Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Quando o mundo se torna grande demais facilitada pela Comunicação Mediada por
para ser controlado, os atores sociais passam Computadores (CMC) tem contribuído ain-
a ter como objetivo fazê-lo retornar ao ta- da mais para desvios conceituais.
manho compatível com o que podem con-
ceber. Quando as redes dissolvem o tempo Por essa razão, resgatamos brevemente,
e o espaço, as pessoas se agarram a espaços neste trabalho, os conceitos clássicos de “co-
físicos, recorrendo à sua memória histórica. munidade”, além de tentarmos apanhá-los
em suas reelaborações e transformações. Po-
O local, a comunidade, a família, por rém, parece-nos pertinente indicarmos que
nos serem próximos, tendem a representar há relações com as questões local e regional.
segurança e proteção em um mundo apa- Muitos foram os pensadores a se debru-
rentemente instável, de proporções globais çarem sobre o conceito “comunidade”. Po-
etc. Uma vez estruturados com base em har- deríamos, a título de exemplo, citar alguns
monia e solidariedade, seriam espaços de clássicos como Ferdinand Tönnies (1973,
abrigo e amparo em meio às turbulências da 1995), Max Weber (1973), Robert A. Nisbet
vida urbana. (1953), Martin Buber (1987), Talcott Parsons
Analisamos neste texto, brevemente, as- (1969), além de contribuições mais recentes,
pectos dos conceitos de “comunidade”, “lo- como as de Zygmunt Bauman (2003), Gian-
cal” e “região”. Partimos de algumas aborda- ni Vattimo (2007), Roberto Espósito (2007),
gens clássicas e identificamos reelaborações Davide Tarizzo (2007), Manuel Castells
com o objetivo de explicitar as noções bási- (1999), Marcos Palácios (2001), Raquel Re-
cas que caracterizam tais fenômenos, além cuero (2003), além de Cicilia Peruzzo (2002)
de ressaltar as diferenças e proximidades que e Raquel Paiva (2003), entre outros, que pro-
os mesmos contêm. Mais especificamente, curam relacionar os conceitos de “comuni-
procuramos discutir o que caracteriza região dade” à comunicação.
e local no mundo atual. Entretanto, parte-se de uma constatação
Servimo-nos de pesquisa bibliográfica. de Palácios (2001:1) de que a “idéia ou con-
Trata-se de trabalho em processo de constru- ceito de Comunidade, tão central na Socio-
ção e que, por lidar com temas complexos e logia Clássica, é uma invenção da Moderni-
já altamente trabalhados a partir de expressi- dade”. Com essa nova forma de organização
vas e contraditórias concepções, está sujeito a social, surgem teorizações que apresentam
complementações. Mas, mesmo sendo ainda possíveis contraposições entre comunidade
aportes iniciais, talvez possam contribuir com e sociedade.
pistas para o embasamento teórico-conceitual Mas o que não há como negar é que a
de estudos sobre processos comunicacionais palavra “comunidade” evoca sensações de
na perspectiva comunitária, local e regional. solidariedade, vida em comum, indepen-
dentemente de época ou de região. Atual-
1. Comunidade: complexidade e mente, seria o lugar ideal onde se almejaria
reelaborações viver, um esconderijo dos perigos da socie-
dade moderna. Como nos mostra Bauman
O termo “comunitário” vem sendo utili- (2003:7), “‘comunidade’ produz uma sen-
zado, nos últimos tempos, de forma desor- sação boa por causa dos significados que a
denada, o que contribui para uma confusão palavra ‘comunidade’ carrega”: é a segurança
conceitual que esvazia seu significado. Qual- em meio à hostilidade.
quer agrupamento tem sido chamado de co- Para compreendermos os aspectos fun-
munidade, sejam bairros, vilas, cidades, seg- damentais e essenciais do conceito, resgata-
mentos religiosos, segmentos sociais, redes mos alguns breves aportes das contribuições
de relacionamentos na internet etc. Ultima- teóricas de pensadores clássicos, como Max
mente, a formação de grupos e redes on-line Weber (1973:140-143), para quem a comu-
podem não se limitar à proximidade física. liberta de limites e conceitos”. Para ele, “co-
Esse sentimento pode existir por si mesmo munidade e Vida são uma só coisa”.
com o afastamento físico, entretanto, as pes- Continuando, Buber (1987:34) acrescenta:
soas sempre estarão à procura da presença
A comunidade que imaginamos é somen-
física e real da família, do parentesco. A vizi-
te uma expressão de transbordante anseio
nhança caracteriza-se pela vida em comum pela Vida em sua totalidade. Toda Vida nas-
entre pessoas próximas da qual nasce um ce de comunidades e aspira a comunidades.
sentimento mútuo de confiança, de favores A comunidade é fim e fonte de Vida. Nossos
etc. Dificilmente isso se mantém sem a pro- sentimentos de vida, os que nos mostram o
ximidade física. A amizade está ligada aos la- parentesco e a comunidade de toda a vida
do mundo, não podem ser exercitados to-
ços criados nas condições de trabalho ou no
talmente a não ser em comunidade. E, em
modo de pensar. Nasce das preferências entre uma comunidade pura nada podemos criar
profissionais de uma mesma área ou daque- que não intensifique o poder, o sentido
les que partilham da mesma fé, trabalham e o valor da Vida. Vida e comunidade são
pela mesma causa e reconhecem-se entre si. os dois lados de um mesmo ser. E temos o
privilégio de tomar e oferecer a ambos de
modo claro: vida por anseio à vida, comu-
nidade por anseio à comunidade.
Devido às inter-relações
entre comunidade, local Importante registrar ainda que, para Bu-
ber (1987:39), a humanidade se originou de
e região, há dificuldades uma comunidade primitiva, passou pela es-
em se estabelecer fron- cravidão da sociedade e “chegará a uma nova
teiras entre esses espa- comunidade que, diferentemente da primei-
ços, o que pode criar ra, não terá mais como base laços de sangue,
confusões conceituais mas laços de escolha”. Nesse sentido, o autor
já reconhecia e antecipava que as noções de
parentesco e de território não seriam condi-
ção essencial e obrigatória para se caracterizar
Nessa perspectiva, o autor parece reco- uma comunidade. Sê-la-ia a comunhão de es-
nhecer a existência de comunidades na vida colhas, a vontade comum, a partilha de um
urbana. Inclusive, para ele, a vida urbana mesmo ideal, noções atualmente primordiais
pode ser representada pela comunidade de para se entender as comunidades virtuais.2
vizinhança. Trata-se da tendência de Tön- Robert E. Park e Ernest W. Burgess
nies de apanhar a comunidade sempre em (1973:148) defendem que uma comunidade
relação à vida em grupos coesos e unidos por deve ser considerada a partir da “distribui-
interesses em comum. ção geográfica dos indivíduos e instituições
Tentando ir além da perspectiva de Fer- de que são compostos”. Trabalhando na pers-
dinand Tönnies, Martin Buber (1987:34) pectiva de Tönnies, para os autores, “toda
expressa uma visão de comunidade ide- comunidade é uma sociedade, mas nem toda
al, em que “homens maduros, já possuídos sociedade é uma comunidade”.
por uma serena plenitude, sintam que não Autores como R. M. MacIver e Charles
podem crescer e viver de outro modo, ex- Page (1973:122-123) já disseram que a noção
ceto entrando como membros” em fluxo de do territorial específico não é condição sine
doação e entrega criativa em razão de uma
liberdade maior. “A nova comunidade tem
por finalidade a Vida. Não esta vida ou aque-
2
Sobre comunidades virtuais, ver: “The virtual communi-
ty”, de Howard Rheingold (versão eletrônica disponível em
la, vidas dominadas, em última análise, por http:www.rheingold.com/vc/book/, acesso em 1º/10/09) e Ra-
delimitações injustificáveis, mas a vida que quel Recuero (2003).
qua non para a existência de vida comunitá- comunitárias no Brasil (além das socieda-
ria, mas sim a participação na vida comum des tribais, isoladas da sociedade nacional)
da comunidade. sejam aquelas que encontram na miséria
um fator de aglutinação: nas favelas das
E no mundo atual, o que pode ser consi- grandes cidades e nos povoados das áreas
derado comunidade? rurais, constituídas respectivamente por
Ao discutir as formas de organização migrantes e imigrantes potenciais.
social na sociedade contemporânea, Mar-
cos Palácios (2001:4) defende que alguns Essas reflexões de Marques de Melo datam
elementos fundamentais caracterizam uma do início da década de 1980, época do regi-
comunidade na atualidade: a) sentimento me militar no Brasil, contexto social de re-
de pertencimento; b) sentimento de comu- pressão política e social. Atualmente, vive-se
nidade; c) permanência (em contraposição outra conjuntura, marcada por globalização
à efemeridade); d) territorialidade (real ou e democracia, mas as condições apontadas
simbólica); e) forma própria de comunica- em parte persistem – como o acirramento
ção entre seus membros por meio de veícu- de tendências individualistas, por exemplo –,
los específicos. Para ele, a questão da territo- embora outras sejam agregadas, haja vista o
rialidade assume novo sentido: aumento da violência. E, ao mesmo tempo,
surgem sinais agregadores e de revitalização
O sentimento de pertencimento, elemento das identidades locais e de laços comunitá-
fundamental para a definição de uma Co-
munidade, desencaixa-se da localização: é
rios os mais diferentes.
possível pertencer à distância. Evidente- Segundo Manuel Castells (1999:79), é
mente, isso não implica a pura e simples justamente nas condições globalizantes do
substituição de um tipo de relação (face- mundo que “as pessoas resistem ao processo
a-face) por outro (a distância), mas possi- de individualização e atomização, tendendo
bilita a co-existência de ambas as formas, a agrupar-se em organizações comunitárias
com o sentimento de pertencimento sendo
comum às duas (Palácios, 2001:7).
que, ao longo do tempo, geram um senti-
mento de pertença e, em última análise, em
Nesse sentido, a territorialidade pode assu- muitos casos, uma identidade cultural, co-
mir caráter físico ou simbólico. A localidade munal”. A hipótese do autor é a de que, por
geográfica passa a não ser considerada caracte- meio de um processo de mobilização social,
rística intrínseca de uma comunidade porque, as pessoas participem de movimentos ur-
mesmo à distância, pode-se se sentir parte. banos defendendo interesses em comum.
Não é que o território não possua mais Trata-se de uma dinâmica de fortalecimento
valor para a comunidade. Ocorre que agora de identidades, como mostrou Stuart Hall
esse território pode ser físico-geográfico ou (2006:85): “O fortalecimento de identidades
simbólico. Assim, adquire relevância o senti- locais pode ser visto na forte reação defen-
mento de pertença, já que se pode pertencer siva daqueles membros dos grupos étnicos
à distância. O que está em jogo é a vontade e dominantes que se sentem ameaçados pela
os interesses dos membros. presença de outras culturas”.
Para José Marques de Melo (1981:58), co- São movimentos de construção de iden-
munidade é um fenômeno social inexistente tidades, como ressalta Castells (1999:24):
no Brasil, ao menos em áreas urbanizadas e a) identidade legitimadora: representada
alfabetizadas, já que pelas instituições dominantes interessadas
em expandir sua dominação; b) identidade
A nossa estrutura política, autoritária e
de resistência: representada pelas pessoas
desmobilizante, não tem permitido a dis-
seminação dos ideais democráticos, indis- em condições desvalorizadas e resistentes à
pensáveis a qualquer aglutinação comuni- dominação; c) identidade de projeto: ocor-
tária. Talvez as experiências propriamente re quando as pessoas se mobilizam, criando
A noção de local engloba desde aspectos região, no qual a pessoa se sente inserida
técnicos, como os limites físicos – rios, ocea- e partilha sentidos. É o espaço que lhe é
nos, lagos, montanhas, diferenças climáticas, familiar, que lhe diz respeito mais direta-
mente, muito embora as demarcações ter-
características de solo, aspectos político-eco- ritoriais não lhe sejam determinantes.
nômicos –, até diversidade sócio-cultural,
histórica, de identidade, lingüística, de tradi- Bourdin (2001:25-57), por sua vez, acre-
ções e valores etc., ou seja, estão em jogo as dita que a vulgata localista pode ser apanhada
várias singularidades nas quais se constroem em três dimensões: a) o local necessário; b) o
as práticas sociais. local herdado; c) o local construído. O local
necessário é caracterizado pelo sentimento
de pertença a um grupo comunitário, que
Com o avanço poderia ser caracterizado pelos vínculos de
sangue, da língua e do território. Para o autor,
da tecnologia e das esse vínculo comunitário estaria apoiado em
redes de comuni- uma antropologia localista que é composta
cação, é possível por fatores históricos, etnológicos e pelo que
existir proximidade o autor chamou de “evidência de falta”.
além da “proximidade A evidência da falta nos é oferecida pelas
de identidades” diásporas contemporâneas: ainda quando a
situação de uma minoria emigrada é satis-
fatória, o sentimento de exílio, a nostalgia,
o desejo de encontrar novamente sua terra,
Em Molina Argandoña e Soleto Selum de estar na própria casa muitas vezes se afir-
(2002:7), encontramos que, em geral, “o lo- mam. Eles se exprimem facilmente numa
reivindicação nacional, particularmente
cal se associa à proximidade física, quase
entre as minorias em perigo, mas também
cotidiana, entre pessoas e grupos, e destes na dolorosa ausência de um “em-casa”, no
com processos, organizações, instituições e lar, no bairro, na aldeia (Bourdin, 2001:32).
um território concreto”.3 Os autores (2002:8)
também definem o local a partir do encontro Em última instância, é a busca pelas ra-
permanente entre os indivíduos e da possi- ízes, por satisfazer o sentimento de perten-
bilidade de estes assistirem, com a “própria ça que existe no âmago dos indivíduos, de
carne”, cara a cara, às decisões políticas. viver-junto, da vida em família, do pertencer
A nosso ver, como já discutimos, proxi- a um “nós”.
midade física e territórios concretos não são O local herdado relaciona-se aos aspectos
encarados como característica universal do históricos e representa o peso que o passado
local, pois, com o avanço da tecnologia e das pode ter sobre o presente – portanto, leva em
redes de comunicação, é possível existir pro- conta a genealogia e suas relações familia-
ximidade, mesmo com as distâncias físicas, res: “o local é, pois, um lugar privilegiado de
além da “proximidade de identidades”, já que manifestação delas, se admitirmos que as es-
os sentimentos de pertença e proximidade truturas antropológicas são principalmente
independem de recortes físico-geográficos. um conjunto de representações e de códigos
Na perspectiva de Peruzzo (2006:144), transmitidos pela prática, como os mitos se
exprimem nos ritos” (Bourdin, 2001:43).
O local se caracteriza como um espaço São locais herdados de fatores históricos
determinado, um lugar específico de uma
e de identidade local que podem estar ma-
nifestados nos bens culturais e no conjunto
3
Tradução dos autores: “lo local se asocia con la cercanía física,
casi cotidiana, entre personas o grupos, y de estos con procesos, de regras comuns vividas por seus membros
organizaciones, instituciones y un territorio concreto”. e expressos na religião, na cultura, na etnia
etc. Como bem disse Castells (1999), são re- Sobre a questão da homogeneização cul-
fúgios de identidade construídos como rea- tural, há que se recorrer a Hall (2006:77),
ção defensiva contra a desordem e a incons- para quem essa visão parece exageradamen-
tância global. te simplista. Ele propõe pensar a partir das
Por fim, o local construído é visto como novas articulações entre o global e o local e
não a partir do eclipse do local pelo global, o
Uma forma social que constitui um nível
de integração das ações e dos atores, dos
que implica o fortalecimento das identidades
grupos e das trocas. Essa forma é caracteri- locais e a produção de identidades híbridas,
zada pela relação privilegiada com um lu- originadas do processo de “tradução cultu-
gar, que varia em sua intensidade e em seu ral”:4 pertence-se a mais de uma identida-
conteúdo. A questão se desloca então da de, fala-se mais de uma linguagem cultural
definição substancial do local à articulação (Hall, 2006:89).
dos diferentes lugares de integração, à sua
importância, à riqueza de seu conteúdo...
Faz-se oportuna uma reflexão sobre a
(Bourdin, 2001:56). comunidade, já que esta tangencia algumas
características do local, pois, como dissemos,
Carlos Camponez (2002:35) defende o local relaciona-se com outras dimensões
que, por mais que se fale que a globaliza- espaciais. Contudo, didaticamente, pode-se
ção trouxe o fim das fronteiras e a abolição dizer que a comunidade está inserida em um
dos limites geográficos, o local ainda possui espaço local, assim como o local faz parte de
a sua geometria: o principal efeito da glo- um espaço regional. Na comunidade, os laços
balização é o de criar uma nova “gramáti- são mais fortes e apresentam maior coesão
ca do espaço”, já que tal globalização tende entre seus membros quando comparados ao
ser uma idéia um tanto metafísica. É essa local – enquanto que o espaço local, por sua
gramática do espaço que dá novos signifi- vez, apresenta características mais uniformes
cados ao local, ao espaço. Para Camponez se colocado em contraste com a região (ver
(Idem:50), “a noção de marco geodésico fica Peruzzo, 2006:146).
profundamente perturbada: o centro está Tal relação é apenas um recurso didático,
aqui e está em todo o lado.” Nesse sentido, as pois as delimitações desses espaços são múl-
distâncias espaciais podem desaparecer, tor- tiplas e flexíveis. Na opinião de Milton San-
nando possível uma proximidade por con- tos (2006:108-9),
fluência de identidades, independentemente
de uma proximidade física. Ou seja, o “local A distinção entre lugar e região passa a ser
menos relevante do que antes, quando se
não é mais o pólo oposto ao global porque o trabalhava com uma concepção hierárqui-
que se opõe à globalização não é o território, ca e geométrica onde o lugar devia ocupar
é a exclusão” (Camponez, Idem, ibidem): os uma extensão do espaço geográfico menor
“info-excluídos”, aqueles que estão à mar- que a região. Na realidade, a região pode
gem do acesso à informação e os que estão à ser considerada como um lugar, desde que
margem da informação de qualidade. a regra da unidade, e da continuidade do
acontecer histórico se verifique. E os luga-
Convém ainda abordar dois erros que, se-
gundo Camponez (Idem:59), devem ser evi-
tados na abordagem da questão global-local.
4
Sobre esse processo de tradução cultural, o autor ressalta:
“Este conceito descreve aquelas formações de identidade que
O primeiro seria entender a globalização atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por
como um processo capaz de promover a ho- pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal.
Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem
mogeneização cultural de forma global. O se- e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado.
gundo seria limitar o local às relações de face Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que
a face, em um território específico. Essa falsa vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem
perder completamente suas identidades” (Hall, 2006:88). Nesse
antinomia teria a função ideológica de conter caso, a palavra “tradução” deve ser encarada como “transferir”,
as tensões contraditórias do sistema mundial. “transportar entre fronteiras”.
res – veja-se o exemplo das cidades grandes culturais e, geralmente, pela situação geográ-
– também podem ser regiões. fica” (Enciclopédia Einaudi, 1986:161).
Na Enciclopédia Einaudi (1986:163-175),
Essa complexidade das interconexões en-
encontra-se uma classificação do conceito
tre dimensões espaciais foi também por nós
em: a) região natural; b) região homogênea;
discutida (Peruzzo, 2006:145) na tentativa de
c) região polarizada ou funcional. A região
compreender sua forma relacional:
natural seria aquela que considera a paisa-
Qualquer uma das dimensões de espaço gem física, suas características geográficas
só se realiza, sob o ponto de vista de suas como topografia, vegetação, etc. Entretan-
fronteiras, ou melhor, das pseudo-frontei- to, é a “idéia mais forte, a mais consistente
ras, se colocada em contraposição com o e resistente às críticas e à erosão das teorias”
seu contrário. O local só existe enquanto (1986:163). Já a região homogênea é aquela
tal, se tomado em relação ao regional, ao
nacional ou ao universal. Na outra ponta, o que leva em conta o grupo humano como
global, como parâmetro de referência, pre- organização regional, e depende das especi-
cisa se tornar local para se realizar. Afinal, ficidades “humanas”. Por fim, a região po-
o ato de consumir é local. A indústria de larizada ou funcional é caracterizada pela
tênis da marca “x” só aumenta seu fatura- uniformidade de trocas e fluxos que unem
mento se o calçado for consumido aqui e os vários elementos do mercado.
ali, ou seja, em localidades concretas.
Nessa perspectiva, evidencia-se o cará-
ter abstrato e incerto dos princípios de uma
3. A Região região, principalmente se tomados apenas
pelas especificidades geográfico-territoriais.
A mesma complexidade advinda da im-
Deve-se apanhá-la, sobretudo, como um es-
possibilidade de se delimitar o local ocorre na
paço contraditório e incerto que se relacio-
questão regional, haja vista sua relatividade
na com outras dimensões espaciais, mas que
e a efemeridade de suas demarcações. Além
possui certa contigüidade histórica de fluxos
disso, os termos “região” e “regional”, assim
(de informações, econômicos etc.), de fixos
como “comunidade”, “comunitário” e “local”
(elementos físicos), sócio-cultural, e demais
têm sido usados, pelo senso comum, com sig-
singularidades simbólicas (como a proximi-
nificados dos mais variados, o que contribui
dade simbólica e não só a territorial, ligada
para um esvaziamento conceitual, ou seja, faz
ao sentimento de pertença à questão dos in-
com que os tais conceitos percam sua força
teresses), uma vez que “a região e o lugar não
explicativa e seus significados essenciais.
têm existência própria.5 Nada mais são que
Poderíamos tomar como ponto de par-
uma abstração, se os considerarmos à parte
tida as idéias trazidas pela Enciclopédia Ei-
da totalidade” (Santos, 2006:108).
naudi (1986:161), que, de início, afirma que
Recorre-se ainda a Richardson (1975:221-
a noção de “região” é imprecisa: “é uma pa-
222), para quem o conceito está envolto em
lavra [...] usada para designar um dos níveis
ambigüidades: o tamanho de uma região
(por vezes vários), dentro duma taxonomia.
pode variar desde um pequeno centro po-
O inconveniente está no fato de a posição
pulacional e seus arredores até uma grande
hierárquica poder variar de disciplina para
sub-região dentro de um continente, depen-
disciplina”.
dendo da escala e tipo de questões estudadas.
A complexidade e relatividade do termo
Ou ainda, pode decorrer da contigüidade,
ficam também evidentes no seguinte concei-
uma vez que, ao dividir a economia nacional
to: “Pode ser aplicada a uma fração de um
estado ou de uma nação, como a um agru- 5
Fala-se até na existência do não-lugar e da negação da idéia de
pamento de estados ou de nações, próximos região (Santos, 2006:165), entretanto, é por meio da região e do
pelas características econômicas, políticas ou lugar que o mundo se dá empiricamente (Santos, 2006:108).
em regiões, toda a área do país tem que ser to que, se for apanhado de forma descon-
incluída dentro de uma ou outra região. textualizada, pode não representar nenhum
O autor aborda a região sob três aspec- significado. Como no caso da localidade,
tos (1975:224-227): a) regiões uniformes a região deve ser apanhada dentro de um
ou homogêneas: fundamenta-se na idéia de contexto relacional, isto é, da região com o
que unidades espaciais separadas podem ser global, da região com o local, em suma, do
aglutinadas por apresentarem certa unifor- regional com outras dimensões espaciais.
midade e, como características, possui es- Assim, a regionalização também pode
truturas de produção semelhantes, padrões ser uma reação ao processo de globalização,
homogêneos de consumo, fatores geográfi- como a criação de regiões – ou “comunidades
cos, atitudes sociais semelhantes, identida- regionais” – de livre comércio entre países
de, concepção política etc.; b) regiões nodais
ou polarizadas: leva em conta a interdepen-
dência dos componentes dentro da região
e não de suas relações com outras regiões.
Apesar de estar envolto
Leva em conta os fluxos de população, bens, em ambigüidades e
serviços, comunicações, tráfego etc.; c) re- subjetividades, o
gião de planejamento ou de programação: é conceito de “região”
definida em relação à unidade dos proces- não se baseia apenas na
sos de tomada de decisões. Segundo o autor geografia, mas na inter-
(1975:227), estas devem coincidir com as
secção entre as ciências
regiões nodais.
Há que se considerar também a efemeri-
dade e a contínua transformação das regiões.
Ao mesmo tempo que uma dada região se vizinhos, a exemplo do já citado Mercosul,
apresenta com determinados contornos, ela ou da União Européia, que institucionalizou
pode ter seus limites alterados e uma nova uma moeda própria. São novas organizações
região pode ser formada. Veja-se o caso do – ou reorganizações – resultantes das atuais
continente Americano, que pode, conforme necessidades econômicas. Nesse caso, para a
as circunstâncias e os interesses, assumir os criação dessa região, o que está em jogo são
contornos continentais e/ou sul-americanos, os interesses mercadológicos e políticos, e
norte-americanos, latino-americanos, meso- não a proximidade físico-geográfica. A Suí-
americano, hispano-americano, ibero-ame- ça, por exemplo, é um país com proximidade
ricanos, além da região do Mercosul, da Área territorial que não integra a União Européia.
de Livre Comércio das Américas (ALCA) etc. Esses agrupamentos podem ocorrer em di-
Nos dizeres de Santos (2006:165-166), versos níveis, sejam internacionais, interesta-
duais, intermunicipais e até inter-regionais.
As condições atuais fazem com que as re-
As regiões não são apenas resultantes de
giões se transformem continuamente, le-
gando, portanto, uma menor duração ao interesses econômicos. Questões de toda
edifício regional. Mas isso não suprime a sorte, como, por exemplo, processos his-
região, apenas ela muda de conteúdo. A es- tóricos, tradições e costumes, dependência
pessura do acontecer é aumentada, diante de serviços públicos, semelhanças culturais
do maior volume de eventos por unidade e lingüísticas etc. são consideradas nesse
de espaço e por unidade de tempo. A região
processo complexo de agrupamentos e re-
continua a existir, mas com nível de com-
plexidade jamais visto pelo homem. agrupamentos espaciais. A região hispano-
americana, por exemplo, refere-se a países
Devido a essa instabilidade de conteúdos que falam a língua espanhola; já a região
e contornos, “região” adquire caráter abstra- latino-americana não congrega países com
singularidade lingüística, mas aqueles que No caso brasileiro, por extensão, poder-
apresentam certa contigüidade histórico- se-ia dizer que as regiões resultam de proces-
social e cultural. Entretanto, há que se dizer sos históricos tão remotos quanto a coloni-
que essas regiões não são homogêneas. Ao zação do continente americano e do Brasil.
mesmo tempo que apresentam proximida- No entanto, talvez não faça sentido afirmar
de em alguns aspectos, em outros podem a existência de precisos contornos regionais
ser totalmente diferentes. Isso, todavia, tendo por base as regiões geográficas for-
não exclui essas regiões. Elas continuam a malmente estabelecidas (Norte, Nordeste,
existir, mas de forma bastante complexa e Sudeste, Centro-Oeste, Sul), uma vez que as
abstrata. As regiões se definem, então, por peculiaridades e os recortes territoriais não
um jogo de oposições e contraposições de são determinantes das relações entre elas,
inúmeros fatores. nem suas configurações são inconfundíveis.
Além de que “a proximidade já não se mede
em metros” (Camponez, 2002:129), as inter-
As delimitações físico- relações econômicas, comunicacionais, as
geográficas não se apropriações culturais e as interdependên-
cias políticas, de segurança etc. contribuem
prestam a entender para diluir fronteiras.
os espaços em questão Sobre essa questão, recorremos a Pierre
no mundo contempo- Bourdieu (2004:114-115), que afirma:
râneo, ao menos não
A fronteira nunca é mais do que o produto
como critérios únicos de uma divisão a que se atribuirá maior ou
menor fundamento na ‘realidade’, segundo
os elementos que ela reúne tenham entre si
semelhanças mais ou menos numerosas e
Na concepção de Pedro Coelho (2002:36), mais ou menos fortes. [...] Cada um está de
“a região, um território definido, possui de- acordo em notar que as ‘regiões’ delimita-
das em função de diferentes critérios con-
terminados traços identificadores – a língua,
cebíveis (língua, habitat, tamanho da terra
a história, a cultura, a economia, um mesmo etc.) nunca coincidem perfeitamente. Mas
projeto para o futuro – em suma, uma iden- não é tudo: a ‘realidade’, neste caso, é so-
tidade6 própria. Esse território é dominado cial de parte a parte e as classificações mais
pelas relações que se geram entre as pessoas”. ‘naturais’ apóiam-se em características que
Miguel de Moragas Spá (apud Coelho, nada têm de natural e que são, em grande
parte, produto de uma imposição arbitrá-
2002:36) pontua que as regiões na Europa
ria, quer dizer, de um estado anterior da
são fruto apenas de definições geográficas relação de forças no campo das lutas pela
ou administrativas – elas “são o resultado de delimitação legítima.
grandes processos históricos de herança de
estruturas de origem feudal, e até de épocas Apesar de estar envolto em ambigüidades
anteriores à romanização, tudo isso determi- e subjetividades, o conceito de “região” não
nou profundas diferenças e traços de identi- se baseia apenas na geografia, mas na inter-
dade entre as regiões do continente”. secção entre as ciências, pois está ligado, ba-
sicamente, à noção de diferenciação de áreas.
Além disso, há que se considerar a importân-
6
Para o autor (2002:35), identidade pode ser entendida pelo
“conjunto de fatores intrínsecos da comunidade, como a cia dos espaços, sejam aqueles com contor-
raça, a língua, a história e, principalmente, a cultura”. Se- nos comunitários, locais ou regionais, afinal,
gundo ele, as regiões com identidade comunitária sólida
“sabem quem são”. São elas que, por várias razões, adquirem
“place counts” (Santos, 2006:10) parece ser a
um forte poder reivindicativo, ou seja, de mobilização em expressão da ordem – ou seja, o lugar tem
prol de um mesmo objetivo. importância.
Referências
BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo e sociedade: leituras sobre problemas conceituais, metodoló-
atual. Rio de Janeiro: Jorge Zajar, 2003. gicos e de aplicação. São Paulo: Editora Nacional e Editora da
BOURDIEU, P. O poder simbólico. 7ed. Rio de Janeiro: Ber- USP, 1973. p. 144-152.
trand Brasil, 2004. PARSON, T. Las estructuras principales de La comunidad: un
BOURDIN, A. A questão local. Rio de Janeiro: DP&A., 2001. punto de vista sociologico. In: FRIEDRICH, C. J. (Org.). La
BUBER, M. Sobre comunidade. São Paulo: Perspectiva, 1987. comunidad. México: Roble, 1969. p. 155-178.
CAMPONEZ, C. Jornalismo de proximidade. Coimbra: Mi- PERUZZO, C. M. K. Comunidades em tempo de redes. In:
nerva Coimbra, 2002. Comunicação e movimentos populares: quais redes? São Leo-
CASTELLS, M. O poder da identidade. A era da informação: poldo: Ed. Unisinos, 2002. p. 275-298.
economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, v.2, 1999. ______. Mídia local e suas interfaces com a mídia comunitá-
COELHO, P. A Europa da proximidade. Observatório. Revis- ria no Brasil. Anuário Internacional de comunicação Lusófo-
ta do Obercom – Observatório da Comunicação, n. 2. Lisboa: na, v. 4, n. 1, 2006. p. 141-169.
Obercom, 2002. p. 35-48. RECUERO, R. Comunidade virtuais: uma abordagem teórica.
ENCICLOPÉDIA EINAUDI.. v. 8. Região. Imprensa Nacional/ Trabalho apresentado no V Seminário Internacional de Comu-
Casa da Moeda, 1986. nicação, PUC/RS, 2003. Disponível em: http://www.bocc.ubi.
ESPOSITO, R. Niilismo e Comunidade. In: PAIVA, R. (Org.). O pt/pag/recuero-raquel-comunidades-virtuais.pdf. Acesso em:
retorno da comunidade: os novos caminhos do social. Rio de 1º/8/08.
Janeiro: Mauad X, 2007. p. 15-30. RICHARDSON, H. W. Economia regional: teoria da localiza-
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ed. ção, estrutura urbana e crescimento regional. Rio de Janeiro:
Rio de Janeiro: DP&A, 2006. Zahar, 1975.
MARQUES DE MELO, J. Comunicação e libertação. Petrópo- SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e
lis: Vozes, 1981. emoção. 4ed. 2 reimpr. São Paulo: Editora da USP, 2006.
MACIVER, R. M.; PAGE, C. H. Comunidade e sociedade como TARIZZO, D. Filósofos em comunidade: Nancy, Espósito, Agam-
níveis de organização dwa vida social. In: FERNANDES, F. ben. In: PAIVA, R. (Org.). O retorno da comunidade: os novos
(Org.). Comunidade e sociedade: leituras sobre problemas caminhos do social. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. p. 31-62.
conceituais, metodológicos e de aplicação. São Paulo: Editora TÖNNIES, F. Comunidade e sociedade como entidades típico-
Nacional e Editora da USP, 1973. p. 117-131. ideais. In: FERNANDES, F. (Org.). Comunidade e sociedade:
MOLINA ARGADOÑA, W.; SOLETO SELUM, W. Sociedad leituras sobre problemas conceituais, metodológicos e de apli-
local y municipios en el Beni. La Paz: PIEB, 2002. cação. São Paulo: Editora Nacional e Editora da USP, 1973. p.
NISBET, R. A. The question of community. Nova York: Oxford 96-116.
Univ. Press, 1953. ______. Comunidade e sociedade: textos selecionados. In: MI-
ORTIZ, R. Um outro território. In: BOLAÑO, C. R. S. (Org.). RANDA, O. (Org.). Para ler Ferdinand Tönnies. São Paulo:
Globalização e regionalização das comunicações. São Paulo: Editora da USP, 1995. p. 231-342.
Educ/Editora da UFS/Intercom, 1999. p. 29-72. VATTIMO, G. O belo como experiência comunitária. In: PAI-
PAIVA, R. O espírito comum: comunidade, mídia e globalis- VA, R. (Org.). O retorno da comunidade: os novos caminhos
mo. 2ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. do social. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. p. 63-68.
PALÁCIOS, M. O medo do vazio: comunicação, socialidade e WEBER, M. Comunidade e sociedade como estruturas de so-
novas tribos. In: RUBIM, A. A. (Org.). Idade mídia. Salvador: cialização. In: FERNANDES, F. (Org.). Comunidade e socie-
UFBA, 2001. dade: leituras sobre problemas conceituais, metodológicos e de
PARK, R. E.; BURGESS, E. W. Comunidade e sociedade como aplicação. São Paulo: Editora Nacional e Editora da USP, 1973.
conceitos analíticos. In: FERNANDES, F. (Org.). Comunidade p. 140-143.