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Este documento descreve a performance artística de Laura de Vison, uma artista transformista brasileira. Laura criava personagens extravagantes e provocativas que desafiavam normas de gênero através de atuações que misturavam o cômico e o bizarro. O texto também discute como a estética transformista de Laura pode ser entendida como uma "retórica do maravilhamento" que usa a surpresa para provocar reflexões fora dos limites da razão.
Este documento descreve a performance artística de Laura de Vison, uma artista transformista brasileira. Laura criava personagens extravagantes e provocativas que desafiavam normas de gênero através de atuações que misturavam o cômico e o bizarro. O texto também discute como a estética transformista de Laura pode ser entendida como uma "retórica do maravilhamento" que usa a surpresa para provocar reflexões fora dos limites da razão.
Este documento descreve a performance artística de Laura de Vison, uma artista transformista brasileira. Laura criava personagens extravagantes e provocativas que desafiavam normas de gênero através de atuações que misturavam o cômico e o bizarro. O texto também discute como a estética transformista de Laura pode ser entendida como uma "retórica do maravilhamento" que usa a surpresa para provocar reflexões fora dos limites da razão.
" do poeta o fim a maravilha" (Giambatista Marino) Phasmes: como se estes animais sem cauda, nem cabea Pudessem dar seu nome a um gnero acidental de conhecimento e de escritura. Que talvez pudesse se situar entre o movimento de cristalizao do documento (como um sintoma do objeto, emitido pelo real) e aquele, mais errtico e centrfugo, da desapario (como sintoma de um olhar, emitido pelo imaginrio).(Didi Huberman. Phasmes: essais sur lapparition, 1998) Quem esta diva que afronta nossa viso como apario, phasme? Este corpo imenso, como prostituta de Fellini ou barcaa instvel e fake como em La nave va? Madona barroca, maravilha? Baleia jorrando leite em meio ao oceano escuro de um palco? Vaca profana erguendo os cornos no rosto dos caretas? Figura que avana at a plateia, misto de clown e de rinoceronte numa montagem paranoica de Dali? Fellini afirmou numa entrevista. 1
Mas o que essa necessidade neurtica de traduzir continuamente uma coisa pela outra? Com o que rima isso de procurar o sentido escondido atrs, acima ou abaixo, sobre ou sob uma imagem, um personagem, uma situao ou um objeto? Tornou-se um hbito. Ns no temos mais confiana em ns mesmos: seminrios, mesas-redondas, debates e entrevistas televisivas terminam por nos tornar completamente desconfiados de nossa prpria capacidade intelectual. Ns estamos todo o tempo desejando que algum nos diga algo diferente do que vemos: Sim, o aparecimento do cruzador, mas, em realidade, tambm a interrupo agressiva do recalque.; Sim, isso se parece com uma gaivota, mas, em termos psicanalticos, o prenncio de um novo conceito de coisas... Uma criana de dois anos, ela que emerge de uma dimenso completamente diferente, tem o direito de perguntar quando v um ovo: Que isto?. Mas no um pouco anacrnico e desprovido de sentido que ns, na nossa idade, continuemos a perguntar ao autor de um filme o que quer dizer um rinoceronte? Apresento-vos a Vnus das peles latino-americana, Laura de Vison, brasileira, carioca, que irrompe no circuito Camp como apario. Figura encenada de um feminino arquetpico, circuito da montagem que se autoproduz em potncia. Eu tambm ensaio
1 Recolhidas pela autora na exposio Tutto Fellini no Instituto Moreira Salles, 2012. 2
por meio deste jogo linguageiro de montagens metafricas escapar s definies, busco o pensamento-ao, este incmodo perambular por palavras, travestimento do logos, montagem tradutria para a performance desta atriz, deste ator, disto, daquilo que atua deixando um corpo flutuar merc da acrobacia das marcas. Dvida, dvida, diva. Um corpo-maravilha que se concentra nos seios pela respirao artificial da performance, na maquiagem-mscara acentuada, produzida com desproporcionalidade em relao ao make up, ao cotidiano, ao comum identificvel. Laura necessita do apagamento das marcas no corpo (esconder, disfarar, extirpar, colocar prteses, perucas, fazer make- ups, vestir-se sempre para a festa) para inscrever-se noutro novo corpo exuberante. A experincia do corpo escrita nos movimentos aparece como: sonso trao enviesado: o seu fino vigor animal segundo Clarice Lispector. Corpo inaudito, vida imaginada. Corpo sobremarcado, sobressaliente, corpo-supermercado. Corpos drag, corpo que draga.... Hugo Denizart aponta no travestimento o sacrifcio permanente da vida comum, o apagamento dos traos: Aquilo que est em permanente trans-formao e quer trans-por todos os obstculos, que trans-gride, trans-parente, que trans-cende o lugar comum e que tem o corao trans- fixado pela paixo de deixar de ser, nem que por fantasia, o que o corpo determina. Na vida fora do palco desta diva, ressurgem outras marcas nos movimentos angulares e na voz grave, traos se sobrepem ao corpo-suporte, ao corpo-cabide, para montar o masculino de um professor de histria. Norberto Chucri David, carioca do Engenho de Dentro, filho de pais libaneses que comercializavam tecidos, estudou na Faculdade Nacional de Filosofia e trabalhou como professor. Este corpo- suporte, corpo- significante, onde se inscrevem metforas transformistas da personagem, pode aproximar-se do signo neutro de Roland Barthes. Lugar plataforma, montado, tanto no papel masculino de professor, quanto no da arrebatadora Laura de Vison. O professor tambm teatro, mas busca uma representao naturalista. A personagem est tanto diante de seus alunos, quando um dia pode surpreend-los encarnando uma Clepatra durante uma aula sobre o Egito, quanto no palco do bar Bomio no Centro do Rio, onde causava estupor ao esguichar o leite, sobre as bocas pasmas da plateia, em espetculos profanatrios e escatolgicos como o de comer miolos 2 . Como Laura de Vison recriava um tipo de madona vexatria, impudica, mas dadivosa.
A notcia sobre da morte de Noberto-Laura, em 2007, publicada no jornal e acessvel na internet globo.com, comenta o efeito de espanto das suas performances: Seus shows antolgicos eram uma espcie de videoclipe. Quando interpretava "Splica cearense", jogava um balde de gua nos espectadores. Em "This is my life", se transformava numa enfermeira e comia fgado. Volta e meia rolava, absolutamente nua, por uma escada, assistida por at 600 pessoas 3 . Tudo em Laura era palco, atuao, encenao, mscara. Os travestis, como diz Gombrowicz, sobre seus personagens no prefcio ao romance A Pornografia, no se medem pela interioridade, mas pela adequao mscara, so produtores constantes da forma que segregam como a abelha segrega o mel. O/a travesti nos faz pensar, segundo ainda o escritor polons, na sexualizao do pensamento sobre arte o artista deve cravar o filsofo no encantamento, no charme na graa 4 . Quero, portanto, falar da esttica travesti como retrica do maravilhamento, produzida como metfora para os olhos, para provocar, pelo estupor, um deslocamento, um modo de reencantamento e de conhecimento fora dos limites da razo instrumental. Recorro, neste caso, aos estudos sobre a tpica do maravilhamento de forma livre e descontextualizada j que sem do arcabouo mental do discurso do absoluto presente no sculo XVII. Lano mo das autoras Erminia Ardissimo e Silvana Scarinci , no artigo Maravilha e conhecimento de Tasso a Vico 5 que assim definem o termo e sua funo: A palavra italiana meraviglia (ou, em sculos mais antigos, maraviglia) deriva do latim mirabilia, que designa aquilo que mirabile (admirvel), do verbo miror-mirari. Pertence, portanto ao campo semntico da viso, tem na sua raiz um componente que remete ao visvel, a indicao de que se trata de um ato do ver, e obviamente est em relao direta com o termo admirao, admiratio, que indica justamente o ato intensivo do olhar. O mirabile corresponde perfeitamente ao grego thaumaston. Como os seus equivalentes nas lnguas romnicas, um termo polissmico: pode indicar simultaneamente o objeto e o evento que por sua
3 http://oglobo.globo.com/cultura/morre-transformista-laura-de-vison-4175853, acessado dia 28/08/2013) 4 Gombrowicz, Witold. prefcio In. A pornografia. Romance. Trad. Tati de Moraes. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1986.(5-11) 5 Per musi no.24 Belo Horizonte July/Dec. 2011 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-75992011000200002 / acesso 10 de setembro de 2013.
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excepcionalidade e imprevisibilidade suscitam estupor e surpresa, ou a sensao experimentada frente aquilo que maravilhoso ou admirvel, que se manifesta tambm com signos externos de estupor do rosto, do tom de voz, dos gestos. A ambivalncia lxica no efeito de sedimentao histrico- lingustica, mas deriva de uma ambiguidade mais radical, que toca a natureza profunda do fenmeno. Onde reside a maravilha? no objeto ou no sujeito? uma qualidade reservada a alguns elementos na natureza ou pertence alma humana? nasce de uma dinmica circunscrita ao objeto ou reside numa dissonncia ou num encantamento do eu?
Nessa tpica da maravilha, conjugam-se, portanto, o estupor do raciocnio ao fascnio pelo que foge ao controle, rebatendo-se sobre o espectador, quando ento a forma se traveste em fora. Para a retrica, a maravilha possibilita acesso ao conhecimento fundado na conjugao de polos contrrios dos quais uma das fontes a arte. Segundo as autoras do artigo: Tesauro cr que o admirvel venha de dois concetti incompatveis "por isso, mais alm do admirvel." Que por sua incompatibilidade geram justamente maravilha. No podemos aqui seguir a anlise que Tesauro faz das combinaes (positivo com negativo, positivo com positivo, negativo com negativo) de termos incompatveis e enigmticos que geram maravilha, nem da variedade dos mirabili [...] Gostaramos somente de chamar a ateno sobre as fontes do admirvel que possam fornecer material para as categorias. Tesauro destaca quatro fontes: natureza, arte, opinies, fingimento. [ no que nos interessa] a arte "engenhosa mquina de estranhas e argutssimas obras" (TESAURO, 1670, p.448- 9) Para a esttica travesti- que examino- a metfora admirvel recobre um fundo falso, cavo, raso, esvaziado de substncia, arqutipo do feminino que no se cola a uma mulher. Produz-se numa: virt visiva (HANSEN). Ou seja, o travesti produz a impossibilidade da vida naturalizada, maravilha ps-moderna, ps Lou Reed. Institui, indecorosamente, ou seja, fora de padres a passagem de uma coisa a outra. Esta esttica do inacabado no se perfaz, no se ajusta ao comum, indecorosa ferindo a regra. No pode ser, portanto, o crossdresser assimilvel socialmente, porque num caso de crossdresser como o de Laerte, por exemplo, a aparncia tende a reconstituir o reconhecvel, digamos, de uma senhora de classe mdia. Nem visa ao perfazimento do transgnero feminino, quando o corpo masculino recriado para a conquista do corpo 5
feminino como Roberta Close ou La T. Nestes casos, busca-se a reconquista da norma lingustica, do paradigma, num transformao prxima esttica cosmtica. So estratgias diferentes sobre as quais no estabeleo valores no momento. Nem masculino, nem feminino, a escrita do corpo da Diva - travesti mantm-se insolvel. O travestismo, acrobacia das marcas, vai muito alm da busca de parecer mulher, parecer-se com uma mulher. No pode reverter tambm a lugar nenhum, a uma origem, uma genealogia, uma biografia, um onde. Nada interessa sob o desenho, pura marca grfica, mantendo a transitoriedade do corpo alucinao. Como arte e atopia, este corpo se projeta para um gueto, uma comunidade, uma nao sem nacionalidade, uma turma, um babado forte como tela em que os iguais se reconheceriam pela fantasia de singularidade, sob aparncia de mercadoria. Laura de Vison investiu neste corpo-trampolim. Prancha de onde saltou para uma sobrecarga metafrica, para o excesso de ultrafeminilidade, artifcio, montagem, simulacro, jogo de linguagem, percorrendo todos os caminhos conceituais demarcados por Denilson Lopes no seu texto sobre o camp: afetao, fluidez, indeterminao. Cito O travesti, cindido entre o exagero da afetividade e a festa das aparncias, o brilho da noite e a solido dos quartos, o xtase da msica e a violncia do cotidiano, a mscara e o corpo marcado, a alegria e a melancolia, por excelncia o ser de um mundo simulacral (texto CAMP) Na performance de Laura tem-se, portanto, a re/ inveno do corpo. Imaginao. Maquinao. Corpo em desdobra... A mscara facial explora as possibilidades do ricto, riso, lgrimas, deboche, e alguma loucura. Corpo que se monta no excesso, no exagero, parte maldita, economia do dispndio. Peruca, make up com glitter, meias arrasto, brilho e glamour no cetim barato e joias falsas. O biogrfico e suporte anterior, prescinde ser investigado sob a instalao Laura, alm do que este biografismo estaria tambm sob as vestes do falso. A biografia da/do artista ser um intervalo ficcional entre o mais nada daquilo e o ainda no aquilo. Laura de Vison, remete relao sado- mas da Deusa das Peles, ao fazer contrato com a plateia: eu te engano e te devoro, da a encenao antropofgica da performance do banquete de miolos. A temporalidade travesti nunca o do pretrito perfeito, no h acabamento possvel para um corpo que est na dobra, que tem uma dobra, um corpo reversvel. O travestimento s pode conjugar-se no presente mais que perfeito da arte, mas de algum 6
modo, de um modo muito irnico, a figura do travesti aponta o dedo mdio contra o social, contra o politicamente correto, contra a moral, contra ideologias, criando seu prprio ativismo inconcilivel e fantasista. Este gro de excesso, este sorriso enviesado, no mundo controlado das marcas e das ideias talvez seja a questo para o artista no contemporneo. A Diva de Vison prepara o salto acrobtico, prepara a bala, prepara o projtil, a tela, a escrita do corpo no domesticado e se espatifar no lado grotesco, pobre, barroco nacional, vide o conto Marylin no inferno, de Joo Gilberto Noll, vide a escrita invertebrada daquele autor, estudada por Laddaga, vide as fotos dos travestis de carnaval feitas por Hugo Denizart. O real cobrar seu preo, quando a barra pesar. Suzane Kellen disse: Eu j fui agredida, j fui roubada, j fui queimada....Tudo isso. porque tem homem que no admite que gosta de travesti 6 Sem projeto definido, o projtil-travesti bala disparada que parte da base de referncias do social para o caos/ cmico e trgico. A complexidade da escolha de ser travesti ultrapassa [...] questes de ordem econmica. S um corpo polvoco suporta o trgico e longo trabalho de produzir um corpo no domesticado. Eis uma tarefa rdua que um travesti pagar qualquer preo para realizar, virilmente se fazendo mulher, para super-la com um sorriso nos lbios, s vezes de dor. (DENIZART, 1997, p.9). O/a travesti a bela viso - tem a ver com uma pergunta que nunca se satisfaz com a resposta. Uma pergunta sem flego. Desejo do disparo. Tomar de assalto. Subir no salto. Saltar de Bungee Jump no programa do Gugu. Transvirar, transluciferizar, travestir-se, mascarar-se em manifestao anrquica, contnua e inassimilvel. Os travestis do a cara a tapa.
6 DENIZART, Hugo. Engenharia Ertica. Rio de Janeiro: Joge Zahar ,1997. 7