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ANOTAÇÕES

SOBRE RELIGIÃO
E GLOBALIZAÇÃO*

Renato Ortiz

Minha intenção neste texto sintético, e de metáfora de Milton Santos –: na medida em que o
certa forma incompleto, é considerar alguns as- mundo se expandiu e encolheu, ele tornou-se um
pectos para se compreender a problemática reli- “lugar”. Isso tem implicações sobre os universos
giosa no mundo contemporâneo. Não me refiro à religiosos. Recordo que a literatura sociológica
temática em toda sua extensão, ou a questões par- tradicionalmente tem distinguido entre religiões
ticularmente complexas da religiosidade indivi- universais e religiões particulares. O universal as-
dual na vida moderna, quero apenas explorar socia-se à idéia de mobilidade enquanto o parti-
uma dimensão do problema tomando a relação cular tenderia ao enraizamento. Quando Weber
religião/globalização como foco de minha aten- afirma que as crenças mágicas são particulares,
ção. As mudanças recentes nos desafiam a pensar ele quer dizer que seu alcance se limita ao círcu-
não apenas temas novos, mas também objetos di- lo de uma localidade. Estou convencido de que o
tos “tradicionais” das Ciências Sociais, pois fenô- processo de mundialização da cultura transforma
menos que conhecíamos antes ganham muitas ve- radicalmente as noções de internacional, nacional
zes uma feição distinta no contexto atual. Minha e local. Nesse sentido, as religiões “particulares”
reflexão parte de uma premissa – para usar uma têm também seu estatuto alterado pela globaliza-
ção (penso, por exemplo, na mobilidade dos can-
domblés e dos vaudous que podem hoje ser en-
* Uma versão abreviada deste texto foi apresentada contrados em Paris, Buenos Aires, Nova York, dis-
no encontro “Os desafios da globalização”, em ju-
tantes de seu núcleo de origem). Entretanto, nes-
lho de 2000, organizado pela World Association for
Christian Communication e pelo Centro de Estudios te texto, preferi limitar-me às chamadas religiões
Avanzados da Universidade de Córdoba, Argentina. universais. Essas notas têm ainda para mim um

RBCS Vol. 16 nº 47 outubro/2001


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significado particular, pois retomo um assunto mento especulativo (teologia). Sublinha-se, assim,
com o qual iniciei minha formação intelectual ten- a dimensão individualizadora do processo, seja em
do por vários anos me ocupado do campo da so- relação à religião (ética de salvação), seja em
ciologia e da antropologia da religião. Como meus relação ao pensamento (advento da filosofia). Nes-
últimos trabalhos têm sido sobre a problemática sa perspectiva Hegel atribui ao cristianismo um pa-
da globalização,1 particularmente a mundialização pel diferenciador: sua contribuição para o pensa-
da cultura, aproveito esta oportunidade para revi- mento filosófico tendo acrescentado um grau
sitar um tema que me é familiar, abordando al- qualitativamente “superior” na evolução da cons-
guns elementos relacionados não apenas à reli- ciência humana (a teoria hegeliana é evidentemen-
gião, mas também à nossa contemporaneidade. te teleológica). Há um longo debate sobre a rela-
ção entre indivíduo e religião. Louis Dumont, por
1. Geralmente define-se como religião uni- exemplo, acredita que a noção de “individualis-
versal as crenças (judaísmo, confucionismo, bra- mo” tem sua origem no cristianismo primitivo.4 De-
manismo, budismo, cristianismo, islamismo) cuja finida em uma perspectiva puramente abstrata, a
compreensão do mundo propõe uma ética na realização do Eu se faria como negação do mun-
qual o indivíduo escolheria, com maior ou menor do, como recusa estóica da vida profana, atitude
grau de autoconsciência, o caminho de sua “sal- que iria se aprimorar nos séculos vindouros atin-
vação”.2 Weber contrapõe, de forma ideal típica, gindo sua concepção moderna com as chamadas
essas religiões às crenças “irracionais” mágicas (os sociedades “ocidentais”. Esse aspecto, amplamente
antropólogos corretamente contestam o termo discutido pela literatura filosófica, sociológica e an-
irracional quando aplicado à esfera mágico-reli- tropológica (com um razoável grau de eurocentris-
giosa), nas quais o elemento de escolha, de indi- mo), tem certamente sua importância, mas não é
viduação, estaria contido pelas exigências das di- essa a dimensão que gostaria de acentuar. Quando
vindades locais e pelas práticas do costume. Um Jaspers, e na sua trilha um autor como Eisenstadt,5
autor como Karl Jaspers considera que as religiões define o conceito de “civilização axial”, quero reter
universais tiveram um papel fundamental na his- não tanto os aspectos ético e filosófico de sua pro-
tória das sociedades humanas, elas constituiriam posição, mas o caráter propriamente sociológico.
uma espécie de ruptura com o passado até então Para ele, as civilizações axiais evoluiriam a partir de
vigente.3 Jaspers observa que em torno de 500 um eixo, um centro de irradiação capaz de abarcar
a.C. a conjunção de uma série de eventos em di- a totalidade de um amplo território. Civilizações
versos lugares, na China de Confúcio e Lao Tse, que constituiriam uma espacialidade e uma tempo-
na Índia dos Upanischadas e de Buda, na Pérsia ralidade com sentido e significado próprios. As
de Zaratrusta, na Palestina dos profetas judeus, na transformações ocorridas no plano do pensamento
Grécia dos pensadores helênicos, configuraria a e das crenças corresponderiam, assim, a mudanças
emergência de uma atitude inteiramente nova em sociais substantivas: unificação das cidades-estados
relação à vida. Para ele, a Idade Mítica, isto é, o e das tribos sob um poder integrador; constituição
tempo no qual as sociedades fundavam sua exis- das “igrejas”, instâncias burocráticas administradas
tência no discurso mítico, teria chegado a seu fim. por intelectuais (letrados chineses, sacerdotes cató-
Surgiria agora um conhecimento ancorado no sa- licos, brâmanes hindus etc.); centralização do Esta-
ber racionalizado e intelectualizado (lembro que do. Uma decorrência disso seria, após a unificação
Weber dizia que as religiões universais são sem- da China (221 a.C.), a passagem do confucionismo,
pre obras de intelectuais), cujo fundamento seria até então uma escola de pensamento entre outras,
de outra natureza. Essas transformações, que o à religião de Estado, isto é, a uma totalidade coe-
autor considera imanentes ao processo civilizató- rente de explicação do mundo e fonte legitimado-
rio, têm algumas características: “espiritualização” ra do poder imperial.6
da vida humana, supremacia do logos sobre o O que, neste caso, entender por universal?
mito, surgimento dos filósofos e de um pensa- Há primeiro a dimensão ética: o indivíduo, con-
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trastando sua imersão imediata no relato mítico, bramanismo, que pressupõe a existência de uma
pertenceria agora a um “universo”, libertando-se sociedade de castas nos moldes encontrados hoje
do peso da tradição local e escolhendo o seu pró- somente na Índia. Sua migração para outros luga-
prio “caminho”. Do ponto de vista sociológico, o res torna-se, assim, comprometida de antemão.
termo universal encerraria aspectos tais como: a) Algo semelhante ocorre com o judaísmo. Os con-
Uma oposição ao “particularismo”, ou seja, aos ceitos de “aliança” (é Deus quem faz um contrato
costumes, valores e poderes nos limites restritos com o “povo eleito” escolhendo os judeus como
das localidades. Jack Goody observa que o surgi- objeto de sua preferência e não os outros povos
mento da escrita é fundamental neste processo, da face da Terra) e de “terra prometida” atuam,
pois, contrariamente à oralidade, que se enraíza por um lado, como elementos dinâmicos de inte-
no imediatamente dado (há a necessidade cons- gração do povo judeu, por outro, como freios ao
tante de se rememorizar os eventos passados para movimento de universalização do judaísmo para
que não caiam no esquecimento), ela seria um fora de suas fronteiras particulares.9 Nesse sentido,
fator determinante na descontextualização das comparativamente ao judaísmo, pode-se dizer que
normas.7 A linguagem escrita, ao se destacar dos li- o cristianismo, ao distanciar-se da herança judai-
mites provinciais, materializando-se no texto, co-cristã, abre a perspectiva de se ampliar através
abrangeria um universo de maior amplitude sim- do mecanismo da conversão (Paulo considera vi-
bólica. b) A capacidade de integração de povos di- tal para o cristianismo a ruptura com a comunida-
versos em uma mesma norma de sentido. Por de judaica).10 Entretanto, a possível expansão das
exemplo, a civilização islâmica, cuja expansão a religiões universais não repousa apenas em aspec-
partir de uma matriz religiosa e de um idioma con- tos doutrinários, é necessário que elas se ade-
siderado sagrado, o árabe, conseguiu agregar gru- quem às exigências da história. Catolicismo e isla-
pos com tradições e origens distintas. c) O poder mismo, para se universalizarem, necessitam ser
de irradiação a partir de um centro. Este é um dos impulsionados por guerras santas e pelos interes-
traços que Eisenstadt explora em seu trabalho so- ses concretos de dominação dos impérios e das
bre a política dos impérios. Nas sociedades “pré- civilizações. As condições históricas liberam po-
modernas” (no jargão sociológico, anteriores à Re- tencialidades e impõem restrições ao movimento
volução Industrial), as religiões universais dariam dessas crenças.
solidez ideológica ao movimento de expansão im- Destaco ainda um outro tipo de limitação.
perial.8 A universalização estaria associada, assim, Gellner observa que o movimento de descontex-
à idéia de “civilização”, isto é, uma cultura fixada tualização das normas, capaz de remover os gru-
numa territorialidade ampla, integradora, capaz de pos sociais de suas localidades, de seus focos par-
se expandir a partir de um núcleo comum, “des- ticulares, integrando-os em uma totalidade mais
contextualizando” os indivíduos e os grupos so- ampla, se faz, nas sociedades passadas, de modo
ciais de suas situações historicamente demarcadas. fragmentário sendo que, no melhor dos casos, cir-
Quando tratadas em contraposição ao pen- cunscreve-se às cidades e parte dos impérios.11
samento mítico, as religiões universais surgem Para ele, as sociedades tradicionais, fundadas num
como um bloco homogêneo, mas, olhando-se de tipo de economia agrária, diferem inteiramente
mais perto, observam-se diferenças substanciais das sociedades modernas nas quais a Revolução
no destino de cada uma delas. Se a noção de uni- Industrial redefine inteiramente a própria estrutu-
versal pode ser idealmente proposta, como o fiz ra social. O mundo antigo viria, assim, marcado
anteriormente, é necessário, ao voltar-se para o por uma rígida separação entre a elite (constituí-
domínio da história, marcar os limites de sua vali- da por militares, administradores e clérigos) e as
dade. Há primeiro uma restrição de ordem doutri- demais camadas sociais (comerciantes, artesãos e
nária. Algumas religiões têm um corpo teórico, ou camponeses), os habitantes da cidade e os da
seja, um conjunto coerente de argumentos teoló- zona rural, além da enorme distância existente en-
gicos, cuja abrangência é restrita. Este é o caso do tre grupos étnicos heterogêneos que habitam
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áreas geográficas em comum. Essas sociedades volução bolchevique.13 Mas certamente predomi-
seriam, portanto, segmentadas e estamentais, nou uma visão mais simplificadora e menos sutil,
constituídas por pouco comunicantes entre si. Por conferindo à técnica, não uma primazia, mas o
exemplo, a coexistência de religiões como o ju- poder de eliminar definitivamente as crenças reli-
daísmo e o cristianismo sob a dominação islâmi- giosas. No entanto, é suficiente estarmos atentos
ca. Co-presença que implicava em uma relação de para compreender que o advento da sociedade
força, mas se fundamentava de fato em uma sepa- industrial não implica o desaparecimento da reli-
ração de “mundos” tão distintos. Ou ainda, a con- gião, mas o declínio de sua centralidade enquan-
tinuidade das crenças mágico-populares, na China to forma e instrumento hegemônicos de organiza-
confucionista, no Islão, no cristianismo da Idade ção social. Ou seja, o processo de secularização
Média, em permanente contraste e desafio à nor- confina a esfera de sua atuação a limites mais res-
ma culta imposta pelos letrados e pelas organiza- tritos, mas não a apaga enquanto fenômeno
ções religiosas. A disputa entre religião letrada e social. Nesta perspectiva, o debate sobre o desa-
religiosidade popular é uma constante na história parecimento dos universos religiosos é simples-
de todas as crenças universais.12 Nesses dois casos, mente inconseqüente. Basta lembrar que Dur-
temos claramente uma dimensão digna de ser su- kheim, quando discutia a supremacia da ciência
blinhada: a impossibilidade de se unificar a diver- sobre a religião, dizia que essa última de fato, do
sidade existente dentro de um mesmo padrão nor- ponto de vista explicativo, perdia terreno para o
mativo. Nesse sentido, o universal religioso existe pensamento científico, porém, como a ciência era
enquanto potencialidade freqüentemente contra- para ele uma “moral sem ética”, isto é, um univer-
dita pela realidade. Ao movimento de sua expan- so interpretativo incapaz da dar sentido às ações
são se contrapõem, recorrente e insistentemente, coletivas, o potencial das religiões, como forma
as forças locais separando aqueles que em princí- de orientação da conduta, de uma ética de ação
pio deveriam compartilhar um mesmo universo. no mundo, permanecia inteiramente válido.14 Na
verdade, a modernidade desloca, sem eliminá-lo,
2. A relação entre religião e modernidade foi o lugar que ela ocupava nas sociedades passadas.
amplamente discutida pelos sociólogos. Desen- O fim do monopólio religioso não coincide, por-
cantamento do mundo, secularização das institui- tanto, com o declínio tout court da religião, sua
ções e das relações sociais, separação entre a Igre- quebra significa justamente pluralidade, diversida-
ja e o Estado, emergência da ciência e da técnica de religiosa, seja do ponto de vista individual, seja
enquanto saberes secularizados, enfim, perda da coletivo (em termos lógicos não há pois necessi-
centralidade da religião como elemento de orga- dade de imaginarmos o “retorno” de algo que
nização da sociedade como um todo. Muito desse nunca expirou). A sociedade moderna, na sua es-
debate, quando mal formulado, levou a certos im- trutura, é multireligiosa.
passes, como a discussão sobre o “fim da religião” Do debate sobre a modernidade sublinho
no século XIX, e hoje, a meu ver, do “retorno” do uma dimensão pouco valorizada nos escritos clás-
sagrado. Não há dúvida de que uma leitura evo- sicos (Marx, Weber, Durkheim): a relação entre
lucionista do progresso levou inúmeros pensado- nação e modernidade. A emergência da socieda-
res a imaginar a religião como um anacronismo. de industrial não significa apenas secularização,
Diante do avanço da ciência, da técnica e da se- desenvolvimento da técnica, racionalização das
cularização, ela teria os seus dias contados. É bem esferas de saber, surgimento de instâncias políti-
verdade que o século XIX produziu também al- cas distintas, redefinição das classes sociais. Isso
guns sincretismos entre a religião e o progresso, tudo tem evidentemente um papel crucial na or-
procurando mesclar pólos aparentemente tão dís- ganização de um novo tipo de sociedade. Inúme-
pares, penso em Auguste Comte e seu culto da ras obras tratam do tema revelando as conseqüên-
Humanidade, e nos “fazedores de deuses”, como cias desta mudança radical. Entretanto, e este é o
dizia Lênin, de Lunacharski e Gorki durante a re- aspecto que me interessa, a sociedade industrial
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implica também um processo de integração eco- com os concepções anteriores que valorizavam o
nômica, territorial, política, lingüística e cultural, seu fundamento divino, e baseia-se numa ordem
que se faz em torno de um outro tipo de forma- legal que delimita uma estrutura comum de auto-
ção social: a nação. Esta última tem a capacidade ridade partilhada pelos membros de uma mesma
de aglutinar os indivíduos no seio de uma cons- comunidade. Nesse sentido, soberania e popular
ciência coletiva que os envolve e os transcende. caminham juntos, pois a legitimidade da arte de
A nação é um tipo de organização social que in- governar se sustenta pelo consenso entre os indi-
tegra grupos e classes sociais diferenciados dentro víduos autônomos. Não importa tanto, para a fina-
de uma mesma totalidade. Não apenas os integra, lidade dessa discussão evidentemente, se esses
mas os representa simbolicamente no seio desta valores tenham sido, efetivamente ou não, parti-
totalidade. Ela é forma social e representação co- lhados pela maioria da população vivendo no in-
letiva, ou, como diria Marcel Mauss, “unidade mo- terior desses Estados (existem razões objetivas –
ral, intelectual e mental”.15 A “identidade nacional” classes sociais, oligarquias, racismo, guerras – que
é pois uma construção simbólica com raízes na se contrapõem à realização desses valores). A ri-
modernidade. No advento dessa nova ordem, a gor, a conquista da cidadania é lenta, gradual e in-
religião pode ou não ser um fator de unificação. completa. Torna-se mais ampla entre o fim do sé-
Na França, devido à radicalidade da Revolução, o culo XIX e meados do século XX, com o fim da
catolicismo é secundário na constituição da nacio- escravidão, o direito da classe trabalhadora de se
nalidade. Na América Latina, as coisas se passam organizar sem coerções, o sufrágio feminino, o di-
de outra maneira. Em países como o Brasil e o reito das comunidades negras nos Estados Unidos
México a idéia de “nação católica” é uma dimen- de se exprimir livremente na vida política, mas
são importante na articulação das classes e dos mesmo assim não se estende a todos os países do
grupos sociais. Entretanto, malgrado a veracidade planeta. Importa, porém, reter que o pensamento
desses exemplos, a organização da sociedade in- Iluminista e as revoluções políticas subseqüentes
dustrial moderna, na forma de Estado-nação, não (entre elas a francesa e a norte-americana) conce-
se faz com base em valores predominantemente bem como “universal” um conjunto de princípios:
religiosos. Estruturalmente, a modernidade pres- democracia, igualdade, liberdade, cidadania. En-
supõe a vigência de outros parâmetros. Daí o con- tretanto, esta universalidade só pode existir en-
flito entre secularização e religião. quanto particularidade, isto é, conjunto de valores
Posso agora retomar o debate sobre fim do encarnados no Estado-nação. Cada nação seria,
monopólio religioso sob um outro ângulo. Filóso- assim, um “universal” em miniatura (princípio uti-
fos, cientistas políticos e historiadores nos mos- lizado inclusive nas lutas anticolonialistas, pois
tram que o Estado moderno se constitui a partir cada país reivindica a universalidade de sua auto-
de um conjunto de premissas: soberania, demo- nomia diante da opressão e do jugo colonial).
cracia, cidadania, igualdade de direitos. É claro Nesse sentido, o conflito entre Estado moderno e
que historicamente ele teve antes de conquistar religião desdobra-se na contradição entre nação e
alguns elementos fundamentais para o seu funcio- religião. Lembro que os valores pressupostos pelo
namento – centralização do poder, monopólio da legado Iluminista não eram parte do pensamento
violência dentro de uma área geográfica determi- religioso anterior. Certamente pode-se “ler” hoje o
nada, enfim, dispor de uma série de mecanismos Evangelho como uma mensagem revolucionária,
que permitissem a garantia de sua integridade (o como pretendem os representantes da Teologia
que se fez em boa parte por meio das guerras). da Libertação, ou procurar um elo filosófico entre
Contudo, os princípios de sua legitimidade, con- o Alcorão e os preceitos da modernidade, como o
cebidos como válidos no seio de sua autonomia, fazem vários intérpretes islâmicos. Mas, não nos
exprimem-se agora com uma exigência específica: esqueçamos, trata-se de leituras retroativas, feitas
devem ser “universais”, isto é, válidos para “to- a posteriori, já que definitivamente não foi assim
dos”. O Estado moderno é impessoal, contrasta que o catolicismo e o islamismo se implantaram
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historicamente. Pode-se então dizer que o movi- que conhecemos, distinto das sociedades tradicio-
mento de integração da nação desloca a capacida- nais, enquanto este “sistema” for vigente). Nesse
de universalizante da religião, retirando-lhe a sentido, não há “retorno do sagrado”. A moderni-
primazia que desfrutava anteriormente. Nesse mo- dade-mundo não se organiza segundo princípios
vimento de tensão e disputas é preciso sublinhar religiosos (o que não significa que não existam
o surgimento de um horizonte novo, constitutivo países, por exemplo, no mundo árabe, onde o
da modernidade política. Isso significa que a uni- predomínio da religião, enquanto “consciência co-
versalidade das religiões é preterida, pois, dora- letiva”, não tenha um peso capital). Apesar do flo-
vante, um outro “universal” torna-se prevalecente, rescimento de novas crenças religiosas, da inten-
realizando-se no plano de cada nação. Tudo se sificação de uma religiosidade individualizada, da
passa como se o Estado, moderno e nacional, se- vitalidade de religiões que pareciam extintas, uma
gregasse as ambições universalistas da religião. constatação se impõe: o lugar que o universo re-
ligioso ocupava nas sociedades tradicionais foi de-
3. Em que medida o processo de globaliza- finitivamente remodelado pela modernidade. En-
ção modifica ou não a posição da religião no tretanto, não se pode deixar de entender que a
mundo contemporâneo? Para isso é necessário ter ação das religiões num mundo globalizado adqui-
claro pelo menos alguns aspectos do que se de- re uma outra configuração.
nomina por globalização: a) trata-se de um pro- Tradicionalmente, a contraposição entre reli-
cesso social que atravessa os lugares de maneira gião e Estado tem sido analisada sob uma pers-
diferenciada e desigual; b) sua lógica não se ex- pectiva que acentua a posição secundária dos uni-
plica através do Estado-nação, daí falarmos em versos religiosos. De fato, o Estado-nação desloca
“sociedade global”, world system, “modernidade- a religião enquanto fonte privilegiada de integra-
mundo”; e c) a noção de espaço e de tempo é re- ção social e cultural fundando sua existência num
definida neste contexto. Não quero me alongar outro tipo de lógica. Isso se coloca claramente em
sobre as múltiplas dimensões que poderiam ca- relação à política. Na medida em que ele é o foro
racterizar melhor o problema, minha intenção é central de orientação coletiva das ações, caberia à
apenas assinalar a existência do processo e dele religião um papel menor. Este é o núcleo da dis-
tirar algumas conseqüências em relação ao tema puta entre legitimação religiosa e secularização.
aqui discutido. Até mesmo quando o Estado e a religião atuam
Dois pontos devem ser preliminarmente es- conjuntamente, a relação entre eles permanece
clarecidos. Primeiro, da mesma maneira que não separada e distinta. A noção de “concordata”, ana-
faz sentido falar em “uma” cultura global, tenho lisada por Gramsci, revela bem este aspecto.16
debatido este aspecto em diversos trabalhos, seria Quando Mussolini e o Vaticano chegam a um
um contra-senso imaginarmos a existência de acordo para uma atuação comum, o que se tem é
“uma” religião global. Na diversidade interna ao a aliança de um Estado incapaz de impor sua he-
processo de globalização, as religiões guardam gemonia para o conjunto do povo italiano, e a
suas especificidades e idiossincrasias (dizer que Igreja católica que, em troca de certas vantagens,
vivemos num mesmo mundo não significa que ele confere à ordem estabelecida um fator adicional
seja idêntico para todos). Segundo, o papel não de legitimação. O princípio da “concordata” expri-
estruturante da religião em relação às matrizes da me certamente a complementaridade de interes-
modernidade-mundo e do capitalismo global tam- ses, mas sem deixar de demarcar a exterioridade
bém não se modifica. Racionalização das esferas entre poder religioso e poder secular, garantindo
de conhecimento, predomínio da técnica no pro- a este último melhores condições para ditar suas
cesso produtivo, gestão empresarial, separação regras. O destino da nação é, portanto, aglutinado
entre Igreja e Estado, desencantamento do mun- no espaço de sua laicidade. Com a globalização
do, são conquistas da modernidade (isto é, ele- surgem, no entanto, algumas questões novas. Fa-
mentos válidos para o tipo de organização social zer política, no sentido moderno do termo, signi-
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fica atuar basicamente dentro dos marcos do Esta- curei demarcar anteriormente como o “universal”
do-nação. Governo, partidos, sindicatos, movi- da modernidade se distinguia do “universal” reli-
mentos sociais, o tem como referência principal. gioso. No entanto, é possível argumentar que
A própria política internacional se faz consideran- atualmente, para algumas dessas religiões, valo-
do-o como centro, ponto de partida. O dilema res, como cidadania e democracia, foram incorpo-
atual é que a debilitação do Estado-nação lhe rados ao discurso e à prática religiosa. Por exem-
retira poder. Sua capacidade de ação ante uma plo, a Igreja católica, seu aggiornamento, desde o
conjuntura na qual as decisões de ordem transna- concílio Vaticano II, fez com que ela deixasse de
cional são cada vez mais importantes torna-se li- compreender a modernidade como uma ameaça,
mitada. Há aqui uma mudança substancial. Com a para considerá-la uma ordem legítima. Assim, a
Revolução Industrial, o Estado-nação é pensado defesa dos direitos humanos torna-se uma premis-
como o lugar ideal para a realização do universal sa, base de uma ação política no contexto de uma
da modernidade. Em um mundo globalizado, a “sociedade civil mundial”.18 Não estou sugerindo
relação nação/modernidade cinde-se, pois a mo- que a religião seja a forma ideal, nem a mais ade-
dernidade-mundo transborda as fronteiras exis- quada, de se “fazer política” ou de se agir mun-
tentes. O que antes era visto como lugar privile- dialmente. Quero, no entanto, marcar que seu ca-
giado de universalidade torna-se pequeno, ráter universalista lhe dá outras possibilidades de
circunscrito. Ora, as religiões que estamos consi- ação; possibilidades em grande parte denegadas
derando, por sua própria natureza, transcendem ao Estado-nação. Se entendermos poder como
os povos e os Estados-nação. Esta característica, potência, capacidade de realizar certos objetivos
com o advento do Estado moderno, considerada em determinadas situações concretas, no mundo
restritiva na situação presente, torna-se uma van- contemporâneo, as instituições religiosas e as em-
tagem. Devido à sua vocação transnacional, a re- presas transnacionais, por se definirem como
ligião, pelo menos em tese, pode atuar de forma “além das fronteiras”, dispõem de pontencialida-
mais abrangente sem o constrangimento das for- des que lhes são favoráveis para agir em escala
ças locais. Digo “local” porque o termo é revela- globalizada (isso certamente irá variar com as si-
dor. Diante do processo de globalização o estatu- tuações em que estão inseridas essas instituições).
to da nação passa por uma mudança radical, ele
caminha do “universal” para o “particular”. As dis- 4. Lembro que a definição de religião, dada
cussões atuais sobre política e cultura confirmam por Durkheim, difere em muito da proposta por
esse aspecto. O debate sobre democracia num Weber. Enquanto este último a considera uma es-
mundo globalizado, independentemente de sua pécie de “empresa de salvação das almas”, Dur-
orientação (direitos humanos, ecologia, violência, kheim valoriza justamente o elemento de solida-
FMI etc.), implica a constatação de que a sobera- riedade: ela vincula os indivíduos no interior de
nia nacional é insuficiente para equacionar os te- uma “igreja”. Toda religião é, portanto, um lugar
mas da ação política.17 Se antes a nação era o de memória e de identidade. Ao congregar as pes-
espaço privilegiado de realização dos valores uni- soas, ela lhes fornece um terreno e um referente
versalistas, ela torna-se agora um problema. Suas comum no qual a identidade do grupo pode se
fronteiras são vistas como restrições anti-cosmo- exprimir. As crenças religiosas, enquanto “cons-
politas. Do ponto de vista cultural, um sutil deslo- ciências coletivas”, aglutinam o que se encontrava
camento se produz, ela deixa também de ser antes disperso. Não é fortuito que o conceito de
considerada algo “para todos” para se tornar uma “memória coletiva” tenha sido cunhado por Halb-
“diferença”. Isto é, constitui-se num “local” espe- wachs, um destacado integrante da escola dur-
cífico contrapondo-se a algo que a transcende, o kheimiana.19 A memória é uma técnica coletiva de
mundial, o global. A noção de “diferença” sobre- celebração das lembranças, aproxima o passado,
põe-se assim à de “universal”. Pode-se ainda soldando os indivíduos no seio de uma mesma
acrescentar uma outra dimensão ao debate. Pro- comunidade. Ora, como tem sido apontado por
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inúmeros autores, a temática da identidade trans- tender que os meios técnicos não propiciam ape-
forma-se radicalmente com o processo de globali- nas uma circulação mais rápida e eficiente das
zação. Ela se torna crucial. A crise das identidades comunicações. No contexto globalizado, eles ad-
nacionais abre espaço para a explosão de identi- quirem uma outra inflexão. Retomo a idéia de me-
dades étnicas, particulares, e até mesmo de dimen- mória coletiva para explicitar meu raciocínio.
sões identitárias mundializadas, forjadas no seio de Quando Halbwachs cunha o conceito, ele tem em
fluxos transnacionais de consumo. Pode-se dizer mente duas dimensões. A primeira, evidente, diz
que durante dois séculos o Estado-nação deteve o respeito à temporalidade. Praticado no presente, o
monopólio, a legitimidade em afirmar o que deve- ato mnemônico evoca as lembranças pretéritas. O
ria ser o “autêntico” destino de uma coletividade. tempo é a sua matéria. Mas ela possui uma outra
A expansão da modernidade-mundo desloca esse dimensão, às vezes, um tanto esquecida: o espaço.
privilégio. A identidade nacional torna-se uma “di- Halbwachs insiste em dizer que a memória coleti-
ferença” entre várias outras. Na medida em que a va, para se materializar, necessita encarnar-se num
religião tem capacidade de agregar pessoas em es- lugar. Ou como dizem alguns historiadores atual-
cala ampliada, criar laços sociais, ela adquire um mente, o espaço é um “lugar de memória”. Na
poder maior. linguagem, ideologia e concepção de minha opinião, quem melhor trabalhou essa di-
mundo, uma grande área territorial, vincula os in- mensão do problema foi Roger Bastide em seus
teresses e coordena as ações coletivas. Capacidade estudos sobre os cultos afro-brasileiros.21 Bastide
simbólica que se maximiza com os meios de co- quer explicar como as crenças dos escravos negros
municação. A era da informática coloca à disposi- pode se reproduzir em distintas regiões do Brasil
ção das organizações religiosas um conjunto de e da América Latina, em condições tão desfavorá-
mecanismos de alcance transnacionais até então veis de desenvolvimento. Ele parte da idéia de que
pouco usuais. Certamente elas sempre tiveram a essas crenças constituem uma memória que se
preocupação de se organizar em escala ampliada fragmenta com o tráfico negreiro. Enquanto supe-
(livros, catecismos, rádio, jornais), porém, a tecno- restrutura simbólica, para existir, ela necessita,
logia de que dispunham conhecia várias restrições. porém, encontrar um “nicho” espacial para se ma-
Mesmo a televisão tinha um raio de difusão relati- terializar. O candomblé brasileiro e o vaudou hai-
vamente pequeno, predominantemente nacional, tiano são esses nichos. Aí os deuses são celebra-
como o tele-evangelismo. Hoje, a transmissão a dos, os mitos revividos, estabelecendo um elo en-
cabo e por satélite permite que programas religio- tre os afro-americanos e seu passado africano. O
sos circulem nos lugares mais diversos e mais dis- esforço de rememorização, uma luta constante
tantes. O advento da Internet possibilita ainda a contra o esquecimento, deve portanto “localizar-
emergência de uma literatura religiosa on line (que se”, “territorializar-se”. O que Bastide, nem Halb-
se contrapõe aos jornais de circulação limitada). wachs, conheceram, foi o movimento de mundia-
Os meios de comunicação impulsionam a globali- lização da cultura, alterando a própria noção de
zação da educação teológica e a coordenação de espaço. Pode-se dizer que na situação de globali-
ações públicas (encontros, congressos, protestos zação a memória coletiva não apenas se materiali-
etc.) com uma eficiência bem superior ao passado. za num “nicho”, mas articula cada um deles pelos
A ambigüidade que o fundamentalismo islâmico meios de comunicação. A ritualização das lem-
alimenta em relação a essas tecnologias é signifi- branças já não se restringe apenas ao lugar espe-
cativa. Por um lado, são vistas como suportes de cífico da celebração, ela se estende à multiplicida-
uma “cultura ocidental” indesejável, o inimigo a de de “territórios”, parte de uma mesma comuni-
ser combatido; por outro, são instrumentos im- dade simbólica. Ou seja, a tecnologias utilizadas
prescindíveis para a propagação de suas mensa- não são meramente meios, nem mensagens, como
gens. Televisão, cassetes, correio eletrônico, ví- queria McLuhan, mas técnicas de interação social.
deos, possibilitam que toda uma cultura religiosa Elas tecem vínculos de solidariedade que transcen-
seja mundialmente difundida.20 Mas, é preciso en- dem a especificidade dos lugares.
ANOTAÇÕES SOBRE RELIGIÃO E GLOBALIZAÇÃO 67

Essas observações nos remetem novamente ação política. Não quero me alongar, porém, nes-
à questão da política. Na literatura especializada se tipo de crítica (não é este meu objetivo no mo-
a relação entre religião e política tem sido geral- mento). Chamo a atenção para o aspecto marca-
mente pensada como algo antitético. A emergên- damente disjuntivo que a literatura nas Ciências
cia do Estado moderno, secularizado, levou os Sociais estabelece entre religão e política. Não
autores a considerá-lo algo intrinsecamente asso- resta dúvida de que a dimensão de individuação,
ciado à coisa pública enquanto a religião se res- ou seja, do privado, intrínseca à modernidade, se
tringiria ao domínio do privado. Marx adota essa aplica ao universo religioso. Nesse sentido, a ace-
perspectiva ao considerar a questão judaica. O leração da modernidade-mundo reforça alguns
conflito entre fé e consciência política estaria re- aspectos “privatizantes” do homem contemporâ-
solvido desde que os judeus confinassem sua re- neo. Não é casual que o termo “religiosidade”,
ligiosidade à esfera da vida privada. O princípio utilizado para caracterizar uma fé individualizada,
aplicar-se-ia ao catolicismo, ao protestantismo, se contraponha ao de “religião” enquanto sistema
enfim, a todas as crenças religiosas. Suas manifes- coerente de crenças. Como se a inclinação pes-
tações são legítimas quando distantes da res pu- soal sobrepujasse a coletiva (por exemplo, a exis-
blica. A relação Igreja/Estado seria, nesse caso, tência de um “esoterismo” difuso entre as classes
homóloga a privado/público. Em parte essa pre- médias de países industrializados e de grandes
missa é verdadeira. A separação ensejada pela centros urbanos). Porém, como bem observa Pe-
secularização coloca certamente em situações dis- ter Beyer, o processo de globalização também
tintas o Estado e o público, a religião e o priva- favorece a religião, ampliando o campo de sua
do. Para que os princípios democráticos pudes- influência pública.23 Nesse caso, as normas reli-
sem se afirmar foi necessário distingui-los dos giosas vinculam-se a compromissos que estariam
universos religiosos. Igualdade perante a lei é um na base de ações coletivas e não apenas indivi-
direito de todos, não apenas de alguns grupos de duais. A dimensão da memória, da identidade,
fé. Isso levou, entretanto, a se pensar a existência combina-se assim à ação política, sobretudo num
de uma “esfera pública” na qual a religião estaria momento de debilitação do Estado-nação. Talvez
inteiramente excluída (afinal, trazer questões des- por isso uma certa literatura sobre relações inter-
ta ordem seria de uma certa forma privatizá-la). nacionais, para compreender os dilemas recentes,
Talvez por isso a Ciência Política tenha sempre se venha cada vez mais revalorizar o fenômeno reli-
ocupado dos fenômenos religiosos de maneira gioso (seja para promovê-lo, seja para estigmati-
periférica. A rigor, essa forma de pensar tem algo zá-lo). Por exemplo, o livro de Huttington, O cho-
de eurocêntrico. Bastaria confrontá-la a exemplos que das civilizações, no qual o fator religioso é
históricos concretos para se perceber como as determinante na definição dos interesses e dos
crenças religiosas têm muitas vezes um papel de- conflitos.24 Pouco importa aqui sua visão conser-
cisivo na vida política. O caso do confucionismo vadora e inteiramente ideológica da realidade
no Japão é exemplar. A “esfera pública”, construí- (trata-se de um intelectual orgânico da pax ame-
da em torno do Estado nacional foi, desde a re- ricana), cabe sublinhar que a religião, por sua
volução Meiji, trabalhada pelos valores de pieda- abrangência, adquire agora um peso e uma força
de filial, respeito à autoridade, conformismo às política que não dispunha anteriormente (a de-
regras estabelecidas (o culto ao imperador antes monização do islamismo pela mídia mundial é o
da derrota de 1945; a submissão à autoridade sem reverso desta valorização). Isso é possível quan-
questionamento por parte dos indivíduos).22 É im- do ela deixa de ser concebida apenas como di-
possível compreender a história política japonesa mensão da vida privada, quando religião e esfera
sem levar em conta esses elementos. O mesmo é pública não são mais pares excludentes.
válido para a Teologia da Libertação na América
Latina. Trata-se de uma concepção religiosa que 5. Um tema recorrente no debate sobre as
se insere diretamente no domínio público da religiões universais diz respeito à ética. Max
68 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

Weber, em seu livro Ética protestante e espírito ca- global e não de um processo de globalização di-
pitalista, caracteriza muito bem essa dimensão. ferenciado e desigual, no interior do qual qual-
Ele considera o protestantismo, particularmente quer unidade “universal” é sempre problemática.
na sua versão calvinista, uma interpretação capaz Ela é ainda uma leitura, bem intencionada, mas
de validar uma ação com implicações econômicas interessada e descontextualizada da história das
específicas, no caso, capitalista. O caminho da religiões. Caso sua perspectiva fosse realmente
“salvação” passaria assim pelo ajustamento do verdadeira, seria difícil entender os conflitos reli-
comportamento individual às regras ditadas pela giosos do passado, a menos que atribuíssemos
mentalidade religiosa. Ética significa, portanto, aos intelectuais uma má fé, ou talvez uma incapa-
ação, conduta ajustada a um conjunto de valores cidade em compreender os textos sagrados. Na
previamente prescritos. Não deixa de ser significa- verdade, cada universal definia-se a partir de sua
tivo constatar que nos últimos anos a discussão própria centralidade, daí os embates e as perse-
sobre a ética ressurja, e agora em termos planetá- guições (expansão da guerra santa islâmica, cru-
rios. Nos anos 90, a Unesco organizou dois deba- zadas, repressão confucionista ao taoísmo, confli-
tes sobre “ética universal” e sua relação com a te- to entre bramanismo e budismo, etc.). Entretanto,
mática da globalização (Paris, março de 1997; Ná- o aspecto que me interessa é outro. Com o encon-
poles, dezembro de 1997). O filósofo Karl Apel tro do Parlamento das Religiões Universais, reali-
tem insistido sobre a necessidade dos problemas zado em Chicago, em 1993, pode-se dizer que a
mundiais serem equacionados a partir de uma temática em pauta descola em parte de sua ori-
base comum de valores partilhados por “todos”.25 gem católica para congregar membros de múlti-
O livro de Edgar Morin, Pátria terra, exprime o plas orientações religiosas. A declaração redigida
mesmo estado de espírito.26 Como os problemas em comum, resultado das discussões conjuntas, é
ambientais existentes têm uma envergadura pla- sugestiva. Ela parte da idéia de que o mundo atual
netária, seria urgente, segundo o autor, construir- vive uma profunda situação de crise: pobreza,
mos uma plataforma comum de valores eticamen- corrupção dos políticos, desemprego, fome, con-
te partilhados. Por isso, não é surpreendente flitos raciais e étnicos, crime organizado, anarquia
assistir à emergência de um tipo de literatura, ela- nos grandes centros urbanos, drogas, colapso do
borada sobretudo por intelectuais católicos, cuja ecossistema. Em face deste quadro caótico, ela en-
preocupação central seria caminhar na direção de fatiza alguns pontos, entre os quais eu destacaria:
uma “ética global”. Hans Kung é um dos teólogos a) “que uma melhor ordem global não pode ser
mais representativos dessa corrente de pensamen- criada apenas pelas convenções e enquadradas
to.27 Para ele, exitiriam regras básicas do compor- pelas leis; e b) que os direitos sem moralidade
tamento humano que se exprimiriam em todas as não podem perdurar e que não existirá uma me-
religiões. Comparando máximas filosóficas de ho- lhor ordem global sem uma ética global”.28 Como
rizontes religiosos diversos – “O que tu mesmo os signatários do documento partem do pressu-
não desejas, não faças também a outros” (Confú- posto de que as religiões universais, na sua sabe-
cio); “Tudo que desejais que os homens vos fa- doria antiga, já possuem um conjunto de valores
çam, fazei vós a eles” (Jesus); “Nenhum de vós é éticos comuns, segue-se a conclusão: na constitui-
um crente enquanto não deseja para o seu irmão ção de um consenso planetário, na elaboração de
o que deseja para si mesmo” (islamismo) – ele vínculos morais entre pessoas que compartilham
conclui que as grandes tradições da humanidade o mesmo destino, essas religiões teriam um papel
foram sempre guiadas pelos mesmos princípios fundamental. Uma declaração de princípio é sem-
(pressupõem-se, portanto, a existência de valores pre algo que pertence ao domínio das intenções,
universais a-históricos). A proposta de uma ética uma utopia. Importa porém compreender os ter-
global é evidentemente polêmica. Vem marcada mos do debate. A declaração do Parlamento das
de um certo eurocentrismo iluminista e católico, Religiões Universais parte de uma constatação – a
além de postular a existência de “uma” sociedade manifestação de uma imensa crise político, social,
ANOTAÇÕES SOBRE RELIGIÃO E GLOBALIZAÇÃO 69

econômica – e de um diagnóstico – a insuficiên- ecológica. Cito, por exemplo, os argumentos de


cia das instituições de que dispomos em superá- um estudioso budista: “o budismo nos ajuda a
la. Ela distingue ainda a dimensão ética da esfera abrir nossos olhos espirituais e abarcar o ciclo
legal. Trata-se evidentemente de domínios que se ecológico e global. Ele nos ensina como manter
comunicam e interagem, mas cada um deles é dis- nossas vidas sem gastar os recursos preciosos, e
tinto do outro. Os participantes sabem que uma como controlar nossos desejos, o que é possível
simples afirmação de princípio não resolve os di- de acordo com o princípio budista do comporta-
lemas atuais, e o documento é claro sobre este mento espiritual equilibrado, aplicável tanto à
ponto: “certamente esta ética não implica direta- produção quanto ao consumo”.30 A sabedoria se-
mente em soluções para os imensos problemas do cular agiria assim como inibição ao comportamen-
mundo, mas ela fornece um fundamento moral to predatório do homem.
para uma melhor ordem individual e global”.29 Os textos de Leonardo Boff são também
Não se quer dizer com isso que as instituições exemplares.31 Para ele a ética dominante na socie-
existentes, o Estado moderno e os organismos dade contemporânea seria utilitária e antropocen-
internacionais desapareçam. Pelo contrário, acre- trada. Tudo se iniciaria e terminaria com o ser
dita-se na possibilidade de um melhor funciona- humano. A ecologia teria inaugurado um outro pa-
mento de seus mecanismos democráticos. Na ver- radigma, um conhecimento eco-centrado, no qual
dade, a declaração apresentada é politicamente a relação homem/natureza encontraria um ponto
progressista ao enumerar as adversidades e as de- de equilíbrio. Sua interpretação do Evangelho pri-
sigualdades de nosso tempo. Ela abraça, sem he- vilegia assim a existência de um Deus ecologica-
sitar, a causa de uma “sociedade civil mundial”. mente orientado. O universo divino e o planeta
Decorre, porém, da argumentação desenvolvida, a Terra holisticamente se fundiriam no mesmo cos-
conclusão de que as instituições legais para mos, visão fundadora de um novo paradigma e,
funcionarem adequadamente necessitam de um por conseguinte, de outra maneira de ser. A idéia
fundamento moral, ou melhor, religioso. Nesse de holismo é importante. Ela media a visão inte-
sentido, a política deixa de ser uma atividade au- gradora do pensamento ambiental – todas as par-
tônoma (por exemplo, a realpolitik) para se enrai- tes do planeta estão vinculadas ao mesmo ecossis-
zar em algo que lhe é anterior e lhe dá sustenta- tema – e o caráter abrangente da unidade divina.
ção: a ética. Encontramo-nos, portanto, no pólo Diante do processo de globalização, um
inverso da situação tradicional, em que a religião pensador protestante propõe uma releitura da no-
se apresentava como uma dimensão secundária ção de “ecumenismo”.32 Deixando de lado, sem
do “fazer política”, pois a incapacidade dos meca- desconsiderá-lo, o significado usual do termo, ge-
nismos legais em controlar e estabelecer uma or- ralmente empregado quando se fala em diálogo
dem mundial é vista como uma insuficiência subs- entre religiões, ele insiste na origem grega da pa-
tantiva, não apenas ocasional. O discurso religio- lavra. Oikos significa casa, lar, morada. Integrar a
so redimensiona o papel das religiões na esfera natureza ao pensamento “ecumênico” seria consi-
pública e reclassifica (talvez fosse correto dizer derar a Terra o oikos, isto é, nossa casa, a raiz na
desclassifica) a política. qual todos comungariam. Somente desta maneira
Discutir em termos de ética global significa poderiam os homens viver em paz. Lembro que
levantar a questão da ação em âmbito planetário. Max Sorre há muito havia retomado o conceito de
Sabemos que toda identidade é uma construção oikoumene para descrever como as diferentes so-
simbólica que se faz em relação a um referente. ciedades se encontravam localizadas num deter-
Há certamente uma multiplicidade de referentes: minado espaço.33 À cada grupo social, inserido
étnicos, nacionais, de gênero etc. As religiões uni- num hábitat específico, corresponderia uma
versais para construírem suas novas identidades “casa”, ou seja, sua raiz cultural. O mundo seria
necessitam de um referente global. Daí a íntima composto por uma diversidade de culturas ocu-
relação que se estabelece com a problemática pando cada uma delas o seu “meio ambiente”. A
70 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

interpretação sugerida anteriormente, para dar da manifestação nos filmes, nas canções, nos arte-
conta do quadro de mundialização, tem necessi- fatos, nos apelos sexuais, é “perversa” e persuasi-
dade de deslocar a noção de oikos de sua particu- va, “invade” a intimidade do crente, do seu lar (a
laridade cultural para o que existiria de comum. A prova, dizem os religiosos, é a crise da família na
“casa” de todas as culturas já não pode mais ser o sociedade “ocidental”). Corretamente Bryan
solo geográfico de cada uma delas, mas a “pátria Turner observa que o consumo oferece uma pro-
Terra”, para falarmos como Morin. O planeta, na messa de vida que contradiz e compete diretamen-
sua fixidez, conseguiria assim conter o movimen- te com a conduta rígida e ascética exigida pelo fun-
to de desterritorialização inerente à globalização, damentalismo islâmico.35 Sua condenação é pois
inserindo os homens numa só “comunidade”. É uma conseqüência lógica do embate entre “espiri-
sempre pertinente discutir em que medida essas tualismo” e “materialismo de mercado”. Aceitá-lo
perspectivas são realmente viáveis ou integram seria minar a legitimidade do saber religioso, abrir
apenas uma visão religiosa do mundo. Quero po- uma brecha no monopólio de interpretação cano-
rém ressaltar que o vínculo entre religião e ecolo- nizado nos moldes tradicionais e modernamente
gia não é fortuito. Trata-se de referentes simbóli- reinterpretado pelo fundamentalismo. Mas seria
cos planetários em torno dos quais é possível este o antagonismo específico do mundo islâmico?
organizar uma conduta “universal”, isto é, de am- Resultado talvez de uma “intolerância” específica
plitude global. O mundo/planeta, e não apenas os em relação ao “Ocidente”? Creio que não, e há ra-
“mundos” diferenciados de cada religião, é o pal- zões para se pensar assim. O caso do Japão é sin-
co da ação coletiva e da conduta individual. Ética tomático. Sabemos que os valores confucionistas
e moral, preocupações antigas, são agora equa- – piedade filial e disciplina – reinterpretados no
cionadas em termos mundializados. contexto da modernidade foram fundamentais na
Tem-se assim que determinada proposta de elaboração de uma ideologia do trabalho e na
universalidade se choca com outras, de igual al- emergência do Estado nacional.36 Em sua origem,
cance, mas de natureza diversa. Um exemplo se- a modernidade japonesa tem uma dívida com a
ria o antagonismo entre islamismo e consumismo. religião. Mas nos esquecemos, isso é um testemu-
Um autor como Akbar Ahmed, a partir de seu nho do passado.37 A tradição confucionista distin-
ponto de vista islâmico, capta muito bem esse as- gue claramente entre duas noções opostas: oyake
pecto ao contrapor o shopping à mesquita. O e watakushi. A primeira define um conjunto de
shopping seduz, estimula os sentidos, imerge o in- qualidades pertinentes ao homem sábio: frugali-
divíduo no reino das coisas oferecendo-lhe a sen- dade, conduta equilibrada, aperfeiçoamento pes-
sualidade das oportunidades.34 Em contraste, a soal, dedicação ao trabalho, obediência aos mais
mesquita anula sua corporeidade e retira-o do velhos, ao chefe da família, aos governantes. Oya-
fluxo cotidiano. Sua arquitetura imponente im- ke representa o equilíbrio entre o homem e as leis
pressiona, o transcende, revelando sua condição da natureza, a dosagem correta entre sua volição
finita diante da imensidão de Deus. No shopping e a vontade divina. Watakushi é seu oposto. A
prevalece o hedonismo, a realização imediata dos vida é uma luta incessante contra seus apelos in-
desejos – “I want and I want it now” seria o seu sidiosos interpondo-se entre o indivíduo e a sen-
lema – na mesquita, eles estão suspensos, asceti- da de sua perfeição. Ele é pois desequilíbrio, gas-
camente contidos pela emanação divina. Ela é lu- to inconseqüente de energia. O mundo do consu-
gar de oração, de predicação, onde o fiel atenta- mo ilustra a tirania dos desejos egoístas, do passa-
mente escuta os sermões que lhe ensinam a luta geiro em relação ao duradouro. Essa verdade éti-
eterna entre o “bem” e o “mal”, o Islão e o Oci- ca (fundamental em determinado momento da
dente. O mundo feérico dos objetos é portanto história para a construção de um vínculo orgâni-
um anátema, tentação demoníaca a ser evitada. co entre Estado, capital e trabalho) é, no entanto,
Ele não é simplesmente algo imóvel, fixo, confi- redefinida com a emergência de uma sociedade
nado a limites precisos; esse é o perigo, sua flui- de consumo a partir de meados dos anos 50, e
ANOTAÇÕES SOBRE RELIGIÃO E GLOBALIZAÇÃO 71

particularmente com as transformações dos anos contrapondo-se a outras moralidades de enverga-


70. Neste contexto de expansão econômica (auto- dura mundial.40 Por isso a crítica e a denúncia do
móveis, computadores, jogos eletrônicos, karaokê, consumismo são uma constante no discurso das
viagens ao exterior, entretenimento), a contenção, mais diversas religiões. Tanto nas pregações ofi-
a frugalidade, deixam de ser vistos positivamente; ciais da Igreja católica, condenação do egocentris-
consumir torna-se uma “virtude” (assim diziam as mo individualista pelo Papa, quanto no atual pen-
publicidades dos anos 60: “consumir é uma virtu- samento neo-confucionista, nos deparamos com
de”). O watakushi do reino dos objetos perde sua argumentos semelhantes em relação ao avanço
conotação negativa para se constituir na expressão “materialista”, enfim “desumano”, do mercado
do sonho de “todos” Por isso muitos dizem que o (para evitar possíveis mal-entendidos sublinho
Japão vive atualmente uma crise de moralidade. A que não tenho nenhuma predileção pela ideolo-
“velha” ética do trabalho, da disciplina, do respei- gia neo-liberal celebrativa do mercado global).
to aos mais velhos, da dedicação à firma é agora Um autor como Tu Weiming quer inclusive apro-
contestada pelo hedonismo “materialista”.38 Situa- ximar os pontos comuns entre o confucionismo e
ção que se repete na China. Já não se trata apenas o islamismo, procurando revitalizá-los como fonte
da tensão entre modernidade comunista e valores espiritual “alternativa” para a humanidade.41 A lite-
religiosos, isto é, da emergência da técnica, da ratura produzida pelos teólogos católicos e pro-
ciência e do Estado moderno. As transformações testantes é repleta de exemplos análogos. Eles nos
recentes trazem uma nova dimensão: “a globa- explicam que a instituição mercado existe de lon-
lização da cultura, via mídia, novas formas ga data na história das sociedades humanas, e
poderosas de arte, e a rápida comunicação, ques- nada há de errado nisso. Porém, no passado, sua
tionam, ou melhor, minam as qualidades cultiva- existência era “guiada” por outras forças: a tradi-
das pelo confucionismo. Essas qualidades são con- ção moral, as restrições legais e sobretudo as con-
sideradas demasiadamente exigentes pelos jovens cepções religiosas. O mercado global seria no
e, a menos que sejam reinterpretadas em termos entanto o contrário disso tudo, funcionaria sem
modernos, re-embaladas numa retórica moderna, nenhum “freio” – Prometeu desacorrentado, “dis-
dificilmente serão atrativas para as futuras gera- solvendo tudo que é sólido no ar”. Um desses au-
ções de pessoas educadas”.39 tores acrescenta: “como teólogo cristão sugiro que
É comum percebemos o consumo como a ‘religião do mercado’, que é a substância do
algo exclusivo ao reino material, uma mera apro- mercado global, de uma perspectiva cristã é clara-
priação dos bens, escolhidos segundo o gosto e as mente uma idolatria – uma ‘falsa religião’ –, mas
inclinações de cada um. Na verdade, ele pressu- que em vez de combatê-la, como fizeram os pri-
põe uma ética, uma disposição alimentada pelo meiros cristãos em Éfeso, eles hoje, freqüente-
imaginário coletivo. A publicidade não é apenas mente, são coniventes com ela, e algumas vezes
uma técnica de venda, ela o foi no passado; nas até mesmo a sacralizam”.42 A passagem é sugesti-
sociedades contemporâneas, é fonte permanente va mas antes de comentá-la cito ainda uma outra.
de exemplaridade, estilos de vida, normas de con- Criticando a separação que os economistas fazem
duta. Como as religiões, o consumo é um univer- do mercado de outras instituições sociais, como se
so repleto de signos e de mitos, um “mundo” com ele constituísse uma entidade autônoma, integra-
particularidades e exigências próprias. Trata-se de da, com leis e regras próprias, outro pensador re-
um universo de abrangência planetária que cons- ligioso nos recorda, caso isso fosse verdadeiro,
titui uma verdadeira cultura “internacional-popu- que “Deus estaria afastado das coisas dos ho-
lar”, graças aos meios de comunicação, à indústria mens”. E pondera: “o que separa a teologia mo-
cultural, às corporações transnacionais, aos ídolos derna da teologia tradicional é a tendência de se
da música pop e às estrelas de cinema. Como nos pensar Deus de uma forma que deixem intactas as
diz Baudrillart, o consumo é uma “moral”, requer leis de mercado. Na verdade, falar de Deus, nas
uma forma de conduta, ao que eu acrescento, condições assumidas pela teoria da liberdade na-
72 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

tural e pelas leis do mercado moderno, significa postulado, pode-se evidentemente indagar sobre
que Deus pode apenas ser aquilo que a ideologia sua natureza e seu destino. Desconfio porém desta
moderna do mercado lhe permite ser”.43 Há nes- perspectiva, prefiro alinhar-me entre aqueles que
sas passagens um nítido contraponto entre a von- pensam o “universal” como algo historicizado,
tade divina e o mercado global. Elas surgem como imerso nas situações concretas das organizações
disposições disjuntas e em tensão. Outra dimen- sociais e das relações de poder. Nesse sentido, não
são também importante é o fato de o mercado ser há “o” ser humano, mas sociedades distintas nas
percebido como uma “religião”, tema recorrente quais homens e mulheres encontram-se inseridos.
entre os escritores religiosos. Do ponto de vista A temática do universal, enquanto sinônimo de de-
teológico existem boas razões para que esta apro- mocracia, igualdade e cidadania (valores que pes-
ximação, à primeira vista surpreendente, seja de soalmente prezo muito) é, portanto, uma proble-
alguma maneira convincente. O mercado global mática “particular” do “universal” da modernidade.
contém duas qualidades freqüentemente associa- Dificilmente poderíamos projetá-la no passado
das à herança religiosa: transcendência e omni- (Moses Finley critica a impropriedade de certos es-
presença. Sua globalidade transcende os indiví- tudos históricos quando aplicam à sociedade grega
duos, as classes sociais e as nações, envolvendo a o conceito de democracia), e se o fazemos em re-
todos no seio de uma mesma integralidade. Seu lação ao futuro, de uma certa forma utopicamente,
domínio não conhece fronteiras, abarca o planeta é porque o imaginamos relativamente próximo às
por inteiro; homens, povos, natureza, a ele são formas que conhecemos. Porém, independente-
submetidos. A universalidade do mercado, ou mente do partido que se toma, a reflexão sobre as
seja, sua extensão confere-lhe a dimensão de religiões nos permite compreender como esse de-
totalidade (e muitas vezes de totalitarismo). A bate, longe de ser algo ultrapassado, como pensa
transcendência é, contudo, sempre abstrata, algo uma certa literatura pós-moderna, é pertinente e
latente; para se realizar ela deve manifestar-se no atual. O advento da globalização reinsere a legiti-
mundo, afirmar sua omnipresença. A transcen- midade dos “grandes relatos” no contexto contem-
dência do mercado perpetua-se através do consu- porâneo, invertendo um pouco os prognósticos fei-
mo, este é o ato que a situa, a singulariza, inserin- tos por Lyotard. Um mundo global, para ser com-
do o indivíduo no seu ser. Metaforicamente eu preendido, e para se constituir num espaço de ação
diria que o consumo torna coetânea a presença na política, leva necessariamente à elaboração de um
transcendência. Entretanto, tais virtudes nada têm entendimento “universal”, abrangente, totalizador.
de “verdadeiras”, falta-lhes um fundamento onto- A afirmação das “diferenças”, embora importante,
lógico, sagrado, por isso o mercado se apresenta não é suficiente para dar conta da situação presen-
como uma “falsa religião”, e sua adoração, uma te. Certamente os “relatos” produzidos, por forças e
“idolatria”. Religião e mercado surgem assim interesses distintos, muitas vezes antagônicos, não
como entidades morais mundiais, concorrentes e são análogos nem coincidentes. Há diferenças
conflitantes. Cada um com seus deuses, suas exi- substanciais entre a perspectiva neoliberal – uma
gências, sua ética. A condenação proferida pelo apologia do mercado –, a proposta ecológica (tal-
saber teológico não é pois um dado ocasional do vez fosse mais correto dizer “as propostas”, no plu-
confronto desta ou daquela crença com o “mate- ral), as visões religiosas e um eventual neo-socialis-
rialismo” do mundo. Ela é uma necessidade, ex- mo. Entretanto, cada uma dessas narrativas se arti-
primindo a presença de concepções de mundo culam enquanto “universalidade”, isto é, sua ampli-
em disputa no cenário mundial. tude é mundial. Utilizando uma expressão de Fou-
A discussão sobre o universal é sempre difícil cault eu diria: elas são “regimes de verdade” que
e controversa. Muitos filósofos e pensadores reli- planetariamente buscam afirmar sua validade. Seus
giosos acreditam na existência de um “ser huma- universais historicizados coexistem, se complemen-
no”, substrato transcendente ao espaço e ao tem- tam, e certamente competem entre si. O mundo é
po, às culturas e à história. Uma vez aceito este o cenário de sua materialização.
ANOTAÇÕES SOBRE RELIGIÃO E GLOBALIZAÇÃO 73

NOTAS ci/Weber: contribuições para uma teoria da religião”


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Andrès Bello, 1998; O próximo e o distante: Japão e Cambridge, Polity Press, 1997.
modernidade-mundo, São Paulo, Brasiliense, 2000.
18 Consultar entre outros José Casanova, “Global ca-
2 Consultar Max Weber, Economia y sociedad, Méxi- tholicism and the politics of civil society”, Sociologi-
co, Fondo de Cultura Económica, 1984. cal Inquiry, 66 (3), 1996.
3 Karl Jaspers, Origen y meta de la historia, Barcelo- 19 Maurice Halbwachs, La mémoire collective, Paris,
na, Ediciones Altaya, 1994. Jaspers escreve dentro PUF, 1968.
de uma perspectiva teleológica na qual a história te-
20 Ver B. G. Tabrizi, “Postmodernity and the emergen-
ria uma meta, um objetivo. Sei que esta proposta é
ce of Islamist movements”, International Review of
altamente comprometedora e insatisfatória, entre-
Social History, 42, 1997.
tanto, não foi esse o aspecto que me interessou em
sua argumentação. 21 Roger Bastide, As religiões africanas no Brasil, São
Paulo, Edusp, 1971.
4 Louis Dumont, Essais sur l’individualisme: une pers-
pective anthropologique sur l’idéologie moderne, Pa- 22 Ver o brilhante trabalho de Masao Maruyama, Essai
ris, Seuil,1985. sur l’histoire de la pensée politique au Japon, Paris,
PUF, 1996. Consultar ainda Y. Shinichi, “Le concept
5 Ver S. N. Eisenstadt, Fundamentalismo e moderni- de public-privé”, in H. Yoichi e C. Sautter (orgs.),
dade, Oeiras (Portugal), Celta, 1997. L’état e l’individu au Japon, Paris, École des Hautes
6 Ver Max Weber, The religion of China, Nova York, Études en Sciences Sociales, 1990.
Free Press, 1964. 23 Peter Beyer, Religion and globalisation, Londres,
7 Jack Goody, A lógica da escrita e a organização da Sage Publications, 1997.
sociedade, Lisboa, Edições 70, 1987. 24 Hunttington, Clash of civilization and the remaking
8 S. N. Eisenstadt, The political systems of empires, of world order, Nova York, Simon e Schuster, 1996.
Nova York, Free Press, 1969. É justamente este aspecto que o teólogo alemão
Hans Kung, contrário à visão de Hunttington, valo-
9 Sobre este ponto ver Theodore E. Long, “Old testa- riza em seu livro, o peso que a religião adquire na
ment universalism”, in R. Robertson e W. Garret atualidade.
(orgs.), Religion and global order, Nova York, Para-
gon House Publishers, 1991. 25 Karl Otto Apel,”Globalization and the need for uni-
versal ethics”, Europeam Journal of Social Theory, 3
10 Consultar Jean Daniélou, L’église des premiers temps, (2), 2000.
Paris, Éditions du Seuil, 1985.
26 Edgar Morin, Terre patrie, Paris, Seuil, 1993.
11 Ernest Gellner, El arado, la Espada y el libro, Méxi-
co, Fondo de Cultura Económica, 1992. 27 Hans Kung, Uma ética global para a política e a eco-
nomia mundiais, Petrópolis, Vozes, 1999. Ver ainda
12 Sobre este confronto ver Pierre Bourdieu, “Uma in- R. Mancini et al., Éticas da mundialidade: o nasci-
terpretação da religião segundo Max Weber”, in mento de uma consciência planetária, São Paulo,
Economia das trocas simbólicas, São Paulo, Pers- Paulinas, 2000.
pectiva, 1975.
28 A Global ethic: the declaration of the parliament of
13 Ver A. Lunacharski, Religione e socialismo, Rimini, the world religions, Continuum, Nova York, 1993,
Ed. Guaraldi, 1973. pp.18-19.
14 Émile Durkheim, Les formes élémentaires de la vie 29 Idem, p.18.
religieuse, Paris, PUF, 1970.
30 S. Hosaka e Y. Nagayasu, “Buddhism and japanese
15 Marcel Mauss, “La nation”, in Oeuvres, t. 3, Paris, economic ethics”, in Paul Minus (org.), The ethics of
Minuit, 1969. business in a global economy, Kluwer Academic Pu-
blishers, Boston, 1993.
16 As observações de Gramsci sobre a religião são par-
ticularmente sugestivas e encontram-se espalhadas 31 Leonardo Boff, Nova era: a civilização planetária,
em sua obra Quaderni del carcere, Torino, Ed. Ei- São Paulo, Ática, 1994. Ver também, Ecologia, mun-
naudi, 1975 (4 vols.). Ver ainda Renato Ortiz, “Grams- dialização e espiritualidade, São Paulo, Ática, 1993.
74 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

32 M. Douglas Meeks, “Globalization and the oikoumene


in theological education”, in Russel Richey (org.),
Ecumenical & interreligious pespectives: globalization
in theological education, Nashville, The United Me-
thodist Board of Higher Education and Ministry, 1992.
33 Max Sorre, Les fondements de la géographie humai-
ne, Paris, Armand Collin, 1954.
34 Akbar S. Ahmed, Postmodernism and Islam, Lon-
dres, Routledge, 1992.
35 Bryan Turner, Orientalism, postmodernism globa-
lism, Londres, Routledge, 1994.
36 Ver entre outros Michio Morishima, Capitalisme et
confucionisme, Paris, Flammariion, 1986.
37 Consultar Renato Ortiz, O próximo e o distante: Ja-
pão e modernidade-mundo, op.cit.
38 Ver N. Inoue (org.), Globalization and indigenous
culture, Tóquio, Institute for Japanese Studies and
Classics, Kokugakuin University, 1997.
39 Wang Gungwu, “The significance of confucianism in
Chinese culture: past and present”, in Osman Bakar
(org.), Islam and confucianism, Kuala Kampur,
Centero for Civilization Dialogue, University of Ma-
laya, 1997, p. 201.
40 Jean Baudrillart, La société de consommation, Paris,
Ed. Denoel, 1970.
41 Tu Weiming, “Towards a global ethics: spiritual im-
plications of Islam confucianism dialogue”, in Islam
and confusianism, op.cit.
42 Harvey Cox, “Pentecostalism and global market cul-
ture”, in M. W. Empster et al. (org.), The globaliza-
tion of pentecostalism, Irvine (Califórnia), Regnun
Books International, 1999, p. 388.
43 M. Douglas Meeks, “Global economy and the globa-
lization of theological education”, in A. F. Evans et al.
(orgs.), The globalization of theological education,
Maryknoll (Nova York), Orbis Books, 1993, p. 249.
180 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

ANOTAÇÕES SOBRE RELI- NOTES ON RELIGION AND NOTES SUR LA RELIGION ET


GIÃO E GLOBALIZAÇÃO GLOBALIZATION LA GLOBALISATION

Renato Ortiz Renato Ortiz Renato Ortiz

Palavras-chave Keywords Mots-clés


Religião; Mundialização; Globaliza- Religion; Globalization; Modernity; Religion; Mondialisation; Globalisa-
ção; Modernidade; Ética. Ethics. tion; Modernité; Étique.

O texto analisa a relação entre reli- The text analyzes the relationship Le texte analyse la relation entre la
gião e globalização. O autor parte between religion and globalization. religion et la globalisation. L’auteur
da noção de religião “universal” The author departs from the “uni- part de la notion de religion “univer-
procurando compreender como seu versal” notion of religion, trying to selle”, et cherche à comprendre
significado se transforma ao longo understand how its meaning chan- comment sa signification se transfor-
da história. Com o processo de glo- ges throughout history. With the me tout au long de l’histoire. Avec le
balização, rompendo o elo entre Es- globalization process, breaking the processus de globalisation, qui
tado-nação e modernidade, a reli- link between the Nation-State and rompt le lien entre l’État-nation et la
gião é redefinida enquando fenôme- modernity, religion is redefined as a modernité, la religion est redéfinie
no social. Sua abrangência, devido à social phenomenon. Its scope, due en tant que phénomène social. Son
sua “universalidade” e acoplada aos to its “universal aspect” and its con- étendue, due à son “universalité” et
novos meios tecnológicos, ultrapas- nection to the new technological accouplée aux nouveaux moyens
sa as fronteiras nacionais, permitin- means, surpasses national borders, technologiques, dépasse les frontiè-
do que sua atuação se desenvolva allowing a performance in a plane- res nationales, permettant que son
em escala planetária. Nesse contex- tary scale. In this context, universal rôle se développe sur une échelle
to, as religiões universais devem religions should compete not only planétaire. Suivant ce contexte, les
competir não apenas com outros with other religious credos, but also religions universelles doivent con-
credos religiosos, mas também com with other worldwide proposals of courir non seulement avec d’autres
outras propostas mundializadas de conduct orientation, such as the uni- croyances religieuses, mais aussi
orientação da conduta, por exemplo verse of consumption. The relations- avec d’autres propositions mondiali-
o universo do consumo. A relação hip between religion and politics sées d’orientation de la conduite
entre religião e política também se has also been modified, in the sen- comme, par exemple, l’univers de la
modifica, na medida em que as reli- se that universal religions are consi- consommation. La relation entre la
giões universais se consideram insti- dered to be privileged institutions religion et la politique se modifie
tuições privilegiadas para as quais for which ethical actions in the également, dans la mesure où les re-
uma ética de ação no mundo seria world could be defined. Rethinking ligions universelles se considèrent
definida. Reinterpretando o passa- the past, the religions can define a des institutions privilégiées pour les-
do, as religiões conseguem definir new field of action, distinct from the quelles une étique d’action dans le
um novo campo de atuação, distin- restrictive relationship that existed monde serait définie. Les religions,
to da relação restritiva que existia previously to the advent of moder- en réinterprétant le passé, arrivent à
anteriormente, com o advento da nity and the confinement of reli- établir un nouveau champs d’action,
modernidade e o confinamento das gions to the private sphere. distinct de la relation restrictive qui
relgiões à esfera privada. existait antérieurement. Ceci est dû
à l’avènement de la modernité et au
confinement des religions dans la
sphère privée.

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