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Marina Massimi
Monografia de Conclusão do
Programa Optativo de Bacharelado
em Psicologia, apresentada ao
Departamento de Psicologia e
Educação da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto da USP.
RIBEIRÃO PRETO - SP
2009
1
Índice
1. Resumo .................................................................................................................................5
2.
Introdução .............................................................................................................................6
3.
Procedimento ........................................................................................................................9
4. Objetos de Estudo
4.1 Elementos de Filosofia da Ciência
4.1.1 Critérios de Demarcação .....................................................................13
5. Análise e Discussão
5.1 Introdução.............................................................................................................28
5.2 Holismo, Informação e Falseabilidade...............................................................31
5.3 O Holismo como Estrutura..................................................................................36
5.4 Incomensurabilidade............................................................................................40
5.5 Elementos do Discurso Holístico
5.5.2 Psicologismos..........................................................................................47
1
7. Bibliografia e Referências……………………………………………………………….60
O PRESENTE TEXTO É A
MONOGRAFIA BASEADA NO TRABALHO
DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA,
FOMENTADO PELA FUNDAÇÃO DE
AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE
SÃO PAULO, VINCULADO À
GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA PELA
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E
LETRAS DE RIBEIRÃO PRETO DA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO,
REALIZADO PELO AUTOR - E
DEVIDAMENTE SUPERVISIONADO POR
SUA ORIENTADORA DE PESQUISA - DE
DEZEMBRO DE 2007 A DEZEMBRO DE
2008.
3
RIBEIRÃO PRETO
2009
(Will, G.F.)
3
“E tudo o que acabo de descrever foi feito a
partir da minha mente e da minha memória e
experiência de vida.”
1
Tazinafo, Thiago Favaretto (2009). O Conceito de Holismo na Psicologia Brasileira
Contemporânea: Uma Análise Epistemológica. Monografia de Conclusão do Programa
de Bacharelado do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto.
(Orientadora: Profa. Dra. Marina Massimi).
RESUMO
Harwood (1998) vê um renovado interesse pelo holismo por parte dos historiadores
da ciência a partir do fim da década de 80, retomando o debate de intelectuais (muitos dos
quais refugiados da Alemanha nazista) nos anos 50 e 60. Nesta época, esses estudiosos
apontavam para um discurso “anti-modernista” que ganhava força na Alemanha do fim do
século XIX e início do século XX.
1 o termo “ciência tradicional”, aqui, apenas se refere vagamente às visões mainstream de ciência
e será substituído, ao longo do projeto, por um ou mais conceitos mais precisos
3
Harrington (1996) defende a tese de que cientistas alemães estavam motivados a
“reencantar” a ciência, seguindo a afirmação atribuída a Weber de que o modelo
mecanicista teria “desencantado” o mundo, tendo reduzido a vida a meros mecanismos.
Assim, no começo do século XX, cientistas alemães ergueram a bandeira da “totalidade”
(wholeness) a fim de alimentar não apenas a mente, mas também o coração (“to nourish
the heart as well as the brain”) e lutar contra “a Máquina”. Escreve Harrington (1996,
p.3):
“The Machine that haunted holism’s self-consciousness was an entity with a status
much like that of the “Communist threat” that haunted the consciousness of the United
States during the height of the Cold War. That is to say, it is best understood, first and
foremost, as an emotionally charged image of negativity that functioned to define and drive
holism’s positive agenda.”
4
2) Discriminar, conceituando, os vários usos do termo “holismo” em diferentes campos de
conhecimento como biologia, lingüística, epistemologia, filosofia da mente, psicologia e
quaisquer outras áreas em que se identifiquem – no decorrer do estudo – abordagens ditas
“holísticas”;
A fim de cumprir este último objetivo, foi dedicada especial consideração aos
seguintes pontos: falseabilidade das teorias holísticas; as noções de “holismo” enquanto
paradigma e como programa de pesquisa; as antinomias decorrentes da adoção do holismo
enquanto paradigma ou programa de pesquisa; o holismo enquanto ideologia científica na
psicologia.
3. Procedimento
Durante os dois primeiros meses do período supracitado, foi feita a leitura integral e
o estudo de algumas obras dos epistemólogos selecionados: “A Lógica da Descoberta
Científica”, de Karl Popper; “A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento”, de Imre
Lakatos e Alan Musgrave (organizadores); “Ideologia e Racionalidade nas Ciências da
5
Vida”, de Georges Canguilhem, e “Contra o Método”, de Paul Feyerabend. As leituras
foram acompanhadas de um registro de anotações sobre as passagens consideradas mais
importantes. Ao término de cada obra, seguiu-se a redação de resenhas com base em tais
anotações.
Ao longo dos estudos, notamos a importância de outro filósofo da ciência, este
mais recente que os demais: Alan Chalmers. Decidimos incluir duas de suas obras à lista
dos textos sobre epistemologia. O primeiro deles é “O que é Ciência, Afinal?”, no qual
Chalmers traça as linhas gerais das obras de Popper, Kuhn, Lakatos e Feyerabend. Trata-
se, portanto, de uma leitura secundária, útil para contextualizarmos e articularmos as
leituras primárias. O segundo texto de Chalmers é “A Fabricação da Ciência”, no qual ele
desenvolve suas próprias idéias sobre racionalidade, ceticismo e objetividade em ciência,
com ênfase na contemporaneidade, bem como responde às objeções anárquicas de
Feyerabend.
O mesmo procedimento foi executado com respeito às obras dos principais autores
da Psicologia Holística Brasileira Contemporânea: Pierre Weil, Doutor em Psicologia
(Universidade de Paris) e presidente da Unipaz2; Jean-Yves Leloup, teólogo, Phd em
Psicologia Transpessoal, fundador da Universidade Holística de Paris e orientador no
Colégio Internacional dos Terapeutas; Roberto Crema, psicólogo e antropólogo do Colégio
Internacional dos Terapeutas, educador e vice-reitor da Unipaz. Os textos estudados foram
os seguintes: “Caminhos da Realização: dos Mergulhos no Eu ao Mergulho no Ser” e
“Cuidar do Ser: Fílon e os Terapeutas de Alexandria”, de Jean-Yves Leloup; “Sementes
para uma Nova Era” e “A Arte de Viver a Vida”, de Pierre Weil; “Saúde e Plenitude: um
Caminho para o Ser”, de Roberto Crema, e “Normose: A Patologia da Normalidade”, de
Weil, Leloup e Crema.
O método de seleção dos autores holísticos a serem estudados consistiu em uma
pesquisa via internet de palavras-chave - tais como: “holismo”, “holism”, “anti-
reducionismo”, “terapia holística”, “holistic psychology” etc. – em sítios eletrônicos como
Google3, Google Scholar4 e Wikipedia5, entre outros. Dessa forma, tomamos conhecimento
da Universidade Holística Internacional de Brasília, a Unipaz, e do CIT – Colégio
Internacional dos Terapeutas, a frente dos quais despontam os autores mencionados (essa
pesquisa foi realizada à época da elaboração do projeto de iniciação científica e refeita
2 Um tratamento geral sobre a Unipaz consta da seção “O Paradigma Holístico” (ver Índice)
6
durante dezembro de 2007). Navegando pelo sítio da Unipaz6, obtivemos acesso a uma
bibliografia recomendada. Entramos em contato via e-mail com um dos colaboradores da
página, solicitando informação quanto ao acesso a uma biblioteca holística mais próxima
de nossa região. Prontamente, fomos recomendados ao Centro Holístico Sanat Kumara, em
Ribeirão Preto, com o qual entramos em contato. A curadora de sua biblioteca gentilmente
nos recebeu e disponibilizou um acervo para empréstimo. Comparando a bibliografia
recomendada com o acervo, acabamos por selecionar as seis obras supracitadas. O estudo
dos textos holísticos se deu entre janeiro e abril de 2008.
O método de análise, tal qual estipulado previamente, consistiria apenas no
cruzamento de informações entre a bibliografia holística e a epistemológica, aplicando os
critérios de demarcação dos filósofos da ciência nos textos produzidos pela psicologia
holística contemporânea brasileira, a fim de investigarmos a viabilidade do holismo
enquanto paradigma científico inovador, bem como a possibilidade adversa, qual seja, de
que se trate de uma “pseudociência” – na acepção popperiana do termo - ou “ideologia
científica” – como definiu Canguilhem. Isto é, tratar-se-ia de aplicar “filtros”
epistemológicos a tais obras. Os resultados parciais, no entanto, apontaram para uma
incomensurabilidade: os textos holísticos selecionados pertencem a um gênero literário
diverso da linguagem científica, sendo mais bem caracterizados como obras de retórica,
isto é, pertencentes ao gênero persuasivo e não científico. Por isso, notamos que os
critérios de demarcação não se aplicavam a tais obras. Porém, devido a essa mesma
incomensurabilidade, tampouco seria apropriado nos contentarmos em descartar a
Psicologia Holística Brasileira com base exclusiva em uma rápida “constatação de não-
cientificidade”: um enunciado que um não-holista considera não-falseável, por exemplo,
pode corresponder, para um holista, a um dado empírico auto-evidente, que carece da
necessidade de falseadores potenciais, por ser “obviamente” verdadeiro. Dessa forma, uma
análise mais produtiva deveria incluir uma crítica ao holismo em seus próprios termos, isto
é, uma análise interna, pela qual seria possível caracterizar o discurso holístico em termos
de padrões recursivos, a fim de investigarmos a maneira como estão articulados seus
elementos de discurso.
Sendo assim, o método de análise teve de ser expandindo, incluindo agora uma
categorização de argumentos e idéias holísticas em tipos de elementos de retórica. Os
textos foram relidos e, parágrafo a parágrafo, classificamos os trechos quanto à natureza de
sua argumentação e de seu conteúdo em geral. No fim desse procedimento, pudemos
identificar um certo padrão discursivo. Foram cinco as principais categorias persuasivas
7
identificadas, as quais denominamos: Ataque ao Homem de Palha, Alegações
Extraordinárias, Psicologismo, Formulações Edificantes e Apropriações Inadequadas,
além de Articulações Mistas – passagens que combinam dois ou mais dos cinco elementos.
. Essas categorias diferem daquelas que ora chamamos elementos “neutros”. Os
elementos neutros equivalem ao conteúdo não argumentativo e servem de suporte a este,
tais como citações, referências (que não sejam Apropriações Inadequadas), figuras, tabelas,
poemas e definições, correspondendo a cerca de um terço do conteúdo. Podem também ter
finalidade persuasiva, mas diferem das cinco primeiras pelo fato de serem válidas do ponto
de vista lógico, informativo e/ou conceitual. Os elementos neutros foram por nós utilizados
para construir uma síntese em defesa do pensamento holístico.
Devido à constatação de que os autores fazem freqüentemente referência a
conceitos científicos, em geral físicos, aparentemente no intuito de conferir a sua retórica
certa qualidade científica, julgamos por bem proceder com o estudo de alguns conceitos
basilares da Física e de elementos de História e Filosofia da Física, a fim de melhor
apreciarmos a adequação de certas imagens e analogias propostas entre a teoria holística e
os modelos físicos modernos, o que se passou no decorrer de março e abril de 2008. Então,
seguiu-se a consulta a variados textos da área, sobre conceitos como: desigualdades de
Heisenberg (popularmente conhecidas como “Princípio da Incerteza”), dualidade onda-
partícula, Princípio da Complementaridade, Interpretação de Copenhagen e outros.
Com o objetivo de fundamentar em bases seguras a crítica aos trechos selecionados,
foram feitas consultas a obras que tratam de elementos de lógica e erros de raciocínio
(falácias). Novamente, recorremos a Chalmers: “O que é Ciência, Afinal?”, bem como ao
“Dicionário Oxford de Filosofia”, de Simon Blackburn, e a “O Mundo Assombrado pelos
Demônios”, de Carl Sagan.
Por fim, tomando por base as definições e conceituações de seus autores,
elaboramos uma síntese em defesa do pensamento holístico, a fim de conferir maior
propriedade à crítica subseqüente, e que se encontra na seção “O Paradigma Holístico”,
mais adiante.
Enquanto a primeira etapa de nosso trabalho foi dedicada à caracterização de
nossos objetos de estudo – seis obras holísticas e outras seis de filosofia da ciência – no
segundo semestre foi feita a análise e elaborada a discussão sobre esses objetos. A
expectativa original era a de investir aproximadamente a mesma quantidade de tempo e
esforços tanto à recuperação do termo “holismo” e seu sentido histórico na psicologia
quanto à relação entre o holismo na psicologia brasileira contemporânea e a filosofia da
ciência. Nossa avaliação inicial era de que o segundo objetivo – que na verdade é nossa
8
meta principal desde o início, conforme apresentado em nosso projeto de pesquisa – só
poderia ser plenamente atingido mediante a devida contextualização histórica e
etimológica. Embora isso continue sendo verdadeiro, tal tarefa mostrou-se mais breve do
que supúnhamos. O holismo a que se refere esse trabalho não guarda semelhanças nem faz
referências a outras abordagens psicológicas que poderiam ser consideradas holísticas,
como a Psicologia da Gestalt ou a Abordagem Centrada na Pessoa. Não há uma
continuidade histórica entre o holismo e outras abordagens psicológicas. Mais
especificamente, a origem da psicologia holística estudada é vivencial e não acadêmica, ou
seja, é fruto da experiência de vida e do pensamento isolado dos autores, como ilustra a
epígrafe. Esse “isolamento”, que fique claro, é relativo à história da psicologia apenas, não
significa que os autores geraram suas idéias “a partir do nada”. Entre suas principais fontes
de inspiração destacam-se a visão de mundo dos Terapeutas de Alexandria – tal qual
descrita por Fílon – o hinduísmo em geral e a mecânica quântica. Dedicamos parte de
nossos esforços a compreender os fundamentos desta última porque, alegadamente, a física
moderna ofereceria respaldo científico ao pressuposto holístico de que a consciência
“modela” a realidade.
4. Objetos de Estudo
9
Por “critério de demarcação” entendemos o processo racional de delineamento dos
contornos nos quais se inserem as metodologias de pesquisa e seus objetos de estudo, a fim
de definirmos o campo de ação da ciência e seus limites, bem como nos possibilitar decidir
logicamente se um procedimento é ou não científico. Popper, em “A Lógica da Pesquisa
Científica” (1993), ocupa-se, primeiramente, de atacar a suposta fragilidade lógica do
indutivismo. O critério indutivista prescreve a formulação de hipóteses como sendo
enunciados gerais a que se chega através da aplicação de um raciocínio indutivo sobre as
observações naturais de fenômenos particulares. A ciência, para os indutivistas, consiste
em obter fórmulas a partir do reconhecimento de padrões na natureza, o que permite fazer
predições, exprimindo eventos particulares das fórmulas por dedução. À maneira como
fizeram os empiristas britânicos, Popper também reconhece nesse procedimento um erro
lógico7.
Ao encontro desse problema lógico, Popper nos chama a atenção para o humano
por trás do estudo: o cientista não chega à hipótese por acaso, através da observação
desinteressada de eventos aleatórios, que ele acaba por unir pelo reconhecimento de um
padrão matemático, num procedimento exclusivamente lógico. Pelo contrário, o cientista
freqüentemente lança mão de insights e motivações pessoais, raramente partindo à
pesquisa de campo sem conjecturas previamente elaboradas. Ele formula hipóteses
primeiro e depois se propõe a testá-las.
A rejeição do indutivismo é de comum acordo entre a epistemologia popperiana e
os proponentes do Círculo de Viena8. O objetivo de Popper com essa crítica, porém, não
parece ter sido o de meramente repisar em um critério de demarcação cujas limitações já
haviam sido denunciadas de forma tão arrasadora como havia feito Hume em sua época.
Pelo contrário, seu alvo é a teoria da confirmação, defendida pelos positivistas lógicos. As
pesquisas que defendem uma teoria da confirmação ou “princípio de verificação” são
classificadas por Popper como “verificacionistas”. Para um verificacionista, teorias ou
idéias que exprimem proposições cujo conteúdo não admite possibilidade de ser verificado
– como os enunciados metafísicos – são, justamente por isso, destituídas de significado.
Uma das dificuldades de teorias desse tipo consiste na facilidade com que se pode lançar
mão de verificações ad hoc – desde que as procuremos – tornando-a imune a críticas e,
conseqüentemente, irrefutável ou “não-falseável”. Popper sustenta que recorrer a
7 A ilustração clássica é o exemplo dos cisnes brancos: podemos passar meses ou anos a
observar uma lagoa e jamais encontrar um cisne que não seja branco; da mesma forma, porém,
isso jamais me permitiria concluir que todos os cisnes são brancos (Chalmers, 1993).
10
proposições irrefutáveis ou formular hipóteses não-falseáveis é um vício ao qual nenhuma
teoria pretensamente científica pode incorrer.
Além disso, a tentativa de comprovar a veracidade inquestionável de uma
proposição, como queriam os empiristas lógicos, dependeria de uma teoria de confirmação
de autoridade logicamente inatingível. Sendo assim, o critério de demarcação dos
positivistas lógicos partilha do mesmo problema do empirismo clássico. Uma das
conclusões de Popper é que proposições científicas devem ser reconhecidas como verdades
provisórias.
Popper não defende que o método indutivo seja banido da prática científica. Sua
tese é de que tanto o indutivismo quanto o verificacionismo falham, seja do ponto de vista
lógico, seja da forma como as pesquisas científicas têm sido praticadas, ou ambas as
coisas. Buscar a confirmação de uma teoria, seja por meio de processos indutivos ou
dedutivos, é sempre desejável, na medida em que a submete a prova. O critério de
demarcação, porém, é que a teoria apresente a possibilidade de ser falseada, ante à
impossibilidade lógica de ser confirmada.
Portanto, na epistemologia popperiana, teorias que não se sujeitam a falsificadores
potenciais não podem ser consideradas científicas. Como exemplo, cita o marxismo e a
psicanálise como pseudociências, ou teorias que se pretendem científicas, mas que não o
são porque, em princípio, seriam consistentes com todas as observações possíveis.
Convém diferenciar sob quais aspectos o critério de falseabilidade é considerado
válido ou eficaz. Como exigência lógica, a condição de falseabilidade de uma teoria é,
segundo Chalmers, aceita ainda hoje pelos filósofos da ciência contemporâneos (1994). No
âmbito da prática científica, porém, é que surgem os problemas, pois nenhuma teoria
científica é descartada por conta de um ou dois resultados experimentais que a viole. Isso
quer dizer que o eventual surgimento de contra-exemplos não implicará, de imediato, a
rejeição de um modelo ou constructo teórico. Ante a anomalias, os cientistas concebem
articulações e encadeamentos de hipóteses auxiliares – às vezes até proposições ad hoc -
para adequar o novo caso à teoria, assim como tendem a pensar que é seu método e seus
dados que estão errados e não seus pressupostos (idem, 1993).
O modelo científico de Kuhn, sem dúvida, procura ajustar-se melhor à realidade
histórica da pesquisa científica, buscando caracterizar o pensamento científico em termos
de sua estrutura e não de um critério de demarcação (Lakatos & Musgrave, 1970). Ele
afirma que Popper fora muito influenciado pelas descobertas extraordinárias na física
durante as primeiras décadas do século XX, notadamente os trabalhos de Einstein de 1905
e a comprovação dramática da teoria da relatividade, como o eclipse de 1919. Kuhn
11
argumenta que um “experimento crucial” de tal magnitude é menos freqüente do que
Popper faz parecer.
Ainda de acordo com Kuhn, o processo de descoberta científica não poderia ser
linear como Popper defende. Ao contrário, a evolução da ciência se dá por marcos de
descontinuidade. A história da ciência, para Kuhn, alterna-se entre períodos de “ciência
normal” e períodos de revolução. A transição se dá por acúmulo de evidências contrárias
ao paradigma da fase de ciência normal. Por paradigma, entenda-se um sistema de
pensamento partilhado por membros de uma comunidade. É uma “visão de mundo”
particular, isto é, um conjunto de pressupostos e valores compartilhados pelos membros de
uma sociedade. No âmbito científico, pode-se dizer que o paradigma fornece modelo ou
tradições particulares de pesquisa. (comparar, como exemplo, o modelo geocêntrico e
aquele que o sucedeu – o heliocêntrico).
Durante a ciência normal a prática científica se resume à solução de problemas do
tipo “quebra-cabeças”. Um modelo de pesquisa entra em regime de atividade “normal”
quando seus pressupostos cessam de apresentar dificuldades, e há a opinião ou o
sentimento geral de que o trabalho vem sendo conduzido sob o enfoque mais promissor. A
fase paradigmática de uma ciência corresponde justamente ao período normal de produção
acadêmica, em oposição ao período de revolução, no qual as anomalias acumuladas de um
paradigma não mais podem ser contornadas sem maiores conseqüências. Nessa fase
histórica, surgem novos conjuntos de fundamentos teóricos e metodológicos.
Eventualmente, novas hipóteses começam a se condensar em torno de pressupostos rivais
ao paradigma vigente, o qual se deteriora, à medida que essa ontologia mais recente
angaria novos partidários. Tal etapa é a chamada fase de “transição paradigmática”.
Enquanto Kuhn procura descrever o modo como a ciência evolui de fato, Popper
parece mais preocupado em demarcar a forma como ela deve ser. Encontramos em Lakatos
uma tentativa de conciliar essas duas teorias, que são, aparentemente – talvez apenas
superficialmente – contraditórias (Idem). Sua teoria busca delinear critérios racionais de
decisão que sejam consistentes com o registro histórico. De acordo com Lakatos, a
pesquisa se desenvolve em torno de um núcleo duro, um conjunto de pressupostos
fundamentais partilhados por uma comunidade científica. Evitam-se deliberadamente as
refutações ao núcleo duro, construindo-se um cinturão de hipóteses auxiliares em seu
redor. A essa estrutura ele deu o nome de programas de pesquisa. As hipóteses auxiliares
não devem ser imediatamente descartadas como sendo ad hoc. Ao invés de decidirmos
sobre a validade ou não de uma teoria, sua veracidade ou falsidade, Lakatos propõe
comparar programas de pesquisa para decidir qual é o melhor. Se a incorporação de
12
hipóteses auxiliares contribui para a descoberta de novos fatos, novas tecnologias e
técnicas experimentais, predições mais acuradas etc., diz-se que o programa de pesquisa é
progressivo. Se, por outro lado, as hipóteses auxiliares prestam-se apenas a salvar o núcleo
duro da refutação, sem quaisquer outras contribuições para o progresso científico e/ou
tecnológico, o programa é dito degenerativo. Mais precisamente, um programa
degenerativo é caracterizado por falta de crescimento ou crescimento do cinturão auxiliar
desacompanhado de progresso científico (novas descobertas etc.).
Vemos, então, na teoria de Lakatos, uma tentativa de salvar o critério de
demarcação popperiano, procurando adequá-lo à realidade histórica e à prática social.
Contudo, uma das críticas freqüentes a seu modelo é a de que ele não fornece critérios
detalhados, nem para que se possa medir a “degeneração” de um paradigma, nem para
determinar o ponto em que o programa de pesquisa deve ser abandonado.
Vimos, por um lado, que tanto os critérios de demarcação indutivistas, quanto os
verificacionistas e falseacionistas, são falíveis e, ademais, seus modelos fornecem uma
descrição pouco convincente da prática científica. Os programas de pesquisa descritos por
Lakatos, por outro lado, não parecem admitir critérios de avaliação de desempenho. Não
acreditamos, no entanto, que uma saída relativista a partir do modelo kuhniano seria a
melhor resposta ou, tampouco, o anarquismo metodológico de Feyerabend, pois a ciência
pode, ainda assim, distinguir-se de “não-ciências” por sua objetividade, ainda que
objetividade enquanto realização prática, como veremos a seguir.
14
esse ideal seja encarado com ceticismo no âmbito da sociologia do conhecimento. Quando
se debate a objetividade do ponto de vista sociológico, porém, é necessário recorrer a uma
distinção entre aspectos cognitivos e não-cognitivos da ciência (Ibidem, p110 et seq). Os
primeiros referem-se ao conteúdo teórico propriamente dito e, os segundos, a todos os
demais fatores, como a organização de um espaço acadêmico, seu impacto social em outras
instituições e no meio-ambiente, os desdobramentos tecnológicos advindos de uma
descoberta e a correspondente exploração econômica e política etc.
É consenso que a explicação sociológica seja viável com relação a aspectos não-
cognitivos. Mesmo os mais entusiasmados racionalistas hão de concordar com a validade
de tal explicação e, se já não o fizeram – como afirmamos previamente – isso
provavelmente se deve antes a uma não-distinção dos aspectos supracitados. Em se
considerando a maneira com que desdobramentos científicos suscitam problemas bioéticos
- vide questão do aborto, discussões acerca das pesquisas com células-tronco, avanços da
engenharia genética etc. - além de uma enormidade de outros aspectos, como o impacto da
ação humana sobre o meio ambiente e o desenvolvimento de armas nucleares e biológicas,
para ficar nuns poucos exemplos, encontrar-se-ia em sérias dificuldades aquele que
tentasse rejeitar a explicação sociológica do conhecimento científico. Diante da
importância premente desses e outros fenômenos, sua aceitação é tranqüila, ao menos com
relação a aspectos não-cognitivos.
É com relação ao conteúdo cognitivo da ciência que a necessidade de uma
explicação sociológica encontra dificuldades. Uma das maiores dificuldades à aceitação
dos argumentos dos sociólogos reside na própria descrição que eles fazem de seus
opositores (Chalmers, op. Cit, loc. Cit). A fim de questionar a existência de um estatuto
epistemológico privilegiado, que distingue a ciência das demais formas de conhecimento,
alguns autores recorrem a uma caracterização demasiado simplista, ingênua, desse estatuto,
inadequada mesmo para os epistemólogos mais tradicionais.
A seguinte passagem ilustra a forma como Mulkay, segundo Chalmers, critica o
que ele supõe ser a formulação clássica do estatuto científico:
“Os elementos dessa visão clássica identificada por Mulkay são os seguintes. A ciência
pode estabelecer verdades sobre o mundo natural na forma de leis universais da natureza;
essas leis, são confirmadas lançando-se mão de afirmações factuais determinadas por meio
de uma observação cuidadosa e isenta de preconceitos. Embora certos componentes
teóricos da ciência possam ir além do que a observação pode determinar, pode-se fazer uma
distinção entre os níveis teórico e de observação. Neste último, a ciência apresenta um
crescimento cumulativo. Os critérios pelos quais as exigências de conhecimento devem ser
15
analisadas são universais e a-históricos. As conclusões da ciência são determinadas pelo
mundo físico e não pelo mundo social.” (Ibidem, p138)
“O mundo natural não se comporta de uma forma para os capitalistas e de outra para os
socialistas, de um modo para as culturas ocidentais e de outro para as culturas orientais.
Uma guerra nuclear em grande escala, que a ciência tornou possível, nos destruiria a todos,
seja qual for a classe, o sexo ou a cultura. No entanto, de lugares-comuns como esse não se
poderia dizer que, estando implícito na ciência a elaboração de generalizações que
caracterizem de modo satisfatório o mundo natural, a suficiência dessa caracterização não
tem nada a ver com as predisposições ou interesses dos indivíduos ou grupo que a elaboram
e adotam?”
18
4.1.3 A Ideologia científica
19
explicações para quaisquer ocorrências imaginárias e estarem virtualmente imunes a
qualquer tipo de refutação9.
Canguilhem cita como exemplo de ideologia científica o atomismo. Escreve ele:
“Demócrito, Epicuro e Lucrécio reivindicam para sua física e sua psicologia o estatuto de
ciência. À anticiência que a religião constitui opõem eles a anti-religião que é a sua ciência.
A ideologia científica é, evidentemente, o desconhecimento das exigências metodológicas e
das possibilidades operatórias da ciência, no setor da experiência que esta procura investir,
mas não é de modo algum a ignorância, o menosprezo ou a recusa da função da ciência.
Isso significa também que de modo algum se deve confundir ideologia científica e
superstição, pois a ideologia ocupa um lugar, ainda que seja por usurpação, no espaço do
conhecimento e não no espaço da crença religiosa.” (Canguilhem, 1970, p95)
20
religião – pela sua ambição explícita de ser ciência. Distingue-se dessas, ainda, no que
tange a sua historicidade, pois, segundo Canguilhem, as falsas ciências constituem sistemas
completos e irrefutáveis, sendo destituídas, portanto, de história. Uma ideologia científica
tem história própria e paralela ao de uma ciência, cujo prestígio reconhece e a que aspira.
Devido a este paralelismo, ele afirma que a visão da ideologia científica sobre seu objeto
de estudo é um “olhar de soslaio”.
21
desumanização da humanidade e o desprezo pela natureza. Ademais, as próprias
formulações científicas mais recentes, segundo os holistas - e mesmo das ciências mais
prestigiadas, como a física – propõem questionamentos que não poderiam mais ser
respondidos à luz do pensamento científico tradicional. Ainda, desdobramentos mais
recentes da física moderna viriam justamente ao encontro das formulações milenaristas das
culturas orientais, às quais os holistas são bastante afeiçoados, pois, a seu ver, têm muito a
nos ensinar, uma vez que privilegiam a intuição e a espiritualidade em detrimento da razão.
O pensamento holístico, dessa forma, pressupõe uma realidade profunda e cheia de
significados, apreensíveis pelo desenvolvimento da consciência. Admite-se que a
consciência de níveis mais profundos de realidade é apreendida não durante o estado de
vigília, mas sim por meio da meditação e do aperfeiçoamento de suas técnicas. Fala-se em
transpessoalidade como que designando os níveis do inconsciente para além do pessoal.
Entenda-se por inconsciente uma instância psíquica à maneira de Freud ou, mais
apropriadamente, Jung. O estado inconsciente, convém notar, faz oposição ao estado de
vigília e não à consciência de que falam os holistas. Tampouco se deve confundir o
transpessoal como aquilo que precede o pessoal quando, na verdade, é justamente o
oposto: o transpessoal está além do ego.
Segundo a psicologia transpessoal dos holistas, é necessário evoluir para além da
mentalidade tipicamente ocidental, uma vez que esta é superficial e esconde a verdadeira
profundidade do universo, concebido como uma unidade cósmica orgânica. Entenda-se
“evolução” no sentido teleológico, ou seja, como que denotando um progresso, no caso,
em direção a um gradiente de espiritualidade, correspondente a um crescendo de auto-
realização, que culmina com o estado de plenitude. A plenitude ou santidade, ao contrário
do que o pensamento ocidental faz parecer – devido justamente à sua atrofia espiritual –
não é virtude de uns poucos “escolhidos”, mas, pelo contrário, existe como potencialidade
em cada pessoa. A possibilidade que o paradigma holístico oferece consiste justamente em
converter essa potência em ato de plena realização.
A busca da plenitude, no entanto, não seria meramente um ato de realização
individual, mas, ao contrário, trata-se de uma questão de sobrevivência. Ao estado de
estagnação espiritual – oposto, portanto, à plenitude – dá-se o nome de normose. Os
holistas classificam como normóticas as crenças, as idéias e as práticas que numa
sociedade são consideradas “normais” e que, por conseguinte, delas partilham seus
membros, sem se darem conta de seu caráter psicopatológico e letal. São, portanto, hábitos
e pressupostos patogênicos os quais, por serem majoritariamente partilhados, não são
percebidos como tal, e que provocam sofrimento e morte. Na psicologia transpessoal,
22
corresponde à terceira grande classe de psicopatologias, ao lado da neurose e da psicose.
Exemplos de normoses seriam: consumo de drogas, violência, machismo, não-
vegetarianismo, materialismo, racionalismo, fundamentalismo (religioso) etc.
Em se atribuindo às crenças e práticas normóticas a alegada crise em que se situa a
humanidade e o planeta, tornou-se imperativa a criação de um programa holístico de
transição do estagnante ao mutante. Na psicologia holística, isso se dá por uma via tríplice:
educação, terapia e meditação.
Uma vez que a concepção de saúde individual é indissociável do âmbito coletivo, o
conceito de terapia, aqui, adquire um significado mais amplo que o mero tratamento de
distúrbios como neuroses e psicoses. Mais que isso, a noção de terapia em holismo
envolve, a um só tempo, a ecologia dos níveis individual, social e ambiental.
No Brasil, a psicologia holística é representada, há cerca de vinte anos, pela Unipaz
– Universidade Holística Internacional de Brasília – que foi fundada como centro holístico
educacional por seu reitor, Pierre Weil e que, atualmente, conta com diversas unidades
espalhadas pelo Brasil e no exterior. Jean-Yves Leloup foi responsável pela criação de sua
unidade terapêutica, o Colégio Internacional dos Terapeutas, inspirado na tradição dos
Terapeutas do Deserto, tal qual descrito por Fílon de Alexandria. No âmbito nacional, o
programa do Colégio Internacional dos Terapeutas tem sido desenvolvido por Roberto
Crema, vice-reitor da Unipaz.
Para os holistas, então, a percepção correta da realidade é somente possível durante
vivências em estados de consciência transpessoais. O estado de vigília permite apenas a
percepção de um nível superficial e enganador da realidade. O terapeuta transpessoal,
sintonizado com esses níveis mais profundos da existência, está apto a captar mensagens
enviadas pelo próprio universo e transmiti-las ao cliente; diz-se que o terapeuta é um
facilitador da “evolução” do indivíduo em direção à plenitude. O processo de facilitação
envolve uma combinação de raciocínio analítico e sintético, como ilustrado pelo seguinte
caso, descrito por Crema:
“Em grande aflição, uma mulher, médica de profissão, que tinha sempre se dedicado
extremamente ao marido e filhos, fala de sua crise familiar. O marido, de forma repentina,
resolveu separar-se dela e está já morando em outro apartamento, para seu total desespero.
Como se não bastasse, o seu filho, com hostilidade, acusa-a por esta situação. O terapeuta
sugere que ela fale com o seu filho, como se ele estivesse sentado na almofada à sua frente
e pudesse ouvi-la. Quando ela inicia o diálogo, o sintetista do terapeuta vê uma rede, na sua
tela psíquica. Então, com suavidade, indaga: ‘O que evoca, para você, uma rede?’. ‘Nada’,
responde a amiga evolutiva. Um instante depois, ela se corrige: ‘Ah, sim! Quando eu tinha
um ano de idade, a rede onde estava dormindo pegou fogo e eu escapei por pouco!
Distraidamente, foi minha mãe que, com um lampião, colocou fogo na rede...” O sintetista,
23
então, ouviu: há quarenta anos! “Há quarenta anos?”, indagou. Depois de uma breve
hesitação, ela responde: “Sim”. O analista do terapeuta, então, faz a leitura interpretativa:
agora, no sentido simbólico, a sua casa está ‘pegando fogo’ e a mãe, por distração, já que
não percebeu a mudança de seu marido e se deixou pegar de surpresa, cuidando de tudo e
de todos, menos de si mesma, está sendo culpada pela situação. O terapeuta, então, afirma:
‘Quando você tinha um ano de idade, não podia fazer nada e estava completamente
impotente na rede incendiada. Você precisou ser salva pelos outros. Agora, você tem 41
anos e pode assumir uma atitude com seu poder pessoal. Você pode sair desta, com
dignidade, aprendendo a se levar em conta e a cuidar de si mesma, adotando-se. Você não
está só: aprenda a se amar!’”(Crema, 1995, p151)
5 Análise e Discussão
5.1Introdução
24
Para introduzir nosso argumento, consideremos brevemente o conceito de vida. É
comum caracterizarmos os seres vivos em termos de ciclo de vida, reprodutibilidade,
alimentação, interação com o meio etc. Entretanto, é fácil perceber que tal caracterização
permite identificarmos como “vivos” determinadas classes de seres que, preferivelmente,
deveriam ser excluídos de tal definição. Estrelas, de certa forma, pode-se dizer que
nascem, e também que se desenvolvem e, por fim, morrem. Na “morte” de uma estrela, a
onde de choque decorrente da supernova pode, eventualmente, colidir com uma nuvem de
poeira cósmica e, dessa dinâmica, resultar um novo “berçário” de estrelas, de forma que a
capacidade de reproduzir-se é, também, própria de seu ciclo de vida (Gleiser, 2005,
http://marcelogleiser.blogspot.com/2005/03/da-vida-e-das-estrelas.html).
S = K*ln(n),
Por menos que nos ocorra uma delimitação precisa e historicamente satisfatória da
atividade científica, é ponto pacífico que esta vise a proporcionar um entendimento
massivo do mundo, abrangendo a natureza terrena e a cósmica, a composição material do
humano e as vicissitudes da pessoa. Vemos, assim, que estabelecer os objetivos da ciência
é uma tarefa mais fácil que a de descrever a ciência em si. Dividindo os aspectos do
universo por assuntos, dividimos também a ciência em áreas, o que é seguido de um
número indefinido de subdivisões em áreas especializadas, à medida que a compreensão de
determinados aspectos da natureza se acumule em profundidade. Como causa e também
11 Se, por alguma razão, porém, um “gênio maligno” teleportasse uma pessoa ao vácuo e, um
instante depois, trouxesse-a de volta, provavelmente veríamos que ela continua viva – o que
parece refutar a proposição – mas isso dá porque geralmente organismos apresentam reservas de
energia estocadas em seu interior, fato importante, porém apenas contingente.
26
conseqüência desse progresso, o acúmulo epistêmico de uma ciência bem-sucedida
acompanha um progresso na direção do refinamento metodológico.
I = log(n),
onde
28
“Procure na página da direita.” Nesse caso, foi selecionada ou especificada uma página, ou
seja, um evento selecionado dentre dois eventos possíveis; então,
n = 2/1 = 2
e, utilizando a base 2,
n = 2I
I = log2(2)I.
256 = 28, I = 8;
O conjunto de 8 bits é chamado de byte. Em tempo, note que, se nenhuma dica for
transmitida,
n = 2/2 = 1, I = log2(1) = 0,
uma vez que 20 = 1; posto de outra forma, uma tautologia como “Wally está em uma das
duas páginas” contém zero bit, pois meramente repete o que já sabíamos de antemão.
29
com igual probabilidade, no instante determinado. Chamando os Grandes Sábios de A, B e
C, considere as seguintes respostas:
Com base no exposto até agora, é evidente que a primeira resposta é verdadeira em
quaisquer circunstâncias, dados os pressupostos da pergunta; pela mesma razão, sua
quantidade de informação é nula. A quantidade de informação da resposta C é calculável
mediante algumas suposições simples12. O resultado é:
12 Considerando o universo como uma esfera de 156 bilhões de anos-luz [Jornal da Ciência, 31
de maio de 2004: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=18948], seu volume é
dado por:
Vesfera ,
Sabendo que um ano-luz equivale a 9,5 trilhões de km, então r, em metros, é dado por:
logo,
Vesfera ≅1,7∙1081m3
30
naturalmente, da informação metalingüística da linguagem em que se fala). A proposição B
é falseável de muitas maneiras – basta que Wally seja encontrado fora do volume
especificado – e a proposição C é ainda mais falseável. A falseabilidade de um enunciado é
diretamente proporcional à sua quantidade de informação.
“[referindo-se aos tulkus, da tradição do budismo tibetano, que “já nascem na condição de
Buda”] O atual Dalai Lama é um bom exemplo dessa condição evolutiva. Esses meninos
especiais são rapidamente reeducados e se lembram de seus discípulos, de seus auxiliares
etc. Tudo isso é evidenciado de todas as formas, testado e comprovado. (Quem viu o filme
O Pequeno Buda deve se lembrar.) Com 12 anos, já estão dirigindo o mosteiro como os
anciãos de setenta anos.” (Ibidem, p180)
“[sobre o conceito de inconsciente familiar] O que fala através de mim não é só o que
conheço e aprendi, não é o resultado de minha pequena infância, mas são todas essas
memórias transgeracionais. Aqui, pode existir uma palavra que existe em mim, que vem de
meus ancestrais. A religião, para alguns, é conectar-se com a sabedoria desses ancestrais.
Entretanto, essas influências nem sempre são benéficas. Às vezes existem fantasmas
destrutivos: posso ser possuído pelos espíritos de minha própria família. Temos de estar
conscientes desse inconsciente familiar.” (Ibidem, p187)
31
sobre memórias de vidas passadas, possessões por espíritos, homeopatia, tulkus,
transmutação, e outras idéias defendidas pelos autores, não são, de modo algum, novas.
Pelo contrário, boa parte do conteúdo holístico consiste em uma agregação de idéias ditas
“alternativas” que concorreram, em diferentes momentos históricos, com hipóteses
científicas rivais e, eventualmente, foram “derrotadas”. Pode-se argumentar, em contrário,
que o modelo copernicano também havia sido falseado à sua época (Chalmers, 1993, p99),
mas o que queremos evidenciar por ora diz respeito à estrutura quimérica do holismo. Seu
caráter “frankensteiniano” e não-empírico ao menos sugere que o que esteja em questão
seja menos descobrir e explicar fenômenos do que recuperar crenças enfraquecidas pelo
sucesso de programas científicos concorrentes.
“Um exemplo trágico e chocante: se você tiver uma experiência mística legítima [...] e
contar isso ao médico, ao psicólogo [...] eles dirão que você está doente, que necessita de
tratamento. Para os representantes de uma normose cientificista, muito em voga, não existe
a categoria do numinoso e do espiritual. Para eles, Cristo e Buda são ilusões; ou, pior que
isso, são degenerações, o ópio do povo ignorante, ilusão e alienação patológica.” (Ibidem,
p48)
32
Ao tratarmos da função da normose, não estamos dispostos a crer que os autores
tenham criado esse conceito com o propósito deliberado de salvar suas idéias da refutação,
embora essa seja uma das conseqüências de seu uso. Empregamos intencionalmente o
termo “função” a fim de introduzirmos uma observação importante sobre o sentido dos
conceitos, o que será feito logo a seguir.
Adotamos a posição defendida por Chalmers de que os sentidos dos conceitos são
predominantemente provenientes dos papéis que estes desempenham dentro de uma teoria
(1993, p110). Este argumento vai de encontro à idéia de que o sentido de um conceito é
estabelecido via definição, de modo que o sentido seja mais preciso quanto mais precisa
for a definição. O problema é que isso tende a levar a um regresso infinito, já que uma
definição expressa um conceito em termos de outros conceitos, os quais também precisam
ser definidos. A ruptura do regresso se dá por conceitos cujos significados já foram
previamente apreendidos por meios externos: “Um dicionário é inútil a menos que já se
conheça o sentido de muitas palavras. Não era possível para Newton definir massa ou força
em termos de conceitos pré-newtonianos. Foi necessário que ele transcendesse os termos
do velho sistema conceitual e desenvolvesse um novo” (Idem).
33
foram articulados por Freud em termos de metáforas e analogias com a física, como
“tensão”, “carga”, “peso”, “deslocamento”, “pressão” e, também, “energia” (Ibidem,
p111).
Seguindo a tipologia de Gurdjieff, citada por Crema (Weil et al., Op. Cit., p140), as
pessoas são distribuídas em sete categorias, dispostas num gradiente de espiritualidade. A
partir do nível quatro estão os seres espiritualizados, ou humanos “propriamente ditos” (no
último patamar situam-se Jesus e Buda). Os três primeiros tipos, instintivo-motor, emotivo
e cognitivo são “seres ordinários, numa mesma condição de adormecidos, de não
evoluídos” (Idem).
Eis o que Crema nos diz sobre as pessoas do tipo “cognitivas”:
Em que sentido algumas pessoas não são humanas? No sentido evolutivo, sim, mas
de que “evolução” se fala? Por certo é que não a darwiniana. Qual o sentido exato de
“tornar-se humano”? Tornar-se holista, talvez? A função dos conceitos de humanidade e
evolução ao longo das obras estudadas não é tão clara quanto gostaríamos, exceto a função
psicologizante e ad hoc já mencionadas quando nos referimos à normose.
Como vimos, Weil define normose como um hábito ou crença socialmente aceitos e
que provocam sofrimento, doença e morte. Ao longo dos textos analisados, é afirmado
explicitamente que a normose é conseqüência direta do paradigma “racionalista-
cartesiano” em que as culturas ocidentais estão inseridas (Crema, 1995, passim), de modo
que o combate às normoses – a degradação ambiental, o machismo, o abuso de drogas, a
violência etc. – jamais passará de meras intervenções paliativas enquanto nossa visão de
mundo permanecer a mesma: é necessária uma verdadeira transição paradigmática do
modelo atual para o holístico14.
14 Não fica claro se o holismo é o fim ou apenas o meio para se chegar a um fim ideal, o que seria análogo
ao socialismo enquanto meio de transição para o comunismo.
34
Neste ponto, não poderíamos avançar em nossa análise antes de fazermos uma
importante ressalva. O “Dicionário Oxford de Filosofia” define ideologia como “qualquer
sistema abrangente de crenças, categorias e maneiras de pensar que possa constituir o
fundamento de projetos de ação política e social” (Blackburn, 1997). Nesse sentido, fica
patente o teor manifestamente ideológico de suas idéias, mas isso não deve ser confundido
com o significado inteiramente diferente que Canguilhem confere ao termo na expressão
“ideologia científica”, correspondente à noção de pseudociência em Popper. Julgar a
legitimidade de suas aspirações ideológicas escapa inteiramente à tarefa à qual nos
dispusemos, ainda que, pessoalmente, sejamos simpáticos a elas. Em outras palavras, não é
nosso propósito investigarmos o holismo enquanto ideologia; estamos limitados a estudar
suas idéias psicológicas e, de modo geral, científicas.
Com essa ressalva em mente, voltemos ao conceito de normose. Para fins de
argumentação, vamos admitir como verdadeira a afirmação de que o pensamento
racionalista, nos moldes cartesianos, constitui o pilar central da cultura ocidental moderna
e contemporânea (uma generalização que consideramos, no entanto, apressada). Nesse
caso, seria altamente desejável que os holistas apontassem correlações positivas entre as
normoses e suas conseqüências nefastas. Em alguns casos, isto pode ser bastante fácil,
como o machismo, a degradação ambiental e o abuso de drogas. No entanto, tais práticas já
eram amplamente condenadas pelos padrões morais de nossa época, mesmo antes que os
holistas tivessem qualquer influência e, decididamente, não foram eles que descobriram,
por exemplo, que fumar faz mal, e sim os mesmos “racionalistas” que eles condenam.
Nos casos em que os argumentos holísticos poderiam ser relevantes, as correlações
não são apontadas com clareza: de que maneira a “fantasia dualista” poderia causar
“sofrimento, doença e morte”? Não fica demonstrado como a suposição de que habitamos
um mundo, ao invés de sermos parte dele – algo que, em outras circunstâncias, poderia ser
considerado um fato óbvio – contribui para nossa própria derrocada moral e física.
Precisamos acreditar que somos uma casa, ao invés de morarmos em uma, para evitar que
a depredemos? E por que isso evitaria, já que o suicídio também é uma normose? Talvez
estejamos simplificando o argumento ao limite do ridículo (e talvez não), mas o que
queremos enfatizar é o caráter altamente audacioso de certas proposições holísticas, o que
seria bastante meritório – especialmente para os padrões falsificacionistas – caso esses
argumentos fossem formulados em termos precisos. Há duas razões para que isso não
esteja sendo feito. Uma delas, que já mencionamos e criticamos, diz respeito ao caráter
recente da teoria, e a outra é o estilo deliberadamente lírico dos autores. É parte da
proposta holística privilegiar o uso da intuição e da criatividade em detrimento da razão –
35
entendida aqui como um raciocínio “rígido” e, por isso, limitador (algo de que
discordamos inteiramente) – e essa atitude foi estendida à linguagem de seus livros, como
ilustra a seguinte passagem:
“[...] se o barco em que estamos afundar, não terá sido por causa dos psicóticos e dos
neuróticos, mas dos normóticos que somos! O grande perigo atual, a grande ameaça global
chama-se normose. Precisamos de pessoas “esquisitas”, como as que vejo neste auditório,
nesta mesa de palestrantes e, talvez, no leitor que segue interessando-se por esta temática...
O espanhol é sábio e honra esta palavra tão justa – exquisito – empregando-a para
denominar algo raro, belo, especial, saboroso. Precisamos respeitar a beleza, a virtude, a
grandeza da esquisitice [...]” (Weil et al., 2003, p38)
15 para sermos justos, Weil e, sobretudo, Leloup, adotam um estilo muito mais contido e lúcido
que Crema, autor da citação.
16 O trecho supracitado não é, de forma alguma, um caso isolado, e outros exemplos do gênero
estão registrados mais adiante.
36
vítimas do que a varíola ou a peste bubônica? A incidência de câncer tem aumentado, ou
têm melhorado as técnicas de diagnóstico? Somos mais violentos do que a Roma dos
gladiadores, ou a Europa das Cruzadas e da Inquisição? Por quaisquer critérios parece que,
em geral, temos melhorado em termos de civilidade e qualidade de vida, e esses avanços
parecem circunscritos ao que tem sido chamado de paradigma racionalista-mecanicista aos
quais os holistas têm sido tão hostis. Feitas essas considerações, a idéia holística
fundamental de que a visão de mundo ocidental moderna é particularmente “normótica” se
mostra insustentável.
5.4 Incomensurabilidade
(Weil, p21):
“Fiz uma experiência em que procurei colecionar todas as qualidades que se costumam
atribuir às pessoas julgadas anormais. Por exemplo: ele é idiota; ele é irresponsável; ele é
maligno etc. Fiz uma coleção de uns quarenta ou trinta epítetos. Em seguida, traduzi-os ao
seu oposto, pensando que, talvez dessa forma, pudesse definir o que é normal. Para minha
surpresa, saiu uma lista do que é ser santo. Por esse procedimento empírico, um ser normal
seria um santo. Será? Deixo a idéia para reflexão”.
(Weil, p24):
“Nas religiões, o normótico é, muitas vezes, um excelente praticante de rituais e cumpridor
das leis, mas permanece cego e não sabe o que faz. Os crimes da Inquisição perpetuam-se
até nossos dias na terrível violência ritual de algumas seitas satânicas.”
40
(Crema, p36):
“A normose surge quando o sistema se encontra dominantemente desequilibrado e
mórbido. Então, ser normal passa a ser ajustar-se à patologia reinante mantendo, assim, o
status quo. Nesse contexto de normose, a pessoa realmente saudável é aquela dotada da
capacidade de um desajustamento justo, de uma indignação lúcida, de um desespero sóbrio.
[...] É por isso que eu sinto muito respeito pelas pessoas que sofrem de pânico e de outros
sintomas que expressam algo óbvio que os normóticos são incapazes de sentir.”
(Crema, p37):
“Conforme Ed Ayres [...], encontra-se em curso uma extinção em massa das espécies, pior
do que a que determinou a extinção dos dinossauros há milhões de anos. Alguns já falam
em ´Armagedon Ecológico´. O mais incrível é que a maioria das pessoas não se importa,
como se nada disso lhes dissesse respeito... É nesse sentido que o normótico não vê o óbvio
e não responde a ele!”
(Crema, p37):
“[sobre a violência] terapeutas, que deveriam cuidar, violam; sacerdotes violam, fazendo o
papa chorar [...] Crianças são sacrificadas em rituais satânicos, já na terceira geração, nos
Estados Unidos. Crianças estão matando crianças e se matando, macabros sinais de tempos
apocalípticos.”
(Crema, p38):
“Nesta crise da crisálida, a lagarta já morreu e a borboleta ainda não nasceu. É quando se
torna imperativo tratar da normose, a patologia severa revestida de normalidade. Quando a
luz novamente prevalecer, na idade da verdade, poderemos descansar...”
(Crema, p38):
“[...] se o barco em que estamos afundar, não terá sido por causa dos psicóticos e dos
neuróticos, mas dos normóticos que somos! O grande perigo atual, a grande ameaça global
chama-se normose. Precisamos de pessoas “esquisitas”, como as que vejo neste auditório,
nesta mesa de palestrantes e, talvez, no leitor que segue interessando-se por esta temática...
O espanhol é sábio e honra esta palavra tão justa – exquisito – empregando-a para
denominar algo raro, belo, especial, saboroso. Precisamos respeitar a beleza, a virtude, a
grandeza da esquisitice [...]”
(Crema, p41):
“Quem é capaz de dizer à normose, a essa estrada confortável e fácil, quem é capaz de
dizer: ´Não, eu não vou por aí! Não, eu não vou fazer esse curso só porque tem mercado.
Não, eu não me venderei; não sou alugável, não sou objeto, não sou mercadoria!´”
41
(Crema, p64):
“Na Unipaz, há quinze anos temos buscado implementar outras formas de avaliação que
não utilizem a comparação. Comparar é absurdo! O bom educador é como um bom
jardineiro. Você já viu um jardineiro comparar um jasmim a uma flor de maracujá: E exigir
o mesmo currículo de ambos?”
(Leloup, p67):
“A consciência do ego sem a consciência do Self pode levar ao desespero e ao suicídio, à
inflação e à megalomania – tomar-se por Deus. É preciso mantê-las juntas, espiritualidade e
psicologia, para que a árvore esteja em boa saúde.”
(Crema, p110):
“´Em cada passo, dance. Vida!´ Dançar o instante, com leveza. Não nos levar muito a sério.
Aqui, estamos brincando de participar de um simpósio, de um retiro. E, se brincarmos bem,
ajudaremos uns aos outros nesse processo de despertar. ´De cada dor, renasça. Calvário!´
Talvez esse telefone que toca seja o mais difícil de atender. Renascer da dor. Graças a
Deus, graças à dor!”
(Crema, p105):
“Assim como não vemos todo o rio, apenas alguns trechos dele, o ser humano também não
pode ser apreendido no mistério de sua totalidade. Por isso, os grandes mestres sempre nos
aconselharam a não julgarmos. O julgamento é a falência da compreensão. Somente os
nossos atos nos julgarão.”
(Crema, p125):
“Na história da psicologia já foi denunciada a repressão da sexualidade, do poder e do
sentido, com suas nefastas conseqüências. Agora, precisamos também denunciar, com
clareza e vigor, a repressão da luz, a repressão do que temos de maior e mais elevado: o
potencial humano de lograr qualidade total, de florescer plenamente.”
(Crema, p140):
“Amar é uma alquimia do encontro que ninguém pode ensinar a ninguém e que ninguém
pode aprender sozinho... Talvez na grande magia dos caminhos, de todos os caminhos, o
milagre maior seja o do encontro. Estamos aqui porque ainda não sabemos amar vasta e
totalmente. No fundo, algo dentro de nós sabe que esse milagre é possível. Nós só
buscamos o que já encontramos.”
(Crema, p177) [respondendo a um ouvinte sobre o significado do falar e do pensar corretos, “uma vez que
tudo é relativo”]:
“Inclusive esta afirmação, certamente. [...] Pensar corretamente talvez tenha a ver com a
arte de silenciar, com a arte da pausa. [...] Se formos capazes de pausa, de uma pausa
42
mental, se formos capazes de silêncio interior, certamente o pensar será correto, o falar será
construtivo. O silêncio é a mãe de todo pensamento justo, de toda palavra sábia, de toda
ação correta.”
(Crema, p177):
“É à medida que você se retira do caminho que estará dando passagem para uma
inteligência mais vasta que sua razão e para um amor mais amplo do que seu coração é
capaz. Essa é a lição do bambu que, por ser oco, torna-se flauta.
Quando você é capaz de se esvaziar do ontem e do amanhã, as forças curativas da natureza
atuarão e a canção do Ser poderá se expressar através de você. Sendo o ego constituído de
passado, apenas a esfera do Self, um ponto zero, uma vacuidade fértil, poderá orientar seus
pensamentos, palavras e atitudes.”
(Crema, p194):
“É sempre o retorno dessa mensagem antiga, a mensagem de Buda: cada um deve caminhar
sobre os próprios pés; os budas apenas apontam o caminho! É também a mensagem de
Cristo: o reino está no interior de nós mesmos.”
(Crema, p203):
“Buda, Krishna, Cristo, Maomé, Bahá’u’lláh, Zoroastro, Moisés, são todos diferentes fases
de uma mesma lua. Outro exemplo é o sol, outra analogia que ajuda a entender esse
processo. O sol nasce pela manhã, e eu digo que está frio. Às nove horas, digo que
esquentou um pouco mais, e, quando ele se encontra no zênite, digo que está muito quente.
Foi o sol que mudou? Absolutamente. Mudou a percepção que eu tenho dele. Mudou a
minha posição em relação a ele; como eu me coloco diante dos diferentes componentes
espectrais que passaram pelos filtros, dos componentes desse único sol, que é sempre o
mesmo.”
5.5.2 Psicologismos
(Crema, p141):
“O terceiro [tipo de ser humano] é muito popular em nosso momento histórico. É o
cognitivo: aquele que herdou o dom intelectual. É uma pessoa que pode chegar a ter muita
erudição. Poderá ser uma biblioteca ambulante, até mesmo ganhar um Prêmio Nobel e
ainda não ser humano, no sentido evolutivo.”
(Crema, p140):
“A ‘estupidologia’ é uma ciência que precisamos estudar, se quisermos realmente
transcender a normose. A estupidez se diferencia da imbecilidade, que é inofensiva, pela
racionalidade. Alguém pode ser altamente racional e totalmente estúpido! O fracasso da
conferência ambiental, Rio +10, é uma boa e triste ilustração. Nós podemos, com discursos
44
técnicos muito elegantes, fazer como alguém que serra o galho da árvore em que ele
próprio está sentado...”
(Weil, p158):
“[...] não só na Casa do Sol, mas, ultimamente, em muitos outros educandários, notam-se
crianças fora do comum. Aumenta o número das que já são vegetarianas desde o
nascimento. Elas passam mal se comem carne, não toleram mentira e demonstram uma
verdadeira e precoce sabedoria.”
(Leloup) P27: “Primeiramente, há o desejo e o medo do nascimento. Sente-se essa dupla realidade: a ânsia
e o temor de nascer. Porque, para nascer, perde-se um certo estado de consciência, o estado
de ser com o qual estávamos identificados. Nascer implica entrar num estado de dualidade.
Pode acontecer, então, uma fixação, uma nostalgia da fusão , passível de manifestar-se
como busca da dissolução. A fixação pode conduzir a sintomas como a drogadição ou
alguma outra forma de regressão ao estado fusional, anterior à dualidade, que impede o
avanço evolutivo para além dessa fase.”
(Leloup) P29: “Nas tradições espirituais observa-se o seguinte princípio: Tudo o que é composto será
decomposto. O choro do bebê [na fase anal] durante a noite pode estar ligado à vivência
desse processo.”
45
(Leloup) P67: “Não se deve separar o que Deus uniu; não se pode separar a dimensão material da
dimensão espiritual no ser humano.”
(Weil) P94: “[...] demonstramos [num artigo] que essas vivências [regressão a vidas passadas] se
acumulam graças a pesquisas tanatológicas, oníricas e outras verificadas in loco, por
diferentes meios: milhares de crianças que se lembram de outras existências, terapias
regressivas em adultos ou investigações experimentais sob hipnose consciente, sem
nenhuma indução de conteúdo.”
(Weil) P94: “Tudo indica que a regressão não se detém no nascimento. Existe uma memória intra e pré-
uterina denominada palingenésica. O que nos chamou a atenção, inicialmente, para essa
realidade, foi a existência dos tulkus tibetanos, a reencarnação de uma mesma sabedoria ao
longo de uma linhagem especial.”
(Weil) P123: “Quando uma pessoa pensa em se suicidar e vem a mim, costumo dizer: ´Você é livre para
se suicidar. Só que você matará apenas o seu corpo; as razões do seu desespero e desse ato
extremo serão levadas para depois da morte, muito aumentadas, porque não existirão mais
as limitações e os amortecedores do seu corpo!´”
(Crema) P140: “É no interior da pedra bruta da estupidez que encontraremos o diamante da excelência, da
plenitude, da capacidade incondicional de amar. Caminhar sobre ondas com os pés secos,
levitar, transmutar, são eventos notáveis que, às vezes, precisamos testemunhar para
compreender o alcance do potencial humano. E todos esses dons empalidecem diante do
poder da inocência, da transparência.”
(Weil) P158: “[referindo-se aos tulkus, da tradição do budismo tibetano, que “já nascem na condição de
Buda”] O atual Dalai Lama é um bom exemplo dessa condição evolutiva. Esses meninos
especiais são rapidamente reeducados e se lembram de seus discípulos, de seus auxiliares
etc. Tudo isso é evidenciado de todas as formas, testado e comprovado. (Quem viu o filme
O Pequeno Buda deve se lembrar.) Com 12 anos, já estão dirigindo o mosteiro como os
anciãos de setenta anos.”
(Leloup) P187: “[sobre o conceito de inconsciente familiar] O que fala através de mim não é só o que
conheço e aprendi, não é o resultado de minha pequena infância, mas são todas essas
memórias transgeracionais. Aqui, pode existir uma palavra que existe em mim, que vem de
meus ancestrais. A religião, para alguns, é conectar-se com a sabedoria desses ancestrais.
Entretanto, essas influências nem sempre são benéficas. Às vezes existem fantasmas
destrutivos: posso ser possuído pelos espíritos de minha própria família. Temos de estar
conscientes desse inconsciente familiar.”
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(Leloup) P189: “Também existe o inconsciente angelical. Novamente, há muito que falar, porque existem
diferentes níveis: o anjo guardião, os arcanjos, os tronos, as potências, os querubins, os
serafins – todos nos lembram que, assim como existem os intermediários entre o mundo
humano e o mundo mineral, vegetal ou animal, existem, entre o mundo divino e o humano,
todos esses mundos intermediários.”
(Crema) P48: “Um exemplo trágico e chocante: se você tiver uma experiência mística legítima [...] e contar
isso ao médico, ao psicólogo [...] eles dirão que você está doente, que necessita de
tratamento. Para os representantes de uma normose cientificista, muito em voga, não existe
a categoria do numinoso e do espiritual. Para eles, Cristo e Buda são ilusões; ou, pior que
isso, são degenerações, o ópio do povo ignorante, ilusão e alienação patológica.”
(Crema) P51: “Por terem desenvolvido [Cristo e Buda], além da razão, a plenitude da inteligência do
coração e da consciência noética, dando testemunhos belos e paradigmáticos de amor e de
fraternidade total, foram banidos das escolas, das universidades e da academia, que apenas
reconhecem os gênios menores.”
(Weil) P79: “Tudo aponta, também, para a demonstração de que o estado de consciência de vigília não
corresponde, absolutamente, a um real despertar: encontra-se na própria origem da fantasia
da separatividade, por estar dominado pelos limitados cinco sentidos e pelo insuficiente
raciocínio lógico formal. A ciência moderna é um conhecimento baseado exclusivamente
nesse estado de consciência. Podemos indagar até que ponto a fantasia da
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separatividade, sob a forma do dualismo e da suposta objetividade científica, não constitui a
raiz da desumanização da ciência, da tecnologia, da educação e do declínio ético.”
(Weil) P80: “O princípio exclusivo da objetividade, em ciência, provê uma espécie de selo oficial: a
fantasia torna-se um dogma quase inviolável. Felizmente, nos últimos anos multiplicaram-
se os colóquios sobre ciência e consciência que estão denunciando esse caráter ilusório e
nefasto.”
(Crema) P102: [definição de especialista] “uma pessoa exótica, que sabe quase tudo sobre quase nada,
dotada de uma certa imbecilidade funcional, que se orgulha da unilateralidade de sua visão
e de sua ação, dotada de uma viseira elegante que lhe impossibilita a visão ampla. Assim,
ela conduz a carroça, sem saber de onde nem para onde...”
(Weil) P122: “O primeiro extremo é acreditar que existe, como última realidade, alguma coisa concreta,
tangível. O outro extremo, no qual podemos cair, é dizer que não existe nada. O primeiro
extremo, em filosofia, chama-se materialismo, já postulado na Antigüidade grega por
Demócrito: a crença de que existe uma partícula sólida. O outro extremo é o niilismo,
proveniente do latim, nihil, que significa “nada”: a crença de que não há nada. Niilismo
seria o mesmo que nadismo.”
(Leloup) P136: “A Normose do Determinismo – Essa é justamente a normose do século passado, segundo
a qual todas as coisas podem ser explicadas. E, quando é possível explicar todas as coisas,
não há razão para crer. Tudo é evidente. Para tudo há uma explicação.
Então, Jesus nos lembra de que não há explicação para tudo, de que sempre há algo que nos
escapa. Ao olharmos e reconhecermos aquilo que nos escapa, vemos despertar em nós uma
qualidade de liberdade.”
(Crema) P200: “Às vezes ouço, confesso que com certo cansaço, alguns psicólogos afirmarem que
meditação não é psicologia, que o transpessoal não é psicologia. Na minha percepção, isso
denota pouco conhecimento acerca da psicologia e total ignorância no que diz respeito à
meditação e ao fator transpessoal.”
Trata-se de uma falácia de definição (não é isso o que a teoria darwiniana ou neo-
darwiniana estabelecem), seguida de argumentum ad-hominem (“Darwin não entendeu...”),
e outra falácia de definição (os termos “evolução” são empregados em acepções
diferentes), presente também na última sentença.
Outra passagem especialmente importante é a que segue (Weil, p79):
(Crema) P42:
“É muita ingenuidade achar que um São Francisco de Assis é pura obra da mutação ao
acaso e da seleção natural! Como afirma Erwin Laszlo, criador e presidente do Clube de
Budapeste, é evidente que as mutações aleatórias e o teste da seleção natural seriam
incapazes de gerar espécies complexas. ´Em relação ao ritmo e ao modo de evolução, a
teoria de Darwin está caindo por terra´, afirma Laszlo.”
(Crema) P47:
“Como afirmava Max Planck, segundo Thomas Kuhn em seu notável livro sobre
revoluções científicas, um novo paradigma é implantado não porque os cientistas da antiga
visão do mundo abram mão, desapegadamente, de suas certezas. Acontece que todos nós
morremos... e a juventude, de mente aberta e receptiva, acolhe a nova ordem, o aprender a
aprender. Felizmente, os ferrenhos equivocados também morrem e, de enterro em enterro,
de berço em berço, um novo paradigma é implantado e floresce.”
(Crema) P47:
Os grandes representantes da ciência do século XIX, refletindo o espírito da época,
postularam determinismos variados, centrados na competitividade. Darwin apontou para o
determinismo biológico e competição entre as espécies; Marx, para o determinismo
econômico e competição entre classes; Freud, para o determinismo psíquico e competição
entre as potências psicológicas. Ninguém falou de cooperação, solidariedade, fraternidade e
sinergia.”
(Weil) P78:
“Até recentemente, a ciência aceitava a separatividade [entre natureza e indivíduo] como
um dogma [...] A objetividade era considerada uma condição essencial do método
científico, o que resultou na eliminação do sujeito. Essa é uma crença normótica que,
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juntamente com a consideração exclusiva do estado de consciência de vigília, podemos
denominar de superstição cientificista, segundo as evidências da física contemporânea.”18
(Weil) P122:
“Os dois extremos [materialismo e niilismo] estão sendo refutados pela física quântica.
Atualmente, sabemos que uma partícula subatômica é, ao mesmo tempo, uma onda. A
crença em alguma coisa sólida como última realidade, do ponto de vista científico, desabou.
De outro lado, a microfísica está nos mostrando, também, que o espaço vazio, o vazio
absoluto, não existe. Nesse conceito, a ciência e a tradição espiritual convergem
maravilhosamente. Assim, podemos afirmar que alguma coisa e o nada foram eliminados,
definitivamente. É preciso evitar cair nesses extremos, o que muitos não conseguem. Entre
o alguma coisa do materialismo e o nada do niilismo há algo: nem nada nem alguma coisa,
mas algo que é muito mais que isso. Quem cai no extremo do materialismo, cai no apego e
em todas as suas conseqüências. Quem cai no extremo do niilismo, cai no desespero e, às
vezes, no suicídio.”
(Crema) P200:
“São alguns representantes notáveis da física que afirmam que não existe mais física
enquanto tal, mas modelos físicos, uma física dos físicos, uma física dos possíveis. Existirá,
então, uma psicologia? Muitos mal-entendidos seriam evitados se os referidos psicólogos se
tocassem e deixassem transparecer seus pressupostos antropológicos.”
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como a de Stevenson. Essa atitude preconceituosa é a normose responsável por
psicoterapias e análises intermináveis, devido às reações contratransferenciais dos
terapeutas que bloqueiam a regressão da pessoa ou a rotulam como patológica por não
poder compreendê-la.”
6. Conclusões
“E tudo o que acabo de descrever [sobre níveis de realidade] foi feito a partir da minha
mente e da minha memória e experiência de vida. Quem escreve sobre esses níveis de
conhecimento do real precisaria sempre lembrar que, assim mesmo, apesar de todos os
esforços, ainda estão falando de um plano intelectual para a mente dos seus leitores. [...] É
possível vivenciar a realidade como ela é, por cima de todas essas definições habilidosas
que apenas convencem o nosso intelecto?”
(Weil, Op. Cit., p169)
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7. Bibliografia e Referências
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Gleiser, M. Da Vida e das Estrelas. Disponível online:
http://marcelogleiser.blogspot.com/2005/03/da-vida-e-das-estrelas.html
[acessado em dezembro de 2008]
Harwood, J. Holistic Theories of Mind in Early Twentieth Century
Germany. In History of Science XXXVI (1998). [Disponível online:
http://www.shpltd.co.uk/harwood.pdf]
Holton, G & Brush, S. Physics, The Human Adventure: From
Copernicus to Einstein and Beyond. Piscataway, NJ: Princeton University
Press, 2001.
Lakatos, I & Musgrave, A. (Eds.) Criticism and the Growth of
Knowledge. Cambridge: Cambridge University Press, 1970.
Leloup, J.Y. Caminhos da Realização. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
Leloup, J.Y. Cuidar do Ser: Fílon e os Terapeutas de Alexandria.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
Popper, K. R. A Lógica da Descoberta Científica. São Paulo: Cultrix,
1993.
Ruelle, D. Acaso e Caos. São Paulo: Unesp Editora, 1993.
Sagan, C. O Mundo Assombrado pelos Demônios. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
Weil, P. A Arte de Viver a Vida. Brasília: Letrativa, 2001.
Weil, P. Sementes para uma Nova Era. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984.
Weil P, Leloup J-Y & Crema R. Normose. A patologia da normalidade.
Campinas: Verus, 2003.
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