Vous êtes sur la page 1sur 58

Título: Casamento no natal

Autor: Helen R. Myers


Título original: To wed at christmas
Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1997
Publição original: 1994
Género: Romance contemporâneo
Digitalização e correção: Nina
Estado da Obra: Corrigida

Uma noiva no Natal


Harmony Martin não pensava em se casar, pois o único homem da cidade que a atraía era David Shepard... Um
amor impossível. Portanto...
Um noivo no Natal
David Shepard cultivava uma paixão a distância por Harmony Martin. A inimizade entre a família de ambos o
obrigava a agir assim. Mas isso não o impediria de sonhar com o dia em que a teria nos braços para sempre.
Casamento no Natal?
A união entre um Shepard e uma Martin era considerada impossível por todos os habitantes de Appleton. Mas o
Natal não era uma época de milagres?
Convite de Casamento
Você e sua família estão convidados
a participar da cerimónia de
casamento de
Harmony Martin
e
David Shepard,
a realizar-se no dia de Natal,
às onze horas da manhã, na Igreja Matriz de Appleton.

CAPITULO I

O fato aconteceu da maneira que sempre ocorrem os assaltos: rápida e inesperadamente.


Num momento, David Shepard caminhava devagar pela rua, observando as pessoas paradas em frente às
vitrines bem iluminadas. Conversas animadas, risos e músicas alegres pairavam no ar. No momento seguinte, o
som de um grito cortando a noite foi como uma cortina que caísse pesadamente sobre aquele clima de festa.
Era a voz dela. Isso David podia reconhecer, com cada fibra de seu corpo, embora o som lhe chegasse
alterado pela distância e o terror.
Não havia tempo para pensar. O corpo másculo e ágil de David contraiu-se por um instante... Apenas um
instante, antes de partir numa corrida louca e perigosa pela calçada repleta de transeuntes.
Surpresas, as pessoas voltavam-se para ver o policial deslocando-se como um malabarista naquela
verdadeira pista de obstáculos.
"Se eu não tivesse parado para cumprimentar o dr. Longfellow, estaria lá no momento exato e teria evitado
isto, ele pensava, apavorado. "Mas evitado o quê?, perguntou-se, confuso.
A perspectiva dela estar ferida ou morta era intolerável. O mundo não faria sentido sem a presença doce
e mágica da mulher que encantava a cidade com sua música divina.
A desabalada carreira de David levou-o ao centro comercial, onde uma loja de calçados femininos
anunciava, em cartazes coloridos, a superpromoção que começara na semana anterior e iria até o natal.
Aquela era uma época festiva e o comércio apostava tudo nas vendas de fim de ano.
David dobrou a esquina e atravessou a rua, sem se preocupar com os carros que diminuíam a marcha no
trânsito intenso, devido a curiosidade dos motoristas curiosos diante do incidente inesperado.
Como era de se esperar, um grande número de pessoas acorriam ao local. Dávid aproximou-se a passos largos,
com o coração aos saltos.
Um homem de idade avançada, usando um sobretudo marrom que o defendia do frio cortante, segurou
David pelo braço e anunciou:
— Eram dois. Jogaram a violinista no chão como se ela fosse um boneco de papel e fugiram
por aquela rua, levando a sacola de dinheiro.
— Vou precisar de seu depoimento, senhor — disse Dávid, que lutava para não se deixar dominar pela
aflição. — Fique aqui, por favor. — E abrindo caminho entre os curiosos, ele por fim chegou ao centro
do círculo.
A sra. Gladys Silverman estava ao lado da vítima, Harmony Martin, que muito pálida parecia um tanto
alheia à agitação em torno. O alívio de ver Harmony em pé, aparentemente sem ferimentos, fez com que
David reassumisse, de imediato, sua condição de policial em serviço.
— Ela está bem? — perguntou à sra. Gladys Silverman, que parecia dominar a situação. A
velha senhora sorriu:
— Nada quebrado, policial Shepard, exceto o arco do violino. Mas deixe que eu cuide de
Harmony. Vá atrás dos dois marginais, antes que eles desapareçam.
Pegando o rádio que trazia no cinturão, David ganhou a estreita rua lateral. Enquanto fazia contato com o
distrito, examinava o interior dos carros estacionados, caminhando com grande rapidez. — Policial David
Shepard comunicando assalto em frente ao shopping Revells. A vítima está aparentemente bem. Os dois
assaltantes fugiram a pé pela rua Salt Lake, em direção ao Parque Independence. Avise a patrulha volante
do setor 3-A.
— Descrição dos suspeitos? — perguntou o policial que acabava de receber a mensagem.
— Ainda não tenho.
— Estavam armados?
— Parece que não usaram armas, mas ainda não tenho certeza.
— Volte a nos informar, quando tiver outros dados sobre o caso.
— o rádio no cinturão e entrando num beco escuro, muito
Positivo... Câmbio e desligo — disse David, guardando
estreito, que servia de entrada de serviço para diversas lojas do shopping. Com a mão esquerda segurava
uma lanterna que acabava de retirar do bolso. A direita estava solta, pronta para sacar o revólver, se fosse
preciso. — Nada — ele constatou, depois de percorrer o beco inteiro, com os olhos atentos.
Retornando sobre os próprios passos, voltou à avenida. Os assaltantes haviam desaparecido, protegidos
pela escuridão da noite. Agora, só restava voltar ao local do incidente, David pensou, desanimado.
A pequena multidão já havia se dispersado. Restavam apenas alguns grupos de pessoas que comentavam o
assunto, em voz baixa.
O homem idoso, de sobretudo marrom, que estava sendo interrogado pelo chefe de segurança do shopping
Revells, acenou para David ao vê-lo aproximar-se.
— O sr. Dalton tem uma descrição interessante dos dois homens — disse o chefe de segurança. — Quer
interrogá-lo, policial Shepard?
— Sim, Lewis — David respondeu. — Obrigado.
O segurança guardou seu bloco de anotações no bolso do blazer de tergal, impróprio para o frio que fazia do
lado de fora do shopping aquecido. E comentou:
—Parece que teremos bastante trabalho, durante as festas.
— Há muitas pessoas chegando a Appleton nesse final de ano — David afirmou, aborrecido. — E,
pelo visto, nem todas são bem-intencionadas.
— Infelizmente você tem razão, policial Shepard — disse o segurança, cruzando os braços sobre o
peito para proteger-se do frio. — Bem, com licença. Vou voltar a meu posto e comunicar o incidente à
direção do shopping. — Voltando-se para o homem idoso, agradeceu: — Obrigado pelo seu depoimento, sr.
Dalton. Se puder repeti-lo para o policial Shepard...
— Eu farei isso, senhor — o homem respondeu, num tom amável.
David guardou a lanterna no bolso e puxou seu bloco de anotações.
Vamos lá, sr. Dalton. Conte-me tudo o que viu e procure não se esquecer de nenhum detalhe.
Enquanto David interrogava a testemunha, a sra. Gladys Silverman conduzia Harmony Martin ao
interior do shopping. Não avia abandonado nem por um segundo e agora caminhava ao o dela, segurando-a
pelo braço, apoiando-a moral e fisicamente. Após ouvir por duas vezes seguidas o depoimento do sr. Dalton,
u
avid dispensou-o e entrou no shopping.
Havia um certo alvoroço entre os clientes e vendedores, irmas na preocupação com a segurança geral e
na solidariedade ra com a violinista Harmony Martin, a quem tanto admiravam.
O gerente da loja, sr. Lawrence Burton, era muito conhecido na cidade de Appleton. Sua simpatia
natural e o fato de ter sido campeão por vários anos das provas de esqui que eram muito populares na região,
haviam feito de Lawrence uma figura pública, respeitada e querida. Agora, já na meia-idade, o sr. Burton
havia abandonado as pistas de esqui, mas a fama continuava a perdurar.
Alto, elegante e solícito, ele agora conduzia Harmony Martin e a sra. Gladys Silverman a seu escritório
particular, situado no andar térreo do shopping.
David alcançou-os e juntou-se a eles, evitando alguns curiosos que tentavam detê-lo para comentar o
incidente.
—Fiquem à vontade — disse Lawrence Burton, abrindo a porta do escritório carpetado e indicando-lhes
um sofá e poltronas estofadas para que se acomodassem. Em seguida foi até o bebedouro que havia junto à
janela, encheu um copo com água e ofereceu-o a Harmony Martin.
—Obrigada — ela. agradeceu, num fio de voz, deixando-se cair sobre o sofá e depositando o violino a seu
lado, com extrema delicadeza. Mas continuou a segurar o arco quebrado, enquanto sorvia a água em
pequenos goles.
Apontando o instrumento, a sra. Gladys Silverman comentou:
— Lembro-me do dia em que seu avô, Ernesto Bonifanti, lhe deu este violino de presente. Ele foi um
dos homens mais dignos que Appleton já conheceu. E ficaria muito orgulhoso de ver sua neta tocando tão
bem. Você, Harmony, herdou de Ernesto a musicalidade e o bom génio. De toda a sua família, é a que
mais se parece com ele...
David sorriu. Era claro que Gladys Silverman só estava tentando animar Harmony, ao evocar aquelas doces
lembranças do passado. Mas, infelizmente, só conseguia deixá-la ainda mais triste.
O arco quebrado ainda pendia de sua mão e ela o olhava com uma tristeza tão profunda, que David
comoveu-se.
— Harmony, você está melhor? — indagou, num tom suave.
—Como é que o senhor sabe o meu nome? — ela retrucou, o rosto para o policial, a quem ainda não
havia olhado diretamente. Só então reconheceu David Shepard, com um leve estremecimento.
— Oh, é você...! — disse, num sussurro.
David tentou ler, através daquelas poucas palavras, os sentimentos da mulher a sua frente. Mas não
conseguiu. O modo com que ela o fitava agora era... Frio, ele concluiu. E como poderia ser diferente?
Perguntou-se, com uma sensação de angústia.
Afinal, ele era um Shepard e, ela, uma Martin. Os fatos que tinham determinado o ódio entre ambas as
famílias tinham se passado há muito tempo... Mas permaneciam vívidos na lembrança dos Shepard e Martin,
bem como em toda a cidade de Appleton.
—Espero que não esteja ferida — disse David, sabendo que a pergunta era apenas um chavão, um pretexto
para iniciar a conversa.
—Estou bem... Dentro do possível — ela respondeu, com um suspiro.
—Eis aí uma boa notícia — David comentou, sabendo que estava se comportando como um tolo. Mas não
conseguia evitar... Aqueles olhos castanhos e luminosos causavam-lhe uma emoção incontrolável. Era quase
impossível não ceder ao impulso de tomar aquela mulher nos braços para protegê-la e confortá-la com palavras
doces, cheias de um sentimento que ele jamais ousara confessar.
"Controle-se, David Shepard", ele se ordenou, em pensamento, respirando profundamente.
Harmony tornou a levar o copo de água aos lábios, que tremiam ao sorver o líquido em pequenos goles,
até o fim.
Num gesto solícito, David pegou-lhe o copo da mão e depositou-o sobre a mesa de trabalho de Lawrence
Burton. Por um instante, ele havia sentido os dedos de Harmony gelados, e mais uma vez teve de se conter
para não ceder ao impulso de aquecê-los.
—Você está com a mão gelada, Harmony — disse, com voz branda. — Devia usar luvas de lã. É o mais
adequado, neste frio.
—Creio que não conseguiria tocar violino de luvas, policial Shepard — ela respondeu.
David sentiu-se corar violentamente e tentou sorrir. Estava fazendo um papel ridículo, pensou, aborrecido.
E assumindo um tom de voz profissional, perguntou:
— Você conseguiu ver os agressores?
Harmony assentiu com um gesto afirmativo de cabeça.
— E poderia descrevê-los?
— Eram dois e usavam máscaras de esquiar.
— Creio que não são da cidade — Gladys Silverman interveio.
— O que a faz pensar assim? — David indagou.
—Ora... — A velha senhora sorriu. — Nenhum morador de Appleton roubaria as doações destinadas ao
orfanato da cidade... Nem mesmo os mais inescrupulosos marginais seriam capazes disso.
Talvez a sra. Silverman tenha razão — Lawrence Burton opinou, mas havia uma expressão de dúvida em
seus olhos. Consultando o relógio, acrescentou: — Com licença, senhoras... E policial Shepard. Tenho uma
reunião com o departamento de rela-ções-públicas agora. Se precisarem de mim, estarei no ramal 123.
— Certo — David aquiesceu.
— Obrigada por tudo, senhor — disse Harmony, num fio de voz.
— Ora... — Lawrence Burton sorriu. — Eu não fiz nada, srta. Martin.
— O senhor foi gentil e atencioso — Gladys Silverman afirmou.
Lawrence Burton tornou a sorrir e saiu em seguida.
— Sra. Silverman... — disse David, num tom polido — admiro o apoio que deu a Harmony Martin até
agora, mas peço-lhe que me deixe a sós com ela por alguns instantes. Preciso conversar com Harmony a
sós, para tomar seu depoimento. O tempo está correndo e o pessoal lá do distrito espera que eu lhes
mande os primeiros dados sobre o caso, para que possam tomar as providências cabíveis. A senhora se
importaria de...? — Ele não concluiu a frase, mas o sentido estava muito claro.
— Compreendo — disse Gladys Silverman, voltando-se para Harmony como se lhe pedisse uma
opinião sobre o que deveria fazer. Sabia que David estava apenas cumprindo sua função de policial, no
caso. Mas também conhecia os fatos que haviam transformado as famílias Shepard e Martin em inimigas. E se
Harmony se recusasse a ficar sozinha com David, a velha senhora não hesitaria em apoiá-la.
Mas Harmony respondeu-lhe com um aceno de cabeça, tran-qúilizando-a. Foi o suficiente para Gladys
Silverman se decidir:
— Bem, acho que vou tomar um café lá fora. Diga-me, Harmony, não seria melhor eu ligar para sua
família e...
— Nada disso — Harmony a interrompeu, com veemência. — Quero contar-lhes tudo pessoalmente.
— Mas alguém pode tê-la reconhecido, lá fora — a velha senhora argumentou. — E se esse alguém tiver
a ideia de informar sua família sobre o assalto? Não acha que será muito pior?
— Ainda assim acho melhor arriscar, Gladys — Harmony replicou. — Obrigada por seu carinho e
preocupação.
— Se você prefere assim... — E a velha senhora saiu, fechando a porta.
O silêncio caiu no escritório, denso e pesado. Harmony Martin e David Shepard agora estavam a sós.
Com o coração descompassado pela emoção, David sentia que seu velho sonho se realizava... Um sonho
que acalentava há muito tempo: o de ter, ainda que fosse por uma única vez, Harmony Martin diante de si,
ao alcance de sua voz e de suas mãos. E sem que nenhuma pessoa pudesse interferir, sem que nem ela
mesma pudesse fugir, fingindo ignorá-lo como fizera tantas vezes nos últimos anos.
Por um instante David recordou-se das muitas ocasiões em que encontrara Harmony Martin em
Appleton. Ela sempre desviava os olhos ou atravessava a rua. Ou então dava-lhe as costas, fingindo olhar uma
vitrine...
Que inferno David vivera, dentro de sua imaginação, ao pensar que Harmony dedicava a outra pessoa, em
especial, seu sorriso tímido e a um só tempo luminoso.
Muitas vezes, quando era escalado para a ronda motorizada, ele conduzia a viatura lentamente pela rua
do conservatório musical de Appleton, esperando o prémio máximo de ver Harmony através de uma das
largas janelas frontais, dando aulas de violino... E quando conseguia vê-la, experimentava uma incrível
felicidade.
Agora ambos estavam ali, frente a frente, num espaço isolado do mundo lá fora. David sentia-se tomado
por uma emoção tão forte, que não conseguia encontrar um modo de começar o interrogatório. A triste
realidade do assalto ocorrido há pouco interpunha-se naquele momento que poderia ser totalmente mágico.
"Que pena", David lamentou, em pensamento, fazendo um intenso esforço para assumir uma atitude
profissional. Retirando a caderneta de anotações do bolso superior da jaqueta, ele preparou-se para
interrogar Harmony.
Diante daquele gesto, Harmony encolheu-se ainda mais. E David mais uma vez compadeceu-se:
— Sente alguma dor, Harmony? Você está realmente bem?
Oh, sim — ela respondeu, com um profundo suspiro. — Apenas o meu orgulho sofreu sérios danos... —
Tentou gracejar, forçando um sorriso.
Horrorizado, David viu as lágrimas aflorarem aos olhos da mulher a sua frente... Lágrimas que
ameaçavam transbordar num pranto desesperado. Se isso acontecesse, ele estaria perdido. Pois não
conseguiria manter-se no papel de policial... Tomaria Harmony nos braços e tentaria consolá-la com beijos
ardentes.
Vamos encontrar seus agressores — ele afirmou, com veemência.— Eu prometo, Harmony...
— Ainda estou surpresa com o fato de você saber meu nome... — ela comentou, fitando-o no fundo dos
olhos. Uma lembrança dolorosa acorreu-lhe à mente: a cena do enterro de seu pai e a comoção geral que
a tragédia provocara em toda a Appleton. O espanto diante do inevitável, a guerra declarada entre as
famílias Martin e Shepard... Ela contava, na época, apenas quatorze anos. Era quase uma criança, mas
podia lembrar-se de um momento terrível, durante o funeral, quando sua família inteira reagira com rancor
e ódio à presença de David Shepard, então com dezoito anos, que assistia tudo a apenas alguns metros de
distância.
David recordava-se da mesma cena, sob outro ângulo. Lembrava-se da tarde chuvosa, do silêncio
pesado, as pessoas em longas capas de náilon acompanhando o cortejo fúnebre. Os Martin haviam perdido
o chefe da família e culpavam os Shepard pela tragédia.
David comparecera ao cemitério, sem saber ao certo por quê. No fundo, acalentava a esperança de
conversar com os membros da família Martin e explicar-lhes que os Shepard não tinham culpa... Mas
desistira, tão logo chegara. Os olhares hostis dos Martin deixavam bem claro que ele não teria a menor
chance de fazer-se compreender.
Em meio a toda aquela tristeza, a jovem Harmony Martin chamara-lhe a atenção. Ela. era tão bonita e
parecia muito frágil em seu traje de luto. Caminhava de mãos dadas com a mãe e tinha os olhos
inchados de tanto chorar.
—Oh, Deus! — A voz abafada de Harmony trouxe David de volta ao momento presente. — Sou uma
Martin e você é um Shepard. Eu... Não deveria estar aqui, a sós, com você.
—Além de um Shepard... — disse David, procurando recuperar o autocontrole que ameaçava escapar-lhe
— sou também um policial de serviço atendendo um caso de agressão e roubo do qual você foi vítima.
— É... — Harmony sorriu, mas em seus olhos pairava uma nuvem de tristeza. — Esqueci-me disso
por um momento.
— Sugiro que deixemos de lado nossos problemas familiares — ele propôs, num tom mais firme. —
Assim, poderemos nos concentrar no problema que ocorreu e resolvê-lo da melhor maneira possível.
— Não existe uma possibilidade de você passar essa tarefa para outro policial?
As palavras de Harmony causaram uma profunda decepção em David, mas ele não demonstrou.
Apenas respondeu, no tom mais
natural que conseguiu:
— Sinto muito, mas o problema aconteceu na minha área de patrulha. Além disso, fui o
primeiro policial a chegar ao local do crime. — Um tanto ríspido, acrescentou: — Nós, policiais, temos
certas regras a seguir. E não podemos nos dar ao luxo de colocar os problemas pessoais acima dos
profissionais, srta. Martin.
O tratamento formal soava agressivo e Harmony baixou os lhos David sentiu que tinha sido
áspero demais e quis descular-se Mas conteve-se. Se deixasse por conta do coração, acabaria
cometendo uma tolice. Era melhor concentrar-se apenas no aspecto profissional daquele momento. E foi
o que fez, usando um tom de voz mais brando:
— Fale-me sobre o incidente, Harmony.
—Eu estava totalmente desprevenida, além de um pouco cansada devido às duas horas que tinha
passado, em pé, naquele frio
cortante. — Ela fez uma pausa, afastando os longos cabelos anelados para trás das orelhas, num gesto
gracioso. O rosto, de traços perfeitos, estava pálido.
— Continue, por favor — David pediu, sentando-se numa poltrona ao lado do sofá.
— Eu tocava uma valsa de Strauss e estava muito satisfeita. Sabia que a diretora do orfanato ficaria
feliz com as contribuições recebidas. Várias pessoas, que com certeza conhecem a luta que da sra. Margot
Montez para manter o orfanato, colocavam notas de cinco dólares na sacola. E eu calculava, feliz, que
poderia en cerrar minha apresentação em menos de vinte minutos.
Já esquecido de suas promessas de manter uma postura meramente profissional, David ouvia Harmony
com ternura. A voz daquela mulher encantadora soava como uma suave melodia a acariciar-lhe os
sentidos...
Ela prosseguiu:
— Engraçado é que eu às vezes fechava os olhos, durante a música, imaginando a xícara de chocolate
quente que eu tomaria aqui no shopping, depois do concerto... Depois, entraria no carro e poderia ir para
casa, descansar. E quando abria os olhos, deparava com as pessoas que tinham parado para ouvir minha
música, de modo atento e respeitoso. — Harmony interrompeu-se, ao mesmo tempo em que contraía o
corpo. E sua voz soou trémula, ao continuar: — De repente percebi que algo destoava no ambiente
aconchegante formado pelos espectadores à minha volta. No momento seguinte fui empurrada de forma
brutal e, naturalmente, nao consegui pensar em nada... Exceto em proteger meu violino. Depois, foi a
queda na calçada fria e dura, o arco voando de minha mão... Lembro-me da expressão de espanto no rosto
das pessoas, °s assaltantes movimentando-se rápidos à altura dos meus olhos, arrancando a sacola da
estante onde ficavam as partituras, que se espalhavam pelo chão. — Harmony cobriu o rosto com as mãos,
jas unhas limpas e rosadas pareciam pequenas jóias cintilantes.
— Você está bem? — A voz de David soava quente, carregada de preocupação e solidariedade. — Por
favor, não fique assim.
Harmony estremeceu. Em seguida ergueu o rosto, enxugando uma lágrima furtiva. Com uma expressão
que denotava coragem e orgulho, desculpou-se:
— Queira me perdoar. Acho que me descontrolei... Aliás, não é a primeira vez que isso acontece,
nesta noite.
— Você tem razões de sobra para se sentir assim, já que acaba de passar por uma experiência terrível.
— Sim. — Ela ficou pensativa por alguns instantes, antes de dizer: — Mas isso não me dá o direito
de portar-me como uma criança assustada... Ou de tratá-lo de maneira grosseira, pedindo-lhe para
entregar o caso a outro policial.
David assentiu em silêncio, tomado por uma onda de emoção.
— Não posso agir assim com você — ela continuou. — Afinal, você não tem culpa pelos acontecimentos
trágicos que envolveram nossas famílias, no passado.
— É maravilhoso ouvir isso, Harmony — ele confessou, com um suspiro de alívio. — Será que pode
imaginar o quanto me sinto feliz por saber que você pensa assim?
Ela fitou-o com uma expressão que era quase ternura... Mas mudou rapidamente de atitude e, assumindo
um ar severo, pediu:
— Por favor, vamos terminar logo com isso. Preciso voltar para casa antes que a notícia chegue a minha
família através de outras pessoas. Tenho, também, de entrar em contato com a diretora do orfanato.
— Certo — David aquiesceu. — Não quero mais tomar o seu tempo e tentarei ser o mais breve
possível.
— Obrigada.
— Bem, tente descrever os agressores.
Harmony fitou-o como se ele tivesse acabado de dizer uma grande tolice. Um sorriso tenso insinuou-se em
seus lábios delicados, ao protestar:
— Mas isto é impossível. Já lhe contei como o incidente aconteceu. Tudo o que sei dos agressores é que
eram dois vultos, apenas.
O mais, foram as sensações que descrevi: o empurrão, a queda...
— A mente humana é capaz de gravar, em fração de segundos, imagens que aparentemente não foram
registradas pelo cérebro — David a interrompeu, num tom suave. — Feche os olhos e tente deter os
pensamentos, Harmony.
Ela obedeceu, sem muita convicção. E David encorajou-a:
— Vamos, confie em mim... Assim... Agora volte ao momento da cena. Você estava tocando uma
valsa de Strauss, não é mesmo?
—Sim.
Havia várias pessoas assistindo...
—Sim.
Pessoas que olhavam para você, numa atitude de respeito e carinho. De repente, houve um
movimento inesperado...
—Houve — ela repetiu, com um tremor.
—E o que foi esse movimento? Quem o fez?
— Dois homens, mas estavam separados, distantes um do outro.
Moviam-se de maneira dura, quase agressiva, diferente das outras pessoas que me ouviam.
— E as roupas, Harmony? Como aqueles dois homens estavam vestidos?
— Usavam botas — ela murmurou. — Botas de couro, próprias para esquiar.
—Marrons?
—Camurça...
David anotava rapidamente as informações.
—E que tipo de calças usavam, Harmony?
— Jeans... Muito desbotados. Um deles tinha um cinturão largo, cuja fivela possuía a forma de um
animal...
— Que tipo de animal?
— Um cavalo... Dourado.
— E os casacos, Harmony? O que aqueles homens usavam para se proteger do vento?
— Oh, deviam sentir muito frio com aqueles moletons próprios para a meia-estação...
David sorriu. Estava chegando perto de conseguir uma boa descrição dos culpados.
—Moletons — ele repetiu. — De que cor?
— Cinza... O outro era vermelho, com punhos e gola azuis.
Os rostos, Harmony... Fale-me dos rostos. Ela abriu os olhos, que brilhavam com um misto de satisfação
e surpresa. Já não precisava mais ser induzida, pois lembrava-se de tudo com clareza, agora:
Máscaras, David — disse, com voz firme. — Eles usavam mascaras de esquiar. Uma preta e outra
cinza.
—Os olhos?
Pareciam lançar chispas.
— De que cor eram os olhos?
— Como vou saber? — Harmony impacientou-se.
— Altura?
— Os dois eram mais ou menos do mesmo tamanho... Não muito altos. Deviam medir em torno de
um metro e setenta.
— E eles eram jovem, ou de meia-idade?
— Ora, David...
Ele insistiu:
— Jovens, meia-idade ou velhos?
— Ambos jovens e muito ágeis... Se bem que um deles parecia mancar um pouco de uma perna... Não
sei.
— Qual perna? A direita ou a esquerda?
Aquilo era demais para Harmony. Sua resistência chegara ao fim. As lágrimas afluíam-lhe aos olhos
novamente e ela murmurava repetidas vezes:
— Não sei... Juro que não sei...
Emocionado, David ofereceu-lhe um lenço imaculadamente branco, que Harmony agradeceu num
sussurro. Em seguida, ele correu até o telefone e discou o número da central de polícia:
— Alô? Policial Shepard falando. Estou no shopping Revells. Tenho a descrição dos assaltantes.

CAPITULO II

David terminou de passar as informações que havia colhido sobre os assaltantes, juntamente com o
testemunho do velho sr. Dalton e o da própria vítima.
Agora vários agentes especializados se encarregariam de transformar os dados num retrato falado que
seria distribuído aos car-ros-patrulha e demais distritos da região. As cidades vizinhas seriam avisadas do
incidente através de mensagens que, àquela altura, já estavam sendo transmitidas pelo rádio da central. A
máquina policial estava em total funcionamento.
David guardou o bloco de anotações no bolso. Agora poderia desfrutar da presença de Harmony, sem as
obrigações que sua profissão lhe impunha. Poderia ficar algum tempo, ainda que fosse mínimo, na
companhia da mulher que amava secretamente há tantos anos.
— Você acredita que com essas informações o pessoal da central conseguirá alguns resultados? — Harmony
indagou, erguendo-se, depois de depositar o arco do violino cuidadosamente no sofá.
Nunca se sabe... — David respondeu, pensativo. — Além do trabalho dos policiais, a sorte conta um
bocado, nesses casos. Mas dentro de alguns minutos a corporação inteira estará alerta. E é possível
alcançarmos um resultado imediato. O tempo entre o assalto e o alerta foi muito curto. Agora, com a descrição
dos culpados, o circulo começará a se fechar. — Tomando a mão de Harmony entre as suas acrescentou: —
Vamos conseguir recuperar o dinheiro as doações e, principalmente, tirar aqueles marginais da rua, antes
que façam mal a outras pessoas.
Harmony fitou-o com uma expressão confiante. E, por um momento, o tempo pareceu perder o
significado. Ali estavam dois seres, tão próximos e ao mesmo tempo tão cruelmente separados por uma
triste fatalidade.
Ela foi a primeira a reagir:
— Será que posso ir, agora?
— Receio que não — ele respondeu, ainda retendo-lhe a mão entre as suas. — Uma viatura policial está
vindo para cá, para levá-la até o distrito. — Ante a expressão de desagrado de Harmony, explicou:
— Querem que você assine uma queixa-crime. Assim, terão nas mãos um documento legal para prender os
marginais.
— Mas isto é mesmo necessário? — Harmony protestou.
— E o procedimento normal, nesses casos, e com toda a razão. Muitos marginais ganham a liberdade
depois de um longo trabalho de policiais quev não agindo de acordo com as normas, acabam dando
argumentos aos advogados de defesa... Compreende o que quero dizer?
— Sim. — Harmony retirou a mão, num gesto delicado, mas firme. E voltou a sentar-se no sofá.
— Você quer um café? — ele ofereceu.
— Por favor...
— Vou buscá-lo e já volto. — E David saiu.
Sozinha no escritório, Harmony sentiu-se invadida por tuna série de emoções, um tanto confusas e
contraditórias. Estava muito abalada pelo que havia acontecido, mas não conseguia analisar os sentimentos que
David tinha lhe provocado, naquele breve contato.
Que estranha coincidência o fato de ser ele o policial que o destino escolhera, para atendê-la, naquele
momento difícil.
David era tão solidário e gentil, que havia conseguido transformar uma situação desagradável em algo
diferente, ela pensou, com um suspiro. Pois David tinha agido de uma forma comovente, como se estivesse
pessoalmente envolvido no caso... "Como se de fato se importasse com meu bem-estar, meus sentimentos",
concluiu.
Uma sensação de inquietação a fez levantar-se novamente do sofá e caminhar até a janela, em busca de ar
fresco. Pela vidraça Harmony contemplou a noite lá fora, os carros varrendo o asfalto com seus faróis
amarelados e luzes vermelhas. Pouco tempo havia se passado, desde o momento em que fora agredida. Mas
Harmony já não estava tão assustada como antes. Ao contrário: sentia-se tomada por uma estranha calma.
E o responsável por isso era David Shepard.
O que diriam seus familiares ao saber que um Shepard havia cuidado do caso e, mais do que isso, estivera
tão próximo dela? Harmony se perguntou.
"E o pior é que tive a melhor das impressões sobre esse homem solícito, solidário e até mesmo
carinhoso..." Pensou, sorrindo ao lembrar-se de David tomando-lhe a mão, fitando-a com seus olhos azuis,
oferecendo-lhe calor e compreensão.
David Shepard era um homem muito bonito, Harmony concluiu. O rapaz que ela vinha observando à
distância, ao longo de tantos anos, havia se transformado num homem elegante e viril.
O que mais a impressionava era o fato de David manter a naturalidade e a espontaneidade comovente
que possuía desde menino. A farda não parecia tê-lo mudado em nada. Ele a usava como se fosse uma roupa
comum, que não o tornava superior a nenhum dos outros trabalhadores da cidade.
— Você é especial, David Shepard — ela murmurou.
A verdade, ela confessou a si mesma, era que nunca deixara de admirar o filho mais velho da família
Shepard... Lembrava-se ainda de uma competição de esqui na qual ele se sobressaíra, com uma performance
audaciosa e clássica. Estava muito belo no momento em que recebera o prémio, exibindo um sorriso de
satisfação no rosto másculo, de traços perfeitos.
Tantas lembranças... Harmony pensou, tentando afastá-las da mente. Afinal, David era um Shepard... E a
simples menção desse nome fazia com que a família Martin se arrepiasse de ódio e repulsa.
Mas houvera um vez, Harmony agora se recordava, em que ela não conseguira evitar de pensar em
David por vários dias seguidos... Fora quando ele voltara à cidade, gozando uma semana de licença da
marinha, onde estava engajado. David simplesmente enlouquecera as adolescentes de Appleton, com seu
uniforme azul e elegante. E o mais incrível era que ele continuava o mesmo rapaz de sempre: calmo,
educado, íntegro e modesto, mesmo quando assediado por um verdadeiro batalhão de garotas. Ele as tratava
de modo gentil, sem nenhum toque de malícia. Parecia até surpreso com tanta atenção e deferências.
— Por que será que David nunca se casou? — ela pensou, em voz alta. — Parece que nem sequer tem
um compromisso firme com alguém...
Uma discreta batida na porta a fez interromper-se. Voltando-se, Harmony deparou com a sra. Gladys
Silverman que entrava, seguida por David que trazia uma xícara de café.
—Tudo certo, querida? — Gladys sorria, com sua costumeira amabilidade. — Ei, você me parece mais
animada, agora.
— De fato estou bem melhor, obrigada.
—Seu café, Harmony. — David ofereceu-lhe a xícara. — Está bem quente.
Harmony sorveu o líquido fumegante em pequenos goles, sentindo-se invadida por uma onda de bem-
estar. Depois entregou a xícara para David, que a fitava com admiração e carinho.
— Obrigada — agradeceu, com um sorriso. — Acho que eu precisava mesmo desse café. —
Voltando-se para Gladys Silverman, anunciou: — Consegui lembrar-me de tudo o que houve e descrevi
os dois agressores. Foi uma experiência fantástica, eu quase não acreditei...
— E como fez isso, querida? — A velha senhora indagou, surpresa.
— David usou uma espécie de indução hipnótica, incrivelmente eficaz. Confesso que fiquei espantada.
David riu, satisfeito. E num tom calmo explicou:
— Não se trata, exatamente, de hipnose... Ao menos não foi esta a minha intenção.
— E como você chamaria aquilo que fez comigo? — Harmony perguntou, com sincero interesse.
— Ora, é muito simples... Creio que desenvolvi esse método através da intuição e observação, ao
longo dos anos de trabalho.
— Ainda não entendi — Harmony confessou.
— Bem, eu tenho notado que a memória visual é bem mais detalhista e rápida do que normalmente
imaginamos. Foi a partir daí que criei esse método, que tem ajudado muito em casos em que a pessoa não
se lembra de fatos ocorridos em momentos de aflição ou traumatismo.
— E você então a faz remeter-se ao momento do crime, buscando nos recantos mais ocultos da memória o
que seu consciente não registrou — Harmony concluiu.
— Exato — ele aquiesceu, um tanto surpreso com a inteligência rápida daquela mulher encantadora e
frágil. — Você conseguiu resumir o método melhor do que eu...
— Interessante — a sra. Gladys Silverman opinou. — Diga-me, David, você nunca pensou em ensinar
esse recurso precioso aos outros policiais da corporação?
Ele riu, divertido, inclinando levemente a cabeça para trás. Os lábios vermelhos se entreabriam,
revelando dentes perfeitos e regulares.
— Já existem dezenas de métodos empregados por policiais, em todo o mundo. Este, eu guardo para
meu próprio uso.
— Não conheço os outros — disse Harmony, muito séria. — Mas o seu fez com que eu me sentisse
confiante, forte, com coragem de olhar calmamente para um momento de horror e espanto.
— Hum... — Gladys Silverman sorriu. — Isso está me parecendo um elogio.
— Estranho e surpreendente, vindo de uma Martin para um Shepard... — David comentou.
Harmony corou, baixando os olhos. Mas sua voz soou firme, ao retrucar:
— Embora minha família seja hostil à sua... — Ela o fitou, com intensidade. — Creio que posso
afirmar, sem sombra de dúvidas, que você é um bom homem, David Shepard.
Ele sorriu e foi como se todo o ambiente em torno se iluminasse:
— Você não imagina o quanto suas palavras me deixam feliz, Harmony Martin.
A sra. Gladys Silverman sorriu, discretamente, consciente da importância daquele momento. Sabia que
entre aqueles dois membros de famílias inimigas corria uma simpatia natural, que prometia transformar-se
em algo maior, mais profundo. Sua experiência de vida lhe dizia isso. E a velha senhora mantinha-se em
silêncio, respeitando aquele momento especial.
Harmony quebrou o encanto, dizendo:
—Será que a viatura já chegou?
Sem esconder a decepção, David respondeu:
—Estava a caminho...
Foi então que a sra. Gladys Silverman resolveu interferir e o fez do modo mais gentil e discreto: saiu,
deixando ambos a sós.
—Vou aguardar lá fora. — Foi tudo o que disse, ao abrir a porta.
Harmony tornou a afastar os cabelos para trás das orelhas, enquanto abotoava o casaco de lã,
aprontando-se para sair também. David aproximou-se. Harmony estava fugindo novamente, ele pensou,
com uma sensação de pânico. E sua voz soou um tanto trémula, ao propor:
— Será que nós... Será que eu poderia vê-la em outra ocasião, Harmony?
Surpresa, ela fitou-o nos olhos por um longo momento. Mas por fim meneou a cabeça em sinal de
negação:
— Sinto muito, mas acho que não seria uma boa ideia, David.
— Sua família não aprovaria — ele concluiu, com um suspiro.
—Sim. Se soubessem que nós dois estivemos a sós, que conversamos nesse tom amigável, ficariam a
princípio perplexos e, depois, furiosos.
As imagens do passado afluíram à mente de David. Doze anos haviam transcorrido, mas a cena ainda era
muito real... E ele podia ouvir novamente a voz de seu tio dizendo "ele morreu"... Referindo-se ao pai de
Harmony. O pesar, a dor, o horror daquele momento ainda mantinha-se vívido na mente de David, que tal
como o tio seguira a carreira policial.
—Que culpa tenho eu, Harmony? — ele protestou, afastando aquela lembrança terrível. — Que culpa tem
você? — acrescentou, com um olhar que era como uma súplica.
—Temo que não seja assim tão simples, David. Eu sou e sempre serei uma Martin. E não posso magoar
meus entes queridos.
—Mas esse ódio mantido entre nossas famílias é absurdo! — ele exclamou, indignado.
—A vida às vezes é absurda, David Shepard... — ela contrapôs, no mesmo tom — tal como a bala
disparada por seu tio, que tirou a vida do meu pai.
—Sei de tudo isso, Harmony Martin... Mas não vou me conformar com uma situação para a qual não
colaborei. Jamais concordei com a hostilidade entre nossas famílias e também não respondi, durante esses
anos todos, a nenhuma provocação. Apenas esperei, pacientemente, que a vida me desse a oportunidade
que hoje se apresentou. — Com um profundo suspiro, David finalizou:
— Eu não vou desistir de você. E estou falando sério.
— David, ouça...
—Não — ele apartou. — Conheço de sobra suas razões para manter-se longe de mim e não preciso ouvi-
las de sua boca. Quero apenas que você responda uma única pergunta. E, dependendo da resposta,
prometo deixá-la em paz.
— Pode perguntar, David — ela assentiu, num fio de voz.
— Você não sente nada por mim?
Harmony estendeu a mão, como se quisesse detê-lo. Mas as palavras já haviam sido ditas, a pergunta
estava no ar.
A porta se abriu e Gladys Silverman entrou, com um grupo de três policiais. Um deles, que usava as
insígnias de tenente, cumprimentou David com simpatia:
— Alô, policial Shepard. — Sem esperar pela resposta, voltou-se para Harmony: — A senhorita deve ir
até a central, agora, para assinar a queixa-crime e prestar depoimento.
Harmony aquiesceu com um gesto de cabeça e saiu, com Gladys Silverman e dois policiais, sem sequer
olhar para David. A sós com o tenente, David desabafou:
— Vocês são sempre inoportunos.
— De que diabos está falando, homem? — o tenente reagiu, surpreso.
— Oh, nada — David suspirou. — Estou falando sozinho, só isso. A propósito, o senhor não vai com
eles?
— Não. Vim em outra viatura. Fui encarregado do caso e preciso conversar com você.
—- Já passei todas as informações para a central.
— Mesmo assim, eu gostaria de comparar alguns dados. — E o tenente sentou-se à mesa de trabalho
do gerente do shopping, sem a menor cerimónia. Depois de confrontar suas anotações com as de David,
pediu para chamar o segurança do shopping. Questionou-o sobre alguns detalhes e por fim deu-se por
satisfeito. — Agora vamos até a central, policial Shepard. Você tem uma relatório por escrito a fazer e eu
preciso dar prosseguimento às ações de rotina. — Aproximando-se da janela, o tenente comentou: — Que
frio terrível para novembro, você não acha?
David concordou com um gesto de cabeça. Conversando amenidades, ambos saíram do shopping Revells
para a rua, já quase deserta. O vento havia aumentado de intensidade e os transeuntes procuravam abrigo em
seus lares ou recintos aquecidos, tais como cinemas, bares e restaurantes.
A luz interna da viatura estacionada em frente ao shopping estava acesa. O motorista, muito concentrado
na leitura de revista, só se deu conta da presença de David e do tenente quando estes bateram nos vidros do
veículo.
— Podemos ir agora, John — disse o tenente, entrando na viatura e sentando-se no banco traseiro.
— Certo, senhor — o motorista assentiu e voltou-se para David, que acomodava-se a seu lado. — Olá,
Shepard.
— Como vai, John? — David cumprimentou-o, com simpatia. — Boa noite para se estar na cama,
assistindo à TV, não é mesmo?
— Nem me diga! — O motorista riu. — Estou com os pés gelados, rapaz. Desse jeito, acabarei
virando um picolé.
A viatura partiu, com as luzes coloridas girando no teto.
O rádio no painel do veículo vez por outra transmitia mensagens da central, sobre o movimento na área.
O silêncio caiu entre aqueles três homens acostumados à rotina de inumeráveis noites, tão ou mais frias
do que aquela.
Já estavam próximos da central, quando alguém chamou o número da viatura pelo rádio, para anunciar:
— Temos uma boa notícia, tenente Hoffman — disse uma voz masculina, distorcida pela má transmissão.
— Dois suspeitos foram capturados na periferia da cidade. Estavam envolvidos numa briga de bar. Os
policiais que os revistaram encontraram uma grande quantidade de dinheiro em notas pequenas. No bolso
de um deles, que manca de uma perna, havia uma máscara de esquiar. Os dois correspondem à descrição
dada pela vítima e pelas testemunhas do assalto ocorrido em frente ao shopping Revells.
— Conseguimos — disse David, entusiasmado.
— Essa foi fácil — o tenente secundou, no mesmo tom.
— Pura sorte — o motorista comentou, bocejando.
— E muita competência — o tenente afirmou, fitando David com admiração.
— Obrigado, senhor — ele agradeceu, modesto.
O motorista estacionou em frente à central:
— Chegamos. Estou louco para tomar um café bem quente.
— Boa ideia, John — o tenente aprovou, saltando do veículo. — Eu o acompanho.
Harmony estava na sala de espera do gabinete do capitão Brod-wisky, acomodada num velho sofá
estampado em cores berrantes, que nada tinham a ver com o austero ambiente em torno. De onde teria saído
aquele sofá?, ela se perguntou. Talvez fosse um capricho do velho policial, que tinha fama de ser excêntrico.
Afastando esse pensamento, que lhe pareceu um pouco tolo, Harmony cruzou os braços sobre o peito, numa
tentativa de proteger-se do frio. O aquecimento deficiente da sala a estava enregelando.
A sra. Gladys Silverman havia ido até a recepção, a fim de telefonar para os Martin e informá-los do
incidente.
Harmony, que a princípio fora contrária à ideia, tinha por fim cedido aos argumentos de Gladys. Afinal,
já era tarde. A família ficaria preocupada se ela não chegasse na hora habitual. E Harmony não tinha a
menor ideia de quanto tempo ainda ficaria ali, à disposição da polícia.
Por todas essas razões, ela havia concordado com a sugestão da velha senhora, depois de recomendar-
lhe que transmitisse a notícia com extrema cautela... Isso nem era preciso dizer, pois Gladys Silverman era
a delicadeza em pessoa, Harmony pensou, com um sentimento de gratidão para com aquela boa amiga.
O tempo se arrastava lentamente. E Harmony remexeu-se no sofá, buscando uma posição mais
confortável. Sentia-se exausta. Em sua mente, confusa com os acontecimentos chocantes das últimas horas,
estampou-se a imagem de David Shepard dizendo:
"Que culpa tenho eu... Que culpa tem você?"
Uma onda de calor a invadiu, causando-lhe uma sensação desconhecida... Uma sensação que era a um só
tempo excitante e incómoda.
David jamais poderia supor que ela também se sentia atraída por ele. E que já fazia muito tempo que o
admirava à distância...
E, até então, Harmony tampouco imaginara, nem mesmo em seus sonhos mais loucos, que aquela atração
fosse recíproca. Aí estava uma revelação tão maravilhosa quanto assustadora. Por um lado, Harmony
sentia-se a mais feliz das mulheres por saber que seus sentimentos eram correspondidos... Mas, por outro,
seu coração sensível se contraía de medo e dor. Pois não podia esquecer que o homem que naquela noite lhe
falara de maneira tão gentil e carinhosa era um Shepard... E, nos últimos doze anos, todos os Shepard
tinham sido sistematicamente rotulados como inimigos dos Martin.
— Por quê? — ela se perguntou, tomada por um misto de impotência e revolta.
E mais uma vez recordou-se da tragédia ocorrida há tanto tempo.
Douglas Shepard, tio de David, fora membro da polícia de Appleton... Até que numa noite muito fria,
perto do Natal, ocorrera a desgraça.
O pai de Harmony, William Martin, possuía um grande armazém à moda antiga, que vendia de tudo, desde
tecidos até máquinas agrícolas. Mas na primavera e nas festas de fim de ano, William Martin dedicava-se
exclusivamente à floricultura anexa ao armazém. Ali passava horas e horas criando arranjos belíssimos
para a decoração de casas e lojas, usando flores naturais e outros materiais orgânicos que juntava
pacientemente durante o ano inteiro. Era um hobby muito lucrativo e William Martin sentia verdadeiro prazer
quando elogiado por seus arranjos, tão apreciados em toda a Appleton.
As encomendas de fim de ano eram tantas, que William ficava até bem tarde na floricultura, mesmo depois
que todos os empregados iam embora. Muitas pessoas sabiam disso... E o assaltante, que resolvera arrombar
o estabelecimento, também. Mas não fora ele quem matara William Martin. A bala fatal partira da arma
do policial Douglas Shepard, que atendendo a um comunicado de suspeita de assalto chegara rápido ao
local... E acabara acertando a vítima, não o ladrão.
"Como David pode ignorar a comoção de uma família que perdeu um ente querido às vésperas de um Natal,
numa ação violenta e trágica?", Harmony se perguntou, aflita, apertando os olhos com força diante daquela
lembrança dolorosa.
...E como poderia ela se relacionar com o sobrinho do homem que matara seu pai?
—Impossível — Harmony sentenciou, estremecendo. — Sim plesmente impossível. — E assustou-se com
o som da própria voz, que lhe pareceu estranha, sufocada pela angústia. Olhou em torno, para ver se mais
alguém a tinha ouvido.
O policial na sala contígua datilografava velozmente o depoimento que ela prestara pouco antes. E
Harmony concluiu que ele tampouco a havia escutado.
A porta do gabinete se abriu e o capitão Brodwisky avançou na direção de Harmony, com um sorriso
bondoso no rosto envelhecido.
— Tenho boas notícias — ele anunciou. — Capturamos dois suspeitos que correspondem perfeitamente à
descrição que a senhorita nos deu. E, o que é ainda melhor, eles não tiveram tempo de gastar o dinheiro das
doações. — Num tom humorado, concluiu: — Parece que nem tudo é má notícia neste distrito...

CAPITULO III
Mais uma hora se passou, antes que Harmony .fosse liberada pelas autoridades policiais.'Ela já não
saberia dizer quantos papéis havia assinado, nem com quantas pessoas falara no distrito. Agora, tudo o que
desejava era voltar para casa, tomar uma boa xícara de chocolate quente ou uma sopa bem saborosa... E
dormir. Os músculos de seu corpo doíam terrivelmente, devido à tensão das últimas horas.
Depois de despedir-se do capitão Brodwisky e de alguns outros policiais, ela saiu em direção ao saguão do
distrito. E viu Rod, o irmão mais velho, caminhando nervosamente de um lado a outro, as mãos cruzadas
atrás das costas.
Ao vê-la, um sorriso de alívio estampou-se em seu rosto viril:
— Maninha querida, você está bem?
O tratamento carinhoso a fez sorrir. Parecia que o tempo havia retroagido e que ela voltara a ser a criança
frágil que Rod sempre fizera questão de proteger.
— Estou bem, mano, como você pode ver. — E Harmony abriu os braços. Numa das mãos segurava o
violino e, na outra, o arco danificado.
Rod abraçou-a com ternura, beijando-lhe os cabelos longos e anelados. Ele era um belo homem, alto, de
cabelos e olhos negros. Trazia no rosto expressivo a linhagem italiana dos avós maternos. Era o chefe da
família Martin, desde a morte do pai. Aos dezoito anos, Rod assumira a direção do armazém Martin,
confiando à mãe apenas a administração da casa e a educação dos filhos.
Para Harmony era natural que o irmão se comportasse daquela maneira superprotetora. Sabia que, para
Rod, ela seria sempre a menina frágil que precisava de cuidados... Mas às vezes Harmony se irritava com o
fato de Rod não perceber que ela agora era uma
mulher de vinte e seis anos, que crescera e desenvolvera uma visão própria do mundo e da vida.
—Sinto muito por tê-lo incomodado — ela disse, desvencilhando-se delicadamente do abraço. — A esta
hora você deveria estar em casa, jantando.
—Ora, nem pense nisso. O importante é que você está bem, minha criança... — ele sentenciou, fitando-
a com infinita ternura. Era assim que tratava, também, os irmãos caçulas, gémeos de quatorze anos.
—Obrigada por se preocupar tanto comigo, mano — Harmony agradeceu, num tom suave. — Você é
maravilhoso.
— Não diga bobagens... — ele repreendeu-a, embaraçado.
Num impulso, Harmony acariciou o rosto do irmão, a quem compreendia tão bem. Rod era mesmo
assim... Jamais pensava em si mesmo e sim no bem-estar da família, a principal prioridade de sua vida.
Aos trinta anos, ainda não havia se casado, embora namorasse Paula Russel há muito tempo... Tanto, que
o fato já despertava comentários na cidade.
Paula, uma das melhores amigas de Harmony, além de sua colega no conservatório, havia se conformado
em aguardar que os gémeos completassem a maioridade, para realizar o sonho de ter Rod só para si.
Compreendia o senso de responsabilidade do homem que amava e, ao menos aparentemente, não parecia
sofrer com a longa espera.
— Você precisa aprender a receber agradecimentos, Rod — Harmony aconselhou, docemente. — É o
mínimo que nós todos podemos fazer, para demonstrar que reconhecemos sua dedicação.
Ele meneou a cabeça, como se acabasse de ouvir uma grande tolice. E em seguida perguntou:
— Você bateu a cabeça na calçada, quando caiu?
— Não, apenas um cotovelo e os joelhos. — Ela sorriu e sentenciou: — Nada sério, além de uns
hematomas que em breve desaparecerão. Fique tranquilo, mano.
—Só depois que você tirar umas radiografias, para termos certeza de que está realmente bem.
— Isso não será necessário.
— Radiografias não doem e não fazem mal a ninguém.
— Oh, mano, quantas vezes terei de repetir que estou bem?
Ele fitou-a com uma expressão de dúvida, mas por fim aquiesceu:
— Certo... De qualquer forma, amanhã é sábado e você poderá descansar o dia todo. Mamãe e
vovó cuidarão de você, até sua total recuperação.
Harmony começou a rir:
— Você faz com que eu me sinta um papagaio, repetindo que...
— Já entendi — Rod a interrompeu. — Você está bem e eu sou um irmão bobo e coruja. Não há nada
de errado. Você continua sendo a mesma Harmony de sempre, certo?
Harmony pensou, então, que ela já não era o mesma de sempre... Que algo havia mudado em seu íntimo.
Algo que não fora provocado pela queda, mas sim pelo homem que a atendera de maneira tão humana e
gentil.
Fechando os olhos por um instante, ela sentiu o coração contrair-se de angústia. Estava abalada, sim, por
ter descoberto que David se interessava por ela... E sobretudo por saber que jamais poderia falar sobre isso
ao irmão mais velho, a quem tanto amava.
— Vamos embora daqui. — Rod interrompeu-lhe os pensamentos. — Este lugar me dá arrepios.
Harmony não podia tirar-lhe a razão. A lembrança da tragédia ocorrida há doze anos ainda estava bem
vívida em sua mente, como na de Rod. Fora ali, naquele distrito, que ele recebera a notícia da morte do
pai. E que perdera o controle, tentando agredir o policial Douglas Shepard.
Mas mesmo sabendo de tudo isso, Harmony afirmou:
— Preciso me despedir de alguém. Voltarei num instante.
— Eu vou com você.
Harmony assentiu com um gesto de cabeça e, acompanhada por Rod, caminhou pelo saguão à procura da
sra. Gladys Silverman. Avistou-a no início do corredor que conduzia ao gabinete do capitão Brodwisky. A velha
senhora estava conversando com um policial e sorriu ao vê-la:
—E então, minha querida? Parece que tudo já foi resolvido.
Retribuindo o sorriso, Harmony disse:
— Acho que já conhece meu irmão, sra. Silverman.
— Apenas de vista — a velha senhora respondeu, fitando Rod com uma expressão amável: — Como
vai?
— Bem, obrigado — Rod cumprimentou-a com sua reserva habitual.
— Rod... — Harmony voltou-se para o irmão — esta é Gladys Silverman, que esteve a meu lado
durante todo o tempo, desde o momento do assalto.
— Agradeço seu apoio, em nome de toda a família — Rod afir mou, num tom respeitoso.
— Ora... — A velha senhora fez um gesto vago. — Harmony merece todo apoio e consideração deste
mundo.
— Nós a deixaremos em casa — disse Harmony. — E o mínimo que podemos fazer...
— Não se preocupe com isso, senhorita — o policial interveio. — O capitão Brodwisky já me encarregou
de levar a sra. Silverman até sua residência.
— Nesse caso, podemos ir — disse Rod, um tanto brusco. Voltando-se para Harmony, acrescentou: —
Você passou por uma experiência terrível e precisa descansar.
— Rod... — Harmony repreendeu-o, chocada por suas maneiras rudes.
— Vamos. — Ele tomou-a pelo braço, num gesto paternal e autoritário.
Harmony acompanhou-o, contrariada, pronta para censurá-lo pelo seu comportamento grosseiro. Mas
não chegou a dizer nada, pois avistou David saindo de uma sala em cuja porta estava escrito: setor
administrativo. Ele parecia cansado, mas seus olhos brilharam ao vê-la.
O coração de Harmony pulsou acelerado. Rod soltou-lhe o braço e encarou David com um misto de
desdém e ironia:
— Ora, ora... Se não é o policial Shepard! Onde é que você estava quando minha irmã foi assaltada
em frente ao shopping Revells... Tomando chocolate com seus amigos, talvez?
— Rod, pare com isso — Harmony o advertiu, entre os dentes.
Para seu alívio, David ignorou a provocação. Era como se não tivesse ouvido aquelas palavras ofensivas,
pois continuava a fitá-la com intensidade e ternura.
— Você está bem, Harmony? — indagou, com sua voz grave e pausada.
— Sim, obrigada, David — ela respondeu, sem se importar em disfarçar a emoção que a dominava. —
Parece que já fiz tudo o que era preciso. O capitão disse que terei de voltar aqui para reconhecer os
agressores mas, por hoje, estou dispensada.
— Se eu puder ajudar em alguma coisa...
— Ela não necessita de nada nem de ninguém, Shepard —Rod interveio, num tom agressivo.
— Ele está apenas querendo ser gentil, mano — Harmony afirmou, pressionando levemente o braço de
Rod.
— Oh, naturalmente que sim — Rod concordou, num tom sarcástico. — Agora vamos embora daqui,
antes que eu acabe come
tendo uma tolice.
Harmony quis resistir, mas calou-se. Não queria causar uma confusão. David continuava calmo, sem
reagir às provocações de Rod... Mas todos os homens tinham um limite. E Harmony podia imaginar o que
aconteceria, se David perdesse o controle.
— Vamos — Rod insistiu, praticamente arrastando Harmony em direção à porta de saída.
Já na rua, Rod encostou-se à parede do distrito, respirando com dificuldade. Parecia prestes a ter um
colapso e fitou Harmony com ar de acusação:
— Ouvir você falando com aquele... Aquele Shepard! Foi uma das piores coisas que já me
aconteceram na vida. E ainda por cima você o tratou com intimidade, chamando-o de... David! Harmony,
você perdeu o juízo?
Ela pensou em contemporizar a situação. Seria talvez mais sensato calar-se e receber a reprimenda. Mas
Harmony decidiu reagir. Já era mesmo tempo de Rod compreender que ela se transformara numa pessoa
adulta.
—Rod, você agiu mal — disse, num tom severo. — David foi muito gentil e atencioso comigo.
—Se ele estivesse trabalhando, aqueles dois assaltantes não a teriam atacado.
—Ele estava trabalhando e eu gostaria que você pudesse ver a rapidez e eficiência com que me
socorreu.
—Eu não acredito no que estou ouvindo! — Rod exclamou, perplexo. — Minha própria irmã
defendendo um Shepard!
—Ora, pare com essa cena dramática! — Harmony ordenou, surpresa consigo por tamanha ousadia. —
David estava cumprindo seu dever e o fez da maneira mais correta e gentil possível. O que mais você
quer?
—O que eu quero? — Rod encarou-a com uma expressão que era a um só tempo fúria e desespero. —
Quero que os Shepard desapareçam da face da Terra.
Harmony fitou-o, horrorizada:
—Ouça bem, mano... — disse, num tom surpreendentemente calmo — sei das razões que você tem para
não gostar da família Shepard. Mas, neste exato momento, só posso classificar seu com portamento como...
insano.
—E como quer que eu me sinta? Aquele homem representa tudo o que de pior aconteceu em minha
vida... Em nossas vidas, aliás. Eu o odeio, bem como a toda sua maldita família!
Harmony suspirou profundamente:
—Pelo amor de Deus, Rod, vamos parar com essa discussão absurda.
Ele meneou a cabeça e, caminhando a passos largos, aproximou-se do furgão estacionado em frente ao
distrito. Na porta do veículo, o logotipo do Armazém Martin destacava-se, em letras azuis e douradas.
— Entre — Rod ordenou.
E só então Harmony lembrou-se de que havia deixado seu carro estacionado no pátio do shopping Revells.
Como se lhe adivinhasse os pensamentos, Rod anunciou:
— Já liguei para o shopping, avisando que amanhã irei pegar o seu carro.
— Obrigada — Harmony murmurou, acomodando-se no interior do furgão, com o violino no colo.
Rod sentou-se ao volante e acionou o motor. Um silêncio tenso e pesado instalou-se .entre ambos.
O frio era intenso e a neblina estendia-se sobre a cidade, como um véu finíssimo de seda. As luzes no
interior das casas pareciam traduzir o calor daqueles lares, as famílias reunidas em torno da mesa ou diante
de um bom filme na tevê... Appleton inteira exalava a tranquilidade de uma cidade interiorana, como tantas da
região.
Rod foi se acalmando durante o trajeto. Respirava agora de maneira mais compassada, readquirindo o
autocontrole. Um tanto embaraçado, tentou se desculpar pelo que fizera:
— Eu não queria ser rude, mana...
— Vamos esquecer o assunto — Harmony sentenciou, num tom mais brando. — Eu também não queria
discutir com você, mano.
Ele assentiu com um suspiro. Mas ainda tinha algo a dizer:
— Ouça, Harmony... Você era muito jovem quando tudo aconteceu. Como irmão mais velho, senti a
afronta na pele...
— Mas... — ela tentou intervir, mas Rod não permitiu.
— Espere, deixe-me terminar. Não desejo, de maneira alguma, que você se torne uma pessoa amarga
como eu. Você tem bom coração e uma visão leve sobre o mundo e as pessoas. É, de longe, a pessoa mais
equilibrada de nossa família e todos nós a admiramos por isso. Aliás, acho que precisamos disso.
— Obrigada, Rod.
Ignorando o aparte, ele continuou:
— Mas existe limite para tudo. E não permitirei que nenhum Shepard se aproveite de seu bom
coração para insinuar-se em nossa família. — Rod fez uma pausa. — Somos inimigos, entende?
— E afirmo, sem medo de errar, que estou falando não apenas por mim, mas também por mamãe, vovó
Irena e nossos irmãos caçulas.
Harmony sabia que Rod dizia a verdade. Sua avó, Irena, transformara a dor pela perda do filho num ódio
absoluto pelos Shepard. Já a mãe, Olívia Martin, não suportava sequer ouvir o nome da família que ela,
usando uma palavra italiana, costumava chamar de maledetta. Somente os gémeos, que tinham apenas dois anos
na época da tragédia, haviam escapado desse sentimento corrosivo. Apenas faziam piadas inconsequentes sobre
os Shepard e por vezes os provocavam na rua, como faziam com os meninos de turmas rivais.
Harmony era a única que há muito tempo desejava impor um pouco de bom senso naquele ódio ilimitado. E
talvez houvesse chegado o momento, ela pensou, armando-se de coragem para dizer:
—Rod, nós moramos numa cidade pequena. É inevitável que alguém de nossa família, um dia ou outro,
entre em contato com os Shepard. Foi isso que aconteceu comigo, hoje. E agora eu me pergunto: por que
não podemos ser corteses com eles... Que mal há nisso?
—Porque odiamos os Shepard, lembra-se? — Rod contrapôs, voltando a se irritar. — Sobretudo aquele
David... Jamais gostei dele. — Num tom categórico, acrescentou: — E não admito que nenhum Shepard se
dirija a você com intimidade, como David fez, agora há pouco. Ele a olhava de um modo... Ultrajante.
Harmony fechou os olhos por um instante. Então Rod havia percebido o modo intenso com que David a
fitara. E se Rod soubesse que ela havia correspondido àquele olhar, com toda a força de seu coração...!
— Chegamos — disse Rod, estacionando em frente à casa onde moravam. Pegando o violino e o arco do
colo de Harmony, acrescentou: — Deixe que eu leve isto.
Harmony saltou do veículo, erguendo a gola do casaco. Num gesto automático, tentou proteger-se ainda
mais com o cachecol de lã que havia tomado emprestado da mãe, pela manhã. E verificou, chocada, que o
havia perdido em algum lugar, naquela noite infernal.
— Que pena — murmurou, mas não disse nada a Rod, para não perturbá-lo ainda mais.
A porta da casa se abriu. Olívia Martin e vovó Irena correram, aflitas, na direção de Harmony:
— Oh, minha querida... — A mãe beijou-a, emocionada.
—Minha menina... — disse a avó, passando-lhe as mãos trémulas pelos cabelos. — Minha bambina.
As lágrimas afloraram aos olhos de Harmony. Ah, como amava aquelas duas mulheres! A mãe, exceto por
uns poucos fios de cabelos brancos, parecia sua irmã mais velha. Miúda, energética e muito corajosa, Olívia
Martin ainda era uma bela mulher, apesar dos quatro filhos que gerara. A avó Irena, matriarca da família,
era o verdadeiro protótipo da matrona italiana, até mesmo nos rompantes emocionais e nos gestos
exagerados com que acompanhava tudo o que dizia.
— Vamos entrar, filha — disse Olívia Martin. — Você está com as mãos geladas.
— Quando soube do assalto meu coração quase parou. — Vovó Irena continuava a acariciar a neta. —
O que faríamos se perdêssemos você, meu amor? — E as lágrimas escorriam-lhe, abundantes, pelo rosto.
Controlando-se, Harmony procurava acalmá-las:
— Agora, não precisam se preocupar mais. Eu estou bem, como podem ver.
— Jura? — Olívia Martin fitou-a com ansiedade.
— Claro que juro, mamãe. Tudo já passou... Foi apenas um susto.
— Escutem, que tal continuarem essa conversa lá dentro? — Rod sugeriu, com a voz embargada pela
emoção que já não conseguia esconder.
— Sim, vamos... — vovó Irena concordou.
Assim que Harmony entrou na sala, circundada pelos mais velhos, os gémeos correram para ela, exibindo
um largo sorriso nos rostos excitados. Para eles, tudo fizera parte de um jogo assustador, mas ainda assim
divertido. Com a inconsequência própria da idade, começaram a bombardear a irmã com uma enxurrada de
perguntas. Queriam saber de todos os detalhes da aventura:
— Eles eram muito grandes, Harmony? — indagou Christopher. — Iguais aos bandidos dos filmes do
007?
— Usavam adagas ou pistolas? — Brandon quis saber.
Mas antes que Harmony respondesse, vovó Irena pôs fim ao alarde, tirando o chinelo de couro e
empunhando-o como se fosse uma arma:
— Já para o quarto, vocês dois, antes que eu lhes esquente os traseiros.
O protesto dos gémeos, que não estavam nem um pouco dispostos a perder a narrativa da aventura, soava
a Harmony como uma doce música. Comovida, ela resolveu interceder:
— Tratem de lavar as mãos e depois me encontrem na cozinha. Tomaremos um chocolate quente
juntos e eu lhes contarei tudo o que quiserem saber... Que tal?
Vitoriosos, os gémeos subiram correndo as escadas que conduziam aos dormitórios. A noite prometia
grandes novidades...
Livre do acesso dos gémeos, Harmony suspirou fundo. A casa, antiga e bem conservada, cheirava a pinho e
baunilha. Vovó Irena certamente fora pega de surpresa enquanto preparava doces caseiros para o fim de
semana, ela concluiu, em pensamento. Como era bom estar ali, no seio da família, como um pássaro na
proteção do ninho... E Harmony sentiu novamente as lágrimas afluindo aos olhos. Aquela era a sua casa,
seu lar, seu porto seguro.
— O que há com você, filha? — Olívia perguntou, preocupada, ao vê-la chorando.
Harmony sorriu, por entre as lágrimas:
— Oh, nada, mamãe. Estou apenas feliz.
— Então por que chora, bambina! — vovó Irena indagou, docemente.
— Acho que é emoção... — Harmony continuava sorrindo. — A propósito, estou faminta. Quero um
prato com sanduíches bem caprichados e uma grande xícara de chocolate.
— Não acredito no que estou ouvindo! — vovó Irena exclamou, satisfeita. — Parece que o susto abriu
o apetite de passarinho dessa menina.
As duas mulheres afastaram-se em direção à cozinha. Harmony ia segui-las, quando Rod segurou-lhe o
braço:
— Veja lá o que vai dizer a elas...
— Não tenho nada a esconder — Harmony retrucou. — E gostaria que você parasse de me olhar como
se eu fosse culpada de
alguma coisa.
— Você entendeu muito bem o que eu disse — Rod insistiu, caminhando a seu lado em direção à
cozinha.
Observando a mãe e a avó que se movimentavam ao redor de uma grande mesa, ajeitando talheres e
dispondo xícaras de porcelana antiga, Harmony sentiu o coração se apertar. Ela era uma pessoa feliz,
naquele lar que há doze anos fora abalado por uma terrível tragédia. E aquelas duas mulheres, que tanto
tinham sofrido a perda do marido e filho, haviam sobrevivido à tragédia, movidas pela consciência de que
era preciso seguir adiante, para criar os filhos e manter a dignidade da família.
Harmony compreendia, agora, o que Rod queria dizer, com sua advertência... Ela simplesmente não
poderia causar um desgosto às mulheres que mais amava no mundo.
A imagem de David veio-lhe à mente, com uma nitidez cruel. E Harmony teve vontade de gritar, de
protestar contra o destino injusto, contra os caprichos dolorosos da vida. Queria dizer ao mundo inteiro que
ela era um ser humano que, além da família, necessitava também de um outro tipo de amor... O amor de um
homem que a visse como mulher, matriz de uma nova família a gerar novos frutos.
"Será que nunca terei permissão para amar o homem que cativou meu coração?", perguntou-se, contendo
as lágrimas que ameaçavam inundar-lhe novamente os olhos.
Mas apesar de toda a revolta que se erguia em seu íntimo, Harmony disse a si mesma que teria de desistir
de David Shepard.
— Venha se sentar, filha — Olívia convidou, longe de supor-lhe os pensamentos.
Os gémeos entraram na cozinha correndo, fazendo um grande alarido. Acomodaram-se à mesa, com os
olhos fixos em Harmony.
— E então? — Brandon indagou. — Você vai nos contar, agora?
— Claro que vai, mano — Christopher retrucou. — Ela prometeu, não foi?
— Meninos... — vovó Irena os repreendeu.
— Deixe — Harmony interveio. — É melhor eu dizer tudo de uma vez, assim eles sossegam.
— Oba! — Brandon exclamou, excitado. -— Diga, maninha, como eram os assaltantes?
— Não deu para ver direito — ela respondeu, pacientemente. — Eram dois. Me atiraram no
chão e fugiram, levando a sacola com os donativos.
— Tinha muito dinheiro? — Christopher perguntou.
— Acho que havia mais de cem dólares. — E Harmony voltou-se para a avó. — Consegui proteger o
violino, mas quanto ao arco... Não deu para salvá-lo. Ele se partiu em dois. Sinto muito, vovó... —
acrescentou, sabendo o quanto a velha senhora estimava o instrumento, que pertencera a seu marido
durante anos.
— Mas essa bambina tem cada uma... — Vovó Irena sorriu. — Eu estou preocupada é com
você, minha querida. O arco é um bem precioso, mas pode ser consertado.
— Que bom que a senhora pensa assim.
—- Continue, mana — Brandon pediu.
— Vocês não acham que já fizeram perguntas demais? — Rod interveio, num tom severo.
—Mas Harmony disse que ia contar tudo — Christopher argumentou.
— E é exatamente isso que farei — ela afirmou, desviando os olhos dos de Rod, que a fitava com
apreensão.
Acostumada desde muito jovem a dar aulas, Harmony tinha o dom da comunicação e desenvolvera uma
forma especial de passar informações. Sabia como captar a atenção das pessoas e, principalmente, valorizar
certos detalhes.
Foi exatamente isso que fez, narrando o assalto como se falasse de uma história vivida por outra pessoa,
sem se deter nos momentos difíceis, dando ao fato a maior leveza possível.
Os garotos, bem como Olívia, vovó Irena e o próprio Rod, a ouviam atentamente. E Harmony falava com
desenvoltura... Mas e quando chegasse o momento de contar sobre o policial que a havia atendido?, ela se
perguntou, preocupada.
Appleton era uma cidade pequena, onde a maioria das pessoas se conheciam. Seria natural, portanto, que
os garotos quisessem saber quem fora o herói da história...
—Assim... — disse Harmony, chegando ao ponto crucial da narrativa e imprimindo um tom quase
neutro à voz — o policial David Shepard me ajudou a rememorar o assalto em todos os detalhes.
Consegui fazer uma descrição precisa dos agressores, o que resultou em sua captura, num tempo recorde
— finalizou, evitando mais uma vez o olhar de Rod.
—Ainda bem que você saiu quase ilesa, apenas com alguns hematomas — vovó Irena comentou, a voz
trémula pelo nervosismo. — Esses Shepard, quando entram em ação, são capazes de fazer mais estragos
do que os bandidos.
—É verdade — Olívia concordou, no mesmo tom. — Outro dia, no mercado municipal, a caçula dos Shepard
provocou um verdadeiro escândalo com o rapaz do caixa. E uma gente sem classe, que nem sequer merece
viver numa cidade pacata como a nossa.
Harmony sentiu um profundo desgosto ao ouvir aquelas palavras. As pessoas que mais amava no mundo
continuavam a odiar a família Shepard por algo que ocorrera há muito tempo. Era no mínimo injusto...,
Harmony pensou, lembrando-se de Shawna Shepard, a garota a quem sua mãe acabava de referir-se.
Shawna fora sua aluna de teoria musical, no conservatório, no ano anterior. E Harmony a admirava por sua
inteligência viva e grande senso de companheirismo que demonstrava com relação aos colegas que
encontravam dificuldades na matéria. Isso, sem contar que a garota tinha um senso de humor nato, uma
alegria contagiante.
Interrompendo os pensamentos, Harmony sentenciou:
— O policial David Shepard foi muito cortês e eficiente. Nada tenho a dizer contra a atuação
dele, neste caso. — E deu prosseguimento à narrativa: — Bem, depois de prestar-lhe meu depoimento, fui
conduzida ao distrito por outros policiais. Fiquei lá por um longo tempo, à disposição do capitão Brodwisky.
Ele me tratou com gentileza e demonstrou um grande senso de profissionalismo. — Harmony voltou-se
para Rod e viu que ele já não estava tão tenso quanto antes. Ao contrário, fitava-a quase com gratidão, por
ela não ter se prolongado demasiadamente ao falar de David She-pard. Erguendo-se, Harmony finalizou
num tom humorado: — E assim chegamos ao final de nossa aventura, pessoal. Agora, se vocês me dão
licença, vou tomar um banho e trocar essas roupas incómodas por um pijama de flanela...
— Faça isso, filha — Olívia aprovou. — Mas antes termine de tomar seu chocolate.
Harmony assentiu, levando a xícara aos lábios. A conversa derivou para outros assuntos e ela pôde enfim
terminar seu lanche. Em seguida despediu-se de todos e foi para o quarto. Havia contornado um problema
difícil... Ao menos momentaneamente. Mas algo lhe dizia que problemas ainda mais sérios estavam por vir.

CAPITULO IV

O sábado em Appleton amanheceu azul. Não ha-' via nenhuma nuvem no céu límpido. Mas o sol,
distante, pouco aquecia a terra enregelada pela noite de vento forte. O inverno se aproximava.
Harmony acordou com os ruídos habituais da casa e levou algum tempo para situar-se no dia que começava.
Uma leve pontada no joelho esquerdo fez com que ela se lembrasse, imediatamente, do assalto ocorrido na
noite anterior em frente ao shopping Revells.
Harmony recordou-se de tudo... Mas a memória se deteve diante da imagem de um par de olhos azuis como
safiras, que a fitavam com ternura e desejo.
— David... — ela murmurou, com um leve sorriso.
Revivendo a sequência dos acontecimentos, Harmony demorava-se nas cenas onde o policial mais se
aproximara dela, tocando-lhe o coração inexperiente na arte do amor e da sedução. Era intensa a emoção que
a dominava, ao recordar-se do contato das mãos, das palavras ternas, da súplica de David para que se en-
contrassem em outra ocasião...
Os ruídos da casa foram se distanciando lentamente.
Mergulhando naquele espaço intermediário entre o sono e a vigília, Harmony deixou-se embalar pelas
imagens escolhidas por sua mente caprichosa. Ali, não havia a premência da dura realidade... Ali ela podia
sonhar.
Quando desceu as escadas, banhada e vestida, o velho relógio de carrilhão, na sala, marcava meio-dia e
meia.
O almoço já estava servido. Vovó Irena, Olívia e os gémeos acomodavam-se ao redor da ampla mesa,
forrada com uma toalha branca de linho. Todos pareciam felizes, ignorando propositadamente o assalto
ocorrido na noite anterior. Era um fato passado e, com sua sabedoria, vovó Irena tinha ordenado aos
gémeos que não tocassem mais no assunto.
Assim, durante o café servido após o almoço à base de massas caseiras, Harmony sentiu-se à vontade
para comunicar à família:
— Hoje, às seis da tarde, voltarei a me apresentar na calçada do shopping Revells, tal como havia
combinado com o conselho municipal e a diretora do orfanato.
Olívia empalideceu, mas cerrou os lábios com firmeza. Vovó Irena, depois de refletir por alguns instantes,
indagou num tom sereno:
—Não acha que é um pouco cedo para retomar o trabalho, bambina?
—Não — Harmony respondeu, calmamente. — Estou bem, vovó. E esta é a melhor época do ano para
coletar fundos para o orfanato. Também não quero que as pessoas supervalorizem a agressão que sofri.
Nossa cidade é pacífica e ordeira. O que aconteceu ontem foi uma lamentável exceção. De mais a mais...
— Harmony sorriu — não quero que pensem que fiquei assustada...Ou com medo.
Tanto Olívia quanto Irena compreendiam muito bem o que Harmony queria dizer. Cada uma delas havia
enfrentado situações difíceis, e se comportado com bravura. A mais nova mulher da família Martin queria
estar agora à altura das outras. E essa era a maneira mais clara de fazê-lo.
— Você vai mesmo tocar hoje? — Christopher perguntou.
— Sim, meu bem — Harmony reafirmou.
— Mas o arco do violino está quebrado — disse Brandon.
— Passarei pelo conservatório antes e tomarei um emprestado.
— Aposto que Rod não vai gostar disso... — Christopher comentou.
— A propósito, onde está ele? — Harmony indagou.
—Foi almoçar com Paula — Olívia respondeu. — Os dois ainda não tiveram tempo de se ver nessa
semana, pois Rod é muito ocupado.
—Ele ainda vai acabar perdendo a namorada — Brandon comentou.
—É verdade — Christopher secundou. — Ele não liga a mínima para a pobre Paula. Eu, se tivesse uma
garota tão linda quanto ela...
—Calem a boca — vovó Irena ordenou. — Vocês dois são muito crianças para se intrometer nesses
assuntos.
—Tudo bem — Brandon assentiu, dando de ombros. — Mas ainda acho que Rod...
— Você não acha nada, bambino — vovó Irena o repreendeu. — E pare de se intrometer na conversa
dos adultos.
— Certo — Foi a vez de Christopher intervir. — Nós não entendemos nada dos assuntos de vocês. Mas
que Rod vai ficar furioso por Harmony tocar hoje, ah, isso vai...
— Deixe Rod comigo — disse Olívia, sorrindo para a filha com ar compreensivo. — Eu sei como
convencê-lo.
—. Obrigada, mamãe. Sabia que vocês entenderiam minha posição. — E Harmony deixou a mesa. —
Com licença.
David Shepard fazia sua ronda a pé pelo centro comercial de Appleton. Como de costume, trajava o
uniforme azul da corporação, com os botões de metal bem polidos, as calças e jaqueta impecáveis.
Seus pensamentos invariavelmente voltavam-se para Harmony e os acontecimentos da noite anterior.
Uma sensação de esperança o invadia, ao lembrar-se de que Harmony o havia tratado de maneira amável,
mesmo na presença de Rod, que se mostrara desagradável e agressivo... Como aliás era de se esperar.
"Harmony podia ter agido friamente, diante do irmão", David pensava, com um sorriso que era a um só
tempo esperança e alegria. "Entretanto, foi atenciosa e delicada comigo... Na verdade, foi encantadora."
Embalado por essas doces lembranças, ele continuava sua ronda, naquele anoitecer frio que anunciava o
rigoroso inverno que se aproximava.
A melodia insinuante da suíte Quebra-nozes, de Tchaikowisky, chegou aos ouvidos de David assim que
ele entrou na avenida principal do centro da cidade.
O instrumento que produzia aquelas belas linhas sonoras era um violino... E isso fez com que o coração
de David se acelerasse.
Apressando o ritmo dos passos, ele aproximou-se do cruzamento com a rua Salt Lake, que dava acesso ao
shopping Revells. Antes mesmo de dobrar a esquina, já havia reconhecido quem estava executando a
música. Mas relutava em acreditar que Harmony estivesse ali.
Bem, talvez ela houvesse gravado uma fita, que agora rodava no aparelho de som do shopping e soava
através dos possantes auto-falantes do estabelecimento. Sim... Talvez fosse isso, David pensou, caminhando
cada vez mais rápido.
E lá estava Harmony, cercada de espectadores que a ouviam atentos, segurando pacotes de compras,
protegidos por grossos casacos de lã.
A diferença era que Harmony não estava assustada ou pálida, como na noite anterior. Ao contrário,
parecia tão à vontade, entregue à música, balançando levemente o corpo, o violino preso sob o queixo, o
braço direito erguido e a mão segurando com delicadeza o arco que deslizava sobre as cordas.
— Harmony — ele murmurou, com um largo sorriso, enquanto se aproximava.
Qualquer pessoa que passasse pela experiência traumatizante de um assalto como o da véspera,
evitaria sair à rua ao menos por alguns dias, David pensou.
Harmony era mesmo uma mulher surpreendente, ele concluiu, encantado. Por trás daquela aparência
delicada e da beleza um tanto frágil havia uma mulher determinada, que não se acovardava diante das
adversidades da vida.
"Justamente o caráter que se espera da mulher ideal", ele disse para si, tomado por um misto de orgulho
e admiração.
Era tolice sentir-se daquela maneira, já que não tinha nenhum compromisso com Harmony. Mas embora
a esperança de torná-la sua mulher fosse mais ténue do que um fio de seda pura, David era obstinado e
tinha uma fé cega diante da vida, do destino e das pessoas.
Desde os dezoito anos elegera Harmony como o centro dos seus sonhos. Por quantas vezes não imaginara
como seria construir uma vida com aquela mulher!
Vê-la crescer de longe, acompanhar cada feito de sua carreira musical, havia se tornado para David um
hobby divertido, um meio de suportar a solidão e acalentar as mais doces esperanças.
No exato momento em que David chegava ao círculo de espectadores, Harmony concluiu a música e
resolveu fazer uma pausa. Estava cansada. Precisava de uma bebida quente e do calor que exalava do
interior do shopping Revells cada vez que a porta automática se abria, dando passagem a clientes felizes e
apressados.'
Segurando o violino e o arco numa das mãos, Harmony pegou a estante com as partituras e a sacola de
donativos com a outra. Em seguida caminhou para dentro do shopping.
Aquela não era a hora nem o lugar ideal para uma abordagem e David sabia disso muito bem. Mas não
podia perder a oportunidade, de jeito nenhum. Além do mais ele trazia, no bolso da jaqueta, um precioso
pretexto para falar com Harmony...
Armando-se de coragem, sentindo o coração pulsar como o de um colegial prestes a encontrar-se com a
primeira namorada, ele transpôs a porta do Revells.
Não tardou a avistar Harmony no balcão da lanchonete, tomando uma xícara de chocolate fumegante. A
seu lado, estava a
estante com as partituras. No balcão, o violino e o arco, ao lado da sacola de donativos.
— Boa noite, Harmony — ele cumprimentou-a, com um sorriso e um olhar intenso. — Vejo que se
recuperou rápido do incidente de ontem.
Ela ergueu os olhos e corou, provocando em David uma onda de infinita ternura.
— Olá, David. O que faz por aqui?
— Entrei para cumprimentá-la e saber como estava passando...
—Não creio que tenha sido uma boa ideia... — Ela olhava em torno, com uma expressão preocupada.
Ao que tudo indicava, as pessoas que transitavam pelo shopping não estavam nem um pouco interessadas
no que se passava entre Harmony e David. Cada uma delas parecia estar cuidando de sua própria vida,
procurando ofertas vantajosas que as lojas ofereciam, devido à proximidade das festas de fim de ano. Além
do mais, o clima era festivo e alegre... E Harmony sentiu-se mais relaxada. Tanto, que sorriu para o homem
que ocupara-lhe os sonhos e a mente desde a noite anterior.
— Eu precisava falar com você — David confessou, em voz baixa.
—Estou muito bem, como você pode ver — ela respondeu, docemente.
—Na verdade, você me parece mais do que bem... Está simplesmente linda — ele acrescentou, fitando-a
no fundo dos olhos.
Harmony usava um casaco diferente naquela noite. Era longo, de um tom azul que combinava
perfeitamente com seus longos cabelos anelados e loiros.
Contemplando-lhe o rosto alvo, de traços perfeitos, David comparou-o mentalmente a um lírio que
desabrochasse, solitário, numa jarra azul...
Incapaz de controlar a emoção que o dominava, ele estendeu a mão e tocou os cabelos de Harmony,
dizendo:
—Admiro muito sua coragem, mas acho que não deveria ter voltado a tocar, hoje. Talvez fosse mais
sensato esperar alguns dias...
—Foi o que minha avó disse. Mas não fiz isso por coragem e sim por um senso de responsabilidade. O
orfanato de Appleton precisa de donativos para terminar a construção de uma nova ala que, quando ficar
pronta, poderá abrigar mais trinta crianças. Isso é muito mais importante do que um susto ou os
hematomas que, por sinal, nem estão doendo — afirmou, num tom simples, que só serviu para fascinar
David ainda mais. Queria tanto ter evitado o que lhe aconteceu, Harmony...
—Ora, David, ninguém poderia... Aliás, você foi maravilhoso durante todo o tempo. E sinto muito por
meu irmão Rod não ter reconhecido isso.
— Não faz mal.
— Ele foi grosseiro com você.
— Mas eu não me ofendi, em absoluto — David afirmou. Sorrindo, acrescentou: — Na verdade, fiquei
muito feliz...
— Com as palavras ofensivas de Rod? — ela indagou, espantada.
— Não — ele respondeu, emocionado. — O que me deixou feliz foi a descoberta de que você não odeia
minha família, tal como todos os Martin. Isso demonstra o quanto você é íntegra, correta e despida de
preconceitos. — Antes que Harmony retrucasse, ele tirou do bolso da jaqueta o cachecol que ela havia
perdido na noite anterior. — Você o esqueceu no escritório de Lawrence Burton, ontem. Achei que este
seria um ótimo pretexto para vê-la novamente... — confessou, com um sorriso maroto, que mais parecia o
de um menino travesso.
Os olhos castanhos de Harmony brilharam de satisfação. Aquele cachecol, embora fosse uma simples peça
de lã, tinha para ela um grande valor estimativo. Tomando-o nas mãos, Harmony já ia agradecer a David,
quando notou um broche preso à lã.
— O que é isto? — indagou, surpresa.
— Um presente que tomei a liberdade de acrescentar ao cachecol. Servirá como prendedor, para que você
não o perca de novo.
O broche, em forma de borboleta, era de ouro. As asas, incrustadas com minúsculas pedras preciosas e
multicoloridas, pareciam reais.
Harmony logo concluiu que aquilo não era uma simples bijuteria, mas sim uma jóia autêntica. E apesar
de comovida pela beleza da peça e, sobretudo, pelo gesto de David, ela sentiu-se na obrigação de recusar:
— Perdoe-me, mas não posso aceitar.
— Por que não? Trata-se de um simples presente de um ad mirador que, entre outras coisas,
pretende ser seu amigo.
— Mas isto não é um simples presente, como você diz, e sim uma jóia preciosa!
— Encontrei-a no Thesouros de Segunda Mão — David explicou, referindo-se à loja da sra. Gladys
Silverman, que vendia antiguidades e jóias. — Fui visitar sua velha amiga hoje de manhã e acabei
descobrindo a peça... Não é bonita?
— É linda, David, mas...
— A sra. Silverman contou-me que esse broche pertenceu a um colecionador de borboletas vivas, que
tinha um jardim cheio de flores que as atraíam a cada primavera... Para ele, era um prazer vê-las voando,
desenhando verdadeiras preciosidades no ar. Ele não precisava capturá-las e guardá-las num quadro, como
fazem os cientistas. Era um romântico e sabia apreciar-lhes a beleza, sem necessidade de matá-las ou torná-
las cativas. — Baixando os olhos, David finalizou. — Eu... Achei que seria uma boa ideia... E que você
gostaria do presente.
— Eu adorei — Harmony afirmou, emocionada.
— Então, aceite-o. — Um pouco mais animado, David acrescentou: — Se estiver preocupada
com o preço que paguei pela peça, esqueça... A sra. SOverman cedeu-me praticamente de graça, quando
soube que era para você.
— Oh, David...
—Aceite — ele insistiu, num tom que era quase uma súplica.
Harmony contemplou o cachecol que tinha nas mãos... Ali estava o último presente que William Martin dera a
Olívia Martin, antes de ser morto estupidamente pela bala disparada por Douglas She-pard... Que vinha a ser
tio do homem que agora insistia para que ela aceitasse o broche como prendedor do cachecol! Era irónico,
cruel e triste, ela pensou, antes de dizer:
— Eu não saberia como explicar a minha família de onde veio esta jóia... Entende?
— Diga a verdade — David sugeriu, com um olhar de desafio.
— Não posso.
— Harmony... — Ele elevou a voz. — Nós não somos culpados pelo que aconteceu no passado.
Já lhe disse isso e você pareceu concordar.
— Não se trata de nós dois, David...
— Aí é que você se engana — ele discordou, num tom mais calmo. — Trata-se apenas de nós
dois. Amo tanto minha família quanto você a sua. Mas temos de seguir nosso destino e lutar para
sermos felizes. Ou acha que devo me conformar em viver frustrado pelo resto dos meus dias, abrindo
mão de você?
— Fale baixo, David — ela o censurou, olhando ao redor com uma expressão apreensiva. —
Parece que você não quer entender que meu pai está morto e que foi um Shepard que o matou.
— Existe uma diferença muito grande entre assassinato e acidente — David argumentou. — O
que ocorreu entre seu pai e meu tio foi um lamentável acidente e ninguém conseguiu provar o contrário.
— Mas meu pai morreu e seu tio continua vivo — Harmony retrucou, ríspida.
— Vivo e removido para Chicago, contra sua vontade. Não quero fazer comparações, Harmony,
pois isso seria absurdo. Mas meu tio Douglas também sofreu uma grande reviravolta em sua vida. Teve de
abandonar a cidade que amava, os amigos e a família, para viver numa terra distante, apesar de sua
inocência ter sido provada no tribunal. Que droga!, ele só estava tentando cumprir seu dever e... — David
interrompeu-se, ao ver a palidez de Harmony. Arrependido por ter falado de maneira tão dura, procurou
desculpar-se: — Oh, por favor, queira me perdoar. Queria tanto
evitar esse assunto doloroso, entre nós... Por favor, me ajude a lutar contra o passado. Todos nós já
sofremos muito, por um longo tempo, pelo que aconteceu.
— E exatamente por isso que não posso causar ainda mais desgosto a minha família. Imagine como
eles se sentiriam se soubessem que... — Harmony não concluiu a frase. Com um gesto trémulo,
desprendeu o broche do cachecol e entregou-o a David.
— Sinto muito, mas não posso aceitar.
— Sente-se melhor assim, Harmony? — ele indagou, recusando-se a pegar a peça. Então viu a
angústia que se estampava naqueles olhos castanhos que tanto amava... E cedeu. Tomando o broche nas
mãos, olhou-o por um instante antes de colocá-lo no bolso. — Está bem. Vou guardá-lo para você. Acho que
me precipitei... Desculpe-me. — Curvando levemente a cabeça, num triste cumprimento, David afastou-se
em direção à saída.
Harmony ainda esboçou um gesto para detê-lo, mas desistiu. Não tinha nada a dizer.
— Harmony... Ei, Harmony...
A voz parecia vir de longe e Harmony levou alguns instantes para compreender onde estava e quem a
chamava.
— Oh, é você, Paula? — disse, por fim. — Pensei que não houvesse mais ninguém por aqui.
Ambas estavam no patamar reservado ao coro da igreja. Harmony, sentada diante do órgão de tubos. E,
Paula, em pé, a seu lado, sorrindo com ar zombeteiro.
— Ora, ela fala! — exclamou, num tom brincalhão. E sacudindo a mão em frente aos olhos de
Harmony, gracejou: — Agora me diga: quantos dedos você vê?
Afastando a mão da amiga, Harmony protestou:
— Ora, não me perturbe. Está chegando de onde, Paula?
—De Marte. E devo estar meio invisível, já que você nem se deu conta de minha presença. — Paula
continuava a brincar. — E você, amiga, em que planeta estava?
— Já chega, Paula — Harmony repreendeu-a, num tom carinhoso.
Assumindo uma expressão mais séria, Paula indagou:
— yocê está bem?
— E claro que sim.
Mas a verdade era que Harmony ainda sentia-se presa da noite anterior, quando David lhe devolvera o
cachecol e tentara lhe dar um presente... Que ela não pudera aceitar.
Afastando a lembrança daquele encontro doloroso, Harmony explicou:
—Não dormi muito bem, na noite passada. Além disso tive de corrigir algumas provas do conservatório, o
que me deixou muito cansada. E agora preciso acabar a adaptação da peça de Bach para o coral.
—É melhor você trabalhar mais devagar, senão acabará precisando de uma licença médica.
Harmony sorriu para Paula Russel, sua melhor amiga e namorada de Rod. Paula era loira, do tipo
mignon, extremamente energética e ativa. Estimava Harmony como a uma irmã.
—Você precisa se cuidar, Harmony Martin, para não sofrer um esgotamento por excesso de trabalho.
— Você parece minha mãe, quando fala assim.
—As mães quase sempre têm razão, quando se trata da saúde dos filhos — Paula retrucou. — Por que não
deixa essa adaptação da peça de Bach para outro dia?
—O padre Bernard está contando côm esse arranjo para hoje à noite. E não quero decepcioná-lo.
—Quer dizer que você pretende terminar o arranjo, ensaiar o coral e cantar na missa, antes de ir para
casa descansar?
— E tenho outra saída?
—Tem, sua cabeça-dura. Levante-se deste banco, vá até a sacristia, ligue para o padre Bernard,
explique-lhe que está se sentindo mal e que não poderá...
Harmony tapou a boca da amiga com a mão, num gesto cómico. Paula fingiu-se furiosa, mas compreendia
muito bem qual era a única solução para o caso: sentar-se ao lado de Harmony e ajudá-la a concluir o
trabalho.
— Chegue para lá e me dê um desses lápis vermelhos. O que faço com a linha dos tenores? Transponho
direto, ou você pretende corrigir a composição de Bach, também?
— Obrigada, amiga. — Harmony sorriu, cansada. — Anote só a parte dos baixos, até chegar na linha do
Fá... Assim. — E mostrou como se fazia.
Ambas debruçaram-se sobre o trabalho, muito concentradas e eficientes. Harmony fazia soar os velhos
tubos do órgão, quando tinha dúvidas sobre alguma passagem da música. Em seguida retomava a escrita
musical.
Cerca de quarenta minutos depois a partitura estava pronta... Ao menos era isso que Paula pensava, ao
exclamar:
— Ufa! Terminamos. Agora podemos tomar um chá e conversar um pouco, você não acha?
— Só depois que eu tirar xerox da partitura.
— Meu Deus! E você pretende usar aquela geringonça do tempo dos dinossauros, para fazer isso? —
Paula referia-se à velha máquina xerox que havia na sacristia.
— Sim.
— Lá vamos nós. para mais meia hora de sofrimento — Paula protestou. — Sabe de uma coisa,
Harmony? Acho que você está tentando ganhar um lugar de destaque no céu... Só pode ser isso.
— Deixe de resmungar e vamos ao trabalho. Daqui a pouco os coralistas começarão a chegar.
Ambas caminharam em direção à sacristia. Pouco depois, estavam empenhadas em xerocopiar a
partitura.
— Eu soube do que aconteceu com você, em frente ao shopping Revells — Paula comentou. — Quer
falar sobre isso?
— É a última coisa que desejo fazer, neste momento.
— Era o que eu imaginava... — Paula suspirou, com ar exageradamente dramático. — As velhas
amigas são sempre as últimas a saber...
Harmony sorriu:
— Você é impagável, Paula Russel.
— Veja só quem fala!
Ambas riram e deram seguimento ao trabalho.

CAPITULO V

Denise Green, a melhor organista de Appleton, estacionou o carro no pátio da igreja e caminhou a passos
largos para a sacristia.
Estava um pouco atrasada e muito preocupada com a missa que se realizaria naquela noite. Tratava-se
de uma cerimónia especial, que o padre Bernard fazia questão de realizar todos os anos, em homenagem
aos fundadores da cidade. Para essa cerimónia, ficara combinado que Harmony Martin adaptaria uma peça do
compositor Joham Sebastian Bach para o coral. E Denise Green receava que a competente violinista não
conseguisse fazê-lo.
Como a maioria das pessoas que pertenciam ao círculo musical da cidade, Denise ficara sabendo do assalto
em frente ao shopping Revells. E podia imaginar como Harmony estaria se sentindo...
Por isso surpreendeu-se ao encontrar Harmony e Paula numerando as cópias da partitura que saíam da
velha máquina xerox, utilizada para os serviços internos da paróquia.
— Que maravilha! — Denise exclamou, aproximando-se. — Posso ver?
— Claro — disse Harmony, sem interromper o que fazia. — E se quiser colaborar, há tarefas para
todos.
A organista tomou uma cópia nas mãos.
— Que belo trabalho... Profissional, como sempre. Você é o máximo, Harmony Martin. A propósito,
fiquei sabendo do que aconteceu sexta-feira, no Revells. Sinto muito por você, querida.
— Não foi tão grave assim. — Harmony sorriu. — A polícia conseguiu recuperar o dinheiro e prender os
assaltantes na mesma noite.
— Como naqueles filmes de ação da tevê — Denise gracejou.
—Não seja infantil, garota — Paula repreendeu-a. Em seguida pediu: — Veja se acha mais grampos ali na
escrivaninha. O grampeador está vazio.
—Certo... Vocês é quem mandam — Denise aquiesceu, já abrindo as gavetas da escrivaninha. Enquanto
procurava pelos grampos, perguntou: — Você não vai me contar como foi, Harmony?
— Se está se referindo ao assalto, esqueça — Paula interveio.
— Temos de concluir este trabalho e, se quiser nos ajudar, é bom começar logo.
— Entendi a mensagem — Denise afirmou, com ar brincalhão. — Não está mais aqui quem
falou.
— Otimo — Paula assentiu, num tom sério.
Harmony fitou a amiga com gratidão. Além de ter dominado sua própria curiosidade sobre o fato, Paula
agora a protegia contra a indiscrição alheia.
— Aqui está — disse Denise, entregando uma caixa de grampos a Harmony. E não resistiu à tentação de
comentar: — Disseram que seu violino ficou danificado...
— Apenas o arco se partiu ao meio. Já levei-o para Christian Verdaguer. Ele o consertará para mim —
Harmony explicou, com um suspiro.
Sentia-se indisposta e sabia que a chegada dos coralistas traria uma chuva de perguntas chatas e
indiscretas, que ela teria de responder com paciência.
"É compreensível que as pessoas ajam dessa maneira", pensou. "Afinal, a curiosidade faz parte do ser
humano. E, além do mais, não é todo dia que ocorre um assalto desse tipo em Appleton."
— Terminei — ela anunciou, cerca de quinze minutos depois. — E você, Paula?
— Só faltam mais duas cópias. Dal poderemos tomar um chá bem quentinho e conversar um pouco.
— Ainda não, Paula — Harmony discordou. Voltando-se para Denise, anunciou: — Gostaria de ensaiar
as linhas das vozes. Você poderia tocar o acompanhamento no órgão e cantar a parte dos sopranos?
— Claro.
— E você faria a parte dos contraltos, Paula?
— Sim.
— Então, vamos.
A noite caía, quando os integrantes do coral chegaram à igreja. O ensaio começou imediatamente.
Alguns retardatários iam se acomodando, em silêncio, em meio aos colegas, compondo assim os quatro
naipes vocais que formavam o coro: sopranos, contraltos, tenores e baixos.
A música soava de maneira quase mágica, na acústica perfeita da igreja. Como os coralistas já conheciam
a peça, não tinham dificuldades em executá-la. Preocupavam-se apenas com as novidades do arranjo criado
por Harmony, que provocou vários elogios.
Tudo corria muito bem e Harmony sentia-se bastante satisfeita. Estava exausta, mas o trabalho valera a
pena.
Após uma hora e meia de ensaio, sem intervalo, todos estavam prontos e seguros para a apresentação.
— Padre Bernard vai dar pulos de alegria quando ouvir isto — disse uma das coralistas.
— Imagine o velho padre pulando — um rapaz gracejou.
— Vamos parar de brincadeiras, pessoal — disse Harmony. —O tempo corre e não queremos atrasar a
missa, certo?
Era hora de trocarem as roupas comuns pelo uniforme do coral: túnica branca com detalhes em azul para
as mulheres, camisa e calças brancas com gravata de laço azul para os homens. E, assim, todos dirigiram-se
ao vestiário.
Harmony sentia-se aliviada por não ter sido bombardeada pelas perguntas previsíveis. Tudo correra de
modo tão rápido e dinâmico, que ninguém tivera tempo de questioná-la sobre o assalto.
Em meio a brincadeiras e conversas animadas, os coralistas se aprontaram para a apresentação. Cerca de
meia hora depois, foram avisados por uma senhora da congregação de que a igreja seria aberta ao público
em quinze minutos.
Conscientes da importância da ocasião, os coralistas fizeram silêncio e dirigiram-se, em pequenos grupos,
ao local que deveriam ocupar, ao lado do altar. Levavam na mão a pasta com as partituras das músicas a serem
cantadas naquela noite. Entre elas, o belo arranjo sobre a peça de Bach... Que teria um destaque especial.
Harmony ocupava um lugar na primeira fila de coralistas, entre as sopranos. De onde estava, pôde avistar
seus familiares chegando à igreja. Vovó Irena, usando um vestido preto de corte sóbrio, com seu porte
majestoso e elegante. Olívia, de tailleur bege, os cabelos presos num coque solto sobre a nuca, irradiando
bondade e simpatia. Os gémeos, usando calças e suéteres azuis, lembravam as antigas pinturas de anjos
barrocos com seus cabelos loiros e encaracolados. E finalmente Rod, usando terno cinza e gravata pérola,
muito belo e austero, como sempre.
Dezenas de outros conhecidos de Harmony iam ocupando seus lugares. E logo a igreja estava lotada. Um
burburinho corria entre as pessoas, que se cumprimentavam ou faziam comentários em voz baixa sobre o
evento que estava para começar.
Quando o padre Bernard entrou, todos ficaram em silêncio. A um sinal dele, as vozes se ergueram num
cântico a capella, ou seja: sem acompanhamento de instrumentos. As linhas sonoras, entoadas com
perfeição, pareciam varrer os últimos vestígios das preocupações e ansiedades que cada pessoa presente
carregava dentro de si. O clima era de total harmonia.
Harmony cantava com fervor, tomada por uma emoção que só a música podia causar. Mas, de repente,
sentiu que o chão lhe fugia sob os pés... E que as vozes soavam ao longe, muito ao longe.
"Oh, não", ela pensou, sobressaltada. "Eu não posso sofrer um desmaio justamente agora". E, respirando
compassadamente, foi aos poucos vencendo a sensação de vertigem. "Estou bem", disse para si. "Apenas um
pouco cansada, só isso." E voltou a concentrar-se na música.
Foi nesse momento que seus olhos recaíram sobre um homem parado junto à porta de entrada da igreja...
Um homem que usava o uniforme azul da corporação policial de Appleton e que segurava o quepe contra o
peito numa postura respeitosa, quase solene.
A primeira música da noite chegou ao fim. Os coralistas ficaram em silêncio, tal como os fiéis que agora
ouviam, atentos, as palavras do padre Bernard.
A igreja estava lotada. E Harmony pensou que seria difícil, para o policial, encontrar um lugar para
sentar-se. Mesmo assim ele caminhava, lentamente, em direção ao altar.
Sentindo-se empalidecer, ela reconheceu David Shepard.
O primeiro pensamento que lhe ocorreu foi com relação à família. Como os Martin reagiriam ao ver David
ali? Perguntou-se, estremecendo, voltando-se na direção da mãe, da avó e dos irmãos. Mas nenhum deles havia
se dado conta da chegada do homem a quem consideravam um inimigo mortal. Todos pareciam muito serenos,
embalados docemente pelas sábias palavras do padre Bernard.
Foi então que David parou, ao descobrir um lugar vago logo atrás de Rod Martin, que não tomou
conhecimento de sua presença... Nem mesmo quando ele se acomodou no banco, entre duas mulheres de
meia-idade.
A situação nada teria de anormal, se não fosse pelos últimos acontecimentos, Harmony pensou. Afinal, o
que tinha de mais um policial fardado assistir à missa? Nada...
Mas Harmony sabia que sua família tomaria a presença de David naquela ocasião como uma
provocação deliberada.
— Você é louco, David Shepard — ela murmurou.
Paula, que estava a seu lado, comentou baixinho:
— Viu só quem acaba de chegar?
— Psiu, Paula — Harmony censurou-a, num fio de voz.
O órgão de tubos soou, imponente, fazendo vibrar o interior da igreja com a música magistral de Bach. As
vozes ergueram-se em seguida, entoando um cântico de louvor à vida e a Deus. Tratava-se da peça que
Harmony havia arranjado, ainda naquela tarde. E soava como se cantada por anjos celestiais.
A emoção tomou conta de todos os presentes, unindo os coralistas, os fiéis e o padre Bernard numa onda
de fé e benevolência, que parecia invocar a possibilidade de uma convivência pacífica e perfeita entre os
homens.
Harmony sentiu-se tomada por um sentimento de amargura e ironia, ao constatar que o homem que amava
jamais seria aceito por sua família... Devido a uma tragédia ocorrida há doze anos, da qual nem ela nem ele
tinham sido culpados. Como era estranho cantar uma música que falava de harmonia entre os seres humanos e
ao mesmo tempo saber que o ódio dos Martin pelos Shepard seria eterno.
Quando a música chegou ao fim, o acúmulo das emoções e tensão dos últimos dias desabou sobre Harmony.
De novo, ela sentiu que o chão lhe fugia sob os pés... Mas agora não tinha forças para vencer aquela
sensação. Apoiando-se em Paula, disse, baixinho:
— Eu não estou bem...
Num movimento rápido e preciso, Paula apoiou-a pela cintura. Passando por entre os coralistas, conduziu-
a em direção à sacristia. Como se por um acordo tácito, os coralistas ajeitaram-se de modo a cobrir as vagas
deixadas por ambas.
Quem estivesse longe do altar, e não muito atento, teria percebido apenas um leve movimento entre os
integrantes do coro. Mas esse não era o caso dos Martin, e muito menos de David, que a custo conseguiu
controlar o impulso de correr para acudir a mulher que tanto amava.
Erguendo-se, Rod caminhou rápida e discretamente até a sacristia.
O padre Bernard, que naquele momento começava a falar, de-teve-se por um instante e olhou fixamente
para vovó Irena, como se esperasse que também ela se levantasse e saísse. Mas a velha senhora devolveu-
lhe um olhar sereno e, com um aceno tranquilo, estimulou-o a prosseguir a missa.
Sentada numa poltrona antiga, a um canto da sacristia, Harmony respirava compassadamente, com a
cabeça curvada, quase tocando as pernas. A seu lado, acariciando-lhe os cabelos, Paula comandava:
—Isso... Respire fundo, amiga. Agora tome um pouco de água. — E estendeu-lhe um copo.
Harmony obedeceu. Seus lábios pálidos tocaram a borda de vidro fino, sorvendo o líquido em pequenos
goles.
Foi nesse momento que Rod entrou e, trocando um olhar preocupado com a namorada, aproximou-se de
Harmony:
— Como é que você está, maninha?
— Bem... — ela murmurou. — Apenas um pouco tonta. Quase desmaiei na frente de todo mundo. — E
entregou o copo a Paula.
— Meu Deus, a missa está continuando, não é? Precisamos voltar para...
— Nem pense nisso — Rod a interrompeu, ríspido, quase agressivo. Era seu modo de preocupar-se com
a irmã que tanto amava.
— Você já foi longe demais com o seu senso de responsabilidade.
— Mas eu preciso...
— Você precisa é ter um pouco de juízo, isso sim.
—Não fale assim com ela — Paula interveio. — Sua irmã está apenas esgotada pelos últimos
acontecimentos.
—E isso significa o quê? — Rod contrapôs. — Que ela deveria descansar... Mas, em vez disso, voltou a
tocar em frente ao shopping e ainda ensaiou o coral e sabe Deus mais o quê!
—Fiz o arranjo para a peça de Bach — disse Harmony, com um pálido sorriso. — Não ficou bonito,
Rod?
Aquilo era demais, até mesmo para o autoritário Rod, que não conseguiu manter o tom de reprimenda. Ao
contrário: seus lábios entreabriram-se num sorriso comovido e a voz soou mansa ao dizer:
—Estava maravilhoso, querida. A cada ano que passa você se torna mais hábil e precisa, em seu trabalho.
Ficamos todos orgulhosos de você, nesta noite.
—Obrigada, Rod — disse Harmony, suavemente. Tentou se erguer, mas ainda estava muito fraca.
—Escute, amiga... — Paula interveio. — O pessoal do coro conhece muito bem as próximas peças. E
podem passar sem nós, nesse final.
—Qual será a última música da missa? — Harmony perguntou, levando a mão à fronte, que latejava-lhe
terrivelmente.
— Uma obra de Hendell, lembra-se?
—Oh, claro — Harmony assentiu. — O pessoal é capaz de cantá-la de olhos fechados...
—Exatamente — Paula concordou e dirigiu-se a Rod. — Querido, é melhor voltar para o banco e
tranquilizar sua avó e sua mãe. Elas devem estar preocupadas. Quanto a mim, ajudarei Harmony a se
trocar e em seguida a levarei para casa. Rod fitou-a com ar de dúvida.
— Vá — Paula insistiu. — Seja um bom menino e faça o que estou dizendo. Eu cuidarei de Harmony.
Lançando um último olhar de apreensão à irmã, Rod saiu.
— Quer mais um pouco de água? — Paula ofereceu, a sós com Harmony.
— Não, obrigada. Só preciso de alguns minutos, para me recompor.
— Sim, querida... Tudo o que você quiser. — E Paula puxou uma cadeira para sentar-se a seu lado.
Após algum tempo, ambas ouviram soar os primeiros acordes da música de Hendell, que finalizaria a
missa. Harmony fitou a amiga com apreensão.
— Paula, não quero responder às perguntas dos nossos colegas sobre o assalto. Eu não aguentaria,
sabe?
— Tudo bem, querida. Deixe-me ajudá-la a se trocar e então sairemos à francesa, isto é, sem dizer
boa noite a ninguém. Mas você sabe que não poderá evitar, indefinidamente, que as pessoas lhe perguntem
sobre o fato, não é mesmo?
— Sim, claro... Mas não hoje.
— Certo. — Estendendo-lhe a mão, Paula ajudou-a a levantar-se. — Venha. Quando o pessoal chegar,
já teremos saído. — E conduziu-a até o vestiário, na sala contígua à sacristia.
Mas não conseguiram agir tão rápido quanto Paula havia planejado. Ao abrir a porta, ambas depararam
com uma pequena multidão, formada pelos integrantes do coro, padre Bernard, vovó Irena e Olívia.
— Você devia ter mais juízo, bambina — disse a velha senhora, tomando as mãos de Harmony entre as
suas.
— A teimosia é marca registrada da família — Olívia comentou, lançando um olhar carinhoso, mas
preocupado, à filha.
— Seu arranjo para a música de Bach estava maravilhoso, Harmony — disse o padre Bernard. —
Foi a mais bela surpresa que tive este ano.
— Nossa, eu me senti no céu quando cantava — afirmou uma coralista, fitando Harmony com
admiração.
— Acho que os anjos vieram se juntar a nós, naquele momento — outra coralista secundou.
— Foi lindo...
— Lindo é pouco para definir o que senti... O que todos sentiram, aliás.
— Precisamos cantar aquela peça novamente.
— Ela já está incluída no repertório, é claro...
Harmony olhava para todos com vaga indiferença. Era como se não fizesse parte da agitação que
ocorria à sua volta. E Paula resolveu intervir:
— Vocês vão nos desculpar, mas temos de sair. Vou levar Harmony para casa. — E tomando-a
pelo braço, acrescentou: — Venha, querida...
Lançando um vago cumprimento geral, Harmony deixou-se conduzir pela amiga.
—Parece que meu carro vai passar mais uma noite ao relento — comentou, desgostosa, já no pátio da
igreja. — De sexta para sábado, ele ficou no estacionamento do shopping. E agora... — Harmony
interrompeu-se ao avistar David Shepard, parado à distância, olhando-a fixamente. — Oh, meu Deus —
murmurou, apressando o passo. — Vamos logo, Paula.
Antes que David pudesse alcançá-las, ambas entraram no carro de Paula e partiram.
—Você não quer me contar o que está acontecendo? — Paula indagou, enquanto dirigia pelas ruas
tranquilas da cidade.
— Contar... — Harmony repetiu, com voz fraca. — Sobre o quê?
—Sobre David Shepard e você — Paula resumiu, com seu modo direto de ser.
— Oh, você percebeu... — Harmony suspirou profundamente.
— E como não poderia? — Paula retrucou, com um meio sorriso. — Quando David veio caminhando
pela nave central da igreja, com aquele jeito elegante que só ele possui... E foi se sentar logo atrás de
Rod, você ficou pálida e quase desmaiou. E agora há pouco, lá no pátio, quando ele tentou se
aproximar, você entrou em pânico. O que está havendo, amiga?
Harmony ficou em silêncio por alguns instantes, antes de dizer:
— Posso pedir-lhe uma coisa, em nome de nossa amizade?
— Já sei o que vai falar: "Cale a boca, Paula..." Acertei?
— Não. — Harmony meneava a cabeça, com uma expressão triste. — Falávamos assim quando éramos
adolescentes, mas esse tempo já passou. Hoje, quero lhe pedir um pouco de compreensão... Ou seja: vamos
deixar este assunto para amanhã?
Paula respirou fundo. E ainda relutou em aquiescer:
— Tem certeza de que não seria melhor desabafar? Você sabe que meu ombro amigo está sempre à
disposição...
— Agradeço, mas realmente não quero falar sobre isso.
— Certo. — Num tom exageradamente dramático, Paula acrescentou: — Parece que os amigos são para
essas coisas, mesmo.
— Ah, e eu também gostaria de lhe pedir...
— Para não comentar nada com Rod — Paula completou. —Acertei de novo?
— Sim, amiga. Promete que guardará segredo?
— É lógico. Alguma vez eu traí sua confiança, sua boba?
— Não, Paula — Harmony respondeu, com veemência. — Você é a melhor amiga do mundo.
— A recíproca é verdadeira.
No dia seguinte, Harmony aproveitou uma carona com Rod e apanhou seu carro no pátio da igreja.
A pequena Appleton fervilhava de comentários sobre a magnífica apresentação do coral, na noite
anterior. O destaque era a peça de Bach, com arranjo de Harmony, que fora um verdadeiro sucesso.
Infelizmente, o súbito mal-estar que ela sofrera, justamente no final da música, também havia se tornado
motivo de comentários e suposições. Era voz corrente, na cidade, que aquilo fora consequência do trauma
que Harmony sofrera, como vítima do assalto em frente ao shopping.
As opiniões se dividiam: alguns achavam que Harmony tinha sido insensata ao retomar o trabalho, sem
permitir-se sequer uns poucos dias de descanso, que sem dúvida a ajudariam a recuperar-se do susto. Outros
a admiravam exatamente por isso: a coragem de reassumir 0 ritmo de vida normal, sem se deixar abater por
aquele fato lamentável.
Harmony procurava ignorar os comentários que corriam a seu respeito. Na verdade, nunca se importara
muito com a opinião pública. E não era agora que iria começar...
Entrando em seu carro, ela acenou para Rod, que partia no furgão, e dirigiu-se ao conservatório. Tinha
um dia cheio pela frente e não queria se atrasar.
Nos finais de ano, Harmony sempre ficava sobrecarregada de tarefas. Muitas pessoas pediam seu auxílio
para organizar a parte musical das festas escolares, comemorações de firmas e outros eventos. Somando-se a
isso a correria dos exames finais do conservatório e as apresentações dos alunos, Paula precisava se des-
dobrar para dar conta de tudo.
Mas isso não era problema, já que ela estava acostumada a toda aquela agitação. Se não fosse pelo
assalto em frente ao shopping e pela entrada de David em sua vida... Aquele seria um ano igual aos outros.
O fato era que o contato com David causara um sério abalo em seu mundo organizado e previsível. E
Harmony sentia-se frágil diante dessa revelação.
Para todos os que assistiam à missa na noite anterior, seu súbito mal-estar tinha sido apenas uma
consequência do trauma causado pelo assalto. Mas Harmony sabia que a tensão provocada pela presença de
David na igreja, bem como o medo de que Rod reagisse de maneira agressiva, havia sido o motivo que
quase a fizera desmaiar.
Estacionando o carro na vaga exclusiva, que ela ocupava como professora do conservatório, Harmony
pegou sua pasta cheia de provas e partituras e saltou. Subiu as escadas de mármore do estabelecimento,
cumprimentando colegas e alunos, sempre com um sorriso gentil, sempre consciente do papel que
desempenhava naquele reduto artístico que era a paixão de sua vida.
Harmony fora aluna do conservatório musical de Appleton desde menina e, embora houvesse estudado
com vários professores particulares, jamais abandonara aquele ambiente onde se respirava música e arte.
Formara-se com louvor há alguns anos e logo depois fora convidada a integrar o corpo de professores, uma
tarefa que aceitara com honra e orgulho. Amava sua profissão e, mais do que tudo, adorava a música. Sempre se
sentira feliz naquele local, ensinando e pesquisando, descobrindo sutilezas musicais no poço infinito da arte.
— Você chegou cedo — disse Paula, beijando-a em ambas as faces. E gracejou, como de costume. —
A cama estava cheia de espinhos?
— Não, srta. Russel — Harmony respondeu, no mesmo tom. — Apenas, hoje é dia de prova e eu
resolvi chegar com um pouco de antecedência.
Paula, professora de técnica vocal, desempenhava também a função de secretária administrativa do
conservatório. Ambas eram as mais jovens profissionais do estabelecimento.
— Que tal se almoçássemos juntas? — ela sugeriu.
— E uma ótima ideia — Harmony aprovou. — Vamos comer na lanchonete do conservatório, ou você
tem outros planos?
— Bem, aí depende... Você estará muito ocupada, à tarde?
— Sim. Mas só a partir das duas horas.
— Então, vamos almoçar fora. Eu pago.
— Aposto que o prato principal será massas — disse Harmony, que já sabia da preferência da
amiga pela cozinha italiana.
— Acertou. Que tal a cantina do Luiggi?
— É perfeito. — Com um aceno, Harmony despediu-se e caminhou em direção à sala dos professores.
Abrindo o armário que tinha seu nome gravado numa placa de alumínio, ela retirou o avental branco e
vestiu-o sobre o vestido azul, que moldava-lhe o corpo de linhas perfeitas.
Pouco depois entrava na sala de aulas, onde um grupo de doze adolescentes conversava a meia-voz.
— Bom dia, futuros génios do ano dois mH — ela os cumprimentou, num tom divertido.
— Ainda bem que você está de bom humor, professora — disse um garoto de quinze anos. — Isso significa
que a prova vai ser fácil?
—Para quem estudou, sim — Harmony respondeu, com um sorriso. — Tirem uma folha pautada do
caderno de música e vamos ao ditado rítmico.

CAPITULO VI

Harmony consultou o relógio de pulso, que mar--cava onze e meia da manhã. Em seguida anunciou à
classe:
— Tempo esgotado, pessoal. — Dirigindo-se a uma aluna, solicitou: — Evelyn, por favor, recolha as
provas.
Os alunos foram se levantando para sair, com ar severo e concentrado. Todos queriam o melhor
resultado possível, pois disso dependeria a passagem para um estágio mais avançado, no ano seguinte. O
ensino musical em Appleton era realmente rigoroso.
Harmony recebeu as provas e dirigiu-se à sala dos professores. Deixou a pasta e o avental no armário, e
saiu para o estacionamento. Paula chegou cerca de dez minutos depois.
— Desculpe o atraso, Harmony. Tive de preencher alguns formulários na secretaria, para serem
enviados ainda hoje ao ministério da educação. Você esperou muito?
— Quase nada. Bem, iremos no seu carro ou no meu?
— No seu, claro! — E Paula gracejou: — Já que vou pagar o almoço, você pode muito bem arcar com
o combustível...
— Desde quando você se tornou pão-dura? — Harmony indagou, no mesmo tom.
Ambas riram, enquanto Harmony retirava as chaves da bolsa. Pouco depois, partiam em direção à zona
leste da cidade, onde ficavam os melhores restaurantes da cidade.
A zona leste fora um bairro residencial e muito rico, em tempos remotos. Grandes mansões
ajardinadas erguiam-se entre os bosques de arvoredos, já quase sem folhas naquele princípio de inverno.
A Cantina do Luiggi funcionava justamente numa dessas mansões e era famosa em toda a região, por
seus preços módicos e cozinha de primeira classe. A prova disso era o grande número de carros
estacionados no pátio de entrada.
— Deixe-me perguntar uma coisa — disse Harmony, ao estacionar. — Vamos comer e conversar... Ou
o contrário?
Aquela era uma brincadeira antiga, que ambas faziam há muito tempo.
— O contrário — Paula respondeu.
—Então, nada de pratos complicados e sobremesas malucas. Com você falando o tempo todo, não há jeito
de se prestar atenção ao que se come...
—Ora, isso não é problema, meu bem — Paula retrucou, contendo o riso. — Se é mesmo verdade que só
eu falo, basta você balançar a cabeça respondendo sim ou não, enquanto saboreia as delícias do Luiggi.
Na verdade, o que Harmony queria saber era se Paula desejava conversar sobre algum assunto
especial. Para tanto, teriam ocupar uma mesa reservada, onde pudessem falar à vontade. Caso contrário,
poderiam se acomodar no salão principal da cantina, cujas mesas, próximas umas das outras, não per-
mitiam lá muita privacidade.
Quando ambas entraram na cantina, várias pessoas se voltaram para vê-las passar. Jovens, belas,
elegantes, possuíam um encanto especial, que era um verdadeiro colírio para os olhos.
O maitre aproximou-se para recebê-las, com ar solícito:
— Boa tarde, senhoritas. Querem se acomodar aqui, ou preferem...
— Um local mais reservado, por favor — Paula completou.
— Perfeitamente — o maitre aquiesceu, conduzindo-as a uma das varandas envidraçadas, que dava
para os fundos da propriedade. — O garçom virá em seguida — anunciou, afastando-se.
Ambas agradeceram e acomodaram-se à mesa. Paula, que parecia um tanto ansiosa, logo começou a
falar:
— Estou numa situação difícil e preciso de sua opinião.
— Você sabe que sempre pode contar comigo, amiga — Harmony afirmou, fitando-a com ar compreensivo
e carinhoso.
Paula relutou. Ela, que era sempre tão brincalhona, mostrava-se agora tímida para confessar os próprios
problemas.
— Não sei por onde começar — disse, por fim.
— Que tal pelo começo? — Harmony tentou brincar. Em seguida encorajou-a: — E sobre Rod, não?
—Nossa, como você é perspicaz! — Paula exclamou, com divertida ironia. — Claro que é sobre Rod,
amiga. Com quem mais eu poderia ter problemas, senão com ele?
— Muito bem... — Harmony sorriu. — Você já conseguiu abordar o assunto. Agora, vá em frente.
Paula suspirou.
— Você se lembra daqueles exames que prestei no meio do ano, para uma vaga de professora em
Toronto?
— Sim, claro. Todos os professores do conservatório fizeram o exame, já que ele nos foi enviado pela
secretaria de educação estadual. — Harmony fez uma pausa. — Mas aonde você quer chegar?
— Bem... — Paula mordeu o lábio inferior, num gesto nervoso. —Minhas notas foram as
melhores, depois das suas e das de Clara McDonald.
— Ora... — Harmony continuava a sorrir. — Nenhuma de nós levou aquele exame muito a sério. Foi
apenas um teste, entre os professores, para sabermos o grau de exigência dos nossos colegas do Canadá.
— A princípio, foi isso mesmo — Paula concordou, pensativa. — Mas acontece que estou
pensando em aceitar o convite para lecionar em Toronto. E, nesse caso, eu partiria nos primeiros dias de
janeiro.
— Você enlouqueceu? — Harmony reagiu, perplexa. — E o conservatório, os alunos... E Rod... E eu?
Paula sorriu, mas havia uma nuvem de tristeza em seus olhos ao dizer:
— É bom saber que você sentirá falta de mim...
Harmony inquietou-se. Algo estava se passando no íntimo da amiga... Mas o que seria? Paula sempre
lhe parecera tão calma, tão satisfeita com a vida.
— O que foi que aconteceu entre? — Harmony indagou. —Você e Rod brigaram?
— Para haver briga é preciso amor — Paula sentenciou, com lágrimas nos olhos. — E duvido muito
que seu irmão sinta isso por mim.
— Ora, todos nós sabemos o quanto Rod é apaixonado por você...
— Só que faz séculos que ele não me fala de amor, nem me dá atenção... E como se eu fosse um
nada, entende?
— Você está sendo injusta — Harmony censurou-a, num tom carinhoso.
— Não... — Paula meneou a cabeça, num gesto brusco. — Eu estou é farta, compreende? Todo
mundo tem direito a explosões de nervos, achaques, incertezas... Todo mundo, menos eu.
— Por que está dizendo isso, amiga?
Ignorando a pergunta, Paula prosseguiu:
— Creio que mereci, até hoje, o lugar que sempre ocupei na vida das pessoas que me cercam. Nunca
ninguém me perguntou como me sentia, a respeito disso ou daquilo. As pessoas desenvolveram uma
imagem de mim... E agora tenho de obedecer a ela.
— Não entendi.
— Tenho de ser sempre a Paula boazinha, a que aceita tudo, a que concorda sem reclamar. Só que
estou cansada desse papel.
Harmony assentiu com um gesto de cabeça, antes de confessar:
— Estou espantada, Paula. Não sabia que você se sentia assim...Por que nunca falou desse assunto
comigo?
— Porque acho que só há pouco tempo me dei conta disso. E, também, sempre detestei as pessoas
muito complicadas, do tipo que discordam de tudo e erguem polémicas idiotas sobre os assuntos mais
simples. Mas essa mania de querer que as coisas fiquem bem, de evitar brigas a qualquer custo,
acabou resultando mal...
— Como assim?
— Tornei-me uma pessoa apagada — Paula resumiu. —Compreende o que isso significa? Uma
pessoa a quem ninguém pede opinião, pois já sabe que ela concordará com tudo. Além do mais...
, Paula interrompeu-se, pois o garçom se aproximava trazendo os aperitivos e o couvert. Assim que ele se
afastou, ela prosseguiu:
— Rod me explicou por que não nos casaríamos este ano. Explicou, entende? Não propôs, discutiu, ou
perguntou o que eu acha va do fato.
— Mas você concordou — disse Harmony, num tom suave. —Você aceitou esperar até que meus
irmãos completassem a maioridade, para depois se casar com Rod.
— Exato — Paula aquiesceu, bebericando seu aperitivo: martíni, com uma cereja e uma finíssima
camada de açúcar na borda da taça. — Eu concordei. E desde quando tinha o direito de discordar! Você se
lembra de quando éramos crianças e íamos brincar? Você, Rod e os outros determinavam tudo, sem
perguntar pela minha opinião. E quando eu tentava me manifestar, diziam: "Está bem, Paula... Tudo bem,
Paula..." E depois continuavam fazendo o que bem entendiam.
— Eu nunca imaginei que... — Harmony tentou apartar.
Mas Paula continuava em seu desabafo:
—Depois, quando éramos adolescentes e tínhamos de escolher um filme para assistir, ou uma peça de
teatro, eu já sabia que meu papel era esperar, calada, pela sua decisão ou a de Rod.
— E você nunca tentou se posicionar?
—Sim. — Paula suspirou. — Num domingo de manhã decidi que não queria acompanhar vocês ao clube.
Meu maio estava horrível e eu tinha vergonha de me expor em público...
— E por que não nos falou sobre isso?
— Eu contei a Rod. E sabe o que ele fez?
— Não.
—Foi ao clube com Susan Parker, sua colega de classe. —Num tom amargo, Paula comentou: —
Simples, não?
Harmony baixou os olhos para o copo a sua frente. Levou-o aos lábios enquanto se lembrava de um
diálogo ocorrido recentemente entre sua família, durante o jantar. Vovó Ire na dissera que Rod e Paula
deveriam morar naquela casa, depois de casados, ocupando a ala esquerda do segundo andar. Quando
Harmony lhe perguntara o que Paula achara da ideia, a avó simplesmente sa- ;jj cudira os ombros. Era seu
modo característico de dizer que a opinião de Paula pouco importava.
Agora Harmony se dava conta de que sua grande amiga sempre fora rotulada, no contexto familiar, como
uma pessoa de bom génio, para quem tudo estava bem... E isso era uma grande injustiça.
— Por favor, diga alguma coisa — Paula pediu, ansiosa. — Estou num beco sem saída e preciso de
ajuda.
Harmony sorveu mais um gole de martíni, antes de perguntar:
— Rod já sabe disso?
— Que estou pensando em ir para Toronto?
— Sim.
—Não. E aí é que está o grande problema. Vocês cometeram um grande engano comigo, aprisionando-
me a uma imagem que jamais pedi para ter... E suponho que tenham feito o mesmo com o pobre Rod.
— Como? — Harmony indagou, sem entender.
—Desde criança, ele sempre foi o mais velho, o homenzinho do grupo, lembra-se?
Harmony assentiu e Paula continuou:
— Depois que seu pai morreu, Rod assumiu a direção da família e dos negócios. Não teve nenhuma
opção, a não ser ocupar o lugar que todos esperavam que ocupasse.
— Ele fez questão de assumir tudo — Harmony argumentou. — Ninguém o obrigou a isso.
— As circunstâncias o levaram a fazê-lo, sem dar-lhe outra alternativa.
— Para ser franca, eu mesma me incomodo com a forma paternal com que Rod me trata. Ele às vezes
exagera na autoridade...
— E o que mais o pobre Rod pode fazer, senão ser o irmão rabugento e chato da família? — Paula
argumentou. Num tom pensativo, concluiu: — Talvez Rod também não seja como todos pensam que ele é.
— Você está indo longe demais com essa ideia — Harmony protestou.
Mas Paula prosseguia:
— Talvez ele seja outra vítima das circunstâncias, ou das imagens preconcebidas. Rod, assim como eu,
não pode agir de outra forma, a não ser a esperada pela sociedade e pela família. As vezes tenho muita
pena dele, sabe?
— Eu também — Harmony confessou, com um suspiro, mordiscando uma torrada com patê. Em
seguida sentenciou: — Você o conhece muito bem, talvez mais do que eu. E sabe que Rod não concordará
com sua ida a Toronto.
— Nesse caso, eu romperei o namoro.
— Paula! — Harmony exclamou, chocada.
— Eu o amo. Mas a menos que entremos num acordo... — Paula fez um gesto vago. Não concluiu
a frase, mas Harmony compreendia perfeitamente o que ela queria dizer.
— E quando pretende conversar com Rod? — indagou, após alguns instantes.
— O mais rápido possível. Não posso adiar o assunto por mais tempo... Seria cruel.
Uma súbita ideia ocorreu a Harmony. Mas não queria, ao menos por enquanto, comentá-la com a amiga.
Por isso pediu:
— Espere até depois do natal.
— Por quê? — Paula indagou, confusa.
— E um pedido que lhe faço. Você me atenderá?
Paula recostou-se na cadeira, segurando a taça de martíni na mão. Por fim, concordou:
— Eu farei isso. Não gostaria mesmo de estragar o natal de ninguém, muito menos da família que
amo como se fosse a minha.
Harmony suspirou, aliviada. A concessão da amiga dar-lhe-ia chance de intervir no assunto. Ainda não
sabia ao certo o que diria a Rod, mas tentaria fazê-lo entender que Paula merecia ser tratada com mais
consideração, mais... Amor! O tempo era curto, mas Harmony sentia-se disposta a lutar pela felicidade
daqueles dois seres que tanto amava e que estavam prestes a se perder um do outro.
— Vamos pedir o almoço? — Paula sugeriu. Estava mais tranquila, depois do desabafo.
— Sim — Harmony concordou. — Tenho de corrigir algumas provas e preparar a lista de notas para
entregá-la ainda hoje.
O prato escolhido foi ravióli ao molho branco. Num clima bem mais calmo e agradável, as duas amigas
conversaram sobre vários assuntos. E sorriram quando o garçom, impressionado com a beleza de ambas,
atrapalhou-se na hora de servir os pratos, sobretudo o de Harmony, que quase transbordou de tanto molho.
A tarde no conservatório transcorreu sem grandes novidades.
Entregue ao trabalho, Harmony não tinha tempo para pensar em seus próprios problemas, ou na
conversa com Paula, no restaurante. Mas na verdade sentia-se inquieta, preocupada com o futuro.
Foi com uma sensação de alívio que ela concluiu o trabalho, no final da tarde. Guardou seu material no
armário e saiu em direção ao estacionamento. Estava cansada, desgastada, e queria chegar cedo em casa.
Sobressaltou-se ao ver David encostado ao seu carro, usando o uniforme da corporação e exibindo um
sorriso gentil no rosto de traços perfeitos.
— Õlá — ele saudou-a, num tom amável. — Como vai você, Harmony?
— Bem, obrigada. — Ela cruzou os braços, fitando-o com ar apreensivo. A sensação de vê-lo ali
era tão excitante quanto assustadora.
— Gostei muito da apresentação do coral, ontem à noite — ele afirmou. — Contaram-me que foi você
quem fez o arranjo para a música de Bach. Isso é verdade?
— Sim.
— Estava magnífico, Harmony.
Ela baixou os olhos, temendo enrubescer de prazer pelo elogio. Respirando fundo, comentou:
— Não sabia que você frequentava a paróquia do padre Bernard. Nunca o vi por lá.
— De fato... — Ele a fitava com intensidade. — É que fiquei sabendo da apresentação do coral e
resolvi assistir. Tive de me conter para não ir até a sacristia, quando você se sentiu mal. Depois, fiquei
aguardando no pátio, mas acho que você não me viu, pois saiu tão apressada, com sua amiga...
Havia uma espécie de interrogação nos olhos de David e Harmony decidiu ser franca:
— Eu o vi muito bem. Apenas, não podia falar com você. Minha família inteira poderia aparecer no
pátio e...
— Então você não quis falar comigo? — ele a interrompeu, ofendido.
— O que queria que eu fizesse, David? — ela argumentou, com ar severo. — Que provocasse uma cena
entre você e Rod?
— Não era essa minha intenção — ele respondeu, no mesmo tom. — Na verdade, eu não queria
provocar nenhum conflito.
— E mesmo assim foi até a igreja...?
— Desejava apenas ver você cantando, nada mais. Depois, iria embora discretamente. Mas quando
você teve aquela espécie de desmaio, perdi o controle. Eu... — ele hesitou, antes de concluir — queria
saber como você estava.
Harmony sentiu que suas defesas caíam por terra. Se ficasse mais um minuto ali, conversando com
David, acabaria cedendo à emoção e isso seria perigoso...
Armando-se de coragem, ela o encarou com seriedade, antes de dizer:
— Agradeço sua preocupação mas, como você pode ver, estou muito bem. Tudo não passou de um
acúmulo de emoções e desgaste. Agora, se me der licença, preciso ir para casa descansar.
David empalideceu, visivelmente magoado. Mas controlou-se e sua voz soou calma ao dizer:
— Você não vai perguntar o que estou fazendo aqui?
— Pois bem, policial Shepard: o que você está fazendo no estacionamento do conservatório de
Appleton, encostado no meu carro?
— Esperando você terminar seu trabalho para levá-la à central de polícia. Cheguei hã vinte minutos,
mas achei melhor não interromper seus afazeres. Sei que no final do ano os professores trabalham
dobrado, devido aos exames e outras coisas mais.
Dessa vez Harmony não pôde evitar o enrubescimento que subiu-lhe às faces. A delicadeza de David era
imbatível, pensou, envergonhada por tê-lo tratado de maneira tão ríspida.
— Devo ir até lá para fazer o reconhecimento dos assaltantes, não é? — ela indagou.
— Dos suspeitos — ele a corrigiu. — Legalmente, só serão con siderados assaltantes depois do
julgamento e condenação.
Ela assentiu com um gesto de cabeça. E então perguntou:
— Seu período de trabalho não começa às seis da tarde?
Foi a vez de David se surpreender. Não imaginava que Harmony soubesse disso.
— E verdade — ele confirmou. — Mas acontece que estou substituindo um colega. Os policiais casados
gostam de tirar férias nessa época, para poderem viajar com a família, ou simplesmente ficar em casa para
receber parentes que vêm de longe. E os solteiros, como eu, acabam sendo escalados para ocupar o lugar
deles.
E um procedimento normal na corporação.
— Compreendo — disse Harmony, que nem de longe poderia imaginar que David praticamente havia
suplicado ao tenente Hoffman que o encarregasse de levá-la ao distrito. Naturalmente, o próprio John,
motorista da viatura do tenente, poderia desempenhar aquela tarefa simples. Apontando a viatura
estacionada na rua, a alguns metros de.distância, ela indagou: — Preciso ir naquilo, ou posso segui-lo
com meu carro?
— Claro que pode — ele respondeu, sorrindo.
Já ia se afastando, quando Harmony o chamou:
— David?
— Sim?
— Você não vai ligar a sirene... Ou vai?
Ele riu:
— Não, Harmony. Este não seria um procedimento normal. — E brincou: — A menos que você resolva
fugir de mim e eu seja obrigado a persegui-la pelas calmas ruas de Appleton...
Ela riu, um pouco mais relaxada. Fugir de David? Era o que vinha fazendo nos últimos anos... Só que
agora estava cada vez mais difícil manter-se à distância.
David entrou na viatura e ligou a ignição. Esperou que Harmony manobrasse e se colocasse logo atrás
dele. Só então partiu, em baixa velocidade.
Harmony respirou aliviada. Ainda bem que não fora obrigada a seguir no mesmo carro que David. A
presença daquele homem tinha o estranho dom de desequilibrá-la, fazendo-a sentir-se frágil e sem vontade
própria. Ou melhor, com uma grande tentação de ceder à vontade dos sentimentos... Era contra essa força
poderosa que Harmony tinha de resistir.
A tarde estava magnífica, com um céu púrpura onde nuvens leves, esgarçadas pelo vento gélido que
vinha das montanhas, pairavam como se imóveis no ar.
David dirigia lentamente, como se tivesse todo o tempo do mundo para chegar ao distrito...
Ao parar no cruzamento que dava acesso à avenida que conduzia à central de polícia, David entrou
numa rua lateral e pouco movimentada.
Harmony estranhou a manobra, mas seguiu-o mesmo assim.
"Talvez David prefira os trajetos mais tranquilos, longe dos faróis e do movimento intenso da avenida",
ela pensou.
De fato, a rua por onde agora trafegavam era muito agradável. Cortava um bairro residencial, com
suas casas antigas e conservadas, separadas umas das outras por quintais cercados de sebes vivas.
Há muito tempo que Harmony não percorria aquela via alternativa. Por isso surpreendeu-se com a
beleza da paisagem.
A viatura conduzida por David diminuiu a marcha e, sinalizando pelo pisca-pisca traseiro, parou perto do
mirante, o ponto mais alto da cidade.
Harmony estacionou logo atrás, perguntando-se o que teria feito David interromper o trajeto.
Ele desceu da viatura e caminhou em direção à baixa amurada de pedra que circundava o mirante. Dali
se podia contemplar toda a Appleton, cujas primeiras luzes se acenderiam dentro de alguns instantes, assim
que o sol desaparecesse por trás das montanhas.
David sentou-se na amurada, tirando o quepe e passando a mão pelos cabelos negros.
— O que aconteceu? — Harmony perguntou, aproximando-se.
—Nada. Só quis parar um pouco e contemplar este final de tarde caindo sobre a cidade. —
Apontando a paisagem que se descortinava a sua frente, David comentou: — Não é bonito?
— Sim — Harmony concordou, inquieta. — Mas não seria melhor se...
—Por que não se senta, Harmony? — ele sugeriu, interrompendo-a. Sem esperar pela resposta,
confidenciou: — Sabe, sempre que estou de serviço nessa região, paro por aqui para pensar ou apenas para
admirar essa beleza — concluiu, com um gesto que parecia abranger toda a paisagem em torno.
O comportamento de David era tão natural, tão simples, que Harmony cedeu. Sentando-se a alguns
metros de distância, deixou-se contagiar pela bela visão que tinha diante dos olhos.
A brisa que soprava era fria e estimulante, trazendo um perfume de pinho mesclado a flores. As
montanhas erguiam-se ao redor, como deuses que circundassem toda a Appleton, num abraço protetor. O
sol, já quase inteiramente oculto pelas montanhas, enviava seus raios às nuvens, que refletiam sobre a cidade
os tons alaranjados do crepúsculo.
Harmony estava emocionada, agora totalmente entregue àquela hora mágica.
Que homem sensível e misterioso era David Shepard, ela pensou, voltando-se para fitá-lo com um
misto de curiosidade e admiração. Ele parecia saber combinar ação e reflexão em todas as suas
atitudes. Se não fosse o problema entre as famílias de ambos, Harmony gostaria de conhecer de perto,
passo a passo, os mistérios daquele homem viril e belo, que agora vinha sentar-se a seu lado.
Os poucos homens que ela havia conhecido sempre lhe passavam uma impressão de ansiedade, como se
estivessem famintos de algo que jamais poderiam possuir.
Mas David não... Ela concluiu, com um sorriso. Ele parecia guardar, em si, o centro.de equilíbrio de seu
próprio mundo. Era como se, através de seus olhos, tudo passasse a ter um valor diferente, mais pulsante,
mais... Real.
Harmony estremeceu de emoção diante desse pensamento. David fitou-a com um misto de ternura e
preocupação:
— Você deve estar com frio, não? — E levantou-se. — É melhor irmos embora.
Harmony foi invadida por um súbito pânico. De algum modo sabia que, se partissem naquele momento,
algo precioso estaria se perdendo. E sem acreditar no que fazia, ela ergueu-se e estendeu a mão, tocando-lhe
o braço.
— David... — Foi tudo o que pôde dizer.
— Harmony...
O beijo era inevitável. E Harmony se entregou ao contato daqueles lábios sensuais e macios. Já havia
beijado outros rapazes, em breves namoros dos tempos de escola. Mas nada a havia preparado para o que
agora sentia, naquele contato terno e insistente. Todo seu corpo vibrava, como cordas tensas de um violino
sob o arco. Era uma sensação indescritível, que Harmony jamais experimentara. E ela se maravilhou com a
perfeição daquele momento.
A ternura inicial foi dando lugar a uma lenta procura de carícias mais decididas e ousadas. Pequenos
tremores abalavam os corpos, repercutindo um no outro em ecos líquidos de sabores intensos...
Os corpos se colaram, como se buscassem uma unidade ainda maior, uma comunhão absoluta.
Erguendo-se na ponta dos pés, Harmony enlaçou o pescoço de David, que a atraiu ainda mais de encontro
ao peito, acariciando-lhe as costas, tateando as curvas ocultas pelo grosso casaco de lã.
As bocas se separaram por uma fração de segundo, o tempo de cair uma gota... E voltaram a se
encontrar, como se tomadas por um súbito medo de perder-se uma da outra. O tempo não existia naquele
círculo mágico. David e Harmony estavam como que encerrados, protegidos do mundo exterior pela paixão
que os incendiava.
— Aconteça o que acontecer... — ela sussurrou — jamais esquecerei este momento.
— Santo Deus — ele disse, num tom grave. — Suas palavras soam como uma despedida. O que
está pensando, Harmony Martin?
— Na impossibilidade de ser feliz — ela respondeu, com infinita tristeza.
— Isto não existe... Ao menos para nós. — Tomado por uma onda de fé e confiança, ele sentenciou: —
Agora não tenho dúvidas de que você também me ama... Parece um sonho!
— Você se esquece de que existe uma outra realidade lá embaixo. — Ela apontava a cidade. — E
aquela realidade é totalmente contrária à que estamos vivendo aqui.
Ele recuou um passo, fitando-a no fundo dos olhos.
— Nada é mais forte do que o amor entre duas pessoas, Harmony. E não estou me referindo à paixão,
ou empolgação passageira. Falo de amor, na sua mais ampla concepção. Você é a mulher da minha vida e, se
quiser, serei o seu homem.
— David, por favor. Compreenda que...
— Sei de tudo o que você poderá dizer agora, sobre os motivos dos outros para proibirem nosso amor.
Mas isso, sobretudo neste momento, não me interessa.
— Acontece que os outros, como você diz, são as nossas famílias... Formadas por pessoas que amamos! E
em parte somos responsáveis por sua felicidade. Você se esqueceu disso, David?
— O que você quer que eu faça? — ele protestou, com uma expressão de amargura e revolta. — Que
aceite o ódio insano de nossas famílias como algo normal e belo? E pedir demais... Quero lutar por nós
dois, pelo direito que temos de tentar a felicidade.
E se isso é ser egoísta, segundo o duvidoso critério dos outros, pois bem: assumirei o egoísmo e suas
consequências. Mas farei isso por amor... Por amor a você, Harmony.
Atormentada pelas contradições que trazia no peito, Harmony voltou-se e caminhou em direção ao carro,
sem olhar para trás. David ainda tentou um gesto para detê-la, mas compreendeu que isso seria um erro.
Com um profundo sentimento de frustração, ele dirigiu-se à viatura. A noite caía sobre Appleton. As
primeiras luzes da cidade se acendiam.

CAPITULO VII

David estava acionando o motor da viatura quando avistou, pelo espelho retrovisor, uma caminhonete
amarelo-ouro, que reconheceu imediatamente. O veículo pertencia à sra. Gladys Silverman.
O que estaria ela fazendo ali, naquele local tão distante de sua loja? Ele se perguntou. E concluiu que, ou a
velha senhora tinha vindo buscar uma peça de antiquário em alguma casa do bairro, ou então decidira
contemplar um pouco a paisagem.
"Será que ela nos viu?", pensou, preocupado, partindo pela rua e certificando-se de que Harmony o
seguia.
Bem, ainda que isso tivesse acontecido, não haveria problema. David sabia que a velha senhora tinha
lá suas excentricidades. Mas a tendência a fofocas e mexericos não fazia parte de seus defeitos. Gladys
Silverman vivia ocupada demais com seu trabalho, ou encabeçando movimentos sociais, para preocupar-
se com a vida alheia.
Pensando na velha senhora, David tocou o bolso da jaqueta onde, envolto num papel de seda azul, o
broche em forma de borboleta permanecia como uma esperança.
Um sorriso estampou-se em seus lábios. Ele não era homem de desistir facilmente de seus sonhos.
Jurara a si mesmo que aquele broche, comprado na loja de Gladys Silverman, um dia seria usado pela
mulher que ele desejava como esposa, amiga, mãe de seus filhos e companheira... Por toda a vida.
O fato de saber que a dura realidade da vida indicava justamente o contrário, ameaçando-lhe a chance de
ser feliz, não abalava em nada sua fé no futuro que tanto sonhara. Esperara longos anos por uma
oportunidade aproximar-se de Harmony. E a descoberta de que era correspondido em seu amor só o deixava
ainda mais convicto e esperançoso. Prosseguiria na luta, a mais bela luta que a vida poderia propor... E o
prémio era Harmony Martin, a mulher sem a qual a vida não teria o menor sentido.
Retesada diante do volante do seu carro, Harmony debatia-se em meio aos sentimentos contraditórios
que a habitavam. A realidade do seu mundo havia se bifurcado em veredas totalmente distintas. Uma, cheia
de doces sentimentos, encantamentos e surpresas. Outra, pedregosa, onde os arbustos espinhentos eram as
manifestações do ressentimento entre os Martin e os Shepard.
O que Harmony não podia negar era a evidência assombrosa de sua atração pelo homem que dirigia a
viatura à sua frente, naquela rua tranquila cujos lampiões haviam se acendido há pouco.
David conseguira, naqueles momentos em que haviam se beijado, provar-lhe o que nenhuma palavra
poderia dizer: que o amor entre ambos era absoluto, incomparável. Nunca, nem mesmo em seus sonhos mais
loucos, Harmony imaginara possível uma reação física tãó forte e arrasadora como a que experimentara nos
braços de David.
— Talvez ele tenha razão — ela pensou, em voz alta. — Talvez tenhamos nascido um para o outro —
concluiu, tomada por uma emoção que era a um só tempo alegria e assombro.
O bairro tranquilo ficou para trás. O centro da cidade estava próximo, com seu tráfego movimentado. E
Harmony procurou concentrar-se no trânsito. Já não estava tensa como há pouco. Uma doce sensação a
acompanhava em cada gesto, como se uma voz interior lhe dissesse que sim, que era preciso ter fé e
esperança no futuro, independente das dificuldades da vida.
Cerca de dez minutos depois, David estacionava em frente à central de polícia. Harmony parou logo atrás
e saltou do veículo. Sem uma palavra, acompanhou-o à entrada do distrito. David conduziu-a ao gabinete do
capitão Brodwisky, que a recebeu com um sorriso gentil.
— Como tem passado, srta. Martin?
— Bem, obrigada.
— Com licença — disse David, afastando-se. — Preciso retomar minha ronda.
— Certo — o capitão assentiu. — Até logo, policial Shepard.
— Até logo. — E David saiu, depois de despedir-se de Harmony com um gesto de cabeça, ao qual ela
correspondeu discretamente.
A sós com o capitão, Harmony indagou:
— Bem, o que faremos agora?
— Está pronta para o reconhecimento? — o capitão Brodwisky perguntou.
— Na verdade estou apreensiva — Harmony confessou. — Eu... Devo ficar frente a frente com os
suspeitos?
— A senhorita teme represálias, não é?
— Sim — ela assentiu, com franqueza. — Se eles forem absolvidos, talvez queiram se vingar. E não
temo apenas por mim, mas também por minha família. O senhor compreende, não?
O capitão Brodwisky sorriu levemente. Aquela não era a primeira nem a última vez que vítimas ou
testemunhas de um crime se assustavam diante da perspectiva de serem reconhecidas pelos suspeitos.
— Temos uma sala com parede falsa, que separa os suspeitos das vítimas ou testemunhas — ele
explicou. — Um espelho especial dá visão do lado em que a senhorita estará. Os suspeitos só verão sua
própria imagem refletida nele. É seguro, senhorita, não tema.
— Isso me tranquiliza muito — disse Harmony, acompanhando-o à sala de reconhecimento. A única
iluminação do local vinha através do espelho falso. Havia várias cadeiras, dispostas como diante de uma
tela de cinema. E Harmony acomodou-se em uma.
Tudo transcorreu muito rápido. Cerca de meia hora mais tarde, Harmony já estava de volta ao gabinete
do capitão Brodwisky, saboreando uma xícara de café fumegante. Sentia-se satisfeita. A operação de
reconhecimento havia sido um sucesso.
Sem o menor vacilo Harmony tinha apontado os agressores, em meio a quase uma dezena de outros
desconhecidos. O capitão, sabiamente, fizera com que todos usassem máscaras de esqui. E Harmony poderia
ter se enganado com facilidade. Mas tão logo havia feito o reconhecimento, ouvira uma confirmação eufórica
do capitão. Tal como ele esperava, Harmony identificado os dois suspeitos presos na noite do assalto,
portando uma boa quantidade de dinheiro e levando máscaras de esqui no bolso.
Harmony terminou sua xícara de café e depositou-a sobre a mesinha de centro. Em seguida despediu-se
do capitão:
— Acho que já vou indo. Obrigada por tudo, senhor.
— Eu é que agradeço, srta. Martin.
Ela caminhou pelo corredor, cumprimentando de passagem alguns policiais. Ao transpor a porta, viu
David parado próximo a seu carro.
— E então? — ele perguntou. — Tudo correu bem?
— Sim — Harmony respondeu, surpresa. — Você não devia estar fazendo sua ronda, agora?
— Claro, mas achei que não faria mal esperar um pouco, para vê-la uma vez mais —• ele
confessou, fitando-a com intensidade. — Diga-me, Harmony, você conseguiu reconhecer os suspeitos?
— Consegui. — Ela sorriu. — Não tive dúvidas e o capitão Brodwisky confirmou minha impressão. Os
homens que reconhecieram os mesmos que foram presos na noite do assalto.
— Então, ao menos de nossa parte, o caso está resolvido. O restante agora ficará por conta do juiz,
advogado e promotor. — David fez uma pausa. — Você está indo para casa, Harmony?
— Sim. Estou bastante atrasada e minha família pode se preocupar... — Ela retirou as chaves da bolsa.
— Boa noite, David.
Já ia entrar no carro, quando ele a chamou:
— Harmony...
Ela voltou-se, com uma interrogação nos olhos castanhos e luminosos.
— Este broche ainda é seu. — E ele ofereceu-lhe a borboleta trabalhada em ouro e pedras preciosas,
envolta em papel de seda azul.
— Oh, David... — Harmony sorriu, com tristeza. — Por que faz tanta questão disso?
— Cada vez que você tocar nesta jóia estará me fazendo uma carícia — ele afirmou, emocionado. — A
borboleta é um símbolo do que existe entre nós... A esperança de um dia sermos felizes juntos. Aceite-a,
por favor.
Num gesto lento, Harmony estendeu a mão, fitando aqueles olhos azuis que brilhavam de expectativa.
Seus dedos se fecharam em torno da jóia, que ela recolheu, apertando-a contra o peito antes de guardá-la
no bolso do casaco de lã.
— Um dia você poderá usá-la abertamente — disse David. — E esse dia será o mais belo de toda a
minha vida — acrescentou, com um sorriso pleno de felicidade. Em seguida afastou-se, deva gar, pela rua.
Com um profundo suspiro, Harmony entrou no carro e partiu. David havia vencido, ela pensava, tomada
por uma forte emoção. Pois estava claro que, ao aceitar a jóia, tinha assumido um compromisso de amor com
aquele homem. Secreto e frágil, mas... Um compromisso!
Um sorriso estampou-se no rosto de Harmony, seguido por uma sensação de apreensão. Já não havia mais
como fugir da realidade, nem do forte sentimento que a unia a David Shepard. Agora, viriam as
consequências...
— David, em que planeta você está, meu filho? — Bárbara Shepard indagou, depositando os talheres
sobre o prato.
— O quê? — David piscou os olhos, como se retornasse de um sonho distante. — Você disse alguma
coisa, mamãe?
— Estou começando a me preocupar. Nos últimos tempos você tem andado esquisito, alheio ao mundo,
sem ligar para ninguém. Parece seu pai quando assiste ao futebol pela TEVE.
— Perdão, mamãe — David desculpou-se. — Eu estava distraído. — E voltou a comer, espetando o
garfo numa batata corada, sem nenhum entusiasmo.
— Deixe-o em paz, Bárbara — disse Glenn Shepard, servindo-se de uma salada de ervilhas e folhas. —
Ele está cumprindo horário dobrado no trabalho. É natural que chegue em casa cansado, sem vontade de
conversar. Você deveria parar de tratá-lo como se ele fosse um garoto.
David olhou o pai com gratidão. Aos cinquenta e oito anos, Glenn Shepard ainda era um homem
elegante e bem conservado, que não aparentava a idade que tinha. Entre os cabelos, escuros como os de
David, brotavam alguns fios brancos. Os olhos cor de safira, profundos, eram a herança mais marcante que
passara aos filhos. Pois todos os Shepard tinham olhos azuis.
— Escute aqui, Glenn... — Bárbara argumentou — não importa a idade dos filhos, nem seus afazeres.
Uma mãe sempre se preocupa; é natural que seja assim.
— Ora, pare de perturbá-lo com essas perguntas bobas, Bárbara. Você alguma vez já imaginou que David
deve ter uma vida pessoal, da qual nada sabemos?
— O quê? — Bárbara Shepard reagiu, irritada.

— Sim, minha querida, ponha a mão na consciência e compreenda que o tempo passou. David já não
é mais o nosso menino, como você costuma chamá-lo.
— Não me venha com essas conversas de pai moderno e liberal — Bárbara repreendeu o marido. —
Você também se preocupa tanto ou mais do que eu. Apenas não confessa isso, para não parecer
antiquado e chato.
— Sua mãe sofre de excesso de imaginação — Glenn comentou, sorrindo, com o filho.
Enquanto isso, a atenção de Bárbara se voltava para a filha caçula, que mal havia tocado no prato.
Fitando-a com ar de reprovação, a velha senhora disse:
— Você está querendo se tornar anêmica, Shawna? Vive comendo folhas de alface, legumes e suco de
limão... Isso lá é jeito de se alimentar? Essas coisas, por mais saudáveis que sejam, não podem suprir por
completo um organismo adulto, que necessita inclusive de proteínas.
— Minha dieta só vai durar uma semana, mamãe — Shawna argumentou, com a rebeldia de seus
dezoito anos. — Ou você quer que eu seja a primeira bailarina da história a se apresentar com celulite e
excesso de peso?
— Pronto! — Bárbara meneou a cabeça, com ar dramático. — Agora essa menina só pensa na
apresentação da escola de bale, que só vai ocorrer no mês que vem! — E acrescentou em seguida:
— O excesso de peso só existe na sua cabeça, filha. Você tem um corpo muito bonito. E agora trate de
comer este peito de frango, que fiz especialmente para você. Proteínas, para quem faz exercícios físicos,
são indispensáveis.
— Está certo, eu como — Shawna obedeceu, num tom irreverente. — Não vamos armar um
conflito internacional por causa disso.
— Muito bem, filha — Bárbara aprovou, satisfeita.
Shawna provou um pedaço de frango e em seguida fitou David com ar maroto:
— Parece que meu querido irmão está com problemas. Mas enquanto todos pensam que se trata de
excesso de trabalho, eu adivinho outras coisas...
— Do que você está falando, menina? — Bárbara indagou, franzindo a testa.
— Eros, mamãe — Shawna respondeu, com um sorriso. — Será que você está tão velha assim, que até
se esqueceu do que é romance, namoro... Amor?
Glenn Shepard sorriu.
— Já não era sem tempo — comentou, entre surpreso e satisfeito. — Trinta anos é uma idade
bastante apropriada para se pensar seriamente em constituir uma família.
David tentava manter-se alheio à conversa, mas o fato era que estava tenso. Será que Shawna sabia de
alguma coisa sobre ele e, Harmony? Teria corrido algum comentário na cidade?
— Isso que Shawna disse é verdade, filho? — Bárbara indagou, fitando-o com atenção.
— O quê? — David retrucou, no tom mais neutro que conseguiu.
— Não embarace o rapaz com esse tipo de pergunta — Glenn censurou a esposa. — Se David tiver de
nos contar alguma coisa, ele o fará no momento propício.
— O fato de eu ser a caçula da família não significa que seja também a mais estúpida — disse
Shawna, com sua irreverência habitual. — Os silêncios prolongados de David, esses olhos perdidos na
distância e essa falta de apetite já deixam bem claro o que está se passando... Ao menos para mim.
— Ora, não diga tolices, bailarina — David repreendeu-a, num tom delicado, mas firme. — Você anda
lendo romances demais.
— Viram só como ele ficou irritado? — Shawna ria, apontando o irmão com o garfo. — Parece que
acertei em cheio... — E cantarolou: — "Quando o amor acontece, a gente perde a cabeça..."
— Tenho a impressão de que vou dar umas palmadas no traseiro de uma futura bailarina famosa... —
disse David, irritado.
— Controle os nervos, Romeu — Shawna continuava a provocá-lo. — Todos nós, humanos,
acabamos sendo flechados por Cupido, mais cedo ou mais tarde...
— Já chega, Shawna — Bárbara interveio. — Deixe seu irmão em paz e termine seu jantar. —
Voltando-se para o marido, anunciou: — A propósito, Glenn, esqueci de lhe contar que Jolene ligou de Nova
York. Ela e Matthew chegarão dentro de duas semanas, para passar o Natal e o Ano-Novo conosco.
— Jolene não deveria viajar, no estado em que se encontra — Glenn sentenciou, preocupado.
— Tenha a santa paciência, papai... — Shawna intrometia-se novamente na conversa. — Nós não
estamos mais no tempo das diligências puxadas a cavalo. Sua filhinha predileta viajará num avião
confortável e estará muito segura, em seus seis meses de gravidez. Ah, e por sinal devidamente
acompanhada pelo marido, com quem você, aliás, não simpatiza muito.
— Eu? — Glenn reagiu, espantado. — Não simpatizo com Matthew? De onde você tirou essa ideia,
menina?
Foi a vez de Bárbara rir. E até mesmo David trocou um olhar cúmplice com a irmã, meneando a cabeça.
De fato, Matthew, o marido de Jolene Shepard, era um tanto esnobe e prepotente. Parecia ter prazer em
encontrar defeitos na pequena Appleton. E isso irritava Glenn Shepard, bem mais do que ele gostaria de
admitir.
— Sei que não morro de amores por Matthew — Glenn afirmou, ao fim de um longo momento. — Mas o
importante é que ele ama Jolene e lhe dá o máximo respeito. Isto sim é que conta.
— Muito bem, papai — Shawna aplaudiu, com ar brincalhão. — Você pode ter lá suas rabugices, mas
possui muito bom senso. Vamos ver se isso funcionará, quando você oferecer sua champanhe predileta a Matthew
e ele criticar o sabor. — E Shawna imitou a voz levemente fanhosa do cunhado: — "Hum... Este champanhe é
bom, sr. She-pard... Mas um tanto ácido demais para o meu gosto." Todos riram e até mesmo Glenn não
pôde ficar de fora.
— Se não fosse o bale para queimar as energias dessa menina, não sei o que faríamos com ela.
— A energia excessiva é própria da juventude — Glenn comentou, voltando a comer.
Alguns momentos de silêncio se passaram, até que Bárbara perguntou ao marido:
— Você acha que Douglas virá este ano?
Glenn fitou a esposa com um misto de impaciência e ternura. Todos os anos, naquela época, Bárbara
falava do cunhado, transferido para Chicago logo após ter baleado William Martin, devido a um lamentável
engano. Nunca mais Douglas Shepard voltara a Appleton. E, naturalmente, não viria naquele ano.
— Você sabe o quanto os policiais trabalham, na época das festas, Bárbara. — Glenn tentava
confortar a esposa. — Talvez Douglas consiga uma folga, mas... Quem pode garantir? — acrescentou,
apenas a título de consolo. Pois lembrava-se muito bem das palavras do irmão, ao partir: "Jamais voltarei
a pôr os pés nesta cidade ingrata."
Lançando um olhar para o pai, David compreendeu perfeitamente sua tristeza. De repente, o clima entre
a família ia se tornando amargo, pesado.
— Não existe mesmo justiça neste mundo em que vivemos — Bárbara lamentou-se, tornando a
abandonar os talheres sobre o prato. — Doze anos se passaram e a opinião dos moradores de Appleton
ainda pesa sobre o pobre Douglas. Também, os Martin não deixam ninguém esquecer da tragédia!
— Mamãe, que tal mudar de assunto? — Shawna interveio, aborrecida.
Mas Bárbara continuou, ignorando a repreensão da filha:
— Uma tarde dessas convidei Laurell Duncan para vir aqui em casa. Ela está organizando um bazar
de fim de ano no clube feminino e eu me dispus a ajudá-la. Convidei-a para um chá, a fim de tratarmos
sobre o assunto. Conversamos longamente e depois falamos de amenidades. De repente, sem que eu
esperasse, ela comentou a tragédia. Levantei-me, fui até a cómoda e peguei o envelope com o resultado das
investigações feitas na época. Bati o dedo sobre o veredicto e fiquei olhando-a nos olhos.
—E suponho que Laurell Duncan tenha reconhecido a inocência de Douglas — Glenn comentou, ansioso
para encerrar aquela conversa triste, que não levaria a lugar algum.
— Ela simplesmente sorriu, como se dissesse: "Fidelidade corporativa... Onde já se viu um policial
condenar outro?"
— Este é um assunto velho, mamãe — David protestou, incomodado com o rumo que a conversa ia
tomando. — É melhor tentar esquecê-lo.
— Pela primeira vez concordo com meu querido irmão — disse Shawna, empurrando o prato vazio. —
Você vive num mundo particular, mamãe. E parece não reconhecer que o tempo passou, que a sociedade de
Appleton agora somos nós, seus descendentes... E herdeiros das confusões que vocês aprontaram.
— Que conversa é essa, menina? — Bárbara encarou a filha com uma expressão severa.
— Mamãe, caia na realidade, por favor! Esse ódio entre a nossa família e os Martin já está me tirando
do sério.
— O quê? — Bárbara empalideceu.
— É isso mesmo que você ouviu, mamãe. Eu, pessoalmente, não tenho nada contra aquela família.
Sinto muito pelo que aconteceu há doze anos, mas não podemos nos hostilizar eternamente por causa disso.
— Cale-se, Shawna -*- David ordenou.
Mas a irmã não lhe deu ouvidos.
— Os Martin, se pensarmos bem, são gente como nós. Trabalhadores, pacatos... Enfim, pessoas de
bem. Harmony Martin, por exemplo... Ela foi minha professora de técnica vocal, no ano passado, por uma
semana. Estava substituindo um professor de licença.
— Você nunca nos contou sobre isso! — Bárbara fitava a filha com ar ofendido.
— Claro que não, pois acabaria provocando um colapso em você ou em papai — Shawna defendeu-se. E
continuou: — Pois sabe o que eu achei de Harmony? Que ela é uma professora competente e um amor de
pessoa. Tratou-me muito bem, com carinho e simpatia, sem ligar a mínima para esse ódio idiota que
vocês e os outros Martin carregam há tanto tempo.
— Shawna... — Glenn advertiu-a, com voz velada —, veja lá como fala com sua mãe.
David estava sem ar. O nome da mulher que amava acabava de ser lançado na conversa. E o resultado
prometia ser catastrófico.
— Deixe-a falar, Glenn — disse Bárbara, recostando-se na cadeira e fitando a filha no fundo dos
olhos. — O que mais você tem a nos ensinar, srta. Sabedoria? Shawna abrandou a voz:
— Mamãe, eu sei o quanto esse assunto é doloroso. Mas nada do que fizermos vai modificar o passado.
Eu também amo tio Douglas, como a um segundo pai. Lembro-me de quando ele me levava para passear, de
quando me trazia presentes que até hoje conservo em meu quarto. Eu tinha apenas seis anos, na época em
que tudo ocorreu. Mas chorei muito e sempre sentirei saudade dele.
Um pesado silêncio caiu sobre o ambiente. E Shawna voltou a falar:
—A vida tem de continuar, mamãe. Não podemos passar o resto de nossos dias odiando os Martin. Santo
Deus, isso até parece aquela história de Shakespeare, chamada Romeu e Julieta. Só faltava eu me apaixonar
por Rod Martin, ou David por Harmony Martin...
—Nunca mais repita essa estupidez na minha frente, Shawna Shepard — Bárbara ordenou, com uma
expressão de fúria nos olhos. — Eu preferiria antes que vocês...
—Bárbara! — Glenn exclamou, atónito, tomando a mão da mulher por sobre a mesa.
— Que nós... o quê, mamãe? — Shawna insistiu, num fio de voz.
— Mana, por favor — David tentou contemporizar.
—Diga, mamãe — Shawna continuava. — Você preferiria que eu e David...
—Cale a boca e vá já para o seu quarto — Glenn ordenou, num tom que não admitia réplicas.
Bárbara chorava em silêncio, com os olhos fechados, deixando que as lágrimas lhe corressem pelo
rosto envelhecido pelo sofrimento.
— Mamãe... — David quis consolá-la.
Mas Glenn fez-lhe um gesto para que saísse e os deixasse a sós. Shawna e David afastaram as cadeiras e
deixaram a mesa em silêncio.
—Você não devia ter feito isso — ele disse à irmã, quando chegaram à sala.
—Não mesmo? — Shawna tinha os olhos rasos de lágrimas.
Seu corpo esbelto de bailarina estremecia a intervalos, tamanha era a tensão que a dominava. — Alguém
tinha de dizer isso a eles, mano. Essa insensatez precisa acabar. Todo Natal é a mesma coisa; eu não
aguento mais.
— Fale baixo — David ordenou, ríspido. — Você foi impiedosa e dura com mamãe.
— E existe outro modo de fazer com que ela me ouça? — Shawna estava descontrolada. Apontando
um dedo trémulo para David, anunciou: — Se este clima pesado continuar, vou passar o Natal na casa de
minha amiga Meredith. Os pais dela não costumam estragar as festas de fim de ano com assuntos
mórbidos e sem nexo.
— Shawna, ouça... — David tentou aconselhá-la.
Mas a irmã já não o ouvia. Correndo, alcançou a escada que conduzia ao seu quarto, subindo os degraus
de dois em dois.
Um terrível desânimo tomou conta de David, que encostou-se à parede da sala, com o coração oprimido
pela angústia. Agora compreendia que ali, naquele lugar onde fora criado, ali no seu lar, o nome da mulher
que amava jamais poderia ser pronunciado.
Agora sim, David tinha certeza de que aquele Natal seria um verdadeiro inferno.

CAPITULO VIII

O movimento era intenso na avenida principal de Appleton, naquela quarta-feira. O sol percorria o céu
azul-pálido e sem nuvens. O vento que soprava das montanhas era frio e estimulante.
Harmony atravessava o cruzamento, acompanhada pelos gémeos, Christopher e Brandon. Os três
compunham um belo quadro. No centro, Harmony, com seus cabelos loiros e anelados, usando um elegante
casaco de lã cor de marfim, que caía-lhe abaixo dos joelhos sobre a calça da mesma cor, com detalhes em
marrom. Os gémeos, loiros como a irmã, usavam jeans, ténis e camisas de mangas compridas, brancas. A
diferença no vestuário ficava por conta dos suéteres de lã, tricotados a mão por vovó Irena. O de Brandon era
cor de vinho, com losangos amarelos. O de Christopher, verde-musgo com retângulos bancos. Ambos
estavam animados e sorridentes, pois iam às compras de Natal.
Para a família Martin, Papai Noel era uma figura simbólica e romântica. Mas as crianças jamais tiveram
dúvidas sobre quem pagava os presentes de Natal. Olívia Martin costumava dizer que as coisas que Papai
Noel trazia em seu trenó, na noite do Natal, não eram bens materiais mas sim jóias impalpáveis, como amor,
dignidade, honra, paz, harmonia... Fora essa a história que ela contara para Rod, em seus primeiros anos de
vida. E a repetira para Harmony e os gémeos.
Naquele ano, Harmony havia se disposto a arcar com as despesas dos presentes dos caçulas. Ambos
queriam novas roupas de esquiar, pois vinham usando as mesmas nos últimos dois invernos. Tinham crescido
bastante e precisavam mesmo de uma renovação no vestuário.
Era justamente por isso que estavam a caminho das lojas especializadas em trajes esportivos: para
que tanto Christopher quanto Brandon escolhessem os que mais lhes agradassem.
Os três terminaram de atravessar o cruzamento e seguiram pela calçada, em direção ao centro
comercial.
— Bom dia, Harmony Martin — disse Gladys Silverman, aproximando-se. — Você anda sumida...
— Bom dia, sra. Silverman — Harmony cumprimentou-a, alegre por revê-la. — Ando muito atarefada com os
exames de final de ano, os concertos de Natal e uma série de outros afazeres — explicou.
— Compreendo. Mas será que você não teria jeito de escapar um pouco dos compromissos e fazer uma
visita ao Thesouros de Segunda Mão? — ela se referia à loja da qual era proprietária.
— Faz tanto tempo que você não passa por lá.
— E mesmo — Harmony assentiu, com um sorriso.
Ia dizer algo mais, quando a velha senhora indagou:
— Essas duas pinturas são seus irmãos?
— Sim.
— Este é Brandon, e este, Christopher — Harmony apresentou-os.
Os meninos adiantaram-se e cumprimentaram a velha senhora. Gladys Silverman vestia-se de maneira
sóbria... E um tanto excêntrica. Usava calças de lã e um casaco de feltro cinturado, que a fazia lembrar um
duende ou algum personagem de contos de fadas. Os gémeos a fitavam com um misto de surpresa e
encantamento.
— Você sabe que sou viúva e vivo sozinha, Harmony — disse Gladys. — Também, não tenho muita
paciência com pessoas da minha idade. A maioria delas só sabe falar de assuntos chatos como o custo
de vida, a liquidação da semana, a dor de dentes do filho, a cerveja do marido... Você sabe.
Harmony riu e ela continuou:
— Assim, por livre escolha... Ou por falta dela, vivo bastante isolada. Você não gostaria de aparecer lá
em casa, levando esses garotos encantadores? — Voltando-se para os gémeos, explicou:
— O Thesouros de Segunda Mão funciona no andar térreo da casa que meu marido me deixou. Eu moro
no andar de cima.
O convite da velha e gentil senhora pegou Harmony de surpresa. Mas era irrecusável...
— Na sexta-feira à noite estarei livre.
—Otimo. — Gladys Silverman sorriu, satisfeita. E perguntou aos meninos: — Vocês irão com sua irmã?
Ambos voltaram-se para Harmony, fitando-a com expectativa.
—Podemos? — Brandon indagou.
—Acho que conseguirei convencer mamãe a deixá-los ir comigo — disse, por fim.
Os gémeos sorriram de contentamento. Estavam curiosos e, como era próprio da idade, ansiosos para
descobrir o mundo e conhecer pessoas diferentes.
—Gostaria de frisar um detalhe importante — disse Gladys Silverman, com seriedade.
— Sim? — Christopher indagou, interessado.
—Vocês não devem comer nada, depois das cinco da tarde. Quero vê-los com apetite suficiente para os pratos
que vou preparar.
— Combinado! — ambos afirmaram, quase ao mesmo tempo.
— A que horas devemos chegar?
— As sete... Está bem para vocês?
—Perfeito — Harmony respondeu e despediu-se. — Foi um prazer revê-la. E obrigada pelo convite.
—Estarei esperando. —- Gladys Silverman afastou-se, com um aceno.
—Ela é tão diferente — disse Brandon, entusiasmado. — Eu não sabia que você conhecia pessoas
assim, tão...
— Interessantes? — Harmony completou, com um meio sorriso.
— É — Christopher concordou. — Mas ela me parece meio... maluquinha.
—Christopher Martin! — Harmony censurou-o. — Estes não são modos de um garoto de quatorze anos
referir-se a uma pessoa mais velha.
O menino corou, envergonhado. Mas Harmony tinha de reconhecer que sua querida amiga Gladys
Silverman era uma pessoa um tanto excêntrica. E isso se tornava ainda mais evidente, numa cidade
provinciana e conservadora como Appleton.
O que a velha senhora pretendia, com aquele convite? Ela se perguntou, lembrando-se de que a borboleta
de ouro e pedras preciosas, que David havia lhe dado, viera da loja de Gladys Silverman. Uma leve
inquietação instalou-se em seu íntimo. Mas Harmony venceu-a.
"Bobagens..." Disse para si. "Estou vendo ameaças por toda a parte, devido ao meu estado frágil."
Tomando a mão dos gémeos, ela continuou caminhando em direção ao centro comercial.
David patrulhava as ruas principais dos bairros, dirigindo a viatura do departamento de polícia. Tinha
sido escalado, naquele dia, para a ronda motorizada. Esse trabalho sempre requeria dois policiais, por uma
questão de segurança. Mas o parceiro escalado para acompanhar David havia faltado, para comparecer à
fest-de encerramento da escola onde seu filho estudava.
David sentia-se bastante solitário, fazendo a ronda sozinho. Quando patrulhava a pé, podia ao menos
parar para cumprimentar os conhecidos e isso o distraía. Mas, dirigindo, não podia se dar a esse luxo.
Bem, não adiantava reclamar, pois tinha uma obrigação a cumprir e ainda faltavam algumas horas para
encerrar o turno.
Ao entrar na avenida que dava acesso ao bairro onde a sra. Gladys Silverman morava, David avistou um
furgão cinza fazendo uma conversão proibida, em meio a um cruzamento bastante perigoso. Ligando a sirena, num
leve toque de advertência, ele fez um sinal ao motorista do veículo para que encostasse no meio-fio. A ordem foi
imediatamente obedecida e David estacionou logo atrás.
Descendo da viatura, caminhou sem pressa em direção ao furgão. Notou, pela placa, que o veículo vinha
de outro Estado. Aproximou-se da janela do motorista e pediu-lhe os documentos do carro, junto com a
carteira de habilitação.
— Appleton é uma cidade tranquila — disse, num tom de calma advertência. — O índice de acidentes de
trânsito por aqui é quase nulo, senhor... — David interrompeu-se e olhou os documentos.
— Sr. Mayfield — concluiu. — É de Los Angeles, pelo que consta aqui nos documentos, certo?
— Exato. — O motorista apontou a mulher a seu lado. — Viemos para desfrutar a estação de esqui e
visitar familiares. Pretendemos passar o Natal e o Ano-Novo aqui em Appleton.
— Muito bem, sr. Mayfield — David aquiesceu. — Como acabei de dizer, quase não temos acidentes de
trânsito por aqui... E faltam poucos dias para terminar o ano. —Após uma pausa, acrescentou:
— E nós dois certamente não gostaríamos de acrescentar uma multa às estatísticas. Isso poderia
prejudicar a fama de nossa cidade, conhecida em todo o Estado como uma das mais civilizadas no trânsito...
Certo?
— Oh, claro — o motorista concordou.
— Pois então, tenha a gentileza de nos ajudar a manter a fama de Appleton. E a melhor forma de fazer
isso é não cometer mais nenhuma infração.
— Eu lhe prometo, senhor. — O motorista fitou-o com expectativa. — Vai me multar?
David sorriu:
— Não. — David devolveu-lhe os documentos. — Vou apenas desejar-lhe um feliz Natal... E
também para a sua senhora — finalizou, olhando para a mulher ao lado do marido.
— Oh, muito obrigada — ela agradeceu, retribuindo o sorriso.
— Eu também lhe agradeço — o motorista secundou, aliviado. — Podemos ir, agora?
— Claro, senão, chegarão atrasados.
Ele agradeceu e partiu, em baixa velocidade. Puxando seu bloco de anotações do bolso, David escreveu o
número da placa, a procedência e o nome do motorista, que havia memorizado. Não ia efetuar a multa. Mas
guardaria para si aquelas anotações. E se o motorista cometesse uma segunda infração... Bem, ai teria de
pagar por ambas.
David retornou à viatura e seguiu pela avenida, entrando na rua onde ficava a loja e residência da sra.
Gladys Silverman. E logo avistou caminhonete da velha senhora, que tinha acabado de estacionar em frente
ao Thesouros de Segunda Mão.
Gladys desceu do veículo. Contornando-o, começou a retirar algumas caixas de papelão da carroceria.
Estacionando a viatura, David saltou e aproximou-se para ajudá-la.
— Boa tarde, sra. Silverman — saudou-a, num tom simpático. — Olá, policial Shepard.
— Deixe que eu carregue essas caixas, que aliás parecem bastante pesadas.
— Obrigada. — Ela sorriu. — Você chegou em boa hora. Eu estava justamente pensando num jeito de levar
tudo isso lá para dentro, sem deslocar a coluna... — comentou, num tom bem-humorado.
— Parece que a senhora resolveu esvaziar as prateleiras do mercado... — David olhava, admirado, para o
grande volume de compras.
— O que se vai fazer, não é mesmo? Raramente tenho paciência para ir ao mercado. Quando vou, preciso
trazer tudo o que necessito. Assim, poderei levar um bom tempo até repetir a proeza.
David riu e pegou uma grande caixa nos braços. A velha senhora já se adiantava para abrir a porta da
loja.
— Por aqui... — ela indicou uma escada à esquerda do hall de entrada, que conduzia às dependências
que ocupava, no andar acima da loja. — Vou subir na frente, para acender a luz.
David fez várias viagens da caminhonete até a residência da velha senhora. Por fim, terminou a tarefa:
— Esta era a última — disse, depositando a quinta caixa no chão, ao lado do armário da cozinha.
— Otimo. Muito obrigada pela gentileza.
— Não há de quê, sra. Silverman.
— Agora sente-se enquanto preparo um chá para nós.
— Agradeço, mas estou em serviço e não posso interromper...
— Ora, não levará mais do que alguns minutos — Gladys Silverman insistiu, enquanto enchia de água
uma chaleira de mãe-ágata, que mais parecia uma preciosa peça de antiquário.
— Está bem — David concordou. — Retirando um molho de chaves do bolso, depositou-as sobre a mesa,
— A propósito, aqui estão as chaves da caminhonete. Tomei a liberdade de trancá-la.
— Obrigada novamente, policial Shepard.
— Bem, vou fechar a viatura e voltarei num instante. Com licença. — E David afastou-se pelo corredor,
em direção às escadas que conduziam ao térreo.
Enquanto descia os degraus, seus pensamentos voavam para longe dali. Três dias haviam se passado,
desde que tivera Harmony nos braços. E a vontade de revê-la era uma tortura constante.
Naquela manhã, antes de sair com a viatura, havia se aproximado de um telefone público e, com o
coração aos saltos, discado o número da casa dos Martin. Mas não fora Harmony quem atendera à ligação e
sim uma outra mulher... A mãe ou a avó, com certeza. E, assim, David tinha desligado, sem nada dizer,
tomado por um sentimento de vergonha.
Aquela ação, própria de um colegial apaixonado, mas totalmente incabível para um homem de trinta anos,
havia dado a David a extensão exata de sua paixão... E de seu descontrole! O equilíbrio emocional que
sempre fora sua marca registrada estava seriamente ameaçado. E David não tinha a menor ideia do que fazer,
para vencer a ansiedade que o acompanhava a cada segundo.
Meneando a cabeça com tristeza, ele saiu para a calçada e atravessou a rua. Trancou a viatura e voltou
para a companhia de Gladys Silverman, que já havia disposto a mesa com xícaras de porcelana azul e
pratinhos de sobremesa contendo biscoitos doces e salgados.
— Vá lavar as mãos e sente-se, policial Shepard. Servirei o chá num instante.
Ele obedeceu, caminhando até o lavabo contíguo à cozinha. Em seguida voltou à mesa e sentou-se. No
centro, sobre a toalha de linho branco, o bule de chá deixava escapar uma fumaça ténue, pelo bico. O aroma
era agradável. Recendia a erva-doce mesclada a outras folhas.
— Prove estes biscoitos de nata — a velha senhora sugeriu, empurrando um pratinho na direção de
David. — Eu mesmo os fiz, seguindo uma receita que pertenceu a minha avó.
David aquiesceu, provou... E aprovou:
— Que delícia, Gladys! Você tem mãos de fada.
—Ah! — a velha senhora exclamou, rindo. — Bem diziam os antigos que o caminho para o coração dos
homens passa pelo estômago. Antes, você me chamava de sra. Silverman. E agora me trata por... Gladysl
David reagiu, embaraçado:
—Oh, queira me desculpar. Fiquei tão entusiasmado com o sabor dos biscoitos, que por sinal são os
meus preferidos, que acabei quebrando as regras da boa educação.
—Ora, David... — Ela interrompeu-se. — Posso chamá-lo de David, não é mesmo?
— Claro, senhora.
— Gladys — ela o corrigiu.
— Certo... Gladys.
—Pois bem, assim está melhor. O tratamento formal não é necessário entre pessoas... Como nós.
— O que quer dizer com isso? — David indagou, sem entender.
—Quero dizer que estou a par do que acontece entre um certo policial e uma certa violinista... Ambos são
pessoas a quem admiro e estimo por demais. Por isso gostaria de ajudar.
David, que tinha acabado de se servir de uma xícara de chá, recostou-se na cadeira e fitou com firmeza a
mulher a sua frente, antes de dizer:
—Eu também a admiro muito, Gladys. Mas peço-lhe que seja discreta sobre o que percebeu. Você deve
saber que o problema que existe entre minha família e a de Harmony é bastante grave. Qualquer
comentário que chegasse até os Shepard, ou os Martin, poderia ser catastrófico tanto para mim quanto
para Harmony.
— Você pensa que sou do tipo fofoqueiro, David?
—De modo algum. Mas por favor seja cautelosa ao falar sobre esse assunto... Para que ele não nos cause
ainda mais problemas.
—Ora, não me tome por uma velha senil. Eu não apenas conheço a história da tragédia que jogou os
Martin contra os Shepard, como passei por uma situação parecida, ao me casar com meu Gerard... Que
Deus o tenha. — Com um sorriso maroto, confidenciou: — Meu pai roubou a noiva do pai de Gerard. E
os dois passaram anos a fio se odiando.
Contagiado pela vivacidade da velha senhora, David indagou, curioso:
— E você e Gerard sabiam desse fato?
—A princípio, não. Nós nos conhecemos em outra cidade, num baile de formatura. Apaixonamo-nos
praticamente à primeira vista e só depois fomos descobrir que vínhamos da mesma cidade.
— E então, o que aconteceu? — David perguntou, levando a xícara aos lábios.
Gladys Silverman serviu-se de chá e mordiscou um biscoito. Ficou pensativa por alguns instantes e só
então continuou:
— No verão seguinte, combinamos de ir juntos a Redhills, nossa cidade Natal. Chegamos à casa de meus
pais, abraçados e sorridentes como convém a jovens apaixonados. Durante o almoço, o meu pai, que tinha
gostado muito de Gerard, perguntou-lhe a que família pertencia. Gerard respondeu... E provocou um
verdadeiro desastre. Meu pai o expulsou de casa, eu tentei defendê-lo, minha mãe começou a chorar... Foi
uma loucura.
— E quanto aos pais dele?
— Reagiram da mesma forma, talvez pior... — Gladys Silverman meneou a cabeça, como se revivesse
aqueles momentos, pertencentes a um passado remoto. — Bem, para resumir, Gerard teve de optar entre
ser deserdado ou casar-se comigo. — Ela franziu o cenho, com uma expressão severa. — As pessoas
acumulam tanta raiva, tanto orgulho inútil ao longo do tempo... Quando seria tão mais fácil compreender!
— O final da história foi feliz? — David indagou, com um suspiro.
A velha senhora sorriu, com uma expressão sábia.
— A felicidade, meu caro rapaz, não é algo que se conquista ou se guarda. Ela é feita de sutilezas
impalpáveis, tais como o perfume de uma flor, um gesto delicado, uma sensação indescritível, um olhar
cheio de significados. Nada disso se pode capturar, ou tentar reter. — Mudando de assunto, indagou: —
Diga-me, David, o que você pretende fazer na sexta-feira à noite?
A pergunta o surpreendeu:
— Como? Ah, sim, estarei de plantão.
— Durante a noite inteira?
— Não; só até às nove horas. Por que pergunta, Gladys?
— Porque gostaria de convidá-lo para jantar. Modéstia à parte, sei preparar pratos capazes de derreter um
coração de pedra... — ela respondeu, num tom humorado.
David relutou:
— Não sei se poderei...
Ora, não seja tímido — Gladys Silverman o interrompeu.
— Venha e não se arrependerá. — Com um sorriso misterioso, comentou: — Além do mais, as pessoas
mais velhas sabem coisas que as jovens nem suspeitam que existem.
— Você está falando por enigmas — David protestou, inquieto.
— Pode ser... — Gladys Silverman concordou, marota. — Mas, se quiser mesmo saber do que se trata,
venha na sexta, às nove e meia... Não antes.
— Verei o que posso fazer — ele prometeu. — Agradeço muito o convite, Gladys.
— Espero que também o aceite. — Num tom sério, sentenciou:— David, você não precisa
realmente se preocupar comigo. Tenho lá minhas excentricidades, mas sei ser discreta e respeitar o sentimento
das pessoas. Considere-me como uma aliada sua... E de Harmony.
— Obrigado. — E os lábios de David entreabriram-se num sorriso. Ele e Harmony não estavam
sozinhos em sua luta, afinal.
Podiam contar com o apoio de um anjo em forma de gente chamado Gladys Silverman.
Minutos depois ele se despedia da mulher que, além de respeitar, agora considerava como uma grande
amiga.
Na sexta-feira, às sete horas da noite, pontualmente, Harmony estacionou seu carro em frente ao
Thesouros de Segunda Mão, cujas portas já estavam fechadas.
Os gémeos saltaram do veículo, alegres e excitados. Ela desceu e trancou as portas.
— Então, está tudo combinado, não é mesmo, Brandon? — Harmony fitou o irmão com severidade. —
Você vai se comportar muito bem, certo?
— Claro, mana — o garoto concordou, impaciente. — Fique tranquila.
— Otimo — Harmony assentiu e olhou para Christopher: — E quanto a você, rapazinho? Também
promete que...
— Eu me comportarei como um anjo — o menino completou. — Você está preocupada
demais, mana.
— Isso já é implicância — Brandon secundou.
— Implicância? — Harmony repetiu, muito séria. — O que vocês me dizem do que aprontaram na festa de
casamento dos Miller...?
— Lá vem você com essa história de novo... — Christopher protestou. — Já explicamos mil vezes que
aquilo que fizemos não foi exatamente uma travessura, mas sim uma aposta.
— Isso não justifica o comportamento lamentável de vocês, que pareciam uns selvagens.
— Christopher conseguiu tomar seis copos de suco. — Brandon ria, com a lembrança do fato. — A barriga
dele parecia um tambor. Eu, parei no quarto copo e perdi a aposta.
— Fez muito bem — Christopher comentou, no mesmo tom. — Pois eu, o vencedor, passei mal a
noite inteira.
— E fala como se isso fosse muito bonito — Harmony o repreendeu.
— Foi terrível, mana, pode apostar — Christopher afirmou, muito sério. — Sossegue, Harmony.
Naquele tempo nós éramos crianças... Agora já somos quase homens.
Harmony não pôde deixar de sorrir, diante daquelas palavras. — Homens! — exclamou, tomada de
ternura pelos irmãos. — Ainda vai levar muito tempo para se tornarem adultos, meus queridos.
A festa de casamento dos Miller ocorrera no começo do ano... Há cerca de dez meses. Mas para os gémeos
esse tempo certamente representava uma eternidade, Harmony pensou, antes de dizer:
— Está bem, todos merecem uma nova oportunidade. Mas fiquem sabendo que se aprontarem alguma
façanha durante o jantar com a sra. Silverman, nunca mais sairão comigo. E terão de arranjar outra pessoa
para levá-los ao clube de esqui, neste inverno.
Os meninos entreolharam-se, preocupados. E Harmony concluiu que havia acertado o alvo... A ameaça de
não irem esquiar era mais forte do que qualquer reprimenda.
"Teremos um jantar tranquilo nesta noite", ela concluiu, enquanto atravessava a rua, seguida pelos
irmãos.
Mais do que simplesmente tranquilo, o jantar foi adorável. Era nisso que Harmony pensava, uma hora
mais tarde. Os gémeos portavam-se como autênticos minicavalheiros. E deliciavam-se com as surpresas
gastronómicas que Gladys Silverman havia lhes preparado com tanto carinho. A conversa ao redor da mesa
era animada e divertida.
Após a sobremesa, Gladys Silverman convidou os meninos a conhecerem a loja. E foi maravilhoso vê-los
em meio às peças e roupas antigas, encantados com tantas novidades que compunham o estoque do
Thesouros de Segunda Mão.
Usando as roupas e objetos como material de cena, os meninos improvisaram uma peça de teatro. Gladys
Silverman e Harmony entraram na brincadeira e, assim, todos passaram momentos muito agradáveis.
Um grande relógio de carrilhão do início do século, que funcionava corretamente, indicou nove horas. E
Harmony, pesarosa, teve de interromper a brincadeira.
— É hora de irmos para casa, garotos. Prometi a mamãe que estaríamos de volta nesse horário. —
Dirigindo-se a velha senhora, acrescentou: — Nem sei como agradecê-la por esta noite inesquecível, sra.
Silverman.
— Que tal chamar-me simplesmente de Gladys, querida?
—Está bem... Gladys — Harmony assentiu, sorrindo. — Obrigada por tudo. Fazia muito tempo que eu
não me divertia assim.
—Fique mais um pouco — a velha senhora convidou. — Preciso conversar com você sobre alguns
assuntos. — E frisou bem as últimas palavras.
— Gostaria imensamente, mas os meninos...
—Isso não é problema — Gladys Silverman a interrompeu. — Vamos fazer o seguinte: eu levarei os
meninos para casa, enquanto você arruma a cozinha. Quando eu voltar, conversaremos um pouco, tomaremos
um café e depois você partirá. Que tal?
Harmony hesitou:
— Eu... Não sei...
—Posso mostrar o caminho para a sra. Silverman — Brandon se dispôs.
— Eu também! — Christopher afirmou, entusiasmado.
—Então, vamos — Gladys Silverman decidiu, encerrando o assunto. — A propósito, Harmony, será que
eu poderia usar o seu carro? Minha caminhonete está com problemas no motor de arranque.
—Claro. — Um tanto confusa, Harmony retirou as chaves do bolso do casaco e ofereceu-as à velha
senhora.
—Vamos, meninos — Gladys enlaçou os gémeos pelos ombros e saiu em seguida.
Harmony meneou a cabeça. Não tinha entendido a atitude precipitada da velha senhora. "Talvez ela tenha
algum assunto realmente sério a tratar comigo", pensou, recolocando no lugar os objetos usados durante a
improvisação teatral feita pelos meninos. Em seguida subiu para o andar de cima e, tirando o casaco, arregaçou
as mangas do suéter e começou a lavar a louça utilizada no jantar.
Ainda havia meia garrafa de vinho sobre a mesa e Harmony serviu-se de um copo. Mas só foi saboreá-lo
depois de arrumar a cozinha. Levando o copo, caminhou até a sala de estar, mobiliada com peças antigas de
mogno. Apagou a luz de centro e acendeu um abajur de vidros coloridos, colocado a um canto. A iluminação
ténue era bem mais agradável, Harmony constatou, sentando-se num sofá de couro.
Lançando um olhar à estante que ocupava uma parede inteira, ela observou os muitos livros e revistas
enfileirados. Depositou o copo de vinho sobre a mesinha de centro, ergueu-se, escolheu um volume e voltou ao
sofá. Era uma obra de Ernest Hemingway, intitulada Por quem os sinos dobram. Harmony entregou-se à
leitura, bebe-ricando vez por outra o vinho, que estava na temperatura exata. Pouco depois ouviu a porta se
abrir, no vestíbulo do andar térreo. Erguendo-se, ela preparou-se para receber Gladys Silverman. Mas para
sua extrema surpresa deparou com David Shepard. Ele usava o uniforme da corporação e trazia o quepe nas
mãos.
— David! — murmurou, atónita.
— Você! — ele exclamou, no mesmo tom.
Ambos se olharam, emocionados e surpresos. Mal podiam acreditar no que viam.

CAPITULO IX

David e Harmony permaneceram em silêncio por um longo momento, tomados por um misto de
confusão e alegria.
Por fim ele perguntou:
— O que aconteceu? Onde está Gladys?
— Ela foi levar meus irmãos caçulas até em casa. Jantamos juntos esta noite, aqui. E você, o que
veio fazer?
— Jantar, também — David respondeu, ainda não de todo refeito da surpresa. — Ela me fez o
convite há dois dias. Tenho certeza de que era para hoje, às nove e meia — acrescentou, consultando o
relógio de pulso e depositando o quepe sobre a mesinha de centro.
— Gladys deve ter se equivocado — Harmony comentou, pensativa. — A menos que pretendesse
oferecer dois jantares seguidos...
— E possível. — As palavras da velha senhora vieram à mente de David: "As pessoas mais velhas
sabem coisas que as jovens nem suspeitam que existem." Será que o equívoco de Gladys tinha sido
proposital?, perguntou-se, antes de dizer: — Bem, creio que ela mesma poderá esclarecer esse mistério... Só
não entendi porque Gladys foi levar os gémeos e você ficou.
— Ela falou que queria conversar comigo em particular — Harmony esclareceu. Um tanto embaraçada,
convidou: — Sente-se, David. Vamos esperar por Gladys.
Ele sorriu, satisfeito, acomodando-se numa poltrona ao lado do sofá. Não estava entendendo nada daquela
situação, mas adorava a oportunidade de ficar a sós com Harmony, num local fechado e aconchegante, longe
de olhares curiosos... A tortura maior era não poder tomá-la nos braços e beijar-lhe os lábios macios, frescos e
perfumados como uma flor.
Harmony ergueu-se para recolocar o livro de Ernest Hemingway na prateleira. Os cabelos loiros, anelados e
longos, compunham a moldura perfeita para o rosto delicado, onde os olhos castanhos brilhavam de
excitação e embaraço. A luz suave do abajur, ela parecia mais bela e desejável do que nunca, David
constatou, lutando para não ceder ao impulso de abraçá-la.
Uma emoção idêntica dominava Harmony, que sentia o coração pulsar descompassado, a ponto de sufocá-
la. Era preciso dizer alguma coisa, ou fazer alguma ação para preencher o silêncio que novamente caía sobre
ambos, ela pensou, aflita.
— Estou tomando um copo de vinho — disse, imprimindo à voz o tom mais natural possível. — Você
gostaria de me acompanhar, ou prefere uma bebida mais forte?
— Bem, como você já sabe, eu tinha sido convidado para jantar... Portanto, acho que prefiro um drinque.
— Qual?
— Scotch com gelo, se tiver.
— Vou verificar. — Harmony dirigiu-se à cozinha e voltou pouco depois, trazendo o drinque e um sorriso
luminoso no rosto.
— Acho que descobri o mistério — anunciou, oferecendo o copo a David. — Veja só o que encontrei
preso ao forno microondas.
— E estendeu-lhe um bilhete, escrito em papel vergê verde, numa caligrafia elegante. — Curioso é que não
tinha reparado nisso, enquanto arrumava a cozinha...
David pegou o papel, leu o recado e depois sorriu:
—Antigamente, chamariam Gladys Silverman de alcoviteira. Mas prefiro considerá-la como um doce
anjo-da-guarda. — E releu, em voz alta: — "Querida Harmony, esqueci-me de que convidei David Shepard
para jantar. Se ele aparecer antes de minha volta, avise-o que a lasanha está no forno e, o vinho, na
geladeira. Ah, e não o deixe sentir-se muito só... Um beijo, Gladys."
—Ela não deveria ter feito isso — Harmony murmurou, baixando os olhos.
Colocando o copo de scotch no braço da poltrona, David ergueu-se:
— Harmony...
Num movimento rápido, ela tentou voltar à cozinha. Mas David a deteve, atraindo-a para si. Seus
lábios buscaram os de Harmony com uma ânsia febril. Não havia mesmo como ignorar aquela onda de
puro desejo, ternura e emoção que acabou dominando a ambos.
O fato de estarem a sós naquele apartamento, sob uma iluminação ténue, longe dos ruídos da cidade e
dos problemas familiares... Era maravilhoso.
Obedecendo a uma voz que era mais forte do que ela própria, Harmony pressionou o corpo contra o de
David, buscando um con-tato maior. Ele suspirou profundamente, deixando que as mãos caminhassem pelo
corpo da mulher que tanto amava, tocando-lhe as curvas suaves, descobrindo detalhes preciosos.
O tempo voltava a perder o significado. Os corações pulsavam acelerados, movidos por uma chama que
já nada poderia apagar. Livrar-se da jaqueta incómoda foi muito fácil para David... Difícil era fazer com que
a mão trémula de Harmony pousasse sobre seu peito, tocando a penugem macia e negra que recobria os mús-
culos, numa carícia ousada que pedia outra... E mais outra.
Trémulos de emoção, ambos se despiram lentamente, entre beijos sôfregos, exclamações de prazer e
delícia diante da perspectiva da revelação do corpo amado, que mereceria as mais belas homenagens. Era
preciso extrair o máximo de emoção daquele momento único, que aos poucos conduzia ao áto de comunhão
perfeita.
Em meio a murmúrios de amor e medo, foram se ajoelhando no tapete macio, atirando as roupas ao
acaso sobre o sofá... Até que a nudez total ficasse oculta apenas pelas peças íntimas, minúsculas e
delicadas, que excitavam ainda mais e exigiam a consumação do desejo.
Livrando os seios de Harmony do sutiã, David conteve a respiração ao ver aquelas duas jóias muito alvas,
de bicos rosados, enrijecerem ao toque de seus dedos. Os lábios substituíram as mãos, numa carícia longa,
que era a um só tempo deliciosa e torturante.
Harmony gemeu de prazer e retesou o corpo, oferecendo-o, consumida por uma chama intensa... A chama
infinita da paixão.
A virilidade de David se manifestava, faminta, vibrando contra as coxas de Harmony. E aquela tensão
tinha de ser apaziguada, aquele fogo precisava ser alimentado pela força do corpo da mulher amada, para
chegar à consumação final que o amor exigia, de modo irredutível.
Deixando que a mão deslizasse pelo ventre de Harmony, David ajudou-a a livrar-se da última peça,
minúscula e rósea, que ocultava-lhe o ponto recoberto por uma penugem dourada, onde ninguém jamais
havia tocado.
Como um desbravador delicado e possessivo, David agora poderia enfim possuir a mulher dos seus
sonhos. Com movimentos inspirados unicamente pela força do amor, ele tocou a umidade morna, num gesto
delicado e urgente.
Querendo retribuir o amor que recebia, Harmony cedeu de vez à voz interior que a comandava. Tateando,
encontrou a fonte de toda a virilidade do homem que a conduzia em direção ao paraíso.
Tudo começava a transcorrer num tempo fora do tempo, num território mágico, onde se realizava a
mais doce coreografia. Beijos, palavras doces, promessas apenas sussurradas... Tudo conduzia ao passo
definitivo, irreversível, de onde nunca mais poderiam voltar.
Cobrindo o corpo de Harmony com o seu, David afastou o rosto para fitá-la no fundo dos olhos e
perguntar suavemente:
— Você tem certeza...?
—Não — ela confessou. O que significava a palavra certeza, naquele plano elevado onde agora se
encontravam? Nada... Harmony concluiu, antes de pedir: — Por favor, seja delicado comigo.
Não era preciso dizer mais nada, naquela hora em que os corpos e corações sabiam exatamente o que
queriam e para que tinham nascido...
Os lábios secretos de Harmony se abriram ao contato pulsante do homem que avançava devagar,
retrocedia e voltava, indo cada vez mais longe e mais perto, como as ondas do mar fluindo e refluindo.
A natureza exigia que David transpusesse aquele obstáculo fino e transparente, que resistia levemente
à penetração. Sua boca recebeu em cheio o pequeno grito de dor e susto que Harmony proferiu, quase em
pânico, enquanto um clarão alaranjado explodia-lhe na mente. Durou apenas um segundo... Para mudar
radicalmente, no momento seguinte. Uma chama ainda maior acendeu-se no íntimo de Harmony, que
agora abraçava David com força, indiferente às lágrimas que escorriam-lhe pelo rosto... Lágrimas que
tinham sido de medo e sofrimento a princípio, mas que agora só traduziam o desejo de continuar assim,
indefinidamente. O líquido quente de David espalhou-se dentro do corpo de Harmony, inundando-a de
uma força indescritível, elevando-a a um plano mais alto e tão intenso, que ela julgou que perderia os
sentidos.
Com um grito abafado Harmony penetrou num campo ainda mais vasto de prazer, que tornava-se mais
amplo a cada segundo. Descargas elétricas percorriam-lhe o corpo, fazendo-a estremecer. E Harmony
movimentava-se, cada vez mais rápido, buscando o que nem ela mesma poderia explicar. Só sabia que
tinha de continuar assim, sempre, por toda a eternidade se preciso fosse, até alcançar... Mas alcançar o quê?
Ela se perguntaria, se pudesse raciocinar.
Pela segunda vez o corpo de David se enrijeceu por completo. Mas agora ele não estava só... Podia
compartilhar com Harmony aquela sensação que somente alguns poucos poetas tinham conseguido traduzir
em palavras.
E entre lágrimas e suspiros, Harmony conheceu o gozo que jamais imaginara existir. Depois, tudo se
transformou numa sensação de paz absoluta.
Abraçados, sonolentos, fascinados com aquela noite mágica, os amantes permaneceram em silêncio.
Harmony vagamente pensava que agora conhecia o significado de uma palavra misteriosa: felicidade... E
que ele era muito diferente do que sempre imaginara.
A voz de David soou-lhe junto ao ouvido, como a mais bela das melodias. E Harlnony levou alguns
instantes para decifrar as palavras:
— Quero me casar com você, Harmony. E não vou esperar mais. Na verdade, não posso... Pois não
saberia viver sem esse amor que acabamos de confirmar. — E após uma pausa, a pergunta: — Você
quer?
— Sim — ela respondeu, sem pensar.
— Vamos nos casar no dia de Natal... O que acha?
— Otimo. :— Ela sorriu. — Assim, você nunca correrá o risco de esquecer a data de aniversário do nosso
casamento...
Ambos se beijaram com ternura, num feliz reconhecimento. Tudo estava bem, tudo daria certo. O futuro
acenava-lhes com promessas da mais pura felicidade. Ao menos foi isso que pareceu a Harmony, antes que
ela despertasse para a realidade.
— David — disse, num sobressalto. — Precisamos arrumar esta sala, antes que Gladys volte.
— É mesmo — ele concordou, levando a mão à testa. — Eu havia me esquecido...
Vestiram-se devagar, com uma certa tristeza por não terem podido ceder ao sono que lhes faria tão
bem, depois do ato de amor. Harmony afastou-se em direção ao toalete e, vinte minutos depois,
retornava, com os cabelos penteados e vestida como antes. Apenas, nos olhos castanhos, havia umà
profundidade maior, uma luz diferente que jamais tinham possuído antes.
David já havia terminado de arrumar a sala e estava sentado no sofá, com o copo de scotch nas mãos.
Parecia extremamente jovem, com os olhos cor de safira brilhantes, as faces coradas e uma expressão de
plenitude no rosto perfeito.
Ambos sorriram um para o outro, sem necessidade alguma de palavras que traduzissem o que
sentiam. Sabiam muito bem a grandeza e profundidade do que havia acontecido... E o silêncio era a
melhor maneira de expressar a emoção que ainda os dominava.
Teriam permanecido assim, por muito tempo, se não fosse pelo ruído da porta de entrada que se abria, no
andar térreo. No instante seguinte a voz de Gladys Silverman soava, vinda do pé da escada:
— Alô, meninos... Estou chegando.
Para a surpresa de ambos, a velha senhora não subiu ao apartamento. Agora podiam ouvir seus
movimentos lá embaixo, na loja, juntamente com sua voz que cantarolava uma música natalina.
— Gladys... Nossa querida Gladys — disse David, com um sorriso comovido. — Ela não subirá
enquanto não a chamarmos.
— Acho melhor descermos — Harmony propôs. — Já é tão tarde e, para ser franca, eu me sentiria
embaraçada de conversar com Gladys, neste momento... Você compreende?
David fitou-a com ternura. Claro que entendia o quanto Harmony ficaria constrangida, diante de
Gladys Silverman, que não teria dificuldade alguma em perceber o que havia ocorrido.
Num gesto carinhoso, ele acariciou-lhe o rosto corado, antes de responder:
— Claro que compreendo, querida. Vamos descer, então.
— Só agora me lembro de que você nem sequer jantou.
— E no entanto me sinto mais pleno e satisfeito do que nunca — ele retrucou, beijando-a nos lábios.
Minutos depois, ambos despediam-se de Gladys Silverman, que agia de modo tão natural, que nem
chegou a constrangê-los:
— Os gémeos são um amor — comentou. — Resolvemos parar num parque e comer pipocas. Em
seguida demos um passeio e então eu os levei para casa. Expliquei a Olívia o motivo de nosso atraso e ela
compreendeu. — Olhando de Harmony para David, acrescentou: — Perdoem-me se demorei demais.
Ambos sorriram e, inclinando-se, beijaram a face daquela bondosa amiga, num gesto de reconhecimento
e carinho.
Mas David sentia necessidade de demonstrar, de maneira mais veemente, sua gratidão. Por isso disse:
— Acho que minha noiva não discordará se eu convidá-la para ser minha madrinha de casamento....
— Voltando-se para Harmony, indagou: — Não é mesmo, querida?
Emocionada demais para falar, Harmony corou enquanto assentia com um gesto de cabeça.
— Será uma honra para mim — Gládys afirmou, comovida. — Mas tenho uma condição...
— Qual?
— Quero convidar o capitão Brodwisky para ser meu par. O que acham?
Harmony sorriu, em concordância.
— E uma ideia maravilhosa — David aprovou.
— Então, está combinado — disse Gladys. — E quando será o casamento?
— No dia de Natal — David respondeu, orgulhoso.
— Perfeito... E muito original — Gladys opinou.
— Já é tarde, David — Harmony afirmou, num fio de voz. — Precisamos ir embora.
— Sim, vão com Deus — disse Gladys, entregando a Harmony as chaves do carro. — E cuidem-se com
muito carinho. O amor que existe entre vocês me faz muito feliz. O mundo inteiro fica melhor, quando
dois corações se encontram.
Sem mais nada a dizer, ambos saíram para a noite calma e fria. A viatura em que David viera estava
estacionada do outro lado da rua, um pouco atrás do carro de Harmony.
— Nós nos veremos amanhã? — ela perguntou.
— Sim. — Ele segurava-lhe a mão. Parecia impossível dei xá-la partir...
Fazendo um intenso esforço, Harmony desvencilhou-se de David e abriu o carro. Acomodou-se diante do
volante e colocou a chave na ignição. David bateu com os nós dos dedos no vidro, que ela baixou devagar.
— O que foi?
Ele curvou-se e beijou-a longamente. Em seguida anunciou, num tom humorado que não ocultava a paixão
que o dominava:
— Vou escoltar você, milady, para que nada lhe aconteça nessa noite mágica.
Harmony sorriu, em sinal de aquiescência. Minutos depois ela dirigia pelas ruas de Appleton,
desertas naquela hora avancada. David a seguia, feliz como um menino diante do mais belo presente de
Natal.
Assim, os dois atravessaram a cidade calma, como se o mundo inteiro lhes pertencesse. Estavam felizes,
serenos, donos do mais precioso dos bens.
Foi apenas ao se aproximar da rua onde morava que Harmony começou a ficar preocupada. A realidade
ameaçava a magia da noite e era preciso muita sensatez, para não cair em suas armadilhas... Harmony
pensava, estacionando o carro em frente a sua casa. Saltou rapidamente e, com um gesto enérgico, pediu a
David que partisse.
Mas ele parecia disposto a contrariar o bom senso... Tanto que, muito calmamente, desceu da viatura e
aproximou-se.
— Seu maluco! — Harmony o advertiu, com um misto de ternura e medo. — O que pensa que está
fazendo?
— Quero um último beijo, para que eu possa dormir em paz.
— Mas alguém pode nos ver... — ela protestou, já fechando os olhos e entreabrindo os lábios para
receber o beijo ardente de David. A magia estava vencendo a realidade, novamente. Mas isso não
poderia ser perigoso? Harmony ainda se perguntou, antes de se entregar inteiramente àquele contato
maravilhoso. Afinal, seria apenas mais um beijo... Para que ambos dormissem tranquilos.
Naquele exato momento um furgão dobrou a esquina. Seus faróis lançaram uma luz forte sobre David e
Harmony, que se afastaram imediatamente.
Mas já era tarde. O furgão, que trazia o logotipo do Armazém Martin, parou logo atrás da viatura. E de
seu interior desceu Rod, que avançou para ambos com uma expressão de fúria.
— Meu Deus — Harmony exclamou, empalidecendo.
— Essa não — David murmurou, voltando-se para Rod com uma expressão calma, pronto para dar uma
explicação.
Não houve tempo. O soco o atingiu na boca. Rod estava tão descontrolado, que calculou mal o golpe,
acertando-o apenas superficialmente. Mesmo assim, um filete de sangue escorreu pelo queixo de David, que
bem poderia reagir, mas não queria. Somente olhava, com tristeza, para o homem que era irmão da mulher
que tanto amava.
— Rod! — Harmony gritou, horrorizada. — Como pôde fazer isso?!
— Cale a boca e vá para dentro! — Rod ordenou, o rosto transformado numa máscara de cólera. — Não
sei o que está acontecendo aqui, mas este maldito Shepard vai ter o que merece. — E tornou a atacar.
David caiu na calçada, sentindo que Rod estava ultrapassando os limites... Seus olhos doces e meigos
tornaram-se frios e incisivos. A mão que ele havia levado aos lábios feridos desceu, rápida, desviando o
soco direto que Rod agora desfechava-lhe contra o queixo.
— Rod, você não sabe o que está fazendo — David afirmou, num tom alto e seco. — Eu e sua irmã
nos amamos...
As palavras só serviram para redobrar a raiva de Rod, que investiu como um louco.
Dessa vez David não podia apenas se esquivar. Era preciso tomar uma providência. Agarrando o braço
direito do agressor com ambas as mãos, David não pôde evitar o soco de esquerda que o acertou na
fronte. Mas recuperou-se logo e, girando, o braço de Rod para trás, prendeu-o numa chave dolorosa, que
o imobilizou.
— Você quer me ouvir, seu louco? — ordenou, ofegante, mantendo-o bem seguro. — Dê-me ao
menos a chance de me explicar.
— Solte-me — Rod ordenou entre os dentes. — Não quero escutar nada de um Shepard desprezível como
você.
Na rua silenciosa, diversas luzes se acenderam. A porta da casa dos Martin se abriu com violência,
dando passagem a vovó Irena e Olívia, em seus trajes de dormir.
— Largue meu filho, maldito! — Olívia gritou, enquanto vovó Irena se aproximava a passos largos,
com um brilho de fúria nos olhos.
Num brusco safanão, David projetou Rod para a frente. Perdendo o equilíbrio, este chocou-se com a
avó. O choque foi inevitável, e vovó Irena caiu na calçada gélida, numa queda dolorosa.
Momentaneamente aturdidos pela cena chocante, todos ficaram como que paralisados. Harmony foi a
primeira a se recompor e, correndo para vovó Irena, ajudou-a a levantar-se. Por cima dos ombros, implorou:
— Pelo amor de Deus, David, vá embora daqui. Pelo amor de Deus...
Com uma expressão perplexa, a mão espalmada contra a boca, como a conter um grito, Olívia foi a única a
ver David se afastando, curvado, em direção à viatura que partiu em seguida.
Harmony sustentava vovó Irena nos braços. Rod correu a auxiliá-la, ajudando-a a levar a velha senhora
para dentro de casa.
No interior da viatura que se afastava, David sentia-se tomado pelo desespero.
— Está tudo perdido — dizia, contendo-se para não esmurrar o painel do veículo, num gesto de raiva
impotente. — Estraguei tudo, meu Deus! — E acelerando violentamente, desapareceu na escuridão da noite.

CAPITULO X
Pela manhã, muito cedo, a porta da residência dos Martin se abriu, dessa vez para dar passagem a
Harmony. Carregando duas malas pesadas, ela acomodou-as no bagageiro do carro e em seguida voltou para
dentro de casa. Pouco depois retornava, com uma grande bolsa de lona e uma valise de mão. Estava pálida,
com olheiras profundas. Movia-se devagar, como se carregasse um pesado fardo no peito. Até mesmo o
contato suave da fria brisa da manhã parecia machucá-la, tão frágil ela se encontrava.
Harmony entrou no carro e deu partida. Esperou alguns instantes, para que o motor aquecesse, enquanto
seus olhos avermelhados de tanto chorar fixavam-se na porta fechada, como se esperassem um sinal... Um
desfecho menos trágico para o que se seguiria em sua vida.
Apenas as cortinas da janela da sala se afastaram e então Harmony pôde ver, contra o vidro, os rostos
queridos dos gémeos assustados e chorosos.
Ela partiu em direção à casa de Paula Russel, com quem havia conversado longamente, durante a
madrugada, pelo telefone. A amiga a acolheria até que Harmony decidisse o que fazer.
Os primeiros carros e ônibus trafegavam pelas ruas, levando trabalhadores dos bairros para o centro
comercial da cidade.
As lágrimas afloraram aos olhos de Harmony, que enxugou-as com um gesto nervoso. Já estava cansada
de chorar, pois não fizera outra coisa durante a noite inteira.
Ao passar pela paróquia do padre Bernard, Harmony brecou o carro e deu marcha-a-ré, para estacionar no
pátio. Não sabia muito bem por que estava fazendo isso, mas de repente sentia uma incrível necessidade de
entrar naquele lugar calmo e aconchegante. Talvez assim conseguisse um pouco de paz para seu espírito
atormentado.
O padre Bernard estava celebrando a primeira missa do dia e reconheceu Harmony com um pequeno
sorriso, embora estranhasse sua presença ali, àquela hora.
Sentada num banco longe do altar, Harmony sentia-se invadida por uma leve sensação de alento. Mas
precisaria de muito mais, para acalmar seu coração povoado de angústia.
Quando a missa terminou, ela ergueu-se mas, em vez de sair, dirigiu-se à sacristia.
O padre Bernard recebeu-a com um largo sorriso, mas bastou-lhe um olhar mais atento para concluir que
Harmony não estava nada bem.
— O que houve, filha? — perguntou, num tom que era a um só tempo apreensão e carinho. —
Aconteceu alguma coisa grave?
— Preciso falar com o senhor — ela respondeu, com a voz sufocada.
— Sente-se. — O padre Bernard fechou a porta da sacristia. — Aqui, ninguém nos incomodará.
Desabafe suas mágoas, filha...
Cerca de quarenta minutos depois, Harmony deixava a paróquia, sentindo-me melhor, mais forte e
aliviada. Tinha encontrado, no velho pároco, um amigo compreensivo e solidário. Ele, juntamente com
Gladys Silverman, Paula Russel e os gémeos, eram seus aliados na forte luta contra o rancor entre os
Martin e She-pard. E Harmony já não se sentia tão só.
E quanto a David? Ela se perguntava, aflita, enquanto caminhava até o carro. Certamente ele estaria
enfrentando a fúria de seus entes queridos. Pois era óbvio que, àquela altura dos acontecimentos, David
teria contado à família que pretendia se casar com uma Martin.
As cartas estavam na mesa, Harmony pensou, entrando no carro. Nada mais poderia ser feito... Exceto
seguir em frente. E era exatamente isso que ela pretendia. Mesmo porquê, não lhe restava outra opção.
Se Harmony houvesse se demorado mais cinco minutos no pátio da igreja, teria visto David se aproximar,
dirigindo seu próprio carro e usando trajes civis, já que tinha ligado para a central e pedido para tirar uma
folga, das muitas que acumulara ao longo do ano. Mas, naquele momento, Harmony já estava quase
chegando ao apartamento que Paula ocupava, sozinha, perto do conservatório musical da Appleton.
O padre Bernard recebeu David com uma expressão compreensiva:
—Você não costuma frequentar a igreja, policial Shepard... Mas sei que é um homem trabalhador,
íntegro, que merece todo o meu respeito.
— Obrigado, padre — David assentiu, num tom respeitoso. Seu rosto másculo trazia sinais de tristeza e
cansaço. Um tanto embaraçado, disse: — Preciso conversar com o senhor.
—Eu já sei do que se trata, filho — o padre afirmou, com um sorriso bondoso.
— Sabe? — David reagiu, surpreso.
—Sim. Na verdade, estou me sentindo um pouco o frei Lorenzo, da história de Romeu e Julieta.
— Como assim?
—Ora, você não conhece a obra de Shakespeare que fala sobre dois jovens que se amavam e que
pertenciam a famílias rivais?
— Claro que sim, mas...
O padre Bernard não o deixou falar:
— Infelizmente o pobre frei Lorenzo, embora fosse um fiel aliado de Romeu e Julieta, não pôde realizar
o sonho de vê-los juntos para sempre, felizes como só eles mereciam. Ele conseguiu promover a paz entre
as duas famílias, mas àquela altura Romeu e Julieta já estavam mortos. A história se passou em Verona e
serviu como um triste exemplo do quanto o orgulho desmedido pode causar tragédias...
David assentiu, um pouco impaciente. Não estava nada disposto a ouvir o padre Bernard discorrer sobre a
tragédia escrita por Shakespeare há tanto tempo. Precisava, isso sim, conversar longamente com o pároco.
— Venha, filho. — Padre Bernard conduziu-o à sacristia. E apontando-lhe a cadeira onde Harmony
tinha se sentado há pouco, finalizou sua explanação. — Não queremos que a tragédia de Romeu e Julieta se
repita, em nossa pacata Appleton.
David fitou-o com espanto, enquanto se sentava. Estava começando a perceber o que o padre queria
dizer.
—Vou ser breve e sucinto, filho, pois posso imaginar como está se sentindo. — Após uma pausa, o
velho pároco anunciou: — Harmony esteve aqui e me contou sobre tudo o que aconteceu.
—Quando? — David indagou, arregalando os olhos azuis como safiras.
—Faz uns cinco minutos que ela saiu. Por pouco vocês não se encontraram.
— Droga — David resmungou. — Eu precisava tanto vê-la!
—Talvez tenha sido melhor assim — o padre sentenciou, com um suspiro. — Vocês dois estão muito
atormentados e precisam de tempo para se refazer. — Abrindo a gaveta de sua velha escrivaninha, ele
pegou um caderno de capa dura e folheou-o. —Ah, aqui está...
— O que é isso? — David perguntou, sem entender.
—O casamento de vocês — o padre explicou, simplesmente. — Está marcado para o dia de Natal, às
onze horas da manhã.
Harmony acha que Paula concordará em ser sua madrinha, mas ainda não sabe quem será o
padrinho. Quanto a você...
— A sra. Gladys Silverman será minha madrinha — David completou, tomado por uma súbita onda de
alegria. — Mas preciso consultar o capitão Brodwisky para saber se ele aceitará ser meu padrinho.
O padre riu:
— Vocês dois estão sem padrinhos... Não é uma divertida coincidência?
—Não há nada de divertido nessa situação, padre — David retrucou, passando a mão pelos cabelos, num
gesto de amargura e cansaço. — Acabo de conversar com minha família e contar-lhes tudo.
— E como foi que reagiram?
— Da pior maneira possível, como aliás era de se esperar.
— E você, o que pretende fazer?
—Já fiz. — David suspirou. — Sai da casa de meus pais e estou a caminho do Hotel Vermont.
— Aquele que fica no caminho para Redhills?

— Isso mesmo. Tirei o dia de hoje de folga, mas amanhã irei à corporação para pedir um afastamento
mais prolongado.
— Certo... — o padre Bernard assentiu, pensativo.
— E quanto a Harmony? — David perguntou, ansioso. — Onde ela está? E como está?
— Calma. — O padre sorriu. — Uma pergunta de cada vez. Ela está muito triste, como você, mas
confiante no futuro...
— Como eu — David afirmou, emocionado.
— Exato. Ela foi para a casa de Paula Russel.
— Mas Paula é namorada de Rod! — David exclamou, aflito.
— É também a melhor amiga de Harmony. E tenho certeza de que cuidará dela muito bem.
— Certo — David aquiesceu, ainda com ar de dúvida. Em seguida acrescentou: — Preciso ver Harmony.
O senhor poderia me dar o endereço...
Antes que David concluísse a frase, o padre retirou uma carta de dentro do caderno:
— Tome. — E saiu, deixando-o sozinho na sacristia.
Querido David... Dizia a carta de Harmony.
O bondoso padre Bernard prometeu-me que daria um jeito de entregar-lhe este recado. Estou arrasada
emocionalmente, mas continuo confiante no nosso amor. E uma pena que tenhamos de magoar nossas
famílias, para trilharmos o caminho que a vida nos colocou, unindo nossos destinos de maneira irreversível.
Mas não vejo outra saída.
Estarei na casa de minha amiga Paula e continuarei trabalhando no conservatório. Porém peço-lhe que
não me procure, até o dia de nosso casamento. Preciso de um pouco de solidão para colocar os pensamentos
em ordem. Não quero que você me veja desse jeito, angustiada e trémula... Nu'o é assim que quero ser para
você, David. Desejo que você me enxergue como uma pessoa forte, digna da honra de ser sua esposa e
companheira.
Portanto, peço que respeite minha vontade. O padre Bernard já marcou o nosso casamento para o dia de
Natal, às onze horas. Basta que você concorde e, então, daremos início a uma nova vida, que já adivinho
plena de felicidade. Mas, sinto dizer, essa felicidade será sempre turvada pela mágoa que causamos nos
nossos familiares, embora eles mesmos não nos tenham dado outra opção. Até o dia de Natal, David... Do
nosso Natal. Um beijo da sempre sua Harmony.
O padre Bernard preparou um sermão especial para a missa do domingo seguinte, a exatamente uma
semana do Natal. Mas, embora ele se dirigisse a todos os fiéis, seus olhos fixavam-se constantemente nos
Martin, que como sempre ocupavam um banco próximo ao altar.
A tristeza estampada no rosto da família era de causar pena. A cidade já comentava o escândalo ocorrido
na noite de sexta-feira, que acabara numa briga entre Rod e David Shepard. Mais uma vez, as duas famílias
eram o centro de atenção da cidade... E de uma forma lamentável.
— O Natal se aproxima — dizia o padre Bernard, com sua voz empostada. — Esta é a melhor época do
ano para fazermos um exame de consciência e abrir mão das tolices que às vezes consideramos como
sagrados pontos de vista. Hoje eu gostaria de falar sobre algo terrível que se chama... Orgulho. Em nome
desse baixo e triste sentimento, somos capazes de cometer muitos erros. Pois o orgulho pode ser confundido
com outros sentimentos bem mais nobres, tais como a dignidade e a força de caráter. Seria bom atentarmos
para isso, não concordam? Às vezes temos uma opinião ferrenha sobre algo ou alguém... Uma opinião que
não queremos mudar. A questão é a seguinte: não queremos mudá-la por que temos certeza dela, ou porque
estamos sendo movidos pelo orgulho? Boa pergunta... E gostaria que pensassem na resposta, enquanto lhes
conto uma história interessante. Aliás, muitos devem conhecê-la...
A perplexidade corria entre os fiéis, enquanto o padre Bernard discorria, rapidamente, sobre a tragédia que
havia acontecido doze anos antes, envolvendo as famílias Martin e Shepard.
—Aonde ele pretende chegar com isso? — Olívia perguntou baixinho a vovó Irena, pressionando-lhe a
mão.
—Ele certamente vai condenar a atitude de Harmony, por ter fugido de casa para se unir a um homem
que é nosso inimigo mortal — a velha senhora respondeu, no mesmo tom. Estava aba tida e havia
emagrecido visivelmente.
Mas vovó Irena estava enganada. O ponto ao qual o padre Bernard chegou, no final do sermão, era
exatamente o oposto...
— Durante muito tempo, ambas as famílias se odiaram. Os Shepard nem sequer frequentam a
nossa paróquia. Preferem ir à igreja de um bairro bem mais distante, apenas para não se
encontrarem com os Martin, que sempre nos honram com sua presença.
— Eu não falei? — vovó Irena cochichou para a filha. A seu lado estava Rod, muito rígido e tenso,
com uma expressão severa no rosto.
No banco de trás, os gémeos também pareciam nervosos e tristes. O clima pesado dos últimos dias os
havia abatido.
— Mas a vida tem lá seus caprichos — o padre Bernard continuava. — E assim aconteceu que dois
membros dessas famílias rivais se apaixonaram.
Um murmúrio de espanto correu entre os fiéis.
— O padre Bernard não tem o direito de falar em público sobre os nossos problemas — Rod protestou,
entre os dentes.
— E então, a reação de ambas as famílias foi terrível — o padre prosseguiu, depois de pedir silêncio.
— Vocês devem conhecer uma obra de Shakespeare, chamada Romeu e Julieta... Romeu Montecchio e
Julieta Capuletto pertenciam a famílias inimigas, tais como os Martin e os Shepard. A história se passava
em Verona e terminou com a morte dos dois amantes, que só queriam lutar pelo direito de serem felizes
e construir uma vida juntos. Hoje, estamos no século XX, às vésperas do ano 2000. Moramos numa
cidade pacata e certamente lutaremos, todos, para que a história de David Shepard e Harmony Martin
tenha um fmal feliz. E sabem como poderemos fazer isso? Desejando, do fundo de nosso coração, que as
famílias de ambos deixem o ódio de lado e enxerguem a situação sob um novo ângulo... Um ângulo muito
mais belo, por sinal, pois estamos falando do amor entre um homem e uma mulher. E somente a força desse
amor poderá vencer as hostilidades que se arrastam há doze anos entre essas famílias de gente de bem,
que só precisam de um pouco de luz. Vamos fazer, agora, um voto para que os Martin e os Shepard
voltem a ser amigos como antes. Para que compreendam o amor de seus filhos e o aceitem como uma
bênção, não como uma desgraça.
A reação foi imediata nos Martin, que levantaram-se e saíram, num claro sinal de protesto às palavras do
padre Bernard. Apenas os gémeos pediram para ficar, mas Rod tomou-os pelo braço e os conduziu à saída.
— E a última vez que piso nesta igreja — alguém o ouviu murmurar, num tom velado.
O padre Bernard acompanhou o movimento com um olhar pesaroso. Teria de tomar providências mais
sérias para abrir os olhos e o coração daquela gente. Mas, antes, precisava concluir a missa.
No almoço daquele domingo, o último antes do Natal, o clima na casa dos Martin parecia ainda mais
pesado.
— Vocês não acham que o padre Bernard tem razão? — Brandon ousou dizer.
— Cale a boca e coma — Rod ordenou, ríspido.
— Ele é padre, ora... — Christopher protestou. — E com certeza sabe muito mais do que nós sobre...
— Eu não quero ouvir mais nenhuma palavra a esse respeito — vovó Irena interveio,
autoritária. Ia dizer algo mais, quando o soluço de Olívia a fez interromper-se. — O que foi?
— Ora, o que foi! — Olívia repetiu, com os olhos rasos de lágrimas. — Estou arrasada, desesperada
com tudo o que houve. E gostaria de encontrar uma saída, um jeito de acabar com tanto sofrimento.
Talvez o que o padre Bernard falou tenha algum sentido, afinal.
— Mamãe! — Rod censurou-a, chocado. — Você não está que rendo dizer que acreditou naquele
sermão absurdo!
— Não seja rude com ela — vovó Irena interveio.
— Eu também não gosto de sofrer, mamãe — disse Brandon, com voz chorosa. — E sinto muito a
falta de Harmony. Queria que ela estivesse aqui conosco...
— Por que não fazemos as pazes com Harmony? — Christopher apoiava o irmão.
—- É isso mesmo. — Brandon hesitou, antes de concluir: — E se ela gosta de David Shepard, por que não
podemos gostar dele também
— Porque nosso pai foi morto pelo tio de David — Rod sentenciou, a voz trémula de revolta. — E
vocês dois estão cansados de saber disso.
— Mas essa história triste aconteceu há muito tempo — Christopher choramingou. — E nada do que
fizermos agora vai trazer papai de volta.
O silêncio voltou a cair entre os Martin. Dessa vez, nenhum dos adultos se atreveu a repreender os
garotos. De algum modo sabiam, embora não quisessem reconhecer, que os caçulas da família tinham certa
razão.
O som da campainha causou um estremecimento em Olívia, que afastando uma mecha de cabelos do rosto,
ergueu-se para atender.
—Oh, Deus, que péssima hora para receber visitas.
—Será Harmony? — perguntou Brandon, com um olhar esperançoso.
Mas estava enganado. Era o padre Bernard quem chegava e, num tom respeitoso, anunciava:
— Preciso conversar com você, Olívia Martin. Com todos vocês...
— O senhor nos ofendeu, padre — disse Rod, aproximando-se da porta, por trás da mãe.
— Não era minha intenção. E é isso que quero esclarecer, entre outras coisas. E então...? Não me
convidam para entrar?
Olívia deu-lhe passagem, com uma expressão de desconfiança que o padre Bernard pareceu não notar.
Cerca de uma hora depois, ele deixava a casa dos Martin e caminhava até a avenida, a cerca de três
quadras de distância. Ali pretendia tomar um táxi até a casa dos Shepard, onde teria uma conversa bem
parecida com a que acabara de levar com os Martin. Depois, entregaria tudo nas mãos de Deus. Sua parte
estaria feita.

CAPITULO XI

Eram dez e quinze da manhã quando David entrou I na igreja. Sobre o smoking, ele usava um grosso
sobretudo de lã que lhe caía até os joelhos. O sistema de aquecimento do ambiente era perfeito e David tirou
o casaco, deixando-o sobre um banco próximo ao altar.
Sentia-se ansioso e consultava o relógio a todo momento. Tal como Harmony lhe pedira, na carta que
deixara com o padre Ber-nard, ele não mais a tinha procurado. E uma pergunta atormentava-lhe a mente:
será que Harmony viria? E se ela se arrependesse no último momento? E se...
Com um meneio de cabeça, David interrompeu o fluxo de pensamentos. Já tinha sofrido demais, nos
últimos dias. Aquele não era o momento de acalentar angústias... Era o dia de seu casamento com a mulher
que tanto amava. Mas essa ocasião, que deveria ser a mais feliz de sua vida, estava turvada pela tristeza.
David suspirou, passando a mão pelos cabelos negros, num gesto de cansaço. Havia lutado pelo seu
amor e, para tanto, fora preciso colocar-se contra seus entes queridos. Mas, enfim, não tivera outra
opção.
A porta da igreja se abriu, dando passagem a Gladys Silverman, muito elegante num tailleur azul-escuro,
acompanhada pelo capitão Brodwisky que usava um terno preto.
Ambos caminharam, de braços dados, em direção a David, que sorrindo comentou:
— Vocês chegaram cedo.
—O privilégio de atrasar-se, nessas ocasiões, compete unicamente à noiva — a velha senhora retrucou,
bem-humorada, depois de beijá-lo em ambas as faces.
— E então, policial Shepard? — disse o capitão Brodwisky, apertando-lhe a mão num cumprimento
cordial. — Sente-se feliz?
— Sim — David respondeu. — Na medida do possível...
O capitão assentiu com ar compreensivo. Tal como todos em Appleton, ele sabia da comoção que David e
Harmony haviam provocado entre as famílias, com seu amor.
O padre Bernard saiu da sacristia e dirigiu-se ao grupo. Parecia muito bem-disposto naquela manhã, em
sua batina branca com paramentos dourados.
— E então, pessoal? Todos prontos para a cerimónia? — Antes que pudessem responder, ele
acrescentou: — Bem, ainda temos tempo de sobra,até lá. Por que não me acompanham num café?
— Agradeço, mas vou recusar — disse David, num tom polido.
Gladys e o capitão aceitaram o convite. Afastaram-se com o padre em direção à sacristia, deixando
David sozinho, caminhando . de um lado a outro do altar.
A igreja tinha sido decorada com rosas brancas e amarelas, dispostas em belos arranjos. Um tapete verde-
musgo cobria a nave central, contrastando com o piso de mármore. Era por ali que Harmony deveria passar...
Se viesse. David pensou, com um estremecimento. Por que estava tão nervoso, afinal? Acaso duvidava do
amor de Harmony?
— Não — ele disse, baixinho. — Eu confio em você, Harmony Martin... E no que sentimos um pelo
outro. Foi em nome disso que nos chocamos com as pessoas que mais amamos no mundo.
O tempo passava com uma lentidão angustiante e David consultava o relógio a todo momento.
Às dez e quarenta e cinco David percebeu uma estranha movimentação, vinda do corredor que conduzia à
sacristia. No instante seguinte ele deparou, surpreso, com os primeiros coralistas que saíam do vestiário para
ocupar seus lugares, à esquerda do altar. Usavam o uniforme do coral, branco e azul, e traziam consigo a
pasta de partituras. Todos, sem éxceção, cumprimentaram David de maneira cordial. E isso foi como um
sopro de esperança em meio à ansiedade e tensão que o dominava.
— Obrigado — ele agradecia, emocionado, fitando aquelas pessoas que talvez nem soubessem o quanto
estavam sendo preciosas, naquela hora difícil.
Paula chegou cerca de cinco minutos depois. Estava linda num vestido channel verde-água, que moldava-
lhe o corpo sensual. Lançou um cumprimento geral ao pessoal do coro e em seguida aproximou-se de David,
apertando-lhe a mão com simpatia.
— O noivo parece nervoso — gracejou.
— Onde está Harmony? — ele perguntou, num tom tenso.
—Calma, Romeu. — Paula riu. — Sua adorável Julieta já chegou.
— Quero vê-la.
— Nem pense nisso. É azar na certa.
— Por quê?
— Porque a tradição diz que o noivo não deve falar com a noiva, antes da cerimónia. — Num tom
mais sério, Paula confortou-o: —. Fique tranquilo, David. Tudo dará certo. Harmony está no carro,
muito confortável, aquecida e... Linda. Eu mesma ajudei-a a escolher o vestido. Mas, naturalmente, não
vou lhe contar como é.
— E quem será o seu par, Paula?
— O diretor do conservatório, sr. Keneth Toomey. Você o conhece?
— Apenas de vista.
— E uma pessoa adorável e está lá fora, com Harmony.
— Certo. — David hesitou, antes de perguntar: — Ela entrará... sozinha na igreja?
— Sim, já que seu orgulhoso irmão prefere continuar acalentando aquele ódio estúpido — Paula
respondeu, num tom de revolta.
David estranhou o comentário:
— Você não deveria falar assim de seu namorado...
— Não sei se ainda somos namorados. — Paula suspirou. Com um sorriso triste, concluiu: — Às vezes
sinto inveja de você e Harmony, que tiveram coragem de lutar por seu amor. E, por inveja, entenda
admiração.
— Eu entendi — David aquiesceu, num tom sério. — Gostaria de agradecer o apoio que você deu a
Harmony... E a mim.
— Vocês merecem — Paula sentenciou.
— Você é uma grande pessoa, Paula.
— Ora, pare de me elogiar. Senão acabarei chorando e estragarei a maquiagem.
O som de passos apressados na entrada da igreja fez com que ambos se voltassem. Brandon e Christopher
acabavam de chegar, com uma expressão de expectativa nos rostos corados.
— Oi, Paula — disse Brandon. — Nós já vimos Harmony, lá fora. Ela está linda.
— Fugimos de casa para ver o casamento — Christopher anunciou.
Paula e David trocaram um olhar emocionado. Ela foi a primeira a falar:
— Não vão cumprimentar o noivo, garotos?
Embaraçados, os gémeos apertaram a mão de David.
— Olá, cunhado — Brandon ousou dizer.
— Vocês vão levar uma bronca danada quando, chegarem em casa — Paula comentou, com os olhos
marejados. — Mas admiro sua coragem. Admiro mesmo. Vocês chegam a ser mais sábios do que os adultos.
— Nós já somos adultos — Christopher afirmou, orgulhoso.
— Bem, vão se acomodando — Paula sugeriu. — Faltam menos de cinco minutos para a cerimónia.
— David! — uma voz feminina soou, na nave central. Era Shawna que chegava, num elegante vestido
marrom. Aproximando-se, ela abraçou o irmão calorosamente. — Maninho... Eu não perderia este casamento
por nada no mundo.
Emocionado demais para dizer qualquer coisa, David manteve a irmã contra o peito por um longo
momento.
Os coralistas assistiam, num silêncio respeitoso, à cena que se desenrolava no altar. Paula havia se
afastado em direção à sacristia e, os gémeos, já estavam acomodados no primeiro banco, à direita do altar.
Eram onze e cinco quando o padre Bernard retornou da sacristia. Gladys Silverman e o capitão
Brodwisky o acompanhavam.
— Onde é que ficamos? — Gladys perguntou.
— Aqui. — O padre Bernard indicou-lhes um lugar próximo de David.
Paula e o sr. Keneth Toomey, que cumprimentou David num tom solene, colocaram-se no lado oposto.
O órgão de tubos soou, enchendo o ambiente com os acordes de uma música que David reconheceu
imediatamente: tratava-se da peça de Bach, que havia sido adaptada por Harmony, para o coral.
Ele tomou fôlego. A emoção que o dominava era tão intensa, que seu coração parecia saltar no peito, como
um pássaro assustado em seu primeiro vôo.
Agora, David já não se sentia atormentado pela angústia. A presença de Shawna, dos gémeos, dos
padrinhos e dos coralistas havia preenchido o vazio, substituindo-o por um clima de festa.
David sorriu. Estava feliz.
A porta principal da igreja se abriu de par em par. E lá estava Harmony, em seu vestido de noiva
imaculadamente branco. O modelo caía-lhe com perfeição, justo até a cintura e uma ampla saia godé, até os
pés. Aplicações de pequeninas pérolas o adornavam na altura do busto e seguiam numa linha reta pelas
mangas compridas, até o pulso. A grinalda era feita no mesmo estilo, com flores brancas e azuis mescladas
a pérolas. Dali partia o véu, muito longo, que flutuava ao compasso dos movimentos de Harmony, que
segurando um pequeno buque de miosótis começava a caminhar em direção ao altar.
"Valeu a pena, querida", David pensou, tomado por uma onda de felicidade. "Valeu a pena tudo o que
sofremos para estar aqui, hoje, selando nossa união para sempre."
Harmony não havia dado dez passos, quando um movimento na entrada lateral da igreja a fez parar. O
som de vozes sobrepunha-se à música de Bach e Harmony sentiu-se empalidecer. Será que Rod, ou
alguém dos Shepard, tencionava provocar um escândalo?
"Oh, não!", ela pensou, apertando com força o buque contra o peito. E como a confirmar suas suspeitas,
viu Glenn Shepard, pai de David, entrar juntamente com a esposa, Bárbara Shepard, a filha Jolene,
grávida de seis meses, e o genro. Os três acomodaram-se num banco. Mas Glenn caminhou na direção de
Harmony e, num tom inesperadamente gentil, ofereceu-lhe o braço:
— Permita-me acompanhá-la até o altar, senhorita? Sei que essa honra caberia a outra pessoa, que
infelizmente não está mais entre nós... Assim, ofereço-me para fazê-lo.
Harmony estava tão perplexa, que quase deixou cair o buque. Não podia acreditar no que tinha ouvido e
por isso custou a responder. Tomando seu silêncio como uma negativa, o velho senhor insistiu:
— Por favor, senhorita.
Um sorriso insinuou-se nos lábios de Harmony, que sem uma palavra aceitou o oferecimento. De braços
dados com Glenn Shepard, continuou o trajeto até o altar.
A música de Bach, que havia se transformado num tímido murmúrio, ergueu-se soberana, como se
coroando aquele momento singular e feliz.
Conduzida por seu futuro sogro, Harmony seguia pela nave central da igreja. Agora, já não podia ver a
chegada de novos e inesperados convidados, que silenciosamente entravam pela porta principal. Um deles
caminhou apressado pela nave central e bateu levemente no ombro de Glenn Shepard.
— Desculpe-me, senhor — disse, num tom delicado, mas firme. — Acho que cabe a mim desempenhar
este papel...
Glenn Shepard e Harmony yoltaram-se, surpresos. Mas surpresa seria uma palavra insuficiente para
descrever a emoção de Harmony ao ver Rod, que parecia tão embaraçado quanto comovido ao tomá-la
pelo braço, conduzindo-a gentilmente em direção ao altar.
—Devo estar sonhando — ela sussurrou, enquanto Glenn Shepard voltava para perto da esposa.
Rod não respondeu. Apenas fitou-a por um instante, como se quisesse dizer o que nenhuma palavra
poderia traduzir.
No altar, noivo, padre e padrinhos acompanhavam, atónitos, a cena que se desenrolava.
A música de Bach continuava soando, como se acompanhada por um coro de anjos.
Ao chegar ao altar, Rod tomou a mão de Harmony e colocou-a sobre a de David. Era seu modo de não
apenas concordar, mas também abençoar aquela união.
Os dois homens trocaram um olhar significativo. Mas não havia nenhum sinal de hostilidade entre
ambos... Apenas um desejo de sincera compreensão.
Rod já ia se afastando quando o sr. Keneth Toomey, que desempenhava a função de padrinho ao lado de
Paula, chamou-o:
— Por favor, Rod...
— Sim?
— Acho que seu lugar é aqui. — E afastou-se, enquanto Rod colocava-se ao lado da namorada.
— Vamos dar início ao casamento — o padre Bernard anunciou, quando a música de Bach chegou ao
final.
Harmony e David ouviam, atentos, as palavras do padre. Compreendiam a importância daquele momento
e, mais do que nunca, estavam confiantes no futuro.
Quando a cerimónia chegou ao fim, David e Harmony voltaram-se para descer do altar. E foi então que ela
viu, ao lado dos gémeos, as duas pessoas que faltavam: Olívia e vovó Irena a fitavam com intensidade, como
a dizer-lhe que sim, que haviam compreendido, que também abençoavam sua união com David Shepard. Agora
tudo estava completo e perfeito, Harmony pensou, antes de dizer:
— Sou a pessoa mais feliz do mundo.
— Mais do que eu? — ele retrucou, com um sorriso, pressionando-lhe levemente a mão.
Harmony ia dizer algo, mas o órgão de tubos soou novamente, acompanhado pelas vozes do coral.
O padre Bernard desceu do altar para abraçar cada um dos Martin e dos Shepard presentes, agradecer-
lhes por terem comparecido à cerimónia e convidá-los a cumprimentar os noivos.
Gladys Silverman e o capitão Brodwisky também se afastaram do altar. Queriam ser os primeiros a
abraçar os noivos, desejando-lhes toda a felicidade do mundo.
O grupo aglomerou-se próximo à entrada da igreja, fechando um círculo em torno de David e Harmony.
Mais do que o tradicional cumprimento aos noivos, algo importante acontecia ali... A afirmação da paz entre
famílias rivais, que haviam se hostilizado por doze anos. E que agora, graças a seus filhos, teriam a chance
de ser amigas novamente. Claro que levaria algum tempo... Mas tanto os Martin quanto os Shepard estavam
dispostos a tentar. E isso era o que realmente importava.
Apenas Rod e Paula continuavam no altar, olhando-se como há muito tempo não faziam, um tanto isolados do
clima ao redor. Os coralistas também já haviam abandonado seus lugares e agora estavam no vestiário, trocando
o uniforme do coral pelas roupas comuns.
— Acho que andei descuidando de você, Paula... — disse Rod,
embaraçado pela intensa emoção que o dominava. — Aliás, cometi tantos erros nos últimos tempos que nem
sei por onde começar a corrigi-los.
— Que tal por aqui? — Paula tirou um envelope do bolso do vestido.
— O que é isso? — Rod indagou, tomando-o nas mãos.
— Uma passagem para Toronto.
— Não entendi.
— Rasgue-a, por favor.
— O quê?
— Rasgue — Paula repetiu, enlaçando-o pelo pescoço e beijando-o levemente nos lábios.
— Eu nunca vou entender você.
— Oh, vai sim. — Paula sorria, emocionada. — Depois eu lhe conto sobre a história dessa passagem.
— Você ia viajar? — Rod perguntou. — Era isso?
— Eu ia cometer um engano irreversível — Paula sentenciou. — Mas felizmente acordei a tempo.
Quando o vi tomando Harmony pelo braço e conduzindo-a ao altar, compreendi que você é o homem mais
maravilhoso deste mundo, Rod, e que minha vida sem você não teria o menor sentido.
Ele fitou-a por um longo momento, antes de dizer:
— Nós precisamos nos casar, Paula.
— Mas só poderemos fazer isso depois que os gémeos atingirem a maioridade, eu sei...
— Eu pensava assim, até alguns dias atrás. Mas mudei de ideia.
— Como assim, Rod?
— Bem... Acho que já não precisamos esperar mais. Que tal nos casarmos na primavera?
— Rod! — Paula exclamou, radiante. — Você está falando sério?
— Claro que sim.
— Eu te amo. — Foi a resposta emocionada de Paula, antes de literalmente arrastá-lo até a entrada
da igreja. — Vamos, eu preciso contar isso a Harmony.
Mas Paula teria de esperar um bom tempo, até que Harmony e David, centro de todas as atenções,
concluíssem a tarefa que haviam começado há vários dias: a de unir duas famílias rivais, pelo maior e mais
poderoso laço do mundo. O laço indissolúvel do amor.

FIM

Vous aimerez peut-être aussi