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365

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Y
#30
ALBERTO PIMENTA
CLARA FERREIRA ALVES
JORGE PALMA
LUIZ PACHECO
MARIO CESARINY
MESTRE MARCELLO
MIGUEL ESTEVES CARDOSO
RUI MANUEL AMARAL
RUI REININHO
Seja responsável. Beba com moderação.
A grande novidade deste novo número da 365 – o 30 – em re-
lação ao anterior, é que mantém o tamanho. Ainda nos passou
pela cabeça encolhê-la, mas o tipógrafo pediu-nos clemência,
que «os meus olhos já não são o que eram», etc., etc., e, por
isso, ficámos quietinhos. De resto, trata-se essencialmente de
outro best of, com textos recuperados de edições anteriores – e
um inédito (além do horóscopo para o próximo semestre, que
Mestre Marcello teve a gentileza de nos enviar).

No capítulo das reedições, destaco «A Norma de Bellini», de


Mário Cesariny, e «Granito! Não, Obrigado», de Luiz Pacheco,
publicados por nós, respectivamente, em 2000 e 2003; e uma
entrevista a Miguel Ángel Valero, feita por Fernando Alvim e
Luís Guerra, em Madrid, em 2004 (decerto, o nome não vos
diz nada; mas se, em vez de Miguel Ángel Valero, lhe chamar
Piraña, da série Verão Azul?)

Quanto ao inédito – solicito ao percussionista da orquestra um


valente rufo –, é um poema de Miguel Esteves Cardoso – que
nos soube que nem figos.

Posto isto, como diria o grande engenheiro Sousa Veloso, des-


peço-me com amizade, desejando-vos uma estação tonta feliz,
advertindo-vos dos escaldões e aconselhando-vos a levar um
casaco porque à noite arrefece.

António Gregório

365
01
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António Gregório
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Alex Gozblau

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02
01 Editorial 04 Cúmplices 06 Mestre Marcello O Horóscopo
12 Alberto Pimenta Foi uma sorte 14 Rui Manuel Amaral
Cinco histórias nocturnas 16 Entrevista Quem é Miguel
Ángel Valero? 32 Passatempo 365 Descubra as diferenças
34 Rui Reininho [sem título] 36 Clara Ferreira Alves O Sonho
40 Mário Cesariny A Norma de Bellini 56 Luiz Pacheco
Granito? Não, obrigado 62 Miguel Esteves Cardoso Tenho
os meus olhos nos figos 64 Jorge Palma O Fim do Verão

fotografia Vanessa Borges

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CÚMPLICES
Adolfo Luxúria Canibal nasceu em Luanda, em 1959. É músico, poeta
e tradutor. O conto «O Ás de Espadas» foi publicado no número 2, em
Dezembro de 1997.

Alberto Pimenta nasceu no Porto, em 1937. É escritor, poeta e ensaís-


ta. O conto «Foi uma Sorte» foi publicado no número 3, em Abril de
1998.

Clara Ferreira Alves nasceu em 1956. É jornalista e escritora. O conto


«O Sonho» foi publicado no número 12, em Novembro de 2003.

Jorge Palma é músico. Nasceu em Lisboa, em 1950. «O Fim do Verão»


foi publicado no número 26, em Maio de 2008.

Luiz Pacheco nasceu em Lisboa, em 1925, e morreu em 2008. Foi escri-


tor, editor e crítico. «Granito! Não, Obrigado» foi publicado no núme-
ro 8, em Fevereiro de 2003.

Mário Cesariny nasceu em Lisboa, em 1923, e morreu em 2006. Foi


pintor e poeta. «A Norma de Bellini (script para um filme que nunca
será)» foi publicado no número 6, em Novembro de 2000.

Mestre Marcello nasceu no Brasil em 1966, filho de um padeiro portu-


guês com uma italiana. É divorciado, mas ainda ama a ex-mulher. É
vidente desde 2007.

Miguel Esteves Cardoso nasceu em Lisboa, em 1955. É jornalista, críti-


co e escritor. O poema «Tenho os meus olhos nos figos» é o único
trabalho inédito publicado neste número.

Rui Manuel Amaral nasceu no Porto, em 1973. Foi coordenador literá-


rio da revista aguasfurtadas. O seu último livro chama-se «Caravana»
(edição Angelus Novus, 2008). O conjunto de microficções «Cinco His-
tórias Nocturnas» foi publicado no número 28, em Fevereiro de
2009.

Rui Reininho nasceu no porto, em 1955. É músico e escritor. O conto


que não tem título foi publicado no número 1, em Abril de 1977.

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O
HO
CARNEIRO
AMOR: Este ano vai interessar-se por
um(a) colega de trabalho. Vai andar
meses a remoer nisso. Depois vai ten-

RóS
tar seduzi-lo(a) mas não vai conseguir
nada. Talvez até consiga uma vez, mas
é por pena.
SAÚDE: Algures durante este ano, vai

CO
cair e pode partir uma perna.
DINHEIRO: Vai meter-se num esque-
ma em pirâmide semelhante àquilo da
Bolha, mas com outro nome para as

PO
pessoas pensarem que, agora sim, é
legítimo e dá mesmo dinheiro a toda a
gente. Acabará por ganhar uma boa
soma, que, todavia, irá toda para pa-

DO
gar uma conta que você não estava
nada à espera.
OBJECTO DA SORTE: Figo-seco

MES touro
AMOR: Este ano vai ter vários(as) pes-

TRE
soas interessadas em si, mas não se vai
relacionar com nenhum(a) porque se-
rão todas piores que o seu(sua) ante-
rior namorado(a). Se beber muito, vai

MAR
desejar essas pessoas e acabará por
trocar sms com elas. Mas não passará
disso.
SAÚDE: Há fortes hipóteses de apa-

CE
nhar uma micose se for à piscina.
DINHEIRO: Vai alugar um DVD antes
de ir de férias mas vai esquecer-se de
devolvê-lo. Depois, regressando das

LLO
férias, vai pagar uma nota preta pelo
aluguer.
OBJECTO DA SORTE: Ficha tripla.

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gémeos
AMOR: Durante este ano, o(a)
seu(sua) namorado(a) não lhe vai
Leão
AMOR: Algures neste ano, vai ficar
atender o telefone por várias vezes.
preso(a) num elevador na companhia
Você vai ficar desconfiada(o) com ra-
de algumas pessoas. Enquanto espe-
zão, porque ele(a) o anda a enganar.
ram por um técnico, vai ter uma agra-
No entanto, ele(a) vai ter sempre uma
dável conversa com uma delas e pode
boa desculpa, pelo que nunca saberá
até se apaixonar.
de nada.
SAÚDE: Tenha cuidado. Este ano, um
SAÚDE: O seu dentista vai ter um de-
médico menos atento vai enganar-se
sastre de automóvel e pode ficar inca-
num diagnóstico e vai medicá-lo(a)
pacitado para lhe tratar dos dentes.
contra a doença errada.
Esteja atento(a).
DINHEIRO: Um amigo que já não vê
DINHEIRO: O snack-bar ao lado do
há muitos anos vai contactá-lo(a) para
seu trabalho vai subir o café para 0,65€
pedir dinheiro emprestado. Não lhe
e o galão e a meia de leite para 1,10€.
empreste dinheiro: é para esturrar no
A meia de leite, hoje, é mais barata
jogo.
que o galão, mas quando subirem vão
OBJECTO DA SORTE: Bugalho
custar o mesmo. Prepare-se para estes
encargos adicionais.
OBJECTO DA SORTE: Carica.

Caranguejo virgem
AMOR: Vai envolver-se com uma pes-
AMOR: Este ano vai ter sorte no amor.
soa casada. Sujeita-se a levar um tiro.
Vai apaixonar-se por uma pessoa e
SAÚDE: Vai engasgar-se com um osso
essa pessoa também se vai apaixonar
de frango e vai ser salvo(a) por um
por si. No início vai parecer difícil, por-
empregado do restaurante, que lhe
que essa pessoa não lhe responde às
faz a manobra de Heimlich. Vai ficar
mensagens, mas afinal era porque
muito agradecido(a) a esse emprega-
não tinha saldo.
do, por lhe ter salvo a vida, mas sem-
SAÚDE: Este ano vai ter, pelo menos,
pre que se cruzar com ele na rua vai
três doenças. Intoxicação alimentar
fingir que o não vê.
conta como doença.
DINHEIRO: Algures neste ano, vai
DINHEIRO: Quando chegar o calor,
deixar passar o prazo para pagar a
vai encontrar uma nota de 5€ num bol-
conta da água pelo multibanco e vai
so dumas calças de Verão. Vai ficar
ter que ir pagá-la à sede.
contente.
OBJECTO DA SORTE: Moeda de 2 e
OBJECTO DA SORTE: Também é
quinhentos.
carica.

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Balança
AMOR: Vai descobrir que o seu pa-
trão está envolvido com uma colega
sua do trabalho. Vai ficar revoltado
porque estava apaixonado(a) por um Sagitário
deles. AMOR: Se cuidar bem da sua higiene,
SAÚDE: O seu médico vai mandá- terá sucesso com o sexo oposto.
lo(a) fazer exercício. Vai fazer durante SAÚDE: Num jantar de amigos, levará
um mês mas depois desiste, porque uma facada sem querer. Fique
tem nojo de usar aqueles balneários. tranquilo(a), não será muito grave.
TRABALHO: Vai faltar ao trabalho DINHEIRO: Um caixa Multibanco vai
uma série de dias seguidos, revoltado comer-lhe o cartão. Previna-se com
com um qualquer assunto. Isso passa- numerário, trazendo sempre gordas
lhe, mas quase que é despedido. No notas na carteira.
fim, tudo vai acabar com o seu patrão OBJECTO DA SORTE: Salazar (utensí-
a ralhar-lhe e você a ouvir lio de cozinha)
caladinho(a).
OBJECTO DA SORTE: Goleador do
Cola Cao.

Escorpião
AMOR: Este ano é que vai ser. Capricórnio
SAÚDE: Algures neste ano, após dar AMOR: Não.
uma corridinha para apanhar um SAÚDE: Sim.
transporte público, vai dar-lhe a fra- DINHEIRO: Não.
queira. Porém, comendo um doce, OBJECTO DA SORTE: Caderno de
sentir-se-á melhor. linhas ou quadriculado.
DINHEIRO: Este ano vai ter que ir às
Finanças fazer aquela coisa de mostrar
as facturas e os talões, para conferir a
veracidade da sua declaração de IRS.
OBJECTO DA SORTE: Palmilhas de
cortiça, para ficar mais alto(a).

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Aquário
AMOR: Se tiver alguém interessado(a)
em si, vá dando trela sem se envolver,
só para ir alimentando as expectativas
em relação à coisa. Ter alguém interes-
sado em nós é sempre bom para o
ego, mesmo que não se goste dessa
pessoa.
SAÚDE: Estatisticamente, este será o
ano em que urinará mais, de todos os
da sua vida.
DINHEIRO: Este ano vai ter que trocar
as notas de 5 e 10 contos que tinha
guardado para colecção.
OBJECTO DA SORTE: Nota de 5 ou
10 contos.

Peixes
AMOR: Uma relação amorosa mal Bebé
precavida poderá render-lhe uma in- AMOR: Vão dar-te muitos miminhos,
jecção de penicilina. bebé.
SAÚDE: Uma relação amorosa mal SAÚDE: A mamã não te vai dar a pan-
precavida poderá render-lhe uma in- cadinha nas costas, e tu vais bolsar
jecção de penicilina. tudo, bebé. Mas não faz mal, a mamã
DINHEIRO: Quando limpar por baixo limpa.
dos assentos do carro, irá encontrar DINHEIRO: No teu baptizado vais ga-
mais de 30€ em várias moedas. A sa- nhar muitas prendinhas, bebé. Co-
ber: euro, escudo, peseta. lherzinhas de prata e um fiozinho de
OBJECTO DA SORTE: Calçadeira ouro. A avó até vai abrir uma conta no
banco para ir depositando dinheiro,
para comprares as tuas coisinhas,
quando fores mais crescido.
OBJECTO DA SORTE: Microfone

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G O D Ã O N Ã O E N G ANA!
OA L
CAMISOLA!
VISTA A

OS INFAMES AUTOCOLANTES 365


GANHARAM VIDA PRÓPRIA E AGORA
JÁ PODEM IR À MÁQUINA DE LAVAR!
SAIBA TUDO EM

www.caoazul.com

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FOI UMA
UMA
SORTE
SORTE
alberto pimenta
fotografia tracy wright
fotografia wright corvo
corvo

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Avançávamos pelas ruas estreitas que vão dar
ao tribunal, ruas que vão estreitando sempre.
íamos com pressa, quase a correr, para não
perder a sentença. mas subitamente reparámos
que um homem à nossa frente, carregado
com dois sacos pesados, ia avançando e
vertendo quase imperceptivelmente o pó
dum dos sacos.
– cuidado! – disse o meu interlocutor – pode
ser veneno, maneira discreta de liquidar ratos,
crianças, gatos, sabe-se lá a potência do meio?
o homem avançava devagar, derreado, era
decerto para não atrair suspeitas. o meu
interlocutor decidiu-se a levar o dedo ao pó,
cheirou, estacou, e levou à boca... – é açúcar!
–disse em voz baixa, para o homem não ouvir.
– é açúcar! de resto, veja o formigueiro! o
homem deve passar aqui todos os dias! o
homem deve passar aqui todos os dias, e todos
os dias deixa cair um pouco de açúcar, ou como
é que se justificava este formigueiro? isto é um
castigo! – ou uma missão – disse eu, – o homem
está a atacar a cidade por baixo. as formigas
comem tudo. roem lentamente as vigas, as
travessas, as tábuas... – o melhor – disse o meu
interlocutor – é abordar o homem. eu vou, eu
vou. e avançou decidido. eu fiquei um pouco
para trás, e um pouco perplexo. mas nesta
altura já ele tinha chegado à beira do homem.
– desculpe, tem horas? o homem olhou com ar
cansado, pousou os sacos, limpou a testa e
disse: – não, não tenho. e boa falta me faz.
então o meu interlocutor, tal como tinha
procurado fazer comigo, tentou e
conseguiu vender-lhe um relógio, muito barato.
foi uma sorte.

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13
RUI MANUEL AMARAL
CINCO HISTÓRIAS NOCTURNAS

Z
HISTÓRIA DO DITO CUJO

Se eu quisesse, podia contar muitas histórias sobre o dito cujo.


Mas basta esta, a primeira que me vem à cabeça. Um belo dia, após uma
bela noite de sono, o dito cujo abriu os olhos, levantou-se da cama, dirigiu-
se ainda meio ensonado ao quarto de banho, olhou para o espelho e, oh!,
fez uma careta terrível! Caramba, a terrível careta que ele fez! E depois
disse: “Xanto Deux, o gue agontexeu à minha gara? Parexo o Gregor Xa-
mxa.” O que significa: “Santo Deus, o que aconteceu à minha cara? Pare-
ço o Gregor Samsa”, mas ele pronunciava mal as palavras, por causa da-
quilo que acontecera à sua cara durante a noite. E é tudo.

M
QUANDO O SILÊNCIO CAIU EM VOLTA

A noite era de um esplendor invulgar. A lua, embora não estives-


se cheia, brilhava e envolvia toda a paisagem com uma beleza que desafia-
va qualquer tentativa de descrição. Os campos estavam cheios de sombras
amenas. Não havia vento, nem o mais leve sopro. Os demais corpos celes-
tes derramavam sobre o lago uma luz pura, estável, branca. As árvores
estavam como que hipnotizadas numa espécie de encantamento misterio-
so.
A senhora Ava Novak estava sentada na varanda, desfrutando
das ternas e encantadoras sensações daquela noite maravilhosa, e sonha-
va, sonhava, sonhava, contemplando a lua resplandecente. Depois, por um
momento, todas as cigarras se calaram, o silêncio caiu em volta e a senho-
ra Novak deu um pum.

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N
CONSEQUÊNCIAS DE UMA NOITE DE FOLIA

Depois de uma longa e bem preenchida noite de bebedeira, Za-


vala Zabehlice acordou dentro de uma garrafa. Uma situação, como é fácil
compreender, pouco ou nada brilhante.
- Efectivamente a minha situação está longe de ser brilhante. Na
verdade, é muito aborrecido uma pessoa acordar e concluir que está presa
no interior de uma garrafa. Talvez para sempre. É sobretudo muito incó-
modo – diz o infeliz pândego, secundando a minha opinião.
Pois muito bem. Aqui têm o que proporciona uma noite de folia
como aquela que Zavala Zabehlice teve o ensejo de gozar.

O TRASEIRO COMICHOSO
s
Um fulano entra à noite furtivamente no gabinete de trabalho
de um escritor famoso, esfrega as mãos e bebe um frasco inteiro de tinta.
Depois pousa o frasco no lugar, coça o traseiro comichoso e volta furtiva-
mente para casa.
No dia seguinte, o fulano começa a cagar histórias e transforma-
se num autor famoso. O outro, sem a tinta, pobrezinho, mergulha numa
crise de criatividade e acaba por morrer de desgosto.

SEZAY GORODECKY NÃO CONSEGUIA DORMIR


b
Noite após noite, agitado, transtornado, ofegante, barrigudo e
com uma borbulha na ponta do nariz, Sezay Gorodecky não conseguia
pregar olho. Ora, passar tantas noites sem dormir não é muito bom para a
saúde. Ao fim de algum tempo uma pessoa começa a morrer de sono. E
nem de propósito! Ao fim de algum tempo, Sezay começou a morrer de
sono. E depois morreu*.
* Esta nota de rodapé é pura garotice minha. Existe apenas para enganar o leitor.
Sezay Gorodecky morreu efectivamente de sono. Fim da história.
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15
Quem é
Miguel Ángel
Valero?

Miguel Ángel Valero entrevistado por


Fernando Alvim e Luís Guerra.

A 365 perdeu a cabeça. Seguros da importância vital da série Verão Azul


no imaginário de toda uma geração de quase trintões portugueses, ru-
mámos a Espanha em busca de Piraña, uma das personagens mais ca-
rismáticas da série. Na memória, uma criança forte e encorpada, viciada
em gelados e amigo de Chanquete, um velho marinheiro.
E um verão interminável de aventuras inocentes de uma pandilla que
podia ser a nossa mas passava férias na costa sul de Espanha, perto de
Málaga.
Descobrimos que Verão Azul é um marco da televisão espanhola e uma
marca geracional. Fomos encontrar Miguel Ángel Valero, o verdadeiro
Piraña na Universidade Politécnica de Madrid. É doutorado em Teleco-
municações e professor universitário. Tem 33 anos e um sorriso encan-
tador. Fala pelos cotovelos e nós, embevecidos, regressámos com ele a
1979.

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A que se deve, em tua opinião, o estrondoso êxito de Verão Azul?
Hoje em dia tudo gira em torno de audiências e o sucesso das séries de-
pende disso. Verão Azul era uma série muito simples, fácil de perceber.
Falava muito da vida das pessoas, da camaradagem. Penso que cada vez
mais se recorda com carinho e nostalgia os verões da infância e Verão
Azul é um pouco como as férias de toda a gente. Trata de questões im-
portantes da vida mas de uma maneira muito familiar, com algum sentido
de humor.

Por que razão as pessoas se identificavam contigo?


Os meninos gorditos eram os primeiros a identificar-se comigo, claro. Por
vezes diziam-me coisas como «sabes que a mim também me chamavam
Piranã quando era pequeno?». Todos os gorditos de Espanha se chama-
vam Piraña.

Quando é que começaste a emagrecer?


Foi com a adolescência. A partir dos 13, 14, 15 anos comecei a fazer
exercício e perdi barriga. Mas nunca fiz uma dieta, nunca tive complexos.
Isso é de agora. Na actualidade pode falar-se em problemas de obesidade
infantil, má nutrição... Em finais dos anos setenta, princípio dos anos oi-
tenta, era mais natural. O facto de ser gordinho nunca me criou qualquer
tipo de complexos.

Quantas vezes foi reposta a série Verão Azul em Espanha?


Na televisão nacional repetiu oito vezes. Mas depois também passou nas
estações «autonómicas» [referentes às regiões autónomas espanholas],
na televisão por satélite. Depois foi transmitida também em quase toda a
América Latina, em alguns países da Europa, na África de expressão espa-
nhola. Na Europa, essencialmente na Europa de Leste. A seguir a uma
série espanhola chamada Un Hombre en La Terra, o Verão Azull é o pro-
grama mais exportado.

Tinhas feedback das pessoas que viam a série? Enviavam-te cartas?


Sim, sim. Eu tinha 8, 9 anos e já recebia cartas de crianças de 6, 7 anos.
Já o Pancho e o Javi, como eram mais velhos, não recebiam cartas – rece-
biam autênticas declarações de amor! (risos).

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Apaixonaste-te por alguém na série?
Não. Éramos só amigos. Eu tinha 9 anos e os outros da pandilla já tinham
13, 14 – com eles era outra história. Eu estava mais virado para as brinca-
deiras, para a aventura, tudo isso.

Na sequência do impacto da tua personagem, fizeste publicidade?


Sim. E como podem imaginar, de comida. De iogurtes, em 1982. E ainda
por cima não eram os meus iogurtes favoritos, o que me causou alguns
problemas de consciência. O anúncio foi realizado por António Mercero,
o mesmo realizador de Verão Azul.

Que é feito de António Mercero?


É um dos grandes realizadores da televisão espanhola. Depois de Verão
Azul fez algumas séries muito populares, está a dirigir um teatro. Ganhou
inúmeros prémios, é dos grandes nomes da nossa televisão. Sentimos
amizade um pelo outro e vemo-nos de vez em quando. No ano passado
foi homenageado pelo cinema basco e alguns actores de Verão Azul fize-
ram de comité de boas vindas. Em 2001 regressámos com ele a Nerja,
quando passaram vinte anos da primeira exibição da série. Construíram
um parque na povoação, chamado Parque Verano Azul. Havia uma em-
barcação, que era uma réplica do barco de Chanquete e as ruas do par-
que têm o nome dos actores.
365
19
Em Nerja há apartamentos e hotéis com o nome Verano Azul...
E restaurantes... e agências de viagens!

Foi um marco na região.


A Nerja de Verão Azul era uma povoação costeira, de pescadores, muito
romântica. Ligada aos velhos costumes, muito bonita. Agora tem um apa-
relho turístico bastante grande que a rodeia. Mas continua a ter muito
encanto porque, como quase todas as localidades costeiras da Península
Ibérica, é uma praia pequenita, com muito mar, com muita luz.

E que fazem, hoje, os outros actores da série?


Do menor ao maior. Tito vive em Nerja porque já era de lá, trabalha no
sector do turismo e tem umas terras que comprou com o dinheiro de
Verão Azul. Portanto, combina a agricultura com o turismo e gosta muito
de fazê-lo. Depois sou eu. Depois vem o Quique, que fez teatro depois de
Verão Azul; hoje trabalha, sobretudo, com fotografia. Logo depois vem
Javi, que é o único que se dedica verdadeiramente às artes de palco, fez
teatro... Teve recentemente êxito numa série espanhola, em que desem-
penhou o papel de agente policial, detective. Pancho estudou com Javi,
com quem chegou a gravar um disco, meteu-se em coisas de vídeo. Bea

365
20
e Desi quiseram seguir na profissão, mas na adolescência o corpo muda e
já não recebes as mesmas propostas de trabalho porque as pessoas con-
servam de ti uma imagem mais infantil. As duas trabalham em hospitais
em Madrid, são enfermeiras. Júlia dedica-se à sua profissão de actriz. O
mesmo com Chanquete, que até falecer, em 2000, foi actor e chegou a
ganhar um Óscar com o filme Volver a Empezar (melhor filme estrangeiro
em 1982), um dos primeiros Óscares do cinema espanhol. Estou certo que
em Portugal passou no cinema mas não é um filme muito comercial. Bem,
resumindo, vivemos todos em Madrid.

Menos o Tito...
Sim, que vive em Nerja. Tito tem uma história muito curiosa. Antes de
começarmos a gravar Verão Azul levámos daqui de Madrid um menino
para fazer de Tito. Mas quando começámos a rodar, não resultava. Não
ficava bem frente às câmaras, confundia-se com as luzes, ficava nervoso...
Também por lá estava o filho de um operador de câmara, experimentá-
mos com ele, mas também não deu certo. Mas havia uma criança que era
filho de um empregado de um restaurante da praia que insistia em entrar
nas cenas, como intruso. Acabou por fazer um teste com António Merce-
ro e tornou-se o Tito que todos precisavam.

E tu, como é que apareces na série?


Eu não tenho família ligada ao audiovisual. Uma vizinha disse à minha
mãe que a filha da padeira do mercado perto de minha casa trabalhava
numa agência de publicidade e estava à procura de um menino gordito,
comilão... E a vizinha convenceu a minha mãe que eu era a pessoa ideal,
que era para um anúncio de televisão... e a minha mãe acabou por con-
cordar. Fui à agência de publicidade, fui entrevistado por António Merce-
ro e à saída ele disse que sim, que eu era o garoto que eles queriam. O
que eu não sabia era que não era para um anúncio, como me tinham dito,
mas sim para uma série de televisão. E que teria que estar em Nerja oito,
nove meses porque, inicialmente, os planos eram para dez capítulos – de-
pois fizeram-se outros dez. A minha mãe e o meu pai ficaram um pouco
assustados porque iria perder o colégio. O António Mercero telefonava lá
para casa a pedir por favor, que já tinha visto muitas crianças gordinhas
mas nenhuma era como eu. Isto foi de Maio de 79. No dia 20 de Agosto
de 79, cumpri o meu primeiro dia de rodagem.
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21
Perdeste algum ano por causa da televisão?
Não, porque tive aulas particulares durante a tarde. Fui estudando pouco
a pouco.

Não sentes falta desses tempos?


Não, porque a história de Verão Azul nunca estará terminada. Passaram
vinte e quatro anos e estamos aqui todos a falar sobre Verão Azul. A fama
é tão exorbitante que, aqui em Espanha, é impossível esquecer Verão
Azul. As duas emissões com mais audiência da história da televisão espa-
nhola – e estamos a falar de uma altura em que havia apenas dois canais
de televisão – foi o episódio da morte de Chanquete e um jogo de futebol
Espanha-Malta de apuramento para um Campeonato do Mundo. Nessa
altura em nem podia sair à rua que era imediatamente reconhecido. No
cinema, entrava só quando as luzes se apagavam. Senão tinha logo que
dar autógrafos. Foi um bocado cansativo porque as pessoas chegavam-se
sempre perto e queriam falar sobre qualquer coisa. Mas a personagem
caiu no goto das pessoas, era simpático... por isso a abordagem era sem-
pre agradável. Na praia, por exemplo, deitava-me para apanhar um pouco
de sol e tinha logo um círculo de pessoas à minha volta a olhar para mim.
Se dava um salto à agua, toda a gente para a água! E há uma coisa curio-
sa: as pessoas não falam contigo, falam com a personagem. Falam com
Piraña. Só quando as pessoas separam a personagem da pessoa é que o
diálogo se torna mais bonito, mais interessante. Com 14, 15 anos, já saía
à noite com os meus amigos e quando conhecia alguém, a conversa da
primeira meia hora só tinha um tema. Queriam saber se estava a fazer
alguma coisa em televisão, como foi a experiência, se falava com os meus
companheiros da série... as típicas perguntas de uma entrevista. É um
bocado como partir uma perna, quando toda a gente te pergunta a mes-
ma coisa: como é que a partiste, em que circunstâncias, há quanto tem-
po... Cansa um pouco. Hoje em dia as perguntas são mais naturais. Claro
que volta e meia há sempre que me faça perguntas sobre comida (risos).

Ainda és interpelado por pessoas na rua, quase vinte e cinco anos


depois?
Com frequência. Não todos os dias, mas todos os meses.

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Por que razão a série não durou mais tempo?
Primeiro era para ter apenas dez capítulos, mas como as coisas estavam a
correr bem, gravámos mais dez. A série é feita para documentar um Verão
e um Verão acaba. Não é como uma sitcom norte-americana. Não se
queria fazer dinheiro, era contar a história de um Verão.

Não houve nunca a tentação de fazer uma sequela?


Falou-se disso mas nunca foi para a frente. Não teria sido boa ideia. Mas
seria muito difícil captar a intensidade da primeira série. Verão Azul pôs a
fasquia muito alto. A fazer-se algo teria que ser um trabalho muito inten-
so, muito duro. Ou então uma série chamada Inverno Branco. (risos)

E um filme?
Verão Azul já é como um filme porque foi rodado em filme e não em ví-
deo.

Existe algum episódio que te tenha ficado na memória de forma


mais viva do que todos os outros?
É difícil. Se formos pela minha participação no episódio é complicado di-
zer um episódio em especial porque se em relação às outras personagens
havia um capítulo que lhes era dedicado mais especialmente, em relação
a Piraña pode dizer-se que estava em todos os capítulos a contar a sua
visão do tema. No capítulo Gato Verde, retenho a camaradagem, o com-
panheirismo entre todos. Depois há um episódio chamado No mates mi
planeta por favor, que é uma metáfora do papel do indivíduo no plane-
ta.

E há o capítulo da primeira menstruação de Bea...


Esse capítulo ganhou o Urso de Prata no Festival de Televisão de Berlim.
Graças a isso, a série estreou-se em quase todos os países de Leste: na
Polónia, na Hungria, na RDA, Checoslováquia. O tema desse episódio já
terá passado de moda. Nos anos setenta e oitenta o tema de quando as
meninas se tornam mulheres era um tanto ou quanto tabu. Agora é um
tema corriqueiro, pelo menos no nosso espectro cultural. Em Verão Azul,
esse tema tinha uma plástica muito bonita, a forma como a história foi
contada tinha uma certa sensibilidade. Se o vires hoje, há coisas que te
parecem um bocado caretas.
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A personagem Piraña era muito diferente de ti?
A parte travessa é mais Piraña. Digamos que a personagem era feita com
40% de Piraña e 60% de mim. É complicado responder. Há alturas em
que me vejo a actuar e percebo que não sou eu, mas depois há uma ou
outra frase que têm muito a ver com a minha forma de ser. Se virem ama-
nhã um episódio do Verão Azul, verão que há expressões e formas de
falar que são minhas. É muito curioso porque já passaram muitos anos.

Já eras tu...
Claro. Por exemplo: eu gosto muito de gelados mas de baguetes já não
gosto tanto. E no início davam-me baguetes de queijo, baguetes de mor-
talela... E eu não gostava assim tanto delas. Preferia gelados. E passaram
a dar-me gelados.

O episódio da morte de Chanquete foi dos mais emotivos da série.


Qual foi o impacto real do episódio nos telespectadores?
Muito grande! Em Nerja, no dia em que esse episódio foi transmitido,
puseram-se bandeiras negras a meia haste. Chanquete converteu-se no
avô de todas as famílias espanholas. Era uma personagem muito querida,
muito compreensiva e também muito liberal. Era uma personagem do
povo que representava a busca do ser humano fora do âmbito mediático.
A morte de Chanquete foi a morte de uma personagem de ficção que se
tornou quase um membro da família.

Como foi regressar a Nerja em 2001?


Já não ia lá há oito anos. E antes disso só mesmo no início dos anos oiten-
ta. Foi um regresso muito nostálgico, passar pelas mesmas ruas e alguns
sítios que permaneciam inalterados.

Viveste lá o Verão mais longo da tua vida...


Foi um ano e meio contínuo. De Agosto de 79 até ao Natal de 80. Demo-
rámos quase um mês por capítulo. Verão Azul está rodado em película,
com som directo. Falamos de 1979, era um mundo tecnicamente diferen-
te do mundo de agora. Hoje em dia, para um filme de hora e meia são
precisos meses. Cada episódio de Verão Azul tinha quase uma hora – um
ano e meio para vinte capítulos não é muito. É uma série que, se for exi-
bida num ecrã grande, tem toda a pinta do cinema.
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Alguma coisa correu mal durante as filmagens?
Nada de especial. Há sempre alguém que adoece mas
nada mais do que isso. Por vezes tínhamos que repetir
as cenas muitas vezes, mas não se pode dizer que isso
seja negativo. Às vezes rodávamos na praia, às três da
tarde, com um calor impressionante e havia uma cena
em que eu encontrava Tito na praia e estávamos os
dois a comer gelados. Eu e Tito concordámos em enga-
narmo-nos várias vezes para que a cena se repetisse
muitas vezes e pudéssemos comer mais e mais gelados
(risos). Quando rodávamos cenas de festa, por exem-
plo, havia mesas com comida mas polvilhavam insecti-
cida para que, à medida que as cenas fossem sendo
repetidas, a comida não se esgotasse.

És amigo das outras crianças da série?


Tito, como é mais ou menos da minha idade, é o mais
próximo. Fui ao casamento dele. É um pouco como um
colega de escola, fica uma afinidade para sempre.

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Um amigo é um amigo...
Exacto. Tendo em conta que estivemos um ano e meio numa povoação
pequena como Nerja, criámos todos laços. Quando passaram vinte anos
sobre a exibição da série, um jovem de Nerja de quem me tornei amigo
durante aquele ano e meio, escreveu o único livro que existe sobre a série,
intitulado Antes, Durante y Después de Verano Azul. Esse livro compila
quase tudo o que pode ser dito sobre a série. Fotos, histórias... Teve uma
tiragem muito reduzida porque é uma edição da Junta de Freguesia de
Nerja. É um livro que tem os números todos da série. Quantos minutos
tem Verão Azul, quantas vezes foi repetido, os censos de Nerja...

Uma espécie de Frequently Asked Questions...


Isso! Tem um mapa de Nerja com a sinalização dos sítios onde foram
gravadas certas cenas. (risos)

Agora há o DVD.
É algo de muito recente. Soube disso na semana passada. Mas não tive-
ram a delicadeza de me dizer «olha, o Verão Azul saiu em DVD, toma lá a
colecção para ti».

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Ainda recebes alguns direitos pela série?
Praticamente nenhuns. E se não os reclamas, fazem ouvidos moucos.

Gravaste um disco depois de Verão Azul, não foi?


Pois foi. Chamava-se Comer Comer e era interpretado por um grupo cha-
mado Los Pirañas (risos). Foi uma coisa natural porque os anos oitenta
foram uma década de muita discografia infantil. Alguns deles da editora
RCA, que me convidou a gravar este disco com o Miguel, o actor que fa-
zia de Tito. Estive quase meio ano a promovê-lo em galas por toda a Es-
panha (risos), onde contávamos histórias de Verão Azul, cantávamos al-
guns temas como a versão de Verão Azul com letra. Eu gosto mais da
versão instrumental, mas nesse disco vinha a versão com letra (começa a
cantarolar).

A versão instrumental já existe há alguns anos, na Internet, em


MP3. Costumas fazer downloads de música?
Nem por isso. Não uso o Napster nem o eMule, nem nada. Eu em casa
quase não vou à Internet. Aqui na universidade conecto-me bastante,
mas há uma série de filtros que me impedem de tirar música, por ques-
tões de segurança.

Também é possível encontrar alguns episódios na Internet.


Sim, mas foi convertido do vídeo e a qualidade é fraquita. Agora, em
DVD, a qualidade deve ser altíssima.

Que séries televisivas vias antes de fazeres o Verão Azul?


Dentro do dramalhão, recordo-me de Uma Casa na Pradaria e também
dos desenhos animados. A Heidi, o Marco...

Vias muita televisão? Tinhas algum ídolo?


Na verdade, eu não via muita televisão. Era mais virado para o cinema.
Gostava do Super-Homem, que me parece que apareceu em 1978, quan-
do eu tinha 7, 8 anos. E depois... eu não tinha videogravador. Um vídeo
era coisa que só os amigos ricos tinham. Daqueles grandes. Tinha um
gravador de áudio onde registava o som de alguns desenhos animados.
Mas televisão era coisa que costumava ver aos Domingos à tarde, já que
nesse tempo não havia emissões durante a manhã, que surgem em Espa-
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nha por volta de 81, 82... Eu depois trabalhei num programa de televisão
que apareceu depois do Verão Azul, denominado A Bola de Cristal, que já
era transmitido de manhã. O hábito, até aí, era de ver televisão ao Domin-
go depois de comer, por volta das 4 da tarde.

Conheces alguma coisa em Portugal?


Sim. Eu faço sempre férias na zona de Cádis, pelo que o Algarve fica per-
to. Gostava de conhecer as ilhas. Já estive em Lisboa e Porto, que são
muito diferentes. Gosto mais de Lisboa no Verão e na Primavera e do
Porto no Inverno. Lisboa parece-me mais boémia (risos). Fui ao Castelo de
São Jorge... Do Porto recordo mais o rio, a ponte S. Luiz, as caves do vinho
do Porto. Eu sou muito de viajar mas Portugal está tão perto que digo
sempre que um dia vou conhecê-lo melhor.

Hoje és professor de telemática.


Sou engenheiro de telecomunicações e dou aulas na Universidade Politéc-
nica de Madrid. Dou aulas, faço investigação... é um trabalho mais de
investigação do que de descoberta. Estou envolvido num programa de
telemedicina de auxílio às pessoas que não podem sair de casa. Uma tec-
nologia que se serve do cabo para aproveitar a banda disponível de forma
a permitir uma teleconsulta, por exemplo. É algo feito a pensar nas pes-
soas com incapacidades ou doentes crónicos. Um sistema que comple-
menta a visita domiciliária.

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É isso que queres fazer toda a vida?
Sempre gostei muito de saúde e medicina. Mas também de telecomuni-
cações. O meu perfil profissional é este. Interessa-me aplicar as potencia-
lidades da tecnologia e pô-las ao serviço da saúde. Gostava mais de fazê-
lo em países desfavorecidos ou em vias de desenvolvimento, mas aí há
necessidades mais vitais, como a alimentação, a água potável, o controle
da violência. Acho que seria mais lógico trabalhar na saúde desses países
do que aqui na Europa, onde já não é tão necessário.
Os teus alunos conhecem a tua carreira infantil?
Os meus alunos são jovens, sabem a história, viram em vídeo ou em DVD,
mas não viveram o Verão Azul. Mesmo quando a série repete, há mais
canais de televisão, já não é a mesma coisa. Passaram muitos anos...
Quem a viu na década de noventa, viu-a como uma série do passado. É
como a música dos anos sessenta. Posso gostar dela mas não a vivi no seu
tempo. Ou um filme de John Wayne.
Casaste em 96 e tens dois filhos...
Uma menina de quatro anos e um menino com um ano. Parecem-se mui-
to comigo. Mas não são tão gorditos (risos). Eu nasci com 4,2 Kg. São
ruivos, clarinhos...
Por fim, onde estavas quando ocorreu o atentado de Madrid?
Estava em casa, que é muito perto da estação de Atocha, onde ocorreu o
atentado. Vi as coisas pelas notícias. Foi horrível... escapa à razão. Escapa
à razão o sistema social e humano em que vivemos. Convida mais ao
pessimismo do que ao optimismo, salvo iniciativas pequenas. A popula-
ção fica acomodada com as desgraças do planeta, fica habituada ao mal.
Existe muito cepticismo. Estamos num estado miserável, sobretudo quan-
do olhamos para África. A mim dá-me pena que política seja uma expres-
são negativa porque devia ser o contrário. A minha ideologia política...
não sei qual é. Não compartilho a maioria dos ideais dos governantes,
apenas umas opiniões isoladas de alguns. A minha perspectiva é social,
mas não me considero socialista porque há coisas que me deixam descon-
tentes. Também sou pela ecologia, mas não me considero ecologista por-
que também há coisas que não entendo. Sou contra um mercado em que
as regras sejam apenas a da oferta e da procura. Não sei. Nunca encontrei
um partido.

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descubra as diferenças
Entre estas duas imagens aparentemente iguais, existem oito subtis diferenças.
Divirta-se com os seus amigos assinalando-as!
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Entre estas duas imagens aparentemente iguais, existem oito subtis diferenças.

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Divirta-se com os seus amigos assinalando-as!
[sem título]

Entretanto, é muito difícil descer estas ruas até à Baixa com o


cavalo sempre a escorregar...

Tentar passar na viela do Anjo com a lança e os arreios sem


embater nas tralhas, nas Levis falsas que os comerciantes têm
à porta é algo complicado. Bom, mas o Cavalo tem sede, esta
praga dos arrumadores a exigir moedinhas enquanto a besta
procura dessedentar-se na fonte!
Palavra de Rei, apetece-me desembainhar a Cantante e degolar
três ou quatro. Mas é preferível descer a viseira e partir que o
forte está a cavaleiro do rio.
Sentindo a montada um pouco caneja, desmontei numa área de
serviço de onde se avista Gaia e interpelei o moço, mostrando-lhe
a face plantar do casco, julgando haver ali algum azar entre a
gluma, o talão e a ranilha.
Que não, o mancebo só percebia de pneus e amortecedores que é
coisa que a montaria não usa. Indicou-me uma ponte que atraves-
sei por entre o trânsito não sem antes ter decepado um peão de
capacete branco que me procurava impedir a passagem apitando
a um falcão que ele esperava de luva branca empunhada. Luva
agora de sangue tremendo no trilho negro.

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rui reininho
ilustração alex gozblau

Subimos a colina a trote apenas estacando para perguntar onde


era esse antro de taberneiros que vossemecês anunciavam no
éter.
Ali chegado, com dificuldade contornei esse escravo núbio, negro
que nem um tição, desci às infernais catacumbas não sem que
esses abutres mal emplumados me oferecessem umas mezinhas
minúsculas de que todos já alucinavam.
As bruxas e outros celerados de sexo indistinto contorciam-se em
cima das pipas mágicas de onde saíam sons nunca ouvidos. A urbe
enlouquecida ululava. Procurei um culpado: um sujeito descolora-
do que rodopiava discos dentados, rodas que causavam as piores
torturas e disse-lhe encostando a adaga ao pescoço, rasgando-lhe
as palas dos ouvidos:
– Quem és tu e a quem obedeces?
A criatura, mal se fazendo ouvir, sibilou:
– Sou dijai, trabalho para a caos...
– Pois fenece, maldito, retorqui, mas aprende que é o Caos que se
diz. Foi o Diabo que mo ensinou.
Caiu prostrado. Amanhecia, os seres contorciam-se ainda ou
arrastavam-se pelas vielas.
Montei, subi de novo até à Sé para orar ofertando brincos que
arrancara de vários pontos dos corpos dessas rameiras.
O Sol fundiu-nos e eu adormeci. Voltarei.

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CLARA FERREIRA ALVES

O
SONHO

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fotografia DENIZ AKSEKI

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Ela sentou-se na cadeira e disse
Tive um sonho, esta noite. Um sonho só com homens. O
primeiro era o meu pai, que estava a discutir com a minha mãe.
Parecia outra vez a minha infância. A minha mãe pedia ao meu
pai para não sair de casa e para ficar e ele ameaçava que se ia
embora. Ela agarrava-o e ele despegava-se. Ela implorava e ele
negava-se. Depois eu avançava para ele e dizia-lhe para se decidir,
ali e já. Ou ia, e nunca mais voltava, ou ficava e nunca mais saía.
Ele olhava para mim com medo e eu controlava-o através desse
medo. Ficou sem saber o que fazer, durante muito tempo, e de-
pois fui eu que o obriguei a sair. Expulsei-o de casa. O que a minha
mãe nunca teve coragem de fazer. Ele foi. Não o deixei olhar para
trás.
A seguir, sem se mexer na cadeira, imobilizada pelas pa-
lavras, ela continuou
Depois era o meu marido, ex-marido, para dizer a ver-
dade. Ele não sabia escolher, havia duas mulheres, eu e a outra.
Por um lado ele queria-me a mim, porque era mulher dele e ele
tinha medo das consequências, de perder os filhos, de sair de casa.
Por outro lado, queria a outra, porque estava apaixonado embora
desconfiasse daquela paixão. Passava as noites em claro, a tentar
decidir. Isto na vida, na minha vida. No meu sonho desta noite,
era eu que decidia por ele, era eu que mandava. Pu-lo fora, vio-
lentamente. Roupa pela janela, malas a voar, porta escancarada.
E tudo isto sem um grito, uma lágrima, um gemido, um pedido.
Tudo em silêncio, a frio. Exactamente o contrário do que aconte-
ceu há anos, quando ele me quis deixar. Quando chorei, gemi,
usei os filhos contra ele a meu favor. Ficámos juntos mais uns
anos, até ao divórcio. E tantas vezes desejei que ele se tivesse ido
embora. Tinha sido melhor. Desta vez, no sonho, senti-me bem,
como não me sentia há anos, desde a morte do meu pai. Eu de-
testava o meu pai.
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Agora ela mexeu uma mão, acariciou a face, puxou uns
fios de cabelo. Suspirou de leve
E no sonho, a seguir, era o meu filho. O meu único rapaz.
O meu preferido, nunca gostei de ter raparigas. O mundo não
gosta de raparigas. No sonho, o meu filho regressava a casa. Era
como se nunca tivesse saído. No dia em que ele morreu, lembro-
me de que andava inquieta desde manhã, ia à janela, as coisas
caíam-me das mãos. Instinto de mãe. Quando eram onze da noite
e ele ainda não tinha regressado soube logo que qualquer coisa
tinha acontecido. Quando o telefone tocou, antes de me falarem
no desastre e no carro desfeito eu já sabia a verdade. Sabia que
ele tinha saído de manhã com os amigos e que nunca mais voltar-
ia. Desde esse dia tenho estado como morta, você sabe bem, como
morta. Nunca perdoei ao meu marido, quis o divórcio, mas ele
não teve a culpa, ninguém teve culpa. O horror não tem culpa-
dos.
Ela sorriu, pela primeira vez em vinte anos
Você conhece estas histórias, você sabe bem como elas
nunca tinham fim. Até esta noite. Esta noite tive um sonho e sen-
ti-me bem ao acordar. Expulsei quem devia, fiquei com o meu fil-
ho. Vi-o como ele seria hoje, com 38 anos, e não como era quando
morreu, um rapaz. Vi um homem, bonito. Como ele seria. Acha
que preciso de cá voltar? Acho que nunca mais cá volto.
Ela levantou-se da cadeira, devagarinho. E saiu do con-
sultório.

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A Norma de Bellini
(script para um filme que nunca será)

Mário Cesariny
Ao João Rodrigues e ao José Leonel Martins Rodrigues

fotografia Merve Engin


O filme terá as características do
filme mudo embora haja de intervir,
nos devidos momentos (música,
ruídos ou palavras), o sonoro. Toda
a película, a preto e branco.

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O rectângulo municipal, preto-branco, indicador da Travessa do Co-
tovelo onde esta desemboca na Rua do Arsenal em Lisboa. Focar de
modo a que, depois, movendo a objectiva, se veja bem a Rua do
Arsenal, sem que no entanto desapareça a placa indicadora da Tra-
vessa do Cotovelo. Actualmente esta placa, que era a preto e bran-
co, foi substituída por azulejos (azul e branco). Reproduzir a placa
antiga.

A luz é a da noite tempestuosa. Chuva torrencial e ruído dela.


Na fachada do alto prédio que está no início da Calçada do Ferra-
gial, focado imóvel desde a Travessa do Cotovelo, todas as janelas
se acendem, mais ou menos uma por uma. Quando todas acesas,
todas se apagam simultaneamente.
Chão da Travessa do Cotovelo, negro à chuva. Vindo do Largo do
Corpo Santo, já adentradas na Travessa, várias filas de homens e
mulheres, vestidos de negro ou cor escura, homens e mulheres,
ocupando toda a largura da Travessa, conduzem um esquife. Todos
têm guarda-chuva aberto, preto, embora já não chova e continue a
ouvir-se o ruído de chuva torrencial. Avançam lentamente, a passo
cadenciado e balanceando, como o fazem os grupos corais alente-
janos. O esquife é conduzido a ombros, aberto, sem que no entanto
se lhe veja o interior, O ruído da chuva é progressivamente substi-
tuído pelo arrastar cadenciado dos passos que avançam pelo empe-
drado, em marcação que pode atingir forte intensidade (de som).
Chegado o cortejo a meio do percurso da Travessa, desaparece a
imagem.
A Travessa deserta. De novo a chuva forte e o ruído dela.
De novo a esquina e o letreiro municipal da Travessa do Cotovelo.
Desce a câmara e, na rua, sob o letreiro, colado à parede e de costas
para a objectiva, está Personagem. Segura na mão esquerda um
guarda-chuva aberto e tem o braço direito enfiado para lá da es-
quina (adentrado no espaço da Rua do Arsenal). Vê-se que, com
esse braço, procura trazer para si, para a Travessa do Cotovelo, al-
guma coisa ou alguém, não visível. O esforço é violento, desespera-
do, podendo ser cómico ou dramático, ou ambas as coisas no mes-
mo tempo. A chuva não parou. Personagem começou a conseguir
trazer para a objectiva aquilo por que puxa. Surge primeiro uma
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mão, fortemente puxada (agarrada) pela mão de Personagem. De-
pois, lentamente, o pulso e parte do braço de alguém que continua
para além da esquina e resiste a comparecer. Num último esforço,
Personagem descontrola-se, perde o equilíbrio, deixa cair o guarda-
chuva e deixa fugir a mão que desaparece (se retira) com o respec-
tivo braço.
Encostado à parede, de frente para a objectiva, cabeça à chuva,
Personagem recompõe-se do esforço que fez. Espreita depois, de
costas para a objectiva e o pé esquerdo no ar, o espaço da Rua do
Arsenal, pegado à esquina. Como desistido, recompõe-se um pouco
mais, apanha o guarda-chuva caído e começa num passo que termi-
na em correria pela Travessa do Cotovelo. Desaparece da imagem
antes de atingir o fim da Travessa.

Interior do quarto de Personagem. Lado interior da janela do quar-


to de água furtada de Personagem. Mesa e banco de cozinha cerca
e frente à janela. Guarda-fatos pobre, semi aberto, livros, papéis.
Cerca à porta de entrada, no interior do quarto, a minha (e de Isa-
bel Meyrelles) estatueta “Fernando Pessoa Ocultista” (extraída de
um quadro meu). No chão, frente a ela, um prato de louça com
restos de comida (um osso).
Personagem entra no quarto, depõe o guarda-chuva. Senta-se por
momentos, de braços caídos, no banco rente à mesa. Vemo-lo de
perfil, o qual, neste momento, deve ser muito belo (com grande
plano), muito distinto do seu aspecto habitual. Levanta-se (desapa-
rece o rosto belo), descobre uma toalha, limpa a cabeça que tem
molhadíssima, encara com a estatueta «Fernando Pessoa Ocultis-
ta”. Vai buscar um copo, enche de água e dá de beber à estatueta.
Esta, inalterável, não bebe. A água cai no soalho.
Repetição em surdina, mas crescente, do som cadenciado de passos
do cortejo que vimos há pouco. Personagem (rosto e depois corpo
inteiro) alarmado. Sobreposição progressiva da imagem do cortejo
fúnebre andante, já sem chuva e a meia-luz de dia, desta vez foca-
do de cima e vendo-se o interior do caixão aberto, contendo um
corpo mais ou menos tapado mas onde se vislumbra, do seu lado
direito, um braço de manequim, ou possivelmente, um corpo, ves-
tido, a que falta o braço direito. No lençol branco que oculta o
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corpo, lê-se a inscrição: NADADOR-SALVADOR. A marcha do cortejo
imprime movimentos bruscos, sacolejantes, à caixa funerária.
Personagem, de costas para a objectiva, dentro do quarto, esprei-
tando pendurado da janela, o cortejo que passa em baixo.
Cessa o ruído rastejante do cortejo. Logo que sobrevindo o silêncio,
Personagem abeira-se em grande agitação da sua mesa de traba-
lho, estende uma larga folha branca e escreve a tinta-china negra,
em tubo que lhe serve de caneta e com largos espaços entre as pa-
lavras escritas:

Ágoa complente

Ágoa estofa

Ágoa quebra

Do caixilho inferior do quarto de Personagem começa a escorrer


uma água negra, densa, gorgolejante, que desce pela parede e co-
meça a tomar o soalho. Rosto de Personagem fitando atentamente
a invasão negra líquida. Volta à folha branca e escreve com o tubo
tinta-china:

AS AGUAS CORREREM COMO SANGUE!


CHAÇO DO BÉQUE!
Um jorro de água cai sobre a folha branca e a tinta alastra produ-
zindo um aquamoto. Neste ínterim Personagem continua a ser vis-
to de costas, inclinado sobre a mesa.
Personagem lança o “aquamoto” ao chão e sai rapidamente do
quarto.
Focagem insistente da estatueta “Fernando Pessoa Ocultista” que
permanece imóvel no seu sítio. Partindo dela, a câmara percorre o
soalho, agora raiado de água negra, até um quase lago formado
aos pés do guarda-fatos, em cuja água vemos o “aquamoto” boian-
do. Sobre a câmara e no interior do guarda-fatos, aberto, vemos
vários braços de manequim, suspensos, em fila, de uma barra de
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ferro. Focados, imóveis, iniciam uma dança saltitante.

Écran negro.

Dia claro
Personagem Sai da porta n.º 37 da Travessa do Cotovelo, enfia rapi-
damente pela contígua Calçada do Ferragial. O percurso prossegui-
rá pelas ruas Vítor Cordon e Duque de Bragança até ao Largo do
Picadeiro, nas traseiras do Teatro-Cinema S. Luís, nas da PIDE e na
lateral do Teatro S. Carlos. Este percurso, todo em subidas íngre-
mes, será especialmente sublinhado pelo aparecimento, na ima-
gem, da figura de Personagem de cada vez que ele dobra uma es-
quina (de uma rua para a Outra) surgindo para a objectiva. Pode
repetir-se até à inconveniência esta forma de aparecer, ao mesmo
tempo que Personagem começará a dar mostras de cansaço.
Quando por fim estaca, fá-lo num novo sobressalto, olhando para
cima. Focagem das escadarias de ferro que ornam as traseiras do
Cinema S. Luís, supostas de salvamento em caso de incêndio. Rosto
de Personagem evidenciando, primeiro, espanto e medo, depois,
vontade resoluta. Atravessa rapidamente a rua, toma por uma das
escadarias, e desaparece no cimo dela. A câmara sobe até um céu
sem (ou com?) nuvens.

Écran branco.

Seguido de imagem de um estrado colocado frente ao n.º 4 do Lar-


go de S. Carlos. Sobre o estrado, quatro indivíduos sentados a uma
mesa (garrafas de água e copos, numerosos livros empilhados) com
ares de solenidade; um quinto indivíduo, de pé, com um microfone
ante o qual discursa. Aponta várias vezes para cima, para o piso
onde nasceu Fernando Pessoa. Quando aponta, todos os outros
olham também para cima, levantam-se e batem palmas ou saúdam.
No dito piso está uma lápide comemorativa ainda por descerrar.

É histórico, narrado pelos jornais, que nessa “manhã do dia 30 de


Novembro (de 1958) diante do n.º 4 do largo de S. Carlos, reuniram-
se os senhores (...) na intenção de descerrar nesse prédio uma lápi-
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de comemorativa do nascimento ali de Fernando Pessoa. A lápide
descerrou-se sozinha, contribuição amiga de uma inesperada raja-
da de vento tempestuoso”. O que já é menos conhecido mas vem
testemunhado por Joaquim Paço d’Arcos em livro depois publicado
(“Pascoaes”, Ed. SEC, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lx, 1980)
é que não só a lápide se descerrou sozinha como, nesse momento,
os ponteiros do relógio existente na fachada do Teatro de S. Carlos
começaram a girar velozmente (ponho eu: de diante para trás, da
direita para a esquerda) (em direcção ao passado).
É o que se busca ser dado nesta sequência: o discurso empolado,
apopléctico do orador ao microfone (em cenas mudas menos no
intervir da rajada tempestuosa), a lápide ainda encoberta, os senta-
dos que bebem água e saúdam, etc. E a rajada, já em sonoro, de
vento descerrando a lápide e abatendo-se sobre os homenagean-
tes, desorganizando e pondo prostração e debandada à cerimónia.
A lápide auto descerrada sobrepor-se-á progressivamente (ou não)
a imagens do relógio girando doidamente ao contrário. A imagem
escurece até ao negro absoluto. Noite cerrada. O largo do Teatro
de S. Carlos focado desde cima (desde o varandim que o limita ou
desde um andar alto do mesmo largo). Estão acesas as luzes do Te-
atro. Uma fila compacta de automóveis formando círculo gira em
torno do Largo. Por vezes pára e vê-se que sai gente em traje de
gala para o interior do Teatro. Avança a objectiva e vemos Persona-
gem sentado, com o seu guarda-chuva, no tejadilho de um dos au-
tomóveis. Perdemos de vista Personagem. O avanço em círculo con-
tinua. Ouve-se quase em surdina uma música: a “Chanson Hindoue”,
de Vicente d’Indy, se não estou em erro e vai bem grafada.

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46
Cartaz anunciador de espectáculo:
TEATRO NACIONAL DE S. CARLOS
Hoje
RÊCITA DE GALA
em beneficio do Governo da índia no Exílio
Quarteto de Dádrá-Nagar-Aveli
Com o maestro
ARTURO LAPINSKY
Ea
CONDOR
na
NORMA de BELLINI

Interior do hall de entrada no Teatro.


Espectadores entram e permanecem ou dispersam-se. Vê-se o Quar-
teto que toca, agora mais forte, a Canção Hindu. Ninguém lhe liga
nenhuma.
Ruído de orquestra a afinar os instrumentos como sempre acontece
nas audições. Desde o lado do palco a câmara foca a entrada dos
espectadores. Pormenor singular, quando alguns deles se sentam
logo a sua imagem desaparece focando-se a cadeira ou cadeiras
vazias. Far-se-á isto umas três vezes. Na vez final, são todos os ocu-
pantes de uma fila central que desaparecem.
A câmara rasteja pelo corredor do centro da sala até ao hall deser-
to. Ali, o Quarteto Dádrá-Nagar-Aveli arruma os instrumentos e sai
com eles, como a furto, em caixas minúsculas.
Numa das portas vidradas da entrada do hall, rosto de Personagem,
no lado exterior dos vidros, olhando para o hall deserto. Acentuam-
se os servis afinadores da orquestra. A porta encaixilhada dourada
por onde espreita abre-se de par em par, lentamente e sem que
alguém lhe toque. Personagem, agora visto de corpo inteiro, per-
manece imóvel, como se ainda encostado à vidraria exterior da por-
ta ainda fechada. Personagem desaparece do imóvel. A porta fe-
cha-se de novo sozinha, mas desta vez rápida, com ruído de gonzos
e estrépito final, que se repercute.
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Adenda: Na sequência da entrada dos espectadores na sala do tea-
tro, vemos ainda entrar no camarote real três personagens, um de-
les baixo e magro, pessoa importante – vê-se – fardado de capitão
do exército. E, na aparência, afável e modesto. Os outros dois são,
um muito gordo e outro muito alto e ambos muitos servis, sempre
atrás do homem fardado, estejam de pé ou sentados. Um deles traz
um telefone à antiga debaixo do braço, aparelho que coloca com
muita precaução no parapeito do camarote, frente ao homem far-
dado. Este verifica se o telefone está a funcionar bem. Diz “está?
está?”. Depois desliga, satisfeito.

Sala do Teatro, ao baixar das luzes. Apaga-se o grande lustre. Pal-


mas para o maestro Lapinski que entra e ocupa o seu lugar e agra-
dece. É caricato, muito alto, muito magro, muito novo. Tem nas
costas, nítida sobre a casaca, uma clave de sol. No colarinho, mais
pequena e como gravata, uma clave de fá. Grande foco luminoso
para o centro do palco, cujo piano permanece fechado e onde sur-
girá a Condor. É medonha, imensamente gorda. Grande estrépito
de aplausos que depois cessam. Condor não agradece.
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Maestro faz questão de perguntar a Condor se pode dar início.
Condor não acusa a recepção do gesto, ocupada em ajeitar a trapa-
ria renascentista que veste. Maestro repete o gesto, batendo com a
batuta, a Condor vê e faz sinais com os braços erguendo e baixando
os cotovelos. Maestro compreende e espera. Dois serventes surgem
dos bastidores conduzindo um cadeirão tipo cadeira eléctrica de
execuções USA. Dispõem o cadeirão. A Condor instala-se nele com
evidente à-vontade. Os serventes propõem-se ajustar-lhe a cabeça
ao arco metálico respectivo. Condor recusa, graciosamente. Palmas
do auditório, invisível. Os serventes insinuam à Condor as correias
de amarrar os braços da cadeira. Condor, sorrindo, dispensa. Saem
os serventes. Abre-se o pano de boca, a toda a largura do palco que
se mostra vazio, sombrio, sem qualquer aparato. O público invisível
faz um sentido AH!:.. Condor indica ao maestro que está pronta.
Maestro ergue a batuta. Seguindo o movimento da batuta no ar, a
câmara sobe até chegar à cornija em ornatos de madeira dourada
que encima o palco, confinando com o tecto. Através dos interstí-
cios do ornato está o rosto de Personagem, espreitando atenta-
mente o que se passa em baixo. Com esta imagem, grande chinfrim
da orquestra que ataca uma abertura melodramática (pode ser a
abertura da “Carmen” de Bizet, bem puxada à sustância e executa-
da até onde convier. Findo, o naipe de cordas inicia e mantém um
pizicatto todo ele sobre a mesma nota). Aplausos calorosos. Por
fim, silêncio total.
Focagem da Condor sentada. Vai começar. A orquestra dá um dó,
ré, mi, fá, sol, fá, mi, ré, dó. A Condor repete.
A orquestra faz dó, ré, mi, fá, sol. A Condor vai repetir, mas quando
chega ao fá, emite primeiro uns gemidos, depois uns gritos terrí-
veis, agitando-se-lhe todo o corpo como se estivesse a ser feroz-
mente torturada.
Plano do camarote real, onde o homem importante, fardado, visi-
velmente incomodado, pega no telefone e liga dois algarismos. O
telefone toca numa habitação sombria, onde vagamente se entre-
vê um cadeirão semelhante ou quase ao da Condor.
Mão que pega no auscultador e boca (só boca) que diz:
“Estamos”
Imagem do importante no camarote real (talvez só a boca tam-
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bém?) que diz:
“Não pode ser! Está-se a ouvir aqui!”
Boca do outro lado:
“O senhor Director desculpe, estamos quase no fim...!”
“No fim? No fim de quê?” (em imagem)
“O senhor Director dirá...” (em imagem)
“Hum... façam o intervalo. Depois vou aí...” (em imagem)
Desliga o telefone, com enfado.
Durante a conversa telefónica continuaram a ouvir-se, mas muito
em surdina, os desmandos sonoros da Condor. Estes cessam quan-
do, no camarote real, o importante cessa de falar ao telefone, se-
guindo-se imediatamente silêncio da Condor que, no palco, se re-
compõe e vai recomeçar.
De novo, maestro, e de novo, a Condor. A orquestra, agora, ataca o
início do “Zaratustra” de R. Strauss, mas com as quintas e as oitavas
erradas introduzindo um desalinho harmónico insuportável.
Imagem da Condor que do grave aos agudos lança também oitavas
fora do sítio, suspendendo-se num agudíssimo que só exaure quan-
do, deslizando pela cadeira abaixo cai no chão. Cessa a música.
Aplauso frenético, e visível, do publico, de pé.
A Condor levanta-se penosamente, agradece e volta para a cadeira,
a que se apoia agora com uma das mãos, sem se sentar nela.
Música. Desta vez é, na orquestra, a “Chanson Hindou” que a Con-
dor acompanha sem letra, substituindo esta por lá...laralalá..., etc.
Começam a rebentar lâmpadas e pingentes dos pequenos lustres
da sala aos quais se seguirão os do grande lustre central.
No palco, a cadeira da Condor estremece e começa a desarticular-se
como sob um tremor de terra, lança para a plateia um par de ban-
darilhas e outro de cornos de touro, um par de sapatos de homem,
outro de senhora, e, por fim, petardos que vão explodir na sala do
Teatro e no camarote real, já vazio, tudo com muito fumo, O públi-
co amotina-se e foge, em tumulto. Alguns sucumbem ao medo e
são arrastados pelas respectivas esposas que procuram safá-los, pu-
xando-os pelos pés. No seu estrado, ou ainda correndo pelo fosso
da orquestra, cujos músicos já fugiram também, vemos o maestro
com um pau e rede de caça às borboletas, tentando apanhar no ar
alguns petardos. Não consegue, mas demonstra grande gosto e ex-
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celente fair-play desportivo, como se de há muito habituado àqui-
lo. Sai, saindo pelos bastidores do palco, em perseguição de um
petardo.
No palco, a Condor, quase inanimada mas ainda profícua, e assisti-
da por serventes, que munidos de pás e picaretas cavam no chão
um círculo em volta da cadeira que, com um soluço de fumo bran-
co, deixa de participar.
Como num defeito de projecção, paragem por breve tempo da ima-
gem da cadeira, meio-desfeita. Depois, como por projecção de sli-
des, imagens da cadeira reconstituindo-se sozinha até se apresen-
tar incólume, sem nenhuma das escoriações sofridas e, por assim
dizer, pronta para outra.
Silêncio prolongado, vendo-se o palco deserto, só, em primeiro pla-
no, a cadeira reconstituída e luz só no fosso da orquestra.

Écran negro.

Personagem sai pela porta que lhe deu acesso, no último piso do
teatro, ao interior da cornija, e desce pela escada interior lateral
que, supõe-se, subiu. Desce lento, sem esforço algum (pode utilizar-
se o retardador) sob uma luz sombria, como pairando (sem nunca
dobrar esquinas de patamar), até ao último piso, no solo.
Personagem, de pé, na plateia, junto à porta esquerda do fosso da
orquestra, de frente para a objectiva. Tem consigo o seu guarda-
chuva fechado. Percorre com os olhos o recinto do Teatro vazio, de
onde sobem ainda alguns cibinhos de fumo. Senta-se displicente-
mente no parapeito do fosso da orquestra, abre um maço de cigar-
ros, acende um com uma caixa de fósforos, lança o fósforo ainda
aceso para o chão. Depois de duas baforadas, deita fora o cigarro,
ainda aceso, salta para o parapeito do fosso da orquestra, abre o
guarda-chuva, e inicia um passeio de equilibrista, a passo lento, so-
bre o parapeito. Muda de uma para outra mão o guarda-chuva,
estica no ar o pé e a perna, etc. Isto deverá ser feito por um equili-
brista profissional, que mantém a figura de Personagem. Chegado
a meio do percurso, frente à estante do maestro, escorrega ou algo
lhe sai mal, ou toma sentido da inutilidade daquela prova. Saindo
do parapeito, fecha o guarda-chuva, fecha os olhos e queda-se en-
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51
costado ao parapeito como num grande abatimento ou num gran-
de sono. Boceja.
Travelling da câmara, breve, e primeiro algo lento e depois em ace-
lerado, partindo da figura de Personagem até mais ou menos ao
meio da sala, pela coxia central. Aí chegada, retrocede, já em gran-
de velocidade, até à figura de Personagem que, como preso de um
ataque de fúria, se ergue num salto, pega no guarda-chuva fecha-
do e arremessa-o contra a cadeira da Condor.
Imagem do guarda-chuva furando o espaço que, nesta sequência
será muito mais extenso e fantasmagórico do que a distância real
do fosso ao palco. Neste percurso, o guarda-chuva, como enfren-
tando fortes ventos contrários, perderá primeiro o pano preto que
o envolve, depois as varetas que se lhe reviram e saem, depois o
cabo surge segurado por mão e braço de manequim, depois surge-
lhe ao lado, ou em transparência, o relógio (só o mostrador) da fa-
chada do Teatro, com os ponteiros a rodar velozmente, mas agora
da esquerda para a direita, depois a mão e o cabo lançam chispas
como motas em excesso de prova, depois e enfim, o guarda-chuva
é um dardo que corre sozinho e livre no espaço e vai cravar-se no
espaldar da cadeira de Condor. Esta oscila batendo três vezes no
chão, e desajunta-se até ao desaparecimento.
Ao terceiro estrondo, reinício do “Zaratustra” de Strauss (dado sem
orquestra), agora executado correctamente, e Personagem retoma
o seu percurso de equilibrista, já sem guarda-chuva, retomado des-
de o ponto da estante do Maestro, até ao fim do parapeito do
fosso da orquestra, à direita do palco (visto da plateia).

Écran branco e silêncio total.

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52
Personagem de novo na rua. Vemo-lo aparecer no Chiado; desce
dobrando a esquina da Rua Ivens para a Rua Garrett. Vem ligeiro e
contente. Nova dobragem de esquina, para a descida da rua onde
estão os Armazéns Grandella. Quando chega ao Grandella, depara
com uma montra intensamente iluminada. Estaca diante dela: é de
muita profusão de manequins de homens e mulheres com trajes de
várias modas, militares e civis os homens. Entre estes há um mane-
quim fardado de marinheiro da armada portuguesa, farda de ve-
rão. Personagem, como fascinado, cola o corpo, o rosto, os braços
abertos, ao vidro da montra. Depois de visto de costas, vemo-lo
focado desde o interior da montra, através do vidro, com uma ex-
pressão, nos olhos, de espanto, depois de alegria imensa. Fita o
manequim fardado à marinha, que parece fitá-lo a ele. A câmara
sai para a rua, sobe lentamente pelo edifício do Grandella, pára um
momento no dístico daquela casa, “Sempre por bom caminho” e
segue: continua para cima e foca a passerelle do elevador de Santa
Justa. Neste momento, irrompem as vozes e os acordes do coro fi-
nal da “Paixão segundo S. Mateus” de Bach, enquanto a câmara
baixa de novo, foca Personagem, de costas, sempre colado ao vidro,
foca de seguida o manequim fardado, que sorri para Personagem.
Rosto de Personagem, transfigurado e muito belo, transtornado
como se estivesse a vir-se.
Manequim, com o braço esquerdo, arranca o braço direito, sem es-
forço e sem outro movimento (o braço ainda fardado) e passa-o a
Personagem, através do vidro. Personagem recebe-o com todo cari-
nho (fim da transmissão da “Paixão segundo Mateus”). Bruscamen-
te, deixa a montra e continua a descer, com o braço do manequim
debaixo do braço. Agora desce veloz pelas Escadinhas de Santa Jus-
ta até à Rua dos Sapateiros (sempre a “aparecer” onde há uma es-
quina de viragem) e detém-se na bilheteira do velho cinema exis-
tente junto ao Arco que dessa Rua dá para o Rossio. Compra
bilhete e entra. Vemo-lo instalar-se na plateia, acomodar-se e fitar
o écran.

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53
Passam um filme de cowboys, com cavalos e tiros.
Porém, a pouco e pouco (ou como se quiser) cessam
os tiros e os cowboys, dando lugar às imagens,
uma por uma, que se sucedem no meu poema
“Autoractor” e começam no verso “A cena repre-
senta” e terminam no verso “Em baixo corre o rio
da pestilência”.
Com a representação cinética destes dois versos
pode (e talvez deva) ouvir-se a música do “Sonho
de uma Noite de Verão’ de Mendelsson.

Écran branco. Écran negro. Em negro, ouve-se o


canto alentejano, música e letra:

Vai colher a silva


Meu lindo amor, vai
Se ela te picar
Não digas ai, ai
E não digas ai, ai
Não digas ai, ui
Vai colher a silva
Vai que eu também fui

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LUIZ PACHECO
GRANITO? NÃO, OBRIGADO
fotografia MICAEL PÓVOA

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Se há sítio no mundo aonde tenha medo de ir parar,
tombar, ser ambulanciado, é esse o banco do Hospital de S. José,
em Lisboa. Quase meio século de experiências comigo, ali, aler-
tam-me do aviso Perigo de Morte o qual, à entrada do chamado
«balcão dos homens», invisível para outros, para mim claramente
visto e sentido, refulge a vermelho vivo – talvez, do muito sangue
dorido que por ali corre –, e me obriga às maiores prudência/paci-
ência/vigilância (atentas) sempre que trespasso aquele portal da
desventura. Quantas e quantas vezes, crises asmáticas agudas,
cardiopatias até imaginárias, ansiedades súbitas ou mesmo uns
copitos a mais, a muito mais que a conta do meu aguentar, fui a
correr, meti-me num táxi e recomendei pressa, carro amigo me
levou, chegado ao banco me deixei ficar na sala de espera, balan-
çando entre a aflição e o meu pavor do guichê. Até que coisa
passe e me ponha a pirar, porreiríssimo.
Azar. Há dias enfiei resoluto para o tal «balcão». Eram
7.20. Asma. Uma noite de respirar-não respirar, vá de bomba azul,
vá da castanha, um calmante, logo café forte abrir a clarabóia
para oxigenar, abanicar-me com um jornal dobrado, finalmente
um supositório de Neufil-A e, alegria das alegrias, a luz da madru-
gada chegando. Banco de S. José. O costume: aminofilina veia,
oxigénio na venta. Desta, porém, não. Aguardava-me um impla-
cável homem de bata branca; direi um dr. propedêutico ou perifé-
rico, em fim de turno, chateadíssimo de aturar mazelas alheias – e
qual a minha culpa? Contei-lhe a minha história: não quis acredi-
tar. Asma hereditária, primeiro ataque aos 3 meses de idade; en-
fisema pulmonar bilateral diagnosticado desde 1948, por via de
um seguro de vida que então fiz. Saída recente de um sanatório.
Dr., por favor, venha a terapêutica habitual e piro-me já!
Não era assim tão fácil. Estava perante um fulano opi-
nioso e teimoso, como tive depois o desprazer de verificar.
Pergunta seca: «O senhor trabalha com granito?» Olhei-o. Ele ti-
nha a papeleta de inscrição na mão, diante do nariz. Lá vinha,
glosando o título da peça do Santareno mas autêntico: Português,
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58
Escritor, 56 Anos de Idade. Naturalmente, sem acrimónia, respon-
di: «Geralmente é com esferográfica... granito, não, obrigado!» E
fiz questão de espetar o dedo nas indicações da papeleta. Reagiu,
áspero: «A minha pergunta não era destituída de lógica. Há escri-
tores que carregam com pesos maiores.» Boa! Nunca tal vira nem
o soubera. Mestre Vergílio Ferreira nunca refere, no seu (dele)
«Livro Negro» que é a Conta-Corrente, andar a carregar pianos
sextos andares escusos. O meu Presidente da APE, Dr. Urbano Ta-
vares Rodrigues, não me consta que pratique matinalmente o
exercício de descarregar a saca-de-orelhas com batatas para o
mercado da Ribeira.
LÓGICA?: Nem por isso. Nadinha. Mas aquilo que pensa
um asmático, em ânsias de dispneia, não chega ao acontecimento
oral audível. Mia, logo existe. Falar alto não lhe apetece. Pois o
que então teria dito ao dr. propedêutico ou vestibular ou perifé-
rico, era muito mais lógico. Isto: um sujeitinho com mais de meio
século de mal asmático, não analfabeto dada a profissão, é natu-
ral que saiba algo de si, da sua doença, dos métodos de cura,
prevenção, do seu comportamento patológico. Até sei, infeliz-
mente. Em asma, e noutras coisas, sou o eterno convalescente,
percebe-se. Ó asmáticos sexagenários!, ouvide, ouvide, dai-me ra-
zões de apoio. Percorri, desde o Verão de 1925, toda a evolução
da terapêutica anti-asmática: pós da Abissínia, cigarros espanhóis
Bel-Saúde – cheiro dos «charros» actuais, ainda mais enjoativo,
talvez; papas de linhaça, peito e costas, com ou sem mostarda.
Uma coisa horrorosa e numa embalagem de pavor, um energú-
meno a deitar chamas pelos bofes, chamada algodão termogé-
neo; estadias anuais nas termas das Caldas da Rainha, desde a
piscina às inalações; ventosas. Nem me façam chorar mais. E, tam-
bém, provavelmente, teria feito, «testes», para determinar as cau-
sas próximas, imediatas da minha alergia. Fiz. No hospital dos
Covões, perto de Coimbra, em 1977. Nem me deu grandes novida-
des: pó de casa – se vejo uma vassoura, fico sufocado –, certos
cheiros; tintas. E toda e qualquer espécie de poluição, incluindo a
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59
mental, dita Estupidez. A pergunta do dr. propedêutico iria cau-
sar-me uma crise, não a trouxesse comigo de casa; ali, descon-
traiu-me, a vontade de rir regularizou-me os movimentos do dia-
fragma. Siga o desenrolar, que em diante, para mim, era já e
apenas uma farsa, O periférico encostou-me o estetoscópio no
peito, nas costas, com a ligeireza de quem está a tocar num botão
de elevador automático. E sentenciou: «o sr. não tem tórax enfise-
matoso... vai tirar uma chapa!». Fui, O ritual habitual, depois
«agora espera aí um bocadinho lá fora», passa a Maria Helena,
minha ex-esposa muito meiga, enfermeira, «que estás tu aqui a
fazer? desculpa, mas já estou atrasada», sou chamado ao posto de
radiologia. Na chapa, faltava um pulmão, sou informado. Para
quem, como eu, saíra há poucas semanas de um sanatório, onde
o fenómeno de pulmão mais-menos era vulgar, não me admirei.
Nova chapa. Com, agora, dois pulmões, os meus. Sou portador da
mesma ao «balcão dos homens», entrego, vagamente oiço dizer
que iam chamar um especialista.
Por esse tempo, 8 e picos, o movimento do banco come-
ça a acelerar. Pares de bombeiros-maqueiros despejam a sua co-
lheita de estropiados, gritantes moribundos. Muito distractivo. A
nossa defesa é um esforço de desumanização: não se meter na
dor alheia, no seu conhecimento, deixar andar. Morra quem vi-
veu, salve-me eu. Tronco disponível e quase despido para novas
deduções do propedêutico, que passava por mim a, possivelmen-
te, avaliar quantos gramas de granito eu podia elevar e por quan-
to tempo e espaço, olho, paro e aguardo. Demos tempo ao tem-
po. Curiosidades de saber como aquilo iria acabar. Daí a? uma
hora? não sei; a quatro metros do canto onde, visivelmente, eu
permanecia calmo e expectante, vejo o dr. propedêutico exami-
nar a minha chapa com outro homem de bata branca. E oiço-lhe:
«...mas a minha opinião é esta». A princípio, não entendi. Mais
adiante, entendi: o propedêutico requisitara um meio científico
de diagnóstico. Perante ele, não se desdizia. E não mais o vi (nem
desejo, calcula-se).
365
60
Já havia, sentados a uma mesa, duas propedêuticas e
mais dois periféricos, turno fresco. Discutiam temas profissionais,
e quem lho poderá levar a mal? Tinham dormido, estavam arden-
temente desejosos de mais um dia de trabalho. Ouvi: «Estes tipos
do futebol, que ganham aos duzentos e trezentos contos por mês
e só fazem asneiras, uma vergonha! E a gente práqui a fossar...»
«Gosto muito de ler A Bola» Etc. Etc. Etc.
Foi quando, eram 9.45, me levantei do meu canto, e me
dirigi a uma dr.ª mais atenciosa, que queria, à viva força, que um
negro, motociclista, choque ou queda (braço partido, coxa parti-
da, me disse o maqueiro) estendesse as pernas, lhe fui falar e per-
guntei, com muita correcção e naturalidade: «Sr.ª dr.ª, qual é, afi-
nal, O MEU problema? ou qual é O VOSSO?» Tentou passar-me
uma rasteira, peculiar naqueles locais: «O sr. já se inscreveu lá
fora?» A manobra é: tentar chutar o paciente para o recomeço do
processo. Conheço o truque e fui categórico: «Já, já. Eram 7 e
vinte. Olhe, a minha papeleta está ali; já tirei duas chapas; seu
colega já viu. E agora, como é?» Não estava a brincar, ser irónico
inutilmente o meu tempo: queria saber exactamente o diagnósti-
co. Se aquela alma propedêutica que me atribuía forças atléticas
para lidar com granito como se fosse algodão, viesse dar-me, cer-
ta e garantida, a novidade que o meu enfisema era mera fantasia,
este vosso doentinho rejuvenescia, que milagre estival! Nada: a
chapa tinha-se extraviado. O dr. propedêutico fora dormir. Infor-
mei-me do nome. Vou socorrer-me dele, através do que se deno-
mina «medicina convencionada», isto é, pagando-lhe e bem no
seu consultório. À cautela, não levo esferográfica. Mas uma moca
tipo riomaior. Sei como a consulta termina, quando ele me apre-
sentar a factura.

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Miguel Esteves Cardoso
TENHO OS MEUS OLHOS NOS FIGOS
e
fotografia Micael Póvoa
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Tenho os meus olhos nos figos:
Quando vai ser o tempo?
Estou tão fodido, em termos de:
Quem me me tirou
O que eu
Tinha?

E então:
…sou ou não sou?
Um cabrão?
Um amigo das estepes?
Um percebe?

A solução da manigância no meu seio,


O mundo da puta nas mãos.

Porquê agora?
Se eu não me meti com nada;
Muito menos com ninguém.

Quem pôs em causa que o Magoito?


Quem me phodeu?
Quem me phez assim?
O meu sangue, na minha pele,
Deitado mal.
Mais as hastes nos olhos.

Já não me governo
Com tão pouco.
Rendo-me à sola
Dos sapatos.
Vão-se foder todos:
Estou livre.
Ou livrem-se todos:
Estou fodido.

Vem dar ao mesmo.


Temos que ser uns para os outros.

Eu não sei o que isso quer dizer.

Adeus.
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jorge palma
o fim do verão
ilustração alex gozblau

Deu um pontapé numa folha e saiu-lhe uma pedra,


daquelas saídas do chão. Teso, demasiado novo, à mercê
dos ídolos. A miúda deu-lhe com um sorriso, o chavalo mais
velho ganhou-lhe fortunas ao póker, imaginárias pois, que o
pai mandou-o p’ra outro país, imaginário ainda. Era o tempo
dos gatos selvagens, o cavalo chegou-se à égua, ela a escoicear,
ele a empinar e o puto a cair e a desmaiar. Depois chegou
a escola, outro liceu, e quando chegou o fim do Verão sobre a
praia a gente tem de se deixar, talvez p’ra sempre. Esquecer
essa praia é difícil, deram cabo dela, não era uma praia, era
uma fronteira linda entre areia e mar, sem barreiras. Homem
a cantar na praia, no colégio interno, porque muita gente se
estava a portar mal, putos a aprender física, matemática, músi-
ca, e a esquecer essa praia, e os primeiros beijos sempre às
escondidas nalguma folha de geografia. E ao lado dos soldados
a caminho da guerra ao som de B-Gees (Massachussets), sem-
pre no fim do Verão, o miúdo a tentar ser desvirginado, até que
conseguiu nalguma esquina malvada, um pouco tarde, entre
o Sul e o Norte, na verdade não se sabe bem, mas foi mais
pró centro. Quando lhe disseram que tinha uma obrigação, foi
passear até à praia, esse puto não acredita no fim do Verão.

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