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Y
#30
ALBERTO PIMENTA
CLARA FERREIRA ALVES
JORGE PALMA
LUIZ PACHECO
MARIO CESARINY
MESTRE MARCELLO
MIGUEL ESTEVES CARDOSO
RUI MANUEL AMARAL
RUI REININHO
Seja responsável. Beba com moderação.
A grande novidade deste novo número da 365 – o 30 – em re-
lação ao anterior, é que mantém o tamanho. Ainda nos passou
pela cabeça encolhê-la, mas o tipógrafo pediu-nos clemência,
que «os meus olhos já não são o que eram», etc., etc., e, por
isso, ficámos quietinhos. De resto, trata-se essencialmente de
outro best of, com textos recuperados de edições anteriores – e
um inédito (além do horóscopo para o próximo semestre, que
Mestre Marcello teve a gentileza de nos enviar).
António Gregório
365
01
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Fernando Alvim
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EDITOR
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Alberto Pimenta, Alex Gozblau, Clara Ferreira Alves, Deniz Akseki, Joana Linda, Jorge Palma, Luiz Pacheco,
Mário Cesariny, Mestre Marcello, Merve Engin, Micael Póvoa, Miguel Esteves Cardoso,
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Ginocar
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PROPRIEDADE
Cego, surdo e mudo
— produções multimedia
MECENAS
Robin Hood
CAPA
Alex Gozblau
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02
01 Editorial 04 Cúmplices 06 Mestre Marcello O Horóscopo
12 Alberto Pimenta Foi uma sorte 14 Rui Manuel Amaral
Cinco histórias nocturnas 16 Entrevista Quem é Miguel
Ángel Valero? 32 Passatempo 365 Descubra as diferenças
34 Rui Reininho [sem título] 36 Clara Ferreira Alves O Sonho
40 Mário Cesariny A Norma de Bellini 56 Luiz Pacheco
Granito? Não, obrigado 62 Miguel Esteves Cardoso Tenho
os meus olhos nos figos 64 Jorge Palma O Fim do Verão
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03
CÚMPLICES
Adolfo Luxúria Canibal nasceu em Luanda, em 1959. É músico, poeta
e tradutor. O conto «O Ás de Espadas» foi publicado no número 2, em
Dezembro de 1997.
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O
HO
CARNEIRO
AMOR: Este ano vai interessar-se por
um(a) colega de trabalho. Vai andar
meses a remoer nisso. Depois vai ten-
RóS
tar seduzi-lo(a) mas não vai conseguir
nada. Talvez até consiga uma vez, mas
é por pena.
SAÚDE: Algures durante este ano, vai
CO
cair e pode partir uma perna.
DINHEIRO: Vai meter-se num esque-
ma em pirâmide semelhante àquilo da
Bolha, mas com outro nome para as
PO
pessoas pensarem que, agora sim, é
legítimo e dá mesmo dinheiro a toda a
gente. Acabará por ganhar uma boa
soma, que, todavia, irá toda para pa-
DO
gar uma conta que você não estava
nada à espera.
OBJECTO DA SORTE: Figo-seco
MES touro
AMOR: Este ano vai ter vários(as) pes-
TRE
soas interessadas em si, mas não se vai
relacionar com nenhum(a) porque se-
rão todas piores que o seu(sua) ante-
rior namorado(a). Se beber muito, vai
MAR
desejar essas pessoas e acabará por
trocar sms com elas. Mas não passará
disso.
SAÚDE: Há fortes hipóteses de apa-
CE
nhar uma micose se for à piscina.
DINHEIRO: Vai alugar um DVD antes
de ir de férias mas vai esquecer-se de
devolvê-lo. Depois, regressando das
LLO
férias, vai pagar uma nota preta pelo
aluguer.
OBJECTO DA SORTE: Ficha tripla.
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gémeos
AMOR: Durante este ano, o(a)
seu(sua) namorado(a) não lhe vai
Leão
AMOR: Algures neste ano, vai ficar
atender o telefone por várias vezes.
preso(a) num elevador na companhia
Você vai ficar desconfiada(o) com ra-
de algumas pessoas. Enquanto espe-
zão, porque ele(a) o anda a enganar.
ram por um técnico, vai ter uma agra-
No entanto, ele(a) vai ter sempre uma
dável conversa com uma delas e pode
boa desculpa, pelo que nunca saberá
até se apaixonar.
de nada.
SAÚDE: Tenha cuidado. Este ano, um
SAÚDE: O seu dentista vai ter um de-
médico menos atento vai enganar-se
sastre de automóvel e pode ficar inca-
num diagnóstico e vai medicá-lo(a)
pacitado para lhe tratar dos dentes.
contra a doença errada.
Esteja atento(a).
DINHEIRO: Um amigo que já não vê
DINHEIRO: O snack-bar ao lado do
há muitos anos vai contactá-lo(a) para
seu trabalho vai subir o café para 0,65€
pedir dinheiro emprestado. Não lhe
e o galão e a meia de leite para 1,10€.
empreste dinheiro: é para esturrar no
A meia de leite, hoje, é mais barata
jogo.
que o galão, mas quando subirem vão
OBJECTO DA SORTE: Bugalho
custar o mesmo. Prepare-se para estes
encargos adicionais.
OBJECTO DA SORTE: Carica.
Caranguejo virgem
AMOR: Vai envolver-se com uma pes-
AMOR: Este ano vai ter sorte no amor.
soa casada. Sujeita-se a levar um tiro.
Vai apaixonar-se por uma pessoa e
SAÚDE: Vai engasgar-se com um osso
essa pessoa também se vai apaixonar
de frango e vai ser salvo(a) por um
por si. No início vai parecer difícil, por-
empregado do restaurante, que lhe
que essa pessoa não lhe responde às
faz a manobra de Heimlich. Vai ficar
mensagens, mas afinal era porque
muito agradecido(a) a esse emprega-
não tinha saldo.
do, por lhe ter salvo a vida, mas sem-
SAÚDE: Este ano vai ter, pelo menos,
pre que se cruzar com ele na rua vai
três doenças. Intoxicação alimentar
fingir que o não vê.
conta como doença.
DINHEIRO: Algures neste ano, vai
DINHEIRO: Quando chegar o calor,
deixar passar o prazo para pagar a
vai encontrar uma nota de 5€ num bol-
conta da água pelo multibanco e vai
so dumas calças de Verão. Vai ficar
ter que ir pagá-la à sede.
contente.
OBJECTO DA SORTE: Moeda de 2 e
OBJECTO DA SORTE: Também é
quinhentos.
carica.
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Balança
AMOR: Vai descobrir que o seu pa-
trão está envolvido com uma colega
sua do trabalho. Vai ficar revoltado
porque estava apaixonado(a) por um Sagitário
deles. AMOR: Se cuidar bem da sua higiene,
SAÚDE: O seu médico vai mandá- terá sucesso com o sexo oposto.
lo(a) fazer exercício. Vai fazer durante SAÚDE: Num jantar de amigos, levará
um mês mas depois desiste, porque uma facada sem querer. Fique
tem nojo de usar aqueles balneários. tranquilo(a), não será muito grave.
TRABALHO: Vai faltar ao trabalho DINHEIRO: Um caixa Multibanco vai
uma série de dias seguidos, revoltado comer-lhe o cartão. Previna-se com
com um qualquer assunto. Isso passa- numerário, trazendo sempre gordas
lhe, mas quase que é despedido. No notas na carteira.
fim, tudo vai acabar com o seu patrão OBJECTO DA SORTE: Salazar (utensí-
a ralhar-lhe e você a ouvir lio de cozinha)
caladinho(a).
OBJECTO DA SORTE: Goleador do
Cola Cao.
Escorpião
AMOR: Este ano é que vai ser. Capricórnio
SAÚDE: Algures neste ano, após dar AMOR: Não.
uma corridinha para apanhar um SAÚDE: Sim.
transporte público, vai dar-lhe a fra- DINHEIRO: Não.
queira. Porém, comendo um doce, OBJECTO DA SORTE: Caderno de
sentir-se-á melhor. linhas ou quadriculado.
DINHEIRO: Este ano vai ter que ir às
Finanças fazer aquela coisa de mostrar
as facturas e os talões, para conferir a
veracidade da sua declaração de IRS.
OBJECTO DA SORTE: Palmilhas de
cortiça, para ficar mais alto(a).
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Aquário
AMOR: Se tiver alguém interessado(a)
em si, vá dando trela sem se envolver,
só para ir alimentando as expectativas
em relação à coisa. Ter alguém interes-
sado em nós é sempre bom para o
ego, mesmo que não se goste dessa
pessoa.
SAÚDE: Estatisticamente, este será o
ano em que urinará mais, de todos os
da sua vida.
DINHEIRO: Este ano vai ter que trocar
as notas de 5 e 10 contos que tinha
guardado para colecção.
OBJECTO DA SORTE: Nota de 5 ou
10 contos.
Peixes
AMOR: Uma relação amorosa mal Bebé
precavida poderá render-lhe uma in- AMOR: Vão dar-te muitos miminhos,
jecção de penicilina. bebé.
SAÚDE: Uma relação amorosa mal SAÚDE: A mamã não te vai dar a pan-
precavida poderá render-lhe uma in- cadinha nas costas, e tu vais bolsar
jecção de penicilina. tudo, bebé. Mas não faz mal, a mamã
DINHEIRO: Quando limpar por baixo limpa.
dos assentos do carro, irá encontrar DINHEIRO: No teu baptizado vais ga-
mais de 30€ em várias moedas. A sa- nhar muitas prendinhas, bebé. Co-
ber: euro, escudo, peseta. lherzinhas de prata e um fiozinho de
OBJECTO DA SORTE: Calçadeira ouro. A avó até vai abrir uma conta no
banco para ir depositando dinheiro,
para comprares as tuas coisinhas,
quando fores mais crescido.
OBJECTO DA SORTE: Microfone
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G O D Ã O N Ã O E N G ANA!
OA L
CAMISOLA!
VISTA A
www.caoazul.com
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FOI UMA
UMA
SORTE
SORTE
alberto pimenta
fotografia tracy wright
fotografia wright corvo
corvo
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Avançávamos pelas ruas estreitas que vão dar
ao tribunal, ruas que vão estreitando sempre.
íamos com pressa, quase a correr, para não
perder a sentença. mas subitamente reparámos
que um homem à nossa frente, carregado
com dois sacos pesados, ia avançando e
vertendo quase imperceptivelmente o pó
dum dos sacos.
– cuidado! – disse o meu interlocutor – pode
ser veneno, maneira discreta de liquidar ratos,
crianças, gatos, sabe-se lá a potência do meio?
o homem avançava devagar, derreado, era
decerto para não atrair suspeitas. o meu
interlocutor decidiu-se a levar o dedo ao pó,
cheirou, estacou, e levou à boca... – é açúcar!
–disse em voz baixa, para o homem não ouvir.
– é açúcar! de resto, veja o formigueiro! o
homem deve passar aqui todos os dias! o
homem deve passar aqui todos os dias, e todos
os dias deixa cair um pouco de açúcar, ou como
é que se justificava este formigueiro? isto é um
castigo! – ou uma missão – disse eu, – o homem
está a atacar a cidade por baixo. as formigas
comem tudo. roem lentamente as vigas, as
travessas, as tábuas... – o melhor – disse o meu
interlocutor – é abordar o homem. eu vou, eu
vou. e avançou decidido. eu fiquei um pouco
para trás, e um pouco perplexo. mas nesta
altura já ele tinha chegado à beira do homem.
– desculpe, tem horas? o homem olhou com ar
cansado, pousou os sacos, limpou a testa e
disse: – não, não tenho. e boa falta me faz.
então o meu interlocutor, tal como tinha
procurado fazer comigo, tentou e
conseguiu vender-lhe um relógio, muito barato.
foi uma sorte.
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RUI MANUEL AMARAL
CINCO HISTÓRIAS NOCTURNAS
Z
HISTÓRIA DO DITO CUJO
M
QUANDO O SILÊNCIO CAIU EM VOLTA
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N
CONSEQUÊNCIAS DE UMA NOITE DE FOLIA
O TRASEIRO COMICHOSO
s
Um fulano entra à noite furtivamente no gabinete de trabalho
de um escritor famoso, esfrega as mãos e bebe um frasco inteiro de tinta.
Depois pousa o frasco no lugar, coça o traseiro comichoso e volta furtiva-
mente para casa.
No dia seguinte, o fulano começa a cagar histórias e transforma-
se num autor famoso. O outro, sem a tinta, pobrezinho, mergulha numa
crise de criatividade e acaba por morrer de desgosto.
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A que se deve, em tua opinião, o estrondoso êxito de Verão Azul?
Hoje em dia tudo gira em torno de audiências e o sucesso das séries de-
pende disso. Verão Azul era uma série muito simples, fácil de perceber.
Falava muito da vida das pessoas, da camaradagem. Penso que cada vez
mais se recorda com carinho e nostalgia os verões da infância e Verão
Azul é um pouco como as férias de toda a gente. Trata de questões im-
portantes da vida mas de uma maneira muito familiar, com algum sentido
de humor.
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Apaixonaste-te por alguém na série?
Não. Éramos só amigos. Eu tinha 9 anos e os outros da pandilla já tinham
13, 14 – com eles era outra história. Eu estava mais virado para as brinca-
deiras, para a aventura, tudo isso.
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e Desi quiseram seguir na profissão, mas na adolescência o corpo muda e
já não recebes as mesmas propostas de trabalho porque as pessoas con-
servam de ti uma imagem mais infantil. As duas trabalham em hospitais
em Madrid, são enfermeiras. Júlia dedica-se à sua profissão de actriz. O
mesmo com Chanquete, que até falecer, em 2000, foi actor e chegou a
ganhar um Óscar com o filme Volver a Empezar (melhor filme estrangeiro
em 1982), um dos primeiros Óscares do cinema espanhol. Estou certo que
em Portugal passou no cinema mas não é um filme muito comercial. Bem,
resumindo, vivemos todos em Madrid.
Menos o Tito...
Sim, que vive em Nerja. Tito tem uma história muito curiosa. Antes de
começarmos a gravar Verão Azul levámos daqui de Madrid um menino
para fazer de Tito. Mas quando começámos a rodar, não resultava. Não
ficava bem frente às câmaras, confundia-se com as luzes, ficava nervoso...
Também por lá estava o filho de um operador de câmara, experimentá-
mos com ele, mas também não deu certo. Mas havia uma criança que era
filho de um empregado de um restaurante da praia que insistia em entrar
nas cenas, como intruso. Acabou por fazer um teste com António Merce-
ro e tornou-se o Tito que todos precisavam.
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Por que razão a série não durou mais tempo?
Primeiro era para ter apenas dez capítulos, mas como as coisas estavam a
correr bem, gravámos mais dez. A série é feita para documentar um Verão
e um Verão acaba. Não é como uma sitcom norte-americana. Não se
queria fazer dinheiro, era contar a história de um Verão.
E um filme?
Verão Azul já é como um filme porque foi rodado em filme e não em ví-
deo.
Já eras tu...
Claro. Por exemplo: eu gosto muito de gelados mas de baguetes já não
gosto tanto. E no início davam-me baguetes de queijo, baguetes de mor-
talela... E eu não gostava assim tanto delas. Preferia gelados. E passaram
a dar-me gelados.
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Um amigo é um amigo...
Exacto. Tendo em conta que estivemos um ano e meio numa povoação
pequena como Nerja, criámos todos laços. Quando passaram vinte anos
sobre a exibição da série, um jovem de Nerja de quem me tornei amigo
durante aquele ano e meio, escreveu o único livro que existe sobre a série,
intitulado Antes, Durante y Después de Verano Azul. Esse livro compila
quase tudo o que pode ser dito sobre a série. Fotos, histórias... Teve uma
tiragem muito reduzida porque é uma edição da Junta de Freguesia de
Nerja. É um livro que tem os números todos da série. Quantos minutos
tem Verão Azul, quantas vezes foi repetido, os censos de Nerja...
Agora há o DVD.
É algo de muito recente. Soube disso na semana passada. Mas não tive-
ram a delicadeza de me dizer «olha, o Verão Azul saiu em DVD, toma lá a
colecção para ti».
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Ainda recebes alguns direitos pela série?
Praticamente nenhuns. E se não os reclamas, fazem ouvidos moucos.
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É isso que queres fazer toda a vida?
Sempre gostei muito de saúde e medicina. Mas também de telecomuni-
cações. O meu perfil profissional é este. Interessa-me aplicar as potencia-
lidades da tecnologia e pô-las ao serviço da saúde. Gostava mais de fazê-
lo em países desfavorecidos ou em vias de desenvolvimento, mas aí há
necessidades mais vitais, como a alimentação, a água potável, o controle
da violência. Acho que seria mais lógico trabalhar na saúde desses países
do que aqui na Europa, onde já não é tão necessário.
Os teus alunos conhecem a tua carreira infantil?
Os meus alunos são jovens, sabem a história, viram em vídeo ou em DVD,
mas não viveram o Verão Azul. Mesmo quando a série repete, há mais
canais de televisão, já não é a mesma coisa. Passaram muitos anos...
Quem a viu na década de noventa, viu-a como uma série do passado. É
como a música dos anos sessenta. Posso gostar dela mas não a vivi no seu
tempo. Ou um filme de John Wayne.
Casaste em 96 e tens dois filhos...
Uma menina de quatro anos e um menino com um ano. Parecem-se mui-
to comigo. Mas não são tão gorditos (risos). Eu nasci com 4,2 Kg. São
ruivos, clarinhos...
Por fim, onde estavas quando ocorreu o atentado de Madrid?
Estava em casa, que é muito perto da estação de Atocha, onde ocorreu o
atentado. Vi as coisas pelas notícias. Foi horrível... escapa à razão. Escapa
à razão o sistema social e humano em que vivemos. Convida mais ao
pessimismo do que ao optimismo, salvo iniciativas pequenas. A popula-
ção fica acomodada com as desgraças do planeta, fica habituada ao mal.
Existe muito cepticismo. Estamos num estado miserável, sobretudo quan-
do olhamos para África. A mim dá-me pena que política seja uma expres-
são negativa porque devia ser o contrário. A minha ideologia política...
não sei qual é. Não compartilho a maioria dos ideais dos governantes,
apenas umas opiniões isoladas de alguns. A minha perspectiva é social,
mas não me considero socialista porque há coisas que me deixam descon-
tentes. Também sou pela ecologia, mas não me considero ecologista por-
que também há coisas que não entendo. Sou contra um mercado em que
as regras sejam apenas a da oferta e da procura. Não sei. Nunca encontrei
um partido.
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descubra as diferenças
Entre estas duas imagens aparentemente iguais, existem oito subtis diferenças.
Divirta-se com os seus amigos assinalando-as!
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Entre estas duas imagens aparentemente iguais, existem oito subtis diferenças.
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Divirta-se com os seus amigos assinalando-as!
[sem título]
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rui reininho
ilustração alex gozblau
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CLARA FERREIRA ALVES
O
SONHO
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fotografia DENIZ AKSEKI
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Ela sentou-se na cadeira e disse
Tive um sonho, esta noite. Um sonho só com homens. O
primeiro era o meu pai, que estava a discutir com a minha mãe.
Parecia outra vez a minha infância. A minha mãe pedia ao meu
pai para não sair de casa e para ficar e ele ameaçava que se ia
embora. Ela agarrava-o e ele despegava-se. Ela implorava e ele
negava-se. Depois eu avançava para ele e dizia-lhe para se decidir,
ali e já. Ou ia, e nunca mais voltava, ou ficava e nunca mais saía.
Ele olhava para mim com medo e eu controlava-o através desse
medo. Ficou sem saber o que fazer, durante muito tempo, e de-
pois fui eu que o obriguei a sair. Expulsei-o de casa. O que a minha
mãe nunca teve coragem de fazer. Ele foi. Não o deixei olhar para
trás.
A seguir, sem se mexer na cadeira, imobilizada pelas pa-
lavras, ela continuou
Depois era o meu marido, ex-marido, para dizer a ver-
dade. Ele não sabia escolher, havia duas mulheres, eu e a outra.
Por um lado ele queria-me a mim, porque era mulher dele e ele
tinha medo das consequências, de perder os filhos, de sair de casa.
Por outro lado, queria a outra, porque estava apaixonado embora
desconfiasse daquela paixão. Passava as noites em claro, a tentar
decidir. Isto na vida, na minha vida. No meu sonho desta noite,
era eu que decidia por ele, era eu que mandava. Pu-lo fora, vio-
lentamente. Roupa pela janela, malas a voar, porta escancarada.
E tudo isto sem um grito, uma lágrima, um gemido, um pedido.
Tudo em silêncio, a frio. Exactamente o contrário do que aconte-
ceu há anos, quando ele me quis deixar. Quando chorei, gemi,
usei os filhos contra ele a meu favor. Ficámos juntos mais uns
anos, até ao divórcio. E tantas vezes desejei que ele se tivesse ido
embora. Tinha sido melhor. Desta vez, no sonho, senti-me bem,
como não me sentia há anos, desde a morte do meu pai. Eu de-
testava o meu pai.
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Agora ela mexeu uma mão, acariciou a face, puxou uns
fios de cabelo. Suspirou de leve
E no sonho, a seguir, era o meu filho. O meu único rapaz.
O meu preferido, nunca gostei de ter raparigas. O mundo não
gosta de raparigas. No sonho, o meu filho regressava a casa. Era
como se nunca tivesse saído. No dia em que ele morreu, lembro-
me de que andava inquieta desde manhã, ia à janela, as coisas
caíam-me das mãos. Instinto de mãe. Quando eram onze da noite
e ele ainda não tinha regressado soube logo que qualquer coisa
tinha acontecido. Quando o telefone tocou, antes de me falarem
no desastre e no carro desfeito eu já sabia a verdade. Sabia que
ele tinha saído de manhã com os amigos e que nunca mais voltar-
ia. Desde esse dia tenho estado como morta, você sabe bem, como
morta. Nunca perdoei ao meu marido, quis o divórcio, mas ele
não teve a culpa, ninguém teve culpa. O horror não tem culpa-
dos.
Ela sorriu, pela primeira vez em vinte anos
Você conhece estas histórias, você sabe bem como elas
nunca tinham fim. Até esta noite. Esta noite tive um sonho e sen-
ti-me bem ao acordar. Expulsei quem devia, fiquei com o meu fil-
ho. Vi-o como ele seria hoje, com 38 anos, e não como era quando
morreu, um rapaz. Vi um homem, bonito. Como ele seria. Acha
que preciso de cá voltar? Acho que nunca mais cá volto.
Ela levantou-se da cadeira, devagarinho. E saiu do con-
sultório.
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A Norma de Bellini
(script para um filme que nunca será)
Mário Cesariny
Ao João Rodrigues e ao José Leonel Martins Rodrigues
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O rectângulo municipal, preto-branco, indicador da Travessa do Co-
tovelo onde esta desemboca na Rua do Arsenal em Lisboa. Focar de
modo a que, depois, movendo a objectiva, se veja bem a Rua do
Arsenal, sem que no entanto desapareça a placa indicadora da Tra-
vessa do Cotovelo. Actualmente esta placa, que era a preto e bran-
co, foi substituída por azulejos (azul e branco). Reproduzir a placa
antiga.
Ágoa complente
Ágoa estofa
Ágoa quebra
Écran negro.
Dia claro
Personagem Sai da porta n.º 37 da Travessa do Cotovelo, enfia rapi-
damente pela contígua Calçada do Ferragial. O percurso prossegui-
rá pelas ruas Vítor Cordon e Duque de Bragança até ao Largo do
Picadeiro, nas traseiras do Teatro-Cinema S. Luís, nas da PIDE e na
lateral do Teatro S. Carlos. Este percurso, todo em subidas íngre-
mes, será especialmente sublinhado pelo aparecimento, na ima-
gem, da figura de Personagem de cada vez que ele dobra uma es-
quina (de uma rua para a Outra) surgindo para a objectiva. Pode
repetir-se até à inconveniência esta forma de aparecer, ao mesmo
tempo que Personagem começará a dar mostras de cansaço.
Quando por fim estaca, fá-lo num novo sobressalto, olhando para
cima. Focagem das escadarias de ferro que ornam as traseiras do
Cinema S. Luís, supostas de salvamento em caso de incêndio. Rosto
de Personagem evidenciando, primeiro, espanto e medo, depois,
vontade resoluta. Atravessa rapidamente a rua, toma por uma das
escadarias, e desaparece no cimo dela. A câmara sobe até um céu
sem (ou com?) nuvens.
Écran branco.
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Cartaz anunciador de espectáculo:
TEATRO NACIONAL DE S. CARLOS
Hoje
RÊCITA DE GALA
em beneficio do Governo da índia no Exílio
Quarteto de Dádrá-Nagar-Aveli
Com o maestro
ARTURO LAPINSKY
Ea
CONDOR
na
NORMA de BELLINI
Écran negro.
Personagem sai pela porta que lhe deu acesso, no último piso do
teatro, ao interior da cornija, e desce pela escada interior lateral
que, supõe-se, subiu. Desce lento, sem esforço algum (pode utilizar-
se o retardador) sob uma luz sombria, como pairando (sem nunca
dobrar esquinas de patamar), até ao último piso, no solo.
Personagem, de pé, na plateia, junto à porta esquerda do fosso da
orquestra, de frente para a objectiva. Tem consigo o seu guarda-
chuva fechado. Percorre com os olhos o recinto do Teatro vazio, de
onde sobem ainda alguns cibinhos de fumo. Senta-se displicente-
mente no parapeito do fosso da orquestra, abre um maço de cigar-
ros, acende um com uma caixa de fósforos, lança o fósforo ainda
aceso para o chão. Depois de duas baforadas, deita fora o cigarro,
ainda aceso, salta para o parapeito do fosso da orquestra, abre o
guarda-chuva, e inicia um passeio de equilibrista, a passo lento, so-
bre o parapeito. Muda de uma para outra mão o guarda-chuva,
estica no ar o pé e a perna, etc. Isto deverá ser feito por um equili-
brista profissional, que mantém a figura de Personagem. Chegado
a meio do percurso, frente à estante do maestro, escorrega ou algo
lhe sai mal, ou toma sentido da inutilidade daquela prova. Saindo
do parapeito, fecha o guarda-chuva, fecha os olhos e queda-se en-
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costado ao parapeito como num grande abatimento ou num gran-
de sono. Boceja.
Travelling da câmara, breve, e primeiro algo lento e depois em ace-
lerado, partindo da figura de Personagem até mais ou menos ao
meio da sala, pela coxia central. Aí chegada, retrocede, já em gran-
de velocidade, até à figura de Personagem que, como preso de um
ataque de fúria, se ergue num salto, pega no guarda-chuva fecha-
do e arremessa-o contra a cadeira da Condor.
Imagem do guarda-chuva furando o espaço que, nesta sequência
será muito mais extenso e fantasmagórico do que a distância real
do fosso ao palco. Neste percurso, o guarda-chuva, como enfren-
tando fortes ventos contrários, perderá primeiro o pano preto que
o envolve, depois as varetas que se lhe reviram e saem, depois o
cabo surge segurado por mão e braço de manequim, depois surge-
lhe ao lado, ou em transparência, o relógio (só o mostrador) da fa-
chada do Teatro, com os ponteiros a rodar velozmente, mas agora
da esquerda para a direita, depois a mão e o cabo lançam chispas
como motas em excesso de prova, depois e enfim, o guarda-chuva
é um dardo que corre sozinho e livre no espaço e vai cravar-se no
espaldar da cadeira de Condor. Esta oscila batendo três vezes no
chão, e desajunta-se até ao desaparecimento.
Ao terceiro estrondo, reinício do “Zaratustra” de Strauss (dado sem
orquestra), agora executado correctamente, e Personagem retoma
o seu percurso de equilibrista, já sem guarda-chuva, retomado des-
de o ponto da estante do Maestro, até ao fim do parapeito do
fosso da orquestra, à direita do palco (visto da plateia).
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Personagem de novo na rua. Vemo-lo aparecer no Chiado; desce
dobrando a esquina da Rua Ivens para a Rua Garrett. Vem ligeiro e
contente. Nova dobragem de esquina, para a descida da rua onde
estão os Armazéns Grandella. Quando chega ao Grandella, depara
com uma montra intensamente iluminada. Estaca diante dela: é de
muita profusão de manequins de homens e mulheres com trajes de
várias modas, militares e civis os homens. Entre estes há um mane-
quim fardado de marinheiro da armada portuguesa, farda de ve-
rão. Personagem, como fascinado, cola o corpo, o rosto, os braços
abertos, ao vidro da montra. Depois de visto de costas, vemo-lo
focado desde o interior da montra, através do vidro, com uma ex-
pressão, nos olhos, de espanto, depois de alegria imensa. Fita o
manequim fardado à marinha, que parece fitá-lo a ele. A câmara
sai para a rua, sobe lentamente pelo edifício do Grandella, pára um
momento no dístico daquela casa, “Sempre por bom caminho” e
segue: continua para cima e foca a passerelle do elevador de Santa
Justa. Neste momento, irrompem as vozes e os acordes do coro fi-
nal da “Paixão segundo S. Mateus” de Bach, enquanto a câmara
baixa de novo, foca Personagem, de costas, sempre colado ao vidro,
foca de seguida o manequim fardado, que sorri para Personagem.
Rosto de Personagem, transfigurado e muito belo, transtornado
como se estivesse a vir-se.
Manequim, com o braço esquerdo, arranca o braço direito, sem es-
forço e sem outro movimento (o braço ainda fardado) e passa-o a
Personagem, através do vidro. Personagem recebe-o com todo cari-
nho (fim da transmissão da “Paixão segundo Mateus”). Bruscamen-
te, deixa a montra e continua a descer, com o braço do manequim
debaixo do braço. Agora desce veloz pelas Escadinhas de Santa Jus-
ta até à Rua dos Sapateiros (sempre a “aparecer” onde há uma es-
quina de viragem) e detém-se na bilheteira do velho cinema exis-
tente junto ao Arco que dessa Rua dá para o Rossio. Compra
bilhete e entra. Vemo-lo instalar-se na plateia, acomodar-se e fitar
o écran.
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Passam um filme de cowboys, com cavalos e tiros.
Porém, a pouco e pouco (ou como se quiser) cessam
os tiros e os cowboys, dando lugar às imagens,
uma por uma, que se sucedem no meu poema
“Autoractor” e começam no verso “A cena repre-
senta” e terminam no verso “Em baixo corre o rio
da pestilência”.
Com a representação cinética destes dois versos
pode (e talvez deva) ouvir-se a música do “Sonho
de uma Noite de Verão’ de Mendelsson.
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LUIZ PACHECO
GRANITO? NÃO, OBRIGADO
fotografia MICAEL PÓVOA
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Se há sítio no mundo aonde tenha medo de ir parar,
tombar, ser ambulanciado, é esse o banco do Hospital de S. José,
em Lisboa. Quase meio século de experiências comigo, ali, aler-
tam-me do aviso Perigo de Morte o qual, à entrada do chamado
«balcão dos homens», invisível para outros, para mim claramente
visto e sentido, refulge a vermelho vivo – talvez, do muito sangue
dorido que por ali corre –, e me obriga às maiores prudência/paci-
ência/vigilância (atentas) sempre que trespasso aquele portal da
desventura. Quantas e quantas vezes, crises asmáticas agudas,
cardiopatias até imaginárias, ansiedades súbitas ou mesmo uns
copitos a mais, a muito mais que a conta do meu aguentar, fui a
correr, meti-me num táxi e recomendei pressa, carro amigo me
levou, chegado ao banco me deixei ficar na sala de espera, balan-
çando entre a aflição e o meu pavor do guichê. Até que coisa
passe e me ponha a pirar, porreiríssimo.
Azar. Há dias enfiei resoluto para o tal «balcão». Eram
7.20. Asma. Uma noite de respirar-não respirar, vá de bomba azul,
vá da castanha, um calmante, logo café forte abrir a clarabóia
para oxigenar, abanicar-me com um jornal dobrado, finalmente
um supositório de Neufil-A e, alegria das alegrias, a luz da madru-
gada chegando. Banco de S. José. O costume: aminofilina veia,
oxigénio na venta. Desta, porém, não. Aguardava-me um impla-
cável homem de bata branca; direi um dr. propedêutico ou perifé-
rico, em fim de turno, chateadíssimo de aturar mazelas alheias – e
qual a minha culpa? Contei-lhe a minha história: não quis acredi-
tar. Asma hereditária, primeiro ataque aos 3 meses de idade; en-
fisema pulmonar bilateral diagnosticado desde 1948, por via de
um seguro de vida que então fiz. Saída recente de um sanatório.
Dr., por favor, venha a terapêutica habitual e piro-me já!
Não era assim tão fácil. Estava perante um fulano opi-
nioso e teimoso, como tive depois o desprazer de verificar.
Pergunta seca: «O senhor trabalha com granito?» Olhei-o. Ele ti-
nha a papeleta de inscrição na mão, diante do nariz. Lá vinha,
glosando o título da peça do Santareno mas autêntico: Português,
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Escritor, 56 Anos de Idade. Naturalmente, sem acrimónia, respon-
di: «Geralmente é com esferográfica... granito, não, obrigado!» E
fiz questão de espetar o dedo nas indicações da papeleta. Reagiu,
áspero: «A minha pergunta não era destituída de lógica. Há escri-
tores que carregam com pesos maiores.» Boa! Nunca tal vira nem
o soubera. Mestre Vergílio Ferreira nunca refere, no seu (dele)
«Livro Negro» que é a Conta-Corrente, andar a carregar pianos
sextos andares escusos. O meu Presidente da APE, Dr. Urbano Ta-
vares Rodrigues, não me consta que pratique matinalmente o
exercício de descarregar a saca-de-orelhas com batatas para o
mercado da Ribeira.
LÓGICA?: Nem por isso. Nadinha. Mas aquilo que pensa
um asmático, em ânsias de dispneia, não chega ao acontecimento
oral audível. Mia, logo existe. Falar alto não lhe apetece. Pois o
que então teria dito ao dr. propedêutico ou vestibular ou perifé-
rico, era muito mais lógico. Isto: um sujeitinho com mais de meio
século de mal asmático, não analfabeto dada a profissão, é natu-
ral que saiba algo de si, da sua doença, dos métodos de cura,
prevenção, do seu comportamento patológico. Até sei, infeliz-
mente. Em asma, e noutras coisas, sou o eterno convalescente,
percebe-se. Ó asmáticos sexagenários!, ouvide, ouvide, dai-me ra-
zões de apoio. Percorri, desde o Verão de 1925, toda a evolução
da terapêutica anti-asmática: pós da Abissínia, cigarros espanhóis
Bel-Saúde – cheiro dos «charros» actuais, ainda mais enjoativo,
talvez; papas de linhaça, peito e costas, com ou sem mostarda.
Uma coisa horrorosa e numa embalagem de pavor, um energú-
meno a deitar chamas pelos bofes, chamada algodão termogé-
neo; estadias anuais nas termas das Caldas da Rainha, desde a
piscina às inalações; ventosas. Nem me façam chorar mais. E, tam-
bém, provavelmente, teria feito, «testes», para determinar as cau-
sas próximas, imediatas da minha alergia. Fiz. No hospital dos
Covões, perto de Coimbra, em 1977. Nem me deu grandes novida-
des: pó de casa – se vejo uma vassoura, fico sufocado –, certos
cheiros; tintas. E toda e qualquer espécie de poluição, incluindo a
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mental, dita Estupidez. A pergunta do dr. propedêutico iria cau-
sar-me uma crise, não a trouxesse comigo de casa; ali, descon-
traiu-me, a vontade de rir regularizou-me os movimentos do dia-
fragma. Siga o desenrolar, que em diante, para mim, era já e
apenas uma farsa, O periférico encostou-me o estetoscópio no
peito, nas costas, com a ligeireza de quem está a tocar num botão
de elevador automático. E sentenciou: «o sr. não tem tórax enfise-
matoso... vai tirar uma chapa!». Fui, O ritual habitual, depois
«agora espera aí um bocadinho lá fora», passa a Maria Helena,
minha ex-esposa muito meiga, enfermeira, «que estás tu aqui a
fazer? desculpa, mas já estou atrasada», sou chamado ao posto de
radiologia. Na chapa, faltava um pulmão, sou informado. Para
quem, como eu, saíra há poucas semanas de um sanatório, onde
o fenómeno de pulmão mais-menos era vulgar, não me admirei.
Nova chapa. Com, agora, dois pulmões, os meus. Sou portador da
mesma ao «balcão dos homens», entrego, vagamente oiço dizer
que iam chamar um especialista.
Por esse tempo, 8 e picos, o movimento do banco come-
ça a acelerar. Pares de bombeiros-maqueiros despejam a sua co-
lheita de estropiados, gritantes moribundos. Muito distractivo. A
nossa defesa é um esforço de desumanização: não se meter na
dor alheia, no seu conhecimento, deixar andar. Morra quem vi-
veu, salve-me eu. Tronco disponível e quase despido para novas
deduções do propedêutico, que passava por mim a, possivelmen-
te, avaliar quantos gramas de granito eu podia elevar e por quan-
to tempo e espaço, olho, paro e aguardo. Demos tempo ao tem-
po. Curiosidades de saber como aquilo iria acabar. Daí a? uma
hora? não sei; a quatro metros do canto onde, visivelmente, eu
permanecia calmo e expectante, vejo o dr. propedêutico exami-
nar a minha chapa com outro homem de bata branca. E oiço-lhe:
«...mas a minha opinião é esta». A princípio, não entendi. Mais
adiante, entendi: o propedêutico requisitara um meio científico
de diagnóstico. Perante ele, não se desdizia. E não mais o vi (nem
desejo, calcula-se).
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Já havia, sentados a uma mesa, duas propedêuticas e
mais dois periféricos, turno fresco. Discutiam temas profissionais,
e quem lho poderá levar a mal? Tinham dormido, estavam arden-
temente desejosos de mais um dia de trabalho. Ouvi: «Estes tipos
do futebol, que ganham aos duzentos e trezentos contos por mês
e só fazem asneiras, uma vergonha! E a gente práqui a fossar...»
«Gosto muito de ler A Bola» Etc. Etc. Etc.
Foi quando, eram 9.45, me levantei do meu canto, e me
dirigi a uma dr.ª mais atenciosa, que queria, à viva força, que um
negro, motociclista, choque ou queda (braço partido, coxa parti-
da, me disse o maqueiro) estendesse as pernas, lhe fui falar e per-
guntei, com muita correcção e naturalidade: «Sr.ª dr.ª, qual é, afi-
nal, O MEU problema? ou qual é O VOSSO?» Tentou passar-me
uma rasteira, peculiar naqueles locais: «O sr. já se inscreveu lá
fora?» A manobra é: tentar chutar o paciente para o recomeço do
processo. Conheço o truque e fui categórico: «Já, já. Eram 7 e
vinte. Olhe, a minha papeleta está ali; já tirei duas chapas; seu
colega já viu. E agora, como é?» Não estava a brincar, ser irónico
inutilmente o meu tempo: queria saber exactamente o diagnósti-
co. Se aquela alma propedêutica que me atribuía forças atléticas
para lidar com granito como se fosse algodão, viesse dar-me, cer-
ta e garantida, a novidade que o meu enfisema era mera fantasia,
este vosso doentinho rejuvenescia, que milagre estival! Nada: a
chapa tinha-se extraviado. O dr. propedêutico fora dormir. Infor-
mei-me do nome. Vou socorrer-me dele, através do que se deno-
mina «medicina convencionada», isto é, pagando-lhe e bem no
seu consultório. À cautela, não levo esferográfica. Mas uma moca
tipo riomaior. Sei como a consulta termina, quando ele me apre-
sentar a factura.
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Miguel Esteves Cardoso
TENHO OS MEUS OLHOS NOS FIGOS
e
fotografia Micael Póvoa
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Tenho os meus olhos nos figos:
Quando vai ser o tempo?
Estou tão fodido, em termos de:
Quem me me tirou
O que eu
Tinha?
E então:
…sou ou não sou?
Um cabrão?
Um amigo das estepes?
Um percebe?
Porquê agora?
Se eu não me meti com nada;
Muito menos com ninguém.
Já não me governo
Com tão pouco.
Rendo-me à sola
Dos sapatos.
Vão-se foder todos:
Estou livre.
Ou livrem-se todos:
Estou fodido.
Adeus.
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jorge palma
o fim do verão
ilustração alex gozblau
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