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É justamente a diversidade de
leituras que um texto ficcional possibilita que determina a riqueza de um autor: quanto
melhor ele é, mais articulações ele engendra. Um autor torna-se universal na medida em
que atinge um grande número de pessoas, vence o tempo e continua a dialogar com o
seu público, continua a fazer sentido para além de sua época e de sua cultura de origem.
possibilidades de leituras porque se, por um lado, suas histórias têm um aspecto
singular, como se só pudessem acontecer com aqueles personagens, por outro lado, dão
uma outra dimensão da compreensão da linguagem da cena, nos deparamos com outra
maneira de pensar sobre a função da história contada no palco. Somos obrigados a olhar
para as deliciosas histórias que Nelson conta de uma maneira estrutural, ou seja, para
levanta-se, como seu contraponto, a questão da teatralidade que pensava a cena não
cena proposta por Brecht, uma cena cuja estrutura está exposta, sem ilusionismos, sem
mágica, sem truques; um ator que se mostra, ora como personagem, ora como suporte
de um personagem: ora imagem de uma história, ora articulador dessa mesma história.
abarcar a figura em todas as suas dimensões, de dar conta daquilo que a perspectiva
linear não dava: expor todas as faces de uma figura. E, como resultado da realização
dessa necessidade, temos um quadro que, além de revelar a figura como um todo, revela
realização daquela motivação inicial – abarcar toda a figura –, vemos, enfim, para além
do tema, para além (ou aquém?) do enredo; vemos a própria pintura. E, apenas para não
ficarmos em um único exemplo, vamos pensar em Joan Miró, que construía com pintura
título que se torna indissociável da obra. E, nesses jogos, uma nova função da pintura se
apresentava: revelar imagens sem deixar de ser pintura ou, por outro lado, revelar a
suporte. E vai considerar o enredo tanto como elemento representado pelo suporte,
como, o enredo, ele mesmo, suporte de sentidos. A modernidade vai, enfim, fazer o
caminho de afastamento de uma operação mimética que criava uma cena que se remetia
ao que ela não era, se remetia a algo que não estava REALMENTE ali e vai, ao
contrário, se aproximar de uma cena concreta, que estava exatamente ali, no lugar para
onde se olhava. A modernidade sai de um teatro que se fazia esquecer enquanto tal, para
que Nelson termine a peça no momento em que Alaíde morre. Mas Nelson se recusa,
porque a peça não trata apenas da agonia do personagem. Existe um jogo que a cena
constrói no qual revela-se, também, a história de Alaíde. O fato de Alaíde morrer não
significa que a experiência da cena, a experiência que está sendo proposta chegou ao
fim. E a pergunta é: se não é Alaíde quem deve ser revelada pela cena, o que Nelson
quer revelar? A história da morte de Alaíde mostra-se pela articulação entre a realidade,
cena se sustenta, portanto, graças a essa estrutura e, graças ao jogo entre esses três
âmbitos da vida, Alaíde é revelada. Vestido de noiva tem, portanto, como núcleo, como
fio condutor, a convivência dos três planos. E, se o núcleo da peça não é a história de
Alaíde, o enredo é, certamente, a convivência entre esses três universos – tão próprios
do teatro. Esses planos não são parte dos diálogos, não são objeto do discurso; eles são a
própria estrutura da peça. A fábula brota do jogo entre eles. Portanto, são eles que estão
construção. Um lugar que chama a atenção para o fato de que seu sentido é uma
construção. Alaíde é uma construção articulada pelos planos que estruturam sua
para conversar sobre os direitos autorais da peça. Ao fim da conversa, ele me disse:
“Mestre, atende a um pedido do meu pai: não mexe nas falas, não. Ele sempre dizia que
tinha levado muito tempo pra escolher aquelas palavras, que escolheu uma por uma.
Então, recorro a estas palavras escolhidas por Nelson para compor uma fala
É uma fala toda entrecortada que constrói uma aparência de fala cotidiana.
Mas, além disso, tem uma pontuação bem característica: “Quer dizer que. Me chamam
de assassino e.” Ele não usa reticências, maneira habitual de grafar uma fala
interrompida. Mas ele não usa porque a fala não está interrompida, ela termina ali. Não
é uma sugestão de interrupção. Esta é a frase. Nelson, com essa maneira de construir a
fala, não dá margem pra que o ator crie pausas a seu bel prazer, ele não permite que o
ator que vai fazer o personagem, acrescente um “que” ou um “mas”, como às vezes se
faz depois de reticências, Nelson está construindo uma fala muito precisa, uma fala para
ser dita exatamente dessa maneira. As rubricas dão o sentido da interrupção. Assim,
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Rodrigues, Nelson. O beijo no asfalto. In Teatro completo de Nelson Rodrigues, v. 4 – 2ª edição. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2004. P. 100.
você tem nesta fala um ritmo determinado pela notação. E uma entonação, esta, sim,
Assim, eu entendo o pedido de Nelsinho para que não mexêssemos nas falas
da peça e, ao mesmo tempo, fica evidente o quanto Nelson sabia o que estava em jogo
na cena que propunha. Há uma estrutura com a qual precisamos dialogar. Há um sentido
na história a ser contada, mas o principal é compreender que, em Nelson, essa história
deverá ser revelada a partir de uma estrutura que deve mostrar-se como estrutura. Dito
em outras palavras, Nelson propõe um jogo no qual é a cena que se conta. A cena
rodriguiana não é um veículo a serviço da fábula. É uma estrutura que se mostra como
Esse fragmento de Blanchot nos leva a pensar numa narrativa que não conta,
numa narrativa que não está a serviço da fábula. A própria narrativa é o acontecimento,
é aquilo que quer ser revelado. Portanto, se levarmos esta idéia para a leitura de Nelson,
passamos a entender o rigor formal que ele exigia em relação às palavras. Aquela
não apenas pelo sentido que carregam, mas pela sua forma; ou seja: pela sonoridade ou
pelo ritmo que elas determinam. Se elas tivessem sido escolhidas apenas pelo sentido,
palavra poética, aquela que se mostra para além (ou aquém?) do sentido. Aquela que se
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Blanchot, Maurice. O livro por vir. Trad. Maria Regina Louro. Lisboa: Relógio d’água, s.d., p. 14.
A palavra em Nelson deve ser entendida em sua concretude. O mesmo
ocorre com a cena como um todo. Por isso a história de Vestido de noiva não se limita à
revelação da história da morte de Alaíde; Alaíde brota da cena enquanto a cena conta-
se.
Nelson sabia jogar brilhantemente com a incorporação da palavra pela cena porque, no
palco, a palavra tem o poder de dar a vida; tem o poder de realizar o impossível, ou
melhor, o poder de realizar todas as imagens que se quiser imaginar. Não é à toa que,
A contradição entre o gesto de Das Dores e o sentido da sua fala revela não o
desprender de uma cena que se refere a uma realidade exterior a ela própria. Aqui, esta
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Rodrigues, Nelson. Dorotéia. In Teatro completo de Nelson Rodrigues, v. 2 – 2ª edição. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2004, p. 193.
cena é real porque, em cena, é possível que um personagem morto não saiba disso. A
A vida é, na verdade, menos real do que a arte. Uma vida não é, nem nunca
pode ser, uma criação absoluta. E como poderia sê-lo, esta vida (...) traída
pelos acontecimentos, pelos outros homens (...) esta vida que se apaga e
desaparece conosco na eternidade. A arte é que é uma realidade em si,
eterna, fora do tempo, livre dos acasos, (...) sem outro fim que ela mesma.5
contrário, trata-se de considerar a cena como uma realidade muito especial. O teatro não
é uma relação com uma realidade fora do palco; ele é, ele próprio, uma realidade que
articula, como a vida de Alaíde, memória, realidade e alucinação (ou invenção). E dessa
sentido, COM o espectador. E, se estamos nos referindo todo o tempo à estrutura que
faz a história brotar da cena, estamos justamente alertando para o fato de que ela, a
Por isso é fundamental, para ler Nelson, compreender que a estrutura que ele
personagem não existe”. A trajetória desse personagem se faz pelo desvelamento dos
nomes e dos fatos que povoam a sua memória. Nomes sem rosto; fatos sem gênese. Seu
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Pirandello, Luigi. Esta noite se improvisa. Apud Dort, Bernard. O teatro e sua realidade. São Paulo,
Editora Perspectiva, 1977, p. 202
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Rodrigues, Nelson. Valsa nº 6. In Teatro completo de Nelson Rodrigues, v. 1 – 2ª edição. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2004. P. 145.
próprio rosto é, para ela, uma incógnita. O personagem se relaciona com o nome de
Sônia. Seu passado não se desenha com precisão. Mas quem é este personagem que se
mostra no encadeamento de ações e lembranças, sem nunca formar uma unidade que o
momento em que a cena se apresenta, no momento em que ele cria situações. E ao vê-
lo, vemos Sônia. Vemos um personagem partido em mil pedaços, mas inteiro em cada
instante.
tentamos constituir o fato cênico. A peça é toda feita de fatos que são,
contraditoriamente, aquilo que falta para que Sônia se constitua em uma unidade, pois a
ordem dos tempos confunde-os tornando difícil acreditar na veracidade dos fatos
relatados. E é este personagem que conduz a ação. Um personagem que não se reconhece
em si mesmo. A cena se constrói a partir dele: de suas palavras e de seus gestos. A cena
real: a atriz com suas palavras e gestos, a música, o conto. Sim, porque se trata de um
conto, um conto cuja narrativa ultrapassa – ou fica aquém (?) – do objetivo de contar uma
compreender o jogo que ele propõe com os elementos cênicos. Porque o que ele sugere
nas rubricas é fundamental para que possamos entender toda a articulação da sua cena.
Encenar Nelson é mergulhar na tarefa de construir uma estrutura que revele uma história
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Rodrigues, Nelson. Valsa nº 6. In Teatro completo de Nelson Rodrigues, v. 1 – 2ª edição. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2004. P. 168.
Nelson pediu ao filho para não deixar ninguém mexer em suas palavras, mas
não disse o mesmo em relação às suas rubricas. Suas descrições de cenário ou de gestos
ou entonações são sugestões que nos ajudam a pensar na estrutura que ele propõe. Não
que ele escolheu para compor os diálogos, essas mesmas palavras, podem se articular em
Entretanto, não nos esqueçamos que a cena proposta por Nelson não se atém à história,
ao enredo. Portanto, estamos falando que encenar Nelson não é apenas situar uma
história num lugar; é necessário compreender que sua história é, ela própria, um lugar
teatral e montar uma de suas peças significa dialogar com uma construção.
Se pensarmos na cena como um todo, ela nos aparece como uma narrativa,
que envolve em sua construção, elementos sonoros e visuais. Assim como as palavras na
obra de Nelson têm concretude e, portanto, não são instrumentos do conto, mas
elementos do próprio conto, a cena não se presta a sublinhar o conto, a ilustrar uma
história. A cena vai dialogar com as palavras, a partir de uma idéia de palavra na qual a
estrutura tem tanta importância quanto o sentido, a cena vai se constituir também como
ele afirma que a narrativa não é o relato do acontecimento, mas ela própria
não ilustrar as situações propostas pela fábula, mas a articulá-los, de forma real, fazendo
O que quero dizer é que o cenário para uma peça de Nelson, mais do que
representar um lugar, precisará ter a mesma existência cênica das palavras do texto. Ou
seja: deverá se oferecer à experiência da platéia como um elemento concreto e não se ater
à mera descrição de um lugar. E o mesmo valerá para todos os demais elementos da cena.
A serpente, última peça de Nelson e a única que ele escreveu em um ato, é
considerada uma peça de menor importância no conjunto da sua obra por, supostamente,
não acrescentar nenhum dado novo à sua série de peças. Mas, na verdade, no que diz
respeito à estrutura, A serpente apresenta, sim, algumas preciosidades que temos que
cenário no início da peça. Inclusive, esse é um procedimento aplicado nas suas últimas
peças. Ao longo de A serpente, é que ele vai sugerindo, nas rubricas, elementos
importantes para a ação: duas camas em dois quartos e, pelo menos, uma janela. Ele se
os diálogos está, portanto, para ser criada. E, se levarmos em consideração as idéias que
como um lugar que se oferece à experiência do teatro, a invenção desse espaço e da sua
central, desloca o foco da história para a estrutura. O mesmo ocorre com A serpente cuja
estrutura fará com que a história se revele. Mas de que forma isso ocorreria, visto que, ao
diálogos são extremamente curtos, imprimindo uma grande velocidade à peça. O fato de
a peça ter apenas um ato, associado à agilidade dos diálogos, cria a impressão de que
tudo deve acontecer num único fôlego. Outra coisa que colabora para esta sensação é o
fato de não haver tramas paralelas. A peça segue por uma rota que tem início no erro
trágico de Guida, que oferece seu marido à sua irmã por uma noite e, de ciúme em ciúme,
relação à cena principal, permite que a peça respire. Mas esses recursos também acabam
utilização de uma espécie de ‘monólogo interior aos gritos’ no qual o personagem vem à
boca de cena e revela, em altos brados, sentimentos, ou fatos passados que justificam o
lado, traz a necessidade de uma urgência na revelação da história, colocando-a como foco
do recurso narrativo e, por outro lado, chama a atenção para o fato de que uma história
está sendo contada e, assim, sublinha o que há de estrutural no conto. O outro recurso é
uma interrupção da cena para o encontro de Décio com a Crioula das ventas triunfais.
Esse momento, inclusive, funciona como uma suspensão total da ação principal, levando-
nos, a outro lugar – um quarto fora da casa de Lígia e Guida – o que dá à narrativa
principal quando ela retorna, um novo vigor depois dessa espécie de intervalo em que a
entendimento linear da peça. Mas isso ainda não basta para mostrar que a peça, antes de
ser uma narrativa aparentemente linear, mostra-se como uma estrutura construída. A
seqüência das cenas dá saltos, tanto em relação ao espaço como em relação ao tempo,
fazendo a ação avançar ainda mais rápido. Nelson usa um recurso de montagem por
quadros que lembra uma edição cinematográfica: uma cena acontece num quarto e, ao
final dela, corta para uma cena em outro quarto. Este recurso de montagem também se
história contada, revela uma urgência, uma ansiedade latente, que não se localiza em
nenhum personagem isolado, mas na peça como um todo. A história não fala dessa
Se o título se refere ao pecado original, aqui, ele não pode ser atribuído a
nenhuma atitude precisa dos personagens. Isso determinaria uma leitura extremamente
ansiedade provocada pela tensão entre o desejo e a culpa; pela tensão entre a realização
está no jogo entre os personagens. Por isso a velocidade dos diálogos. Por isso a presença
das camas. Por isso o triângulo amoroso é interrompido por uma cena na qual o prazer
não encontra qualquer empecilho, como é o caso de Décio com a Crioula das ventas
triunfais.
Nelson, em A serpente, não apenas conta uma história, faz dessa história um
acontecimento cênico. Isso porque ele não se atém somente ao conto que se faz
compreender através das palavras, mas que se faz compreender a partir da construção de
uma estrutura vigorosa, de uma máquina de produzir sentidos, que é a sua estrutura
narrativa.
Enfim, quando lemos Nelson, há muito mais em jogo do que o simples fato de
que uma história vai ser contada. Mas para além (ou aquém) da história está uma
composição, visível, que sustenta a experiência teatral que Nelson propõe em suas peças.
dela. Por isso, é necessário que o encenador ao se defrontar com as peças de Nelson
também entenda que a cena tem como tarefa mostrar-se como realidade e não como uma
referência ao real. E ao encontrar Nelson, o encenador precisa entender suas peças como
máquinas teatrais e entender ainda que, se mergulhar apenas no sentido das palavras e
não buscar compreender cada parte da engrenagem – pobre encenador – será atropelado
Sempre! Sempre8
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Rodrigues, Nelson. Valsa nº 6. In Teatro completo de Nelson Rodrigues, v. 1 – 2ª edição. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2004, p. 171.