Vous êtes sur la page 1sur 10

1175

ARTIGO ARTICLE
Cuidando da saúde de crianças pequenas no contexto familiar:
um estudo etnográfico com famílias de camadas populares

Caring for the health of young children in the family context:


an ethnographic study of low income families

Vania Bustamante 1
Leny A. Bomfim Trad 1

Abstract This study examines ways of caring for Resumo O presente estudo focaliza os modos de
the health of small children in families assisted by cuidar da saúde de crianças pequenas em famíli-
the Family Health Program in a low-income out- as atendidas pelo Programa de Saúde da Família
lying district of Salvador over a period of nine (PSF) na periferia de Salvador, acompanhadas
months. Based on participant observations supple- durante um período de nove meses. A abordagem
mented by semi-structured interviews, the ethno- etnográfica, através da observação participante
graphic approach offers a close-up view of how the complementada com entrevistas semi-estrutura-
respondents understand childcare and its links to das, permitiu-nos aproximar-nos da compreen-
the social and cultural context. Childcare require- são dos informantes sobre o cuidado das crianças
ments are arrayed along three main axes, structured e de sua estreita relação com o contexto sociocul-
on the basis of the child’s gender: preservation of tural. As necessidades de cuidado são pensadas em
integrity, ability to play and education. Practices três grandes eixos, marcadamente estruturados a
related to healthcare express evaluations and deci- partir do gênero das crianças: a preservação da
sions that take into consideration the constraints integridade, a capacidade de brincar e a educa-
imposed by reality and different standpoints, with ção. As práticas vinculadas aos cuidados de saúde
the medical view occupying an important – but not são expressão de avaliações e escolhas que levam
preponderant – position. Finally, the inter-subjec- em consideração as limitações da realidade e pon-
tive character of childcare is examined, in the sense deram diferentes discursos, dentre os quais o dis-
that adults obtain moral gratification through car- curso médico ocupa um lugar importante, mas não
ing for children, striving to meet their needs. preponderante. Finalmente, destacamos o caráter
Key words Family, Children, Health care intersubjetivo do cuidado, na medida em que, ao
cuidar, os adultos obtêm gratificações morais ao
mesmo tempo em que buscam satisfazer necessi-
dades da criança.
Palavras-chave Família, Crianças, Cuidados
de saúde

1
Instituto de Saúde
Coletiva, UFBA. R. Basílio
da Gama s/n, Canela.
40110-040. Salvador BA.
vaniabus@yahoo.com
1176
Bustamante, V. & Trad, L. A. B.

Introdução vem adaptações de saberes populares, transmiti-


dos no âmbito da própria família”10.
Vários autores1,2,3,4,5,6 têm chamado a atenção so- Citando Alves & Rabelo, Ferreira12 destaca a
bre a inadequação do modelo de família nuclear importância da experiência social nos cuidados
burguesa para compreender a realidade das fa- de saúde: “As práticas de cuidado do corpo são
mílias brasileiras, especialmente nas camadas orientadas por uma lógica que resulta da experiên-
populares. Este debate é particularmente perti- cia social e, com base nesta, produzem-se inter-
nente dado a centralidade conferida ao Progra- pretações que adquirem significado a partir de
ma de Saúde da Família (PSF) no país, estratégia processos compartilhados no cotidiano”. Além dis-
que tem como propósito a reorientação dos mo- so, é preciso considerar que a adesão a prescri-
delos assistenciais vigentes7. Entre os desafios para ções médicas está muito influenciada pelos re-
a implementação do PSF, destaca-se a dificulda- cursos disponíveis10.
de em superar a visão universalizante de família, Neste trabalho, nos aproximamos do concei-
baseada no modelo nuclear, assim como a ten- to de cuidado trabalhado por Ayres13. Na pers-
dência a pensar nas mulheres como as “cuidado- pectiva do autor, “cuidar da saúde de alguém é
ras” naturais da família8. mais que construir um objeto e intervir sobre ele.
Sarti2,3 adverte sobre a centralidade da famí- Para cuidar há que se considerar e construir pro-
lia na experiência dos indivíduos de camadas po- jetos”. Ainda que sem fazer menção direta ao con-
pulares, considerando que nestes setores os pro- texto familiar, o autor destaca a necessidade de
jetos de vida se constroem em função do grupo e incluir o cuidado na totalidade das “reflexões e
não do indivíduo. A autora considera que a fa- intervenções” em saúde, o que nos leva a pensar
mília não pode ser compreendida a partir de uma que sua proposta se aplica também à família, na
racionalidade prática. Ela é vivenciada como uma medida em que esta funciona como um espaço
dimensão ontológica, constitutiva da razão de ser privilegiado para os cuidados de saúde.
no mundo, um organizador da vida, a partir de Em termos mais específicos, a categoria “mo-
relações de mútua obrigação, junto com o traba- dos de cuidar” foi inspirada na categoria “modos
lho e a comunidade. Os laços de parentesco se de partilhar”, que inclui [...] em um mesmo olhar
constroem na forma de relações de reciprocida- práticas culturais em curso na família, o modo de
de nas quais dar, receber e retribuir são indispen- inserção da criança nessas práticas e os significa-
sáveis. Tais relações podem não se estabelecer com dos que orientam essa inserção, segundo o relato
parentes de sangue. dos pais14. Os significados se apresentam em dois
A saúde é um bem muito apreciado pelos níveis interligados: o primeiro, mais amplo, é o sis-
membros das famílias de camadas populares, es- tema de crenças parentais ligado à criação de fi-
pecialmente por sua associação com a capacidade lhos; o segundo, as justificativas imediatas às prá-
de trabalhar, tal como afirma Sarti3: “embora não ticas narradas pelos pais ou observadas em campo.
tenha nada, tem saúde e essa disposição para tra- Entendemos “modos de cuidar” como uma cate-
balhar”. A mulher é o principal agente de cuida- goria que faz referência às práticas vinculadas ao
dos e os mesmos são redobrados quando se trata cuidado da saúde das crianças, assim como o
das crianças, o que se expressa também em maior modo de inserção dos adultos em ditas práticas e
procura dos serviços de saúde para elas9,10,11. os significados que as orientam.
A partir de um estudo de casos comparando O presente estudo pretendeu responder à
famílias das camadas média e popular em rela- questão de como se dão os modos de cuidar da
ção com os cuidados de saúde, Oliveira & Bas- saúde de crianças menores de seis anos em famí-
tos10 descrevem que na camada média predomi- lias atendidas pelo Programa de Saúde da Famí-
nam práticas preventivas, acesso freqüente a pro- lia. A escolha da faixa etária levou em conta a
fissionais de saúde e escasso apoio familiar. Na importância que têm os primeiros anos de vida
camada popular, há mais ajuda familiar e predo- na saúde das crianças e na vida familiar. Foram
mínio de atitudes curativas, além de automedi- investigadas, em uma perspectiva comparada, fa-
cação. As próprias autoras referem-se a diferen- mílias de classe popular, com estruturas familia-
ças na forma em que as famílias se relacionam res diversas (nuclear, extensa, etc.). Partimos da
com os serviços de saúde. Assim, enquanto a fa- hipótese de que as diferenças na estrutura fami-
mília de camada média segue a rigor as indica- liar implicam em diferenças nos modos de cui-
ções médicas, “na de camada popular há uma lar- dar. O estudo considerou, ademais, a complexi-
ga utilização dos próprios recursos, que envol- dade da experiência social que orienta os modos
de cuidar das crianças, incluindo principalmen-
1177

Ciência & Saúde Coletiva, 12(5):1175-1184, 2007


te: a influência de profissionais de saúde e de ou- Durante o trabalho de campo, a relação com
tras agências terapêuticas tais como terapeutas os informantes foi intensa. Tal como referido na
populares e espaços religiosos, assim como dife- etnografia de Sarti3, desde o início nos colocamos
renças de gênero e de geração. em atitude de diálogo, respondendo perguntas e
deixando que as diferenças aparecessem. Esta ati-
tude se revelou uma valiosa fonte de dados, ao
Metodologia tempo em que permitiu esclarecer paulatinamente
o papel da pesquisadora que realizou o trabalho
Realizamos um estudo exploratório de cunho et- de campo (a primeira autora do presente estudo).
nográfico, o que nos permitiu estabelecer um con- Todos os participantes foram informados dos
tato freqüente com os informantes. A observa- objetivos da pesquisa através da leitura do Ter-
ção participante constituiu a principal ferramen- mo de Consentimento Livre e Esclarecido. O ter-
ta de investigação, a qual se desenvolveu através mo era assinado por no mínimo um adulto de
de visitas regulares às residências - duas vezes por cada família. O projeto de pesquisa foi aprovado
semana, durante um período de nove meses - re- pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de
gistradas em diário de campo. Através desta téc- Saúde Coletiva da UFBA.
nica, observamos o cotidiano dos informantes: Seguindo a proposta de Becker15, dirigida à
as situações com que se defrontam e os compor- pesquisa baseada na observação participante, um
tamentos que têm diante delas, procurando nos primeiro momento de análise se deu ainda du-
aproximar das interpretações que têm sobre os rante a coleta de dados. Tal estratégia permitiu
fatos observados15. orientar a continuidade do trabalho de campo,
As observações foram complementadas com especialmente o roteiro da entrevista, realizada
entrevistas semi-estruturadas gravadas e trans- na etapa final do trabalho de campo.
critas, realizadas com dezesseis informantes, sete Após concluir a coleta de dados, iniciamos a
casais e duas avós membros das seis famílias segunda fase processando as notas de campo e as
acompanhadas. entrevistas transcritas, de acordo com a seqüên-
O estudo foi realizado em um bairro do su- cia proposta por Emerson et al.16: leitura do diá-
búrbio ferroviário de Salvador, ao qual demos o rio de campo, codificação aberta (criamos 72 có-
nome de “Prainha”, entre agosto de 2003 e abril digos a partir do diário de campo), redação de
de 2004. Fomos introduzidos por profissionais da memos teóricos, seleção de temas, codificação
Unidade de Saúde da Família do bairro. Após um focalizada - o material do diário de campo foi
mês realizando visitas domiciliares, habitualmen- organizado em dezesseis temas e o da entrevista
te com a companhia de agentes comunitários de em treze - e, por último, a construção de memos
saúde, contatamos uma jovem do bairro, que nos integradores.
acompanhou durante dois meses. A “análise abrangente final”15 se deu num ter-
Escolhemos seis famílias que consideramos ceiro momento, em que predominou o trabalho
típicas do bairro. Para efeitos do presente estudo, de síntese e interpretação. Procuramos organizar
consideramos uma família um grupo de pessoas os resultados num sentido etnográfico, a partir
que convive, mantendo laços, biológicos ou não, de categorias empíricas que foram configuran-
que envolvem reciprocidade. Além do fato de te- do-se ao longo da análise, e construir uma des-
rem crianças pequenas em casa, a escolha teve a crição densa17 que integrasse a compreensão dos
ver com considerações práticas - afinidade com informantes sobre cuidados em saúde e o con-
os informantes e acessibilidade da moradia - e texto em que estas são construídas e colocadas
teóricas. Quatro famílias foram consideradas ex- em prática. Os resultados do presente artigo es-
tensas dado que os parentes que moram nas ime- tão organizados a partir dos temas que ganha-
diações participam ativamente das atividades ram destaque na análise, procurando integrar
cotidianas, existindo convivência de três gerações. categorias etic e emic.
As outras duas famílias foram denominadas nu-
cleares porque concentram as atividades cotidia-
nas no grupo formado pelo casal e os filhos, em- Resultados e discussão
bora também tenham parentes morando no mes-
mo bairro. Os informantes são identificados no Mudanças e permanências
texto através de nomes fictícios. As denomina- nas famílias de Prainha
ções N1 e N2 correspondem às famílias nucleares
e E1, E2, E3 e E4, às famílias extensas. As casas de nossos informantes, antigos mo-
1178
Bustamante, V. & Trad, L. A. B.

radores de palafitas, foram construídas em ma- mônico, o que se expressa nas referências que fa-
deirite pelo governo do estado e entregues há mais zem a indicações médicas como justificativa para
de vinte anos. Na área visitada, a maior parte das as práticas vinculadas com o cuidado da saúde,
casas está “em construção”, com os filhos jovens embora isto não implique uma completa adesão
construindo sobre a laje, ou planejando fazê-lo. às ditas indicações.
Os moradores de Prainha se consideram po- O contraste entre as gerações também se ex-
bres, embora alguns tenham reparos para usar essa pressa com clareza na crescente incorporação do
palavra - “pobre é o diabo, eu sou humilde”, expli- planejamento familiar. Na atualidade, tal como a
ca Carla (E3). É comum que as famílias tenham literatura refere18, a tendência é ter poucos filhos.
algum tipo de renda fixa - emprego, aposentado- Dois é considerado o mais adequado19, embora
ria ou programas do governo -, mas as quantias na prática tenham apenas um - como no caso dos
recebidas são sempre insuficientes. Das seis famí- dois casais da família E2 - ou tenham tido mais
lias acompanhadas, apenas uma dentre as exten- de dois - como no caso das famílias E3 e E4. A
sas tinha renda igual ou superior a dois salários partir de três é considerado excessivo, o que leva
mínimos. Refletindo o fato de terem baixa escola- ao uso de métodos de controle da natalidade, es-
ridade, os informantes desenvolvem atividades pecialmente por parte das mulheres, sendo mui-
consideradas pouco qualificadas, tais como servi- to comum a esterilização cirúrgica.
ços gerais e de segurança, entre os homens, e ser- Nas falas sobre mudanças em curso, também
viço doméstico e de vendas, entre as mulheres. aparece o tema do envolvimento do homem na
Embora se considerem “melhor de vida” que vida doméstica e no cuidado dos filhos, associa-
o “pessoal dos fundos”, os informantes reclamam do à maior inserção da mulher no mercado de
da baixa qualidade dos serviços oferecidos no trabalho, o que traria maior necessidade de par-
bairro: as instalações de água e luz costumam ser ticipação masculina.
clandestinas e precárias; as escolas e creches são
insuficientes e “não ensinam nada”. A falta de in- Necessidades de crianças
fra-estrutura - áreas com esgoto a céu aberto, for- e necessidades de cuidadores
mação de lama após chover, “rua esburacada”,
coleta de lixo insuficiente - é apontada como fonte O interesse no cuidado das crianças peque-
de doenças para as crianças, especialmente ver- nas pode ser pensado a partir de dois eixos. Por
minoses e problemas respiratórios. um lado, o sistema de crenças sobre o que é certo
Tal como referido em outros estudos14, a vio- para a criança, em que é importante a experiên-
lência em suas várias formas, incluindo a domés- cia prévia, assim como as mensagens transmiti-
tica, é fonte de intensa preocupação entre os das por parentes, profissionais de saúde, terapeu-
moradores, influenciando fortemente a organi- tas alternativos e instâncias religiosas. Neste eixo,
zação da vida cotidiana. É freqüente ouvir rela- a ênfase está colocada nas necessidades da crian-
tos sobre abusos - inclusive assassinatos - come- ça. Por outro lado, em forma menos explícita, o
tidos pelos policiais do posto do bairro contra cuidado das crianças é perpassado pelas gratifi-
moradores, especialmente os homens, sendo al- cações que os adultos obtêm.
guns deles pais de crianças pequenas. As diferenças de gênero e idade são fundamen-
Os informantes fazem alusão a mudanças na tais para pensar as necessidades das crianças. Os
vida familiar ligadas tanto a papéis e relações de informantes diferenciam entre criança “pequeni-
gênero quanto a formas de criar e cuidar da saú- ninha” e criança “já crescida”, embora não coinci-
de dos filhos. Em relação às práticas de saúde, a dam sobre a idade que marcaria a diferença entre
implementação do Programa de Saúde da Famí- um estado e outro. No entanto, indicam que uma
lia, acontecida um ano e meio antes do início do criança que não fala precisa de mais cuidados, pelo
trabalho de campo, é considerada uma mudan- fato de não poder comunicar suas necessidades e
ça, embora as repercussões positivas na saúde se- sentimentos. Adicionalmente, consideram que as
jam consideradas insuficientes. crianças nos primeiros anos, até quatro ou cinco,
É comum ouvir falas de mulheres idosas refe- são mais vulneráveis a doenças: “criança de três
rindo que muitas coisas têm mudado nos últi- anos é tudo molinho”, explica Ana (N2). Com re-
mos anos e que na cidade tudo é diferente da roça, lação ao gênero, os informantes consideram que a
onde elas moraram e criaram alguns de seus fi- menina precisa de mais cuidados corporais - na
lhos mais velhos. Em comparação com as mulhe- roupa, higiene, penteado, arrumação, e no “ficar
res idosas, os jovens - mulheres e homens - ten- de olho” -, enquanto o menino precisa de mais
dem a aderir mais ao pensamento médico hege- controle e diálogo, especialmente com o pai.
1179

Ciência & Saúde Coletiva, 12(5):1175-1184, 2007


As gratificações que os cuidadores obtêm es- menina, não, ajeita o cabelinho, bota uma calci-
tão ligadas ao que é socialmente valorizado. Nes- nha de florzinha, uma calcinha de babadinho [...].
ta perspectiva, o dever de pais e mães de ensinar Na ocasião da visita de pessoas que não moram
os filhos, dando o exemplo, considerado funda- no bairro, Carla expressa seu propósito de pen-
mental para criá-los bem, ao mesmo tempo tem tear as filhas, vinculando-o com a valoração so-
implícita a expectativa de que os filhos mostrem cial de tal prática: ainda não penteei as meninas, é
publicamente seu respeito pelos pais, pedindo a porque tou cansada, mas daqui a pouco vou come-
bênção, chamando-os “o senhor” e “a senhora”. çar. Gosto de penteá-las bem para que ninguém
Existe uma estreita relação entre as fontes de fale que sou uma mãe desligada.
gratificação para homens e mulheres e as expec-
tativas vinculadas com a divisão sexual do traba- “Conviver com o risco é foda, viu?”
lho. Freqüentemente o que funciona como fonte
de gratificação para a mulher - por exemplo, Os informantes consideram que Prainha é
mostrar filhas bem penteadas e arrumadas - não um bairro violento, inadequado para se criar os
o é para o homem, que costuma ser valorizado a filhos, o que os leva a tentar protegê-los, tal
partir de sua capacidade de ser provedor e de es- como expresso por Alícia (E4): “O bairro já é
tar presente como fonte de respeito para sua fa- ruim, tem briga e drogado na rua, e se ainda ti-
mília. Isto é concordante com estudos anteriores ver briga em casa a criança fica traumatizada
que chamam a atenção sobre a permanência da [...]”. Por outro lado, incrementar as condições
divisão sexual do trabalho nas famílias de cama- de segurança da moradia é uma preocupação
das populares, a partir da qual o homem é valo- central para os adultos, o que está relacionado à
rizado como provedor econômico e a mulher, impressão de que a casa não oferece suficientes
como cuidadora e administradora da casa em que condições de segurança.
pese existir práticas não condizentes com a dita Os informantes procuram proteger a menina
perspectiva, homens desempregados e mulheres diante do risco de agressão sexual. Quando per-
que sustentam a casa, por exemplo3,4. guntados, expressam que esta preocupação se
Encontramos coexistência da preocupação estende aos meninos, porém em menor medida,
com as necessidades das crianças e o cuidado já que a menina, por ser menina, está mais expos-
como fonte de satisfação e reconhecimento soci- ta: “Pode ser criança ou o que for, tem homem
al para mulheres e homens. Neste ponto, discor- que deseja, porque é mulher” (Jussiara, E2).
damos da perspectiva de Oliveira11, autor que es- Além de ser constantemente monitorada por
tudou a relação entre as concepções de saúde em adultos, alguns informantes consideram que a
moradores de um bairro popular e a relação des- própria criança precisa saber se cuidar, e para isso
tes com os serviços de saúde, considerando que: deve ser ensinada: Então eu dou bastante [infor-
A preocupação com a saúde das crianças parece mação]: não deve sentar no colo de adulto, não dei-
denotar bem mais do que a simples busca de seu xe ninguém tocar [...] Esse aqui mesmo sabe, com
bem estar. Na verdade é resposta ante a exigência a idade de três anos já sabe (Diogo, N2).
da comunidade e também do posto de saúde. Homens e mulheres se preocupam ainda em
No cotidiano de Prainha, a idéia de que as evitar expor as crianças a assuntos próprios dos
crianças pequenas precisam de cuidados o tem- adultos - tais como sexo, vida financeira, ou acon-
po todo se entrelaça com o que socialmente é con- tecimentos tristes - buscando assim preservar sua
siderado próprio de uma boa mãe: aquela que está condição de crianças, que envolve inocência e
sempre perto dos filhos, que deixa de lado seus despreocupação.
próprios interesses para se dedicar a eles. Em for-
ma complementar, a apreciação de que a menina “Quando uma criança está sadia mesmo
precisa de mais cuidados corporais que o meni- é quando ela tá brincando”
no se integra com indicadores que ajudariam no
reconhecimento da mulher como boa mãe: como A brincadeira é considerada um aspecto cons-
as filhas estarem sempre bem penteadas e arru- titutivo da criança e também um direito que deve
madas. O acompanhamento realizado com Carla atualizar-se no cotidiano, sob o controle dos adul-
(E3) permite-nos perceber estes movimentos. Por tos: A criança [...]. ela nasce só com uma missão:
um lado, estabelece diferenças entre o que é mais brincar. Não quer mais nada da vida, só brincar. A
adequado para meninos e meninas: É diferente, gente bota para fazer outras coisas, né?, mas por-
porque o menino você dá banho, penteia o cabelo, que não tem jeito, tem que estudar, tem que dor-
se tiver cabelo, bota a cuequinha, já cabou. E a mir, tem que comer [...] (Paula, N1).
1180
Bustamante, V. & Trad, L. A. B.

O sentido dado à brincadeira varia. Pode ser capoeira que acontecem no bairro aos finais de
uma forma de passar o tempo ou um meio para semana.
conseguir outras coisas: uma forma de aprender: O contato com familiares fora de Prainha é
“A gente diz que não aprende, mas aprende mui- sentido como uma alternativa à monotonia do
to brincando. Eu mesmo, eu aprendi a arrumar bairro - “Aqui não tem nada para fazer, por isso
casa, fazer comida, essas coisas...” (Alicia, E4) - quem tem parentes se manda” (Paula, N1) -, além
ou uma oportunidade para fortalecer a saúde fí- de se considerar importante que as crianças man-
sica - “criança tem que brincar, pra pegar as bac- tenham contato com parentes. Por outro lado, as
térias, né? [...] para poder ver se a criança é forte” crianças têm lazer acompanhando os adultos em
(Ana, N2).. No plano emocional, a brincadeira visitas à igreja, que podem ser cotidianas ou en-
pode ser uma forma de lidar positivamente com volver saídas para grandes eventos fora do bairro.
os problemas: É bom também pra mente deles.
Porque às veiz ele só vê briga, violência, essas coisa. “Dando educação...
Aí já vai dando risada, brincando. Já não fica uma a gente cria a criança bem”
criança com a cara fechada, querendo bater em todo
mundo na rua, entendeu? (Alícia, E4). A valora- Os informantes consideram que é preciso “dar
ção do brincar como indicador de saúde das cri- amor” aos filhos, o que se expressa de diferentes
anças por parte dos informantes é concordante maneiras: fazendo carinho ou através de atitu-
com os aportes de vários psicanalistas, especial- des que mostrem às crianças que são queridas,
mente Winnicott20, que enfatizou que o brincar é porém sem deixar de considerar que as circuns-
um meio privilegiado para expressar e elaborar tâncias devem ser oportunas, dado que “tem
conflitos psíquicos, especialmente tratando-se de momento para tudo, para dar amor e também
crianças. para ter mão firme” (Pedro, E1).
Com relação ao lugar dos adultos na brinca- É fundamental dar uma boa educação desde
deira, quatro dos sete casais colocam-na como que o filho é pequeno. Em tal sentido, os infor-
espaço exclusivo das crianças: A criança se diver- mantes coincidem em apontar a obediência como
te da maneira dela, que ela acha que deve se diver- condição indispensável, não só na educação, mas
tir. Infelizmente, não é eu que vou caracterizar a no cuidado de forma geral. Assim, ao obedecer -
maneira como ela deve se divertir (Cristóvão, E2). ficando dentro de casa, retirando-se quando tem
Caberia aos adultos cuidar que as brincadeiras uma conversa de adultos, vestindo o chinelo, ali-
não atentem contra a integridade física e emocio- mentando-se, entre outras atividades cotidianas
nal - [...] não aconselho mãe nenhuma dar arma. - a criança facilita que os adultos possam cuidá-
Meus menino mesmo não têm revólver de brinque- la melhor.
do, porque eu não gosto. Porque isso aí já vai influ- Na medida em que acham fundamental criar
enciar já eles... ser uma má pessoa (Alícia, E4) - os filhos na obediência, evitando a ousadia e a
assim como controlar os programas que os filhos gaiatice, os informantes consideram que o casti-
assistem na tevê. Os outros três casais conside- go físico é necessário e útil, quando dado no mo-
ram importante participar e inclusive orientar a mento e na proporção adequados, embora o ide-
brincadeira dos filhos. Neste sentido, Luzia pas- al seja não precisar bater. Seis dos sete casais apli-
sa tempo com o filho Emerson (3 anos), o “faz cam cotidianamente algum tipo de castigo físico
brincar” - faz com que ele tire os brinquedos do - geralmente um “tapa” -, enquanto que o casal
armário e depois os guarde, faz quebra-cabeça, Paula e Ed usa apenas a ameaça de castigo físico
“lego”, entre outros, junto com ele - e assistir pro- para conseguir que os filhos obedeçam.
gramas na TV Educativa. O fato de dar bom exemplo aos filhos tam-
A brincadeira no dia-a-dia, dentro de casa e bém é considerado importante, especialmente
na rua, é considerada importante mas não sufici- para o futuro deles, para o momento em que os
ente para o bem-estar das crianças. Os informan- pais não possam mais impor sua vontade. Em tal
tes consideram que elas precisam sair do bairro: sentido, Cristóvão (E2) considera que, se ele não
“nós, como os pais, temos sempre que levar ela tiver dado bom exemplo para Anita (3 anos), ela
assim, um lazer, levar ela no Parque da Cidade” não fará nada do que ele disse e ainda ficará com
(Jussiara, E2). O ideal de lazer é que pai e mãe raiva dele. Por outro lado, se bem é fundamental
saiam com os filhos, com dinheiro suficiente. que a criança obedeça sem questionar, também
Dado que isto acontece raramente, na prática se considera importante explicar-lhe as coisas, na
aparecem alternativas tais como dar um passeio medida em que isso ajudará a que se sinta queri-
nas imediações da residência ou assistir rodas de da pelos pais e que desenvolva sua inteligência.
1181

Ciência & Saúde Coletiva, 12(5):1175-1184, 2007


Os informantes consideram importante que avó, recolhido no diário de campo, é ilustrativo
a criança freqüente a escola, existindo diferenças deste ponto: “Dona Aurelina (avó, E1) nos conta
com relação à idade considerada adequada para que não concorda com a indicação médica de dar
o início da vida escolar, o que também se relacio- aleitamento exclusivo até os seis meses, pois con-
na à falta de acesso a escolas para crianças meno- sidera que ‘uma mulher que está dando de ma-
res de seis anos. Por outro lado, existe coincidên- mar tem que se alimentar muito bem para sus-
cia em considerar que a escola pública não ensi- tentar o filho, mas uma mulher pobre não pode
na bem; por tal motivo, algumas famílias se es- comer tão bem, por isso é melhor que a criança
forçam por matricular os filhos em uma escola se alimente de outras coisas também’”.
particular, que avaliam como de melhor quali- O uso dos serviços de saúde para atender as
dade. Existe preocupação com que as crianças crianças está bastante estendido e é muito valo-
aprendam os conteúdos da educação formal, ain- rizado, o que coincide com resultados de outros
da que nem sempre este processo seja estimulado estudos, que indicam a tendência a que as crian-
em casa. Também se espera que a escola ajude na ças sejam levadas aos serviços de saúde com mais
educação moral da criança. facilidade e freqüência que os adultos9,10,11.
Alguns informantes se preocupam em criar Para os informantes, é fundamental que a
os filhos dentro de uma identidade de grupo ét- criança tenha acompanhamento pediátrico com
nico-racial ou religiosa, o que está relacionado a fins preventivos, o que implica ter as vacinas em
comportamentos e vivências diferenciados - tais dia, controlar o peso periodicamente e fazer exa-
como proibir que um criança evangélica dance, mes de sangue, fezes e urina uma vez por ano.
estimular que uma criança negra jogue capoeira Quando as crianças adoecem, predominam a in-
-, que se espera contribuam para o adequado de- satisfação e o desconcerto com relação à Unidade
senvolvimento da criança dentro do grupo a que de Saúde da Família, dado que esta não oferece
pertence. atendimento imediato, tendendo-se a procurar
estabelecimentos de maior complexidade, que fi-
Cuidados com a alimentação cam longe do bairro.
e contato com serviços de saúde Na relação com os serviços de saúde, se bem
predomina a insuficiência no acesso, existem di-
A alimentação e a relação com serviços for- mensões nas quais os informantes têm a possibi-
mais e práticas populares de saúde são aspectos lidade de escolher. Independente do nível de aces-
chave no cuidado cotidiano das crianças peque- so, e coincidindo com achados de outros estu-
nas. A frase “dar alimento na hora certa”, se bem dos9,10, é freqüente que os informantes façam ten-
se refira explicitamente à disciplina na alimenta- tativas de atender os problemas de saúde das cri-
ção, é também uma forma de dizer que não deve anças no contexto familiar antes de procurar os
faltar comida para a criança - “que menino, quan- ditos serviços. Também faz parte de suas prerro-
do tá poucos alimento, não alimenta na hora cer- gativas decidir se é uma “doença de médico” ou
ta, atrapalha o crescimento” (Rodrigo, E2) - e que “doença espiritual”, e neste caso ainda é possível
a família prioriza a alimentação delas acima de escolher entre várias agências de cura: a reza tra-
outras necessidades. dicional, a reza na igreja evangélica ou o candom-
Com freqüência, para se aproximar do obje- blé. É comum se procurar os serviços de rezadei-
tivo da boa alimentação, se ativam redes de reci- ras tradicionais, embora se trate de uma prática
procidade entre familiares e vizinhos, especial- que está perdendo prestígio, dadas as fortes críti-
mente quando se trata de uma família extensa: cas que recebem por parte das igrejas pentecos-
“Dona Sônia (avó E2) fez o prato do neto Emer- tais, em aumento no bairro.
son, lamentou que só tinha feijão e galinha e foi O uso de remédios caseiros e naturais está
na casa de dona Rosa pedir arroz, trouxe e fez o bastante estendido e é muito valorizado entre os
prato do menino. Pouco depois, chegou dona informantes, sendo que a função que eles cum-
Rosa com cenoura, deu um pouco a Emerson, prem varia a depender das circunstâncias. Podem
disse a ele que é bom que ele coma verduras” (Ex- ser usados como um último recurso diante da fal-
trato do diário de campo). ta dos remédios adequados: “Alícia conta que le-
Alguns informantes afirmam saber o que é vou o filho Anderson (três anos) ao hospital, por-
melhor para a criança em termos de alimenta- que estava cansando muito. No hospital deram
ção, à diferença dos profissionais do posto de saú- uma receita (salbutamol, paracetamol e um an-
de, que ao dar as indicações não consideram as tibiótico). Foi em vários postos para ver se tinha,
condições de vida dos usuários. O relato de uma mas ‘tava em falta’, então deu um restinho de sal-
1182
Bustamante, V. & Trad, L. A. B.

butamol que ainda tinha, e agora que acabou no das crianças. O contraste entre Alícia (E4) e o
está dando remédio caseiro (xarope de cebola casal Paula e Ed (N1) exemplifica este ponto. Alí-
com açúcar)” (Extrato do diário de campo). cia está habituada a levar o filho Anderson (3
Por outro lado, os remédios caseiros podem anos) à emergência do hospital “Pan de Roma”,
ser considerados uma alternativa melhor que os para cuidar da “gripe de sempre”, que já virou
remédios médicos, especialmente por avós que princípio de pneumonia. No início da pesquisa,
têm mais presente a experiência de vida no meio ela não contava com apoio do pai biológico, de
rural. A fala de dona Sônia (E2) é expressiva des- quem estava separada. Tinha apenas o auxílio da
te ponto: Criei meus filhos na roça, nunca levei eles mãe para tomar conta dos dois filhos mais velhos
em médico nenhum, curava eles com plantas, fa- enquanto levava Anderson. A situação melhorou
zendo chá, assim também faço hoje com meus neto. quando conheceu Adilson - o atual parceiro -,
Em outras ocasiões os remédios caseiros são con- possibilitando o acesso a uma nova rede de apoio,
siderados complementares ao tratamento médi- já que agora Alícia também recebe ajuda da mãe
co: Sei cuidar de meu filho. Eu faço remédio casei- e irmãs do mesmo.
ro para ele, cuido dele direitinho. Com isso, mais o A situação de Paula e Ed é diferente. Eles for-
remédio que o médico passou, ficou logo bom. mam um casal que se complementa no cuidado
Encontramos diferenças na forma com que as dos filhos, com limitada participação de familia-
famílias, habitualmente as mulheres, se relacio- res. Assim, o casal passou por momentos muito
nam com os serviços de saúde. Enquanto Alícia difíceis quando a pequena Sandra, de quatro anos,
(E4) freqüenta o posto de saúde aceitando as re- precisou ser hospitalizada por quatro dias. Nesta
gras do mesmo, Paula (N1) prefere não usar os ocasião, eles tiveram que se revezar para ficar com
serviços do posto do bairro, freqüentando uma a menina e ao mesmo tempo cuidar de Jorge, de
emergência pediátrica, em que se sente melhor um ano e meio, e freqüentar o trabalho, no caso
atendida. Por outro lado, Ana (N2) expressa que específico de Ed. Contaram apenas com a ajuda
em geral não gosta de médico e que ela já sabe o de uma amiga, que passou uma das quatro noites
que fazer quando os filhos adoecem: “Sei o que com Sandra no hospital.
fazer em casa, não gosto que filho meu faça ne- Consideramos importante refletir sobre as
bulização no posto, porque a máscara é cheia de diferentes formas em que se estruturam as rela-
bactérias”. ções nas famílias de camadas populares, no sen-
As colocações precedentes trazem complexi- tido de que o contato freqüente com familiares e
dade ao nosso tema, ao mostrar que as avaliações amigos nem sempre se traduz em ajuda. É preci-
que cada informante faz não estão determinadas so mencionar que as seis famílias acompanhadas
pelas condições de vida. O que para uns é o mais têm parentes morando nas imediações e, no en-
adequado para outro pode ser apenas “o possí- tanto, as duas famílias nucleares parecem ter es-
vel”. Isto tem a ver com o fato de alguns infor- tabelecido padrões de relação diferentes: menor
mantes terem posições mais críticas diante das participação da família extensa no cotidiano e nas
carências dos serviços.. decisões, o que também implica menor envolvi-
mento em vínculos de reciprocidade e menos con-
As diferenças entre as famílias flitos entre mãe e avó - freqüentes nas famílias
extensas. Estes achados estão na linha das colo-
Ao comparar as famílias extensas com as nu- cações de Fonseca6 sobre a existência de dinâmi-
cleares, encontramos diferenças na inserção dos cas familiares heterogêneas nos setores popula-
adultos no cuidado das crianças. Nas famílias res, e nos permitem problematizar a afirmação
nucleares, encontramos maior exclusividade na de Oliveira & Bastos10 que, ao diferenciar entre
relação entre pais e filhos, maior envolvimento famílias de camada média e de setores populares,
do pai no cuidado destes últimos. O ponto de vista consideram que nas camadas populares existe
da mulher tende a predominar, sendo que o ma- maior acesso a redes de suporte.
rido se coloca e é colocado como um auxílio para
cuidar dos filhos, da forma em que ela considera
melhor, tal como ilustra a fala de Ana (N2): “tem Considerações finais
que dar as coordenada, dizendo o que tem que
fazer, porque homem nunca é como a gente, né?”. O presente estudo mostra a coexistência de valo-
Os membros da família extensa tendem a ofe- res tradicionais - a centralidade da família na or-
recer maior suporte em casos de emergência ganização do cotidiano3, o lugar das mulheres
quando participam mais ativamente do cotidia- como cuidadoras das crianças4,9,10, a distinção es-
1183

Ciência & Saúde Coletiva, 12(5):1175-1184, 2007


sencialista entre meninos e meninas - e referênci- Para pensar esse contato, é essencial conside-
as a mudanças. As ditas mudanças estariam acon- rar o caráter intersubjetivo do cuidado, de modo
tecendo tanto na vida familiar - mais trabalho que ao atender uma criança está se atendendo
da mulher, maior participação masculina, dimi- também a sua família, pois a criança é em si mes-
nuição do número de filhos - quanto nas práti- ma um projeto familiar, assim como uma impor-
cas de saúde, a partir do maior contato com pro- tante fonte de gratificação para quem a cuida.
fissionais de saúde e a implementação do Pro- Desta forma, os profissionais de saúde têm como
grama de Saúde da Família. Pensamos que a for- desafio conhecer a criança e sua família, conhe-
ma em que as mudanças afetam o cuidado das cer seus projetos e, de alguma forma, participar
crianças precisa ser mais estudada. Este texto está deles. Isto sem esquecer que os profissionais de
longe de esgotar o tema, mas já mostra que as saúde não são os únicos que contribuem para a
mudanças agregam complexidade, por exemplo, construção das práticas de saúde.
ao mostrar que a presença do PSF não é tão boa É importante também identificar eventuais
quanto desejável, tanto por seu alcance limitado fragilidades do cuidado no ambiente familiar. Em
quanto porque contraria práticas tradicionais. tal sentido, a partir dos achados do presente es-
Na construção das idéias sobre as necessida- tudo, cabe refletir sobre a centralidade da obedi-
des das crianças, encontramos preocupações que ência como estratégia chave na criação e sua as-
são produto da experiência social, tal como su- sociação com rígidas exigências e freqüente cas-
gerido por Ferreira12; por exemplo, a intensidade tigo físico, aguçados por causa da intensa violên-
da preocupação com preservar a criança diante cia e insegurança de grande parte dos bairros
do risco que envolve a precariedade da casa e da populares das grandes cidades. Perguntamo-nos
rua. Curiosamente, isto parece preocupar mais como ajudar pais e mães a diminuir o sofrimento
aos informantes do que algumas sugestões dadas das crianças, que depois serão adolescentes, e es-
por profissionais de saúde: proteger do risco de timulá-los a construir projetos de vida, em um
vermes tomando água fervida e mantendo a cri- contexto de ausência de perspectivas educacio-
ança calçada. Por outro lado, é importante desta- nais e laborais? Este é um aspecto sobre o qual
car a presença de dimensões vinculadas com pro- convém continuar refletindo e pesquisando.
moção da saúde que se expressam especialmente Ao finalizar este artigo, é preciso destacar a
na possibilidade de brincar. importância, teórica e etnográfica, do conceito
O presente estudo deixa perguntas para futu- de cuidado - entendido como preocupação pelo
ras pesquisas e permite chamar a atenção sobre outro e construção conjunta de projetos de feli-
desafios colocados para os profissionais de saú- cidade13, em suma, como espaço de intersubjeti-
de, especialmente no contexto do Programa de vidade. O dito conceito nos permitiu ter uma boa
Saúde da Família. Considerando que as necessi- aproximação etnográfica, especialmente através
dades das crianças são priorizadas e que os servi- de sua representação na categoria modos de cui-
ços de saúde são mais freqüentados quando se dar. Por outro lado, trata-se de uma ferramenta
trata de crianças9, pensamos que o cuidado in- teórica importante, que permite pensar de for-
fantil é um espaço privilegiado para o contato ma integrada sobre relações de gênero, dinâmi-
entre cuidadores e profissionais de saúde. cas familiares e relações entre cuidadores e servi-
ços de saúde.
1184
Bustamante, V. & Trad, L. A. B.

Colaboradores

V Bustamante e e LAB Trad participaram igual-


mente de todas as etapas de contrução do artigo.

Agradecimentos

O presente trabalho foi beneficiado com uma


bolsa de estudos concedida à primeira autora pelo
Programa Interinstitucional de Metodologia de
Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Repro-
dutiva, financiado pela Fundação Ford.

Referências

1. Bruschini C. Teoria crítica da família. In: Azevedo MA, 11. Oliveira FJA de. Concepções de doença: o que os
Guerra V, organizadoras. Infância e violência domésti- serviços de saúde têm a ver com isso? In: Duarte
ca: fronteiras do conhecimento. São Paulo: Cortez; 1993. LFD, Leal OF, organizadores. Doença, sofrimento
p.49-79. perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janei-
2. Sarti C. Família e individualidade: um problema mo- ro: Fiocruz; 1998. p. 81-94.
derno. In: Carvalho M de CB, organizadora. A família 12. Ferreira J. Cuidados do corpo em Vila de Classe Popu-
contemporânea em debate, São Paulo: EDUC; 1995. p. lar. In: Duarte LFD, Leal OF, organizadores. Doença,
39-49. sofrimento perturbação: perspectivas etnográficas. Rio
3. Sarti C. A família como espelho: um estudo sobre a mo- de Janeiro: Fiocruz; 1998. p. 49-56.
ral dos pobres. São Paulo: Cortez; 2003. 13. Ayres R. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saú-
4. Heilborn ML. O traçado da vida: gênero e idade em de. Rev C S Col 2001; 6(1):63-72.
dois bairros populares do Rio de Janeiro. In: Reicher 14. Bastos AC de S et al. Novas famílias urbanas. In: Lor-
MF, organizadora. Quem mandou nascer mulher? Es- delo E da R, Carvalho AMA, Koller SH, organizado-
tudos sobre crianças e adolescentes pobres no Brasil. Rio ras. Infância brasileira e contextos de desenvolvimento.
de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos; 1997. p.292-339. São Paulo: Casa do psicólogo; Salvador: Editora da
5. Szymanski H. Teorias e “teorias” de famílias. In: Car- Universidade Federal da Bahia; 2002. p. 99-136.
valho, M de CB. A família contemporânea em debate. 15. Becker H. Métodos de pesquisa em Ciências Sociais. 2ª
São Paulo: EDUC; 1995. p.23-28. ed. São Paulo: Hucitec; 1994.
6. Fonseca C. Mãe é uma só? Reflexões em torno de alguns 16. Emerson RM et al. Writing Ethnographic Fieldnotes.
casos brasileiros. Psicologia USP 2002; 13(1): 49-68. Chicago: The University of Chicago Press; 1983.
7. Brasil. Ministério da Saúde. Saúde da família: uma es- 17. Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:
tratégia para a reorganização do modelo assistencial. Zahar; 1989.
Brasília: Ministério da Saúde; 1997. 18. Berquó E et al. Saúde e direitos reprodutivos no Brasil:
8. Trad L, Bastos AC de S. O impacto sócio-cultural do impacto da Conferência do Cairo nas Políticas Públicas.
PSF: uma proposta de avaliação. Cad Saúde Pública Salvador: MUSA; Brasília: CNPD; 2000.
1998; 14 (2): 429-435. 19. BEMFAM (Sociedade Civil Bem-estar Familiar no Bra-
9. Loyola MA. Médicos e curandeiros: conflito social e saú- sil)/DHS (Demography and Health Survey). Brasil Pes-
de. São Paulo: DIFEL; 1984. quisa Nacional sobre Demografia e Saúde. Rio de Ja-
10. Oliveira MLS, Bastos AC de S. Práticas de atenção à saú- neiro: BEMFAM/DHS; 1997.
de no contexto familiar: um estudo comparativo de ca- 20. Winnicott D. Realidad y juego. Barcelona: Gedisa; 1996.
sos. Psicologia: reflexão e crítica 2000; 13(1): 97-107.

Artigo apresentado em 02/06/2005


Aprovado em 29/03/2006
Versão final apresentada em 22/09/2006

Vous aimerez peut-être aussi