários do mais alto escalão romano giravam os olhos
inconformados com as criancices dos vikings infatigáveis,
verdadeiramente hiperativos.
Devagar, Mateus se aproximou com gestos de boa vizinhança,
pedindo escusas enquanto encostava a porta afugentando olhares
furtivos dos quatro pelas frestas que desapareciam. Não importava
quem fossem, estavam sendo intrometidos além da conta.
Retornou balançando a cabeça, confuso com a situação toda.
Tiago se aproveitava para desmontar o aparelho submergido
resgatado por Marc quando disparou um flash inadvertidamente.
Os Göettees seguravam a ansiedade.
Marc ergueu-se involuntário, abriu uma bíblia cheirando a
novidade e a endereçou ao inquisitivo Mateus que parecia exigir
explicações. Marcou o evangelho de Lucas. Mais precisamente no
capítulo 23 versículo 46, que o rapaz repetiu por entre os dentes
entreabertos: –– “Então Jesus clamou em alta voz: Pai, em tuas
mãos entrego o meu espírito! E dito isto, expirou”.
–– Até aí tudo mais ou menos parecido nas intermináveis
versões que existem. Bem, há também alguns erros de grafia que
223
o tempo até admite. Vou lhes descrever o que aconteceu entre os
versículos conhecidos, enquanto Cristo ainda permanecia no
Gólgota. –– tirava o volume antiguíssimo dos braços de Sean.
Lendo as anotações francesas de um texto em idioma complicado.
–– Perceberam?
Eles não entenderam nada, era tudo insonhável. As
implicações destes parágrafos abalariam o mundo? E o que Gaius
tinha a ver com este trecho?
–– O que é espírito da verdade? –– fez sua primeira
indagação com ênfase, Tiago. –– Ele quem perdeu as asas? –– e
continuou atropelando-os. –– E o centurião, quem é? Quem o via,
quem? Qual gesto... –– para desgosto de Lucas que não havia
percebido que deixava escapar algo desta inquirição.
224
Ninguém sabia ao certo o que responder diante destas dúvidas
enigmáticas, nem mesmo Marc que supostamente seria perito em
alguma coisa do gênero história da humanidade, ou muito velho
mesmo para se lembrar. Alguns flocos de neve bateram contra o
vidro anunciando a chegada de uma tempestade que
redemoinhava abaixo de cúmulos que acinzentava o horizonte. Lá
fora, quem podia ouvir, escutaria uma discussão a quatro-bocas
que indicava as mesmas agitações oferecidas por Tiago.
Bernis pediu tempo, insinuando com as mãos, como um
técnico de algum desporto faria. Pensava que as deturpações, as
interpretações fantasiosas e os religiosos da fé cega jamais
deixariam vir à tona esta pequena grande verdade. Os exércitos
dos dragões poderiam ficar sossegados, os seus aliados vivos
seriam mais eficientes.
–– Jamais iriam acreditar, mesmo que o documento seja
verídico, não há como provar que foi redigido por São Lucas. E
mesmo que aceitem esta hipótese, alegariam que ele nunca esteve
à crucificação, recolhendo suas impressões muitos anos depois. E
este trecho em particular, da boca de um soldado romano. ––
arrematou um Marc Bernis melancólico que não disse como sabia
que a fonte deste extrato era o mesmo centurião.
Como ninguém conseguia abrir a boca para acrescentar sua
opinião, nem mesmo Tiago, que era propenso a falar pelos
cotovelos, calaram-se aguardando que a rotina lhes alcançasse. O
que não impediu Mateus de se aproximar do livreto encarquilhado
sacando outras folhas que não haviam sido mencionadas.
Sean observava a nevasca afugentar as pessoas no logradouro,
inclusive as que não se importariam, se quisessem. As luzes se
acendiam, progredindo a partir dos pontos mais enevoados como
se fossem tochas enfurecidas caçando um monstro em fuga. Um
monstro que não teria pernas nem braços, entretanto possuía a
ferocidade de um enxame, de uma epidemia que absorvia a todos.
–– O soldado é Gaius, não é? –– conferiu Sean, deixando cair
involuntariamente a sua mochila que esparramou as suas coisas
pelo chão. Tiago retornou para ver o que acontecia. Ficaram
ambos se encarando nos primeiros segundos.
–– Você sabe de alguma coisa que não quer me contar? ––
disse Bernis, com olhar desconfiado. Catavam rapidamente as
tralhas.
225
–– Talvez. –– forçando a memória. Andou até a mesma
janela. Lá fora os fantasmas rodeavam o edifício como se
preparassem para escalar uma muralha transparente e pular sobre
a sua presa. Os seus movimentos eram constantes, como em uma
colmeia em trabalho incessante. Eles estavam diferentes, mas no
quê, pensava Sean.
Marc segurava displicentemente o diário que saltara da
mochila, improvisando um jeito de mantê-lo inteiro com o adorno
que recebera no oriente e não lhe servia mais. A singela cruz de
madeiro puído fez-se de fecho para o livro de bolso que socou na
mesma secção da mochila do qual despencara. Ele não se
importou em se desfazer do amuleto.
Sean empalidecera.
Foi Marc quem o tirou daquele estupor branco recomendando
que o acompanhasse até o Louvre, caminhar alguns minutos seria
revigorante. Quem sabe para ele que não teria que passar em meio
àquela gente incorpórea.
De um brado retumbante, Mateus anunciou a incursão de um
bando de bárbaros mongóis que provocou a infalível reação de
Tiago contra a porta já bem resguardada por oito braços armados.
De costas, contraindo-se ferozmente enquanto enfiava a peças
sobressalentes da máquina em um bolso conveniente. O embuste
de Mateus fora seguido das gargalhadas unânimes. –– Não acha
que a porta os segurará, acha? –– Só se for para refrear os ânimos
que estavam em queda vertiginosa.
Mas Lucas não entendeu a piada. Queria saber do quê se
tratava, mas estava muito aborrecido para perder tempo com
bobagens.
226
–– Oh, no way! Falar com os mortos não é nenhum
superpoder, vocês sabiam!
Agora Lucas havia entendido a piada. Ninguém parecia
preocupado em explicar que fantasmas existiam para ele.
–– Vocês vêm, ou não? Heim!
Os quatro guardiões gesticulavam nãos com os dedos soltos,
tiravam literalmente o corpo fora. Apoiavam-se animados contra a
parede, aguardando o desfecho, só faltava a pipoca e o
refrigerante. –– Não entendo vocês... –– E voltou-se para a turba.
–– Só se for de olhos vendados... –– soprou sem pensar.
–– Que seja então. –– piscando cúmplice para Tiago. Em
questões como essa Tiago fazia-se de mudo e, abençoadamente,
cego.
Marc Bernis puxou o garoto e o pôs no ombro como um saco
de batatas que se acomodasse quieto e imóvel. Nem um pio até o
museu quando os gritos se calaram e um grande alvoroço se
seguiu à evasão dos homens. Estava satisfeito, apesar da
curiosidade em saber o quê os teriam feito correr em disparada
qual o diabo da cruz.
Lucas estava tonto quando Tiago percebeu a gafe, ninguém
havia contado a ele sobre os fantasmas. Nem saberia se ele
acreditaria se o contassem, mas estava muito claro que ele havia
reagido muito mal à notícia. Ele balbuciava perguntas que Tiago
não sabia contestar, pois também nada via. Mas das vezes que
lances inexplicáveis aconteceram e ele não pode ignorar, teriam
ajudado Lucas a acreditar em tais lances. E foram exatamente
estes que contou para seu irmão, na expectativa de que servisse de
precaução contra novas.
Porém Sean só pôde ver, desta vez, os fugitivos evaporando
por entre as brumas de um nevoeiro suspeito que brotava do rio
Sena e que se espalhava pelas ruas tornando o ar denso o bastante
para se apoiar. Mateus seguia-os, colado o suficiente para que se
sentisse levemente seguro entre tentativas infrutíferas de braços e
mãos em chagas horripilantes. As nuvens ajudavam a encobrir os
rostos, mas não impedia o susto de aparições inesperadas.
–– Sabe de uma coisa? –– falando para si. –– Estes espíritos
se vestem muito mal.
De forma inesperada uma brecha se abriu revelando uma
esquadrilha em formação. Estavam em patrulhamento de baixa
227
altitude o que permitia identificar suas insígnias. Mateus olhou
aleatoriamente para o alto, acostumado com o sobrevoo de
aeronaves, mas estas não evitaram que ele parasse uma segunda
ou terceira ocasião tentando entender do quê se tratava. De
soslaio, na primeira observação, viu que eram à hélice. Como
quem não estava satisfeito, mais atentamente, percebeu narizes
amarelos à carenagem dos mesmos. Enfim, retrocedeu para uma
nova averiguação que se fixou em suásticas circunscritas de
messerschmitts e junkers mergulhadores.
Sean também os notou. Estava mais preocupado com um
ataque kamikaze. –– Criar uma revoada de pássaros assustados
resolveria?
–– Creio que para estes tipos, não. Depois, não estou vendo
nenhum pássaro por perto. –– e o inverno se declarava.
Mas acompanhando os aeroplanos estavam criaturas de cauda
e longas asas que, indestacáveis em seu planeio, passaram
despercebidas dos garotos; animais que só existiam em lendas da
idade média e que poucos conseguiram derrotá-los. São Jorge
fincara sua lança em um, outros seguiram-no com algum triunfo,
contudo, a grande maioria jamais retornaria viva.
Agora algumas dezenas de aeronaves zuniam ameaçadoras.
Um assalto por terra, um quase-outro por ar, o que ainda viria
pela água?!
O rio borbulhava.
230
adeptos do estudo e da pesquisa, nem sequer mantinham os
ouvidos abertos durante as aulas.
–– Então ele era mal! –– que resumo grosso.
–– Não, nada disso. Pelo que soube, o homem reagiu à
tentativa dos sacerdotes de impingirem mais sofrimento a Jesus.
Parece que eles haviam quebrado as pernas dos ladrões que
estavam crucificados ao seu lado. O próximo seria...
–– Então o soldado acelerou o processo com o que tinha em
mãos... –– que Tiago curto e grosso.
–– E ficou arrependido convertendo-se ao cristianismo. Além
do fato de ter sido curado das vistas com os respingos do sangue
de Cristo. Ainda não estava cego, possivelmente estava na
província, meio que afastado, por apresentar sinais de catarata.
A conversão não era marcada só pelo milagre, no entanto
havia um componente de perdão e arrependimento que propiciou
que ele encontrasse um novo caminho, mais fraternal e justo. Sua
vida seria perpetuada pela conversão, mas foi sua ação moral que
determinaria a sua evolução e por isso merecia a estima de ter se
tornado um santo. Esta passagem provocou revoluções de
sentimentos estranhos a Sean, que restringiu suas emoções à mais
forte delas, o compromisso.
–– Desde então ele e sua lança percorreram caminhos
distintos, adotando nova designação de lançador: Longinus. ––
revelou Marc.
O caminho da lança finaliza, nos dias de hoje, no museu
austríaco de Hofburg após ter supostamente estado com o führer
na última grande guerra. O mito criado em torno do talismã
bifurcava para duas personagens que se opunham.
Há uma lenda ligada a esta lança que diz que quem a possuir e
decifrar os seus segredos terá o destino do mundo em suas mãos,
para o bem ou para o mal. Porém tem sido mais usada como
instrumento de conquista e opressão. E não era isso que eles
queriam.
Para Marc não passava de uma fábula sobre um artefato que
pouco representava, inclusive aos austríacos, senão eles seriam
uma nação inigualável; ou a lança do destino era só uma história
para ninar. Mas Longinus existiu, senão quem o guiaria até o
extrato apócrifo de São Lucas que agora estava diante de seus
olhos?
231
–– Como veem, tudo que promete demais, acaba cedo demais.
Com a ajuda de Mateus, eles inverteram um extenso quadro,
desobstruindo seu verso. O pergaminho de pele brilhava protegido
por um composto sintético aprovado para a recuperação de
documentos muito antigos. No anteverso, letras gregas miúdas e
sem separações reproduziam o que São Lucas exprimiu como os
eventos no monte da caveira. O que estava camuflado, agora
revelado, era o documento mikhae. O mais antigo e não menos
intraduzível, com seus mesmos símbolos gregos impressos num
mesmo rolo exposto.
Com uma folha cândida Marc rabiscou uma sequência de
letras reconhecíveis e fixou-a abaixo do referido parágrafo. Com
uma caneta bastão circulou, no vidro, sobre o pergaminho, a
cártula que correspondia ao vocábulo traduzido de mikhae ou
mixael. Para cada uma das fotografias espalhadas no recinto ele
colou uma lâmina similar. Para linhas, rabiscos, curvas e alfabetos
raros havia uma compilação em letras de nosso abecedário. Com
exceção das cártulas circuladas, mesmo em letras reconhecíveis,
os textos continuavam sem sentido.
Eles percorriam os olhos num giro pleno antes de terminarem
seus exames sobre o descobridor que empurrava a papelada em
busca de um manifesto da batalha de Damietta, com nomes de
destacados militares, alguns religiosos e pouquíssimos capturados.
Todos mortos, em batalha ou dormindo, não havia distinção.
–– Uma emboscada ao acampamento situado num dos ramais
do delta do rio Nilo dizimou duas frentes de defesa. Uma delas era
constituída por cavaleiros teutônicos. Os nomes de dois oficiais e
do médico de campanha batem. –– para alívio dos curiosos.
Maximilian e Raphael diziam respeito à casa dos Lenffers,
grafia germânica, que provinham de Lotharíngia, ocupada por
outra contemporânea designação, Lorena. Estado independente
que, com o correr dos séculos, e movimento das marés políticas,
pertenceria à Germânia ou França. Inconstância que transparecia
na relação entre os irmãos Lenffers, gêmeos de opiniões
conflitantes, como denota o pouco histórico incrivelmente
amealhado, anexado ao manifesto assim como algumas missivas
protocolares.
Era presumível que quem controlava e intercambiava as
relações dos gêmeos fosse o médico de campo, Allan cujo nome
232
de ascendência apagou-se como a margem do pergaminho
desenrolado.
235
16 ½
a dissensão
236
Davidson e herr Rommel prontamente concordam, mas para o
capitão Sixderniers se torna mais intricado. Mas finalmente ele
consente com a situação desastrosa que se aproxima. Questões
particulares eram esquecidas quando os dragões exigiam plena
participação em seus planos. O pouco que estes poderosos
subordinados sabiam tornavam-nos tão marionetes quanto seus
peões de guerra. Não divisavam que suas ações não passavam de
vãs tentativas de conseguir o que estava inexoravelmente perdido.
Os dragões lutavam desesperados para evitar, mais uma vez,
que seu mundo fosse desmantelado. As fossas abissais foram
abertas e as vítimas e verdugos libertados, avançando para a
superfície do planeta em convulsão. Para todo o resto parecia uma
invasão, mas existiam outras razões que, até os draconianos
desconheciam quando tudo que estava acontecendo provinha do
céu. Toda a operação já estava comprometida, eles não sabiam. A
maioria somente busca os prazeres de vícios, orgulho inflamado e
egoísmo exacerbado para criar mais poder.
237
17
francesco bernardone
238
ladeavam o bordo de uma mesa de apoio. Ficava nervoso em não
saber o que estava acontecendo ao seu redor, fantasmas
tagarelavam e ninguém parecia se importar com ele. Por isso que
acabava esbarrando e tropicando nas coisas, talvez conseguisse
alguma atenção forçada. Porém, estas torres não-Marchianas,
nada cromáticas, mas bem aparelhadas, eram o levantamento de
Sarah acerca de três eventos importantíssimos, os Cordeliers, a
batalha de Damietta e muitas revistas de moda Vogue.
O garoto desastrado não tinha como disfarçar suas faces
rubras pelo deslize cometido, enquanto Bernis se agachava para
recolher os destroços. Bem observado, junto destas informações,
estava um livro de referência que utilizavam para algumas
anotações biográficas. A página em evidência estava selecionada
por um grosso envelope pardo. Na etiqueta, a descrição da adaga
e um resumo do departamento de catalogação confirmavam ser do
sultão Melek Al-Kamil, o ofensor de Damietta na fatídica luta
narrada por Bernardo. –– mais outra coincidência.
Ele girou o envelope avaliando seu peso antes de atirá-lo
sobre o aparador igualmente atulhado de documentos retorcidos e
livros marcados por dezenas de línguas de marcadores
improvisados. O volume em suas mãos contava com uma pequena
narrativa reconhecida com certa estranheza. De como a adaga
chegara até ali, havia uma possibilidade que só este acontecimento
traria esclarecimento.
–– É, tinha alguém dentro do campo de batalha com certa
influência ou neutralidade entre os dois exércitos. Alguém que
possuía um salvo-conduto para seguir as Cruzadas, dado por um
Cardeal. Alguém respeitável aos olhos do exército inimigo,
reverenciado por Al-Kamil. Alguém que retornou incólume.
Alguém...
Ele retrocedia uma folha para rever o título do capítulo que,
para seu espanto, conferiu com a sobrecapa do livro antes de
soltá-lo a esmo. Sua atenção estava na frenética busca ao
manifesto de guerra. Só havia conferido os militares ou
Bernardos. A obra, que agora estava com Mateus, permitia que
todos os demais soubessem do que se tratava: santos católicos,
suas biografias.
–– Existe um Francesco no inventário. –– pasmo. ––
Francesco Bernardone... –– E disse isso com incredulidade e
239
júbilo. Tinha o elemento que lhe ensinava como chegar ao correto
manuscrito, aquele que simplificaria o significado de um diário
espalhado pelos quatro cantos do mundo como um bizarro códice.
A folha de uva, da videira, estava presente como símbolo do
codificador mikhae. A suposta cruz, do crucifixo de Santo Antão.
Crucifixo de Santo Antão –– que em voto de pobreza fora imitado
–– posto diante do altar da capela de São Damião, sobre o altar da
igreja de São Damião em Assis indicava a outra insígnia. E na
cabeça de Marc ressoou vívido de suas lembranças do passado. ––
“Francisco, não vês que a minha casa está em ruínas? Restaura-a
para mim!”.
Mateus mostrava o capítulo que vincara o livro biográfico dos
santos quase o partindo em dois para os garotos que, com a
surpresa, soltaram longos e apalermados hãs.
–– São Francisco de Assis!
–– Tal qual. –– gaguejava Marc. –– Acho que agora temos a
personalidade que nos dá o crédito que precisávamos para confiar
que os documentos, o códex, os diários sejam sérios. Não acham?
Acenaram um sim.
–– Necessitávamos de ambos os símbolos combinados para
que o local fosse demarcado. O que faltava era a assinatura de São
Francisco, que costumava registrá-la como um T. A cruz de Santo
Antão, o tau grego. –– e sobre a imagem do televisor ele grafou e
contornou ambos, assim como acentuou o título na lápide seguida
de uma época. –– Temos o tau, temos a videira, temos...
Forçava a vista buscando compreender as garatujas que
compunham uma inscrição e números. Na fotografia adjacente
teriam a resposta refletida por uma iluminação inclinada que
aumentava as sombras do baixo-relevo esculpido na pedra
submersa. –– Allan de Sint-Miqels, 1219. Damyat. E ligeiramente
abaixo deste, um epitáfio insólito. –– Ninguém me presta auxílio
para estas coisas senão Miguel, vosso Príncipe.
Como diria Marc, em espasmos de cientista louco. ––
Espantoso. Ou este ano é uma confluência temporal ou é só outra
coincidência.
–– Coincidência?! No way, man! –– Sean reforçou sua
certeza e dos outros. Gaguejando em outra língua o que constituía
apropriada confusão ressuscitada.
O subterrâneo ecoou imediatamente.
240
Os cinco pensavam cinco coisas diferentes, no entanto, quem
agiu com maior ligeireza fora Marc que se atracou com o
cabideiro extraindo seu casaco. Por instantes voltou-se para os
garotos, ensaiando uma escusa para a súbita fuga. Ergueu a palma
da mão pedindo que esperassem e mudo, sem dizer uma única
palavra, pensando uma coisa e fazendo outra, saiu.
Os demais, sem reação, se espremeram no pequeno sofá de
três lugares, avaliando o próximo passo. Lucas abria e fechava a
boca sem emitir sons, não conseguia construir uma frase sequer
sem que parecesse redundante. Tiago confirmava balançando a
cabeça.
A manhã já terminava, e eles estavam famintos.
–– Estou com fome. –– ergueu Sean que já se vestia com
dificuldade. Eles não retrucaram, pularam sobre as jaquetas
forradas e amarrotadas e puxaram Sean com eles. A luz do sol
caiu como um alívio ansiado, carregando-os sonambúlicos através
da grande ilha de la citè.
Estavam defronte à oclusa praça Saint-Michel, cingida por
veículos de serviço e gente atarefada na desobstrução da estação
de metrô e no religamento das artérias de cabos e encanamentos
rompidos. Ao longe, a estátua ainda parecia vigiá-lo cobrando um
antigo pacto. Sean não entendia a sensação.
A chuva de destroços havia marcado o chão, deixando um
espaço em branco, exatamente onde ele estava mais cedo. Um
círculo absurdamente limpo, sem pedriscos ou rachaduras.
Mateus percebeu os pensamentos.
–– Não sei todas as coisas. Mas não posso negar que estamos
mexendo com algo que não devíamos.
–– Está enganado, somente nós poderíamos. –– corrigiu Sean.
–– Tomara que você esteja errado.
–– Tomara.
Contornaram as fitas de segurança chegando a discreto
restaurante no quai du Marche Neuf, que com o frio, estava com
as mesas à rua, abandonadas, e seu coração aconchegante de uma
barcaça-restaurante ancorada no Sena. Fumaças escapavam de
suas chaminés com perfume inebriante de assados e massas em
ebulição. Mesa para quatro, contudo, considerando a fileira de
espíritos que lhes acompanhavam, seria preciso todas as cadeiras
e mesas do recinto para acomodá-los.
241
Estavam apreensivos, especialmente os que viam a
movimentação destes espíritos recém-chegados com ares de
excursionista atrapalhado sem mapa e sem rumo.
–– Olhe ao redor, você acha tudo isto normal? –– queria
verdadeiramente saber Sean.
–– Não. Por isso mesmo que quero sair fora o mais rápido
possível deste tumulto. Se ninguém precisa ver, por que eu me
importaria? Acho que você devia fazer o mesmo. –– aconselhava
Mateus pouco convincente –– Aliás, faça como eu, finja.
Respirou fundo antes de seu remate inflexível. –– Não vou
enfiar o rabo por entre as pernas e fingir que não é comigo. Temos
que servir de ponte entre os mundos, senão como explicar o
motivo para estarmos envolvidos no meio desta guerra. Considera
tudo simples acidente!
–– Sim.
–– Não seja um imbecil...
Cortado bruscamente por Lucas que não gostava do garoto,
muito menos que enfrentasse seu irmão. Quem era ele para
retrucá-lo. Sem dúvida Mateus saberia muito mais, tinha mais
tirocínio, mesmo que o tivesse enganado por anos com o
encobrimento de suas supostas visões fantasmagóricas. Para
Lucas este dia era só uma trégua, porque queria desvendar o que
se passava, mas enfim o dia terminara e não teria que representar
o cara metediço e desvelado. –– Ouça o que ele diz e cale a boca!
Sean pediu licença aos três e disparou porta afora. Tiago
tentou esboçar uma contramedida, mas Lucas segurou-o com
firmeza exagerada.
Mateus parecia não se importar, não valia a pena.
Agora era tarde demais.
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18
243
O ranger da porta anunciava e preconizava algo de muito
inusitado, silêncio e a escuridão de um breu quase sólido impedia-
o de caminhar fluidicamente, tendo que se apoiar em objetos que
sabia estar em locais reais, porém de recordações imaginárias. Por
isso apalpava de dedos leves e andar ziguezagueante.
Quando seus olhos começaram a perceber os contrastes e
contornos da semiobscuridade, uma luz mortiça ofuscou-lhe
momentaneamente sua ação. Os contornos ganharam cores
embaçadas que se aglutinavam. Sean não escaparia de mais um
sermão.
–– Não o esperava tão cedo. –– era Patrick que se erguia
amassado de uma poltrona enfeixada pelo foco de luz religada.
Ele não estava com cara de estar tendo um bom dia, e claramente
procuraria completá-lo. Estar no escuro em plena tarde garantiria
que as observações eram estas.
Sean já havia percorrido a grande distância que poderia tê-lo
salvo desta confrontação. Estava perto demais para ignorá-lo e
longe o suficiente para não tentar escapulir sem represálias, então
teria que enfrentar a situação, não tinha jeito mesmo. E tanto não
tinha que Patrick deu um passo e agarrou o garoto pelo cangote,
puxando-o para a poltrona. Agora era tarde para fugir ao
interrogatório paterno.
–– Soube que continua falando o que não deve! –– tão calmo
o quanto lhe era possível. –– É por tua causa que não temos
sossego nunca. –– elevando alguns tons que chegavam ao limite
de indicar alguma raiva moderada.
–– Peraí. Não tenho culpa se se sente incomodado com que eu
ando fazendo. Perdi muito tempo aguardando que vocês me
entendessem e mais, me defendessem. –– atitude bastante
incomum em Sean. Supostamente mais difícil do que aparentava,
encoberto por uma taquicardia nervosa de mãos suadas.
Patrick engoliu com um engasgo seu assombro. –– Como?!
Contando mentiras? Alimentando o seu delírio? Fiz tudo o que
podia, até o que não era capaz...
–– Esse é o seu problema, pai, não acredita que possam existir
outras verdades que não seja a sua. Quem é que foge sempre? Eu
que aceito a realidade e me adapto às minhas dificuldades ou você
que abandona cada um dos seus parceiros porque simplesmente
não aceitam suas opiniões! –– o garoto o assustou com sua força
244
de vontade e uma maturidade que achava longe de encontrar num
filho de poucos anos. Patrick, devagar, soltava os dedos da gola e
se erguia intimidado por outra verdade que sabia ser a única.
Seu filho era instigado a falar além do que queria, mas devia,
se queria por um fim nestas desconfianças infundadas. Quando ele
poderia deixar de ver fantasmas! Até quando conseguiria ignorá-
los! Era muito mais fácil lidar com o fato, de fato.
–– Que o senhor não acredite no que estou dizendo, concordo!
Mas para impor o que você deseja, antes é preciso que entenda o
que está acontecendo comigo. Eu vejo e falo com espíritos, quer
queira ou não. É obrigatório que eu me adapte a outras realidades
porque para mim elas existem...
–– Para mim não há outra realidade senão esta.
–– Somente porque não quer saber delas, elas estão por aí.
–– Quem garante que você não está se enganando com
mentiras? –– Patrick ainda estava contendo seu anseio de dar um
bom tapa, de fato.
–– Porque elas não existem, só verdades, seja a minha, a sua
ou a nossa. Milhares de verdades, talvez várias para cada pessoa
deste planeta. O problema é que todos querem aplicar a sua, como
o senhor sempre faz com todos, sem exceção.
A mão já descia ligeira para acertar algum ponto já
cicatrizado no rosto do filho, mas foi impedido por duas forças
que lhe eram desconhecidas. O ar tornara-se grosso em torno do
punho, refreando o impacto certeiro. Era alguém que Sean viu,
pouco antes de terminar a frase, se interpor contra o ataque. A
outra força era mais desmoralizante, a culpa, o remorso por estar
sendo injusto. Se bem que sua maior transformação demoraria
algum tempo para assimilá-la: quem segurou seu braço?!
O braço estagnado, parado no ar, reforçava sua dor. A anciã
piscou fraternalmente, assegurando que o bisneto não soltasse o
braço em Sean. Patrick olhou para o filho querendo ampliar sua
cólera com o ato que lhe era incontrolável. Todavia Sean
mantinha o olhar firme, sem reagir às fraquezas reconhecidas de
seu pai. Quase podia sentir dó, a mesma que sentia por si.
Foi o suficiente para quebrar a máscara. Patrick Fox jamais
seria o mesmo, prostrou sua estupidez, mas demorou demais para
reagir. Queria abraçar o filho como nunca o fizera, mas era tarde.
245
Queria se desculpar, mas o prazo vencera e Sean já estava
escalando os degraus para seu dormitório.
Ele só queria descansar.
249
e se realmente existiria coincidência. –– Nã... Não. –– com
dúvidas atravessadas na garganta.
252
19
contratempo
253
Outros simplesmente apontavam, tais como holofotes baços, a
estatueta de contornos feéricos e semblante indagativo.
–– Sinto muito. –– Sean iniciou a conversa contemplando as
estrelas que via pela primeira vez nos céus de Paris para não ter
que manter os olhos em Miguel.
–– Você estava certo, quanto antes, melhor. É que cada vez
parece ficar mais difícil de enfrentar a situação. Contei tudo para
Elene que reagiu muito bem, se bem que não quis dizer nada.
–– Desculpe-me, falei por falar. Estou cansado demais para
me importar com quem quer ou não acreditar nos meus fantasmas.
–– deu de ombros, apático. –– Se não fosse todas estas
assombrações cortando meu caminho, talvez até conseguisse
passar despercebido, deixar de lado.
Tiraram algum tempo para refletir como, em poucos dias, a
vida dos dois mudou radicalmente. É claro que foi amenizada pela
cumplicidade de suas habilidades incomuns.
–– Como foi sua primeira vez? –– o garoto não se referia a
assuntos biológicos.
–– Ah! Ao contrário do que as pessoas pensam, a aparição de
espíritos não causam tanto medo ou pavor. O meu maior susto
aconteceu quando percebi que havia alguém escondido dentro de
casa. A primeira reação foi de que um ladrão havia invadido e
que só estava me encarando antes de atacar. Sumiu no ar.
–– E piorou quando descobriu que era um fantasma! –– tendo
certeza que ouviria um sim.
Matt negava rindo. –– Foi um alívio quando percebi que não
era um invasor vivo que pudesse me agredir. Fiquei tão surpreso
com esta atitude que só depois concatenei com o fato de que era
um espírito...
Para Sean, a prova definitiva de que espíritos e fantasmas
haviam se apresentado se devia ao assombroso cavalo que
acompanhava o seu cavaleiro armado para dentro do centro de
terapia intensiva de um hospital. O rapaz concordou que seria
difícil de não acreditar que o fosse. Mas Sean só teria certeza total
quando índios desapareceram diante de seus olhos, depois de
interpelarem-no diretamente sobre se ele os via ou não.
Verdadeiramente traumático. Uma forma de prepará-lo para
emoções mais fortes, quesito que Mateus deixava a desejar.
254
–– Agradeço por serem mais coerentes, digo, mais ou menos
normais. –– frisava Mateus entre um devaneio audível e gestos
aleatórios feitos ao ar. –– Sem complicações emanadas por
incenso ou eventos místicos e ladainhas que tentam afastar ou
atrair fantasmas melodramáticos. E vai por mim, se você
realmente quiser, eles preparam uma fantástica representação.
Em toda literatura, fantasmas e espíritos se manifestavam
entre brumas de um pensamento desconexo e caótico. Gritos,
sussurros e gemidos seguidos de impressões impossíveis de existir
caracterizavam-nos como flashes de um sentimento misterioso e
doentio. Pavor que não se ventilava. Cenários dignos de queimar a
retina. Mas estes não se davam ao trabalho de sofisticar suas
apresentações. A grande maioria poderia ser confundida com os
vivos, se bem que eles também não percebiam sua condição
mórbida e continuavam por aí.
Afinal não havia nada para discutir, seria apenas um desabafo
entre iguais. –– Pelo menos tenho para quem contar as esquisitices
sem me preocupar se são ou não verdadeiras, se não passa de
delírios ou suposições insinuadas pelo medo.
–– Sim, garoto. –– O vento cessava devagar, limpando o ar
dos assovios e silvos de frestas mal seladas e corredores
emparedados. –– Mas acho que para mim e Elene é o fim.
–– Sinto muito. –– assaltado com breve exultação.
Com tudo isto acontecendo com muita pressa, as questões
mais simples eram legadas para segundo plano, contudo elas
acabariam vindo à tona. Sendo bem mais jovem, Sean, acabava
sendo o mais bisbilhoteiro e impertinente. –– Eu achava que havia
centenas de videntes e profetas por aí...
Para ouvir os ombros de Mateus estalando sem respostas,
mais preocupado consigo. Avançava, fuçando por entre os
tapumes e, se espremia entre cordas e metais com zelo exagerado.
Uma última língua glacial soprou da rua de la Huchette trazendo
impressões bastante pesadas. Sean recuou alguns metros chegando
no quai contíguo, estranhando a imobilidade forçada. O ar
cheirava a sebo e fumaça de vela. Vasculhou com cuidado
procurando a fonte desta impressão que lhe arrepiava a espinha
como um aviso macabro.
Um par de pombas andava no céu.
Um par de pombas andava no céu?
255
Gritou para Mateus que regressou claudicante com a mesma
observação de pássaros caminhando no ar. Olharam-se com
indecisão e pavor crescente. Estava acontecendo algo bem acima
de seus narizes.
Começaram a discutir qual seria a melhor medida: correr o
máximo que podiam ou ficar. Mas Sean não replicava, obrigando
Mateus a volver cauto, em direção ao olhar estático do garoto que
não movia um músculo sequer fascinado com a extraordinária
torre de pedra guarnecendo a Petit-Pont. Bandeirolas tremeluziam
com a luz de archotes nas mãos de homens vigilantes nas ameias
improvisadas.
Como se uma onda invisível os cobrisse, contornos emergiam
mais sólidos aos seus olhos vidrados. As pombas caminhavam
pela cumeeira de um casebre que insistia em brotar acima da via
marginal que bordeia o rio. Uma segunda vaga reforçou a silhueta
selando toda visão do rio. Casas, casebres, sobrados, estalagens e
mais e mais moradias imperfeitas em encaixes de madeira
aleatórios acotovelavam apinhadas, invadindo a ponte Saint-
Michel e absorvendo a sua praça.
Viram-se encerrados num beco encardido de poucas chamas
iluminando tavernas suspeitas. O chão era engolido pela terra
batida que devorava os poucos remanescentes de postes elétricos
ou telefones públicos, apagando quaisquer sinais da realidade.
Correram até onde podiam até que sua realidade desaparecesse
por completo.
–– Onde estamos? –– estacou Mateus sem rumo.
–– Ainda estamos aqui, Matt! –– Sean se agarrava a uma
grade de ferro que não era aparente, entretanto não a largaria
enquanto pudesse. –– Não se afaste do lugar... Fique parado.
Tarde demais, Mateus se chocara com um poste invisível que
o derrubou, irritado com a mão à testa ferida. Estavam num aberto
com um poço centralizado. As casas sujas pareciam elementos
nascidos da terra encardido sob seus pés, esgoto e ratazanas
corriam livremente entre os antros mais negros do beco.
Lentamente o som se erguia evidenciando algum burburinho de
vozes embriagadas e música descompassada. Várias janelas
estavam abertas vomitando gritos e risadas.
O rapaz buscava levantar o mais rápido possível quando uma
explosão de água e urina o fez saltar para trás, de encontro ao
256
poste oculto. Uma velha de toca rendada balançava um penico de
uma das aberturas, urrando imprecações chulas para eles. Pessoas
circulavam em vestidos e trajes imundos, recolhendo água do
poço ou prazeres de moças desnudas.
Mateus olhou aturdido para Sean que continuava agarrado ao
seu lastro invisível, apertando-o com tanta força que seria capaz
de arrancar a barra de ferro se o quisesse. Os ruídos ganharam
corpo e o populacho parou aturdido, olhando através de la
Huchette, o avanço de gente desesperada em número suficiente
para provocar a debandada de aberturas cerradas em coro. Fumaça
e fogo anunciavam que o foco dos conflitos ficava perto da torre
de pedra escondida, agora, pelas casas altas e sufocantes. Tiros
moucos, de armas de fogo recarregáveis com dificuldade, eram
sobrepujados por raros canhões que esfacelaram a madeira e o
barro de algumas construções. Os estilhaços cobriam os fugitivos
arremessando-os contra os ares.
Soldados prosseguiam pela alameda matando homens,
mulheres e, sobretudo huguenotes. Com o nevoeiro formado pela
pólvora e os berros de dor, eles não podiam reagir. Mateus
ensaiava um meio de alcançar Sean quando, além de seus esteios
da realidade, um soldado desembainhou um sabre cortando-lhe a
cabeça.
259
A multidão belle-époque disseminava chapéus e sombrinhas
em comemoração ao sobrevoo do 14-bis em contorno muito
alongado à Torre Eiffel. Vitrines asseadas e floreiras abundantes
resplandeciam a praça reformada. Esfuziados homens bem
vestidos escoltavam mademoiselles de corpete ao Campo de
Marte, embarcando em carruagens vistosas, porém o trânsito se
fazia impraticável pelo afluxo de curiosos ao largo de Bagatelle.
Silêncio.
Mateus atordoado com a reviravolta de situações extremas
tomba enjoado, respirando fundo. Deitava displicentemente no
chão firme e autêntico de sua realidade. Já Sean se esforçava para
abrir a mão congelada à grade, mas a adrenalina dava lugar a uma
prostração irrevogável.
–– Tudo bem com você? –– chegava Mateus para auxiliá-lo
com o gradil do guarda-corpo. Com cuidado torceu cada um dos
260
dedos liberando-o da barra. Segurava com tamanha força que o
sangue escorria de um corte macerado.
–– Nunca fiquei tão apavorado! Mas não precisava se ferir...
–– Achei que se soltasse jamais voltaria para cá...
Mateus observava uma mancha escura na palma da mão
demoradamente. –– É só uma mancha, esquece. Não foi um
ferimento grave. –– sacudindo-a em movimentos rápidos como se
querendo recuperar a sensibilidade.
–– O que foi isto?
–– Estamos fazendo perguntas demais! –– triste com a
afirmativa já repetitiva. Sean não queria nem saber o que viria a
seguir.
262
–– Que nada. –– completava o indiozinho se adiantando. ––
Mas o pouco mérito que arrecadei me serve suficientemente bem
para afugentá-los. Precisam ver o que alguns bons anjos fazem...
Só para garantir girou sua lança num movimento ofensivo,
provando estar apto contra qualquer tentame menos digno de sua
autoridade, possivelmente aquém daquela que intimidasse por si
só. Talvez a salamandra-de-fogo fosse o elemento que o auxiliava
a consolidar uma suposta ideia de bom guardião.
–– Quem deveria ver estas coisas era o Marc! –– pensava
Sean que já estava cansado de servir de garoto de recados entre a
solução de um códex mikhae indecifrável e a defesa impraticável
contra os exércitos invisíveis.
–– As legiões sempre avisaram que viriam. E quanto ao Marc,
ele está bem longe daqui... –– findava Guarini.
–– Longe e em perigo. –– sussurrava Sean.
263
20
264
os olhos que usavam óculos âmbar contra a luminosidade refletiva
da neve. Puxou o abrigo e revelou seu rosto queimando pelo frio.
Marc Bernis era deixado no meio dos milenares glaciares de
Sogndal, na costa oeste da Noruega, para ver seu excepcional
meio de transporte partir tão logo equipamentos fossem
embarcados com os técnicos da escavação. O local estava sendo
evacuado por causa do frio incomensurável desta temporada
hibernal.
–– Bem vindo, Marc! –– E eles quebraram o protocolo, dando
um forte abraço de tapas demorados. Erik Kristensen forçava-os a
entrar nos contêineres coloridos do centro de apoio arqueológico.
Ao longe, o lago azul e sereno era perturbado pela queda de um
bloco de gelo da geleira de Briksdalsbreen. Os ecos reverberaram
entre as cordilheiras afugentando algumas aves valentes.
Estagiários de campo, Erik e Marc trabalharam juntos após o
término da universidade, seguindo os passos do professor
Hodgson-Crookes e do velho Bernis às lendas vikings escritas em
pedras grafadas e espalhadas por todo o norte da Europa. Havia
anos que eles não se encontravam para um potente café batizado a
teores alcoólicos e conversas reatualizadas de bêbados
incorrigíveis pela ocasião. Quando já estavam suficientemente
exaustos de futilidades Erik se ajeitou sério para perguntar.
–– Se eu acreditasse, eu diria que é coincidência. Mas estava
justamente querendo falar com você.
Marc não esperava ouvir esta confissão, estava ali porque
precisava rever os passos do professor William para ver se
descobriria alguma pista do manuscrito perdido. Quanto ao que
estava em Paris, a prefeitura só permitiria uma escavação quando
os geólogos afirmassem ser seguro, até então, usaria outra
abordagem. –– Sobre o quê?
–– O degelo secundário revelou-nos o piloto do aeroplano,
soterrado a poucos metros... Com ele estava outra garrafa
hermeticamente fechada. Ainda não abrimos, mas a etiqueta se
refere a cartas. Achei que você gostaria de saber que... ––
procurando as palavras certas. –– nós já sabemos quem ele é.
O semblante de Marc se mantinha inalterado, não estava ali
por causa disto, mas as cartas poderiam responder algumas
dúvidas. Ele quase não prestava atenção em Erik, seus
265
pensamentos puxavam-no para as perguntas que o levaram até
aquele inferno gelado de aquecimento barato.
–– Quer ver os destroços? –– quebrando o impacto de sua
fantasiosa estadia monótona pelo entusiasmo de Erik.
267
–– Em Londres, recolhendo os arquivos e a papelada do
professor William. Ele desapareceu há mais de um mês... –– Marc
revelara o pretexto pelo qual viajara milhares de quilômetros até
Sogndal, durante um dos piores invernos dos últimos cem anos.
Não só porque fazia muito mais frio, mas porque as mudanças
climáticas haviam consumido quase todas as imemoráveis
geleiras da Escandinávia.
268
O arqueólogo ergueu sobrancelhas recuando atropeladamente
para uma estante metálica, dentro de um estojo puxou uma chave
que tão logo a desvencilhou do pacote encaixou no cadeado que
com um clique cuspiu o fecho rompido.
–– Estas coincidências são difíceis de desconsiderar. ––
Bernis começava a repensar em suas convicções acadêmicas. ––
Eu já passei do ponto em que as pistas deveriam ser
necessariamente palpáveis.
Erik considerava que Marc havia mudado muito em tão pouco
tempo. –– Não era você quem dizia que jamais iria concluir uma
pesquisa baseando-se em suposições?
–– E continuo assim. Só os elementos que são mais
ortodoxos, etéreos, não-mensuráveis pelos nossos conhecimentos.
O que eu quero dizer é que não possuímos instrumentos que
ampliem nossa capacidade de ver aquilo que está além.
–– Se não te conhecesse diria que começa a acreditar em
fantasmas...
–– Acho que não diria desta forma, mas sim.
Enquanto Erik ouvia o que Marc estava cogitando, pensava no
que o velho professor William dizia quanto àquilo que não
podemos ver, porém existem. –– E o quê te levou a acreditar!
–– Não posso confiar somente nos meus cinco sentidos, e nem
nos mecanismos desenvolvidos para ampliá-los. Tampouco posso
descartar as evidências de que existem outras realidades.
–– Que evidências?
Marc respirou fundo enquanto tentava abrir o frasco. ––
Nunca fui partidário da fé cega, nem da ciência absoluta. Penso
que os cientistas deveriam seguir adiante e não se contentar só
com respostas baseadas nas técnicas e conhecimentos atuais. Há
poucos séculos nem se cogitava que existissem vírus e bactérias!
Estou repensando os meus métodos e infelizmente só consigo
considerar estas evidências sem me ater às suas influências
indiretas. O que não posso ver e sentir, mas perceber.
–– Você está se parecendo com o velho Will. Acreditando em
lendas e forças paranormais.
–– Todas as noites milhares de astrônomos olham para as
estrelas acreditando que elas estão lá. Contudo eles só têm noção
de onde elas estavam há anos, ou bilhões de anos, conforme a sua
distância deste mundo. Considerando trajetória e velocidade eles
269
até conseguem imaginar onde elas realmente devem estar, caso
ainda existam. Eu tenho a trajetória e a velocidade, só estou
tentando imaginar.
–– O que espera descobrir aqui, Marc? –– com semblante
mais sério.
–– Se eu estiver certo, o meu tradutor.
Ele forçou o bocal que com um forte estalo voou bem longe.
Os papéis estavam bem conservados, mas não havia nada que
lembrasse um pergaminho esmaecido. Eram folhas com pautas e
margens. No meio da papelada um cartão solto escorregou para
fora quando Marc girou o frasco. Era uma fotografia velha com o
mesmo aviador, que acabava de ver em sua câmara mortuária,
abraçando um garoto de uns dez anos. No verso uma dedicatória.
–– Que São Miguel te proteja, irmão. –– Assinado por Jacques. O
avô de Marc, de pernas finas e sorriso imaturo.
Quanto mais complexa a caçada ficava, muito mais simples os
elementos se ligavam. Talvez devesse rever as coincidências.
Seria possível que sua família fosse membro de uma seita ou
confraria milenar, protegendo documentos ou re-escrevendo
códices? Perdeu poucos segundos até que considerou outro fator
relevante, se ele era um descendente desta trama como não sabia
de nada? Seu avô não morreu repentinamente, o atentado só
apressou as coisas, ele tinha tempo para contar um segredo, se
houvesse um.
–– Tem certeza que já não o tem? –– ajeitava as cartas dentro
de uma prancha acrílica. Ele havia percebido as dúvidas de Marc.
Não tinha porque negar, mas os documentos não estavam nas
mãos de uma facção, estavam espalhados por toda Europa e além.
Visíveis para quem quisesse ver.
Se ele não estivesse em Antioquia, manuseado uma balbúrdia
de folhas denegridas, escavando encadernações obscuras de
bibliotecas bolorentas, jamais teria encontrado referências àquela
cópia primitiva do evangelho de São Lucas. Uma passagem
singular.
Então percebeu o que o aviador-desertor fez.
Ele só estava tentando garantir que alguém iniciasse a busca
pelo códex mikhae. O que Bernis descobriu, foi um atalho
imprevisto, mas muito conveniente. A carta para Londres seria a
chave-mestra que provocaria a busca pelos objetos, as estelas,
270
pergaminhos, manuscritos e tantos outros documentos com a
marca de uma folha de videira, com a marca indiscutível de serem
completamente intraduzíveis. Entretanto quem teria o tradutor?
Por qual motivo o piloto escapou rumo ao Norte, tentando
alcançar Arkhangelsk, se não levava nada consigo?
Então o tradutor só podia estar em Paris.
Na cripta pseudofranciscana; claro que não.
Se ele pensava em resgatar o evangelho, teria a chave para
traduzir o texto de seu verso; claro que sim.
Nunca saberia ao certo...
Mas não era o que as cartas diriam.
Marc registrava suas observações com o gravador de voz de
seu aparelho celular inoperante, queria aproveitar as primeiras
impressões antes que elas fossem consumidas por ideias mais
intricadas e cheias de subterfúgios explicativos que um acadêmico
acabaria floreando.
–– Não era bem o que você estava procurando, não é?
–– Não sei. Acho que sim...
272
–– O suficiente para não cometer o erro de dizer “Vão para a
caverna”, concorda? –– porém Erik não respondeu.
E eles ficariam presos por um bom tempo antes de morrerem.
Olhavam para o homem congelado esperando o mesmo fim. Nas
mochilas teriam mantas e alguns alimentos desidratados, todavia
insuficiente para aguardar um resgate. Marc olhava para os papéis
que caíram da sacola, apático com a redescoberta. O telefone
apitou com sua bateria fraca.
Para Marc um objeto inútil que poderia ser desligado, mas ele
apitou insistente. Para sua surpresa o aparelho estava
completamente carregado, sua bateria estava completa. O apito
era outro, sinal cheio. Uma voz automática, em norueguês,
informava: ––... área de cobertura. Favor selecionar operadora...
–– Erik, conhece um número de emergência? –– estavam tão
perplexos que demoraram em selecionar a operadora e digitar o
primeiro número que veio às suas cabeças.
274
Parece que o atentado havia levado um dos alunos mais
notórios, causando um luto quase apropriado, se não fosse o fato
de ser um ato trágico. Que, há algum tempo, pouco afetava Sean
em seus novos mundos de sua realidade incorpórea e tão vívida.
Contudo ele não estava preparado para o impacto que tal
notícia provocaria em seus sentidos, eventualmente muitas
pessoas faleceram na detonação dos explosivos na estação de
metrô em Saint-Michel poucos dias atrás. Alguma criança,
totalmente possível. Mas que esta criança fosse Maurice, nunca
pensaria que o seu fim, fantasiosamente desejado por todos os
importunados do colégio, também o abalasse de pernas bambas e
sentimentos divergentes.
Diante do papel estirado num dos pilares do portão do colégio
ele desabou desalentado, chorando copiosamente para espanto dos
demais presentes. Vários garotos que seguravam o sorriso, pois
conheceram intimamente o valentão, não compreenderam a
atitude de Sean. Somente o remorso justificaria, mas a dor que
perseguia o garoto prostrado na calçada frígida era de
identificação e fraternidade. Ninguém, por mais que nossos
pensamentos desejem, deveria sofrer deste jeito. Uma mãe
abraçou seu filho e suas lágrimas entenderam o drama. Ele estava
sendo simplesmente normal.
Sua sinceridade irradiou-se atraindo muitos curiosos que
sentiram suas almas amarguradas. Atraindo quem buscava
informações dos papéis colados na coluna de um portão fechado.
Que acabavam ficando, indignados com suas negligências em
momentos como este. Estavam todos ficando embrutecidos com a
selvageria que já não reagiam mais.
Um silêncio, como jamais se ouviu, cobriu-os em suas
reflexões quando Tiago conseguiu levantar seu amigo que o
abraçou. Como é bom ter amigos.
280
O garoto estava ansioso para descobrir se conseguiria achar
mais objetos invisíveis espalhados pela casa esperando que, com
sua força de vontade, eles retornassem à vida. E andava de um
lado para outro esfregando as mãos sobre os móveis. E fingia
achar algo que Jean negava rindo. E achava algo que fingia ter
estado lá para outra negativa do Arcanjo. Sean já se aborrecia
quando acertou em cheio um frasco de linhas retas de um vidro
esverdeado que se materializou no piso da cozinha.
O Arcanjo se surpreendeu, pois o relógio havia desaparecido
alguns meses e deixara um sinal tão sutil que ele teve que usar
toda a sua perspicácia para encontrá-lo. Já o frasco, pelo que pôde
pressentir, pertencia a uma família que vivera ali anteriormente.
Pelo menos uns dois mil anos antes. E ele pegou o frasco
absorvendo suas impressões para constatar que era um objeto tão
ou mais comum do que o relógio da cozinha, o que deixaria uma
marca impossível de ser detectada.
–– Não deu muito certo, né?
–– Parece que você deu sorte de principiante. –– e Sean deu
de ombros, como tanto-faz. –– o que sabe sobre psicometria?
Novamente era encarado com ignorância quando negou o
assunto diante do Arcanjo.
E ele teria que fazer um resumo. –– Recordações passadas
que...
–– Pode parar. Faço ideia do que seja. –– lembrando-se do
episódio na praça Saint-Michel que dificilmente ele deslembraria
enquanto vivesse, talvez até depois. Inclusive Mateus.
–– O que você fez com o frasco foi idealizar estas
recordações. Para que isto serve? Ainda não sei. –– e Jean estava
sendo sincero em suas considerações que só escondia o fato de
não ser capaz de repetir o feito. E olhe que ele teve tempo de
praticar. E iria demonstrá-lo.
A porta bateu logo atrás de Sean que girou desconfiado da
brincadeira de Jean que se divertia indiscriminadamente. Seu
retorno à posição anterior revelaria outro arrebatamento. Todos
os móveis da cozinha, objetos e badulaques haviam
desaparecidos. Para não ter dúvidas, Sean atravessou onde estaria
a bancada e nada de poderes de invisibilidade.
–– Cadê as coisas?
281
–– Agora nós vamos ver se é bom mesmo. Feche os olhos e
idealize, imagine, como a cozinha era. Cada coisa em seu canto.
O garoto se concentrava nos móveis, nas xícaras e nos pratos,
no lixo e na lixeira, será que as cortinas eram brancas mesmo,
tinham rendas? E os cereais ficavam e quais armários, os pratos
tinham desenhos? Ah, os copos eram decorados com bichos, mas
quantos? Quando o Arcanjo deu o sinal ele abriu os olhos e caiu
na gargalhada. Parecia que Salvador Dali e Picasso haviam
projetado o ambiente. Cores erradas, proporções erradas e
formatos errados.
–– Como isto aconteceu?
Mas o Arcanjo não responderia, Sean tinha se enganado na
idealização. Sua versão da cozinha refletia a sua falta de atenção
aos detalhes. E ele se cansou da brincadeira e, sem comida por
perto, retornou para sua cama de formas bem acertadas.
–– Logo cedo a cozinha estará aqui. E não conte para Matt
que estive por aqui. –– gritou Jean antes que o garoto
desaparecesse na dobra do corredor. Ele bufou cansado quando os
primeiros raios caíram em suas pálpebras recém fechadas.
Entretanto o Arcanjo admirava ainda embaraçado a
concretização de Sean. Ele esperava que os móveis deixassem
uma marca que ele pudesse plasmar, talvez conseguisse recriar
algo, outros ficariam indistintos ou incompletos, mas ele inventou
algo totalmente inédito. Não era o reforço de impressões
impagáveis, eram criações. Para se certificar sentou no que
parecia uma cadeira muito desconfortável e ajeitou os seus
documentos sobre a mesa desalinhada que não mantinha nada
estável.
–– Este garoto é muito estranho!
–– Hum. É verdade, mas é só um garoto por enquanto. E não
há nada que se possa fazer. –– tio Xaxá admirava a pièce de
resistance do que seria cozinha. –– Você nos prometeu vigiá-lo.
–– Nunca quebro acordos.
–– Só faz o impossível...
–– Só por que afundei o hidroplano?!
–– Hum. O motor da direita estava falhando! Entre outras. É
sim.
282
22
283
diante das marcas que compunham os extremos deste
compartimento.
Um choro dorido brotou do quarto acima. Era a causa pela
qual trabalharia em sua casa, dividindo-se entre obrigação
profissional, deveres maternais e curiosidade feminina; que só
uma mulher conseguiria realizar com justiça e presteza.
Jox estava acamado, precisando de muita cama para se
restabelecer, uma âncora com propósitos bem delineados em sua
cabeça recheada de bactérias e vírus em espirros desafinados, com
muito catarro saindo pelas brechas do rosto. Não caberia outra
medida, senão esta. Com hospitais superlotados de doentes em
nebulizadores e sondas intravenosas andantes, a melhor escolha
estava na amabilidade e cafunés de mães prestimosas. E
aconselhamentos indiretos da doutora Mel para evitar os pronto-
socorros.
Quando já estava remediado, Sarah saltou os degraus puxando
Marc e, acelerou todo o processo despencando o material sobre o
tampo da cozinha selecionando os campos em montes por
assuntos incoerentes para um leigo. Enquanto ele abalizava
algumas anotações complementares apontadas por ela, em sua
caderneta de campo rasurada, Sarah preparava o lanche da tarde,
servindo-se de uma chaleira ao fogo.
–– Se o documento não estava lá, está por aqui. Quem sabe
ele tenha confiado a alguém.
–– Também acho. –– pedindo um pouco do chá que fervia. ––
Só precisamos saber quem! –– dirigindo sua atenção às pilhas de
papéis que sequestrou dos arquivos do professor Hodgson-
Crookes e às que acrescentou de suas observações do códex
mikhae e às que trouxe de Erik. –– O que está oculto por trás dos
meus olhos fechados?
Uma expressão que Marc ouvia fixamente em sua mente, se
repetindo como uma reminiscência apreensiva de que deixara
escapar algo por entre os dedos, e não era só um copo de café.
Uma frase que ouvia sempre que seu avô se deparava com um
beco sem saída.
Por bem, Jacques experimentava reduzir as teorias,
simplificando, depois as entrecruzando, mas acabava por
solucioná-las com um diminuto elemento desapercebido ou
adicionado. Sempre havia um elo perdido e se ele não o
284
encontrava fazia um jogo que Marc ainda não aprendeu, supor
qual é a peça que faltava e partir em sua busca. E qual seria a que
responderia a sua incógnita?
–– Então os abra. –– frisou Sarah.
Comporam todas as informações para si, formando um
semicírculo que continha os manuscritos de Bernardo, as cartas,
um símile do peculiar evangelho de São Lucas e o seu reverso
mikhae. E o que ele não está vendo?
Depois de algumas horas, resolveu fechar os olhos.
291
23
sete de dezembros.
292
protegeriam do vento e dos olhares mais impertinentes que
suspeitassem de sua falsa imortalidade.
–– Será que vai dar certo? –– arriscava Elene, enquanto
divisava Mateus acocorado diante da televisão, vendo cartoons.
Ele se coçava muito e reclamava do cheiro horroroso que parecia
provir do suor de seu último usuário secular.
Marc tinha receios que não queria partilhar, no entanto o que
aconteceria caso Mateus fosse descoberto? O que alguns espíritos
poderiam fazer, gritar buás em caretas melindrosas ou cantar
cantilenas intoleráveis durante noites seguidas? Mexer em alguns
objetos, escondendo-os em outro mundo? Bichos-papões? –– Com
certeza. Não se preocupe. –– Ainda.
Mas Elene se prendia nos volteios e arremessos que
presenciou no aeródromo; coisas sem explicação, caso não
tivessem lhe explicado o ataque de catapultas, cavalos e espadas
de um confronto que jamais presenciara. Estava sempre se
contradizendo.
293
–– Estamos aqui para te ajudar! Eu falo vários. –– pensando
em quais não sabia e torcer para que não precisasse deles.
Conhecia tantos que não precisaria se preocupar. Não mesmo.
Porém Sean sentia cheiro de tiro que saiu pela culatra,
mesmo antes de acontecer algo suspeito. Havia um temor de que
enfrentar esta legião fosse ousado demais. Qual a força que estes
mercenários poderiam provocar num ato de represália?
E Jean parecia saber. –– Não sabem com que estão mexendo.
Tenho um mau pressentimento.
–– Basta sermos mais cuidadosos. –– dizia Sean.
–– Deve estar certo. É que eu odeio o dia sete de dezembro.
E Mateus quis saber porquê.
–– O dia da minha morte!
E eles só queriam evitar que também tivessem que recordar
deste dia como o dia de suas. Bater na madeira não adiantaria.
Todo o orquestramento contava com duas certezas, que eles
iriam até às arenas e, iriam interagir com fantasmas em intensas
manobras de guerra. E Naxamuñaca sabia de mais uma, que eles
estariam lidando com criaturas desconfiadas e vingativas que não
tolerariam intromissões. E Guarini sabia de outra, que eles
acabariam cometendo um erro, e seria letal. Matt não o convencia,
mas os outros costumavam ser meio apáticos com minudências.
Somente Elene teria a maior de todas as certezas, sabia muito
bem que Mateus habituava trocar as mãos pelos pés, ainda mais
em casos tão estressantes.
–– Desta vez vai dar tudo certo... –– Mateus percebeu o olhar
de dúvida de Elene, mas mesmo assim enfiou suas coisas no bolso
e apressou a partida.
–– Eu só espero que tenha feito um briefing... –– afirmando
sua impressão sempre acertada de que ele acabaria esquecendo de
seguir o plano. Entretanto ninguém falava do improviso que,
decisivamente, seria a nota em pauta durante toda confrontação
face-a-face com o inimigo. Era o que Marc evitava explanar.
O que dava ao propósito, maior e intolerada imprecisão.
296
Desceram pela rua Monge, após cruzar a Cardinal Lemoine,
detendo-se nas proximidades das arenas romanas do século
primeiro. Marc amparava Mateus e os outros forçavam sua evasão
do cubículo com impaciência. Apesar do dia ter clareado, a luz
provinha de todas as direções, refletidas pela névoa densa que não
dissipava.
Não havia vento e o ruído cotidiano estava apagado e bem
longe, abafado pela pequena floresta que circundava as ruínas
reconquistadas. Em 1860 pela Compagnie Générale des Omnibus
que pretendia situar a garagem de seus tramways aí. Mesmo
depois do término da rua Monge e, do desmantelamento das linhas
de bondes, muitos mitos circulariam acerca das escavações da
linha dez do metropolitano. Histórias de fantasmas.
Penetraram o monumento como reles invasores, observando
movimentos inesperados pelo canto dos olhos, mas só importava
as observações mais difíceis, que Sean sondaria pela retaguarda.
Mateus o fazia pela frente, empurrado por Bernis. Elene e Tiago
preenchiam o bolo de curiosos que ficariam quietos e inertes.
Sem um pio.
As primeiras barreiras espirituais eram cerceadas de pesado
armamento de defesa, corroborando as suposições de Marc de que
onde há fumaça, há fogo. E o fogo se confirmaria como um
incêndio de grandes proporções. Tão logo o grosso da névoa se
desmanchou, centenas de homens entorpecidos, reunidos por
similaridade tecnológica, se aqueciam em fogueiras distribuídas.
Tacapes, clavas e lanças se opunham a flecha e espadas
enquanto mosquetes e fuzis eram dispostos num mostruário
improvisado. Sean fazia um resumo mais ameno para os
escondidos nos arbustos. Se eles não foram descobertos, foi por
causa dos distintos olheiros que evitaram duas patrulhas de
reconhecimento. Um par de besteiros venezianos que falavam
pelos cotovelos e, uma trinca de temíveis soldados austríacos com
seus mosquetes empunhados, em miras aleatórias que arranharam
o esconderijo por um triz.
O panorama descrito por Sean restringia a ação de Mateus a
penetrar o território, atingindo o epicentro da arena onde havia
uma ampla tenda de caserna. Homens mais destacados ou de
patente visível penetravam sem barreiras e cerimônias.
297
–– Se somente os oficiais superiores têm autorização é porque
é o centro de planejamento da operação da invasão. –– explicava
Marc aos sussurros. –– É lá que teremos a nossa resposta. ––
óbvio para todos. Para Marc era a coisa mais absurda que tentava
em sua vida dedicada à pesquisa científica e bem palpável.
E aplicava uma enormidade de medalhas e patentes militares à
farda de Mateus que suava por antecipação. Sean percebeu a
roubada em que seu amigo se metera. –– Não deve ser fácil. Vou
dar um conselho: na dúvida, corra. Corra o máximo que puder.
–– Tranquilo, moleque. –– Ele não gostou da recomendação,
contudo não iria ignorá-la de antemão. E com esta máxima
deslizou um barranco e avançou até o limite das arquibancadas da
arena populosa. Deu dois toques ao ouvido, aferindo o
equipamento eletrônico. Do outro lado alguém confirmava ouvir o
burburinho da soldadesca em parlatório espartano. Respirou
fundo algumas vezes, se preparando para atravessar a multidão em
agitação, sem resvalar. O ar esfriou consideravelmente em forte
condensação que escapava por entre os dentes.
Respirou profundamente e seguiu para o que se tornaria
prontamente o dia de sua morte.
–– Vocês me pagam! Quando eu voltar...
300
reconhecível. Enquanto isto as interpelações repetitivas
continuavam.
–– Fique calmo... Ganhe algum tempo.
E seus pensamentos escaparam pelos lábios sem perceber. ––
Ganhar tempo? –– e os homens se olharam, porém repetiram a
frase incompreensível.
–– É uma senha, Marc? –– falava Sean, em dúvida.
–– Não. Acho que eles só querem saber nome e designação...
O soldado punha a mão sobre o coldre e renovava os gritos
com maior ênfase. Com a desordem, muitos se calaram para
acompanhar a discussão momentaneamente cessada pelo silêncio
do invasor não-identificado e de muitas condecorações. Antes que
pudessem inventar um título imaginário, porém convincente,
Mateus implementou um subterfúgio pela circunstância já
inquietante. –– Deixem-me passar! –– com forte impressão de
asco e superioridade mesquinha de um ator de terceira ordem.
Parece que surtiu efeito imediato, ambos recuaram para o lado,
dando acesso incondicional ao quartel general da legião. Esta era
a senha.
–– Deve estar louco para sair daí. –– sussurrava Sean ao
comunicador, com suas mãos tremendo. –– Mas não conte muito
com a sorte.
E Sean ouviu um breve psiu.
Dentro havia vários setores.
Mulheres movimentavam peças simbólicas das forças de
invasão sobre um tabuleiro com as curvas e o relevo da cidade de
Paris. Porções de armadas se posicionavam nos limites urbanos
aguardando ordens. Ordens que deslocariam estas forças adiante,
rompendo as muralhas inconscientes, rompendo o anel periférico
que abraça a cidade. Sugando o limão.
Um esquadrão já havia arrombado e estava avançando
precisamente para onde eles estavam. Mateus se controlava, em
estado de pânico quase domado pela pressa em sair do covil.
Precisava se mexer.
Um radialista nipônico ajustava uma aparelhagem de
comunicação, girando seus botões que guinchavam zumbidos
ondulantes de ondas curtas tão indeterminadas quanto sua
linguagem. O espaço era grande e comportava vários
compartimentos, sendo que gritos torturantes provinham de um
301
recinto de reuniões ainda em uso. Mateus precisava descobrir o
que estava acontecendo. O que eles ganhariam com esta conquista
absurda? Que cidade cairia aos seus pés? Quem seria conquistado,
não havia ninguém! E quem valesse como troféu não percebia
nada de estranho.
Só pela desordem!
306
–– Estou encurralado, cara! –– soprava Mateus na esperança
de receber uma saída celeste. O amigo pediu mais paciência. ––
Paciência?! Estou nas mãos do diabo! O que pode valer a minha
vida?
O coronel esbofeteou o tampo justificando as suas ações em
atacar e eliminar seus problemas. O primeiro estava bem diante
dele. –– Talvez os diários, quem sabe. –– respondia enquanto se
aproximava do alvo com gosto.
307
Todos os homens que compunham as divisões que se
apressavam em se preparar para a batalha desmancharam suas
posições equidistantes à caça de suas armas contra o invasor
revelado pela aparição espectral e alarme de gritos.
–– Sixderniers, fique com as tropas. Tenho dívidas a quitar.
Preciso compensar meu irmão. –– o cavaleiro acreditava que o
irmão sofria séculos de purgatórios ocultos e que só terminariam
quando concluísse seu pacto. Pacto que incluía exterminar e
encarcerar o causador deste tormento. Partiu só.
Mateus estaria morto em breve, e depois seria capturado e
enjaulado por aqueles monstros desfigurados. Tentaria atravessá-
los?
Algo precipitado ecoou como uma bomba de brilho intenso
que desmantelou alguns artefatos e lançou alguns espíritos para o
chão, abrindo uma rota segura que Mateus não desperdiçou. Sean
observava o rapaz correr como jamais pensou que conseguisse.
Do meio da claridade, um legionário de manto escarlate acenou
para que ele também corresse.
Mateus escalou as arquibancadas da arena, atropelando a
vegetação densa que fustigava seu corpo e atrasava seu avanço.
Mas mesmo assim conseguiu divisar Sean se erguendo em
tentativa de acompanhá-lo na escapada. Não foi rápido o bastante,
obrigando-o a puxar o garoto pela jaqueta zipada.
Ladearam as passagens ocupadas, arremessando-se contra a
patrulha aturdida. Escapando dos arcabuzeiros que só
conseguiram deixá-los momentaneamente surdos com os tiros
grosseiros de suas armas.
Estavam perdendo terreno e resolveram escapulir do bosque
jogando-se contra a alameda áspera que era mantida com barreiras
fortemente defendidas. Levantaram-se arranhados e com o
elemento-surpresa rumaram por uma pequena fenda na barreira
que tentava se reagrupar depois de terem sido surpreendidos com
o salto imprevisto no meio do agrupamento.
Uma comprovação breve de Sean advertia que os soldados se
aproximavam vorazes, afunilando-se contra as muretas que
continham a alameda com ímpeto de engoli-los numa onda de
selvageria. Adiante, um portão de ferro era a esperança que
diluía.
–– Contra o portão, vamos!
308
Ele escancarou violentamente, rompendo seu cadeado
enferrujado. Os dois caíram e rolaram para o meio da via.
Estavam atordoados com a corrida e o pouco oxigênio que seus
pulmões conseguiam absorver numa tentativa infatigável por
recuperar o fôlego.
Não poderiam seguir para o veículo.
Fileiras de arqueiros ingleses retesavam seus arcos em
movimento síncrono. Os cavaleiros montados se preparavam para
descer o estandarte em sinal de ataque. A rua Navarre estava
inacessível, então precisavam chegar até a rua Monge.
As flechas da vaga acertaram o asfalto, dilacerando-se.
Os automóveis haviam parado num congestionamento sem
fim, buzinas definiam o caos. Não havia tempo para pensar. Sean
se esquivou entre dois para-choques antes que se fechassem em
suas pernas. Mateus escorregou pelo capô, ficando preso pelos
apetrechos do seu casaco. Uma carroça ainda se posicionava a
poucos metros. Militares da primeira guerra mundial removiam a
lona que cobria uma metralhadora de canos giratórios.
Das opções que os fugitivos poderiam escolher, escolheram a
pior. Rasgaram a armadilha e voaram para as longas escadarias
que levava à rua Rollin, desabrigados dos primeiros tiros dados
por um combatente que segurava um feixe de balas e girava uma
manivela com sofreguidão. Os arqueiros de Hastings se juntavam
à comitiva cruel.
No cul-de-sac afunilavam carros e edifícios numa expectativa
interminável de seus sofrimentos. A plenos pulmões puseram-se
em marcha pelo corredor apertado e indefensável. Homens
armados chocavam-se contra as escadas em urros ameaçadores,
tais como intensa maré contra os penedos da Normadia.
Algumas vans de entrega dificultavam a travessia, diminuindo
a vantagem. O fragor da turba já denotava as formações de tiro.
Atiradores da elite dos mosqueteiros se ajoelhavam preparando a
mira de seus fuzis de cano longo. A salva de tiros atingiu vários
carros, trincando vidros e amassando o metal. Vidraças de certas
lojas racharam com os estilhaços invisíveis.
Não paravam por nada. Mateus e Sean só repensaram a
estratégia de correr desesperados quando dois tanques surgiram ao
final do beco, atropelando a passagem adiante. Com um giro lento
309
posicionou a torre inteiramente para eles. O canhão estava fincado
à aresta da construção que trincou com o disparo aguardado.
A argamassa e os tijolos desprendidos com o impacto
despencaram sobre veículos estacionados. Carros que estavam na
zona do tiro chocalharam, disparando alarmes sonoros, estourando
vidros e piscando luzes. As pessoas se refugiavam intrigadas com
o tremor inexplicável.
O segundo veículo blindado arremeteu suas lagartas pela
viela, provocando o tombamento dos automóveis ainda intactos. A
poeira levantada com o rompimento da estrutura se assentava
divisando o reposicionamento dos canhões. O exército recuava
em segurança, dando margem para as intervenções dos Panzers.
Os dois estavam encurralados.
–– E agora? –– bufava Mateus.
Sean olhou para os lados e decisivamente disse: –– Eles não
existem! Vamos transpor as blindagens como se fosse fumaça! ––
mas Mateus não concordava. Contaram até três e aceleraram para
os tanques em um contra-ataque kamikaze.
–– Eles estão vindo em nossa direção! –– gritava o operador
que se esforçava em guinar as alavancas.
–– Recuem, depressa. –– um sinal de emergência coloria o
interior com tonalidades alaranjadas. Todos corriam apressados,
tentando evitar a colisão. Um vozerio desencontrado fazia com
que os soldados se demorassem em retroceder suas máquinas. A
ofensiva dos vivos provocou o disparo incontrolável de armas em
punhos, mas nenhum dos tiros conseguiu evitar que fossem
transpassados.
Mateus caiu ferido na alma. Este avanço ocasionou dores
atrozes em seus músculos retesados. Sean estava menos abalado
com o efeito de cruzar uma substância incorpórea com
aglomerações emocionais imensuráveis, podiam não ser sólidos,
mas mesmo a luz coagulada tinha sua substancialidade. Do
mesmo modo que o desespero dos homens no bojo do monstro
mecânico expressava dúvidas.
Todos estavam em estado de choque.
O suficiente para que Sean conseguisse erguer o amigo de
seus espasmos de dor, taquicardia de sangue fervente e pressão
craniana que faria os miolos, de qualquer um, saírem pelas
orelhas. Os olhos vermelhos e lacrimejantes pediam armistício.
310
Na contramão da Cardinal Lemoine alcançaram a praça de la
Contrescarpe. Aves desavisadas deflagraram um voo grupal. Não
era um beco sem saída, no entanto uma bifurcação com várias
saídas. Qual eles deveriam tomar?
Um senhor acocorado à base do relógio de bronze sinalizava
que se aproximassem. O estranho monge não falava nada e nem
parecia que o tentaria, só apontava para uma plaqueta de madeira
apodrecida que estava fincada no princípio da rua Descartes. Eles
deveriam retornar?
–– Não. Talvez vocês descubram as antigas muralhas.
À placa estava escrito: –– Porta Bordelle. –– subiram a rua
até o entroncamento. Sean estava tonto, ouvia nitidamente água
correndo sob seus pés. De novo, não!
–– No way, man!
Flutuações temporais estavam em caos. Várias sensações
pareciam atingi-los. Eventualmente, partes de um muro surgiam
em vários estados de conservação e execução. Um fosso brigava
com o asfalto consistente. Mateus percebeu o que o monge queria.
As hordas encontraram seu alvo, retomando a perseguição
sem fim. Várias divisões belicosas se fixavam nas possíveis
extremidades, e algumas avançavam para o norte para promover
um cerco efetivo.
A imagem do canal parecia flutuar em seus olhos. Eram
recordações, eram reminiscências do passado. Ao longe, a rua
Cardinal Lemoine se transmutava na rua das Fossas Saint-Victor,
que margeava o canal que sustentava as muralhas de Philippe
Auguste. Conforme seu medo aumentava mais nítida se tornava a
transformação. Mas não passava de ideias do passado.
313
24
314
de comando destes falsos-deuses. Talvez os documentos mikhae
descrevessem quem seria capaz de provocar tal episódio
apocalíptico, assim como a cólera dos dragões ou da legião já
sem autoridade que cingia a cidade. Será que eles romperiam os
limites fictícios e causariam tumultos inexauríveis?
–– Quando eles atacarão? –– pinçava Marc.
–– Não falavam sobre... Mas havia uma mensagem codificada
que não... –– Mateus forçava a memória para repeti-la a contento.
–– Nitaha Yama Nobora? –– perguntava Sean no aguardo de
uma confirmação de olhares atravessados.
Bernis sabia o que significava aquela citação em japonês, não
conhecia o idioma, contudo nunca se esqueceria de uma frase de
cunho histórico. –– Tora, tora, tora. Ele respondeu assim?!
Concordaram com veemência.
–– Pois a invasão já começou! –– e os exércitos avançavam
por todas as frentes, assim como a traiçoeira armada japonesa do
pacífico fez com Pearl Harbor. Escalem o monte Nitaha era a
ordem de ofensiva. E o tigre avançou.
Como um enxame de gafanhotos e escorpiões com rostos
humanos, a grande hora se aproximava. Todavia não era hora para
Marc ser herói, estava se preparando para escapar. Reunia seus
documentos com pressa quando desconfiou que era vigiado por
figuras intrigadas às suas costas. É claro que ele não poderia fazer
nada. Então por que estavam encarando a atitude com
desconfiança?
–– Não sou eu quem faço as regras. Eles deixaram bem claro,
que se eu cruzar o caminho deles, serei morto?! –– achava
estranho saber que a morte já não o assustava como antes, o medo
era sobreviver à morte e ter que lidar com sequestradores de
almas. Isso seria pior. –– Temos que estudar contra quem estamos
lutando. Não estou certo?
Concordaram com receios. Como entender o caos, a desordem
e o pânico! O Arcanjo havia dito, certa vez, que as situações
violentas ficavam gravadas na recordação espiritual das criaturas
envolvidas de forma tão marcante que arduamente seriam
esquecidas. Guarini ainda acrescentaria que o tempo provocaria o
aniquilamento da sanidade mental restante, criando seres
descontrolados que teriam, como opção, concluir sua missão:
reparação sobre todos os malefícios, sejam eles justos ou não.
315
Em épocas recuadas, exílios forçados foram executados. Para
todos, seres descontentes se revoltaram nos momentos finais.
Duríssimas expiações tinham propósitos bem calculados e se leis
achavam injustas, precisavam ver o que aconteceria sem elas.
Estariam sem alternativas? No entanto, Sean raciocinava uma
última escolha para o impasse. –– Tiago! Quer arrombar túmulos?
–– Só se for agora! –– mas não seria, como a conversa
cochichada entre ouvidos interesseiros sugeria.
––
O dia transcorreu e quando o ocaso chegou trouxe uma onda
arrebatadora que preencheria o vácuo energético causado pela
aglutinação de tantas criaturas renitentes no mal. Raios e trovões
se digladiavam nos céus escurecidos pelos cúmulos noturnos. As
explosões seguidas de claridade absorvente não deixavam a
cidade desaparecer sob a privacidade da escuridão.
Uma noite de rufar de tambores que antecediam a batalha.
Os reis esperavam o término dos primeiros embates realizados
no céu, para despejar seu furor em terra. Milhares de espíritos
ensandecidos prosseguiam pelas avenidas de Paris em ritmo parco
e defensivo. Todos os recintos tomados eram seguramente
protegidos pelos tais absorvedores militares. As conquistas não
eram comemoradas, estavam aficionados pela fantasia doentia de
destruição. Destruição moral e ética dos concidadãos vivos.
Aonde fossem, não havia oposição nenhuma.
Não havia rechaço.
Não havia anjos.
Aguaceiro torrencial tentava varrer os miasmas que se
condensavam com mais força do que ele era capaz de eliminar. A
natureza estava descompensada. O transbordamento das
mentalizações contraproducentes atraia intenções de extrapolar a
lógica. Cidadãos se arriscavam em romper os limites do homem.
Manifestações se preparavam para gerar tumultos. O medo acuado
em selvageria explosiva.
Vítimas se uniam em julgamentos parciais e violentos.
Roubos e atrocidades eram planejados sem temores.
Criaturas fracas caiam.
––
316
Amanheceriam as suas intenções de invadir túneis
fantasmagóricos armados com lanternas e barras energéticas
quando perceberam que a torrente que despencava em cascatas
não daria trégua. Assim, quando olhou para o seu relógio de pulso,
pela enésima vez, as gotas de chuva impediam que ele precisasse
a hora com a exatidão.
Passar diante do edifício enclausurado se tornaria uma
alternativa planejada com antecedência. Queria se certificar de
que o senhor Buchhand havia sumido, sem deixar pistas. Tábuas e
lonas encerravam a pequena e providencial livraria que havia sido
fundada há quase sessenta anos. A rua do Pot de Fer parecia tão
desinteressante quanto um balde de água fria que esfriava os seus
intentos de se deparar com o senhor Fabien para uns
esclarecimentos regados a um frugal café da manhã. Sua fome, de
frio e roupas molhadas, agradeceria, mas não haveria convites
daquelas portas bem chaveadas.
Seguiu adiante só parando para atravessar o Jardim de
Luxemburgo com mais olhos do que haveria para àquelas horas
matutinas e densamente encharcantes. Mais algumas centenas de
metros e estaria na rua de Condé com o carrefour das ruas de
l´Odéon e Monsieur Le Prince. Sean se encolhia numa marquise
para se proteger dos respingos que escapavam por cima da calha
sobrecarregada e entupida. Sua capa transparente parecia não dar
conta do volume de água e que já cobria seus pés.
Era até difícil de ver se alguém se achegava sorrateiro. Por
sorte, Tiago seria um pouco menor, porém, quem se atreveria a
sair em meio àquela tempestade infatigável.
Muito cedo e não havia fantasmas no seu calcanhar.
Os poucos, que divisou pelo caminho, estavam vigiando os
passos de Marc. Elene e Mateus cuidavam de escamotear os
motivos pelo qual a doutora Mel deveria abandonar seus afazeres
profissionais, que naqueles dias, já excediam o admissível, para
fugir de alguns espíritos nada brincalhões. Não seria fácil.
Somente Tiago conseguiria escapulir sem chamar atenção.
Para passar o tempo, Sean vasculhava os objetos em sua
mochila, certificando-se de que havia ferramentas e lanternas com
pilhas mais que suficientes. Um esboço dos subterrâneos, que
imprimiu da internet, seria mais que perfeito até que entrassem na
zona não-mapeada. Que sinal ele encontraria para guiar-se no
317
labirinto de túneis mal escavados? A operação de vasculhar o
deixou sem proteção e só pressentiu companhia quando recuou a
cabeça para fora da bagagem encharcada.
–– Não devia estar aqui! –– Não sabia se se referia a si ou a.
–– Alguém tem que fazer algo. –– Sean já não esperava
consentimento.
Guarini era a declaração aborrecida de quem estava de mãos
atadas. Além do mais, odiava chuva que não molhava e de desistir
de uma boa briga. Mas a resolução era tão clara e límpida que um
raio cegou-o em advertência.
–– O que está acontecendo? –– o garoto precisava de uma
explicação. Manuscritos já não seriam suficientes.
–– São várias coisas diferentes, não há como uni-las. Nem sei
ao certo todos os pormenores. –– o indiozinho iria concluir alguns
dos pensamentos vigentes. –– A aglomeração da legião obedece a
leis naturais; tudo que oprime, condensa e provoca a retomada do
equilíbrio. Todos os envolvidos têm sua cota de transformação na
ação. Causa e efeito, curumim.
–– E onde se encaixam os diários?
–– No pretexto pelo qual Marc precisa de Miguel. Os
manuscritos foram o meio. –– Guarani percebeu que Sean não o
compreendia. –– Ele acha que está caçando um códice, mas na
verdade ele está muito perto de achar Miguel. Por isso os exércitos
estão com medo de Marc. Bem, foi o que eu soube por aí.
–– Me fale sobre Miguel.
Guarini não o conhecia de apertar as mãos, porém a sua
notoriedade lhe precedia desde tempos imemoriais, quase eternos.
–– Que enfrentou os anjos caídos num combate que rendeu muitas
lendas, a maioria absurdas. O arcanjo Miguel esteve presente em
muitas situações em que se precisava de uma interferência mais
direta. –– para não dizer, sair no braço.
–– E anjos fazem isso?
–– Tecnicamente, não. Contudo existe uma história pouco
revelada sobre ele. Desde a crucificação não sabemos do seu
paradeiro.
–– E anjos somem?
–– Tecnicamente, não. –– o índio estendia a mão para frente,
tentando se distrair com uma goteira impalpável. –– Mas vocês
318
conhecem toda a narrativa muito bem. –– referindo-se a Sean e
sua comitiva de desbravadores dos mikhae.
Sean parecia buscar a história que mais se encaixava ao
desaparecimento de anjos que não precisassem de um sistema de
posicionamento global. Sem efeito. Conhecia muitas, porém
poucas eram bíblicas o suficiente para passar pelo crivo.
O índio estava dando espaço para que ele percebesse com
quem estava lidando. Arcanjos eram mais benévolos e disponíveis
do que os santos de carne e osso o foram em algum período da
história dos homens. Até mesmo São Francisco teve seus
momentos de deslize diante dos lazarentos.
E o garoto não pretendia esgotar o tema, no entanto se perdia
com a passagem de alguns estúpidos caminhantes que pareciam
desconfiados de um menino que conversava a sós. De súbito
recordou a historieta de São Lucas. –– Um dos anjos, a quem é
como Deus, falou: continuarei o caminho. E Jesus lhe respondeu:
guardará a palavra até que o Espírito da Verdade chegue; também
esquecerá o passado até que esteja preparado. E o anjo perdia suas
asas.
–– Exatamente onde eu queria chegar! São Miguel trocou suas
asas pela vida mortal. –– ouviu um “estúpido” proveniente de
Sean. –– E como mortalidade é sinônimo de re-encarnação,
perdemos o seu rastro há muito tempo. –– para Sean, Guarini
estava tagarelando demais. Quem poderia supor que um arcanjo
desceria de tal categoria celestial para...
–– Para que ele faria isso?
–– Naxamuñaca acha que os manuscritos devem abrir os
olhos da humanidade para a existência de vidas passadas e coisas
assim. Existe um preparativo para a revelação. Eu já penso que
Miguel não passa de um oportunista que tenta fazer o que cristo
executou com êxito. É claro que a escala é bem menor.
–– Passar a mensagem do amor ao próximo? Heim!
–– Não. Também, é claro. Mas a prioridade do Cristo era
salvar os decaídos, que por sua vez inclui quase toda a
humanidade. Outros mensageiros já haviam plantado sementes de
amor incondicional. Buda, por exemplo. Conhece-o? Seja qual for
a teoria adequada, criará o colapso das crenças.
319
Balançava a cabeça concorde. –– No way! Se o Príncipe das
Trevas ou Diabo ou Satã ou Coisa-Ruim ou Capeta ou Demônio,
não existe, por que tanto drama?
–– O indivíduo, não! A ideia, sim. Sempre haverá quem
preencha a posição de senhor dos dragões. Assim como Satanás o
fez por milênios até sair de cena como Lúcifer.
–– Não tem ninguém no cargo?
Como gostava de frisar Guarini: –– Tecnicamente, não. Por
outro lado, também não sabemos qual é o objetivo dos espíritos
maldosos. Sem um senhor, não há regras definidas. E nem perca o
seu tempo achando que eles só são maus por causa de seus
senhores...
–– Bem que desconfiava que cada um vai para onde quer!
–– De acordo com o seu grilo falante. Suponho que tais
criaturas estejam se prendendo às profecias do fim dos tempos.
–– Quais?
–– Apocalipse. Profecias de Daniel. Os apócrifos. Os
gnósticos. Profecias dos calendários Maia e Egípcio. De
Nostradamus a Edgar Cayce. Todos, e muitos outros, implicam na
escalada do mal a um conflito final. –– o indiozinho não parecia
preocupado com a realização destes presságios. –– Eles
simplesmente não conseguem ver que isto terminará em um novo
mundo, uma nova era.
Um garotinho abelhudo observava, através da vitrine da
panificadora de seus pais, Sean dialogando com o ar. Com gestos
de indisciplinada bisbilhotice puxava as saias de sua mãe para
baixo. Mas ela não estava preocupada com garotos na chuva ou
com o índio que o filho apontava com insistência. Luzes externas
eram acesas destacando as promoções de pães e confeitos.
Os dois estavam silenciosos, admirando uma mãe em afagos e
abraços calorosos. Estavam absorvidos pela aspiração de
retornarem às suas famílias, assim como os suspiros que os
entregavam.
–– Você parece ser o único que se importa.
–– Não sou seu guardião, mas não acho justo te entregar aos
leões. Só não vou com vocês porque não suporto a ideia de ficar
embaixo da terra. –– Guarini estremeceu com o pensamento
fugaz. –– Enfim, todos temos defeitos para lapidar.
–– Não sei qual é o meu papel nisto tudo!
320
–– Ninguém sabe. Quero dizer, sobre o acaso.
–– Mas se você fosse teorizar...? –– feliz com a pergunta que
simplificava sua sagacidade em conseguir o que queria.
–– Está muito além da minha capacidade de índio pouco
esclarecido. –– e piscou. –– Ainda nem sei como conseguiu erguer
aquele torreão de pedras?! Por mais que as coisas pareçam
acontecer aleatoriamente e em estado constante de emergência,
não é assim. Tudo está bem planejado, apesar do que esteja vendo
com seus próprios olhos. Tenha mais fé!
Suspirou temendo a blasfêmia.–– Sou especial?!
–– Na... Não. Só que tem alguém te auxiliando. Só isso! –– no
entanto não era o que ele verdadeiramente refletia a respeito do
garoto. Nem Tiago, que chegava a tempo de responder a mesma
exclamação interrogativa. –– Nem que a vaca tussa e chova
canivetes! –– Embora ele olhasse para cima temendo que
mordesse a língua quando os canivetes suíços despencassem das
janelas da relojoaria que servia de abrigo ao dilúvio. Explicar que
a pergunta não era para ele seria uma perda de vocabulário e
energia, por isso Sean só virou os olhos. Abismado com falta de
percepção repetitiva de alguém que já devia ter se acostumado
com os diálogos sobrenaturais.
Antes que Guarini desaparecesse, Sean apresentou um resumo
de porquê eles ingressariam nos subterrâneos da cidade. O que o
escavador alemão revelou teria que servir para descobrir o túmulo
de Allan.
O objetivo era matar dois coelhos com uma só cajadada.
Recuperar o tradutor que Marc comentava com aflição e tentar
delinear o paradeiro de Allan, o vivo. Talvez tivesse alguma pista
neste sentido, não obstante, achava bem improvável. Por certo, até
mesmo o mensageiro de Jeanne já havia desistido do paradeiro.
Contudo Sean pensava o que o índio queria dizer com revelação?
Tiago se preparava para abrir o bueiro com a ajuda de uma
barra que tomou emprestada oportunadamente de um canto mal
iluminado da alameda vicinal. Enquanto fazia força, Guarini
ofereceu mais uma informação. –– Cuidado lá embaixo. Se
precisar de socorro, chame por Labelius. Ele provavelmente não
vai te ajudar, mas você pode tentar convencê-lo. Ele é um
elemental e, como todos, eles são ingênuos e desconfiados...
321
–– Hum! –– e Sean pensava na tal salamandra-de-fogo que
costuma acompanhar o índio.
–– Os elementais de toda a natureza não são completamente
espirituais. Mbaê só está com um pouco de medo da água. Mas
fique tranquilo, estamos tramando um jeito de te proteger quando
as coisas começarem a fugir do controle. –– piscou cúmplice.
–– E já não fugiu?
323
Aqui o mapa se apagava, com insinuações tracejadas de que
haveria mais vãos não-descobertos pela catalogação moderna. Os
dois se olharam perdidos.
Apontaram seus feixes de luz para todas as arestas
imperscrustadas que conseguiam alcançar com nitidez. Algumas
pichações e símbolos eram percebidos, mas nada além do
habitual. O que poderia ser uma pista não passava de uma
tentativa germânica de catalogar os subterrâneos durante a
ocupação nazista da segunda grande guerra. Vários emblemas
advertiam que eles conseguiram chegar até aquele nível, como
demonstra o número de identificação pintado por moldes vazados.
–– Viu algo diferente? –– perguntava Tiago.
–– Além de estarmos brincando de goonies?!
–– Aquela suástica não é igual às outras. –– e clareava o
emblema que estava invertido, com seu giro para a esquerda. ––
Se me recordo bem, acho que é usada em templos orientais, como
os budistas. –– com um sorriso maroto. –– Trabalho de escola!
Tentaram por aquele trajeto e acabaram encontrando outra
cruz gamada com as mesmas características. Sob o desenho
desbotado havia inscrições ranhuradas com a ponta de uma faca.
Tiago traduziu o que consideraria uma blasfêmia às tentativas de
caçadores de tesouro como eles planejavam parecer: sigam estes
sinais. Por suposto, ele não confiava na inteligência apurada dos
posteriores exploradores de túmulos. E quem saberia que há uma
sepultura no fim do túnel? Os outros estavam mais preocupados
com a luz no fim.
A terra sacudiu e estremeceu quando o metrô atravessou-lhes
a passagem, por cima ou abaixo deles. Pequenos pedriscos
rolaram, recordando-os da fragilidade da escavação. Alguns
metros adiante o túnel era bruscamente invadido por colunas de
pedras seculares que deviam sustentar catedrais espectrais.
Catacumbas improvisadas apresentavam nichos ocos e teias
inconvenientes. Muitas tubulações inadvertidamente cortavam a
passagem.
–– Devíamos ter avisado alguém!
–– Só se quiséssemos ser impedidos. –– Sean estava
estranhando a atitude do amigo. –– Está desistindo?! –– o que não
era bem uma pergunta.
324
Tiago só não queria fazer nada sem planejamento. Sem
Mateus, Sean não poderia contar com mais ninguém para sondar o
que tramavam os fantasmas. Se ele falhasse, quem esperaria que
Mateus percorresse os mesmos passos? E sem Sean, Tiago jamais
sairia deste labirinto. –– Não. Mas você está distante. Antes se
preocupava com que os outros pensavam de você. Agora anda
mais convencido do que nunca.
Convencido? E Sean já se aborrecia de testa franzida e boca
trancada. –– No way! –– e parava para encará-lo com zanga.
–– Então me diga. O que está tentando fazer?
–– Acabar com tudo, de uma vez por todas.
–– Sozinho?
–– Não. Por isso eu te trouxe junto. –– desta vez ele fez
questão de ser convencido. Até demais. –– O que seria de mim
sem os seus conselhos? Heim?
O amigou bufou, indignado com a inconveniência das
palavras. Embora tenha se dado conta de que Sean estava
passando por situação altamente estressante. O que não o impedia
de ser mais amigável, ou pelo menos mais humilde com os pobres
mortais. –– Não quero te contradizer, mas está com pressa demais
para impedir o fim do mundo! É evidente que não conseguiremos
evitá-lo. –– olhava para si demonstrando a pouca capacidade de
um garoto pré-adolescente de poucos músculos e nenhuma
vantagem extrassensorial. –– Fomos chamados para a festa,
embora não sejamos os anfitriões.
–– Sim, somos os palhaços que fazem bichos de balões.
–– Não. É só egoísmo, orgulho besta.
Ficou realmente perdido. –– Mas como! Tudo o que eu faço é
para evitar o constrangimento a todos que eu amo. Como eu posso
ser egoísta se penso nos outros antes de mim mesmo?
–– É onde você se ilude. Quando pensa estar fazendo o mais
sensato fechando-se em si, impedindo que os outros te protejam, é
quando está sendo individualista. –– se fosse qualquer outro, Sean
já estaria sobre o pescoço. –– Você é meu amigo, mas para não se
expor acaba sendo egocêntrico, teme que seu mundo quebre. Não
suporta que te contradigam e enquanto puder controlar as
decisões...
–– Eu não sou nada, ninguém... –– Sean se defendia confuso
com as insinuações diretas de Tiago.
325
–– É disso que estou falando! Sim, neste mundo controlado
que você criou você é um ninguém manipulador. O seu egoísmo
está naquilo que conhece, sem surpresas. Basta ter que enfrentar
os seus fantasmas, não está com medo que isso aconteça?
E Sean sentiu seu estômago pesando como se engolisse toda a
terra acima de suas cabeças sem ajuda de um copo d’água. –– É
por isso que estou assim. Se pudesse, fugia de tudo. Virava as
costas para todos, sem pestanejar. Talvez no princípio eu até me
sentisse melhor, mas não acabaria com a as noites mal dormidas
de um compromisso que martela minha cabeça...
–– Que compromisso?!
–– Não sei. Se soubesse já teria tirado da cabeça esta ideia
estapafúrdia de que precisam tanto de mim. –– e dizia isto com
forte sentimento de perda, de pânico, de prostração. Um dejá vu
que ecoava do passado, um temor de que tudo se repetisse. No
entanto o quê?
–– Só você não quer acreditar, mas todos somos assim! Mas
você pode ficar sossegado. Eu estou aqui para o que der e vier! ––
buscava clarear o pensamento do amigo enquanto ajustava a
lanterna para um facho mais amplo.
Talvez fosse tudo má impressão de um garoto tímido que
começava a se sentir especial. Tiago achava que devia demolir o
pedestal se quisesse descobrir o que estava acontecendo. Por hora
podia dar o troco, se o quisesse. –– E o que me diz destes
fantasmas logo atrás de você? –– buscando outras alternativas
para uma desforra entre amigos.
Sean virou-se imediatamente e com o susto tropeçou e caiu
levantando ondas concêntricas na água acumulada. Para onde quer
que ele olhasse não havia nada. Tinha entendido o recado e sorriu,
no entanto reverteria o jogo.
–– Como você sabia deles!
Tiago se engasgou antes de inventar a sua tão convencida
resposta: –– Oras. Estamos em um cemitério. É obvio que haja
espíritos, não é?! –– Se assustando diante da possibilidade de
estar certo. Agarrou-se aos ombros de Sean com aquele olhar
melindrado de quem estaria encurralado, suava sem medo. Porém
Sean caiu na gargalhada diante da dúvida. –– Não tem nada? ––
Tiago certificava-se diante da sua brincadeira supostamente falsa.
326
–– Nem uma alma. –– mas ele sabia que Tiago poderia ter
acertado no julgamento: poderia estar coalhado de fantasmas e
poderia ser um convencido, sim. Contudo soube como eram suas
assustadoras revelações de coisas que não se viam. Da próxima
vez, teria mais tato.
––... Tenho sido seu amigo, e sempre o serei. –– frisava Tiago
com convicção inabalável de quem se engasgava ao tentar dizer:
sempre fui, tenho sido e serei seu amigo.
–– Esse é o meu medo! –– pressentia que a amizade lhe
custaria algo. Por isso não queria perdê-lo de vista. De novo. Por
sua vez sentia a tensão aumentar instintivamente. Talvez devesse
desistir.
O bom amigo não permitiu que ele tomasse esta decisão,
empurrando-o para frente. Para Tiago era inimaginável o que dois
garotos poderiam fazer contra um exército de semivivos, sendo um
até privado de visão. Sean agradeceu e ficaram rindo do
acontecimento por todo o trajeto restante.
E caminharam por horas antes de se depararem com um beco
sem fim, ou com fim, seja como for.
–– Vamos finalizar o túnel! –– precisava Tiago se agarrando a
uma picareta embolorada.
–– Como você tem tanta certeza de que é aqui.
Tiago pôs o foco de sua luminária sobre a certeza de um
esqueleto fardado, escorado sobre uma caixa de explosivos com a
suástica apropriada. –– Ainda tem coisas que consigo ver melhor
do que você. –– e impingia o primeiro bater. A sorte à espreita,
dois ou três minutos de esforços e uma brecha se abriu. As pedras
escorreram para dentro do salão contra um piso seco e inesperado.
Foi Sean quem inseriu a lanterna pela fenda procurando
afiançar se estavam onde desejavam. As dimensões batiam, as
cavidades seladas e lacradas também. Alguns equipamentos
abandonados por Marc e Sarah repousavam sobre destroços que
deviam levar ao refeitório do antigo convento franciscano.
Enormes blocos de pedras impediram que o teto desabasse
com o desmoronamento do cordeliers, contudo a fragilidade da
estrutura estava aparente com os constantes sons de acomodação
do entulho que trancou algumas das passagens laterais. A água
que estava acumulada parece ter cedido e recuado por uma das
rachaduras do pavimento de mosaico.
327
Com dificuldade conseguiu direcionar o facho para baixo,
mas a operação foi interrompida com a brusca avalanche que o
empurrou para o interior da cripta. Sua luz se apagou quando
bateu com força sobre a laje da tumba secular.
Tiago se preparava para alumiar o ambiente, mas esfregaços
e gemidos que indicavam uma luta corporal terminou por silenciá-
lo. Estava sozinho e no escuro. Seus dedos passaram pelo baixo-
relevo da lápide até uma fresta que permitia que seu braço
entrasse. Vasculhou rápido, pois ouvia alguém se aproximando
com cuidado. A respiração ofegante do invasor causava o tremor
das pernas.
Queria gritar, no entanto se sentia vulnerável, por isso calou-
se. Sem cerimônias, tateou sobre ossos e panos apodrecidos que
lhe causavam asco, mas acabou encontrando o rolo de
pergaminho. Pensava que não gostaria que um dia lhe enfiassem a
mão pelas costelas como fazia com os restos mortais de outrem.
Seus olhos estavam dilatados ao extremo, tentando perceber
vultos na penumbra de passos firmes. Só pode sacar o documento
do ataúde e enfiá-lo sobre a jaqueta antes de ser atingido por
alguma coisa dura.
Agora a escuridão era prolongada pelo seu desmaio.
330
negava a sossegar. Havia se esquecido de que as linhas ainda
estavam ativas...
Estava sozinho e o horror tomou-lhe voraz. Aconteceram
tantas adversidades que esta acabou sendo a gota d’água de um
copo já transbordado. Seu estado de choque impedia-o de
raciocinar com clareza.
Regressou para as escadas, se esforçando para não escorregar
no limo amontoado. Tentativas seguidas e o entulho, de ferragens
entortadas e mobiliário detonado que obstruía a passagem, cedeu
abrindo um caminho difícil. O longo corredor oferecia crescentes
pingos de suor de um medo incorrigível. Papelão e sacos podiam
ocultar possíveis assassinos ou drogados que causariam mais
estragos do que os fantasmas com que já se acostumara.
Passo ante passo e os ecos não passavam despercebidos. As
caixas se mexiam em sombras sugestivas. Tentava ladear a
imundície caminhando de costas para se certificar de estar só. E já
havia cometido a grande falha ao ouvir um sibilar de respiração
profunda em um ponto imediatamente colado à sua nuca. Girou os
calcanhares puxando o corpo para o mais longe possível do
homem barbudo que o encarava com graça pueril.
Enquanto ofegava preocupado com sua situação, o mendigo se
sentava junto à parede do corredor em tão conhecida posição de
pedinte de metrô. Só então algo lhe pareceu reconhecível.
O conhecia de outros becos.
E num formidável inglês de flexões e inflexões londrinas o
mendigo se apresentou diante da surpresa estampada no rosto de
Sean. –– Não há o que temer. –– olhava precavido para os lados.
–– Não estou com medo. –– mentia.
–– Quem não tem medo de assombração!
Agora não estava mais com medo, eram os vivos entocados na
escuridão que lhe preocupavam.
–– Estou cumprindo um favor.
E qual seria?
–– Eles não são quem parecem! O seu amigo não pode
resolver os seus problemas por você.
–– Quem?
–– Dentro de você há grandes verdades adormecidas. No
entanto, o que deveria ser dito já não é mais possível.
–– Como?
331
–– Fui desautorizado há pouco. Mas eu devo dizer que tudo
isto não diz respeito a você como supõe. Desta vez eles não
querem você... ainda.
O mendigo se aproximou e buscou, com a mão em concha,
sussurrar ao ouvido, contudo não completou a tentativa. Sorriu e
piscou mostrando propositadamente a palma da mão que não
usou. Balançava os dedos em despedida para recuar no escuro que
o engoliu sem traços.
Seu torpor fora rompido com o fraco vozerio que emanava
dos túneis. Como se milhares de urros se aproximassem das
profundezas ou da superfície próxima, ficava difícil precisar.
Portas encadeadas eram destravadas com repetidos choques
de uma barra de aço. O polímero reforçado simulava dificuldades
que lhe atrasavam o progresso. Estava exaurido e continuava
lutando para alcançar ar puro, não podia desistir do manuscrito.
Por algum motivo isto não lhe fazia mais sentido, o compromisso
que pensava ser com o códice ou os tais diários era, de fato, outro.
Por mais estúpido que Sean se sentisse, nunca havia cogitado que
a obrigação era para com seu amigo arrebatado.
Jogou-se contra a parede, deslizando suas costas até agachar-
se no calçamento gélido. Tão logo, caiu num choro convulsivo,
nervoso e confuso. Foi totalmente injusto, estava sacrificando um
amigo que ainda continuava a apóia-lo, mesmo após tê-lo
menosprezado com as façanhas de um admirável mundo novo.
Que papéis valeriam esta inversão de valores? Quais garantias
eles teriam de que os diários de Miguel seriam críveis? No final, o
que pesava era as conquistas e não as suposições de se.
Não podia desistir, rompeu a corrente da derradeira porta mal
emborcada e uma chuva irreprimível abriu caminho à força,
cobrindo o chão com uma lâmina de água refrescante. Procurou
refúgio temporário enquanto a claridade fustigava seus olhos
vermelhos.
O aparelho piscou. Um sinal de proximidade advertia que
Mateus estaria por perto. Mas não era o suficiente para chamá-lo.
Teria que emergir no aguaceiro se realmente quisesse fazer
uma ligação. Quando galgou as grades de proteção se deparou
com o incrível e o absurdo.
–– No way!
332
25
bandeiras fincadas.
333
agitação que reverberava em seus corpos se devia aos choques
provocados por compromissos não cumpridos ao fim de uma era.
Comportamento este que, nos últimos dias se transmutaria,
desobstruindo a contenção social em prementes rachaduras, em
anarquia de neanderthais modernos.
Não antes que uma torrencial tempestade de chuvas nada
tropicais sobreviesse em cúmulos negros de raios e trovões
atemorizantes. Se não havia coincidência, este aguaceiro tinha os
seus agentes para despencar com tanta cólera naquele alvorecer
demorado de megacongestionamentos.
Mateus era mais um, entre milhares de estressados, que estava
trancado no trânsito intransitável do coração da cidade. Seus
limpadores de para-brisa não davam conta do volume de água que
insistia em retornar pelos bueiros sem vazão.
O rio ganhava volume a olhos vistos e o que ele podia fazer é
tentar enxergar os pontos de luzes disformes à sua frente. Na
maioria, vermelhos, de reflexos e intensidades variadas. Carros
estagnados que andavam e freavam em arrastos milimétricos de
muitos escapamentos e motores ativos.
Só se ouvia os limpadores guinchando e cuspindo o excesso
de água sobre o mourejar de motores em giro morto.
Eles jamais atingiriam Moisselles dentro do prazo estipulado,
assim como o restante dos automóveis que delineavam colunas
sinuosas de faróis brancos na pista oposta e de sentido contrário.
Porém Elene não se importava, desde que estivessem secos e
aquecidos, continuaria fingindo ler um livro. Apesar de que ela
procurava um meio de abordar outras questões, de curiosidade
transbordante, com Mateus. E ele só fingia não querer discutir o
assunto imaginando que Elene já havia deixado bem claro a sua
repulsa sobre as tais questões. Total desatenção dos dois, que na
verdade queriam, queriam muito.
–– Nunca vamos conseguir atravessar esta desordem. –– e
falava isto considerando a chuva, as passeatas e manifestações
planejadas para a avenida dos Champs-Elysées, os confrontos
estudantis, as greves trabalhistas gerais e as revoltas e rebeliões
nos subúrbios, além desta água que não parava de cair. Não
conseguir persuadir a mãe se mostrara degradante, ainda mais
quando teve que se declarar observador da natureza morta, ou
334
seja, de fantasmas e congêneres. E Mateus batia com a testa no
volante, aborrecido por ser um títere do caos de outrem.
Por distração, eles olhavam as várias pessoas que corriam
diante do carro, atravessando a grossa lâmina de água, para chegar
ao outro lado da avenida congestionada. Contornando os veículos
com maestria de dançarinos em guarda-chuvas destroçados.
–– Então fale! –– e Elene não resistiu aos ataques de sua
mente intrometida. A cada marcha que eles davam, Mateus falava,
e ela mantinha um silêncio intrigante demais, enfim ela também
falou. E estava inacreditavelmente cordata com as impressões do
amigo. Suposições que precisaram de um bom tempo para serem
digeridas, mas uma vez compreendidas, estava pronta para se
intrometer.
–– Se eu não tivesse visto você sendo arremessado no vazio,
por nada, por ninguém –– já considerando os fantasmas ––, não
acreditaria em uma só palavra do que me disse. Ainda não sei se
acredito. Como eu poderia?
Para Mateus não parecia o suficiente. –– Então está perdendo
o seu tempo comigo. Se não houver provas, que garantia vai
bastar para você?
–– As que eu puder avaliar, Matt!
–– Assim você está restringindo suas crenças através de
conceitos falhos. Como não vê, todo o resto é boato.
Elene pensava na réplica que ouvira e na qual teria que dar. ––
Conceitos falhos?!
–– Se para você eu sou um louco de imaginação fértil. Para
mim você não passa de uma cega. E estamos quites.
E ele estava certo, nem mesmo sua vontade de dar a última
palavra como sempre fazia, seja em questões idiotas ou
complexas, impediu-a de se calar inconformada com a razão
apresentada. Por isso o amor entre os dois se esfacelou.
A chuva parecia reduzir de intensidade, aclarando a paisagem
depois que os vidros foram desembaçados com panos e
ventilações forçadas. Entretanto a paisagem era sempre a mesma,
pois haviam locomovido poucos metros. Estancados perto da
avenida New York entre a ponte d’Iéna e os terraços do Palais de
Chaillot. Visão sem obstáculos através da Torre Eiffel até o
nebuloso perímetro da Escola Militar. Impotentes de recuar ou
avançar, sua privilegiada paisagem foi se fechando com a
335
movimentação de uma muralha de caminhões e veículos grandes e
longos.
Um clique e o rádio era despertado com notícias
desalentadoras: ––... o que provoca o rápido aumento do nível do
rio Sena, decretando estado de alerta. Algumas áreas baixas já
estão sendo evacuadas e os túneis interditados. A defesa civil não
vai esperar que a água chegue aos joelhos do Zouave...
Em 1910, as águas do Sena atingiriam oito metros e sessenta e
dois centímetros acima da cota de alerta da escala hidrométrica da
ponte de Austerlitz, cobrindo os ombros da estátua do Zouave, que
passa a maior parte do seu tempo em um dos pilares da ponte de
l’Alma. Nos seus calcanhares, os canais eram fechados. Com as
calças molhadas, as vias justafluviais eram obstruídas. Na cintura,
a navegação era cessada e a linha C do RER submergida. Para
chegar no pescoço, poucos se esqueceriam. Mas o africano
Zouave passou a ser desconsiderado quando a nova ponte de
l’Alma mudou-o de posição. Se houvesse outra cheia, a cidade não
poderia dar de ombros.
E os motoristas começavam a se exasperar, buzinando
desesperados por uma rota de fuga que não existia. Para completar
a irritação de Mateus um cavalo esbarrou em sua porta recém
reparada assustando-o. –– Mais cavalos! Quem sabe este policial
saiba de alguma saída para o congestionamento. –– e depressa
abria o vidro.
E Elene olhou para frente, os lados, se contorcionou para trás
e não viu nenhuma guarda a cavalo. E Mateus descobriria que
também não. Levantou a cabeça diante das botas do cavalariço
prevendo que ele estaria ocupado em instruções com seu walkie
talkie para as centrais de monitoramento do trânsito que também
estariam de mãos atadas. As botas não diziam respeito à
gendarmeria municipal, mas sim ao explorador espanhol de
cavanhaque pontudo e elmo socado que gritava endemoniado para
as escadarias do Chaillot. Fechou instantaneamente o vidro como
se protegendo de meros ladrões oportunistas que atacavam
veículos desamparados em engarrafamentos semelhantes. –– De
novo, não!
O soldado cortou a dianteira do Peugeot imprimindo mais
gritos, quando percebeu que era visto por Mateus com precisão.
336
Por cortesia o cavaleiro respondeu: –– Saiga de la ciudad,
hombre! –– e rumou para o rio, desaparecendo por completo.
A Elene desconfiava que havia acontecido algo que não podia
desconsiderar. Se Mateus queria assustá-la, havia conseguido. O
que pioraria a situação, para ela, seria a sinfonia de buzinas e
alarmes disparados ao mesmo tempo, sem causa aparente. Aliás,
havia uma causa nada ilusória no gigantesco braço metálico que
se erguia implacável, abrindo-se para os céus da cidade, mas o
movimento não havia terminado.
Mateus tentava acompanhar a estrutura através do para-brisa
deformado pela água que escorria sem trégua, porém não se
conteve e saiu. De início, os veículos engarrafados dificultavam
sua observação de partes do estranho mecanismo, detendo-se na
azáfama que provinha das escadarias do Palais de Chaillot e,
onde vários soldados desciam em formações e destacamentos
heterogêneos.
Tropas e divisões de destacamentos imortais tomavam de
assalto os museus do homem e da marinha que constituíam os
edifícios originais da exposição universal de 1937. O frontispício
indagava contrassensos para os espectros de que tout homme crée
sans le savoir, comme il respire.
Cuirassiers aparelhados com fuzis revolucionários em longas
capas e elmos emplumados escoltavam a infantaria legionária de
pilum e scutum oriunda da Armórica. Eram seguidos pela
cavalaria de armaduras luzentes e cotas de malhas fragorosas, com
suas pesadas espadas presas às placas do saiote, e estandartes
heráldicos calcados entre as selas e as mãos liberadas. A infantaria
mecanizada do exército prussiano contornava o edifício,
avançando protegida por filas de metralhadoras rotativas que eram
puxadas por animais. Caminhões de transporte do Afrika Korps
faziam a escolta secundária, seguindo pelas avenidas do Jardim
do Trocadéro junto à fonte de Varsóvia.
Uma cena inimaginável, que só teria maior impacto quando
tanques Panzers e Shermans despencaram através das plataformas
suspensas, comboiando seus aliados diretamente para os
automóveis imobilizados que não antecipariam reação alguma.
Mateus estava petrificado com a onda de choque provocada
com a colisão dos primeiros blindados contra os objetos sólidos,
arrancando algumas árvores e destruindo postes que se
337
deformaram com o peso deste vagalhão. Não pensou novamente e
agiu o mais rápido que podia, forçando a maçaneta do seu carro
para arrancar Elene instantes antes que o blindado o transpusesse,
arrastando-o incólume uns bons centímetros de pneus freados.
Vários veículos sacolejavam arrastados e os alarmes eram
ativados por toda a extensão do congestionamento. Além destes
sinais sutis, as esteiras dos blindados levantavam respingos da
água empoçada sobre o asfalto.
Enquanto eles se desviavam dos tanques americanos, os
demais veículos continuavam a balançar, puxados para a margem
do rio. Pelo menos uma vez, Elene fora pega pelas lâminas das
esteiras invisíveis, sentindo desconforto incompreensível. Alguns
deslizaram para cima das grades, afugentando as pessoas de um
ponto de ônibus abarrotado.
A debandada absoluta contava com um estímulo jamais
previsto. Pelo que Mateus pôde pressentir, os corpos em fuga
eram apoiados pela decisão conjunta de suas almas assombradas.
Este movimento se alastrava como fogo ao vento e em poucas
horas a cidade estaria plenamente evacuada incentivada pelo
medo que sentiam em suas almas. Peito oprimido em angústia
inexplicada, porém considerada.
Muitas pessoas gritavam desesperadas fugindo para longe,
milhares atravessando as pontes para a margem esquerda da
cidade –– rive gauche. Em sua vontade de explicar o inexplicável,
pensavam que era uma enxurrada, eletrificada pelos cabos de
energia e comunicações expostos pelo excesso de água.
Os blindados, como os soldados, seguiam na mesma direção,
detendo sua marcha nos pontos do rio sem travessia, todavia
começaram a se locomover para onde a garra de metal se
desdobrara atingindo grande elevação e já encetava seu decesso
com muitos estalos e gemidos peculiares de estruturas gigantescas
postas em movimento.
Para que Mateus conseguisse ver do que se tratava, correu
disparado pela avenida, entre os carros abandonados, o que o
obrigava a bater as portas que lhe obstruíam a passagem. Mas o
trajeto dificultava sua afobação, exigindo que ele subisse nos
automóveis, saltando as capotas e caçambas com esforço
redobrado. Os motoristas indiferentes ao pânico se entregavam a
338
xingamentos encapsulados, pois ninguém ousava abrir as janelas
durante aquele temporal.
Quando ele já se aproximava de um ângulo propício saltou
sobre um furgão que lhe daria ingresso ao topo de um caminhão-
cegonha de vários eixos. Ofegante, cuspia o excesso de água que
acabava entrando pela boca escancarada. Diante de si, muitos
braços desciam, não sincronizados, de veículos blindados lança-
pontes, preparando as tropas para a iminente transposição do rio.
Espantosa força criava pontes de cento e cinquenta metros de
extensão que eram pouco visíveis em meio à solidez da chuva, ou
da substancialidade das nuvens baixas.
Elene berrava conseguindo chegar mais perto, o que atraiu a
atenção dele para a outra direção. As divisões que conseguiam
transpor o rio por meio das pontes existentes estacionavam em
acampamentos provisórios no campo de marte. Milhares de
espíritos com inexpressivo semblante fincavam bandeiras pelo
campo. Generais, capitães, centuriões, legionários, besteiros e
arcabuzeiros, fuzileiros e granadeiros, soldados e marechais do
mar. Lanças, canhões, espadas, granadas e mísseis, baionetas,
trabucos, escudos, arcos e bestas. Cavalos, elefantes, caminhões e
jipes, blindados e...
Compunham um grande exército, a legião, quando todos
terminaram os variados deslocamentos e definiram os perímetros
de ocupação, não haveria contraofensiva. O fôlego de Mateus
terminava com o retorno ao chão e aos braços de Elene que o
acompanhou até o automóvel, agora preso pela massa de veículos
sobrepostos.
–– A invasão acaba de fincar sua bandeira de vitória, sem
enfrentar resistência. –– e ele olhava a impressionante logística
militar que surgia na esplanada ocupada.
–– Matt, precisamos sair daqui! –– estava apavorada, mas não
era de fugir diante de reveses. Começava a aceitar que existiam
outras verdades.
–– Bem que eu queria. –– de olhar fixo nos últimos homens
que cruzavam a ponte que estava diante deles. Sem opção,
molhados e arfantes, seguiram o mesmo trajeto da turba
incorpórea, desviando dos carros vazios sobre a ponte d’Iéna.
Apesar de sua perspicácia estar a mil, Mateus não percebeu
quando três mastros com suas velas içadas cortaram-lhe o
339
caminho com estrondo de um susto jamais previsto. Um
bergantim lançava âncoras no cais de Branly com tripulação
atarefada no desembarque de armamento. O rio corria
violentamente tragando os baixios de alguns cais próximos.
O que o trouxe à realidade de sentidos reais foram as
constantes vibrações de seu aparelho que indicavam chamadas
não-atendidas. Antes que pudesse constatar, atendeu-o. –– Sim,
ele está conosco. –– mentia Mateus para o senhor Patrick. ––
Parta da cidade. Temos alguns alojamentos no aeródromo...
Estamos todos indo para lá. –– Marc e Sarah deviam estar
salvando o Louvre e...
Mateus precisava de tempo, pois, durante a ligação, uma
segunda chamada estava sendo desviada. Distinguiu o número de
Tiago, e onde ele estava, Sean também estaria. O sinal de
proximidade piscava, indicando que eles estavam muito mais
perto do que imaginava.
–– Cadê você, moleque? –– gritando com o falso-Tiago.
Sean não conseguia responder, estava boquiaberto com a
imensidão de espíritos que ocupavam a esplanada do Champ de
Mars. A estação que deixava para trás desembocava, na
superfície, bem onde está a Escola Militar e a praça Joffre. Não
sabia como havia atravessado a cidade pelo labirinto de túneis e
catacumbas, mas estava aonde menos queria.
–– Sou eu, Sean. Preciso de você. Alguém sequestrou o seu
irmão. –– a interrogação de onde estava ainda continuava. ––
Estou na Escola Militar do Campo de Marte.
Mesmo surpreendido pelas palavras que ouvia em silêncio
ajustou sua visão tentando visualizar o garoto através do campo
que se alongava diante dele. Impossível alcançar esta distância. ––
Estou indo até você!
–– Rápido, você nem imagina o que estou vendo!
–– Tenho uma boa ideia. –– de um outro ângulo, e desligou.
341
alguns combatentes, agarrados ao chassi, que acabavam
escorregando com as vibrações constantes.
Tomada de decisões eram confirmadas com o grau de pavor
que ela presenciava em Mateus, que abria ou fechava seus dedos
diante dos olhos conforme os nem-quero-ver. A imprevisibilidade,
que não era compartilhada por ele, acabou pegando-o
desprevenido quando uma grande árvore caiu. Não puderam
desviar-se da colisão que os alçou aos galhos partidos.
Atordoada, tentava escapar da armadilha como um cão que
puxa o graveto das mãos de seu dono. Entretanto as rodas giravam
no mesmo lugar arrancando nacos do gramado e lama que poderia
atolar. As luzes de ré pegaram os soldados despreparados.
Enquanto eles davam passos para trás, Elene experimentou
modificar a tração e o veículo rompeu a resistência, recuando para
trás com brusquidão de ramos partidos. Mateus demonstrava, de
rosto pálido, que acabavam de entrar em outra escaramuça de
muitos espectros sedentos por algum ardil.
Ela desceu o vidro para gritar no vazio, mas preferiu apontar o
dedo médio para um aglomerado de arqueiros ingleses. Injúria
impensável aos arqueiros que teriam os mesmos dedos arrancados
em outras batalhas. Os guerreiros confundidos mantiveram-se
acuados. E Mateus fechava os olhos de embaraço.
Definitivamente ela passava a aceitar que fantasmas existiam. Só
precisou pressionar o acelerador para retornar à alameda de
cascalho que lhe convinha, no entanto Mateus não queria delatar
as avalanches de fantasmas que se lançavam. Não antes de serem
atingidos por uma bala de canhão que arrancou a roda posterior
com aspecto de conservação mal executada.
343
26
a repercussão.
344
Mateus não parecia convencido, nem Elene que tentava
escalar as verticais limosas do poço de manutenção de uma rede
de escoamento pluvial. Eles pareciam descontentes com as
revelações inconclusivas. E Sean captou o gelo.
–– Vocês acham que eu queria que isto tivesse acontecido?
Mateus falou pelo irmão. –– Se tivesse certeza de que era
preciso...
Ele não sabia. –– Não era. –– mas se não tivesse tentado, o
preço seria a própria alma.
Tudo em vão, todas as ideias supostamente coerentes se
tornaram palavras ao vento. Nenhuma das conclusões foram tão
conclusivas assim. Nem sequer as intenções se mostraram
proveitosas.
Tiago tinha que estar bem, por que estariam atrás dele?
Infelizmente Labelius havia declarado que as intenções por trás da
captura tinham um objetivo, pelo menos para um dos milhares de
fantasmas presente nesta invasão sem lógica.
Não tinham como percorrer os milhares de quilômetros de
túneis e brechas com esperança de que a cada recurvo se
deparariam com Tiago. Mateus podia estar apreensivo em correr
desabaladamente subterrâneos adentro, no entanto ainda
conseguia raciocinar a inutilidade deste ato. Tanto faria se ele o
fizesse na superfície ou abaixo.
Só precisava tirar uma dúvida.
Quando descobriram uma saída, a cidade tentava manter
algum ritmo. Algumas lojas estavam abertas, várias pessoas se
deslocavam atarefadas, contudo havia diferenças. Quem podia,
preparava-se para a grande cheia que já estava prevista pelas horas
de intensa chuva que não cessava. O céu parecia se contorcer em
labaredas de espessas nuvens negras que tentavam rodopiar
hipnóticas sobre eles. Uma onda de aflição os envolveu.
Tentou usar o telefone, sem sinal. Sem eletricidade.
Mateus só queria seguir para o Hospital Val-de-Grâce. Se
Tiago tivesse escapado, teria procurado por alguém. E mães
sempre se figuravam como porto seguro. E a doutora Mel era esse
alguém que ninguém conseguiria mover de suas tarefas, com os
pés encravados em seus compromissos humanitários.
345
As portas do hospital estavam escancaradas para todos, o que
literalmente acontecia. Todos que não puderam escapar das
primeiras submersões se entrincheiraram nos atendimentos de
socorro. E o hospital não comportava o caos que a breve e
volumosa massa de seres provocou com a sua ocupação não-
esperada. Todos os planejamentos para a eventualidade da cidade
ser consumida pela morte de seus sistemas primários priorizava a
disciplina dos serviços de emergência. Contudo, a desordem que
provinha de todas as paragens, parecia idiotizar todo o
planejamento bem calculado.
Os corredores estavam apinhados de gente ferida no corpo e
em seus brios de perdas materiais. Uns até tentavam organizar um
método, e em vão acabavam derrotados pela estupidez da massa
desesperada que atropelava as parcas evoluções no sentido de
recuperar o controle e a ordem. Muitos gritos e choros se
chocavam com sirenes de ambulâncias e o pouso de helicópteros
em maior número do que os helipontos suportariam. Enquanto
Mateus arrisca-se em alcançar o balcão de informações, Elene se
embrenhava pelas diminutas fissuras, abreviando a angustiosa
suspeita. Só não estava pior porque muitos haviam se afastado de
Paris durante as confusões da manhã.
A doutora Mel Göettees atendia a vários casos graves em uma
sala sumariamente esterilizada. Sua especialidade passava a ser
todas. Luzes que piscavam disfarçavam o vermelho do sangue dos
pacientes. Elene precisava tentar um contato, porém não podia
entrar. Bateu com insistência no vidro até que a médica se cansou
da obstinação e voltou-se para olhar. –– Estão todos bem? Espero
que Tiago e Lucas estejam com vocês.
Não era o que ela queria ouvir. A médica estava tão ocupada
que Elene não traria novos problemas e replicou com uma grande
e vistosa afirmação mentirosa. Soltou-se das pessoas, recuperando
o ar livre. Mateus e Sean aguardavam debaixo de tendas montadas
para a triagem.
–– Nada do Tiago... e ainda por cima precisamos resgatar o
Lucas debaixo de suas cobertas. –– abatidos com a verdade de que
teriam que seguir para duas direções distintas. Nunca que os
encontrariam juntos, nem nos sonhos mais loucos.
Quais as alternativas? Mateus caiu sentado num banco que
afundou seus pés no gramado encharcado do jardim entre o
346
moderno edifício de quatro blocos fixos a uma centro triangular
de formas inusitadas e a igreja cupular do Val-de-Grâce. Elene
havia se proposto a agir e escapuliu sem revelar suas intenções,
debaixo de uma pancada de chuva mais forte do que até então.
Sean teria que se entregar ao cansaço, mergulhando o banco
na lama espessa observando um helicóptero pousar a poucos
metros. –– O que nós deixamos escapar, o que eles querem com
Tiago? –– retirando o excesso de água de seus cabelos enquanto
notava outro helicóptero alçar voo detrás do majestoso edifício
centenário que compunha o complexo do hospital militar.
–– Estão usando ele como isca. –– Mateus resolveu entrar no
jogo. Mas não acreditava muito nesta ideia. Se os espíritos
queriam algo com ele, seria por algo mais consistente. E o que
poderia ter lógica em sequestrar um garoto? Será que deixaram
passar algo? –– O que nós sabemos do pirralho?
–– Que ele sempre está conosco e...
–– Nada de mais. –– agregava Mateus desesperançado.
Se os fantasmas quisessem Sean, por que simplesmente não
ficaram com ele? Mas recordaram de algo. –– Quando estávamos
no conclave nos disseram que o Tiago era tão importante para eles
quanto para nós. Mas como?
Mateus não estava disposto a conjecturar sobre o que eles
queriam dizer com isto. No entanto a resposta devia estar aí e fez
um esforço. –– Ele estava envolvido com algo que eu não saiba,
Sean? –– e a pergunta pegou-o despreparado, o que eles tinham
deixado para trás? Desde que esta doidice começou não faziam
outra coisa senão correr da legião de espíritos revoltosos. Não
havia nada que Mateus não soubesse, com exceção...
Sean bateu estrepitosamente a mão contra a testa. –– No way!
Algo que havia passado acabava de retomar seu rumo.
–– Não estávamos procurando só o pergaminho, queríamos
pistas sobre Allan!
–– E não conseguiram chegar até o túmulo?
–– Sim, mas não era este Allan... –– e Sean arreganhou os
olhos como se entendesse o rapto, talvez Tiago tivesse descoberto
um indício. Contudo, outra questão precisava ser explicada, por
que Allan era tão valioso para os mortos?! –– Estávamos atrás do
Allan de carne e osso.
347
E ele abreviou uma narrativa dos encontros com o
Mensageiro de Jeanne e suas investidas para descobrir o
desaparecido portador do manuscrito. Desde a aparição repentina
na unidade de terapia intensiva do hospital, passando pela
perseguição pelo metrô, até a última conversa em seu quarto.
Todas elas ocorreram sem a presença de mais alguém, somente os
dois, sempre. E só havia outra pessoa que conhecia tão bem a
história, e agora ele havia sumido dentro da terra muda. –– Por
que o mensageiro quer tanto Allan? Será que ele não conseguiria
achá-lo sozinho? Para que ele precisava de nós?
–– Tudo muito estranho! –– respondia ao apelo com
dificuldade de digerir tantas informações sem respaldo.
–– Se soubéssemos quem tem os corações que atitam... ––
bufou indignado.
Mateus puxou o comunicador do bolso detrás e se conectou
ao servidor buscando referências a corações que atitassem em
meio às falhas de conexão e baixa taxa de transferência em um
local que ainda possuía antenas operacionais. Não havia tais
corações, sendo que só podia confiar que, pelo menos, ficavam do
lado esquerdo do peito, porém o verbo atitar apresentava uma
incógnita com ares de já-vi-isto-antes. Mas onde? Enquanto Sean
relia a explicação de letras miúdas para aquele atitar.
Atitar: soltar (a ave) grito agudo, quando assustada ou
enfurecida. Vocábulo onomatopeico + ar. Sons produzidos por
corvos, falcões e águias.
–– Corações atitam?
Mateus se manifestou sem perceber: –– Corações não. Mas o
que está no peito, sim. –– e tentou falar com Marc Bernis que
devia estar encaixotando suas pesquisas antes que elas fossem
carreadas pelas águas.
348
27
sorrisos falhos.
349
abalou quando o telefone tocou insistentemente antes que fosse
tomado. Na agitação de caixotes espalhados e caminhos
trancados, Marc se lançou sobre e adiante, arrancando o aparelho
com força desmedida.
–– O que você pode me dizer sobre três pássaros? –– dizia
Mateus sem cerimônias.
O inusitado pegou-o de chofre. –– Hã! Muitas coisas. ––
respondeu enquanto se familiarizava com a voz, reconhecendo-a
com facilidade. –– Como símbolo ou...
–– Se eles estivessem gravados no peitoral de uma couraça?
Surpreso com a coincidência, Marc olhava seguramente para
a heráldica de sua linhagem genealógica, disposta junto aos
quadros com as fotos de seu avô em expedições brancas e frias. ––
Se preferir posso começar com o brasão da minha família... Com
seus três alérions de prata que fazem alusão à Lorena. –– e
esfregava os cabelos de Joshua que não se importava com o
carinho.
–– O que são alérions?
–– São estilizações de pequenas águias.
Mateus continuava quieto, se os pássaros eram os mesmos
que Marc descrevia com precisão, então o cavaleiro que viu
discutir com os senhores das trevas só poderia ser o guardião que
jurava jamais deixar de proteger os seus. O cavaleiro que possuía
corações que atitam, ou águias que atravessam o tórax de aço de
sua armação de guerra, era um antepassado que gostava de atuar
em duas frentes. Ora como senhor dos exércitos úmbrios, ora
como um irmão mais velho, muito mais velho do que supunham.
Os dois continuavam a discutir mais referências que
pudessem comprovar suas dúvidas quanto a isso ou aquilo. E Sean
se retraia em pensamentos divergentes e confusos, pois parecia
que os pássaros eram mais relevantes do que eles imaginariam.
Mateus o reconhecera, mas onde ele teria visto o cavaleiro sem
que Sean houvesse percebido? Procurava em sua memória algo
que houvesse perdido, um evento, um dia em que ele teria visto
seus pesadelos andando.
Antes que pudesse interromper o diálogo, Mateus apresentou
a elucidação à incógnita que agitava Sean. Corações que atitam é
o brasão deste antepassado de Marc, dos Delènfer. Mas também
350
representava o quanto Sean fora estúpido. Os pássaros sempre
estiveram diante do seu nariz.
E.
–– Assim que terminarmos por aqui. –– respondia Mateus aos
apelos de que fossem até o museu e consequentemente para fora
de Paris. Bernis queria rastrear as novas informações, contudo não
estava preparado para o que escutaria. –– Preciso te dizer, estamos
com o pergaminho-tradutor.
E antes que Marc pudesse realizar um sem-fim de
questionamentos de comos e ses, fora abrupta e categoricamente
desconectado. O aparelho zunia e chiava apático aos gritos de
insaciável indagação. Ele depositou-o em profundo pesar.
Sua abstração provocada por pensamentos velozes não foi
suficiente para desconcentrá-lo. Sua cabeça podia estar bem
longe, todavia a situação era a mesma, a ponto de seus olhos o
reconhecerem. Diante de si, o tradutor se apresentava tão nítido
que as cores usadas não importavam. Outro sorriso zombador,
falho, de um garoto que copiava letras soltas de um símile
intraduzível.
Marc deixou-se cair estupefato com a simplicidade que
crayons poderiam conferir a antigos documentos. Joshua
continuava rasurando-os para o seu contentamento e dos dois
pesquisadores que acabavam de levar uma rasteira de um garoto
de cinco – seis – anos. Quando Patrick surgiu, tentando disfarçar
que nada sabia dos garotos, com mais caixas vazias, encontrou-os
chocados, para não dizer totalmente apalermados.
351
–– Há alguma chance de que Tiago seja ele? –– falou tão alto
que, ao ouvir suas próprias palavras, elas fizessem algum sentido.
Por uma fração de segundo ele cogitou que fosse possível, e se ele
chegou a esta conclusão, o cavaleiro também. Aliás, o senhor da
legião, o cavaleiro da Lorena e o mensageiro eram tão
semelhantes entre si. Pois que eles eram o mesmo.
E se um queria reparação era presumível que o outro também
o quisesse. O mensageiro não queria localizar um ancestral amigo
desaparecido através dos tempos, queria-o para sua desforra. E
Sean o havia entregue de bandeja. E Mateus ainda aguardava que
ele completasse a frase.
–– Temos mais um problema, cara! Tenho quase certeza de
que ele acha que seu irmão é Allan!
–– Como? Por que ele estaria atrás...
–– Não percebeu? Este cavaleiro é o mensageiro, era só um
disfarce para descobrir o que não conseguiria sem ajuda. –– Sean
estava com taquicardia. –– Ele só necessitava que confirmássemos
suas suspeitas.
–– Como ele poderia ter certeza de que...
Sempre interrompido. –– Sou o culpado. Acabei avivando as
recordações que confirmariam as desconfianças do mensageiro.
Ele deve ter percebido que eu conseguia reviver as memórias de
quem... –– se referindo à capacidade de trazer à tona lembranças
do passado. Em muitas ocasiões Tiago havia tocado-o,
deflagrando as suas memórias pregressas, de vidas anteriores.
Quando ele recordou que a mão havia sido perfurada por uma
lança, atinou que os sonhos ou pesadelos não passavam de uma
transferência de reminiscências dolorosas que impregnavam suas
almas.
Então era isto? Tiago é Allan. E Allan foi o algoz do irmão do
cavaleiro-mensageiro? Alguma coisa não estava se encaixando
muito bem. Como aquele garoto linguarudo e descontraído
poderia ter feito mal a alguém. Como tanta dor e sofrimento
poderiam ter sido diluídos ou absorvidos por alguém como Tiago?
Nem Sean achava imaginável suportá-los, no mínimo essa pessoa
só poderia ser alguém retraído e amargurado. Decididamente não
poderia ser Tiago, contudo tinha quem o considerasse.
352
E quanto ao paradeiro de Tiago e do mensageiro? –– O que
sabemos deste fantasma vingador? –– Mateus buscava alavancar
algumas suposições e direções.
–– Eles estão com muitos ossos! –– Sean rememorava o que
Labelius havia dito de forma incoerente, porém precisa. Ele só
não gostava de charadas, se bem que não era uma.
–– Não me diz nada. Existem milhares de ossuários...
–– Perto de algum anjo sem asas?! –– o mesmo do evangelho
de São Lucas?
Deu de ombros. Não sabia o que queria dizer com isto. Suas
chances não haviam melhorado, nem uma consulta aos wwws
aclarava o assunto. Um pouco mais longe, Elene se espremia entre
os voluntários de uma tenda apinhada como se procurasse algo
bem específico, porém não alcançava êxito, visto que um obeso
frade ficava bisbilhotando seus passos. Religioso de poucos
modos que se parecia com...
–– Se estas não esclarecem, o pequeno francês da chordae
também não deve convir. –– já prostrados em estado mórbido e
entregues à incapacidade de descobrir o esconderijo de Tiago. E
onde raios fica Chordae?
–– Pelo contrário. –– Elene retornava exatamente a ponto de
rebater a dúvida. –– Não faz muito tempo e uns garotos
destruíram um antigo refeitório no Centro de Pesquisas Biológicas
de...
–– Cordeliers! –– Sean saltava de repente. O frade,
reconheceu-o finalmente. –– São os frades da Ordem de São
Francisco que se cingiam com cordas. É cordoalha e não
chordae. E Labelius contou que eles andaram muito e ficaram.
–– Não era um local, mas agora é.
De todos, Elene era a mais perdida. Só apreendeu parte do
ocorrido quanto Mateus sussurrou o fato de que os tais garotos
demolidores de patrimônios eram os mesmos garotos que agora
eram o centro deste pandemônio entre mundos.
Tampouco ela parecia deslumbrada, aliás, estava começando a
se acostumar com fantasmas e de ficar por fora do que realmente
acontecia. E ainda pensava que Labelius era um majestoso
espírito que os guiava para... e se soubesse que ele era horroroso,
carrancudo, um disforme de olhar melindroso; um verdadeiro
elemental da terra e que não falava lá muito claramente.
353
Só teriam que voltar para onde tudo havia começado, a cripta
não tão secreta dos cordeliers. Esgueirando-se pelos dutos
Coccini até que os sinais do escavador indicassem a abertura
recém aberta por Tiago. –– E quanto ao Lucas?
–– Ele que nos espere, antes temos que resolver como adiar o
fim dos tempos. –– frisava Mateus, catando alguns objetos que
estavam esparramados pelas tendas. Desde primeiros-socorros até
equipamentos de emergência dos grupos de batedores que
percorriam as áreas devastadas. No caos generalizado, surrupiou
uma mochila recheada de utensílios, calçou botas de borracha e
carregou os dois consigo, desviando de ruas e alamedas
interditadas até a escadaria Bonaparte nas proximidades do
Jardim de Luxemburgo e das primeiras ondas da enchente que
submergia as margens do rio Sena.
As primeiras impressões eram desanimadoras, pois a água
agitada já atingia os joelhos e estava fria de dentes tilintantes e
músculos em espasmos intermináveis. Bastou alguma distância e
o túnel secava misteriosamente. O pequeno lago interno
desaparecera facilitando o percurso até a inscrição sinalizadora
das portas do Inferno com sua suástica invertida que queria
indicar o contrário. Sejam as portas do Inferno ou o caminho para
o Paraíso, causavam a mesma angustiante sensação de
imprevisibilidade. Mateus ainda conversava com Elene, contudo
alguém se mantinha quieto, relembrando a conversa que tanto lhe
amargurava. Estaria sendo egoísta? O que Tiago queria dizer com
isto? O que ele poderia fazer para mudar?
–– Estava pensando no que o seu irmão havia me dito. Que eu
sou egoísta em não permitir que os outros compartilhem das
minhas esquisitices. Não sei se entendi!
–– Hum! Ele só estava evitando que acabasse como eu.
–– Hã!
–– Que, enquanto não se abrir, se ferir, não poderá seguir em
frente. Precisamos avançar, e só enfrentando os problemas é que
seremos capazes de crescer. Perdi muito tempo sem respostas.
–– Sempre o achei tão seguro de si! –– disse ele.
–– Seguro, mas ainda sem respostas. Preso pela cômoda
ignorância. Nunca rompi minhas barreiras. Fora delas não saberia
me controlar ou agir.
354
–– Foi o que ele me contou, preso em meu mundo. –– esta
constatação só não doía muito porque ainda estava preocupado
com o sequestro de Tiago.
–– Se estiver fazendo o certo, como poderá estar ferindo os
outros? Acabou o tempo das complicações. Façamos aos outros o
que gostaríamos que eles nos fizessem.
E estas palavras proféticas feriram e romperam a bolha de seu
mundo interior, palavras que partilhavam de seu compromisso
impronunciável que tentava chegar à tona. Quando ele surgisse
talvez ele se lembrasse qual era o acordo que provocava suores
frios e aflição exacerbada.
Era reflexo do que acabava de ouvir. Elene havia se deparado
com os restos mortais de um soldado acocorado em nicho
auspicioso com um grito não controlado. Enfim todos os calafrios
e temores se restringiam a um pensamento: Ao passar, não teria
mais retorno. E ondas de ansiedade comprovavam que sua alma
sabia de algo que ele não percebia conscientemente.
Atravessar este buraco evidenciava que seus temores seriam
colocados em agitação ininterrupta e acelerada e que Sean talvez
não conseguisse impedi-la, mesmo que soubesse como. Sentia que
parte do compromisso ser tão feroz e angustiantemente envolvente
se dava pela sensação de que estava ameaçando derrubar a
primeira peça do dominó ao passar para a câmara franciscana.
Mas se Guarini estava absolutamente certo de que tudo havia
sido planejado, e não havia desespero ou improviso, a pergunta
seria: planejado para o quê? –– My God! Onde fui me meter. –– E
fez uma prece silenciosa para que fosse o final deste compromisso
que estava impregnado em seus genes.
Seguiu adiante com coragem para terminar o que havia
começado, ainda que não se lembrasse. Esgueirou-se pelo entulho
que ainda não se consolidara, deslizando até a base instável dos
pedregulhos que se espalhavam e rolavam para os cantos mais
baixos. O som da água parecia vir de perto.
Levantou-se a tempo de ver Mateus surgindo através da greta,
realizando o cavalheirismo de estear Elene para a travessia
intricada. E eles estavam de costas quando Sean dançou o facho
de luz ao redor, e fora surpreendido pelo ataque arrebatado de
alguém que lhe acertara nos ombros com brutalidade passional.
355
O alvoroço que a manobra ocasionou fez com que Mateus
virasse a ponto de evitar ser atingido pela mesma arma, porém
perdeu o equilíbrio, caindo pelo monte sem a lanterna que
desaparecera sob os pedriscos. Outra vez Sean voltava a respirar
ofegoso, aguardando que novas pancadas lhe atingissem.
Com a luminosidade focada a esmo na escuridão, procurava o
seu verdugo que poderia atingi-lo sem que soubesse de onde. O
nervosismo produzia movimentos rápidos e inexatos que
acabavam produzindo fantasmas de sombras.
E não estava preparado para o furtivo ataque que se delineou
diante de si assim que seu facho recaiu sobre ele, tampouco para o
impacto de constatar quem era o agressor. Lucas, de olhos
furiosos que deixavam escapar seu intuito instintivo, corria para
Sean com seu skate em atitude de maça implacável contra o seu
crânio protegido por braços erguidos.
Com repentina reação, até mais imprevisível do que Lucas
desempenhava, Elene surgiu do breu que a camuflava para acertar
um firme e providencial soco que atingiu o queixo do ensandecido
garoto, levando-o a nocaute instantâneo.
Um silêncio demorado era seguido de várias respirações
desencontradas quando Mateus conseguiu se aproximar dos dois
ou três conforme observava a silhueta de um Lucas adormecido,
emborcado junto de Sean como se descansasse oportunamente.
Parecia sorrir.
–– O que ele estava fazendo? –– pergunta retórica que Elene
tomava dos pensamentos de todos enquanto massageava os nós de
seus dedos.
–– Não era Lucas quem... –– respondia à outra, Sean, que
pressentiu que a fúria não pertencia a Lucas. Se alguém lhe tivesse
dito que era possível, ele acreditaria que aquele não era o irmão de
Tiago e Mateus.
Era a vez de Mateus. –– Quem mais está aqui!
E sua dúvida teria resposta com a sequência de gargalhadas
medonhas que pareciam caminhar até onde eles estavam. Come-
çaram a ouvir estranhos sons, roucos, graves e horrendos. Uma
voz metálica, distorcida e parecendo muito distante parecia ecoar
na mente, deixando transparecer pensamentos claros.
Somente Elene parecia chocada, seus olhos dilatados demons-
travam que ela parecia ver um fantasma se materializar. Do semi-
356
círculo, Sean e Mateus perceberam a nítida transformação em
pavor, como se as fábulas do que ouvira se condensassem em
verdades induvidosas.
Em breve eles se deparariam com a fonte das sinistras
gargalhadas entrando no campo de luminosidade das lanternas que
lhe davam a opacidade e a transparência de uma névoa viva e
coagulada que era bem reconhecível por Sean. Apesar da
fragilidade da constituição de seu corpo, ele ainda era imponente
em sua armadura luzidia que refulgia os três pássaros talhados
magistralmente na couraça argêntea.
Não parecia muito mais velho do que Mateus, mas o amargor
de milênios havia deformado sua jovialidade em rudez
conformada por incontrolável desejo de vingança. Domínio tão
vicioso que lhe cegava substancialmente o quadro em que se
encontrava. Só, em júbilo histérico, quase em êxtase.
Seu delírio extrapolava a tudo, até mesmo seu controle
interior que estava claramente estraçalhado. O cavaleiro
caminhava para junto dos quatro sem preocupações maiores.
Entretanto Lucas estertorava como se fundindo à psique do
espírito, como se ambos fossem um. As ondas do pensamento
desencadeado pelo senhor das trevas estavam sendo captadas pelo
garoto que ainda se debatia em sono profundo de um desmaio
forçado. Elene acariciava-o procurando evadir-se da situação ao
qual jamais se preparara.
–– Onde está Tiago!
O espírito retornou à sua atitude de desdém e inflexibilidade,
erguendo impávido e orgulhoso olhar para Mateus.
–– De onde jamais deveria ter saído. –– e parecia verificar as
profundezas do salão obscuro certificando-se. –– Esta é a sua
casa. E o meu inferno.
Mateus olhava para baixo, para onde o cavaleiro dava a
entender, para onde as letras fundas assinalavam a tumba de
Allan. Em vão ele se agachou perscrutando o cerne desocupado da
sepultura trincada. Tiago não estava ali. –– Mas o que meu irmão
tem a ver com tudo isto?!
E estas palavras afetaram o fantasma de modo inusitado.
–– Escapou de mim, várias vezes. Ele deixou que os infiéis
assassinassem Raphael.
357
Que Raphael? Mateus parecia confuso, não obstante adiantou-
se até ficar cara a cara com o mensageiro de quem Sean
descrevera com certa compaixão. Como poderia ele ter se
enganado? E o cavaleiro que fora Max pressentiu suas dúvidas
com renovadas e insólitas impressões. Ele estava começando a se
sentir acuado, preso por circunstâncias imprevistas.
Sean observou esta mudança. –– E se Tiago não fosse este
Allan? Estaria disposto a causar a mesma dor que lhe causaram no
passado? E o que Raphael pensa disto?
–– Nunca o re-encontrei.
–– Quem é Raphael? –– perguntava Mateus já enraivecido.
–– O seu irmão. Ele acha que foi Allan quem permitiu que o
matassem...
–– Allan o matou! –– gritou em resposta.
Com tato Sean apresentou os fatos enquanto Mateus se
distanciava à procura de Tiago. Quando se aproximou da caverna
vislumbrou centenas de nichos tumulares selados por cártulas
franciscanas, com nomenclaturas de quase-santos e pomposos
religiosos de 700 anos. Levaria horas para descobrir se Tiago
estaria sepultado em algum. Para piorar a situação, a água que
descia para aquela cave era demasiadamente volumosa, subindo
rápida, além da capacidade de escoamento das diversas fissuras
existentes. Pequenos vórtices sugavam ruidosamente o líquido
barrento que assustava os ratos para novas frestas.
–– Ele não tinha como lutar com a mão machucada! E mesmo
assim enfrentou os homens de turbantes. E onde você estava?
Heim! –– quem sentiu arrepios foi Sean desta vez.
Desconcertado, Max ainda refletia no que o menino enxerido
havia aventado. E se ele estivesse enganado quanto à identidade
de Tiago? Era impossível, ele mesmo havia presenciado as
características que tanto afiançara suas suspeitas. –– A mão
machucada estava bem marcada com sua cruz. –– ele temia dizer,
mas acabou falando em voz alta. –– Cuja cicatriz marquei para a
imortalidade com minha lança antes...
–– Antes de se vingar... Uma vez já não foi o suficiente? Este
é o problema da vingança, ela nunca acaba. Fazer justiça exige
disciplina e a vingança, por ser emocional, não extingue a dor...
perpetua-a. Nunca encontrará paz enquanto não perdoar.
–– Não quero a paz. Eu sou legião. –– e não se convenceu.
358
Elene não olhava para a manifestação fantasmagórica,
concentrando-se nos espasmos que Lucas re-encetava em espaços
cada vez menores de tempo. Ela descobriu que quando se
acercava de seu corpo, ele parecia se aquietar, relaxando os
músculos e voltando a dormitar. Abraçou-o firmemente.
Se ela estava concentrada em cuidar de Lucas, Mateus
destruía os lacres das urnas com a força desesperada de seus
punhos sangrando. A cada estocada seu ânimo esmaecia pela
inutilidade do intento titânico. Estava sem ferramentas e exausto.
O cavaleiro resmungava. –– Raphael passava muito tempo
com aquele...
Sean precisava agir.
Mas foi Tiago quem se antecipou.
Abruptamente novo espectro nebuloso se distinguia em
esforço de se tornar nítido. Em instantes ela ganhou contornos
familiares que provocaram ligeira comoção em Mateus e Sean. No
entanto, ela fora passageira, se Tiago eclodira no ar como
fantasma, isso queria dizer que.
–– Está morto, chegamos tarde! –– para desespero de Mateus
que se lançou de joelhos. Seus gritos de dor atingiram o cavaleiro
com reconhecimento da sensação. Em algum momento do
passado, que se perdera na memória, ele havia sentindo o mesmo
sofrimento.
O que havia acontecido de errado! Porque não poderiam ter
evitado o pior! Sean desconfiava que o compromisso havia sido
quebrado. Com vergonha sentiu alívio quando a ansiedade tomou
a forma de esperança. Sentia que tudo estava onde devia. Não
sabia explicar.
Tiago se aproximou de Mateus exigindo compostura. Ele não
parecia mais aquele garoto fanfarrão e atrapalhado, agia com
segurança e estava determinado. Contornou o irmão e avançou
sem encarar o amigo que estava perdido com a atitude. Tiago
havia caminhado diretamente para Max, sem demonstrar medo ou
rancor.
–– Termine o que começou! –– exigiu Tiago a Max.
Mas o cavaleiro pressentiu que havia se enganado. Recuou
rapidamente, fugindo dos gritos de Mateus. Gritos que acordavam
lembranças que haviam sido diluídas pelo tempo. A dor da perda
que regressava com força. E ele percebeu que o desespero de
359
Mateus jamais seria suficiente forte para que o atingisse com
aquele impacto que provocava ânsias e temor. Estava com medo
do garoto diante de si. A cada passo de Tiago, o mensageiro se
afastava apavorado com a chance de que Deus havia lhe pregado
uma peça.
Tiago esclarecia suas suposições que afloravam à alma
amargurada: –– Tanto tempo desperdiçado, meu irmão!
Ninguém estava pronto para estas palavras, Sean era quem
mais parecia absorto com a revelação de que o amigo estava
completamente a par do que dizia. Mesmo para Max –– Quem é
você? ––, que sabia a resposta. Tiago, ou Raphael, adiantou-se
antes que o fantasma pudesse reagir e tomou suas mãos. Foi o
suficiente para que Max tombasse em choro convulsivo, aceitando
o reconhecimento que seu coração apreensivo já havia percebido.
Tiago olhava diretamente para Sean.
–– Percebe que só éramos peças de nossos próprios
comprometimentos? Estamos onde exatamente gostaríamos de
estar.
–– Mas eu não entendo!!!
–– Precisava de mim, assim como eu de você. Trazê-lo até
nós não foi difícil. O orgulho de Max permitiu que o
trouxéssemos até aqui para que ele visse... –– e não concluiu.
Tiago estava se transformando, seu corpo se modificara, ficando
semelhante a Raphael. Como num espelho, Sean percebeu que
ambos eram idênticos, apesar das diferenças que caracterizariam a
falta de perspicácia. Uma imitação renovada de Max, altiva e
feliz. Como não havia percebido as semelhanças entre o
mensageiro e o Raphael de seus sonhos?
–– Que ele visse o quê? –– e Raphael também não concluiu,
revidando a pergunta com um sorriso.
Para Mateus nada fazia sentido, havia perdido o irmão e não
conseguia reagir entregue em ódio que emanava de sua aura e
atingia o fantasma do cavaleiro com ressonância. As dores atrozes
que se misturavam ao ódio se mesclavam, desmantelando a pouca
lucidez que ainda conservava. O trabalho de regeneração não
estava concluído e corria perigo. –– Max, o seu ciúme não
permitiu perceber que eu precisava ajudar Allan. Só porque ele
não sabia se cuidar, não quer dizer que estava negligenciando o
nosso amor fraterno. –– O mensageiro era atingido em seu âmago,
360
exteriorizando as feridas de sua alma. Seu rosto se escondia atrás
de sangue intumescido e seu corpo estava alvejado por flechas que
rompiam sua armadura opaca e deteriorada. Sua cicatriz
provocava lágrimas de sangue. A despeito de serem gêmeos,
Raphael e Max não poderiam ser mais diferentes. –– Erigi o meu
caminho enquanto conservou-se estagnado. Nunca estivemos tão
longe e tão perto. –– e Raphael se abraçou ao alquebrado
vingador que aceitou dolorosamente o fato.
Tiago retornou para Mateus que se ligava fortemente ao
campo psíquico do agressor evitando que ele conseguisse
vislumbrar a razão. –– Pare Mateus! Estas coisas tinham que ter
acontecido...
–– Mas não precisava morrer! –– baixou a guarda por
instantes. O que permitiriam que o mensageiro ouvisse parte da
conversa.
–– Se não tivesse tentado, o preço teria sido a minha alma.
Max precisava de mim. E nós precisaremos dele. –– Max se
aproximava enquanto os laços de rancor se desmanchavam. ––
Não é o momento de mais sofrimento. Sabemos o quanto isto
pode durar... –– observando o cavaleiro prostrado que tentava
clarear suas ideias mortas.
–– Vim te buscar! –– Tiago se voltava para Max.
–– Estou cansado, eu vou para onde quiser me levar.
Não antes de Raphael voltar a ser Tiago e fixar-se num
pensamento de se devia ou não... –– O que devemos fazer com a
legião?
O mensageiro havia esquecido dos seus irmãos de infortúnio.
Bastou esta interrogativa para que ele desfilasse toda sua
justificativa já errônea. De seus lábios brotavam as mesmas
palavras amargas de seres egoístas e orgulhosos de seu raciocínio.
Os homens contaminaram o solo com pestilências desnecessárias,
cultuaram a frugalidade de possuir mais e mais. E isto não era
nada. O medo se espalharia sobre a terra e as incertezas
disseminariam o pânico e o tormento entre as criaturas.
–– Como bem sabeis, a massa humana, embora se acredite
livre para fazer o que deseja, na verdade torna-se a cada dia mais
escrava de seus próprios instintos animais e, assim, presa fácil de
desenvolvidas mentes do mal. São desequilibrados e indecisos,
fracos e displicentes no viver. –– reconhecendo a sua apropriada
361
classe de ser enfermo e culposo que promoveu esta condição de
submissão e humilhação. Por pouco não se levou pela loucura de
seu remorso quando percebeu que, naquele desatino, prejudicou
tantos em sua desventura.
–– Ainda não nos disse o que fazer. E os exércitos acampados
em Paris? –– Tiago soava enfático para que Max não perdesse o
foco.
–– Não passam de uma leva de espíritos controláveis e
persuadidos a fazer o que lhes digam. Hipnotizados pela força de
vontade de seus donos. São muitos, porém agem pelas emoções
doentias que se repetem em seus pensamentos fragmentados. ––
parou por um tempo, concentrando-se em uma resposta que fosse
efetiva contra os generais. –– Eles são alimentados pelo ambiente,
existe uma simbiose entre vivos e mortos que garante as suas
ações, ou vocês acham que eles conseguiriam o que planejam
sozinhos? Aproveitem que a cidade está desocupada...
Não era o que eles queriam ouvir.
–– Agora eu preciso levá-lo comigo. Devem se preparar para
a batalha. –– certificando-se de que Sean houvesse entendido. ––
Logo estarei com vocês.
–– E você já sabia de tudo? De Raphael... –– falava Sean para
Tiago, com novos olhos.
O garoto sorriu. –– Todos sabíamos, mas agora eu estou livre.
Também se recordará, há uma grande verdade dentro de você. ––
e antes que Sean pudesse se manifestar. –– Estava com saudades
de você meu velho amigo.
O garoto acompanhado de seu outrora irmão, bastante
combalido pela verdade, efetuava a despedida com um menear
suave e direto. Havia certeza e tristeza.
Mateus não pôde impedi-lo. –– É um adeus?
–– Por enquanto sim! Eu precisava resgatar Max. –– e Tiago
desaparecia com o mensageiro. Não haveria alusões aos
manuscritos ou supostas teorias ocultas. O mal estava
simplesmente lutando.
O mal queria só uma tentativa para manter o que era seu.
E que todo o resto desaparecesse.
E com ele, Deus.
362
28
363
momentos ele está totalmente introspectivo, como em profunda
meditação. Em outros ele age além de suas próprias forças.
–– Varia entre extremos. –– Sean conhecia esta sensação.
Entre o silêncio e a explosão de pensamentos.
–– Quando resolve fazer algo ele realmente termina o que
começa. Não há meio de impedi-lo.
E Sean estava imaginando o que aconteceria se Mateus não
conseguisse terminar algo. Muito possivelmente era o que
acontecia enquanto transportava Lucas com parcimônia.
Seu ferimento voltava a latejar provocando paradas constantes
para um autoexame improvisado na sombra. Elene puxou-o para o
foco de sua lanterna e vistoriou o hematoma, alheia aos protestos
do garoto que gemia. Rasgou um pedaço de pano e molhou-o
numa poça que suspeitava límpida antes de efetuar uma limpeza
forçada do rosto imundo. Com a mão livre segurava firmemente o
queixo que bailava aos movimentos precisos. Sean fazia careta a
cada raspagem mais enérgica. O que causava as dores era o cabelo
seco e coagulado em volta do corte já fechado.
–– Assim vai demorar! –– ela reclamava dos gemidos e do
desaparecimento de Mateus e Lucas alguns metros adiante. E
Elene não se achava tão abalada com tudo o que aconteceu, pelo
menos era o que supunha, mas não pôde conter uma sensação
ditada pela circunstância. Parou o que estava fazendo e olhou para
Sean com outros olhos e seu coração imediatamente disparou.
O que havia acontecido para as coisas mudarem de visão?
Ficou tanto tempo admirando Sean que ele desconfiou que algo
havia verdadeiramente despertado entre os dois. Ele não perdeu
tempo, desvencilhou-se das mãos generosas e, com a desculpa de
que Mateus já se achava longe, acelerou o passo, encabulado.
Ela o olhava certa de que o garoto havia se transformado,
como se houvesse perdido sua natureza ingênua, como se sua
infância jamais pudesse ser recuperada. Ele tentava não pensar,
não era o momento, contudo sentiu certa palpitação que causava
durável atordoamento de pernas bambas e imprecisas.
Sua face enrubesceu-se.
371
Antes que pudessem perceber, seguidos estrondos explodiram
além dos arcos metálicos com muita fumaça e fogo. Projéteis
zuniam de quatros bocas giratórias que saiam das brumas
provocadas. Erraram o ângulo.
O barulho do mecanismo que movia os canos dos canhões de
duas torres de artilharia que estavam fundeadas no rio Sena
chamou a atenção dos garotos. A embarcação colossal estava
trancada pelas apertadas margens dos cais, impedindo a visão do
Palais de Chaillot e da Defense mais além.
A suástica desenhada à proa recordava-os de que os fantasmas
se prepararam com esmero. A nau capitânia renascia imponente
diante da surpresa dos garotos. Numerosos tanques faziam linhas
de avanço secundário. Os primeiros seriam os soldados munidos
de espadas, lanças, metralhadoras e fuzis. Montados em seus
cavalos ou seus veículos de assalto. O couraçado Bismarck
ressoava as sirenes antes da detonação.
–– Onde fui amarrar o meu cavalo! –– reclamava Mateus.
E os guardiões atacaram. Com orações suspeitas.
Sixderniers avançava com a espada alinhada para os corações
dos capitães da ofensiva e dos garotos dos manuscritos.
O romano se aproximou de Tiago, olhando para Sean com
curiosidade. –– Chegou a hora! –– Tiago segurou a mão do
homem que desprendeu o manto escarlate e ambos esperaram a
aproximação dos primeiros embates. –– Cadê o seu irmão?
Mateus se preparava para seguir até os dois quando, detrás
dele, ergueu-se quem legitimamente esperavam. Tiago apontava
para Max que caminhava resoluto para a frente de batalha. Havia
adquirido um novo fulgor, sua armadura emanava luz avigorada
pelos anseios dos seres superiores que procuravam incentivar a
transformação interna do cavaleiro. Este seria o trunfo.
Os soldados, muitos, pertenceram às hordas do antigo senhor
e que se arregimentaram com as demais quando ficaram órfãos.
Sixderniers e Rommel se encarregariam de tomá-los para si.
Contudo não estavam prontos para a visão daquele ser decaído.
–– Ainda não estou seguro. Não mereço esta confiança! ––
Max se pronunciava temeroso de seu remorso.
–– Tem a oportunidade de reverter todo o mal que fez, com o
bem. Ou prefere sofrer até que seu débito seja extinto? –– se
pronunciava Gaius com uma sobrancelha arqueada.
372
Contudo seria Tiago quem o convenceria. –– Oras. Por
séculos eu tento me aproximar de você, mas a sua dor não
permitia o amor. Estava cego de raiva. Estas criaturas precisam
saber que é possível ser feliz. –– estava sendo criança.
–– Como ser feliz quando lhes fizeram sofrer tanto?
–– Depois que tudo terminou? Por que estendê-lo? Não
seriam culpados de fazer o mesmo? O que ganham se tornando
maus?
Max readquiriu ânimo e decidiu responder por seus erros
prosseguindo para a turba estática. O capitão Sixderniers parecia
assustado com a aparição e, entre suas opções, preferiu aquela
ditada pela cólera quando disparou seu corcel contra o indefeso
traidor. O mensageiro de Jeanne não sabia que sua nova condição
emanava energias do qual ignorava a fonte.
Rommel parecia ofegar apreensivo diante da investida
solitária de seu aliado de guerra. Todo o esforço de ofensiva
parecia estagnado em seu torpor. Muitos fantasmas haviam
recuado em suas prerrogativas e ideais. O colérico se afastava da
proteção de seus batalhões para entrar em terreno neutro com a
intenção de liquidar o problema antes que a coesão dos espíritos
dominados fugisse ao controle.
A prioridade dos guardiões era evitar o confronto,
transformando o campo de guerra em palco de paz. Nenhuma
arma feriria aqueles seres doentes que precisavam de cuidados
morais. Os guardiões implementaram o plano cuja idealização
havia sido prevista por milênios e cantada em profecias e
prometida por seus cristos. Os últimos filetes de água cessavam,
trazendo o odor primaveril das árvores que floriam em uma outra
dimensão. Entretanto era uma mutação sutil, os espectros ainda
não diluíram as suas intenções de conquista geradas pelos
dragões.
Tiago se afastava para encontrar Holofernes de joelhos em
posição de reverência, ou porque precisava se aproximar dos
cochichos secretos do garoto. O grego logo após concordava,
levantando o seu olhar para onde Mateus e Sean estavam
protegidos da linha de enfrentamentos. Distante, Tiago também
piscaria e apontaria os dedos antes de seus sonoros tsc. Gaius
notava Sean com importância redobrada, pois que ele não
entendia toda aquela atenção dos espíritos que cochichavam assim
373
que o viam, e seguiu adiante com Tiago segurando sua mão
depois de uma rápida corrida entre ele e o grego.
–– Eu estarei esperando vocês lá. –– berrava Tiago
preferencialmente a Mateus. Por alguns instantes, Sean viu um
tênue cordão prateado se estendendo de Tiago.
Max já se preparava para ser atingido pela loucura do capitão
quando este parou abruptamente, atingido pela arma mais eficaz
de todas, o arrependimento. Sua mente foi invadida pelas
recordações do passado. De todo o mal consciente e aquele
obliterado. Dos amores daqueles que desapareceram de seu
convívio. Daqueles que amará pela eternidade. Onde estarão? O
choque de emoções condensadas num único momento provocou a
sua derrota, tombando inerte no campo de combate.
Desmaiou diante da verdade.
Os soldados que tentavam executar suas ordens pareciam sem
forças e recuaram. Abriam espaço porque o cavaleiro passava.
Logo atrás, algumas dezenas de metros, vinham o legionário
romano e o garoto.
Ninguém tentava nada.
Entre os exércitos, em campo liberado para os entraves de
uma luta sem trégua, espaço entre opostos, palco das manobras de
uma guerra iminente, era ocupado por luzes que coagulavam. Tais
espectros ganhavam forma como se fossem reflexos de um
espelho disforme. As hordas ínferas eram clonadas por símiles
que sorriam. Milhares de homens eram confrontados pelo reflexo
do passado. Eles estavam felizes, eles eram o que de melhor
sobrevinha de suas almas. Recordavam os melhores dias, os mais
prósperos dias de uma vida distante.
Para desespero do coronel acuado que gritava impropérios e
ordens diretas de avanço. Porém até ele era atingido pelas
emoções de um passado que tentava a todo custo esquecer.
Tentava se concentrara em seu ódio, porém não iria conseguir
manter a razão.
O cavaleiro estava a poucos metros do coronel-rei e antes que
ele fosse desferido pelo golpe fatal, Max falou: –– Como eu disse,
os dragões nada podem. Ninguém virá te socorrer nesta batalha
perdida. Desista e siga adiante. Todos estão a ponto de dar um
salto evolutivo, para tanto devem conhecer a si mesmos. Não
374
serão mais toleradas a rebeldia e a escravidão, ainda temos tempo
de reparar o mal que fizemos. Venha conosco!
–– Jamais! –– e seu último ato traria a explosão de suas
energias controladoras. Os fantasmas da legião responderam com
todas as suas forças. E foram obstruídos pelo ato de transformação
de seus pares jubilosos. Eles foram substituídos por outras
verdades. Ficaram paralisados diante daqueles que amaram e
retornavam para abraçá-los ao término de suas lutas internas.
Estavam ali para dizer que não foram esquecidos. Uma menina de
camisola desprendeu-se da proteção dos guardiões e caminhou
para um soldado que soltou sua carabina e caiu em pranto. ––
Estou tão exausto, minha filha!
–– Eu já sabia, papai! –– e a entrega se repetiu como fogo
rasteiro que consumia aqueles homens enfermiços. Muitos
guardiões choravam comovidos.
Tiago e Gaius já estavam no ponto médio daquela
aglomeração quando uma intensa luz rompeu o céu e atingiu o
couraçado que terminava de posicionar suas torres de disparo. A
energia desestruturou a nave de combate, absorvendo aquela
matéria abissal. Pois a onda atravessou-a consumindo o
mecanismo numa implosão de brilho insuportável. E antes que o
feixe se expandisse engolindo a legião, Sean viu Tiago
desaparecer. –– O que houve com Tiago?
–– Somente a força desprendida pelos vivos poderia destruir
as obras dos espíritos maldosos. –– resumia Jean.
–– Quer dizer que ele ainda está vivo? –– Mateus não esperou
a resposta e se afastava ligeiro para os túneis de Cordeliers. Antes
que Sean o acompanhasse, pôde ver os soldados sendo socorridos
e resgatados pelos guardiões. A luz que os envolveu havia
sumido, levando todas as armas e veículos que tiveram suas
estruturas dilaceradas por forças incomensuráveis. Aqueles que
ainda não estavam preparados eram libertados. Estes espalhariam
a verdade entre os seres abnegados aos senhores das Terras
Baixas.
–– Este exército não passa de um grupo avançado capaz de se
libertarem da escravidão dos seus senhores. Porém estamos em
meio de bilhões de almas menos suscetíveis, que neste exato
momento chegam aqui. –– Naxamuñaca queria que Sean soubesse
o que teriam que enfrentar.
375
–– Mas o senhor é o líder.
Tio Xaxá riu-se. –– Desta incumbência, sim. Hum. Eis que
prevalece a experiência e o respeito. Mesmo assim não possuo
todas os elementos que gostaria, não é curumim? –– e piscou de
modo a gerar mais desconfiança.
–– O que está querendo insinuar... –– o bom índio se afastava
sem mais explicações.
Tudo se estagnava. Um silêncio inimaginável cobriu as
redondezas, as águas se encrespavam movido por ventos raros.
Abria-se uma clareira luminosa onde Max se destacava no
oceano de seres entorpecidos que foram anestesiados pelas forças
superiores. Diante de si, a energia se reuniu dando forma a uma
pessoa que resplandecia sua condição angelical. Uma explosão de
ar varreu o largo recuando a água em ondas concêntricas. Sem que
ele percebesse, sempre fora o mensageiro de Jeanne, mesmo que
as insinuações tivessem sido criadas para gerar um personagem. A
padroeira dos franceses, com sua flor-de-lis bordada à carapaça de
ouro, viria buscar Max depois de longas trevas.
Ele jamais acreditaria que a bela donzela de Orleans estava
diante de si, oferecendo sua mão. Nem o mais luminar presente
estava preparado para a aparição de elevada envergadura. Enfim,
não estavam sozinhos. Os índios paravam seus afazeres para
prestar reverência à santa que emanava todo o seu amor. Todos
estavam agradecidos.
Ato contínuo, dois focos imprecisos se fixaram nos generais
adormecidos, levando-os para além. As nuvens nervosas voltavam
a se reagrupar, impetuosamente.
377
29
compromisso.
378
surpreendido por fantasmas tão chocados quanto ele. Estes
encontros acabavam atrasando-o.
Mateus havia desaparecido. Precisava chegar até lá.
Para onde olhasse, só encontrava barreiras e uma longa
distância a percorrer. Algumas gangues saqueavam e se
digladiavam nas imediações de ruelas obscuras e suspeitas. De
algumas janelas mal cerradas, cortinas tremulavam fustigadas pela
ventania exagerada.
–– Eles não precisam de mim!
–– Como pode dizer isto? –– era Guarini que se aproximava
sorrateiro em posição de guarda-costas. –– Seria imprudente se
deixasse tudo acabar assim.
E ele pensou: –– Assim como?
–– Fizemos a nossa parte. E o seu compromisso?
Sean girou encarando-o com pseudorraiva incontida –– Então
me diga qual é essa obrigação, porque eu já desisti de descobrir
qual seria...
Guarini parecia mais assustado do que o normal, o garoto
ainda não havia se lembrado. Talvez a pressa fosse realmente
inimiga da perfeição. O que Naxamuñaca e Marie pretendiam
acelerando os eventos que culminariam com este singelo combate
e que daria princípio aos mais inimagináveis conflitos entre o bem
e o mal!
Quem seria este garoto?
–– Bom, não faço ideia. Porém, pelo pouco que sabemos, é
primordial que se recorde do compromisso. Todos os guardiões
parecem concordar quanto... –– e o indiozinho parecia escolher as
palavras com cuidado. –– ao fato de que será você a enfrentar a
maior das batalhas.
–– Quando?
–– Hum. Muito em breve. –– para angústia dos dois.
E se calaram. Um só queria saber o que estava
invariavelmente acontecendo sem que pudesse lutar contra. Outro
se assombrava diante do desmesurado campo que emanava
daquele moleque, pois era evidente que ele seria muito mais
significante do que o guia quase-tibetano que o apresentara ao
mundo dos loucos por confusão. E Guarini sabia o quanto aquele
monge era respeitável. Poucos conseguiam iluminar uma casa
com suas boas intenções, aquele menino, cujo passado era uma
379
incógnita aos guardiões do bem, conseguiria acender um
quarteirão inteiro. Quem seria ele?
Um estalo desanuviaria seus objetivos imediatos. Das
profundezas do solo, um som rouco rosnava e escapava pelas
aberturas do metrô. O carro destruído ainda estava fincado na
entrada da estação Champ de Mars como havia sido deixado por
Elene. A água, que atingia alguns dedos, escorria rápida para o
seu interior em cascatas artificiais. Ondas concêntricas ainda
emanavam do epicentro do grande choque energético que
desintegrou o couraçado bélico, lavando o campo com marolas
discretas.
–– Quer se arriscar? –– perguntava Sean para o índio que se
entregou ao cansaço. Se ele queria compensar, teria que deixar o
medo de lado.
Sean deslizou pelo carro, atravessando o metal retorcido antes
de derrapar sobre o capô liso e cair de costas no piso azulejado do
saguão. O guia já estava dentro, com seu farolete, clareando os
vãos mais suspeitos. Começaram a descer alguns degraus quando
novos estalos romperam com os ladrilhos trincados voando sobre
eles.
Não passava da pressão da água forçando fissuras pela terra,
era o que desconfiavam. Quando chegaram à plataforma, que
corria como um caudaloso rio, ficaram à espera de que uma
solução viesse boiando até eles.
–– Como você espera alcançar Mateus?
Sean sorriu de modo a deixar Guarini com mais receio. ––
Quem disse que iríamos até ele? –– e o indiozinho parecia mais
amedrontado do que jamais estivera em vida ou após ela.
–– O compromisso me chama até aqui. –– e demonstrava estar
a par do assunto. Seus olhos faiscavam misteriosos.
Do escuro que refulgia as luzes do farolete contra a água, uma
silhueta se mexeu furtivamente em direção a Sean. De todas as
suposições que ainda lhe restavam, nenhuma poderia prepará-lo
para o conflito que se amoldava.
A criatura das sombras virou-se para Guarini que recuou
diante da ferocidade de suas energias. Não era capaz de manter a
sua integridade diante desta força maligna, que mesmo
aprisionada em seus calabouços vibratórios, conseguia
locomover-se próximo à superfície cegante.
380
–– Sou um dos antigos sete senhores. Nós não seremos
esmagados sob os seus pés e nem afugentados pela sua espada de
fogo. Muito menos cumpriremos as palavras dos profetas.
O ser enegrecido pelas emanações negativas deixava
transparecer as suas intenções pelo aspecto ao qual se apresentava.
Ser esquálido e cinzento, quase um escamífero, trajando uma peça
escorrida de trapos esvoaçantes que parecia viva. Pele craqueada e
olhos fundos que transmitiam sua ambição.
–– E o que o senhor deseja? –– sincero.
–– Que se mantenha longe dos meus reinos.
–– É disso que estamos falando? –– ele tinha certeza que não
era isto.
–– Você acha que somos seres vulgares, vingativos e
determinados a fazer o acerto de contas, como os fantasmas que
costuma observar? –– falou a voz da autoridade demoníaca como
num contínuo plágio de suas verdades pervertidas. –– Será que só
conhecem tais criaturas cuja natureza não difere muito da de
vocês? Impossível que não possam ir mais além em suas
observações e perceber que existimos muito antes de vocês.
Conquanto Sean se mantivesse seguro de que estava protegido
por Guarini, talvez o draconiano não o ferisse. Mesmo que ele
não desconfiasse que o índio estava preso a grilhões
imponderáveis.
–– O que eu fiz para você?
O espectro liberou sua cólera que ecoou pelas paredes curvas,
rompendo a estrutura superficial, destruindo o revestimento como
se uma criatura estrangulasse o túnel deteriorado. Vários pedaços
caíram muito perto de Sean que se deixou atingir por lascas de
azulejos. De seu rosto escorria sangue dos arranhões múltiplos.
–– Como pode sangrar? –– quem o senhor supunha que o
garoto fosse? E recuou sobressaltado com o ferimento. Jamais
pensou que mandariam uma criança mortal contra eles...
–– Pois estou vivo! E quero continuar assim. E o que você
ganha em manter o poder, o governo, a submissão de milhares de
espíritos aprisionados pela sua força de vontade? O domínio?!
–– E este é o meu reino. Por sua vez, o que tem a me
oferecer? A existência fugaz pelo esquecimento, forçado por este
corpo frágil?
381
Sean disse pausadamente para que as palavras formassem
frases coerentes: –– Eu não posso oferecer nada. Mal compreendo
as coisas que estão acontecendo. Mas posso dizer que não vejo
vantagem em ter tanto controle sobre os outros. Se eu supus
direito, os seus subordinados já estão se rebelando contra vocês.
–– Apenas uma questão de tempo para que eles recuperem a
razão. Os dragões já foram suplantados por sua audácia.
–– Que razão! Você ensinou-os a ser como os dragões. Agora
eles querem mais. Aprenderam a manipular as criaturas inferiores
e adquirir o gosto pela ganância desenfreada. Querem ser como os
pais... Eles não temem, agora querem provocar o medo.
Por um instante a criatura se calou em pensamentos
divergentes. Seu desejo era terminar com o adversário que jamais
pensou poder sangrar. –– Como sempre, vamos suprimir os
rebeldes.
–– Posso ver. Muitos acabam sendo resgatados pelos
guardiões para alívio dos senhores do mal. Contudo eu posso
dizer quais são as vantagens de manter o domínio de seus reinos.
–– o ser parecia acossado. –– Controlar bilhões de entidades sob o
jugo da dor e do sofrimento traz consequências. O temor, a
angústia, o desgaste são as tais vantagens. Vocês vivem
transtornados com o fato de que, a qualquer momento, possam ser
contra-atacados pelos filhos amargurados. Basta que a verdade...
E o menino percebeu o que o ser queria com o imediato
afastamento de seus reinos. Ele temia que seus escravos fossem
atingidos pela verdade. Que divisassem a felicidade. Estavam
todos cansados. Bastava um sinal e a estrutura de domínio se
desmantelaria. Este era o temor deste ser. Todo o seu poder se
restringia à cadeia de comando.
–– Não sou mau. Julga-se amadurecido para me fazer ver a
verdade de vocês como a única ou o ponto de vista que defende
como o melhor para todos, inclusive para mim... Venho de um
passado longínquo, contudo guardo a clareza desde a época em
que a sua humanidade ainda estava mergulhada no barbarismo.
Represento uma constelação de poder diferente da sua, cuja
política é radicalmente divergente daquela que lhes é familiar.
Aquele do qual faço parte, luta para sobreviver, tanto quanto o
de vocês. Ainda domino e impero.
382
–– O que realmente espera com isso? –– Guarini se intromete.
–– O seu egoísmo... Daí deriva todo o mal. Em todos os vícios, no
fundo há egoísmo. Devemos combatê-lo?
A criatura não soube responder.
Ela estava enfraquecida e seu orgulho não permitia ver com
clareza que suas tentativas milenares de evitar que seu reino fosse
tomado estava alimentando a extinção de seu domínio. A chama
do egoísmo não precisava ser atingida pelas luzes do alto, bastava
seu combustível escassear e ela implodiria. No entanto não antes
de causar o caos e estertores de seus últimos suspiros.
Sean aprofundou o duelo moral: –– Nem perca tempo,
enquanto der importância à personalidade ele continuará só.
Guarini não era tão sábio quanto supunham seus protegidos e
avançou contra a sombra com a intenção de resguardar Sean de
um combate perdido. Tamanha estupidez só seria compensada
pelo intuito de fazer o bem. Não obstante, ele seria anulado antes
que conseguisse arranhar a armadura negra que se desdobrava em
filetes escuros que se esgueiravam pela pavimentação.
–– Vocês não podem nada. Pela lei do retorno eu estou com a
superioridade. Eu conheço o seu compromisso.
Era justamente o que Sean aguardava que a criatura dissesse:
–– Tenho que te dizer que este já não é mais o meu compromisso.
Tenho outro muito melhor. –– e sorriu sarcasticamente. Nem
Guarini, nem o Senhor do Mal, faziam a menor ideia do que o
garoto estava falando. Porém o indiozinho pôde vislumbrar quem
legitimamente era Sean, boquiaberto diante da revelação de seu
equívoco. Como ele poderia ter se esquecido dele?
O magno capítulo desde que Daniel o profetizou.
383
29 ¾
o menor e o maior.
384
Para Marc, toda a discussão passava despercebida enquanto
combinava as cópias dos documentos num fichário bastante
considerável. Incluía os recentes rabiscos de Joshua em meio aos
supostos diagramas de suas tentativas inteiramente errôneas.
Algumas anotações de possibilidades aplicáveis seriam
resguardadas.
Todavia o herói que conseguiria descriptografar textos tão
elaborados teria que essencialmente ter menos de seis anos, senão
seria dificílimo ver a simplicidade do código.
–– Queria saber como você conseguiu ver isto! –– e apontava
as interpretações do códex ao pequeno e menor dos três. Joshua
fez o que pôde, esquadrinhou detidamente seus pais e respondeu
conforme sua condição permitia: balançou os ombros em
resplandecente divertimento.
Contra a luz, as transparências rasuradas pelo garoto eram
constantemente relidas, como querendo acreditar no que estava
diante de si. E reproduziu um gesto que Sean adorava repetir
sempre que necessário, um forte tapa na testa.
É verdade que o original documento estava em grego, ou só
os caracteres eram gregos, mas as compilações sublinhadas
permitiram criar um novo escrito em letras latinas num texto
contínuo, sem separações ou pontuações. Joshua se concentrou
nesta ininterrupta sopa de letras. Simplesmente substituiu de
forma aleatória alguns V´s por U´s e J´s por I´s, sem uma regra
definida, apenas sendo criança que brinca com algo lúdico.
Separou as letras conforme surgiam palavras reconhecíveis em
sua língua e a citação tornou-se lógica.
Surpreendentemente simples.
Contudo não respondia à maior de suas dúvidas, quem
poderia escrever em francês no século primeiro da era cristã,
usando um alfabeto de outrem? Os limites da França sequer
existiam sob a administração do império romano da Gália.
Uma observação sumária dos demais documentos excluía o
uso do mesmo sistema. Um profundo suspiro alertou Jox.
–– Sean está bem, com um velho, velho, amigo! ––
intrometia-se Jox nas discussões dos pais e nas elucubrações de
Marc. –– Precisam ter mais fé nele, oras!
385
Águas que transbordavam corriam desabaladamente onde
houvesse níveis inferiores. Todos os caminhos subterrâneos eram
reclamados por líquido tão hostil. Túneis eram sufocados e toda a
cidade era estrangulada pela indefensável armada. Aos poucos, as
luzes eram desligadas, deixando a metrópole entregue à
tecnologia dos homens das cavernas. O dia escurecia atrás das
grossas camadas de nuvens.
As galerias evacuadas do museu eram ocupadas pela invasão
da água lamacenta que jorrava como espetaculosa queda-d'água ao
saguão central do Louvre piramidal. A ferocidade carregava
alguns objetos abandonados para o ponto mais baixo daquela
estrutura escavada. Os fossos do ancestral castelo monarquial
sorviam, do mesmo modo, seu antigo posto defensivo. Mas todos
haviam fugido quando as águas lavaram os poucos papéis
deixados para trás.
386
câmara já não tão estanque. Nem todas respondiam aos esforços
desesperados. Temia que Tiago estivesse preso em uma dessas.
Prosseguia escavando a argamassa quando repentinamente
abriu-se num vão que tragou sua mão. Sua reação era de retirar o
mais rápido possível sua mão desta circunstância, no entanto
alguém se agarrou a ele. O medo instantâneo levou-o a sentir
vergonha. Tiago balançava os dedos para fora do buraco.
Ambos tinham pressa. Em pouco tempo estariam sem ar.
O desespero aumentava quando ele não conseguia forçar a
abertura. Tiago estava firmemente agarrado ao pulso do irmão que
puxava com todas as suas forças a pedra. Firmou os pés contra a
parede e tomou fôlego antes de se abaixar e dar tudo de si. Num
primeiro movimento, um dos pés trincou a laje de outro túmulo,
perdendo um pouco do equilíbrio.
De sua boca escapava todo o ar em gritos surdos.
A água gelada se misturava às suas lágrimas quentes.
392
30
393
E por amor, eram livres para fazerem suas escolhas.
Entretanto as suas ações acumulavam débitos para os quais
interferiam pesadamente naqueles que ainda não conseguiam
manifestar os seus desejos de escolhas. Chegou o momento
decisivo de serem libertados e agirem conforme as oportunidades
que um mundo novo exigia.
Guarini deu pouca, ou quase nenhuma, circunspeção ao
acovardamento do anjo decaído que estertorava diante dos
quadros vívidos daquilo que pareciam lembranças divergentes de
sua condição desvirtuada. Toda a sua concentração se restringia
em como salvar Sean de seu ferimento. Não obstante as suas
súplicas, ninguém o ouviria dentro daquela bolha energética que
começava a desmantelar-se, assim como o ser que a plasmara. A
luta interior se atribuía a dois sintomas, o remorso galopante e
desejos cada vez mais incoerentes e opostos. O desejo de manter o
seu domínio contra o desejo de regressar ao seu progresso junto
daqueles que seguiram os seus caminhos à união cósmica.
Domínio contra um passeio em família. Domínio contra a
descoberta de algo novo. O domínio contra a felicidade sem
limites.
Com um gesto inesperado, suave e decisivo, Sean tomou o
braço do indiozinho que jamais evidenciara tal fenômeno.
Desdobrado de seu corpo físico, o garoto usou os pés como
alavanca para soltar a espada de seu dorso adormecido. E a arma
ganhou novos contornos de um brilho alvo e insuportável aos
olhos das criaturas caladas nos vãos negros dos limites de um
reino fragmentado. Apontou-a para Melkireshah, –– o príncipe
das trevas, pois assim era o seu nome –– comprimido como uma
mancha disforme, e a lâmina avivou-se ondulando flamas que
agitaram ondas que expulsaram os demais vampiros do séquito do
senhor dos exércitos do mal. O império refulgiava-se em seu antro
nos abismos inescrutáveis.
E a criatura apagou-se levando as brumas de uma
luminosidade parca e variável. O som foi reduzido a um
silencioso breu. Por um instante ficaram inertes até que a espada
iluminasse o espaço liberado. O ser não havia sido destruído,
somente repelido enquanto ele era consumido pela derrota
momentânea.
394
–– A revolução começa nas entranhas da Terra! –– Sean
ditava o primeiro estágio daquele ajuste de contas. Um Labelius
ambicioso se jogou ao buraco mais próximo, assustado com a
contenda. –– Não me sinto muito bem. –– reiterava o garoto para
Guarini que estava absorto consigo.
–– Pois é o fim de um bom garoto. –– o índio disfarçava o seu
espanto.
–– Ainda não. –– voltou a ocupar o seu corpo combalido para
renascer com tosses e sangue cuspido. Seu exame do ferimento
demonstrou a Guarini que o sabre cicatrizara-a quando sua
vibração ascendeu. –– Corrijo-me, o bom garoto morreu.
Sua finalidade era fornecer sua nova realidade ao índio que
viu. Que viu quem Sean realmente é.
Entre mais tosses, ele se levantou, apoiando se com
dificuldade no entulho que se acumulava por todos os cantos. Um
dos braços, que estava preso à espada ondulante, ainda não se
acoplara ao corpo físico, deflagrando uma situação estranha com
um menino de três braços e desconcertado.
–– Posso te ajudar com isso? –– e Guarini retirou a arma e
forçou a junção dos corpos. O braço dormente era devidamente
movimentado tentando recuperar sua circulação. Milhões de
agulhadas surgiam enquanto abria e fechava os dedos que não
obedeciam. –– Está doendo?
–– O que dói é saber quem não sou mais! –– e ganhava uma
convicção irrevogável que lhe dava mais seriedade.
–– Não me preocuparia, com o tempo saberá fundir as
identidades que começam vir à tona. –– disse Guarini diante de
suas dúvidas se suportaria algo parecido.
–– Hei, não sou mais o mesmo que era. E você também. Vi
em seus olhos. –– um abatimento entristeceu-o como se o passado
tivesse trazendo um pressentimento inacabável. –– Mas não posso
deixar que eles saibam. –– gesticulando a palma da mão
desfigurada.
–– Eles saberão.
–– Ao seu tempo eles descobrirão quem sou e...
–– Temo que eles já não te olharão mais como uma criança.
Sean não parecia acreditar, porém já não era mais. Quanto
mais ele vislumbrava as artérias insufladas, ficava claro que
Joshua estaria sendo constantemente comunicado destes
395
acontecimentos. Mas por quem? Existia um rígido código de
defesa. Não tinha certeza, todavia o compromisso que sentia por
Tiago, ou mesmo Marc, encobria este sentimento mais forte e
angustiante. Como ele mesmo disse, ao seu tempo ele descobria a
verdade.
Por hora ele ocultaria o que sua mão queria pronunciar.
–– Enfim, quem venceu este combate?
O garoto pôde sorrir, depois de tanta incompreensão seria a
sua vez de tomar as rédeas. –– Sempre seremos nós. Nunca haverá
batalhas. –– sentado para recuperar as forças.
Guarini não parecia presunçoso, apalpando o seu ferimento
depois de já estar morto a décadas. –– Não parece tão fácil como
você quer me fazer acreditar! Todos estão se lançando contra nós.
–– Mas ao seu tempo, até você compreenderá. –– o garoto já
não estava preso aos seus medos ou àquilo que sua existência
presente admitia. Caminhou estonteante até a providencial
escadaria da estação abandonada e ouviu a voz sussurrante do
mendigo. Finos regatos de água continuavam a descer pelos
degraus e se estendiam até seus pés. Agradeceu o recado e pousou
os olhos na palma esquerda estendida ao invisível. Rasgou um
trapo de seu casaco úmido e cerrou-a de olhares curiosos e
indesejosos. Apesar de ter se recuperado da morte, trazia grande
quantidade de sangue embebido em seu corpo dolorido.
O indiozinho percebia que estava falando com outra pessoa e
aproveitou para entendê-lo. Sean ainda era o mesmo, porém
estava diferente e era presumível que transparecesse em sua face
amadurecida.
–– Afinal, por que está aqui? –– Guarini se precipitava.
–– Atrás de uma virtude. Supus que o amor, o respeito e a
razão eram suficientes por si só. –– segurava a pequena cruz de
madeira que adotou como um amuleto sem mágica.
–– E ela não está dentro destas virtudes?
–– Acreditava que sim. Podemos respeitar e amar as pessoas,
porém a compaixão advém de um sentimento maior. Está além do
que o homem conhece por amor. –– E ainda hoje, podia ser
mascarada por um falso sentimento de identificação com o
sofrimento de outrem, quando não passa efetivamente de um
reflexo de nossas próprias dores projetadas. Era muito fácil se
enganar.
396
–– Como descobriu isto?
–– Da pior maneira possível. –– ele não queria concluir.
O índio cedeu e se calou conformado, não iria forçar ninguém
a enfrentar os seus demônios.
O que quer que fosse Sean, teria que dizer, se quisesse seguir
adiante. –– Houve um tempo em que requeri esta compaixão,
desesperado por me fazer escutar, enquanto presenciava a
incompreensível e dolorosa revelação desta virtude. –– respirou
fundo. –– Existem coisas que não compreendemos, outras nos
ferem como flechas, mas todas deveriam nos guiar e fortalecer.
Confesso que temi o obscuro, e também conspícuo, ato de
compaixão de Jesus para com seus imoladores.
Desta vez finalizou: –– Quanto aos meus demônios, sinto te
dizer que eles acabam de ser vencidos. –– e abraçou o amigo.
Não era mais o corpo físico que ditava as impressões de seu
espírito. Sean recobrou as faculdades que deveriam ser priorizadas
pela alma imortal, inda que de forma simplória.
–– Vem comigo?
O índio ficara entorpecido, sua expressão de medo indicava
que ele não o seguiria. Sean nada faria para forçá-lo, contudo
devia sua amizade ao não desconfiado guarda-costas. –– Fiz tudo
o que me era possível para não te envolver neste dilema. Até hoje
não desconfiava o que tais recordações provocariam em você.
Tudo retrocedia a ser secreto.
O garoto precisava de muito mais tempo para absorver as suas
reminiscências na ordem e na medida de sua compreensão. Neste
instante a sua personalidade flutuava entre as impressões de
algumas vidas pregressas que precisavam se adaptar às
necessidades e desejos de um pré-adolescente ávido por música,
namoros e videogames. Estava difícil conciliar-se.
A ascensão à superfície foi penosa, considerando o longo e
exaustivo dia que tragou suas energias de reserva e além. Do lado
de fora, com o fim da torrente celestial, as águas barrentas
retrocediam lentamente aos seus leitos habituais. Demoraria dias
antes que alguém pudesse voltar a contemplar a cidade-luz em sua
urgente ostentação natalina lavada pela enxurrada. Em Alforville,
comportas cerradas, as nuvens desapareciam, ofertando um céu
iluminado pelas mais brilhantes estrelas jamais vistas desde a
revolução industrial.
397
Ao fim do trajeto, Holofernes e alguns de seus homens
isolavam o metrô fechado aos possíveis curiosos. As tais
resoluções assopradas de Tiago foram confirmadas por uma
piscadela sorridente de um soldado sempre austero. –– Por Deus
que percorreria os reinos de Hécate sem os devidos condutos...––
E recuaram desaparecendo nas névoas da noite regressiva.
Terminaram com suas obrigações.
Naxamuñaca e Gaius ficaram aparentes.
Sean deixou-se acomodar junto das grades retorcidas,
repousando o seu cansaço sem se importar com protocolos ou
reverências que existiam. De fato estava desmontando de dores e
fraquezas latejantes que o impedia de ser mais cortês com os dois.
Mas eles não pareciam se importar.
Abriram espaço para que um soldado alemão, oculto em seu
embaraço, se acercasse do garoto. Seu olhar medroso e
desconfiado para aqueles seres dignos provocou um ligeiro e
forçado riso de Sean, que a cada manifestação de gargalhadas,
seguia-se tosses cavalares.
–– Dê-a para ele, Guarini!
O rapaz se sentiu nas alturas com a entrega daquela arma. ––
E o que eu faço com ela?
–– Guarde-a onde você me deixou! –– o mirrado soldado
ajustou seus óculos não compreendendo a questão. Por pouco
quase deixou a sua falta de perspicácia alongar o diálogo noite
adentro. –– Na conexão dos mortos em Montparnasse? Ah! Sim...
Concordou se refazendo da posição incomôda que afligia os
seus músculos tensos. Estava dando nova oportunidade ao
suplicante alemão para recuperar a sua tranquilidade depois de
algumas décadas de aflição por não ter conseguido terminar o
túnel que supostamente salvaria Marc e Sarah? Que fosse.
Partiu alegre, como uma criança agraciada por um presente
tão ansiado. Enrolou o prêmio entre o casaco pardo e recuou
trombando com Gaius. Ele seria seu guardião na incumbência de
depositar aquele troféu junto de uma sepultura não rematada,
tomada de um religioso temente a Santo Exupério durante os
conturbados anos pós-guerra. Sobre a lápide daquele sarcófago de
pedra desgastada, uma folha esculpida às presas desfigurava o
acabamento primoroso feito por artesãos antes das grandes pestes.
398
A espada extraviada, cantada em muitas pretensas lendas
apócrifas e alfarrábios desconstruidos pela perpetuação humana,
surpreendia Naxamuñaca que conjeturava tudo saber. Na
silenciosa bonança de uma noite inimaginável, toma a palavra
assim que Gaius some, carregando o soldado consigo.
–– Hum. Muito bem! Terei que me contentar com as minhas
impressões do que aconteceu há pouco. –– não via nenhuma
manifestação em seu auxílio, e continuou sem elas. –– Realmente
não importa as explicações. As minhas obrigações restringem-se
ao planejamento destes socorros. Hum. Cada vez mais espíritos
libertos solicitam a nossa presença. Estamos sobrecarregados.
–– É muito pouco considerando que estas guerras alegóricas
não chegam nem perto das atrocidades que acontecem do lado de
cá. –– Naxamuñaca pressentiu que Sean mudara.
–– As mortes sempre se perpetuaram sem respeito pela vida...
–– E vai piorar. –– o garoto afirmava, não profetizava.
–– Afinal, nada de extraordinário aconteceu. Não vimos
nenhuma das leis serem quebradas. Hum. –– tio Xaxá precisava
esclarecer o que viria.
Sean tirou sarro do comentário. –– Ninguém voou e nem os
mortos puderam se furtar de suas limitações. Por enquanto nada
de extraordinário, certo?
O grande índio, em seus trajes de combate e muitas penas,
cedeu diante do mutismo e meneou em retirada. Guarini já o
acompanhava quando ouviu Sean gracejar a esmo.
399
Encontrou-se só.
Sean precisava acreditar que nunca mais estaria só. Jamais
estaria só. A escuridão atacada por acanhada luminosidade de uma
lua crescente delineava muitos objetos, mesmo que ele não
reconhecesse quais eram. Um fio prateado corria pela borda dos
edifícios calados e das árvores desfolhadas. Inconfundível, a torre
apontava para as estrelas cintilantes que coalhavam a via-láctea
que parecia equilibrada pela estrutura como um móbile bizarro.
Ao som de leves e frias rajadas de vento, se entregou ao
cansaço. Primeiro se sentou com as pernas cruzadas para deixar-se
tombar com os braços sob a nuca numa divagação desregrada de
sua mente ocupada à força. Não conseguiria manter quem era por
mais tempo.
O sistema climático cedia diante das frentes frias que
rompiam o mar báltico rumo ao continente. Em poucas horas a
água involuta poderia ser contida pelo congelamento inclemente.
E as nuvens saarianas dispersas pelos ventos cortantes
provenientes do norte desapiedado. A cidade em ruínas de velhas
moradias decadentes acordaria em estado de solidariedade com
muitas doações e voluntários dispostos a re-erguê-la. Mas mesmo
assim as pessoas seriam atingidas por angústias jamais sentidas de
uma sensação que teimava diluir. As águas seriam os primeiros
indícios dessas incertezas que viriam para ficar.
Não muito longe, passos remexiam as águas.
Girou a cabeça buscando quem.
–– A fusão de identidades, sabia que você não estaria pronto.
–– um velho em mantos apertados ajeitou-se diante de Sean.
Daquela distância o homem parecia um monge indiano. Ele
agradeceu o acerto com um ufa bem pronunciado e frouxo.
–– Pode fazer algo por mim? –– nem se mexeu.
–– Depende muito do que você pretende. Só estava pensando
em fazer companhia.
–– Apenas gostaria muito de ter asas...
–– Elas não existem, sabe muito bem.
Sean reconheceu-o de quando recomendou abrigar-se na
imaginária muralha forjada durante a fuga das Arenas, sentiu um
arrepio. –– Afinal, quem é você?
400
–– Um tolo guardião. Sou Atmatattva. –– Sean não caiu. ––
Por seu semblante, vejo que gostaria de se esquecer de tudo por
que passou, e não falo só de hoje. Quer voltar a ser só um menino.
–– Hum. Prossiga. –– Sean se entregava ao estranho.
O monge procurou sentar sobre o gradeado, equilibrando-se
com maestria. –– Posso reduzir o ritmo em que as memórias vêm.
Melhor, condicioná-las a certas ideias-chaves que as deflagrariam
no momento propício.
Quais seriam estes momentos, perguntava-se Sean
atormentado com o propício. Apostando nesta tática, já
considerava propício como precipício. Fechou os olhos pesados,
tentando afugentar aquele monge de seu poleiro.
Perdeu um bom tempo fingindo dormir. Só abriu um dos
olhos para bisbilhotar sua indignação encarando-o placidamente
tal como se mantia, empoleirada como uma ave de rapina.
–– Tudo tinha que acontecer exatamente agora?
Fungou e se aproximou do garoto com a expressão mais dura
e ajuizada que possuía. –– É que só percebeu agora. Estas
recordações já estavam surgindo muito antes de Melkireshah
aparecer. É provável que não tenha percebido até que precisasse
objetar sobre coisas ignoradas por você. Pelo visto se surpreendeu
quando as mais absurdas respostas passaram a existir.
Sean mostrou interesse.
–– Os seus amigos perceberam a transformação, ou ninguém
te chamou de convencido e distante? É só uma das fases da fusão,
fique calmo que logo passa.
Quis retrucar, e com o indicador começou a desfilar suas
desculpas. –– Primeiro, tive que aguentar os fantasmas. –– na
sequência estirou cada um dos dedos encurvados conforme a
precisão. –– Após, com pavor de enfiarem agulhas no meu
cérebro, quase entrei em coma. E aí os fantasmas começaram a
ajudar os vivos, complicando mais ainda as minhas supostas
ideias sobre uma morte com ou sem paraíso.
O velhote seguia com os hãs e huns enquanto se acabavam os
dedos de Sean.
–– Surras e perseguições de mortos. E vivos. Então aparece
Marc e os diários e o meu diário. Tumbas, evangelhos, papéis que
ninguém sabe para que servem. –– agora tinha uma leve ideia do
que seriam os documentos. –– E como fui me esquecer dos índios!
401
Faltaram dedos para seguir sua confissão. –– Até mesmo
confundir Tiago com Allan eu consegui! Não queria ver o óbvio...
O não tão religioso monge lutava contra a túnica que vivia se
descascando para baixo de seus pés trôpegos. Passou a mão no
queixo como se o depoimento fosse justo, mas: –– Por mais que
tenhamos a nítida impressão de que estas coisas são reais, nestes
tempos conturbados, lá no fundo você sabe que ainda é o medo
que lança estas desculpas esfarrapadas. –– esfarrapadas! Sean
dedicou um pouco de sua antipatia à questão. –– Não se pode
ignorar a verdade. Ela pode ser esquecida, convenientemente
esquecida, até mesmo quando ela passa a ser vista. Existe um
espírito maior do que nós e que age dentro de nossas
predisposições em fazer o bem. Você sabia onde se meteu quando
se desfez em desculpas para esta obrigação. –– inconclusivo.
–– Nunca pensei que o mundo estaria tão preso!
–– Talvez um dia tenhamos o suficiente para mudar o mundo.
Mesmo que todos continuem pensando que os diários trarão o
futuro. –– não precisavam disto. –– Milhares de mequetrefes
profetas já o fizeram com certos toques apocalípticos.
Afinal o garoto compreendia alguns pormenores ignorados
por Marc e que o faria levantar os cabelos de arrepio. Como ele
havia dito, muito já se falou do futuro. –– Assim sendo venho para
resgatar o meu passado!
–– Ele é a chave para aquilo que deve ser visto, ou revisto.
–– No way! –– um sestro que sobrevive heroicamente.
–– Do processo dependia um meio para que você pudesse
romper as travas de suas reminiscências e para isto participou
inconscientemente deste pequeno espetáculo que presenciou no
campo de guerra. Questão de esmiuçar os resultados.
Para quê? Pensava. –– Quer dizer que toda esta encenação
tinha um propósito? Qual?
Atmatattva não precisava responder. –– Não cai uma folha da
árvore sem que o Pai o permita. –– e o garoto entendeu que tudo
havia sido tão bem planejado que qualquer atitude sua contra seria
descaso para com as oportunidades almejadas.
–– Como não tenho outra alternativa! O que preciso fazer
quanto às memórias que não cessam?
–– Não pense em nada, clareie sua mente das...
402
–– Dificílimo. –– apontava para a sua cabeça que pelejava
contra o enxame de pensamentos que aportavam sem trégua nem
descanso.
–– Cante um mantra.
Sem inspiração, não se concentrava na música rouca e
monótona que o lama citava. –– Os seus sonhos dilacerados, não
deixem que prejudiquem a sua concentração. –– Grato pela deixa,
começou a se empolgar com seu mantra pessoal para adolescentes
de ouvidos surdos.
403
31
o olho atrás.
404
Mateus aproveitou o silêncio –– O que descobriu de novo?
–– O seu pergaminho –– salvo em um saco hermético –– não
é o documento-tradutor que poderia elucidar estes. –– e ergueu
seu fichário compacto que continha representações de cada um
dos mikhae descobertos. –– Pelo menos consegui ler um.
Joshua fingia dormir e abriu descaradamente um dos seus
olhos por detrás de um abrigo conveniente. Um sussurro repetia o
que um outro índio havia dito meses atrás: –– Não é bom escutar
atrás da porta, não é? –– Jox sorriu pouco se importando.
406
A pista esfriou e uma trama paralela se descortinava, um
aviador desenterrado das neves norueguesas trazia uma verdade
inconveniente. Sua morte prematura não impediu que forças
invisíveis e solidárias concluíssem a sua missão. Marc ainda se
afligia com a referência ao seu avô e, só depois, reprisaria os
arrepios quando um diário apontado por Tiago reuniria os fatos de
que: um Nick comentado na carta do aviador, seria o Nicklas
Buchhand do diário e; uma anotação datilografada na primeira
carta de Bernardo, em alemão, não era livreiro –– Buchhändler.
Suposições ajudam, contudo neste caso seriam obstáculos.
Confiar nas habilidades, sem a devida certeza, traria mais
dificuldades ao já complicado enigma do códex mikhae. Bastava
ele ter consultado um simplório dicionário escolar e as buscas por
um Buchhand em Paris seriam concluídas com uma averiguação
das Pages Jaunes. Enfim, existiam forças ocultas que traçavam
outros caminhos.
E o diário de um tal Nicklas Buchhand seria esquecido
temporariamente enquanto todos tentavam sobreviver à cólera da
natureza e dos espíritos revoltosos. Das Arenas até a enchente,
não tiveram um minuto sequer de descanso.
Agora Marc e Mateus podiam admirar a estranha guinada na
história de um documento que receberia finalmente o nome
original. De Códex Mikhae para Diários de Miguel, São Miguel
Arcanjo empalando o dragão.
O que estava escrito no reverso do evangelho de São Lucas já
era espantoso, para não dizer impossível de acreditar. A tinta e o
estilo das letras eram significantemente posteriores, bem uns cem
anos adiante. Uma inserção apropriada ao documento, ao
evangelho, e que uns rabiscos ingênuos tornariam perceptíveis.
Marc tomou a compilação e a releu enquanto Patrick
depositava Sean num catre desmontável. Em seguida o mamute
soltava fumaça pelas ventas e buscava refúgio nas florestas ao
norte. O senhor Daurat cedia o alojamento do aeródromo e nada
os impediria de chegar ao destino. A cidade madrugava com
muitas barreiras de controle e várias equipes de socorros. Aos
poucos as luzes voltavam a ser acesas na periferia da metrópole
fazendo com que um halo luminoso contornasse o horizonte
urbano.
407
Atravessando o anel periférico de Paris, deixaram a última das
barreiras com a habitual movimentação dos homens que
removiam os cavaletes estroboscópicos para a passagem do
caminhão. Gesticulavam nervosos para que eles se apressassem.
Adiante uma placa indicava a direção livre e desimpedida para
Saint-Denis.
Patrick acenou aos estranhos funcionários que usavam coletes
uniformizados dos vigili del fuoco. Estava muito cansado para se
importar com as esquisitices de uma visão desfocada pelo sono.
Procurou se adiantar.
O silêncio de estradas vazias, reforçado pelo monótono
deslocamento do veículo que não variava o seu cadenciado,
embalando-os em fantasias, fez com que os garotos continuassem
dormindo. O que teria acontecido com Sean? Todos queriam
perguntar.
Preso em suas conjecturas, por fim Mateus abre a boca e volta
a fechá-la seguidamente antes de se decidir em redarguir à questão
de Marc. –– Faz tempo que deixei de entender o que anda
acontecendo. Mas você tem certeza de que quer continuar?
–– Leu direito?
–– Hum. Hum. –– confirmava assustado, repassando o texto
pela enésima vez. –– não pode ser coincidência? –– sabia que
Marc responderia não.
A versão improvisada por Joshua era novamente aberta. As
luzes de cortesia incidiam diretamente sobre o crayon. Marc não
queria se adiantar, no entanto estava preocupado com o impacto
que os documentos causariam. O evangelho seria confirmado
pelos fragmentos dos mikhae e estes pelo evangelho. Talvez
aquela última aquisição, surrupiada de Cordeliers, fosse a chave
para a mensagem que mikhae apresentava. Existia outro mundo
com outras percepções da realidade. Existiam novas histórias para
a humanidade e os anjos decaídos.
Afinal não estavam sós.
Sean se mexeu na cama e abriu um sorriso sem acordar.
Mateus queria ouvi-lo novamente.
Marc falou em voz alta.
–– Eu sou Mikhae, filho adotado pelo coração reto de Loukás
de Antioquia. Tinha quinze anos quando morri pela primeira vez.
–– arrepiava-se impronunciável.
408
Sou Mikhae,
filho adotado pelo coração reto de Loukás de Antioquia.
Tinha quinze anos quando morri pela primeira vez.
E terminarei os meus dias quando estas palavras forem lidas
no amanhã peculiar de nossas vidas.
Quando for convocado para resgatar meus compromissos
para com o mestre que me acolheu
nos derradeiros espasmos de sua ascensão iluminada.
Nem sempre serei conhecido
e com o tempo poderei até esquecer quem sou.
Portanto, serei conciso em escrever tais memórias
que promoverão a prova irrefutável de que
nosso reino não é deste mundo.
Siga-me e me encontrará
mais perto do que supõe,
legatário.
409
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